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Renata, a Feia
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Renata, a Feia

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Renata é Portuguesa e é a mulher mais feia do mundo. Ela habita num Portugal Alternativo onde as Feias são consideradas estúpidas e tratadas de acordo com esse epíteto.

Renata, um dia é raptada por Shayar, um sultão que colecciona feias. Ricardo, há anos secretamente apaixonado por ela, tenta salvá-la...

LanguagePortuguês
Release dateApr 29, 2012
ISBN9781476305073
Renata, a Feia
Author

Ágata Ramos Simões

Colaborou na tradução japonesa das obras “Todos os Nomes” e “A Caverna” de José Saramago.Representada com três poemas na colectânea de poesia contemporânea portuguesa, “Ventana A La Nueva Poesía Portuguesa”, editada no México pela Ediciones Desierto.Escreveu “Lisboa singular”, livro infanto-juvenil, publicado em português por uma editora francesa (Éditions 00h00).Teve uma participação no Salão do Livro em Paris, entre os dias 16 e 21 de Março de 2001, convidada pela editora Éditions 00h00.Ganhou o 1o prémio no concurso literário “António Mendes Moreira” da Câmara Municipal de Paredes com o manuscrito “À Procura de um Livro” e ganhou igualmente o 1o prémio ex-aequo no concurso literário Orlando Gonçalves da Câmara Municipal da Amadora com o mesmo manuscrito.No princípio de 2006 foi publicada a obra "Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos" pela editora Saída de Emergência.Participou no DN Jovem durante alguns anos.

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    Renata, a Feia - Ágata Ramos Simões

    Sejamos absolutamente sinceros: trata-se de uma criatura feia, horrenda até segundo critérios que consideram outras criaturas desagradáveis à estética do rosto feminino. Referimo-nos, é evidente, a desfigurados por acidente de carro ou chamas; a desfiguradas de nascença, com lábios rachados ao meio, um olho elevado no rosto maior do que o outro, a quebrar a divina simetria, de dentes encavalitados em maxilares projectados para a frente ou sumidos num rosto de dar vómitos – e orelhas de dimensão heterodoxa. Era uma criatura cuja feiura provoca nos indivíduos que a olham de frente por tempo prolongado e referimo-nos a não mais que três, quatro, vá lá, cinco segundos, os mesmos arrancos de vómitos que um recipiente de golfadas do estômago provocaria a quem o visse colocado à frente na hora da janta.

    Quando desconhecidos a observam durante o lanche ou almoço através da janela da pastelaria ou do Mcdonald’s, demoram-se num pasmo mudo e desejoso de ver mais, pasmo que combate a premente vontade de desviar imediatamente a vista, com nojo e uma ausência de pena que os normais reservam aos feios, como se não fosse culpa deles serem-no; o desagrado dos deuses, cogitam eles num pensar instintivo, marcou-lhes o focinho com a indelével marca da feiura, essa feiura que talvez fosse também o inapagável e firme testemunho de outros defeitos: cretinice, egoísmo e maldade.

    É este o género de reacção que Renata, a Feia, obtém de forasteiros, uma recusa biológica irracional. Dos outros, familiares e conhecidos, vizinhos, a reacção inicial foi diminuindo, apagando-se com o convívio e o tempo, mas regressa com o choque, o ímpeto, o pontapé no estômago, a patada de cavalo selvagem no peito dos primórdios em que ela, virando-se, mostra o rosto e se apresenta ou faz apresentar a desconhecidos. Houve choros em pequena, à época das apresentações de novos primos pelos tios (tenha lá paciência, diziam, é muito novo, é um bebezinho, deixe passar mais dois, três anos, para aguentar o choque, ter a força necessária para conhecer a prima, tenha lá paciência; não, não pode ir ao baptizado, ainda me morre o bebé); houve vómitos, alguns contidos com pouca discrição, outros nem por isso, a quantidade de sapatos que Renata estragou.

    Estragou: apunham-lhe a culpa dos episódios, pois se ela conhecia tão bem a reacção dos coitados desprevenidos, não podia fazer-se apresentar (na verdade apresentava-se porque ninguém conhecido desejava fazê-lo e causar má impressão à pessoa, Mas que calhau, mas que feia! E tu apresentas-ma. Não te vou perdoar, e não se tratava de vã ameaça, acreditem), descalça? E a considerável distância? Coisa que ela já fazia, mas aqueles vómitos parece que adquiriam asas, propulsionados a combustível de naves espaciais, aterravam após um longo arco repentino, rápido, aos pés de Renata. Um jacto de vómitos de asas invisíveis, com o impulso dos anjos, o ímpeto daquela explosão primordial do Universo, a rapidez do dilúvio divino a abater-se na crosta terrestre.

