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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que elevemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
28

ANO III
ÍNDICE

PáB.
L FILOSOFÍA E RELJGIAO

1) "Pódese crer que certas coisas déem sorte e que outras


tléem azar ?

E as correntes de oracoes (a S. Judas Tadeu, a Sto. Anto


nio...) seráo realmente eficazes ?
Porque nao valorizar essas coisas e práticas ? Se -nao fazem
bem, tampouco farao mal !" gl

II. DOGMÁTICA

2) "Quem eram as diaconisas da Igreja antiga ?" 100

m. SAGRADA ESCRITURA

S) "Onde se encontram os corpos de Henoque e Elias arre


batados aos céus ? '

Éssex doix juntos voltnrao a Térra para morrer ?" ios

i) "Que se pode dizer de seguro sobre Verónica e o véu com


o qual esta santa mulher terá enxusado a face do Divinjo Mostré?" 112

IV. MORAL

5) "Sou bastante maduro para escolher e criticar as minluis


leituras .'

As proibigoes da Igreja neste ponto sao pouco condizentes


com a menialidade do séc. XX 1" us

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) "Que sentido tem a clausura dos mosteiros e conventos


femininos ?

Nao significa depreciacáo da mulher, devida principalmente


ao Concilio de Trento ?

Há também quem julgue a clausura nociva á saúde e contraria


as tendencias de noasos tempos I" .'

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano III — N? 27 — Marco de 1960

I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

AMIGO DO MISTERIO (Belo Horizonte) :

1) «Pode-se crer que certas coisas déem sorte t que


outras déem azar ?
a E as correntes de oracoes (a S. Judas Tadeu, a Sto. An
tonio...) serao realmente eficazes ?
Porque nao valorizar essas coisas e práticas ? Se nao
fazem bem, tampouco íarao mal!»

É, sem dúvida, muito comum na vida cotidiana ouvir-se


dizer que «viajar numa sexta-feira 13 dá azar», mas que «fer-
radura de cávalo posta atrás da porta de casa dá sorte». Há
pessoas que nao se querem sentar a u'a mesa de treze con
vivas, mas procuram sequiosas um trevo de quatro fólhas ;
quando querem tomar urna decisáo, abrem a S. Escritura e
póem o dedo sobre urna frase qualquer, á qual atribuem o
valor de. oráculo divino para o caso... Estas e semelhantes
práticas constituem um tipo de religiosidade que se costuma
chamar «superstigáo» e que em nossos dias vai sendo cada
vez mais comum.
Veremos abaixo o que se há de pensar sobre o assunto,
considerando primeiramente os fenómenos supersticiosos em
si mesmos; a seguir, analisando rápidamente a mentalidade
do homem supersticioso.

1. Porque acontecería tal coisa ?

1. Já que a lingüística é meio assaz oportuno para se penetrar


no conteúdo de um conceito, comecemos por auscultar a etimología
do vocábulo que nos interessa.
«Superstígáo» vem do termo latino «superstitio», que significa
«o excesso» ou também «o que resta e sobrevive de épocas passadas»
Em qualquer accepcáo, porém, designa «o que é alheio á atualidade,
o que é velho ou degenerescente». Transposto para a linguagem re
ligiosa dos romanos pagaos, o vocábulo «superstitio» veio a designar
as observancias de culto arcaicas, populares, nao mais condizentes
com as normas da Religiáo oíicial vigente.
Servio, por exemplo, comentador da «Eneida» de Virgilio diz
que se dava o nome de «supersticiosas» a certas mulheres que atin-
giam idade avancada ; já que sobreviviám a muitas contemporáneas

