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Cooperação Sul-Sul em Comunicação como Estratégia de Hegemonia:

o “Grupo de Diarios América”


Pedro Aguiar

disciplina Comunicação e Hegemonia


Prof. Eduardo Granja Coutinho
Linha Mídia e Mediações Socioculturais
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
Escola de Comunicação
Universidade Federal do Rio de Janeiro
2008.1

Resumo:
O Grupo de Diarios América (GDA) é uma cooperação corporativa que, desde 1991,
congrega 11 jornais conservadores, cabeças de conglomerados midiáticos, de outros tantos
países da América Latina. Embora o propósito manifesto da iniciativa seja multiplicar a
renda publicitária dos veículos ao oferecer aos anunciantes a reprodução do mesmo
conteúdo em diferentes países, o GDA tem um irrefutável papel político de conferir
organicidade ao discurso conservador de certas camadas das burguesias latino-americanas.
Este trabalho busca posicionar as atividades do consórcio como estratégia de construção de
hegemonia em âmbito regional (internacional), a partir de leituras da obra gramsciana,
particularmente a reinterpretação de Octavio Ianni sobre o “príncipe moderno” de Gramsci,
situando a mídia como o príncipe (maquiaveliano) do capitalismo avançado.

Em 1991, onze dos maiores jornais privados da América Latina se associaram para
constituir o Grupo de Diarios América1, um consórcio em âmbito internacional que permite
o intercâmbio de material jornalístico e de anúncios entre os veículos participantes. O
objetivo primário declarado é permitir a reprodução de um mesmo anúncio em todos os
jornais participantes, multiplicando assim a renda publicitária. Entretanto, subjacente a este
propósito está outro, não declarado, ainda que inúmeros indícios permitam constatá-lo: a
construção de um projeto de hegemonia em comunicação em âmbito regional na América
Latina, levado a cabo por segmentos conservadores das elites locais de forma associada.
Oficialmente, o GDA opera como um sistema de colaboração permanente entre os
11 jornais participantes, também chamados de “sócios”. Cada país conta com apenas um
representante (em geral, o que detém maior fatia de mercado publicitário), exatamente para
1
É utilizada aqui a ortografia do nome do consórcio em idioma castelhano, ou seja, a palavra “Diarios” sem
acento e “América” acentuada, tanto por razão de nomenclatura própria quanto para diferenciar diario (em
espanhol, sinônimo de “jornal”, a despeito da periodicidade) de “diário” (em português, qualquer registro
diariamente atualizado, seja uma publicação jornalística ou não).

1
não estimular concorrência entre os membros. No Brasil, o representante é O Globo, pedra
fundamental da holding Organizações Globo.
O perfil dos “sócios” do GDA é bem definido. Não se trata simplesmente de
veículos de alta tiragem e ampla circulação, mas especificamente de órgãos representantes
de conglomerados multimídia, na maioria dos casos identificados com posições
conservadoras. Desta forma, os veículos associados no GDA têm um irrefutável papel
político: o de conferir organicidade ao discurso conservador de certas camadas das
burguesias latino-americanas.
Este trabalho busca posicionar as atividades do consórcio como estratégia de
construção de hegemonia em âmbito regional (internacional), a partir da reinterpretação de
Octavio Ianni sobre o “príncipe moderno” de Gramsci, situando a mídia como o príncipe
(maquiaveliano) do capitalismo avançado, e do estudo de René Dreifuss sobre as
estratégias de associação transnacional das elites de países em desenvolvimento para a
consolidação de suas hegemonias em planos além-fronteiras. O arcabouço teórico se apóia
ainda em outras leituras sobre a obra gramsciana, como a de Murilo César Ramos em
relação ao papel do conceito de “sociedade civil” na análise das políticas de comunicação e
a de Ana Esther Ceceña (diretora da CLACSO) sobre estratégias de construção de
hegemonias internacionais (no plural) no contexto mundial pós-Guerra Fria.
O método empregado neste trabalho não pretende realizar uma análise de discurso
sobre os produtos do GDA (seus textos jornalísticos e publicitários veiculados), o que é
válido e deve contribuir em um segundo momento. O que se propõe é analisar as estruturas,
conexões externas e internas e estratégias deste consórcio midiático à luz da obra
gramsciana, que encerra elementos potencialmente constitutivos para uma teoria da
comunicação. Interessa aqui, antes de falar em contra-hegemonia, tratar de como se
constrói midiaticamente a própria hegemonia (das classes dominantes), dentro de uma
perspectiva que considere primordialmente o aspecto da comunicação internacional no
contexto da América Latina, no que é particularmente estimulada ou tolhida (a depender do
ponto de vista) pela atividade deste grupo.

1. O Grupo de Diarios América por ele mesmo

2
O propósito do GDA é, em sua autodescrição, estabelecer uma “grande rede 2 de
interação e confiança” para “fortalecer o intercâmbio de conteúdos jornalísticos e
editoriais”3. Como já explicitado, o objetivo primário é comercial: oferecer aos anunciantes
a possibilidade de unificar a distribuição de sua propaganda em vários países, ampliando a
visibilidade para os clientes e multiplicando a receita publicitária para os veículos. Já no
aspecto jornalístico – o que fica no “espaço que sobra” dos anúncios –, a troca de material
tem a função de suprir seus associados com conteúdo informativo que seria oneroso ou até
inexeqüível para suas estruturas ou rotinas de produção. Mas, oculto sob as vantagens
operacionais, está um objetivo maior e mais a longo prazo: a ação ideológica sobre a
sociedade civil, como admitido no próprio texto de apresentação do grupo:
“Cada um de nossos jornais desempenha um papel-chave ao informar e influenciar
a opinião pública em seus respectivos mercados. Seus leitores são indivíduos
altamente instruídos, com recursos financeiros e alto poder de decisão. Os jornais
do GDA contam com mais de 2.900 jornalistas experientes na região, assim como
correspondentes em mais de 25 países. Com uma audiência que excede os 5
milhões de leitores diários e 10 milhões durante os domingos, o alcance do GDA
não tem paralelo na América Latina. (...) Mais de quinze anos de experiência e
credibilidade levaram o Grupo de Diarios América a ser considerado como o
recurso mais poderoso de comunicação na América Latina. Seja você um
anunciante ou uma agência que busca captar quem decide no mercado latino-
americano, não encontrará quem chegue a eles melhor do que nós podemos.”4

Em seguida, enumeram os objetivos da iniciativa, cuja ordem de apresentação é


significativa da escala de prioridade almejada:
• “Entregar um serviço ágil e eficaz a anunciantes que requeiram publicações
em mais de um de nossos países.”
• “Fortalecer o intercâmbio de conteúdos jornalísticos e editoriais consolidando
o GDA como a melhor fonte de informação sobre a América Latina.”
• “Velar pela liberdade e independência expressada na linha editorial e manter a
liderança e a credibilidade entre os leitores.”
2
Chame-se a atenção aqui para o uso do termo “rede”, numa acepção muito distinta da que se tem nos estudos
sociais e, particularmente, de comunicação. A expressão está empregada em seu sentido vulgar, como
apropriado pelo ambiente corporativo, de um sistema fechado de pontos interligados a um mesmo pólo
centralizador. No entanto, tal estrutura não se assemelha, nem idealmente nem por representação gráfica, à
idéia de rede (como rede de pesca ou de dormir). O sentido a que estamos acostumados descreve um conjunto
de nós que se interconectam de forma descentralizada, regular ou não, com uma ou mais simetrias. O GDA
não opera tecnologicamente ou gerencialmente em forma de “rede” propriamente dita, como se constatará
mais adiante.
3
http://www.gda.com/Quienes_Somos/index.php, acessado em junho de 2008.
4
idem

3
O mesmo texto ressalta que “cada jornal do GDA é independente do controle
oficial, tem domínio do mercado e importantes cifras de público-leitor e usuários”. Afirma
também que o público-leitor dos jornais “sócios” é composto por indivíduos de alto nível
de instrução formal, com poder aquisitivo e de decisão para gerar “sólidos resultados de
vendas”. Segundo o consórcio, “isto permite que os anunciantes cheguem aos
consumidores de maior potencial da maneira mais eficiente e rentável”.
“Se você deseja ficar cara a cara com mais de sete milhões de prospectos por dia,
o GDA deve ser parte primordial de seu plano de mídia. Para desfrutar de um
alcance e cobertura sem paralelos nos mercados da América Latina e obter as
vantagens de descontos especiais, contate o GDA.”5

No seu media kit, a ficha de dados comerciais que fornece a potenciais anunciantes
e ao público6, o GDA apresenta números somados a partir das estatísticas de leitura e
circulação informadas individualmente por cada jornal. Com isto, o consórcio se declara
como atingindo um público-leitor total de 492.000.000 leitores (divisão por poder
aquisitivo: 42% médio-alto, 38% médio-médio, 20% baixo) e 7 milhões de “prospectos”
por dia (estimativa obtida a partir da média de leitores por exemplar multiplicada pela
circulação), embora a circulação somada dos 11 “sócios” não passe de 1.581.000
exemplares, na média de segunda a sábado.

