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O melhor momento da vida: O karma
O melhor momento da vida: O karma
O melhor momento da vida: O karma
Ebook275 pages3 hours

O melhor momento da vida: O karma

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About this ebook

Um romance multidimensional narrado por vivos e extravivos, no interior do Brasil colonial e em meio ao caos urbano do Rio de Janeiro, uma mulher e um homem no olho do furacão da transição planetária e da compreensão de suas vidas, com uma tarefa incomum, a de irradiar o amor em meio ao ódio frontal familiar / social / espiritual. Em dois tempos distintos, vidas se reencontram e reescrevem sua trajetória. Afirmou-se com a arte a incumbência de conscientizar os leitores sobre a importância de conquistar um alto grau de liberdade e a consequente responsabilidade com o despertar coletivo das consciências humanas.
LanguagePortuguês
PublisherFolio Digital
Release dateJun 25, 2019
ISBN9786580235100
O melhor momento da vida: O karma

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    O melhor momento da vida - Mônica Ramalho Silveira

    Mônica Ramalho Silveira

    Andros Pamean

    O melhor momento da vida

    o karma

    Copyright © 2019 dos autores

    Copyright © 2019 desta edição, Letra e Imagem Editora.

    Todos os direitos reservados.

    A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    Grafia atualizada respeitando o novo

    Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

    Revisão: Vitor Ribeiro

    Capa e ilustrações: Gabi L. Tores

    Os textos de Gravatinha do capítulo Devaneios de um livre vivente são de autoria de Sérgio Ramalho Silveira. Optou-se por manter a grafia do português brasileiro da década de 1970.

    dados internacionais de catalogação na publicação (cip) de acordo com isbd

    S587m Silveira, Mônica Ramalho

    O melhor momento da vida – O karma / Mônica Ramalho Silveira, Andros Pamean. - Rio de Janeiro : Fólio Digital, 2019.

    208 p. : il. ; 15,5cm x 23cm.

    Inclui bibliografia e índice.

    isbn 978-65-80235-09-4

    1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Pamean, Andros. II. Título.

    CDD 869.89923

    2019-844 CDU 821.134.3(81)-31

    Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

    Índice para catálogo sistemático:

    Literatura brasileira : Romance 869.89923

    Literatura brasileira : Romance 821.134.3(81)-31

    Fólio Digital é um selo da editora Letra e Imagem

    Rua Senador Dantas, 117/1839

    cep: 20031-911 – Rio de Janeiro, rj

    tel (21) 2558-2326

    letraeimagem@letraeimagem.com.br

    www.letraeimagem.com.br

    Gratidão

    Agradeço primeiro à Fonte da Criação, que me legou Sabedoria, Amor e Vida divinos. Muito obrigado a meus pais e antepassados, raízes que viabilizaram minha vida. Especial gratidão a Raimunda Ramalho Silveira, que cedeu generosamente rico material para confecção desta obra. Muito obrigada a todos os inimigos, que nos fortaleceram e nos fizeram superar obstáculos. Gratidão imensa a todos que fizeram parte desta designação, consciente ou inconscientemente.

    mônica

    Rendo Gracas

    À minha Vó, que ao me dar quando criança uma Olivetti centenária, não sabia que a máquina podia alquimizar cinco Dimensões.

    Aos Paladinos da Apometria que estão comigo desde a grande ativação cósmica da cidade do Rio de Janeiro em 2001, e participam da consolidação dinâmica das linguagens científicas com as metamatemáticas espirituais.

    À minha Musa Aquariana. 

    andros

    Apresentacão

    Este livro, designado e elaborado no país abençoado pelo Cruzeiro do Sul, ajuda a responder três perguntas primordiais da Humanidade confinada na tridimensionalidade: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?

    Viemos da Luz. Somos Luz. Vamos para a Luz, mesmo aqueles que escolheram a Sombra eterna, porque ao chegarem ao fundo de um buraco negro vão se deparar novamente com a Luz. Posso afirmar que tal missão – a de cuidar dos dois personagens até o reencontro – foi tão desafiadora que me garantiu permissão para a Ascensão. Sobre outras questões de alta envergadura científica e espiritual, recomendo as seguintes leituras complementares a este romance multidimensional: As Chaves de Enoch, de J. J. Hurtak, O Livro de Urântia (online) e Manual Completo de Ascensão, de Joshua Stone.