— 91 —
suas, «superstites erant», isto é, «constituiam o resto ou a sobra...».
E, como essas mulheres ídssem dadas a vas e aberrantes práticas de
piedade, a «superstigáo» veio a coincidir com a religiosidade pouco
esclarecida de pessoas simplonas ou tendentes á decrepitude : cf.
In Aeneid. Vin 183.
O escritor romano Varráo (t 27 a.C.) exprimía milito bem, na
sua linguagem politeista, o que significa essa religiosidade inferior,
quando afirmava que «o supersticioso é o homem que teme os deuses
como inimigos, ao paseo que o homem religioso os reverencia como
pais» (citado por S. Agostinho, De civ. Dei 6,9,2). Quintiliano
iti20 d. CJ, por sua vez, notava que «a supersticao difere da reli-
giáo como o homem que procura por curiosidade difere do homem
que procura por amor» (De inst. orat. VIII 3).
Em suma, vé-se que já entre os romanos pagaos a superstigáo
era tida como urna deterioragao ou contrafagáo da Religiáo. Ora
é com éste mesmo aspecto que cía se apresenta também entre os
cristáos.
Focalizemo-la tal como ela aparece nos países de civilizacáo crista.

2. A expressáo mais comum da supersticáo entre nos


consiste em querer elucidar certos fenómenos (explicáveis pelas
leis da natureza) por causas de índole sobrenatural ou miste
riosa ; introduz-se assim o «pseudo-sobrenatural» ou o «pseudo-
-divino» em objetos e acontecimentos naturais. E note-se bem
que a supersticáo nao prova suas teses, mas supóe, por parte
dos adeptos, piedosa credulidade. O homem supersticioso nao
indaga por que deva haver relacáo de causa e efeito entre
tal agente e tal fenómeno ; ao contrario, ele aceita essa rela-
gáo como fato indiscutível.
3. Ora esta atitude sugere urna observagáo importante:
o homem, dotado de inteligencia como é, nao foi feito para
aceitar as cegas o que se lhe diz ; nem mesmo a mais férvida
prática religiosa pode abstrair de urna base racional ou inte
ligente ; a auténtica Religiáo é sempre o desenvolvimento da
personalidade humana como tal; implica, portante, partici-
pagáo da inteligencia do homem piedoso. É o que nos habilita
a indagar «porque» creriamos ñas associagóes de causa e
efeito que a superstigáo nos aponta; afinal que é que nos
assegura que urna ferradura de cávalo se torna fonte de feli-
cidade para quem a coloca atrás da porta ?... que urna ceia
com treze convivas venha a ser mortal para um dos seus par
ticipantes ?... ou ainda que a quebra de um espélho acarrete
desgrasa para o autor désse desastre ?

Para essas perguntas tres respostas podem ser conjeturadas :


a) a natureza ou a índole mesma dos objetos em jfigo explica
as relacOes de causa e efeito que se lhes atribuem;
b) ou foi o Senhor Deus quem diretamente estabeleceu e revelou
tais relagóes ;

— 92 —
c) ou o demonio (os espirites maus) provocam os efeitos atri
buidos a tais e tais objetos ou acontecimentos.
Analisemos cada urna destas respostas de per si.

a) Nao se poderia dizer que aos olhos da inteligencia


apareja evidente nexo entre «ferradura de cávalo» e «felici-
dade do homem», entre «sentarem-se treze pessoas á mesa»
e «morte de um dos convivas»... Quem considera a esséncia
de cada um désses fenómenos, nao vé embebido na mesma o
vínculo de causa e efeito que se lhes atribui vulgarmente.
Na melhor das hipóteses, verifica-se afinidade extrínseca
e vaga entre os fenómenos que a voz popular relaciona entre si.

Assim, objetivamente íalando, «entrega de urna faca a alguém*


é urna coisa; «ruptura de amizade com essa pessoa» é outra coisa,
por si totalmente independente da anterior. A voz popular, porém,
afirma que «dar urna faca a alguém acarreta ruptura de amizade».
Na base de que o afirma ? NSo na base de afinidade intrínseca, como
se um dos dois conceitos naturalmente evocasse o outro na mente
de quem raciocina, mas apenas na base de urna semelhanca extrínseca,
simbolista, entre faca (instrumento cortante) e corte de amizade.
Dessa semelhanca, porém, é afoito e gratuito concluir que quem
entrega urna faca terá também que cortar urna amizade !... Numa
tal afirmagáo a fantasía toma a dianteira sobre a razáo.
Dizem outrossim que «quem finca um prego, se preserva do mal
e fixa o seu destino para o bem» ! De novo urna semelhanca mera
mente extrínseca, simbolista, funda tal associacao de idéias («fin
car»... «fixár»), desta vez, porém, já em confuto com a sá razáo,
pois esta ensina que nao há destino ou fdrea cega que prevaleca
sobre o Hvre arbitrio do homem ; cf. «P.R.» 3/1957, qu.4.