I. Jornais participantes do GDA


País Jornal Fundação Circulação Propriedade
Argentina La Nación 1870 175.000 família Mitre
Brasil O Globo 1925 261.000 família Marinho
Chile El Mercurio 1827 140.000 família Edwards
Colômbia El Tiempo 1911 241.000 família Santos +Editorial Planeta
Costa Rica La Nación 1946 99.000 família Jiménez +Grupo Prisa
Equador El Comercio 1906 98.000 família Mantilla
México El Universal 1916 100.000 família Ealy
Peru El Comercio 1839 123.000 família Miró Quesada
Porto Rico El Nuevo Día 1909 205.000 família Ferré
Uruguai El País 1918 39.000 família Scheck
Venezuela El Nacional 1943 100.000 família Otero
Fontes: websites dos próprios jornais e do GDA, http://www.gda.com/Publicidad/Perfiles/index.php
OBS.: dados de circulação média para o período de segunda a sábado

5
idem
6
http://www.gda.com/Publicidad/Perfiles/index.php, acessado em julho/2008

4
Os três jornais fundadores do GDA foram os sul-americanos El Mercurio, do Chile,
La Nación, da Argentina, e El Comercio do Peru. Mais tarde, o consórcio se expandiu na
direção norte, até englobar os centro-americanos La Nación (Costa Rica) e El Nuevo Dia
(Porto Rico) e o mexicano El Universal.
Quanto à estrutura operacional, a auto-apresentação utiliza a data de fundação do
jornal mais antigo, o chileno El Mercurio, para alardear que goza de “experiência desde
1827”, contando com “mais de 3.400 jornalistas especializados em América Latina” (só nos
jornais, sem contar as outras mídias associadas) e uma equipe de “correspondentes” em 25
países (inclusive os 11 representados no grupo).
Embora não idealmente, o uso do material fornecido pelo GDA é na prática
circunscrito às páginas das editorias de Internacional (é deste modo que funciona o
aproveitamento n’O Globo). Os editores dos jornais participantes coordenam pautas em
conjunto, deslocam repórteres em pontos dispersos pelo continente e, depois de recolhido o
material, cada veículo é livre para aproveitá-lo e editá-lo da maneira que preferir. A estratégia
se aproveita do aspecto singular do Jornalismo Internacional: o fato de que um conteúdo
“nacional” para um país é “estrangeiro” para todos os demais. E, além das pautas
coordenadas, o estatuto do GDA também permite que cada jornal-membro republique
matérias individuais, produzidas por um jornal único em coberturas isoladas. Assim, o
consórcio atua como fonte “colaborativa” de texto e fotos para a editoria – e, diferentemente
de uma agência de notícias, o cliente tem ingerência direta sobre o conteúdo produzido.
Tal modelo de cooperação se diferencia do serviço executado por agências ainda em
outro aspecto: não se trata de uma empresa fornecendo produtos a clientes, e sim uma
iniciativa intercorporativa que mais se assemelha a uma joint-venture, ou livre-associação
para finalidades comerciais, com redução de custos de produção e ampliação do universo
de circulação de mercadorias (no caso, não o jornal propriamente dito, mas seu produto
intangível: anúncios e conteúdo jornalístico).
O GDA criou, inclusive, a figura da “entrevista coletiva exclusiva” (uma anomalia,
em termos de produção jornalística canônica), em que um entrevistado fala a um grupo
selecionado de repórteres do consórcio, como a concedida pelo secretário-geral da OEA,
José Miguel Insulza, a quatro jornais do grupo em 2006.

5
Além do intercâmbio de conteúdo jornalístico e publicitário entre os “sócios”, os
“produtos” (serviços de informação) que o GDA oferece a terceiros – isto é, a não-membros
– incluem o GDA News (venda de matérias, em texto), GDA Photo (fotografias) e serviços
tematizados como economia, política local, esportes, ciência & saúde.
Para compreender melhor o “perfil” do Grupo de Diarios América e das empresas
que o compõem, é esclarecedor apresentar uma breve descrição caso-a-caso dos jornais
integrantes do consórcio e suas relações com o poder. Para cada país, são sucintamente
descritos qual jornal participa do GDA, que indivíduo, família ou corporação detém
propriedade (ou majoritariedade, por controle acionário ou outro meio), que outras
empresas são ligadas ao jornal, além de qual o papel histórico da mídia, genericamente, e
dessa organização midiática específica, individualmente, na realidade política local.
Brasil – Ponta-de-lança das Organizações Globo (a qual batizou), o jornal O Globo
tem perfil historicamente conservador e encontra seu público entre a classe média de
limitada inovação intelectual na região metropolitana do Rio de Janeiro. Até meados da
década de 1990, dividia a liderança de mercado com o Jornal do Brasil, mais identificado
com as vanguardas progressistas, até empreender uma bem-sucedida estratégia agressiva de
concorrência. O Globo contratou os profissionais de maior destaque do JB, investiu em
promoções de assinaturas com brindes e vendas com “valor agregado” e copiou os produtos
e suplementos do concorrente (como as revistas Domingo e Programa, o caderno Idéias).
Além do jornal, as Organizações Globo controlam ainda a Rede Globo de Televisão, em
situação de virtual monopólio na TV brasileira (5 emissoras próprias e outras 91 afiliadas
que detêm 54% da audiência média7); o Sistema Globo de Rádio, com 87 emissoras; a
Editora Globo (que publica a revista Época, uma das quatro de referência entre publicações
jornalísticas semanais, além de outras revistas e livros), a operadora de TV a cabo NET; a
programadora de TV por assinatura Globosat; a gravadora Som Livre (cujas maiores
vendagens são de discos com trilhas sonoras das novelas da TV Globo); a produtora Globo
Filmes; a distribuidora Globo Vídeo; o provedor e portal Globo.com (que reproduz
digitalmente conteúdo das outras mídias do conglomerado); 50% do jornal de economia
Valor Econômico, em joint-venture com o Grupo Folha; e os jornais populares Extra (Rio
de Janeiro), Expresso (Rio de Janeiro) e Diário de S.Paulo (São Paulo). Fora do setor da
7
Fonte: pesquisa “Os Donos da Mídia”, realizada pelo EPCOM – Instituto de Estudos e Pesquisas em
Comunicação, sobre dados de 2000.

6
comunicação, o grupo também chegou a investir no mercado financeiro (banco e
seguradora Roma, das iniciais de Roberto Marinho) e indústria alimentícia (INBASA,
Indústria Brasileira de Alimentos SA, cujo produto-líder era a Geléia de Mocotó), mas
abandonou estas iniciativas. Na realidade, o membro brasileiro do GDA originalmente foi o
tablóide gaúcho Zero Hora, do Grupo RBS (família Sirotsky). Mais tarde, ocorreu o
ingresso de O Globo, tornando o Brasil o único país a ter dois “representantes” no
consórcio. Com a saída do Zero Hora da associação, o jornal da família Marinho ficou
como o único brasileiro no grupo.
Argentina – Embora tenha perdido a posição de conglomerado-líder para o grupo
Clarín (que também controla as estações de TV e rádio de maior audiência), o jornal La
Nación (um dos fundadores do GDA) manteve 30% do público leitor da capital argentina,
Buenos Aires. Pertencente à família Mitre, do ex-presidente Bartolomé Mitre (fundador do
jornal e primeiro comandante aliado na Guerra do Paraguai), o grupo LN é também o que edita
a versão hispano-americana da revista Rolling Stone, o portal ZonaCinema, os sites de
classificados DeMotores.com e DeRemate.com.ar e o portal de vídeos LNteve, análogo ao
YouTube. Nas edições dominicais, o La Nación alega chegar à circulação de 290.000
exemplares.
Chile – Outro membro-fundador do consórcio, o El Mercurio tem conhecida
reputação de jornal alinhado às posições da elite de Santiago: não coincidentemente, afirma
ter 73% de seu público leitor nas classes A e B. O jornal é controlado pela família Edwards,
historicamente ligada a regimes repressores da história chilena, como os de Carlos Ibáñez del
Campo (1927-1931) e Augusto Pinochet (1973-1990). Em 1970, seu então proprietário, o ex-
presidente do Senado Agustín Edwards, era tido como o homem mais rico do Chile e foi um
dos que tomaram a iniciativa de procurar a CIA para solicitar a intervenção que descambou
no sangrento golpe militar de 1973. O jornal recebeu vultosos recursos diretamente dos norte-
americanos. Atualmente, o grupo é proprietário ainda de outros 19 jornais diários de
expressão regional, inclusive La Segunda, e mais 32 emissoras locais de rádio.
Colômbia – El Tiempo é o que alega ter a maior circulação entre os 11 “sócios” do
GDA. O jornal foi fundado em 1911 por Alfonso Villegas Restrepo, de uma das mais
importantes famílias colombianas, e comprado dois anos depois por seu cunhado Eduardo
Santos Montejo, que viria a ser presidente de 1938 a 1942. Desde então, a família Santos