    T. R.

    Sumário

    parte i. século xix

    1. A volta do fazendeiro

    2. O grande baile

    3. Prosa estranha de excêntrica visita

    4. Lua de mel

    5. Aurora sangrenta

    6. Luto

    parte ii. séculos xx e xxi

    1. Confabulações filosóficas de um Exu

    2. Antes dos portais se abrirem

    3. Os três Mayas

    4. Devaneios de um livre vivente

    5. Visões de JK

    6. O reencontro

    I.

    A volta do fazendeiro

    — Abrir frequência... Sintonizar... Seja bem-vindo, irmão. Você é um nível de consciência ou uma entidade separada? – inquiriu o doutrinador.

    — Eu sou um nível de consciência de uma vida passada como fazendeiro senhor de engenho. Eu compartilho da Graça com ele. – respondeu o nível do fazendeiro, através da voz do canalizador.

    Nesse momento o rosto do médium apômetra se transfigurou numa expressão de transe sonhador e todos os participantes da sessão ouviram sua voz suavemente pausada a narrar, como se lesse o que escrevera num diário:

    — Uma alquimia no ar se realizou naquela manhã de janeiro de 1850. As brumas marinhas tocaram o vento seco do Cerrado e trouxeram signos novos sob uma perspectiva elemental. Essa força avançou sobre o vale em direção à Chapada Diamantina.

    — Que força é esta? – perguntou o apômetra.

    — Minha vontade de chegar à casa. Recordo-me, tinha tonalidades proféticas. Um composto de aventuras ondeadas de chispantes luzes com propósito. Quatro meses na capital da Corte. Uma despedida numa praia de rio mística... nem sei que nome possui! Também, em igual esotera, o objetivo-sonho da minha viagem era a demanda de causas perdidas. Semi-inexistentes. Surreais como todas as paisagens crepusculares, irrepreensivelmente pintadas com mais de três dimensões, nas enseadas da capital. Parte da vitória também foi transpor os platôs consagrados aos Guias do Cruzeiro, que me ajudaram a localizar a alma mais encrespada da Chapada, Tuaruk, meu capitão do mato. A inimaginável persistência do vento em seguir nossa caravana de quatro escravos e três cavalos, a pendular os frutos e arbustos das encostas íngremes; com toda aquela euforia, um entusiasmo que violava os maus presságios da partida, conforme se traduzia nos toques de atabaque que vinham das acomodações dos escravos do nosso Engenho de cana-de-açúcar e alambique de aguardente.

    A Casa Grande nem ostentava edificação de senzala, nem tronco de açoites, nem qualquer instrumento de tortura oferecido pela paróquia da região. Próspera, rica e feliz, terra tupiniquim de um dourado roxo nada indiferente às estrelas, mas com uma fome insaciável de escravidão. Frederico era meu nome batismal e carregava junto ao corpo uma circular imperial na qualidade de Procurador da Corte, que oficializava o fim do tráfico de escravos no Brasil. Aquele papel representava a parte mais importante de uma preciosa carga de ouro, pratarias, sal, sementes, tecidos e especiarias, que o bugre Tuaruk, nosso guia pelas trilhas, desconhecia completamente. A intuição selvática e a voragem dos nativos da Chapada faziam-nos avançar para chegar avidamente, porque lhe parecia nunca chegar naquela vereda que se metamorfoseava para jagunços ladrões.

    Quando de renovo, a luz à frente fez tremeluzir os reflexos metálicos do rio na margem contrária, sentido nascente, sentido minha casa. Como se tivesse aspirado o aroma do perfume da minha mulher, do seu pão de bacon na hora do chá de capim-limão no ritual biblioteca-e-cachimbo. Ao sonhador os muros da imaginação, enquanto parava os cavalos à margem do rio para sorverem água, os cabelos longos de Tuaruk cintilavam ao lado da margem como pequenas Ondinas. Imiscuir-se da saudade-solidão, dos delírios do coração e lavar os pensamentos com água faz retomar a marcha final, enquanto decanto na atmosfera o olor da família. Os passos se apressam. Perde-se o bugre de vista.