Observe-se mesmo que as vézes é táo pouco lógica a asso


ciacao de causa e efeito professada pelos supersticiosos que o
mesmo objeto aparece associado a realidades contraditórias.
Assim, por exemplo, o número 13 é tido ora como sinal de
infortunio, ora como símbolo de bom agouro.

É, sim, considerado como símbolo de desgraca, já que treze eram


os convivas da última ceia de Cristo, dos quais Jesús morreu cruci
ficado e Judas Iscariotes se enforcou ; a sexta-feira (dia em que
Jesús morreu) foi conseqüentemente associada ao horror que a cifra
13 provocava ñas gerac5es cristas. Por isto multas pessoas evitam
viajar em sexta-feira 13 ; em alguns hoteis, nao há quarto n» 13,
mas, sim, n* lia ; a numeragáo dos camarotes de teatro omite por
vézes a cifra 13...
Como se vé, a arenca na má sorte do n' 13 parece estar baseada,
ao menos no testemunho da S. Escritura... — Éste testemunho,
porém, é táo arbitrariamente entendido e as observancias que a ele
se prendem sao táo pouco ditadas pela natureza intrínseca das coisas,
que o mesmo número 13 em vastas regiSes da térra (até em países
cristáos) é estimado como símbolo justamente da boa sorte.

— 93 —
O argumento dos otimistas se baseia no íato de que 13 é número
aíim a 4 (1 e 3 dáo 4) ; ora 4 é símbolo de próspera fortuna... Con-
seqüentemente, na India 13 é cifra religiosa muito apreciada: os
pagodes hindus apresen tam normalmente treze estatuas de Buda.
Na China, os disticos místicos dos templos sao encabezados nao raro
pelo número 13. Também os mexicanos primitivos consideravam o
número 13 como algo de santo ; adoravam, por exemplo, treze cabras
sagradas. — Passando asora de novo a ambientes de civilizagao crista
lembraremos que nos EE.UU. da América do Norte o número 13
goza de estima, porque treze eram os Estados que inicialmente cons-
tituiam a uniáo norte-americana; além disto, o lema da Uniáo
(«E pluribus unum») consta de treze letras; a águia norte-americana
está revestida de treze penas em cada asa ; Jorge Washington has-
teou o estandarte republicano com urna salva de treze tiros. Mesmo
em outros países da América e na Europa o n« 13 pode figurar em
medalhas e bibelós como símbolo portador de felicidade; por vézes
as loterías afixam o cartaz : «Hoje sexta-feira 13, dia de boa sorte...»
Os exemplas ácima dáo claramente a ver quanto a associacáo dos
conceitos de sorte e azar com a idéia de 13 é arbitraria. Ninguém,
portanto, se deixará abalar pelos prognósticos espalhados «em nome
do número 13»...

b) Dado que nao haja nexo intrínseco entre determi


nado fenómeno e a causa misteriosa que a superstigáo Ihe
atribuí, poder-se-ia conjeturar que o Senhor Deus tenha re
velado a um vidente que tal ou tal objeto (urna ferradura,
por exemplo) ou tal acontecimento (o encontró com um cor-
cunda ...) acarretam tais e tais conseqüéncias (faustosas ou
desgrasadas).
Qual o ponto de vista do cristáo diante dessa hipótese ?
A pressuposta comunicagáo só se poderia dar mediante
o que se chama «urna revelacáo particular».