7
fez El Tiempo gozar de uma situação de monopólio na prática, ao ser o único diário de
circulação nacional (reduziu o concorrente El Espectador à míngua), e transformou o jornal
em cabeça de um conglomerado que inclui ainda as revistas Cambio, Portafolio, Don Juan
e os classificados ElEmpleo.com, MetroCuadrado.com, Motor.com.co e Vive.in.
Atualmente, a propriedade da holding é dividida com o grupo espanhol Editorial Planeta,
que já detém a maioria do controle acionário do jornal. Alguns integrantes da família
ocupam cargos de primeiro escalão no governo do conservador Álvaro Uribe: Juan Manuel
Santos (filho do ex-editor do jornal Enrique Santos) é ministro da Defesa desde 2006,
responsável direto pelo comando militar na atual campanha de repressão à guerrilha das
FARC (que incluiu violação de território equatoriano em março de 2008 e uma suposta
operação para libertar a refém Ingrid Betancourt em julho), enquanto seu primo Francisco
Santos Calderón é nada menos que vice-presidente da República.
Costa Rica – A propriedade do La Nación costa-riquenho é da família Jiménez,
também em associação com um grupo espanhol: Prisa, do falecido Jesús de Polanco,
proprietário do jornal El País, de Madri. O grupo inclui ainda o tablóide Al Día, o jornal de
economia El Financiero, a revista Perfil, os classificados online Económicos.com, mais três
emissoras de rádio e as gráficas Impresión Comercial e Servigráficos. Os Jiménez
investiram ainda em um pequeno império de mídia centro-americano, fundando ou
adquirindo jornais em países vizinhos como Al Día e Siglo XXI (Guatemala), e a revista El
Capital (Panamá).
Equador – El Comercio de Quito foi fundado em 1906 pelos irmãos Mantilla
Jácome, família que mantém a propriedade até hoje. O grupo inclui ainda o diário popular
Últimas Noticias, o jornal regional Correo del Valle, as rádios Quito 760 AM e Platinum
(também transmitida em Guayaquil), o portal Xona.ec e as revistas Líderes (economia),
Família (comportamento), Carburando (automóveis), Educación (educação),
SuperPandilla (infantil) e SuTienda (para comerciantes). Seu principal concorrente é o
jornal El Universo.
México – El Universal se apresenta como “o jornal mais lido da Cidade do
México”, onde disputa público com La Jornada e Reforma. O jornal foi fundado em 1916
por Emilio Rabasa e Félix Palavicini e, em meados do século XX, passou ao controle da
família Ealy. Em 2007, o atual presidente do grupo, Juan Francisco Ealy Ortiz, nomeou seu

8
filho Juan Francisco Ealy Jr. como novo diretor-geral da empresa. Entre 2004 e 2007, a
empresa manteve o jornal The Herald Mexico, em regime de joint-venture com The Miami
Herald dos EUA. Atualmente, detém ainda o jornal e portal de anúncios Aviso Oportuno
(termo que virou sinônimo de “classificados” no México), o portal de cultura jovem
TVA.com.mx, além dos classificados online VeAutos, VeCasas, VeEmpleos, VeFutbol e
VeVarios. Talvez em virtude da estabilidade política mexicana (onde um partido, o PRI,
esteve no governo ininterruptamente de 1929 a 2000), a relação do El Universal com o
poder é a mais discreta entre os 11 participantes do GDA.
Peru – Um dos fundadores do GDA, o El Comercio de Lima foi fundado em 1839 e
adquirido pela família Miró Quesada em 1875. O jornal chegou a ser expropriado durante o
regime militar de esquerda do General Juan Velasco Alvarado (1968-1975), mas a
propriedade foi devolvida à família pelo presidente Fernando Belaúnde Terry em seu
primeiro ato ao tomar posse, em 1980. O grupo El Comercio inclui ainda o jornal popular
Perú 21, o tablóide Trome, as revistas Somos e Gestión, a editora Punto y Coma, as gráficas
Pando e Amauta, a distribuidora de publicações Orbis Ventures, a imobiliária El Sol e,
desde recentemente, o Grupo TV Perú, que controla as emissoras América TV e Canal N.
Porto Rico – Fundado originalmente como El Diario de Puerto Rico em 1909, o
jornal foi rebatizado como El Día em 1911, quando a ilha caribenha era um protetorado dos
Estados Unidos. O jornal foi vendido em 1948 para o empresário Luís Alberto Ferré
Aguayo, árduo defensor da anexação aos EUA, que se elegeu governador em 1968, já com
Porto Rico como “território livremente associado” (status que mantém até hoje). Para
desincompatibilizar-se, Ferré passou o controle do jornal a seu filho Antonio Luis, que o
renomeou novamente como El Nuevo Día. O controle continua sob a família Ferré,
diretamente associada à ala mais conservadora dos republicanos (Ronald Reagan e George
Bush) em Porto Rico. O conglomerado ainda abarca o jornal popular Primera Hora e uma
edição do El Nuevo Dia em Orlando, pólo turístico da Flórida. Seu principal concorrente é
o tablóide El Vocero desde a extinção do outro principal competidor, El Mundo, em 1986.
Uruguai – Diferentemente de seu homônimo espanhol, o El País uruguaio não é
conhecido por posições progressistas. Pelo contrário: desde sua fundação, em 1918, por
Washington Beltrán Barbat, Eduardo Rodríguez Larreta e Leonel Aguirre, o jornal teve o
papel de voz da intelectualidade do Partido Blanco, conservador, contra os liberais

9
colorados de José Batlle y Ordóñez. Beltrán, por sinal, levou a rivalidade às últimas
conseqüências, morrendo em 1920 em duelo contra Batlle. Seu filho Washington Beltrán
Mullin seria presidente do Uruguai (1965-1966) e diretor do jornal até falecer, em 2003.
Mas os três sócios e seus descendentes perderiam o controle para o contador Carlos Scheck,
que ascendeu nas funções administrativas da empresa até comprá-la. O veículo foi fechado
duas vezes: na ditadura de Gabriel Terra (1933-1938) e no regime militar (1973-1985).
Atualmente, El País é o jornal é o de menor circulação entre os integrantes do GDA, mas
ainda mantém supremacia de mercado após levar à bancarrota seu concorrente El Día, da
família Batlle, em 1993. Hoje na terceira geração, a família Scheck é proprietária também
do Canal 12 (Teledoce), a revista feminina Paula, o portal de classificados Gallito.com e o
portal jovem NTN (No Tiene Nombre).
Venezuela – El Nacional foi fundado em 1943 por Miguel Otero Vizcarrondo, avô
do atual diretor, Miguel Henrique Otero. Historicamente, o jornal mantinha uma posição de
centro-esquerda e chegou a apoiar a candidatura de Hugo Chávez à presidência, em 1998.
Como recompensa, a então esposa de Miguel Henrique Otero, Carmen Ramia Otero, foi
nomeada ministra das Comunicações no primeiro governo chavista. O jornal rompeu com o
governo quando este tomou posições mais à esquerda. El Nacional acabou alinhando-se ao
resto da imprensa venezuelana no golpe de Estado fracassado de abril de 2002. Desde
então, mantém-se na oposição. Embora tenha metade da circulação do líder de mercado
venezuelano, El Universal (assumidamente conservador e mais tradicional) e esteja bem
abaixo do segundo colocado, Últimas Noticias, o jornal da família Otero é ponta-de-lança
de um conglomerado que inclui ainda o popular Primera Hora, a revista Todo en Domingo
e a revista feminina EME.
II. Composição administrativa do GDA
Presidência Bartolomé Mitre La Nación, Argentina (diretor)
Vice-Presidência Guadalupe Mantilla de Acquaviva El Comercio, Equador (diretora)
Diretoria João Roberto Marinho O Globo, Brasil (vice-presidente)
Agustín Edwards Eastman El Mercurio, Chile (presidente)
Luis Fernando Santos El Tiempo, Colômbia (presidente)
Manuel Francisco Jiménez La Nación, Costa Rica (presidente)
Juan Francisco Ealy Ortiz El Universal, México (presidente)
Luis Miró Quesada El Comercio, Peru (vice-presidente)
María Eugenia Ferré-Rangel El Nuevo Día, Porto Rico (presidente)
Guillermo Sheck El País, Uruguai (administr.-geral)
Miguel Henrique Otero El Nacional, Venezuela (diretor-editor)
Fonte: GDA, http://www.gda.com/Quienes_Somos/Directorio_GDA/index.php , julho de 2008

10
Com relação às características dos veículos integrantes do consórcio, podem-se
constatar as seguintes, primordialmente:
a) são todos jornais diários de capital integralmente privado, sendo alguns
parcialmente controlados por estrangeiros;
b) são todas empresas familiares, mantidas na propriedade da mesma família há pelo
menos duas gerações (como se confirma comparando os sobrenomes do Quadro I
com os da atual composição administrativa do consórcio, no Quadro II);
c) são todas empresas pontas-de-lança de conglomerados multimidiáticos, ou seja,
com atuação também em TV, rádio, internet, revistas e outros suportes tecnológicos
de comunicação;8
d) são todos veículos de grupos que detêm as maiores fatias dos respectivos mercados
publicitários, possuindo ou almejando a condição de monopólio;
e) são todos jornais ditos “tradicionais” (em ambas acepções da “tradição”: a vulgar,
de prestígio consolidado, e a gramsciana, de continuidade histórica dialética das
visões de mundo) e alinhados a posições ideológicas conservadoras, declaradamente
ou não.