    Os cheiros e sentidos se torturam em mil suposições bizarras, amalgamadas de terra e apreensão, enquanto Humbatz continuava ávido para galopar. Eu o montava sob a gritante nuvem de araras azuis mesclando-se ao Michelangelo céu daquela hora com destino fremente. Solarizado horizonte de uma fachada monumental de palmeiras, cortada por uma alameda de bosquetes de flores multicoloridas, inebriantes ao olhar, aromáticas ao imo da alma. No latejar do coração ainda galopante, o avistar das primeiras estalagens da fazenda. Os campos cultivados dourados de esperança. Em todo o percurso, o caminho estava juncado de flores de caliandra. Bem depressa se avistou a Casa Grande:

    — Paizinho! Paizinho chegou! Paizinho!

    Sem hesitante torpor, ela correu os degraus da varanda, pulou e encaixou suas pernas na minha cintura, que disseram às minhas mãos estarem tocando meu lar. Gritos de alegria, vivas e explosões com vidas formavam um clarão sem fim à medida que o quarto ornado de enorme dossel nos aromas que tanto me avivam, nos beijos que tanto me abrandam, até o sol que pela janela já ia sumir no horizonte na curva do rio, como espetáculo diário maravilhoso destas manhãs.

    Amor compartilhado que espreguiça ao som de outra gritaria comemorativa pela carga que chegava intacta com os homens probos, ilesos, ajudados por seus Xangôs, com todos esses esplendores no céu deslumbrante do baldaquim marmorizado de tênues veias róseas, de transformar minha empreitada numa linda paisagem interna.

    Fim da canalização.

    ♣♦♠♥

    A família paterna de Helena eram os Aragão e a minha tinha por sobrenome Mendes, ambas compostas por descendentes de portugueses, brancos oficiais militares que serviam à Força Imperial na Corte. Meu progenitor, convocado pelo imperador Dom Pedro I para reprimir o movimento separatista da Revolução Liberal de 1821, ocorrida em Salvador, realizou um belo trabalho na primeira capital do Brasil. Como prêmio pelos bons serviços, recebeu do imperador Pedro I uma vastíssima terra, habitada por tribos dos povos Xerente, Karajá, Apinajé e Krahô. Encantado pela riqueza e imensidão de sua nova propriedade, o capitão Mendes resolve lá se estabelecer com a família, alguns contratados brancos e muitos negros, que conseguem construir em poucos meses uma casa grande, acomodações para os escravos, casa das caldeiras, das fornalhas, de purgar, alambique, estábulo, curral, casas dos trabalhadores livres, além de um extenso canavial para a produção de açúcar e aguardente, cultivo deveras apropriado para o clima da região.

    ♣♦♠♥

    Nos afazeres da Casa Grande, sinhá Helena pediu à Ruth, mucama de confiança, que fosse ao vilarejo repor os mantimentos da criação e se impressionou vendo a escrava puxando o carro de boi sem esforço algum, com pouca folga na corda. Quis perguntar como ela fazia aquilo, mas o mistério a fez calar. Observou agradecida pela boa vontade com que a negra realizava aquele duro serviço. ‘Parece magia’ – pensou ela, percebendo que a criada efetivamente se comunicava com o animal. Sinhá Helena se aproxima da fogueira feita pelos negros, que dançavam e se lançavam a beberagens ritualísticas, murmurando sons incompreensíveis. Aquele que parecia reger os tambores e atabaques, em transe alucinado, apontou para a Casa Grande, olhos esbugalhados, e pronunciou as seguintes palavras com voz gutural: o sinhô daquela casa é alvo de flechas de pólvora atiradas pelo ódio de seu inimigo. Helena correu assustada para o aconchego de sua alcova, arrependendo-se de ter estado escondida ali.

    ♣♦♠♥

    Como um pequeno fauno que corre em seus latifúndios imaginários e encantados, corro tanto que hoje julgo algo sonhado, de ignorância dos caramanchões e para além deles acompanho as águas do rio até avistar ao longe um pontilhado do vilarejo escondido nas planícies do Cerrado e continuo a correr sem tirar o olhar da outra margem, na busca por um interior que faltasse ser explorado, mas apenas encontro fruteiras crestadas que desabam gomos flamados. Todo arfar confuso dos ventos ao entrar e sair do corpo-menino diante desta imensidão de terras contribui para ver uma linha no azul fundo, que deve ser a linha do meu destino talhado no éter. Eu estava a correr desde que o relógio de caixa da sala da copa dava a hora do catecismo e não podia deixar de transparecer em nada os venenos que àquela hora destilavam em meu ser. Em aula anterior, feita numa câmara contígua à sacristia, o pároco que rosnava entredentes um rústico sotaque alemão, resvalava uma varinha na cabeça de um menino enquanto encosta a capa dura e preta da Bíblia Sagrada na cabeça de outro, arrebatado por gestos de morcegão irritado. Os nigrras nem têm Alma humana, parrecem gente na forrma, mestrria da Diabo que copia tuda! Gritava e batia enquanto seu rosto parecia-me emoldurado pelos vultos que se deixavam ver pelos lados de cada ombro.