Convém aqui recordar a distincáo que a S. Teología laz entre


«revelacáo pública» e «revelacáo particular».
A revelacáo pública é a manifestacáo das verdades que constituem
o patrimonio sagrado da fé ; impñe-se a todos os erlstaos. Com a
morte do último dos Apostólos (Sao Joüo Evangelista, cérea do ano
100), encerrou-se a revelacao pública.
Continua a haver. porém, revelacocs particulares, ou seja, a
comunicacáo de verdades que se dirigem a urna alma só ou a grupos
particulares de fiéis, sem se tornar objeto necessárío da fé de todos
os cristáos. A Igreja nao só admite a possibilidade de tais comuni-
cacOes particulares, mas também deu aprovacáo direta ou indireta a
algumas délas (como as de Lourdes, Fátima, Paray-le-Monial...).
A Santa Igroja, porém, examina com certa soveridade os fenómenos
désse género, os quais devem ser auténticamente comprovados, jamáis
podem ser pressupostos ; como dissemos, o conteúdo dessas comuni-
cacOes minea se tornará objeto obrigatório da fé de todos os erlstaos;
ele só se impoe a quem tenha plena evidencia de que Deus realmente
se manifestou em tal ou tal caso (está claro que quem tivesse essa
evidencia e nao cresse, estaría contrariando a Deus). Cf. «P. R.»
19/1959, qu. 4 e 5.

— 94 —
Donde se concluí que os fiéis háo de ser muito cautelosos
ao admitir pretensas revelacóes divinas feitas a tal ou tal santo
a respeito da eficacia de determinada oracáo ou de determi
nado objeto. Na maioria dos casos em que se apregoam fór
mulas «garantidas» ou «reveladas» pelo Céu, nao há senáo
ilusáo humana e vá superstigáo.

É caitamente isto o que se dá no caso das «correntes de ora-


cóes» (de S. Judas Tadeu, Sto. Antonio...) : o iniciador da corrente
manda transmitir determinada prece a treze pessoas, urna por dia,
durante treze dias consecutivos, predizendo enormes beneficios para
quem o faca, assim como tremendos infortunios para quem o des-
preze. — Trabalho perdido, expectativa sem fundamento !...
Mesmo quando publicadas com o «Imprimatur» ou a aprovacao
de um bispo, tais fórmulas estáo longe de representar o genuino pen-
samento da Igreja. O significado do «Imprimatur» é mais negativo
do que positivo; apenas quer dizer que a autoridade diocesana em
tal ou tal escrito nada vé contra a fé e a moral crista ; disto, porém,
nao se segué que a Santa Igreja se empenhe por fomentar a difusao
das idéias contidas na mencionada obra.
Convém outrossim que os fiéis se abstenham de resolver as suas
dúvidas abrindo aleatoriamente a Sagrada Escritura e tomando como
oráculo divino, para o seu caso, a primeira frase bíblica sobre a qual
ponham o dedo. Deus nao está obrigado a dar resposta no momento
predeterminado pelo homem, passando por vias que já nao sao habi
tuáis ; a insistencia em tal prática poderia equivaler ao que se chama
«tentar a Deus», ou seja, exigir do Senhor grabas extraordinarias.
Quanto ás apregoadas revelac5es obtidas por sonho ou por horós
copo, veja-se respectivamente «P.R.» 16/1959, qu. 2 « 6.

c) Removidas a primeira e a segunda hipótese que ácima


formulamos para justificar as arengas supersticiosas, poder-
-se-ia ainda conceber que o demonio ou os espíritos maus pro-
voquem os efeitos que em linguagem popular sao comumente
atribuidos a tal objeto ou tal acontecimento...
Em resposta a isto, a fé crista observa que o demonio
nao possui direitos definitivamente adquiridos sobre éste mun
do ; o Maligno nao tem poder estável ou garantido sobre algum
dos elementos do universo. Sobre o homem em particular, ele
só consegue prevalecer caso o individuo se entregue volunta
riamente a sua acáo. É a Providencia Divina, e nao Satanaz,
quem governa o mundo. Ora a Providencia (tendo em vista
a santificagáo da criatura humana) pode permitir que o Ma
ligno assalte os nossos bens espirituais e materiais ; mas nao
há de antemáo indicios de que Ela o permitirá, quando, por
exemplo, treze pessoas se assentarem á mesma mesa ou quando
um automobilista encontrar um gato negro na estrada ou
quando alguém viajar mima sexta-feira 13 ; da mesma forma
nao há de antemáo indicios de que Satanaz se detenha diante
de urna ferradura de cávalo ou diante de um talismá pendu-