O El Mercurio do Chile, por exemplo, foi o jornal que encabeçou o movimento de


oposição ao governo da coalizão centro-esquerdista de Salvador Allende (1970-1973) e,
mais tarde, serviu de apoio junto à opinião pública para o regime ditatorial de Augusto
Pinochet (1973-1990).
A meta do Grupo de Diarios América é sintetizada com sinceridade chocante no
discurso de João Roberto Marinho após tomar posse na presidência do consórcio, em março
de 2005:
“Para O Globo, é de suma importância contar com o intercâmbio de informações
editoriais com os jornais mais importantes da região, no momento em que o
Brasil está promovendo sua integração com a América Latina (...) para reforçar a
posição de seus associados na região e em seus próprios mercados.”9 (grifo meu)

8
Evita-se aqui a categorização “mídia” apenas para abarcar a internet sem maiores controvérsias a respeito de
sua natureza.
9
“O Globo assume presidência do GDA”. in: O Globo, 11/3/2005.
http://oglobo.globo.com/jornal/economia/167252668.asp, acessado em março/2005

11
Santuário (2002; 2), em seu trabalho analítico-descritivo sobre as atividades e
posicionamentos do GDA, lista os pontos que considera pré-requisitos para um jornal ser
aceito como “sócio”, oficializados nas Definiciones del Grupo de Diarios América de 1993:
a) possuir “independência, pluralidade, liderança de opinião”
b) “atingir leitores com poder de decisão e investimento”
c) “possuir grande credibilidade”
d) “serem líderes no uso de novas tecnologias”
e) “possuir maior circulação”
f) “deter o domínio dos mercados publicitários” (grifo meu)

Para a análise precisa do texto auto-referenciado deste tipo de corporação de mídia,


faz-se necessária uma espécie de glossário para “traduzir” certos termos-chave entre a
terminologia da gestão capitalista e a dos estudos de economia política. Aquilo que o
vocabulário do marketing apelida como “liderança” entende-se aqui como hegemonia.
Embora ambas não sejam permanentemente sinônimos (aquela pode ser efêmera e
localizada; esta tem extensão no tempo e no espaço históricos), neste caso o são – o que se
justifica pelo que será visto a seguir.

2. Estratégia de construção de hegemonia regional


Em cada um dos 11 países, o jornal integrante do GDA exerce supremacia
mercadológica e comunicacional (como referência informativa das elites) ou integra um
conglomerado que o faz. Assim, uma das estratégias do consórcio é precisamente estender tal
supremacia para o âmbito regional na América Latina, a partir da associação intercorporativa
(capitalista). Na medida em que, individualmente, as mídias constituem aparelhos privados
de hegemonia em nível nacional, passam a almejar, uma vez associadas, ao status de aparelho
privado de hegemonia internacional, dentro do subcontinente latino-americano.
Identifica-se, a longo prazo, o projeto de constituição de um bloco histórico –
entendido como aliança entre segmentos de classes para a luta pela hegemonia sobre o
conjunto – pelas classes dominantes. O singular de tal processo, no campo da comunicação,
é o fato de se dar não mais entre classes de um mesmo Estado, mas entre elites de Estados-
nações distintos.

12
Os próprios textos de apresentação do consórcio explicitam, em linguagem direta, a
intenção de constituir tal “grande rede”, reunindo “empresas familiares de comunicação”
para “possuir grande credibilidade, serem líderes no uso de novas tecnologias, possuir
maior circulação e deter monopólio dos mercados publicitários” (SANTUÁRIO; 2006, 2).
Em outras palavras, o grupo se estrutura sobre uma estratégia clara de persecução da
hegemonia. Talvez muito poucos textos enunciados diretamente por capitalistas sejam tão
francos quanto os editoriais e relatórios divulgados pelo GDA, cujo conjunto consolida uma
espécie de “manifesto do grande capital” latino-americano no campo da comunicação
internacional.
Aqui, em paz com Gramsci, compreendemos a construção da hegemonia como um
processo de luta permanente, em que está em disputa o poder de significação da realidade, de
elaboração do repertório simbólico de uma sociedade de forma a conferir organicidade à visão
de mundo de uma classe (ou um segmento de classe). Para o exercício da liderança intelectual-
moral sobre o conjunto da sociedade, esta conta com os aparelhos privados de hegemonia,
responsáveis por garantir a dominação por meios não coercitivos, mas ideológicos.
Dentro de tal projeto, é indispensável o trabalho da mídia, um aparelho privado de
hegemonia por excelência que, com seus discursos permanentes, dá sentido e cria consenso
ativo sobre os interesses da classe dominante (no contexto atual, materializado em valores
como “democracia”, “livre-iniciativa”, “liberdade de expressão”, “respeito à propriedade” e
“ordem”) ao mesmo tempo em que abre “janelas” para falas de oposição, antitéticas,
contra-hegemônicas, sem que isso se configure contradição. Pelo contrário: é característica
intrínseca do exercício de hegemonia ter maleabilidade suficiente para lidar dialeticamente
com as forças que lhe são opostas, como ressalta o próprio Gramsci:
“O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deva levar em conta os
interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida;
que se forme certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça
sacrifícios de ordem econômico-corporativa. Mas também é indubitável que os
sacrifícios e o compromisso não se relacionam com o essencial, pois se a
hegemonia é ético-política também é econômica; não pode deixar de se
fundamentar na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo
da atividade econômica.”10

10
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968, p.33 apud IANNI, Octavio. Enigmas da Modernidade-Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003., pp.147-148

13
Assim, a entidade responsável por exercer a liderança intelectual-moral, que já foi o
Príncipe (o Estado) para Maquiavel e o Moderno Príncipe (o Partido) para Gramsci, passa a
ser o Príncipe Eletrônico (a mídia) no contexto do capitalismo avançado, de acordo com
Ianni (2003). Assumindo o papel de “intelectual coletivo”11, “capaz de interpretar tanto os
seguidores do partido como os outros setores da sociedade, indiferentes e adversários”
(2003; 142), o novo Príncipe “se revela capaz de construir, realizar e desenvolver a
hegemonia de um projeto de Estado-Nação, envolvendo a organização, o desenvolvimento
ou a transformação da sociedade” (idem).
Ianni concorda que, embora seja possível encontrar “ressonâncias” de um conceito
de “príncipe” em outro, ambos respondem separadamente “a diferentes desafios histórico-
sociais, próprios de cada época” (2003; 142). Por esse motivo, a configuração atual de
forças da era do capitalismo avançado e de uma economia capitalista globalizada exige a
identificação de um novo “príncipe”, ou entidade que exerce a função de conformar a ação
política de classe, que o autor reconhece nas estruturas tecnológicas de mediação social e
exercício do poder – particularmente, a mídia.
“O príncipe eletrônico é uma entidade nebulosa e ativa, presente e invisível,
predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os níveis da sociedade,
em âmbito local, nacional, regional e mundial. É o intelectual coletivo e orgânico
das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em escala
nacional, regional e mundial, sempre em conformidade com os diferentes
contextos socioculturais”12

Deste modo, a mídia coexiste não só como aparelho privado de hegemonia (o que
não deixa de ser), mas, em um grau bem acima, como o próprio hegemon desta estrutura de
dominação. Mais que isso, como ressalta o autor, tal poder é exercito em âmbito “regional e
mundial”, ou seja, ultrapassando os limites do Estado-nação aos quais o ordenamento
político-jurídico burguês estava historicamente confinado ao longo da modernidade13. No
entanto, tanto quanto a sociedade civil é espaço de luta, também a mídia é um locus onde
mais de uma classe e mais de um discurso travam disputa constante pela prevalência de
seus valores. Pois, para Ianni, “é óbvio que o príncipe eletrônico não é homogêneo nem
11
Ianni distingue o ´intelectual coletivo’ do ‘intelectual orgânico’ gramsciano. Enquanto este tem a função de
organizar a visão de mundo de uma classe em discurso coerente, o intelectual coletivo estaria um passo atrás,
mais na função de leitura dos interesses e demandas do que da escritura de sua expressão de classe. Tanto
que, logo adiante, o autor chama o Príncipe Eletrônico de intelectual ‘coletivo’ e ‘orgânico’ ao mesmo tempo.
12
IANNI, Octavio. op.cit., p.148
13
O que é, indubitavelmente, o caso do GDA: uma aliança entre capitalistas que ultrapassa fronteiras.

