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O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga - O Rei do Baião
O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga - O Rei do Baião
O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga - O Rei do Baião
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O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga - O Rei do Baião

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Em O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga - O Rei do Baião, escrito por Sinval Sá, percebe-se nitidamente o vozeirão de Luiz Gonzaga, no ritmo do xote, ao toque da sanfona. Da infância de menino pobre em Exu, passando pela fuga para o Rio de Janeiro, o quartel, a vida de artista de rua, a participação em programas de calouro, e o encontro com os parceiros de toda vida, Humberto Teixeira e Zé Dantas, até alcançar a fama, o livro dá voz àquele que considerava sua missão divulgar a autêntica música do Sertão nordestino.
LanguagePortuguês
PublisherCepe editora
Release dateSep 1, 2015
ISBN9788578583125
O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga - O Rei do Baião

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    O Sanfoneiro do Riacho da Brígida - Sinval Sá

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    Governo do Estado de Pernambuco

    Governador do Estado: Paulo Henrique Saraiva Câmara

    Vice-Governador do Estado: Raul Jean Louis Henry Júnior

    Secretário da Casa Civil: Antonio Carlos dos Santos Figueira

    Companhia Editora de Pernambuco

    Presidente: Ricardo Leitão

    Diretor de Produção e Edição: Ricardo Melo

    Diretor Administrativo e Financeiro: Bráulio Mendonça Meneses

    Conselho Editorial:

    Everardo Norões (Presidente)

    Lourival Holanda

    Nelly Medeiros de Carvalho

    Pedro Américo de Farias

    Produção Editorial: Marco Polo Guimarães

    Direção de Arte: Luiz Arrais

    Revisão: Manoel Larré e Mariza Pontes

    Coordenação de projetos digitais: Rodolfo Galvão

    Designer digital: China Filho

    © 2015 Sinval Sá

    Companhia Editora de Pernambuco

    Direitos reservados à

    Companhia Editora de Pernambuco – Cepe

    Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro

    CEP 50100-140 – Recife – PE

    Fone: 81 3183.2700

    G642s Sá, Sinval, 1922-

    O sanfoneiro do Riacho da Brígida : vida e andanças de

    Luiz Gonzaga – O Rei do Baião / Sinval Sá ; apresentação

    Danielle Romani. – 7 ed. – Recife : Cepe, 2015.

    Inclui referências.

    1. Gonzaga, Luiz, 1912-1989 – Biografia. 2. Sanfoneiros

    – Pernambuco – Biografia. 3. Música Popular Brasileira.

    I. Romani, Danielle. II. Título.

    ISBN: 978-85-7858-312-5

    Prefácio

    I

    O livro O Sanfoneiro do Riacho da Brígida, escrito por Sinval Sá, não é propriamente uma biografia. É uma grande entrevista, na qual se percebe, com nitidez, o vozeirão de Luiz Gonzaga.

    Para entender como foi realizada, fomos ao encontro desse paraibano de 90 anos, que há décadas mora em Brasília. Na conversa de horas, na sala de sua casa, o homem discreto e reservado revelou-se um artista sensível, que escreve poemas para a mulher Rizete – com quem é casado há 64 anos – e tem na família, na literatura e no mestre Lua, suas grandes paixões.

    Este livro é um exemplo de como as emoções se fazem presente na vida do escritor. Começou a ser idealizado numa terça-feira de Carnaval do ano de 1955, época em que Sinval, ainda oficial da Aeronáutica, se encontrava em Taubaté, São Paulo. Uma data lembrada com minúcias, pois é capaz de citar até mesmo o horário em que lhe veio a inspiração para escrever a biografia.

    "Por volta de 10 horas da manhã, sozinho, num banco de praça, escutei os seguintes versos, vindos de um alto-falante, na voz de Luiz Gonzaga: ‘Já faz três noites que pro norte relampeia...’ (estrofe inicial do clássico Asa Branca). Desmoronei: me veio uma emoção enorme e me esvaí em lágrimas. Naquela hora eu pensei: se estou sentindo isso, imagine o que não sentem os nordestinos que vêm para o Sul e Sudeste em cima de um pau-de-arara, quando escutam essa música. Naquele momento jurei: um dia ainda vou escrever sobre a vida desse artista".

    A promessa se concretizaria anos depois, quando Sinval, ao lado de Luiz Gonzaga – num período em que o músico vivia uma fase de ostracismo –, anotou à mão os depoimentos deste livro, que traz a marca de uma certa melancolia que rondava a vida do cantor. O leitor mais exigente talvez perceba que o trabalho carece de detalhes. Mas é precioso como depoimento, porque revela o sentimento e as impressões do autor de Asa Branca, que completaria, em 2012, um século de vida.