    Atravesso enfim murmurantes arbustos de folhagens aromáticas, luzentes libélulas azuis mostram uma singela trilha, reclinada na campina protegida por espessos pomares. Maritacas gritam à minha presença e espreitam o meu torpor de fôlego com a boca empastada de sede. No que me encontro com a guarda aberta, um soar de patadas e bufadas de cavalo bem atrás de mim denuncia o meu capitão do mato. Esse é o caminho do Remanso das Índias! – disse Tuaruk, sem liberar as rédeas. – Seu avô, em acordo com meu povo, prometeu preservar este recanto onde as índias davam à luz. Agora vamos, sobe! Deu hora do catecismo! Precisa logo fazer essa tal de primeira comunhão! E manobrou a charrete de dois cavalos sem dobrar um galho da estreita passagem de relva suave.

    ♣♦♠♥

    Seus olhos derramam um filete de licor de prata diante de todos, petrificados pela alta voltagem de sangue gerada pelo susto dos fantasmas vivos. Ao longe do ribombo de trovões, chegava uma carruagem trazendo meus padrinhos de batismo com um presente: um negrinho preso por uma coleira de ferro, conduzido por uma guia de corrente. Um enorme laçarote vermelho lacrava a grosseira roupa de estopa. Aos poucos, as cadeirudas mucamas testemunhavam a entrega daquela encomenda, bem na hora em que se pilava o café.

    Minha madrinha, vestida de riqueza sem trabalho, puxa o negrinho pelo pescoço até a escadaria do alpendre, sendo que eu estava cingido pelos meus sete anos recém-chegados. O ar tão espesso já moldava uma forma sinistra ao lado da madrinha. Eu estava esperando que o Gonçalo tropeiro descarregasse o monociclo de circo, que não veio no Natal, mas o cheiro de chuva morna dizia que nada do esperado deveria acontecer, enquanto não terminasse o assalto nobiliárquico dos visitantes da manhã de hoje.

    — Veja, Derico, o que sua dinda trouxe pra vosmecê de Salvador! Um negrinho do Daomé! Vosmecê desfaz este laçarote e ele é todo seu! — disse alto e sorrindo forte amargor.

    As negras murmuravam ao redor, enquanto eu olhava pra o menino adensando-se cada vez mais nesse torpor. Eu ainda não tinha visto uma criança encoleirada a ferro por estas bandas e também não sabia que tal novidade vinha de um sombrio fulgor da capital.

    — Viu? Pode fazer o que quiser com este negrinho! É só puxar a corrente assim ou assado e ele vai para onde vosmecê quiser a lhe obedecer aos mandos! Assim disse, ao puxar bruscamente de um lado pro outro a corrente presa à coleira no pescoço do menino, que a tudo suportava calado.

    Tive a percepção entontecedora da cólera gelada que saía pelo rosto do pequeno escravo. A lágrima que corria como prata derretida ao calor deste Cerrado e gerava pensamentos do tipo: por que não sou como ele? Que poder conduz este rito sádico funéreo de boas maneiras familiares? Mal posso me conter no fardamento de catecismo enquanto observo cada detalhe da sua roupa de tecido cru, como feita de sobra de saco de armazém. E a dinda a se atrapalhar com a demonstração, tendo ao lado uma mucama a lhe abanar e outra com uma sombrinha, disfarçando o banzo.

    — Não faça desfeita com a sua madrinha e venha pegar o seu presente de aniversário!

    O vulto indeciso de minha mãe em silêncio animal ao lado do meu pai em luta com o vento para acender o cachimbo. Tolda-se o céu da falta de azul. Volvo lentamente os passos. Avanço devagar, arrastando a decepção de não ser uma pedra bruta como meu pai que não escraviza outra pedra, passo pelo meu padrinho oscilado como pêndulo ante a pequena plateia testemunhar uma criança escravizar outra criança. É a vida a que eu pertenço. É das suas mãos muito brancas que eu pego a corrente, a qual me dá depois de sorrir e me beijar.