14
monolítico, tanto em âmbito nacional como mundial”, além de sofrer “a competição
evidente ou implícita entre os meios de comunicação de massa” (2003; 148).
Assim como Gramsci dizia que o grupo dirigente deve fazer “sacrifícios de ordem
econômico-corporativa”, Ianni enfatiza que a mídia também joga com esta polifonia
discursiva (para usar um termo bakhtiniano). Os jornais não apenas empregam profissionais
de diferentes matizes ideológicos, como abrem suas páginas para colunistas, articulistas e
entrevistados que não coadunam ou até investem frontalmente contra seus interesses, sem
que este processo se faça em detrimento de sua característica fundamental: a de conferir
organicidade à visão de mundo das classes dominantes.
“(...) São inúmeros os intelectuais de todos os tipos, jornalistas, fotógrafos,
cineastas (...) que diversificam, pluralizam, enriquecem e democratizam a mídia.
Há jornais, revistas, livros, rádios, televisões e outros meios que expressam
formas e visões alternativas do que vai pelo mundo, desde o narcotráfico e o
terrorismo transnacionais às guerras e revoluções, dos eventos mundiais da
cultura popular aos movimentos globais do capital especulativo. (...) Em geral, no
entanto, o príncipe eletrônico expressa principalmente a visão do mundo
prevalecente nos blocos de poder predominantes, em escala nacional, regional e
mundial, habitualmente articulados.”14

Em seu estudo sobre a articulação internacional das burguesias do Primeiro e do


Terceiro Mundo ao longo do século XX, Dreifuss (1986) resgata e analisa documentos que
jogam luz no modo como as classes dominantes, especificamente no contexto da América
Latina, fazem uso da mídia como seu “intelectual coletivo” e aparelho de hegemonia. Além
do controle econômico, as burguesias atuam também na produção (e co-produção) de
conteúdo para a imprensa, gerando textos e utilizando a “pluralidade”15 de opiniões como
fachada para a forja de consenso. De acordo com o autor,
“agir sobre a mídia era relativamente fácil, já que estes grupos, compostos
basicamente de industriais, banqueiros e grandes comerciantes, detinham o
controle do grosso dos anúncios e, portanto, da fonte de renda dos grandes jornais
e das estações de rádio e televisão, além de fazerem parte das poderosas
associações privadas de propaganda. As elites orgânicas também alimentavam a
mídia com informes e comentários, além de terem construído redes de apoio entre
os próprios jornalistas.”16

14
IANNI, Octavio. op.cit., p.148
15
Note-se que “pluralidade” é o primeiro dos pré-requisitos listados por Santuário (2002; ver acima) para
pertinência ao GDA.
16
DREIFUSS, René. A Internacional Capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional (1918-
1986). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986. p.126

15
Ainda que seja reduzida durante os períodos de autoritarismo, a “pluralidade” (real
ou aparente) é um valor estratégico para o exercício do poder hegemônico. No contexto da
democracia burguesa formal, assume importância ainda mais evidente.
“Utilizando uma expressão oca e surrada – que só serve como imagem e não
como conceito –, a elite orgânica seria um agente ‘relativamente autônomo’,
vinculado em termos político-ideológicos – e não mecânicos – às classes e grupos
que compõem sua matriz social. A ‘qualidade orgânica’, isto é, o grau de conexão
dessa elite com os grupos sociais matriciais deverá variar de acordo com a
conjuntura na qual esta entidade ‘relativamente autônoma’ se encontra. O termo
‘relativo’ acentua a conexão com a base social. O termo ‘autonomia’ enfatiza
neste caso a capacidade de manobra das elites orgânicas, que dentro de um certo
espectro, buscam adequação e ajuste às diversas condições e circunstâncias.”17

É esta particularidade que explica, no caso dos jornais participantes do GDA, a


mobilidade de posições dentro de um arcabouço genérico de conservadorismo. Em outras
palavras, é tal “autonomia relativa” que possibilita aos órgãos de mídia transitar entre
diferentes pontos do espectro ideológico, aproximando-se circunstancialmente de uma
posição de classe, bandeira ou outro engajamento que seja de caráter temporário, sem
perder a essência de porta-voz de classe.
Em sua análise, Dreifuss demonstra que, além de ter o Estado (ampliado) como seu
“comitê executivo” para a administração de todos os assuntos que lhe dizem respeito, as
burguesias dos países desenvolvidos se associam em entidades que ele denominou “elites
orgânicas”. Trata-se de instituições nas quais capitalistas (pessoalmente, na figura de
proprietários de grandes conglomerados e seus altos executivos) estabelecem fóruns para
debate e definições de diretrizes comuns para a ação político-ideológica e econômica.
Dreifuss identificou como exemplos de tais elites orgânicas, nos anos 1980, órgãos como o
Council for Economic Development (CED), nos EUA, o Political and Economic Planning
(PEP) no Reino Unido, os Zaikai no Japão e o CEPES na Europa Ocidental – a maioria
deles com presença extensiva às respectivas áreas de influência de suas potências, como
África, sul da Ásia e América Latina.
Adotando a nomenclatura de Dreifuss, identificamos o GDA também como uma
entidade de “elite orgânica”, com atuação concentrada no setor da comunicação e área de
ação restrita às Américas.

17
idem, p.25

16
No entanto, embora à primeira vista ou por um simplismo tais entidades possam
parecer meras extensões ou tentáculos de “matrizes” sediadas nos centros do capitalismo
global, as elites orgânicas do Terceiro Mundo, ditas “secundárias” pelo autor, operam com
um grau de autonomia que não pode ser desprezado.
“As elites orgânicas dos países avançados mantêm estreita conexão
organizacional, laços ideológicos e vínculos pessoais com uma ampla gama de
congêneres latino-americanas, formando uma verdadeira internacional dos
empresários. Mas essas elites orgânicas latino-americanas não se constituíram
nem agem simplesmente como ‘sucursais’ ou extensões mecânicas de
organizações congêneres do eixo Norte-Norte, pois detêm ampla capacidade de
ação política independente.”18

Qual seria, então, a função deste “segmento de liderança” da burguesia, tomando


especificamente aquele empenhado no setor da comunicação de massa? A resposta é dada
pelo próprio Dreifuss:
“A elite orgânica se responsabiliza pela formulação e desenvolvimento de um
discurso político-ideológico para o conjunto das classes dominantes, apresentado
não só como de interesse coletivo do capital mas até da própria Nação. Neste
sentido, a elite orgânica é o agente ideológico e político de uma força social,
responsável imediato por seu ‘ser de classe’ e pela formação de uma ‘consciência
de classe’ eficaz e efetiva.”19

Ou, na interpretação de Ianni:


“O que singulariza a grande corporação da mídia é que ela realiza limpidamente
a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em democracia, do
consumismo em cidadania. Realiza limpidamente as principais implicações da
indústria cultural com a produção e reprodução de capital; e operando
decisivamente na formação de mentes e corações, em escala global.”20

Na mesma linha de raciocínio, Ceceña (2005) afirma que “o terreno mais essencial
de construção da hegemonia é, sem dúvida, o epistemológico” (2005; 41), já que “as
hegemonias sustentam-se em construções mentais”, trabalhadas incessantemente por uma
mídia que se atualiza e emite suas mensagens não mais diariamente, mas a cada minuto ou
segundo, em tempo real. E que, quanto mais apta estiver uma classe a “universalizar sua
concepção de mundo”, mais facilmente consolidará sua dominação.
“A proposta gramsciana, nesse sentido, leva a se conceber a hegemonia como a
capacidade para generalizar uma visão de mundo, capacidade que se nutre tanto
18
DREIFUSS, René. op.cit., p.106
19
idem, p.26
20
IANNI, op.cit., p.152

17
da pertinência argumentativa do discurso e de sua similitude com as expressões
visíveis da realidade (ou sua capacidade para visualizar as expressões ocultas),
como das manifestações de força que provêm das condições objetivas nas quais
têm lugar as relações sociais, apareçam estas sob formas explícitas ou somente
sob formas disciplinares ou indicativas.”21

Ao discutir a categoria gramsciana de “sociedade civil” como âmbito de luta pelas


políticas de comunicação, Murilo César Ramos (2007) critica a limitação do uso deste
conceito e chama a atenção para o fato de que, num contexto em que a legitimidade do
Estado como avalista de liberdades é posta em xeque, corre-se o risco de deixar tal papel
unicamente para o mercado. E que tal transferência, se ocorrer, pode vir a ser um grande
perigo para os atores contra-hegemônicos da comunicação.
O autor afirma que “em seu tempo, Gramsci via a sociedade civil, estruturada pelo
que chamou de aparelhos privados de hegemonia, como alternativa viável de produção de
novas hegemonias emancipatórias”. Estas seriam permitidas pela existência de um “relativo
equilíbrio entre esses aparelhos”, o que permitia crer na possibilidade de “produção de
consensos emancipatórios pela via de uma cultura e uma prática política revolucionárias, ao
alcance de um proletariado socialmente majoritário e politicamente educado, graças ao
partido de massas – o moderno Príncipe” (2007; 37).
“O que Gramsci não antecipou foi a rápida e progressiva modificação da
imprensa; os jornais de opinião logo perderiam espaço acelerado para os jornais
de massa, comerciais, e, em pouco tempo mais, século XX adentro, para um rádio
e uma televisão igualmente massificados e ainda mais dominados pelo
financiamento comercial atrelado ao consumo capitalista e por conteúdos de lazer
catártico tão mais atraentes quanto fossem seus conteúdos ideologicamente
alienantes.”22

Ramos sugere que, se fosse desenhada uma hierarquia dos aparelhos privados de
hegemonia atuantes no contexto do capitalismo avançado, ela seria da seguinte forma, em
escala decrescente de “capacidade de projeção de poder”:
1.“a Empresa, ou seja, o conjunto ideológico dos preceitos que conformam o que
também chamamos de mercado”
2.“as Instituições de comunicação, ou, como tratamos mais comumente, a Mídia”
21
CECEÑA, Ana Esther (org.). “Estratégias de Construção de uma Hegemonia sem Limites”. in: Hegemonias
e Emancipações no Século XXI. Buenos Aires: CLACSO Livros, 2005. p.37
22
RAMOS, Murilo César. “Sobre a importância de repensar e renovar a idéia de sociedade civil”. in:
RAMOS, Murilo César & SANTOS, Suzy dos (orgs.). Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas.
São Paulo: Paulus, 2007. p.37

18
3.“o Grupo, conjunto de associações pessoais que mais influenciam nossos
comportamentos”
4.“a Família”
5.“as Igrejas”
6.“a Escola”
7.“o Sindicato ou Associação, de trabalhadores ou empresariais”
8.“o chamado Terceiro Setor”

O fato de a mídia ter colocação no alto da escala é justificado, para Ramos, pela
singularidade de ser “a produtora e disseminadora de conteúdos jornalísticos, informativos
em geral, e de entretenimento, embebidos em sua virtual totalidade da lógica absoluta do
consumo, que é a principal força ideologicamente reprodutora do capitalismo” (2007; 39).
“Em outras palavras, a Mídia é, no sentido teórico gramsciano que aqui se aplica
à análise de suas funções socioculturais e político-econômicas, parte integrante, e
fundamental, da sociedade civil.”23

Afinal, é “na idéia de uma sociedade civil superestrutural, lugar da ideologia e da


cultura, da produção de consensos e hegemonias”, que se estende “um potente caminho
atual de embate contra a doutrina neoliberal e seu apelo à pureza da técnica e de uma
ciência econômica incontestável”.
“Idéia que não é aderente apenas ao campo de estudo e pesquisa da comunicação,
mas que encontra neste uma aderência singular, pela centralidade que têm hoje as
instituições de comunicação, mais comumente conhecidas como mídia, na
produção, distribuição, circulação e consumo de velhas hegemonias.”24

Não é surpreendente verificar, portanto, que os objetivos manifestos do Grupo de


Diarios América, já examinados, são perfeitamente coerentes com as funções do Príncipe
Eletrônico conceituado por Ianni e com as das elites orgânicas identificadas por Dreifuss.
Quando o consórcio fala em “velar pela independência”, entendemos o predomínio do capital
privado em relação ao Estado. Quando se propõe a “manter credibilidade entre os leitores” e
“liderança de opinião”, compreendemos claramente o papel da liderança intelectual-moral
inerente à persecução da hegemonia. E, finalmente, quando promete “deter o domínio dos

23
idem, p.39
24
RAMOS, op.cit., p.47

19
mercados publicitários”, “fortalecer o intercâmbio de conteúdos jornalísticos e editoriais” e
“entregar um serviço eficaz a anunciantes que requeiram publicações em mais de um país”,
não temos como deduzir outra idéia senão o estímulo ao monopólio25.
A concentração promovida pelo consórcio se dá, entre outras formas, por meio do
incentivo à repetição de conteúdos publicitários. Por exemplo: embora o La Nación chegue
a cobrar 52.631,00 pesos argentinos por um anúncio de página inteira (31,8 x 52 cm
standard) na edição dominical, o GDA oferece desconto de até 20% se o anunciante o
reproduzir em todos os jornais do grupo (aplicado, nesse caso, a cada um dos respectivos
preços dos demais jornais).
Para financiar tais operações, o grupo apela para a captação de recursos não só entre
os países dos jornais que o compõem, mas também fora deste escopo. Desde 2005, os
agentes publicitários do GDA são os escritórios Publicitas/Charney Palacios (para a
América Latina, exclusivamente), com sede em Miami, enquanto a representação comercial
“mundial” é detida pela também norte-americana Multimedia, Inc. (a mesma empresa
agente das Organizações Globo para anunciantes estrangeiros). Esta estratégia de
financiamento reflete o atendimento mútuo de interesses tanto dos centros do capital global
(EUA, Europa Ocidental, Japão) quanto aos das periferias como a América Latina, uma
dinâmica historicamente constituída.
“Durante as décadas de 50 e 60, enquanto funcionavam como motores da
integração econômica da Europa Ocidental através da formação da Comunidade
Econômica Européia (CEE), as elites orgânicas européias e norte-americanas
passaram a dar maior atenção à questão do ‘desenvolvimento’ na ‘periferia’ da
economia mundial. E o fizeram através da ação das empresas multinacionais e do
apoio político e econômico aos governos e às elites modernizante-conservadoras,
consideradas ‘pró-ocidentais’, que favoreciam a transnacionalização dos
mercados, das estruturas produtivas e dos circuitos financeiros.”26

Para criar o ambiente propício a essa modernização conservadora (ressalte-se que o


autor se concentra nos anos 1950-60, antes do período dos regimes militares) e à posterior
“abertura” política econômica à chamada globalização (décadas de 1980-90), as elites
orgânicas e suas mídias tiveram de se empenhar na construção de um “consenso forjado” (o
que seria mais tarde chamado de “pensamento único”).

25
Também claramente sugerido no slogan do grupo: “Onze jornais. Onze países. Uma só fonte”.
26
DREIFUSS, René. op.cit., p.106

20
“O esforço das elites orgânicas latino-americanas visava à projeção de um conjunto
de interpelações ideológicas, a serem introjetadas como ‘senso comum’, buscando a
formação de consenso no interior das próprias classes dominantes, para realizar
modernizações conservadoras em seus países. Com o objetivo de ampliar seu
esforço de classe, as elites orgânicas procuraram cooptar quadros de destaque das
classes e grupos subalternos, nos campos político-partidário, intelectual, artístico e
profissional. Paralelamente, trataram de desarticular e desagregar grupos
subordinados para extrair, produzir e configurar o seu consentimento. Quando
falhavam nos recursos repressivos ou ideológicos, as elites orgânicas utilizavam
recursos coercitivos, através de grupos de ação (privados) ou da instrumentalização
de mecanismos estatais (militares ou policiais).”27

Um exemplo de presença recorrente no discurso conservador é o apelo à aplicação


das instituições coercitivas do Estado propriamente dito (stricto sensu, sociedade política),
não apenas lembrando que a este cabe o monopólio da violência, como cobrando que seja
posta em prática, em assuntos como segurança pública, defesa das fronteiras e a
manutenção da estrutura de propriedade agrária no campo. Não só no Brasil, mas em outros
países da América Latina, é freqüente a defesa feita pela imprensa (inclusive por associados
ao GDA) de recursos como a presença militar em comunidades de baixa renda para conter
“desordens”, o abate a aviões “suspeitos” de narcotráfico, a ação de tropas de choque contra
ocupações de terra por trabalhadores rurais e mesmo – como recentemente no caso
Colômbia-Equador, em março de 2008 – a violação territorial de um país vizinho sob o
pretexto de combater guerrilhas. Verifica-se, assim, a operação em relação estreita e
dialeticamente constituída entre o Estado e o Estado ampliado, bem como entre os
aparelhos privados de hegemonia e os aparelhos coercitivos.
Não deve ser coincidentemente que o GDA não se instalou nos países latino-
americanos onde de fato a correlação de forças permitiu a revolução no modelo leninista
(Nicarágua, El Salvador, para não mencionar Cuba, onde ainda seria impossível estabelecer
um tentáculo), mas somente naqueles “historicamente estáveis” – ou seja, cujas burguesias
têm experiência e savoir-faire na construção e manutenção de seu status hegemônico.
Não por acaso, também, vários dos jornais-membros são ligados a figuras que
desempenharam o papel de intelectuais orgânicos das elites latino-americanas, redigindo as
primeiras obras de história nacional, biografias e tratados que formaram o cânone da
historiografia e da construção da identidade nacional (do ponto de vista da alta burguesia).
O argentino Bartolomé Mitre, por exemplo, fundador do La Nación, foi autor de biografias
27
idem, p.119

21
dos libertadores San Martín e Manuel Belgrano, além de traduzir “A Divina Comédia” de
Dante Alighieri para o espanhol platino. No Chile, a mesma função foi desempenhada por
Benjamin Vicuña MacKenna, filho de Pedro Félix Vicuña, que viria a ser o fundador do El
Mercurio original, de Valparaíso. Vicuña MacKenna foi biógrafo de Diego de Almagro,
Diego Portales e outras figuras definidoras na história chilena. E, no Uruguai, o papel
coube a Washington Beltrán, co-fundador de El País.
Assim como as identidades nacionais, o conceito de América Latina tem sua origem
no século XIX (fomentada pelo imperialismo francês contra a influência anglo-saxã de
EUA e Reino Unido combinados), remontando à proximidade cultural (primordialmente
lingüística). Hoje, porém, é adotado em geopolítica para designar toda a massa terrestre do
Rio Grande (fronteira entre México e EUA) à Terra do Fogo (extremo sul da Argentina e
Chile), bem como as áreas insulares circundantes (Caribe, Galápagos, Malvinas e outras).
Trata-se de uma região tão ampla e diversa que não é homogênea sequer na formação
tectônica. O rótulo “América Latina e Caribe” (zona de colonização inglesa e holandesa,
predominantemente) é mais útil do ponto de vista de estratégias de mercado, defesa militar
e diplomacia exógena do que descritivo das semelhanças entre os países que o constituem.
Tal idéia de “América Latina” como mercado e não como região cultural (no sentido
de similitudes de manifestação nacional-popular) abre caminho ainda a iniciativas como a
Strategic Marketing International, empresa de consultoria de marketing no mercado de
mídia latino-americana, que oferece serviços a corporações norte-americanas que queiram
“investir” no setor. Na prática, tais consultorias operam como serviços de inteligência
privados, fornecendo a capitalistas dados, análises e previsões, a partir de equipes formadas
por profissionais de origem latino-americana.
“As elites orgânicas da América Latina se beneficiaram do apoio logístico, do
intercâmbio de expertise e de pessoal, da sincronização de atividades, da
alimentação ideológica e política e do reforço de ações das elites orgânicas do
capitalismo avançado. O CED, em particular, sempre proporcionou uma eficaz
coordenação transnacional e apoio logístico a suas organizações congêneres ou
irmãs na América Latina, funcionando como instância de homogeneização
ideológica e política e como assessora da ‘microfísica’ do poder e da ação política
transnacional. Mas não era a única.”28

3. Cooperação internacional em comunicação: uma estratégia “roubada”

28
DREIFUSS, René. op.cit., p.106

22
Embora se apresente como um consórcio corporativo inédito em âmbito regional, a
estratégia do GDA é uma apropriação de propostas defendidas por segmentos da chamada
“mídia alternativa” nas últimas décadas: a cooperação internacional para informação em
nível Sul-Sul, sem dependência de sistemas do Primeiro Mundo, feita de forma
descentralizada, (g)localizada e por livre-associação. Iniciativas como os pools de agências
de notícias latino-americanas (como a ALASEI, ASIN, CANA, além das “particulares” IPS
e Prensa Latina) ou o de países não-alinhados (o NANAP) foram criadas nos anos 1970
mas não vingaram. Parte deste insucesso se deveu a ataques e táticas de deslegitimização e
inviabilização econômica levadas a cabo justamente pelos conglomerados de mídia,
inclusive do Terceiro Mundo. Agora, a mesma “grande imprensa” adota a idéia antes
atacada para construir sua própria associação que ponha em andamento sua estratégia de
hegemonia.
Não se pode esquecer, contudo, que a estratégia de cooperação regional responde
ainda à demanda por “soberania capitalista” em um mercado historicamente dominado por
empresas transnacionais – as agências de notícias sediadas no Primeiro Mundo. Durante
mais de um século, o subcontinente latino-americano ficou dependente de tais empresas
estrangeiras fornecedoras de informação internacional. Num primeiro momento (1875-anos
1950), a região ficou submetida a um acordo corporativo entre as agências Havas (francesa)
e Reuters (britânica), alterado mais tarde com a entrada das estadunidenses AP e UPI
(FERREIRA, 1982). O oligopólio perdurou até o início dos anos 1990, quando novas
tecnologias e regulações de mercado permitem a entrada de outras agências (EFE
espanhola, ANSA italiana, etc.). Assim, competir com estas corporações pelo mercado
latino-americano é também um dos objetivos da associação regional de jornais.
“(...) A filiação do jornal ao Grupo de Diários das Américas (GDA) contribui para
a pluralização das fontes utilizadas na construção de notícias sobre a América
Latina. A publicação regular de matérias oriundas do Pulso Latino-Americano,
editado pelo GDA, ou, ainda, a constituição de redes de colaboração entre os
profissionais que atuam nos cinco jornais filiados ao GDA favorecem, na editoria
Mundo de Zero Hora, uma certa relativização tanto da hegemonia exercida pelas
agências de notícias norte-americanas e européias como da limitação do envio de
repórteres ao local dos acontecimentos.”29

29
COGO, Denise. “A midiatização das migrações contemporâneas no contexto brasileiro e as matrizes
culturais de construção da União Européia e do Mercosul”. in: Anuário Internacional de Comunicação
Lusófona 2005. São Paulo: Intercom, 2005. p.16.

23
Como caso contraposto ao do GDA, Cabral (2008; 73-81) examina a estratégia
empregada por outro conglomerado brasileiro, o Grupo Abril, em sua tentativa (neste caso,
fracassada) de internacionalização. Sucessivas investidas para penetrar nos mercados de
Colômbia, Argentina e até Portugal e Espanha resultaram infrutíferas. Segundo a autora,
apesar de ser “o único grupo midiático brasileiro que surge com características
internacionais, com conteúdos e proprietários estrangeiros”, o grupo apostou em uma
estratégia de “trazer o mundo para dentro do Brasil e não de sair”, que se revelou limitada.
As causas do insucesso teriam sido, primordialmente, “falta de planejamento”,
desconhecimento sobre “as estratégias comerciais” e costumes de cada país30 e problemas
com parcerias comerciais e estratégicas estabelecidas com empresas locais. Ressalte-se que
é neste último ponto que a estratégia de construção de hegemonia do GDA mais se reforça:
um sistema de parcerias sem concorrências a partir de conglomerados já estabelecidos
como dominantes.
Fracasso semelhante ocorrera antes com a edição hispano-americana da revista O
Cruzeiro, do grupo Diários Associados (de Assis Chateaubriand), na década de 1950.
Lançada na Argentina, no Chile e no Peru, a revista não conseguiu conquistar público leitor
e, pelo contrário, angariou antipatias graças à visão estereotipada com que representava os
próprios países-alvo.
Com o processo de globalização econômica e financeira, as barreiras para os fluxos
de movimentação de capital (incluindo aí verbas publicitárias) foram paulatinamente
dissolvidas, tornando o dinheiro o objeto mais “global” do novo modo de produção (ainda
que as burguesias continuem essencialmente nacionais). Este mesmo movimento, então,
impele as grandes corporações de mídia a buscar ampliar suas esferas de poder – do
contrário, correm o risco de perder terreno mesmo em âmbito nacional.
“A manutenção da hegemonia num contexto no qual as inovações tecnológicas
nas comunicações permitiram um entrelaçamento muito estreito entre povos e
processos sociais, econômicos e políticos de regiões antes dissociadas, supõe
estratégias capazes de englobar essa diversidade e de se situar num nível de
articulação superior”31

30
A autora relata como a Abril teria sido forçada a abandonar o mercado argentino em 2000 graças a um
boicote exercido pela máfia de distribuidores de revistas por ter tentado impor seu modelo de assinaturas,
bem-sucedido no Brasil mas pouco habitual na Argentina.
31
CECEÑA, op.cit., pp.43-44.

24
O papel da cooperação entre mídias de diferentes países é tão relevante na
comunicação internacional que o próprio Gramsci dedicou algumas linhas especificamente
a este tema, em sua análise da imprensa italiana do início do século XX:
“Não se pode subestimar os colaboradores estrangeiros, mas a colaboração
estrangeira deve ser orgânica, e não antológica e esporádica ou casual. Para que
seja orgânica, é necessário que os colaboradores estrangeiros, além de
conhecerem as correntes culturais de seu país, sejam capazes de ‘compará-las’
com as do país no qual a revista é publicada, isto é, conheçam também as
correntes culturais deste outro país e compreendam sua ‘linguagem’ nacional.
Portanto, a revista (ou seja, o diretor da revista) deve formar também seus
colaboradores estrangeiros a fim de alcançar a organicidade.”32

Para Gramsci, dadas as diferenças culturais entre um país e outro, “é mais importante
o tipo de colaborador afinado” com a publicação e seu público leitor, que saiba “traduzir
um mundo cultural na linguagem de outro mundo cultural, pois sabe encontrar as
semelhanças mesmo onde elas parecem não existir e sabe descobrir as diferenças mesmo
onde parecem existir apenas semelhanças” (1968; 181).
O fato é que, na cobertura internacional, o terreno de luta por hegemonia é
particularmente favorável à classe dominante pois, ao lidar com objetos, fatos e personagens
distantes da realidade do leitor, a mídia tem maior facilidade em manipulá-los para organizar
sua própria visão de mundo. Além disso, na medida em que nesta editoria muitas vezes se
prescinde do repórter próprio in loco (o que seria o papel do correspondente ou enviado
especial), “o Jornalismo Internacional apresenta uma tendência ‘natural’ a pré-mediatizar o
trabalho jornalístico (via apuração por outras mídias), realizando uma permanente polifonia e
reproduzindo discursos sobre discursos de outrem. Neste processo, corre permanente risco de
negligenciar contextos, deslocar declarações e perenizar visões pré-concebidas” (AGUIAR,
2008; 19). Por isso, é na comunicação internacional que a necessidade de construção de uma
contra-hegemonia se mostra mais premente.
As dificuldades para o êxito deste processo, no entanto, são inúmeras. Para além da
questão estrutural-material (os recursos disponíveis para a mídia corporativa são
incomparáveis aos das mídias ditas “alternativas”), há que se considerar a enorme
diversidade de matizes ideológicos, filosóficos e táticos entre as correntes que compõem o
campo contra-hegemônico. Conciliar suas agendas diversas pode exigir um esforço tão
32
GRAMSCI, Antonio. Intelectuais e Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
p.181

25
grande ou ainda maior que se contrapor aos discursos das classes dominantes. É deste
esforço, porém, que falava Gramsci em sua definição do papel do “intelectual orgânico”:
partir da realidade material das classes subalternas para organizar uma cultura que se
contraponha à visão de mundo dominante.
Desta forma, enquanto o pool da mídia corporativa demonstra pleno sucesso em
alcançar seus objetivos, os sistemas de cooperação para a comunicação contra-hegemônica
ainda têm muito que se organizar, estruturar-se, articular-se e definir uma estratégia
coerente – tarefa para a qual o pensamento gramsciano pode ser de extrema utilidade.

4. Conclusão
Como verificado, em cada um dos países em que o GDA atua, o jornal integrante do
consórcio exerce hegemonia mercadológica e comunicacional (como referência informativa
das elites) ou integra um conglomerado que a exerce. Assim, uma das estratégias do
consórcio é precisamente estender tal hegemonia para o âmbito regional na América Latina,
a partir da associação intercorporativa (capitalista). Na medida em que as mídias
constituem, individualmente, aparelhos privados de hegemonia em nível nacional, passam a
almejar, uma vez associadas, o status de aparelho privado de hegemonia internacional,
dentro do subcontinente latino-americano.
Para entender como se dá tal processo de construção de hegemonia, é imperioso,
segundo Dreifuss, compreender “como uma classe economicamente dominante se organiza
estratégica e taticamente para desenvolver a ação política necessária e assegurar a
consecução dos seus objetivos: a direção política e ideológica da sociedade no duplo
exercício gramsciano de força e autoridade, de dominação e de hegemonia, de violência e
civilização.”33
“A questão de exercício do poder de uma classe não se esgota com a história de
confabulações e conchavos, de eleições e diretrizes de governo, nem a luta
política é só aquela ostensiva, que se trava nos partidos e através destes ou das
mobilizações militares e de rua. Estes são somente alguns dos recursos e
momentos da política. Luta das mais importantes é aquela que se trava durante o
preparo para a ação, pela potencialização dos atores, no decorrer da
‘normalidade’, no dia a dia da intervenção ‘fria’ e persistente no conflito de
classes, na ação diária, constante, sistemática, nos campos ‘frios’ da política.”34

33
DREIFUSS, René. op.cit., p.23
34
DREIFUSS, René. op.cit., p.22

26
Longe da perspectiva mecanicista que atribui relação fixa de causa-e-efeito entre
superestrutura e infraestrutura, compreende-se que as condições materiais de produção e os
aspectos culturais da sociedade determinam-se reciprocamente, em um processo dialético.
É necessário lembrar que “a economia determina a política condicionando o âmbito de
alternativas que se colocam à ação do sujeito” (COUTINHO, 1981; 75), mas sob a forma
de uma tensão dialética, biunívoca e triangular. É Gramsci quem lembra que
“não se pode falar de elite-aristocracia, de vanguarda, como de uma coletividade
indistinta e caótica, na qual – pela graça de um misterioso espírito santo, ou de
qualquer outra deidade oculta misteriosa e metafísica – penetre a graça da
inteligência, da capacidade, da educação, da preparação técnica etc.; (...) A
coletividade deve ser entendida como produto de uma elaboração de vontade e
pensamento coletivos, obtidos através do esforço individual concreto, e não como
resultado de um processo fatal estranho aos indivíduos singulares”35

Uma vez que a função do intelectual orgânico é conferir organicidade à cultura das
classes subalternas, a mídia é capaz de exercer tal papel, mas se faz necessário lembrar que
este processo se dá como dialeticamente construído, não mecânico. Isto significa, neste
caso, que a iniciativa do GDA exerce a “unidade entre a teoria e a prática” que Gramsci
identificou como imprescindível para o sucesso do poder hegemônico.
“Estas elites orgânicas latino-americanas foram de capital importância na luta
política e ideológica que os novos setores empresariais, militares, burocráticos e
técnicos travaram no continente. Controlavam vastos recursos e representavam
poderosos interesses, apoiando a modernização-conservadora da América Latina,
a internacionalização das economias de seus respectivos países e a contenção dos
movimentos populares.”36

Em resumo, atendiam a um projeto político só concretizado a partir do processo de


redemocratização de meados dos anos 1980 em diante, quando, ironicamente, os regimes
autoritários (militares) apoiados por estas mesmas elites foram substituídos por governos
civis reformistas.
Para Moreno Gálvez (2007), uma aliança como o GDA é possível no campo da
comunicação hoje porque, no contexto da economia globalizada própria do capitalismo
avançado, “as regiões periféricas têm a oportunidade de superar sua posição de
subordinação a partir da adoção de um modelo de desenvolvimento de acordo com as novas

35
GRAMSCI, op.cit., p.168
36
DREIFUSS, René. op.cit., p.113

27
coordenadas imateriais”, ainda que enfrentando “limitações próprias do modo de
desenvolvimento capitalista” que são expressadas basicamente de duas maneiras:
“Por um lado, existe uma profunda diferença entre o processo de incorporação à
sociedade da informação entre as regiões centrais, que buscam manter sua
posição privilegiada e sua hegemonia produtiva herdadas do fordismo, e as
regiões periféricas que crêem terem encontrado uma nova via para o
desenvolvimento. (...) Em segundo lugar, as regiões periféricas têm de fazer
frente também à contraditória lógica capitalista da privatização do conhecimento,
que aprofunda a dependência daquelas ao obrigá-las a pagar pelos saberes que
não é capaz de produzir ou, ainda mais grave, a suportar o pagamento de patentes
pelo uso de seu próprio conhecimento. Estas duas limitações vão afetar de
maneira determinante o modelo de desenvolvimento que adotarão as regiões
periféricas, destinados em sua maioria a ter que jogar com suas condições
trabalhistas e ambientais para poder se integrar nos fluxos econômicos
transnacionais.”37

A integração nos novos fluxos econômicos, como visto com Ceceña (2005), Ianni
(2003) e Ramos (2007), é fundamental para que a mídia corporativa mantenha a hegemonia
já conquistada. Dentro da estratégia capitalista, isso se faz, quando necessário, a despeito de
padrões deontológicos do jornalismo. Já para Gramsci estava clara a noção de que os
objetivos corporativos (econômicos, estruturais) têm prioridade sobre os jornalísticos
(idealistas, superestruturais) dentro da rotina de produção da imprensa. “É uma observação
generalizada a de que, num jornal moderno, o verdadeiro diretor é o diretor administrativo e
não o diretor da redação”, comenta (1968; 164). Assim, muito mais que possibilitar
intercâmbio de matérias entre países distintos, fica evidente que a função primordial da
“parceria” é comercial.
Uma aliança como o Grupo de Diarios América é possível no campo da
comunicação atualmente porque a nova configuração econômica do capitalismo tende à
concentração, principalmente em escala transnacional. Seu sucesso ou fracasso dependerá
não só de suas próprias ações, como também do contexto externo. No entanto, desde já é
possível e necessário compreender que tais iniciativas não surgem por nobres e amistosos
desejos de “integração” e “colaboração” voluntárias, mas de acordo com estratégias bem
definidas e arraigadas com estruturas consolidadas de manutenção do poder – o que aqui se
tentou mostrar.

37
MORENO GÁLVEZ, Francisco Javier. “Políticas de comunicação e desenvolvimento regional: desafios
diante da sociedade do conhecimento”. in: RAMOS, Murilo César & SANTOS, Suzy dos (orgs.). Políticas de
Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. pp.244-245

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