    II

    A sintonia entre o entrevistado e o escritor, certamente, se deu pela semelhança entre suas vidas e origens. Sinval, assim como Gonzaga, é um sertanejo convicto, profundo conhecedor da cultura nordestina e amante dos ritmos regionais.

    Filho de um farmacêutico pernambucano, nasceu em Conceição, no Sertão da Paraíba, meses depois de a família inaugurar uma farmácia na cidade. Fui gerado em Pernambuco, sou paraibano quase por acaso, costuma brincar. Aos 16 anos foi morar em Fortaleza. Estudioso, aluno dedicado, era o primeiro da turma, e teria seguido apenas a carreira de Direito e Letras – nas quais se diplomou – se não houvesse eclodido a Segunda Guerra Mundial, que o obrigou a alistar-se na Aeronáutica.

    A carreira militar o levou – assim como Gonzaga – a viajar e morar em vários Estados, a exemplo do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Somente em 1955 largaria a farda e passaria a exercer atividades civis, na área do direito e da educação, normalmente como funcionário público.

    Foi em 1960, novamente instalado em Fortaleza, que Sinval soube pela mulher, Rizete, que Luiz Gonzaga se encontrava na cidade. Ela o atiçou para que ele fosse atrás do artista, incentivando-o:

    Olha, Luiz Gonzaga está aqui. Você não tem vontade de escrever sobre a vida dele, porque não vai procurá-lo no hotel?.

    O escritor, depois de tomar coragem, recorda que pegou o catálogo telefônico, discou o número do melhor hotel de Fortaleza e, por sorte, descobriu que o músico se encontrava lá.

    – Luiz Gonzaga está?

    – Está, respondeu o recepcionista.

    – Posso falar com ele?, disse Sinval.

    Para sua surpresa, lhe repassaram a ligação.

    Marcou um encontro no hotel, levou-lhe um livro que havia publicado (A fuga, premiado pela Universidade do Ceará), apresentou-se como escritor e contou a Gonzagão que decidira escrever a sua biografia. Antes de ouvir um não, apressou-se em informar. Não quero dinheiro algum do senhor. Dinheiro vou ganhar depois, quando o livro estiver pronto.

    O velho Lua, segundo Sinval, entusiasmou-se, especialmente porque o serviço seria de graça, e lhe disse:

    – Gostei de você. Parece sério, direito. Foi o primeiro a me falar em escrever sobre minha vida sem cobrar nada.

    Combinaram um encontro, em 1961, em Exu. Na época marcada, rodou centenas de quilômetros para entrevistar o mestre, que não deu as caras. Desanimado, voltou para Fortaleza, mas não desistiu.

    No mesmo ano, por ocasião de um problema de saúde de um filho, teve que viajar para o Rio. Descobriu, novamente, o telefone de Luiz Gonzaga, que lhe atendeu e concordou:

    – Venha para minha casa, rapaz!

    Durante 40 dias, ia diariamente à praia do Dendê, na Ilha do Governador, onde o músico residia. Nos dois anos seguintes, se dirigiu à praia do Cocotá, também na Ilha, para onde Luiz se mudara. Nesses encontros, conta Sinval, conversavam sobre tudo: a infância, o Exército, as músicas, as alegrias, o sucesso, as mágoas e sobre o amor, principalmente sobre Helena, a primeira mulher, com quem Luiz ainda vivia. O tempo de convivência e a fase de baixa popularidade fizeram com que o velho Lua lhe abrisse escancaradamente o coração.

    O artista, relatou-me o biógrafo, era alegre, animado, mas estava convencido que a sua carreira havia acabado. Contava os dias para se aposentar. Era um período em que ele tocava nos teatrinhos de interior, nas rádios, uma situação bem diferente da badalação que tivera nas décadas passadas. A gente ficava na praia, tomando banho, conversando. Depois desse período, Sinval voltou para Fortaleza e começou a passar a limpo o material. Ao todo, foram 10 cadernos com anotações feitas a mão.

    Divertindo-se com as lembranças do episódio, Sinval contou que caprichara na linguagem rebuscada para relatar a história de Gonzaga. Tinha decidido romancear a vida do menino que se transformara num grande artista da MPB. Mandou o pacote datilografado para o Rio de Janeiro e, quando menos esperava, recebeu uma resposta desaforada. Não gostei, tá uma porcaria, não foi isso que eu contei para o senhor!.