    — Tuaruk! – gritei.

    — Sim, Paizinho!

    — Atira!

    Um raio de luminosa surpresa riscou os olhos do negrinho que sentiu o ferrolho da coleira de ferro estourar sob o impacto do tiro certeiro. Então, eu o empurrei para correr toda fúria e medo, debaixo de luz tórrida, canavial adentro. E ao correr para abdicar cada vez mais, já alegrava os ruídos ao longe. Porque quando finda o canavial inicia-se o rio, despido de realidades. Mergulhamos no rio e retornamos como dois artistas que ensaiam sua cena todas as noites.

    ♣♦♠♥

    Harpias transilvânicas sobrevoam o largo do vilarejo e pousam na torre do sino da igreja, e denunciam o braseiro dos olhares feros para o largo do pelourinho do vilarejo. Frias emoções se deixavam ver ali e aqui, nas quinas das janelas, ao batente dos sobrados, baixos como o céu desta hora. Vultos de tal langor que iniciam tarefas e espreitam o que acontece no largo ao mesmo tempo em que respiram o ar feiticeiro que exala das passadas do pároco em direção à escolinha de catecismo. Os arbustos esturricados que ladeiam a escolinha dão um aspecto devorador de paz à minha iniciativa de sair da charrete, olhar para o pelourinho e aproximar-me do clérigo, antes que ele me note dentro de sua roupa preta felpuda.

    — Padre Eneri! – berrou a beata assistente. – Vosmecê tem criança nova pra sua comunhão! – disse, arrumando os meninos em fila.

    Onde estarr esse menina? Cadê o meu rapé que estava no sacrristia? Este cheirra non só perrde prro hálita de boiadeirro a pedirr hóstia! – exclamou, enquanto beliscava e endireitava as crianças na fila do catecismo.

    No tronco veem-se três negros aferrolhados nos pulsos e calcanhares, nus na indigência e na dor abafada pelo desmaio. O capitão do mato que os chicoteava quando paramos a charrete bebe pinga com boiadeiros a beira do armazém, entre gargalhadas e deboche, na disputa pela perfeição da feitura do cigarro sertanejo.

    Ouvi um pequi cair quase cozido do pé diante de um vilarejo sem atmosfera. Tudo que transpira vira nódoa, no estalido do chicote fustigando às cegas enquanto se gorgoleja a bagaceira.

    — Ára! Eu vô é tacar pinga nos rasgos daqueles zum pra mó deles acordá e limpá as imundície que fizeram no tronco, num visse? – perguntou a todos, que riram fel e cana.

    Estranhos albores lazúlis saem da fila das crianças na caça de alguma vivalma. Então a menina de longas tranças eduardinas saiu da formação de crianças sem vivalma, correu até o armazém, passou pelos boiadeiros com um saco de serragem, e foi até o tronco tapar os sulcos sanguinolentos feitos na carne dos escravos. De um estábulo próximo trouxe água a balde, o que a ajudou a suportar o cheiro entranhoso de feras abatidas em cativeiro, nas reações extintas dos corpos, o ar guindado de quem volta do útero da terra, sopra um fôlego insurgente, e globos oculares movem-se sutilmente na direção do olhar chispante da menina.

    — Um está vivo! Um está vivo! – gritou para mim, como se apercebesse que somente eu pudesse ver e entender o que estava a fazer.

    — Mái qui suncê sinhazinha Helena tinha di butá as mão nessa cumbuca, meu zorixá! – A mucama segurou a menina e a afastou o máximo das nádegas expostas à fome das harpias.

    Quatro tiros precisos estouram os braceletes do escravo que escorrega ao encontro de escorpiões disfarçados de gravetos. O capitão do chicote e os boiadeiros que tinham sacado todas as armas na direção dos tiros, ouviram de Tuaruk:

    — Mucama! Coloque esse banto na charrete! O Engenho Santa Bárbara está comprando esse um!

    — Mas ele não tá à venda não, seu cabra! – disse o capitão do chicote, aproximando-se, com a cabeça de Tuaruk na mira da pistola.

    — Se vosmecê não for pegar seus réis por esse escravo, eu mesmo venho trazer a vosmecê!

    — Venha sim... e não traga consigo nenhuma criança! – riram os boiadeiros.

    — Eu levo a sinhazinha de volta pro seu rancho! – bradou Tuaruk mantendo-se firme.

    — Eu

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