— 95 —
rado ao pescogo de alguém. Ademáis, quando a Providencia
permite ao demonio tentar o homem, Ela sempre dispensa a
graga correspondente para que éste nao sucumba á maior
ou á única desgraca que é o pecado; Deus nunca poe a cria
tura em situagáo desesperadora, a bracos com fórcas inven-
cíveis que necessária e mecánicamente acarretem o mal para
o homem.

A respeito dos maleficios e da sua eficacia, cf. «P.R.» 18/1959,


qu. 1.

A fim de evidenciar aínda mais claramente que na origem das


superstigSes nao há revelacáo divina nem íntervencSo sobrenatural,
o parágrafo abaixo, recenseando algumas das principáis supersticSes,
indicará a razáo histórica pela qual elas sao apregoadas.

2. A verdadera explicacáo

1. Treze: Já & pág. 93 averiguamos os motivos pelos quais o


número 13 é tido ora como cifra de mau presagio, ora como símbolo
de bom agouro.

2. A ferradura de cávalo: é estimada pelo fato de que


em Roma outrora, e ainda até o séc. XVI na Italia, as ferra-
duras de animáis eram de ouro ou prata ; por conseguirte,
encontrar urna ferradura equivalía realmente a encontrar pe
queño tesouro.

3. O derramamento de sal sobre a mesa: diz-se que


quem comete tal desastre, será certamente vítima de desgraga,
a menos que lance urna pitada do mesmo sal por tras do
ombro. — Afirmam-nos que esta arenga tem fundamento bí
blico, pois «desastre» semelhante se teria dado por ocasiáo
da última ceia de Cristo (de que livro da Escritura se de-
preende isto ?) ; além do que, a mulher de Lote foi trans
formada em estatua de sal por ter olhado para tras era via-
gem (cf. Gen 19,26)... Como se vé, o fundamento é vago e
muito arbitrario ; em absoluto nao se percebe nexo entre as
narrativas bíblicas e os efeitos apontados pela superstigáo.
4. «Quem quebra nm espélho, atrai infelicidade sobre si».
Porque ? — Porque, dir-nos-iam, a imagem da pessoa refle-
tida no espélho é parte do fluido vital dessa pessoa; quando,
pois, a imagem é esfacelada no espélho, o próprio emissor do
fluido ou o corpo do individuo vai ser prejudicado, tornándose
mais sujeito aos avangos dos infortunios. — Ora o postulado
de um fluido vital é totalmente gratuito; é mesmo ilógico
do ponto de vista filosófico, e contraditório a resultados adqui
ridos por experiencias recentes.

— 96 —
5. «O trcvo de quatro fólhas, portador do fclicidade...».
No Piemonte, na Suiga e na Franca acredita-se que guem en-
contra tal portento, pode estar seguro de que será feliz por
toda a vida. E por que? — Porque o trevo de quatro fólhas é
coisa rara, como a felicidade é rara... A guisa de comentario,
seja licito repetir: analogía meramente extrínseca nao implica
nexo intrínseco ; a associagáo de conceitos no caso obedece
a urna intuigáo infra-racional; o homem, porém, tem que
viver como ser racional.

6. Pode-se aínda observar que algumas crengas supersti


ciosas parecem nao ter sido originariamente senáo normas
de educagáo e prudencia; á fim, porém, de as incutir com
mais autoridade e éxito, a sabedoria popular (consciente ou
inconscientemente) as terá munido com as sangóes supersti
ciosas hoje apregoadas.

De fato, nao seráo simples regras de boa educacáo as seguintes


proposites ?
Nao comer com chapéu na cabeca (em caso contrario, dizem, o
diabo se juntarla aos convivas).
Nao derramar sal sobre a mesa.
Nao varrer a casa jogando o lixo para íora (a boa sorte também
irla embora...)
Nao cacoar dos deíeitos alhelos (acarxetarla os mesmos defeitos
para o zombeteiro).
Nao passar a vassoura nos pés de moca solteira (pois distarla
a casar-se).