    A mãe não ganhava para os sapatos da filha e quando Renata começou a trabalhar percebeu que, com o ordenado de merda que o call-center lhe pagava, tampouco ela ganharia para cobrir os pés, por isso estudou, foi rata de biblioteca e licenciou-se num curso que lhe permitisse ao menos cobrir os pés. Era a Engenheira Renata, a Feia como o demónio e demais epítetos que nos coibimos de repetir, não para lhe poupar os sentimentos (queremos lá saber, às feias não se poupam sentimentos, não queremos que se reproduzam e ponto final, queremos que se matem com presteza e deixem de emporcalhar a terra com feiosidade, que tenham vergonha e culpa e se acabem na banheira cortando os pulsos - com água quente, com água quente, criaturas! O sangue flui como um rio sem barragens -, que escolham a árvore mais alta e a ornamentem com o seu corpo balouçante na ponta da corda - olha, o Natal chegou mais cedo! -, se joguem à frente da carruagem do Metro, estoirem os miolos, ingiram raticida, mas em doses fatais), mas porque são tantos tantos tantos que não temos cabeça para lembrarmos todos.

    O mais esquisito, porém, é não haver no rosto uma marca, um defeito, uma cicatriz que o identifique como feio: possuía um rosto pálido, deslavado, simétrico, os cabelos eram escorridos, loiros e esmaecidos, fraquinhos, quebradiços, colavam-se à cara, oleosos; o rosto de qualquer outra fêmea, normalíssimo, se bem que para o desinteressante, o rosto que não faz nenhum macho virar o seu para o apreciar, e ademais ornava-o óculos com lentes de fundo de garrafa que lhe aumentava a dimensão dos olhos fazendo-os parecer duas azeitonas pretas gigantes.

    Tinha os lábios finos e um nariz nem grande nem pequeno, e as orelhas de tamanho normalíssimo. Realmente era um mistério como é que a cara podia provocar tamanho repúdio nas tripas das pessoas. Quem a conhecia sabia-a decente, honesta, intrinsecamente cândida e boa, não um anjo à face da terra, convenhamos, mas alguém simpático, que por norma evita magoar terceiros.

    E depois a voz: bonita, suave e fina, mas fina com uma capa de rouquidão a cobri-la, uma roupagem de leve seda nessa finura. Era uma voz quase nua, dir-se-ia, que acicatava a luxúria dos homens quando a ouviam ao telefone. Rendeu-lhe contratos, projectos sem fim, a voz sedutora seduzindo sem esforço nem nas palavras ou entoação, muitas vezes até quando era ríspida, cínica e irónica, quando o fel lhe ressumava das palavras (avisámos que não era anjo nenhum, mas tão humana quanto qualquer outra pessoa). A voz deu-lhe e dá-lhe o sustento. Não marcava encontros com clientes, faziam tudo por telefone, e-mail e fax. Arranjava clientela por referências. Depois do primeiro cliente vieram em catadupa.

    - Tem cuidado, ela é feia como um vómito, mas competentíssima, e a voz é de dar tusa, depois de a ouvires até fodias a tua avó.

    - Pela fotografia parece normal, se bem que desinteressante - dizia o prevenido.

    - Pela fotografia não há reacção, mas espera vê-la em pessoa. Não te aconselho: ainda ficas de cama com esse teu fígado doente. Trata tudo por telefone. É careira, mas vale cada cêntimo.

    - Palavra de honra...? - dizia o amigo espantado.

    - Ó pá, sou teu amigo. Se te quisesse lixar dizia-te para marcares um encontro, mas não, porra, depois nunca mais jogas ao bilhar comigo.

    E riem-se juntos.

    Era um grande mistério científico (não mentimos: incontáveis prémios nobéis da medicina, física e biologia estudaram o caso raro; foi picada, explorada, ferida, rasgada por sondas, agulhas, bisturis de autênticos exércitos de médicos, apoiados não só pela indústria farmacêutica, mas também pela militar, interessada nas infinitas possibilidades bélicas, batalhas ganhas em segundos se ao menos conseguissem sintetizar aquilo - as moléculas, a fonte).

    Aos dezoito anos recusou continuar a submeter-se à tortura semanal, antes estava esperançada numa cura com que os médicos lhe acenavam para a convencerem a deixar-se explorar; aos dezoito anos, contudo, o rapaz de quem gostava foi de tal modo cruel que Renata perdeu para sempre a esperança de ser amada de volta - verdadeiramente - ou até ser amada de todo. Vendo-a feia como o demo, sentindo-se burlado, atraído à má-fé, Joaquim, o namorado, cobriu-a com uma chuva de insultos, as palavras eram pedras de granizo azuis a ferver de fogo, o desprezo uma torrente de relâmpagos a estripar o céu como um pescador sádico a retirar as tripas ao salmão vivo.

    E aqui nos encontramos hoje, na faculdade onde fez o curso. Um antigo colega marcou encontro com ela, insistiu e ela anuiu, derrotada pelas insistências (telefonou vinte vezes), embora soubesse que não viria com arroubos de paixão e não era trabalho com certeza. Era algo urgente que não quis precisar. Para despachá-lo concordou no encontro.

    Raquel, a Hedionda

    Não brincamos com casos sérios: somos honestos e sinceros nas nossas descrições, primamos pela honestidade!

    Raquel, a Hedionda, possui a fealdade capaz de fazer irromper antigos e vetustos vulcões adormecidos, conjectura-se que o de Pompeia e Herculano irrompeu à passagem de uma sua antepassada, transitando ao largo num navio, a caminho quiçá do inferno, para onde a jogariam e selariam em seguida a entrada. Raquel tem o focinho que causa secas, devastações climatéricas, tornados e furacões, que enfurece as águas neptunianas e racha navios, paquetes inteiros cheios de gente, lembrem-se do Titanic!

    Há também a grande possibilidade de terramotos devastadores como o de 1755 tornarem a ocorrer caso ela transite livremente na calçada lisboeta - irritaria a falha geológica do Vale Inferior do Tejo e ia tudo para o galheto. A ruína seria tal que, incapazes de nos levantar, sofreríamos a temida invasão espanhola, no dia seguinte estaríamos a falar castelhano.

    É tamanha a sua feiura.

    É desta grandiosidade eloquente a fealdade da tromba da dita cuja.

    Anos seguidos, os pais, piedosos, tementes do mal que adviria se caminhasse por aí em liberdade, mas amantes da sua filha única, arranjaram forma de entretê-la e guardá-la em casa: não foi à escola (coitadinhas das crianças, seria mortandade igual à de Herodes antes de Jesus nascer), estudou em casa; fez doutoramentos em Psicologia e História através da internet, a sua única ligação ao mundo exterior. Os vizinhos abençoam a sua bondade intrínseca, o cuidado pelo bem-estar alheio, não obstante a imbecilidade de nascença.

    -‘Tadinha, nasceu assim, o que é que se há-de fazer.

    -É boa rapariguinha. Tem um coração – e o interlocutor barrigudo e reformado, de boné, afastava os braços e abria as mãos como se estivesse a abraçar um pipo de vinho.

    Na realidade Raquel não é burra nenhuma. Tem um profundo conhecimento da sua condição, das que lhe antecederam, estudou-as com afinco. É a autora incógnita das obras As Feias da História e As Feias na História. Conhece as implicações sociais, económicas e políticas da existência tanto das Feias como das Horrendas, subcategoria em que a arrumaram. Tem consciência do seu poder destrutivo. As obras foram apenas um isco, um enigma. Raquel joga o perigoso jogo do rato e do gato. Ela é o gato. A humanidade são os ratos, as ratazanas. De momento ganhava. Sentia-se satisfeita por ninguém perceber as intenções. Ela é mais esperta e atrevem-se a condená-la ao ostracismo. Com os livros deu-lhes a última oportunidade para despertarem e defenderem-se. Mas são burros. Merecem ser destruídos.

    Raquel espera o momento certo para aniquilar o mundo e causar a maior destruição possível. Tem de esperar mais um pouco, alguns anos (após a publicação dos livros que não eram mais do que um desafio: apanhem-me se puderem imbecis) até a sua feiura desabrochar e ter a capacidade para causar destruição irreversível.

    Em ocasiões a paciência esgotava-se. Raquel tinha ataques de maldade. Ficava farta de esperar. Enclausurada na cave os ataques começavam por uma pontinha de raiva que subia ao ódio e se transformava no fel do Monstro dos Olhos Escarlate, um ódio intenso, concentrado, a tudo quanto vivesse e respirasse.

    Conseguia readquirir o controlo, dissimular o ataque, que passava despercebido aos pais. Mas numa ocasião perdeu o controlo, quis sair de casa e espalhar a devastação, usar a feiura como morteiro, mil morteiros escolhendo alvos aleatórios, qual bomba nuclear.

    Os pais - aflitos – fortaleceram os mecanismos de fecho da cave, prenderam-na à cadeira com correias de couro, parte-lhes o peito verem-na assim, mas não há outra opção. O seu ódio não amaina, a não ser em breves lampejos onde julgam identificar a antiga criatura que, apesar de feia, era boa (pensam, iludidos). Tais lampejos não são duradouros. Não querem matá-la, mas se não encontrarem maneira de a distrair, transportá-la à antiga condição, não terão outro remédio (a comissão de moradores do bairro envolveu-se no caso e a decisão foi conjunta, melhor: imposta aos pais).

    Sentimos pena deles porque não sabem a cobra que criaram. As leis de infanticídio em Portugal foram criadas especificamente para tais casos: deviam tê-la sufocado à nascença, como lhe imploraram médicos e enfermeiros no hospital da Estefânia. Eles atestariam a poderosa fealdade da criatura e o caso passava em transitado com uma multa modesta. Mas não, decidiram amá-la, criá-la e depois foi o que se viu, ficámos à beira de perder a vida, com a grave possibilidade de se ter estado a assistir aos últimos dias da espécie humana. Porque o que Raquel planeou foi não mais do que a total aniquilação do Homem.

    Mas a isso voltaremos depois.

    Antes de nos centrarmos no encontro de Afonso e Renata, voltemos atrás.

    Tinha ela dezassete anos quando arranjou um emprego merdoso num call-center e percebeu as vicissitudes da mãe em matéria de sapatos - ficavam caros e estar a pagá-los do seu bolso custava. Custava tanto que ao fim de um mês não tinha dinheiro para comprar o passe do Metro. Ficou escassos meses no call-center apesar do facto de ter informado a supervisora ao fim de um mês que ia partir. Esta abriu os olhos em pânico: era a melhor vendedora, não podia partir. Em segredo combinaram pagar-lhe mais, teve um aumento de sessenta por cento, mas mesmo assim não chegava; a enorme rotatividade no call-center significava que havia sempre um corrupio de gente nova a vomitar-lhe o calçado. Ao fim de três meses e meio saiu e concentrou-se nos estudos.

    Fez um brilharete. Antes de terminar o curso já tinha clientes. Nada a demoveu, nem os constantes vómitos, o desprezo dos outros, a pena dos que fazem da solidariedade (palavra abominável, sejamos sinceros) a sua bandeira e lhe faziam festinhas, falavam-lhe como se tivesse cinco anos e fosse débil mental. Renata aguentou, aguentou, aguentou, mas em ocasiões passava-se.

    Certa vez passou-se no call-center com um cliente mal-educado, grunhos de merda, os portugueses nem fazem ideia de que estão a ser gravados, a malcriadice ficará para a história. Com um sorriso na voz dourada com o leve tom rouco, subtil, a acentuar-lhe a cor, a que recorria quando queria lixar o juízo aos homens, mandou-o à merda, foder a mãezinha, não estava a ser paga dois euros e setenta e um cêntimos à hora para aturar malcriações de ninguém, seu grande filho da puta, espero que morras de lepra num lento agoniar de cão com sarna, muito obrigada pelo tempo que nos dispensou, morre e tenha um bom natal, boa noooite!

    Não vamos descrever o ambiente, apenas contar que houve um silêncio de morte no call-center e depois uma enorme salva de palmas dos colegas. Os supervisores, esses, iam do verde ao pálido. Não foi despedida - era a intenção de Renata, queria sair com estrondo, às vezes dava-lhe para aquilo -, ao invés subiram-lhe o salário.

    Perdeu as estribeiras noutra ocasião memorável. Certa colega dois anos avançada, mas que deixara uma cadeira para trás e a fazia no segundo ano com Renata, deu um suspiro audível de pena e teve a audácia de lhe fazer uma festa ao cabelo (era das que se voluntariam em fins-de-semana alternados para ajudar os pobrezinhos). Renata ligou o automático e foi em frente, nem olhou para os lados, levantou-se da secretária onde estudava e avançou de punhos cerrados, grande cabra, disse (e quase temos vergonha de repetir as palavras exactas, mas há que fazê-lo a bem da narrativa), vai fazer festas à santa da tua mãe, é alcoólica, não é? Ó, que peniiiinha eu tenho de ti. Deve ser horrível

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