    Foi quando decidiu mudar tudo. E usar as palavras do próprio Gonzagão. Por isso o livro, escrito na primeira pessoa, soa tão natural. Dividido em quatro partes, é uma narrativa cronológica. Vai das origens até 1966, quando Luiz – ao contrário do que esperava – já recuperara parte do prestígio.

    Na abertura, Infância, estão registrados a chegada da família a Exu, o nascimento do menino matuto do Riacho da Brígida, o relacionamento com o pai Januário e a mãe Santana, a vocação musical, que surgiu ainda criança; os primeiros trabalhos, o ambiente sertanejo e as amizades; e finalmente a fuga de casa para Fortaleza, depois de levar uma surra da mãe.

    Na segunda parte, batizada de O 122 bico de aço, seu número de recruta, Gonzagão conta as aventuras como militar, o orgulho de vestir a farda e desfilar na rua para as moças, a viagem para o Sudeste, as desavenças com oficiais e superiores e a saída do Exército.

    A Escalada, terceira parte, registra exatamente o inicio da carreira nas rádios cariocas, mostra sua luta para se firmar como cantor, e não apenas instrumentista. Um diretor da RCA chegou a dizer que ele era bem ruinzinho cantando. A primeira música gravada como vocalista, a mazurca Dança Mariquinha (Luiz Gonzaga/Miguel Lima), data de 1945. Finalmente, o encontro com Humberto Teixeira, do qual resultou a gravação de Asa Branca, que o levaria a ser reconhecido como o rei do baião. O último capítulo, Estórias e Fatos, se centra mais em casos e episódios pitorescos.

    A primeira edição do livro foi lançada em 1966, em plena Praça do Ferreira, em Fortaleza, e se esgotou rapidamente. Luiz Gonzaga foi um marco na história, na música brasileira. Não sou crítico, nem entendo da área, o que fiz foi uma espécie de reportagem. Não passei de um porta-voz para contar a vida dele, com suas palavras. E o que ele não sabia falar, eu apenas dei um jeito e uma forma. O Sanfoneiro do Riacho da Brígida está em sua nona edição.

    Além da entrevista-biografia, Sinval tem outros sete livros publicados, entre eles A menina e o arco íris e Crônica epopéica e picaresca do jogo de buraco (Thesaurus). O romance A longa espera (Ideia), lançado em 2009, é prova de sua intensa atividade intelectual. Servidor aposentado do Senado Federal desde 1990, não sente saudades do batente diário, ocupa todo o tempo lendo e escrevendo novos trabalhos.

    III

    O músico nostálgico, que Sinval entrevistara nos primeiros anos da década de 1960, foi encostado, temporariamente, devido ao surgimento de novos ritmos, como a Bossa Nova, o rock’n’roll dos Beatles e Elvis Presley e a Jovem Guarda. Nesse contexto, nem o público nem a indústria fonográfica nem a nascente televisão estavam interessados em divulgar os grupos regionais, principalmente os formados por uma zabumba, um triângulo e uma sanfona.

    Quem ressuscitou o baião, e consequentemente seu rei, foi o produtor Carlos Imperial, o mesmo que descobriu Roberto Carlos, ao demonstrar que a música dos Beatles tinha nítida semelhança com a música nordestina. Foi Imperial, inclusive, quem se encarregou de espalhar que a banda inglesa iria gravar Asa Branca, de Luiz Gonzaga.

    A partir daí – um boato jogado com a intenção de promover um marketing em torno do pernambucano – o Brasil voltou a despertar para a figura de Luiz Gonzaga. E a seu favor contou, também, com o apoio dos integrantes da Tropicália, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia, entre outros. A gravadora RCA regravou seus primeiros discos. Os novos intérpretes produziram versões repaginadas de sucessos como Asa Branca, cantada em 1971 por Caetano. Gonzagão, naquele mesmo ano, gravou O canto jovem de Luiz Gonzaga, no qual interpretava Capinam, Gil, Jobim, Vinícius, Jocafi, Vandré e Edu Lobo.

    A volta do cantor aos palcos se deu em 1972. Desde então, foram inúmeros os shows, discos, regravações e viagens, quando também assumiu publicamente Gonzaguinha, chegando a gravar discos e se apresentar em parceria com o filho adotivo.

    Em 1988, um ano antes de morrer, foi lançada uma caixa de luxo intitulada 50 anos de chão, contendo cinco LPs. Esse foi também o ano em que Gonzaga separou-se definitivamente de Helena e assumiu a segunda mulher, Edelzuíta Rabelo. Em 1989, foi internado por 40 dias e faleceu no dia 2 de agosto.

    No mesmo ano, na data de seu aniversário, Gonzaguinha, acompanhado por Elba Ramalho, Fagner e Dominguinhos, realizaram um show em sua homenagem. Na data, também foi inaugurado, em Exu, sua cidade natal, o Museu do Gonzagão. Vinte e três anos após sua morte, a leitura deste livro é uma boa oportunidade de conhecer um pouco mais da vida desse artista atemporal.

    Danielle Romani

    Bibliografia consultada

    Honorato, Manuel da Costa. Dicionário Topográfico, Estatístico e Histórico da Província de Pernambuco. Coleção Pernambucana, 1ª fase, 2ª ed. Recife: 1976.

    Andrade, Manuel Correia de. Geografia de Pernambuco. Recife: 1974.

    Mello, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol – o banditismo no Nordeste do Brasil. Coleção Pernambucana, 1985; 2ª fase.

    PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais Pernambucanos. Coleção Pernambucana, 2ª fase V. 10, 2ª ed., pp. 265-272.

    Enciclopédia da Música Brasileira – erudita, folclórica, popular. Art Editora Ltda, São Paulo: 1977.

    Nova História da Música Popular Brasileira – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Abril Cultural, 1977.

    Discos e recortes de jornais e revistas, coleção do autor.

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    UM TOCADOR DE OITO BAIXOS

    Dos Quidutes contam coisas engraçadas. Um deles, conhecido como coronel Quidute da Baixa Verde, Serra do Triunfo, era metido a valentão, teve seus dias de lutas, de afinidades com o cangaço, como todos os coronéis que viveram naqueles tempos.

    Januário vem dos Quidutes e dos Anselmos. De Januário...

    De Januário venho eu.

    Januário, conhecido tocador de oito baixos, subiu, desgarrado que vivia e em pleno arranco da mocidade, a encosta da Serra do Araripe com destinação à Chapada.

    Mas foi ficando por ali, pela Fazenda Caiçara, quase no sopé da Serra, com seu irmão Pedro Anselmo. A fazenda pertencia ao Barão de Exu, dono daquilo tudo, da vasta área que se estendia até depois da serra.

    Não adiantava subir. Era ficar por ali, à sombra do homem forte, que gostava de cabras decididos. Ali começava a correr o Brígida, que ia desembocar no São Francisco, lavando terras do Exu, de Granito, Leopoldina e Cabrobó.

    Por aquele tempo, eram comuns as questões de terra. Os latifúndios cobriam enormes áreas; mas brigava-se por uma lombada, um lajedo, uma curva de rio, com um capricho ferrenho que podia levar qualquer fortuna ao descalabro. Era questão de honra ganhar uma demanda. E quando a Justiça contemporizava, o que era usual ante a insegurança dos magistrados, a faca-peixeira e o bacamarte criavam jurisprudência, a bala ditava doutrina nova. E a posse continuada, garantida pelas armas, firmava o domínio. Se a política mudava, adeus direito, domínio de vinte ou trinta anos. Media-se a nobreza pelo número de cabras em armas, e o barão não os tinha em pequena quantidade. Por isso, mantinha intatos seus vastos domínios.

    Januário foi ficando por ali, ele que tinha duas habilidades: pegava no bacamarte e tocava sanfona, para divertir a cabroeira, nos dias de sábado e domingo.

    Na realidade, o barão quase não aparecia naquilo tudo. Era o coronel Ancilon quem dava as ordens, quem mandava emboscar, matar, fazer certos serviços em cabras que lhe caíam no desagrado. Fazia mais: casava os moradores, sugeria reuniões, apadrinhava os meninos que iam nascendo.

    Quase todos os moleques eram seus afilhados.

    SANTANA

    Santana era uma cabocla bonita, nos seus quinze anos de menina-moça. Deixava muito olhar na esteira do seu caminho, sedentos daqueles olhos bonitos, daquele gingado de marrã bravia.

    Por isso, Efigênia, que todos conheciam por Fugênia, a trazia de olho, vigilante aos pretendentes, espantando os mais afoitos, animando os de melhores qualidades. E Januário caíra nas suas graças. Gostava do jeito dele, dos seus silêncios, das suas falas poucas, da sua seriedade. Gostava também das músicas que ele tocava, que mexiam lá por dentro da gente, dando saudade de terras desconhecidas, nostalgias de mundos distantes, dos dias perdidos da infância. Enternecia-se Fugênia com a tristeza do Januário nos seus toques. E decidiu que ele devia casar com Santana.