E nao seriam meras normas de prudencia os gegulntes axiomas ?


Nao andar de costas (pois os país do respectivo suieito morreriam).
Nao passar debaixo de urna ponte quando um veículo transita por
cima (desastre em previsto).
Nao construir urna casa em lugar onde já caiu raio (cairia
novo raió).
Nao remendar a roupa no corpo de pessoa viva (morreria... Sim;
talvez porque a agulha a ferisse mortalmente).
Duas pessoas nao lavem as máos na mesma bada nem as enxu-
guem na mesma toalha (brigariam...).

7. Por fim, será preciso levar em conta os recentes


estudos de Pavlov a respeito dos «reflexos condicionados».
A Psicología moderna ensina que um órgáo humano pode
entrar em atividade tanto sob a influencia de seus excitantes
naturais (remedios adequados, por exemplo) como sob a ex-
citagáo de estimulantes meramente convencionais. Por conse-
guinte, caso se diga a alguém que determinado objeto ou
determinada fórmula ou determinado tratamento é benéfico
para o corpo, pode acontecer que, embora tais objetos ou fór
mulas ... sejam de todo indiferentes e inoperantes, a pessoa
que, impressionada ou sugestionada, os aplique a si, experimente

— 97 —
um beneficio corpóreo. Tal «estimulo-sinal» terá produzido
verdadeira reacáo biológica favorável á cura, por causa da
confianza e da convicgáo do paciente; será oportuno até para
recolocar em atividade um órgáo parausado do organismo do
paciente.
Estas reagóes, ditas «reflexos condicionados», elucidam
a eficacia atribuida a certos processos da «medicina» supers
ticiosa : trata-se de agentes inocuos em si, mas transforma
dos em fatóres benéficos por causa da convicgáo que o pa
ciente, após haver sido (consciente ou inconscientemente) dou-
trinado, nutre a respeito de sua «eficacia».

Em conseqüéncia, vé-se que nao há dificuldade em admitir o


bom éxito da seguinte receita dos curandeiros: quem queira curar-se
de verrugas, procure um osso no campo, friccione a verruga com a
parte do osso que estavá voltada para o chao, coloque de novo o
osso no lugar e vá-se embora ás carreJras... O tratamento pode dar
resultado, pois afirmam os médicos que a verruga pode ser comba
tida pela sugestáo (cf. Dr. A. da Silva Mello, Misterios e Realidades
déste e do outro Mundo. Rio 1950, 421).
Após haver enumerado causas, possiveis e reais, das afirmacOes
supersticiosas, passamos agora, a titulo de complemento e conclusao,
a urna breve análise da mentalidade do homem supersticioso.

3. A mentalidade do homem supersticioso

O que até aqui dissemos, permite-nos concluir que a su-


persticáo é expressáo do senso religioso decadente. Éste, nao
sabendo mais a Quem se dirigir, atribui poderes e efeitos sobre-
naturais ou divinos a causas por si inadequadas.

1. Explica-se a supersticáo (mas nao se justifica) pelo


desejo, mato em todo homem, de encontrar a razáo de ser
dos fenómenos misteriosos que o cercam. Em vez de raciocinar
para chegar á devida solucáo, a pessoa pode deixar-se mover
pela preguica de pensar ou pela covardia (em suma, pela lei
do menor esfórgo) ; relaciona entáo efeitos estranhos com
causas ineptas, que impressionam o observador por motivos
acidentais ou por semelhanga meramente externa com os ditos
efeitos. Em última análise, como dizíamos, tal atitude signi
fica decrepitude do. pensamentó, fuga do homem a si mesmo
e á sua dignidade de criatura racional.

Verifica-se nue nr'ncipalmente em periodos de guerras a su-


persticao campeia. Muitos, nao sabendo mais como se defender ra-
zoávelmente das ingentes calamidades que os ameacam, recorrem a
solucOes irracionais ou a objetos apotropéicos (espantalhos do mal).
Nao tendo mais energías em si para conceber e justificar suas atl-
tudes, muitos entáo tendem a se definir, guiados nao propriamente
pelo raciocinio (o que acarretaria responsabilidade), mas pelo encon-

— 98 —
tro de sinais que éles indevidamente julgam reveladores de um plano
superior ou divino (julgando assim, desembaracam-se da responsa-
bilidade de suas atitudes). Precario paliativo, que tende a levar ao
fatalismo! O supersticioso se assemelha ao doente desesperado, que
costuma acreditar em todos os remedios e receitas que lhe recomen-
dam, sem reíletir muito, impress'ionado, de um lado, pelo seu esgota-
mento e, de outro lado, pela aparente autoridade de quem fala.
Sobre estes aspectos negativos da supersticáo, veja-se «P. R.>
8/1958, qu. 8.

2. Contudo, apesar de reprovável, a supersticáo nao


deixa de ter seu significado positivo.
Chama, sim, nossa atencáo o fato de que nao sómenta os
ignorantes aderem freqüentemente a superstigáo, mas também
pessoas de alta intelectualidade e cultura.

Grandes adeptos do positivismo e do ateísmo, como o escritor


Émile Zola e o Presidente Mazaryk, da Tcheco-Slováquia, professaram
abertamente suas crendices supersticiosas, apesar de aíirmarem nao
ter íé religiosa.
Zola, por exemplo, Julgava que os múltiplos de 3 eram números
íavoráveis ; mais tarde preíeriu os de 5 e 7. Do seu lado, o músico
Chopin tinha horror do número 7 ¡ Mérimée, o artista, tinha o número
13 na conta de benfazejo, enquanto Vitor Hugo e Gabriel d'Annunzlo
lhe eram contrarios. Schubert chamava a c6r verde «cor malvada» e
abominava-a a ponto de dizer que estava pronto a ir ás extremidades
do globo para poder evitá-Ia (outros julgam que precisamente o verde
é a cor da esperanca).

Perguntamo-nos : táo estranhas afirmagóes seráo simples-


mente vazias de sentido ?
Nao. Elas atestam urna realidade profunda, isto é, o senso
religioso inato em todo homem. A Religiáo é expressáo carac
terística e indelével do ser racional ou humano como tal; em
conseqüéncia,
ou ela se aplica ao seu Objeto devido — o Deus trans
cendente e pessoal, uno, Criador e Salvador do homem —, e
assim a inteligencia se dignifica ;
ou, caso o homem queira negar Deus e crenga religiosa,
a Religiáo, longe de se extinguir, toma a forma de um sub-
produto ou substitutivo, aplicando-se a objetos indignos, le
vando o homem (até mesmo as mais relevantes figuras da
humanidade) a cair em contradigáo consigo mesmo e a dúsfi-
gurar-se no absurdo e ridículo.
É, sem dúvida, a nostalgia do Divino que, apesar de tudo,
se faz ouvir ñas afirmagóes erróneas da supersticáo. Em outros
termos : quando o homem perde a fé numa Providencia Divina
que governe sabiamente o universo e cada individuo, ésse
homem tende a curvar a caneca sob o imperio de urna fórca
dominadora e brutal, criada pela própria fantasía humaría.

_ 99 —
II. DOGMÁTICA

SUSPETTA (Rio de Janeiro) :

2) «Quem eram as diaconisas da Igreja antiga ?»

As diaconisas eram mulheres piedosas que nos primeiros séculos


do Cristianismo estavam oficialmente encarregadas de certas funcSes,
em auxilio dos ministros do culto. Bem se comnreende oue d»sde cedo
os Apostólos e os bispos tenham experimentado a necessidade de se
prover de tais auxiliares, a fim de assegurar o bom desempenho do
ministerio sagrado junto as mulheres.
Analisaremos abaixo as notas características da instituido an
tiga, que, a seguir, confrontaremos com urna organizagáo homónima
de nossos días.

1. Origem e atríbuicoes

Já no séc. I Sao Paulo parece referir-se duas ou tres vézes


ás diaconisas:
Em Kom 16,ls, o Apostólo recomenda aos romanos rece-
bam «a irmá Febe, diaconisa da comunidade de Cencréia, a qual
havia prestado assisténcia a muitos fiéis, inclusive ao próprio
Sao Paulo». Infelizmente, porém, o autor sagrado nao especi-
ficou quais os servigos prestados pela diaconisa.
Em 1 Tím 3,11, o Apostólo, em meio a urna exortagáo aos
diáconos, refere-se a mulheres, que os exegetas julgam ser
diaconisas.
Em 1 Tim 5,9-11, Sao Paulo alude ás viúvas da Igreja,
distinguindo entre elas as que já atingiram os sessenta anos de
idade e só se casaram urna vez. Há quem julgue tratar-se ai de
diaconisas; tal interpretagáo, embora tenha autoridade, parece
pouco provável, visto que a idade sexagenaria seria antes um
empecilho para o exercício de certos servigos. O Apostólo mais
provávelmente tinha em vista certa categoría de viúvas que em
idade adiantada se consagravam especialmente ao Senhor. A
Igreja antiga atribuía, sim, especial deferencia tanto ás virgens
como ás viúvas consagradas; urnas e outras constituiam cate
gorías próprias, independentes da classe das diaconisas. Verdade
é que estas, a principio, se recrutavam regularmente dentre as
viúvas, e dentre as viúvas provectas, de idade geralmente supe
rior a quarenta anos. Com o tempo, porém, foram sendo admi
tidas á dignidade diaconal também as virgens (cf. S. Inácio de
Antioquia, no séc. I, em sua carta aos Esmirneus, 13) e, mais
raramente, até as esposas que vivessem em continencia e go-
zassem da estima comum dos fiéis (cf. S. Epifanio, no séc. V,
Expositio fídei 21).

— 100 —
Quanto as atribuigóes das diaconisas, definiam-se geral-
mente pelo exercício da caridade junto as mulheres da comuni-
dade paroquial ou diocesana; assim :

a) as diaconisas tratavam de pobres e doentcs do sexo femi-


nino; visitavam os cárceres e domicilios indigentes ;
b) instruiam e preparavam as mulheres para o Batismo ; na
administracáo déste sacramento, o ministro costumava fazer a pri-
meira uncáo sobre a testa da catecúmena, cabendo as diaconisas a
tarefa de ungir o resto do corpo; eram também as diaconisas que
ajudavam as mulheres a descer na piscina batismal; as mesmas le-
vavam de novo á preserva do bispo as neóíitas revestidas da veste
batismal, a fim de serem crismadas ;
c) as diaconisas transmitiam as mulheres as ordens do respec
tivo bispo, e em geral se empenhavam pela conservacáo da boa
ordem no culto e fora do culto;
d) tinham outrossim papel importante sempre que fósse preciso
tratar o corpo feminino, o que se podia dar ou em algum exame
médico ou em vista do sepultamento.
Em tudo as diaconisas estavam sujeitas aos diáconos, a quem
deviam respeito e obediencia. Ficavam-lhes estritamente vedadas a
pregacáo da Palavra de Deus, a administracáo do Batismo em cir
cunstancias ordinarias, assim como o servico do altar.

2. Instituíoslo e prestigio das diaconisas

Afim de cumprirem dignamente as suas tarefas, as diaco


nisas recebiam especial béngáo do bispo, expressa pelo clássico
rito da imposigáo das máos. Éste nao tinha, de modo algum,
índole de sacramento; era apenas o que se chama um «sacra
mental», semelhante, por exemplo, á consagracáo das virgens.

As «Constituic5es Apostólicas», documento litúrgico do séc. IV,


conservaram-nos urna das preces que acompanhavam a imposicáo das
máos, pondo em realce a dignidade da mulher e seu papel grandioso
na historia sagrada :
«Deus Eterno, Pai de Nosso Senhor Jesús Cristo, Criador do
homem e da mulher. Vos que enchestes com o vosso Espirito Maria,
Débora, Ana e Holda. