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Não Levo Saudade
Não Levo Saudade
Não Levo Saudade
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Não Levo Saudade

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About this ebook

Com o meu pai aprendi que cada palavra é preciosa. Dizia-me frequentemente, com um sorriso desafiador, Cada palavra é preciosa! A verdade tem uma direcção mas não um destino (não te esqueças). Tudo o que eu digo é mentira, vê se descobres...

Nunca descobri a verdade escondida naquelas palavras preciosas.

O meu pai é um velho que já mal me reconhece. Por vezes olha-me como se me visse pela primeira vez e abraça-me com uma saudade repetida que me fez indiferente. Outras vezes olha-me e não sabe quem tem na sua frente. Imobiliza-se na inteligência que sempre lhe reconheci. Eu sei que ele não me reconhece. Ele sabe que não se reconhece a si próprio. Imobiliza-se na certeza de que o universo mudou de lugar e esqueceu-se de o avisar.
Desço até à terceira rua de mortos empilhados num monte com vista para o Tejo (que bela vista se tem depois de morto). Fico uma hora mais em frente da campa do desconhecido que mandou gravar na pedra as palavras que têm de ser minhas:
Não Levo Saudade

********

M.L. é um homem atormentado pelo passado e pelas palavras gravadas na pedra tumular de um homem enterrado no Cemitério dos Prazeres: Gervásio, que combateu nas Ardenas e viveu os últimos cinquenta anos abandonado pela família num rés-do-chão de um prédio que já caiu na Penha de França.

- Pai, o que me aconteceu em 1946?

LanguagePortuguês
PublisherP. Barbosa
Release dateFeb 18, 2013
ISBN9781301502349
Não Levo Saudade
Author

P. Barbosa

Escrevo faz já alguns anos. Tenho a ilusão de que a minha escrita não é vulgar. Se não a tivesse, não me atreveria a publicar. Escrevo por que me mandam escrever os dedos. Tudo o resto nada importa.

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    Não Levo Saudade - P. Barbosa

    PARTE I: EMBATE COM O ESQUECIMENTO

    1

    Dizia:

    Deixo aqui uma mão cheia de restos de mim

    Uma mão cheia de nada

    Parto sozinho

    Não levo saudade

    Reconhecia-me naquelas palavras, apesar de eu estar vivo e aquelas serem as palavras de um morto. Reconhecia-me naquelas palavras que lia pela primeira vez. Queria-as para mim. Senti-me roubado por aquele morto enterrado.

    Especado ao frio, invejava-o, de mãos geladas enfiadas nos bolsos do sobretudo de lã preta oferecido pela minha tia de Benfica que morreu na década que passou. Especado ao frio, sentia o vento que varria o Cemitério dos Prazeres.

    Ali está o morto ladrão, pensei, apontei com o dedo indicador. Talvez devesse olhar para a pedra tumular e pensar, Debaixo daquela pedra deveria estar eu.

    Nada importa. Pego no comprimido branco embrulhado no lenço e tomo-o na boca. Espero um minuto ou dois até este surtir efeito, e logo depois o pensamento vago evapora-se dos meus olhos, lugar primeiro e último da minha triste memória. Ali, debaixo daquela pedra, está o morto ladrão, já não penso eu. Sexta-feira, quando novamente for à consulta, não posso esquecer de dizer o que os olhos não viram. O psicanalista há de parar-se momentaneamente na sua psicanálise fingida e depois continuará indiferente como de costume. Há de perguntar-me se as ideias obsessivas que me atormentam ainda me atormentam.

    Paro-me momentaneamente na minha dor fingida e digo-lhe que estão melhores. Esboça um sorriso. Esboço um sorriso de volta, mas que é fraco, é apenas meia-Gioconda, são dois Xanax tomados à força meia hora antes da consulta.

    Saí, dezoito horas de uma sexta-feira negra de céu, promessa de chuva, andei vago pela rua fingindo vida. Volto novamente ao Cemitério dos Prazeres. Desço até à terceira rua de mortos empilhados num monte com vista para o Tejo (que bela vista se tem depois de morto). Fico uma hora mais em frente da campa do desconhecido que mandou gravar na pedra as palavras que têm de ser minhas.

    Quando o sol se pôs voltei para casa. O meu velho pai tentou novamente fazer o jantar, novamente sem sucesso. Não liguei à tragédia que se acumulava na cozinha. Peguei no velho que dormia no sofá defronte da TV (e que desesperadamente procurava falar com ele) e levei-o a custo até à cama de molas centenárias e já coxa; velha. Rangeram quando o meu pai se deitou. Os ossos do meu pai rangeram também.

    O meu pai é um velho que já mal me reconhece. Por vezes olha-me como se me visse pela primeira vez e abraça-me com uma saudade repetida que me fez indiferente. Outras vezes olha-me e não sabe quem tem na sua frente. Imobiliza-se na inteligência que sempre lhe reconheci. Eu sei que ele não me reconhece. Ele sabe que não se reconhece a si próprio. Imobiliza-se na certeza de que o universo mudou de lugar e esqueceu-se de o avisar.

    Nesses momentos olho-o e recordo as palavras gravadas na pedra tumular do desconhecido enterrado no Cemitério dos Prazeres. Imagino que as posso mudar, apenas ligeiramente, e fazê-las minhas; mandar escrever:

    Aqui entrego o monte de ossos que já fui

    Um monte cheio de nada

    Parto sozinho

    Não levo saudade

    Mas estas palavras não me servem. Servem ao meu pai, que já partiu deixando para trás um corpo vivo a marcar lugar; que está magro como os ossos, magro nas tentativas desesperadas de fazer o jantar de logo à noite.

    Limpei a cozinha o melhor que pude. Renovo-me na ideia parva de que o mundo rola para alcançar um sítio melhor. Ainda não descobri que vivo com doença igual à do meu pai. Não tenho a inteligência para perceber que o universo já mudara de lugar e não cuidou de me avisar. O meu pai pensa o mesmo que eu quando fica imobilizado na minha frente, enquanto o universo muda de direção.

    Pego no comprimido embrulhado no lenço e tomo-o na boca. Vou até ao jardim e sento-me no banco ao lado dos velhos que jogam às cartas. Espero uma hora ou duas, ou três ou as que forem necessárias, pois o sábado é o dia em que a esperança se renova. Gosto de olhá-la no seu vestido azul repetido e nos passos seguros e altivos que dá enquanto conversa com a amiga do costume. Não sei o seu nome. Apenas sei que não será de mais ninguém a não ser dos meus olhos. Finjo a certeza de um amor futuro sabendo que nunca chegará. No momento firme em que a imagino a meu lado o universo muda bruscamente de direção e acabo com um monte de ossos nas mãos, um monte cheio de nada. Ainda antes do sol se pôr a esperança de sábado interromper-se-á abruptamente na volta que a Terra sempre dá. Do lado de lá não há nada. Sinto a humilhação, a vergonha e o medo que escondo no comprimido que guardo debaixo da língua.

    Engulo-o.

    Parto sozinho.

    Não levo saudade.

    ***

    Qualquer dia escolho um rumo. Antes, quando o meu pai ainda não havia partido nessa viagem pela galáxia afora, dizia-me, com uma repreensão compreensiva (com um tom de voz que misturava frustração e amor), que devia arranjar uma profissão e uma mulher. Prestava muita atenção às palavras dele, pois sempre as escolheu com a precisão de um relojoeiro suíço. Recordava-me frequentemente que compensava a escassez de palavras com a certeza do que dizia.

    Nunca quis ser o que quer que fosse. Ou então sempre tive medo de ser alguma coisa, fosse o que fosse. Sempre achei os caminhos demasiado estreitos (por serem caminhos). Têm bermas fundas que me assustam como o mais alto dos precipícios. Têm encostas íngremes e vias de um só sentido. Sempre preferi os campos abertos. Preciso de espaço, prefiro a ideia de poder olhar em volta e só ter a linha do horizonte como limite para os meus sonhos.

    Vivo à custa do meu velho pai, da reforma e das parcas poupanças de uma vida dura de trabalho. Aguento pouco, satisfaço-me com muito. Foi essa pequena semente, provavelmente, que me devorou, crescendo dentro, com o tempo, ganhando raízes fundas impossíveis de alcançar, impossíveis de arrancar, e que por fim me obrigou a perceber (na contemplação que, enfim, não pode mais ser ocultada) que a felicidade ou que quer que fosse que eu procurava (nunca tive coragem) nunca seria alcançada.

    Ah… se ao menos houvesse um botão que pudesse ser carregado e que me escusasse a esta vida, bastando um pequeno toque, apenas um ligeiro toque ao de leve no botão amarelo e a luz acendendo-se, preparando-me para o universo obediente que muda de lugar.

    Escrevo:

    Aqui jaz o monte de nada que sou

    Vivo sozinho

    Não tenho saudade

    Não, não é nada disto. Comprei um caderninho preto com uma moeda de dois euros que roubei da carteira do meu pai. Decidi rescrever o verso tumular até o achar melhor que o original incrustado na pedra à força de um martelo e fazê-lo meu. Não me conformo com o morto ladrão e fixo-me na estúpida convicção de que aquelas palavras têm de ser minhas.

    Durante o resto da semana tomei dose dupla dos comprimidos que guardo embrulhados no lenço bordado com as minhas iniciais, oferecido pela minha mãe esquecida. Já não me lembro dela, e só tenho certeza de que ela existiu por causa do lenço que trago no bolso. M. L., já não sei o que o L representa. Chamo-me Manuel. O meu pai é Lourenço.

    Na semana em que fiz cinquenta e seis anos ninguém me veio cumprimentar. Não falo do dia certo em que fiz cinquenta e seis anos, pois já não estou certo qual é. Apenas sei que fica algures na terceira semana de novembro.

    A florista que passa o dia à porta da loja ignora-me como de costume. Nem bom-dia nem boa-tarde. Apenas está interessada nas intrigas que usa para impingir ramos de flores a maridos arrependidos de males de que já não se recordam de os terem praticado.

    Passo pela Maria Padeira que pergunta sempre pelo meu pai e que nunca pergunta por mim. Não sabe o meu nome, estou certo disso.

    Tiro o livrinho do bolso do casaco.

    Escrevo:

    Aqui ficarei para sempre

    Um monte de nada mais pequeno que o monte de nada que já fui

    Nunca vivi

    Não levo saudade

    Não. Estas palavras são tão pobres quanto eu. Não satisfazem o anseio que esqueço ter. Levo a mão ao bolso e desdobro o lenço como se tivesse lá dentro um tesouro. Hesito, mas tomo o comprimido na boca. Estou à porta do Cemitério dos Prazeres. Entro e vou ter com o morto.

    Esconjuro o pobre diabo por me ter roubado as palavras que me pertencem. Não tem nome na campa, reparo pela primeira vez. Tomo nota do número do lote de terreno com vista para o Tejo (que belo pôr do sol) e procuro pelo coveiro-mor do Cemitério dos Prazeres.

    Enxotou-me com a mão como a um pombo doente à porta da morte procurando um buraco para ser enterrado. Lancei-lhe um olhar de ódio e ameacei-o com uma raiva desconhecida em mim. Voltou atrás e pôs-se a consultar o livro para onde vão parar os nomes que morreram. Chama-se Gervásio, disse-me. E de onde era esse Gervásio? Segundo os registos, disse-me com enfado, Viveu na Penha de França, mas nasceu para os lados de Idanha-a-Nova. E de que morreu ele?, perguntei. O coveiro-mor fitou-me uma vez mais, e quando percebeu que o ódio e a raiva já haviam partido enxotou-me com a mão como a um pombo doente à porta da morte procurando um buraco para ser enterrado.

    ***

    Gervásio França, de seu nome completo, morreu com cento e um anos. Descobri que viveu os últimos cinquenta anos da sua vida abandonado pela família num rés do chão de um prédio que já caiu na Penha de França. Quem mo disse foi a porteira reformada que vive no prédio ao lado. Viveu a segunda metade da vida abandonado pela mulher e filhos, mas viveu o primeiro meio século com uma família numerosa, rodeado de cinco filhos. Brinquei com os filhos dele, disse-me a velha reformada. Namorei com um deles mas não deu em nada. Um dia a família desapareceu e nunca mais os vi. Ele ficou por aqui e nunca mais ninguém veio vê-lo. Diz-se que o abandonaram e que foram viver para Idanha-a-Nova. Respondi-lhe, em voz alta, com o indicador apontado ao céu, O velho devia ter sido enterrado no cemitério de Idanha-a-Nova. Nasceu lá e devia ter sido enterrado lá. Não tem nada que vir para aqui ocupar lugar no Cemitério dos Prazeres. A velha deve-me ter julgado parvo com aquela conversa idiota, tenho a certeza de que me julgou parvo.

    Achava que se Gervásio tivesse sido enterrado em Idanha-a-Nova então aquelas palavras poderiam ter sido minhas, apesar de apenas as ter encontrado na lápide daquele homem que olha o rio Tejo sete palmos abaixo do chão.

    Escrevo:

    Aqui estamos nós

    Olhamos o rio Tejo e somos nada

    Troquemos de lugar que o universo não se aperceberá

    Prometo não levar saudade

    Risco esta porcaria e tento um verso diferente.

    Consomem-me as palavras que me foram roubadas. Qualquer dia volto de noite com martelo e escopro e apago da memória do morto as palavras que então voltarão ao seu legítimo dono. Planeio o assalto para a noite seguinte, mas assim que imagino a lápide sem as palavras acobardo-me no medo de as esquecer novamente. Sim, novamente. Não me lembro delas antes de as ver na lápide do Cemitério dos Prazeres. Não me lembro do meu sobrenome. Não me lembro como fui dar com a campa de Gervásio. Não me lembro do dia exato em que faço anos. Não me lembro da minha mãe.

    Guardo o plano para uma coragem que nunca chegará. Tenho de ir a Idanha-a-Nova descobrir como foi que Gervásio roubou as palavras que me pertencem.

    Escrevo:

    Aqui vive um homem sem vontade

    Uma alma cheia de nada

    Parti sozinho

    Não levo saudade

    2

    Não sei ao certo como vim cá parar, mas apeei-me da camioneta que saiu de Lisboa para Idanha-a-Nova eram cinco horas da tarde. É dezembro, junto ao Natal. A baixa luz que descia agora sobre Idanha-a-Nova juntou-se às luzes de enfeite e, por uma razão que não era capaz de compreender, sentia-me feliz. Poucas vezes revisitei esse sentimento escasso ao longo da minha vida, e tenho de realizar um exercício largo de autoconvencimento para acreditar que já o senti no passado. Como com todas as outras coisas importantes da minha vida, esqueço-me delas. Suspeito de uma força oculta responsável pela minha culpa (não a renego), mas à qual frequentemente me escuso.

    Acredito que não esquecerei este raro momento; atravesso a rua e logo o vento gelado varre a minha inútil memória.

    ***

    Percorri as ruas ao calha. Entrei no café mais antigo que consegui encontrar e reconhecer como antigo. Perguntei se conheciam os Franças, se conheciam Gervásio França. O homem velho que servia bebidas atrás do balcão imobilizou-se por um instante e depois abanou com a cabeça de que sim. Está espantado com a pergunta, o homem que vive atrás do balcão. A mosca que voava em volta da lâmpada fluorescente parou de repente. O velho solitário que bebia uma imperial deixou-a a meio e saiu de imediato. A televisão desligou-se sozinha, matando os personagens que encenavam uma história. Os dois desempregados que falavam aos berros e jogavam às cartas calaram-se e pararam de jogar. O carro que passava na rua travou de imediato e ligou os quatro piscas. Os

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