    E o casamento foi feito naquele setembro de 1909, na Igreja do Exu, sem muito arranjo, sem muita arrumação. E não houve samba, também, pois o noivo era o único tocador dos forrós naquelas redondezas e não iam castigá-lo no dia do seu casório.

    Lá se foi Januário para a casucha que construíra com os amigos, com sua morena famosa, de olhos estranhamente verdes, que endoidavam os cabras. Januário tinha pressa. Não ia perder tempo depois dos sacramentos. A marrã estava ali para ser domada.

    "Fez cum ela o sanfoneiro

    Um casamento feliz

    E dos nove qui nascêro

    Um desses nove é Luiz".

    Muitos anos depois, cantaria assim um poeta-vaqueiro, recordando aquela que endoidara muita gente e que foi entregue de mão beijada ao sanfoneiro Januário.

    CERTA MADRUGADA

    Fui o segundo dos nove, o primeiro sendo Joca. Depois, em anos sucessivos ou espaçados, foram chegando Geni (Efigênia), Severino, José, Raimunda (Muniz), Francisca, Socorro e Aloísio.

    Não perdiam tempo Januário e Santana. Havia aquele friozinho de pé de serra e os meninos foram chegando.

    Naquele 13 de dezembro, madrugada braba, os galos sem ainda terem amiudado, Santana mexeu na rede de Fugênia:

    – Mãe!

    – Que é, menina, tá sentindo alguma coisa?

    – Tô, pode mandar chamar mãe Januária...

    Fugênia pigarreou, raspou o chão com a mão procurando o cachimbo, levantou-se e foi acordar Januário.

    Januário sonhava. Acordou com a voz da sogra:

    – Vai ver Januária de Jacó, que Santana tá com a dô...

    Januário esfregou os olhos, ainda meio tonto, procurando se acostumar com a escuridão que se seguiu quando a sogra afastou-se. Atentou nos gemidos da mulher, espaçados lamentos que em certos instantes se transformavam em gritos. É, pensou, tenho que ir correndo... Da outra vez, quando teve o Joca, quase morria...

    Mergulhou na madrugada em que a estrela d’alva começava a brilhar, iluminando o terreiro. Um ventinho rasteiro vinha das bandas do rio. Januário ganhou a vereda, braços cruzados, por causa do frio. Um bacurau cantou ao longe. Januário estremeceu, parou, olhou o tempo. Uma zelação riscou o céu. O homem parou, benzeu-se e ficou à escuta. Sabia o mar distante, não de que lado, mas zelação cai sempre no mar. E o barulho devia ser ouvido. Mas não veio nada. Balbuciou, assim mesmo, a oração que lhe haviam ensinado:

    "Deus te salve, zelação,

    Deus te leve para o mar

    Pra terra não se acabar".¹

    O risco persistiu alguns minutos no céu. Januário continuava escutando. Pela primeira vez, duvidou de uma crença que recebera dos antepassados. Zelação não cai no mar. E aduziu, sentencioso, um tanto abalado: Se caísse, a gente ouvia o estrondo.

    Depois, lhe veio outro pensamento mais pretensioso: Bom sinal pro menino (tinha de ser um menino) que via chegar. Não sabia direito o que pensar. Mas tinha certeza de ser coisa boa, pois era uma estrela de luz. E deveria chamar-se Luiz, nome que lembraria aquela zelação a riscar o céu e a santa daquele dia.

    Apressou o passo. Parou indeciso na porta de siá Januária. Finalmente resolveu bater, pois a mulher bem podia estar sofrendo e gritando, esperando a coragem e o alívio que só siá Januária sabia dar.

    Esperou um momento. Bateu novamente. Uma voz de dentro disse que já vinha. Sabia do que se tratava, Santana estando no tempo.

    Januário esperou.

    Logo, em silêncio, refazia o caminho para casa, acompanhando siá Januária, que rezava estranhas orações num batido de boca rápido e chiado.

    Vieram calados, pois o homem não queria perturbar aquelas rezas que preparavam as coisas lá por cima para o parto desembaraçado.

    1 L. Câmara Cascudo registra em seu Dicionário.

    LASCOU O CANO

    A voz de mãe Januária vem da camarinha:

    – Coragem, minha filha, aproveita a dor.

    – Ahn... ahn... Ui!

    – Tenha calma... Vai ser um homem pra te ajudar... Fugênia! Reza a oração de São Raimundo, pra esse cristão vim ao mundo com paz e alegria... Cadê a medida da Senhora do Bom Parto? Tá amarrada

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