Direito e Contabilidade: Fundamentos do Direito Contábil
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Book preview
Direito e Contabilidade - Edison Carlos Fernandes
EQUIPE EDITORIAL
PRODUÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Fernandes, Edison Carlos
Direito e contabilidade: fundamentos do direito contábil / Edison Carlos Fernandes. – São Paulo: Trevisan Editora, 2015.
15 Mb; pdf
ISBN 978-85-99519-74-5
1. Contabilidade 2. Contabilidade – Leis e legislação – Brasil
3. Demonstrações contábeis 4. Demonstrações financeiras I. Título.
Índices para catálogo sistemático:
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© Trevisan Editora, 2015
Foto: Edison Carlos Fernandes
Mercado de Rialto – Veneza
Further along the Grand Canal stands the Rialto, the Wall Street of Pacioli’s age.[¹]
Apresentação
Existe um Direito contábil?[¹]
Se acompanharmos os doutrinadores modernos, para os quais o direito
pode ser definido como um conjunto de normas jurídicas (lex), o Direito contábil seria a sistematização dos dispositivos normativos que tratam das demonstrações financeiras. Nesse sentido, existem as normas efetivamente legais, tais como o Código Civil, a Lei das Sociedades por Ações e outras leis dispersas, e existem as normas infralegais, oriundas do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, quando aprovadas. As normas jurídico-contábeis, por assim dizer, regulamentam tanto a estrutura das demonstrações financeiras quanto os direitos e as obrigações existentes nas relações da pessoa jurídica com seus contratantes (stakeholders).
De outra parte, no caso de recorrermos aos pensadores clássicos, como Aristóteles e Tomás de Aquino, veremos que o direito
é entendido como relação (jus), na qual se deve buscar a justa distribuição dos benefícios e das responsabilidades entre as pessoas que se relacionam. Se essa concepção do direito
já conduz a conclusões interessantes na sua aplicação prática, no campo do Direito contábil essa seria a definição mais apropriada. Isso porque as demonstrações contábeis concentram as relações jurídicas (contratos) assumidas pela empresa, apresentando o seu patrimônio como o conjunto dessas relações.
Inicialmente, as demonstrações financeiras, de maneira geral, e o balanço patrimonial, de maneira particular, viabilizam o princípio da autonomia patrimonial, pelo qual o patrimônio dos sócios não se confunde com o patrimônio da sociedade (pessoa jurídica). A própria ficção da personalidade jurídica é fruto desse princípio uma vez que a constituição da pessoa jurídica, ao lado de propiciar a reunião de esforços para o desenvolvimento de determinada atividade econômica, limita a responsabilidade dos sócios, por um lado, e garante os credores por outro. As demonstrações financeiras, então, servem para identificar o patrimônio específico da pessoa jurídica (sociedade e empresa), estabelecendo os limites da responsabilidade dos empreendedores (sócios) e da garantia dos contratantes (credores, em sentido bastante amplo).
O patrimônio da pessoa jurídica retratado nas demonstrações financeiras é formado pelas diversas relações jurídicas que foram estabelecidas para o desenvolvimento da atividade econômica escolhida. Essas relações jurídicas podem ser entendidas como a reunião dos diferentes contratos celebrados pela empresa (pessoa jurídica), com os mais diversos agentes (stakeholders): contrato social (sócios), contrato de trabalho (empregados), contrato de financiamento (instituições financeiras), contrato de aquisição de bens e serviços (fornecedores) e de venda de bens e serviços (clientes), além das relações jurídicas com o Poder Público (órgãos reguladores e administração tributária). A reunião desses contratos – a somatória dos devedores da empresa (ativos) subtraída pela somatória dos credores da empresa (passivos) – resulta no seu patrimônio, na sua riqueza.
Por se tratar de relações jurídicas, a pessoa jurídica está potencialmente exposta a diversos conflitos, entre os quais: ao tradicional conflito de agência, entre o proprietário (sócio) e o administrador (executivo); ao segundo grau desse conflito de agência, entre o acionista controlador e os demais acionistas (de mercado e minoritários); em seguida, aos potenciais conflitos com empregados, fornecedores, clientes, financiadores e, inclusive, à comunidade, destacadamente na questão ambiental. As demonstrações financeiras, se não solucionam esses conflitos, servem como instrumento de mediação entre os contratantes, desde a prestação de contas até a apuração de condições de garantia (covenants[²]), passando pela revelação dos seus impactos.
Veja-se um exemplo baseado em fatos reais: determinada empresa, próspera no passado, tem tido dificuldades. Um representante comercial, contratado no regime da CLT com remuneração variável (comissão), ingressa com reclamação trabalhista pleiteando o recebimento de alto valor. O reconhecimento contábil dessa contingência (seja como provisão seja se a reclamação for julgada procedente) impacta o resultado do período gerando prejuízo. Por conta disso, o sócio ficará sem dividendo (primeiro efeito). Adicionalmente, o prejuízo reduz o patrimônio líquido, ocasionando a quebra de covenant (segundo efeito). Ao direito contábil cabe, então, cuidar da evidenciação e da regulamentação desses efeitos.
❚Sumário
Introdução
Capítulo 1
Fundamentos jurídicos da contabilidade
Importância das demonstrações contábeis
Segregação de responsabilidades (autonomia patrimonial da empresa)
Responsabilidade pela administração de bens de terceiros (conflito de agência)
Responsabilidade perante terceiros (teoria contratual da firma)
Regime de competência
Capítulo 2
Fundamentos constitucionais do Direito contábil
Referências constitucionais à empresa ou à pessoa jurídica
Princípios constitucionais contábeis
Capítulo 3
Fundamentos econômicos do Direito contábil
Atual marco regulatório
Importância do julgamento
Ajuste a valor presente
Redução ao valor recuperável de ativos (impairment)
Constituição de provisão
Primazia da substância sobre a forma
Capítulo 4
Conceito e fontes do Direito contábil
Aspectos gerais
Normas legais do Direito contábil
Normas infralegais de Direito contábil
Direito contábil e as normas tributárias
Relação do Direito contábil com outros ramos do Direito
Capítulo 5
Governança corporativa no contexto dos IFRS
Evolução do mercado de capitais
Adoção do padrão IFRS pela legislação brasileira
Julgamento e governança corporativa
Relação da substância com a forma
Conclusão
Referências
❚Introdução
Se o Direito contábil for entendido como o conjunto de normas jurídicas que disciplinam a escrituração contábil e a contabilidade, a utilização dessa expressão para designar um ramo específico de estudo do Direito não será novidade. A legislação brasileira, desde há muito, traz dispositivos acerca da obrigatoriedade da escrituração contábil e dos elementos e critérios para reconhecimento, mensuração e divulgação dos eventos econômicos na contabilidade. Mesmo assim, a designação Direito contábil ainda soa estranha no contexto jurídico, tanto teórico quanto prático, a ponto de operadores do Direito, desde advogados até juízes, terem resistência a falar a respeito de tais normas, que são jurídicas por sua natureza.
Em estudos jurídicos estrangeiros, especialmente na Europa continental, o Direito contábil tem merecido tratamento autônomo, embora seja batizado por nomes diversos, como: Direito do balanço (Portugal), Derecho mercantil contable (Espanha) e Droit comptable (França). É bem verdade que a doutrina brasileira, especialmente na área do Direito comercial e societário, também já se manifestou a respeito da regulamentação jurídica da contabilidade, seja por meio do estudo dos aspectos jurídicos do balanço (CARNEIRO, 1953), seja pela citação da expressão Direito contábil (SANTOS, 1996; ANDRADE FILHO, 2010), seja pelo tratamento do assunto em textos sobre finanças e demonstrações financeiras das companhias (PEDREIRA, 1989; FERNANDES, 2011). E não poderia ser diferente, uma vez que o atual Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406, de 2002) apresenta um capítulo específico para a disciplina da escrituração (Livro II – Do direito de empresa; Título IV – Dos institutos complementares; Capítulo IV – Da escrituração: artigos 1.179 a 1.195).
Apesar de as normas jurídicas específicas sobre contabilidade estarem inseridas no âmbito do Direito comercial (Código Civil e Lei n. 6.404, de 1976), a significativa influência da tributação sobre o registro contábil deslocou seu estudo mais específico para a doutrina do Direito tributário. Por esse motivo, a legislação tributária passou a disciplinar a elaboração das demonstrações contábeis das empresas, principalmente a partir do Decreto-lei n. 1.598, de 1977. Essa interferência teve o claro objetivo de privilegiar a administração tributária entre os usuários da contabilidade empresarial (stakeholders).
Paradoxalmente, foi o Decreto-lei n. 1.598, de 1977, que fortaleceu a posição da legislação tributária na regulamentação jurídica da contabilidade. Após a publicação da Lei n. 6.404, de 1976, cuja disciplina das demonstrações financeiras revolucionou a cultura contábil brasileira, a administração tributária, pretendendo dispor sobre a incidência do imposto sobre a renda no contexto da, então, nova contabilidade, editou o Decreto-lei n. 1.598, de 1977, cuja marca principal foi ter criado o Livro de Apuração do Lucro Real (Lalur), documento exclusivo da escrituração tributária.
Com a existência de um livro específico e exclusivo para fins tributários, em que os ajustes da contabilidade societária seriam lançados, em obediência à legislação do imposto sobre a renda, era de se esperar que a influência das normas tributárias na regulação contábil, se não terminasse, ao menos, diminuiria. Ocorre que a introdução de conceitos, como despesa indedutível, receita não tributável e compensação de prejuízo fiscal, não foi suficiente para libertar as normas contábeis da intromissão deste importante stakeholder: a administração tributária. Ao contrário, o Decreto-lei n. 1.598, de 1977, cuidou de um tema muito sensível às relações societárias, que é o ágio de investimento (artigo 20).
Durante praticamente 30 anos, a legislação tributária só fez aumentar sua extensão sobre a disciplina da contabilidade, a ponto de as empresas escriturarem duas contabilidades. Uma, para servir de base ao cumprimento das obrigações tributárias acessórias, como o preenchimento da Declaração de Informações econômico-fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ), a ser apresentada às autoridades fiscais, no caso de eventual procedimento de fiscalização. Outra, com fins gerenciais, isto é, para realizar as tomadas de decisão. Grande exemplo dessa dicotomia consta no registro de provisões: num primeiro momento, muitas empresas não constituíam provisão para devedores duvidosos (PDD) na contabilidade preparada para fins tributários, uma vez que, na origem, a sua contrapartida na despesa não era dedutível na apuração do imposto sobre a renda; posteriormente, observados determinados critérios de valor e tempo de inadimplência, o título não recebido poderia ser deduzido no cálculo desse imposto, mas apenas se devidamente constituída a provisão. Em razão dessa exigência da legislação tributária, a contabilidade destinada à apuração dos tributos e a contabilidade conduzida para tomadas de decisão eram diferentes: em determinada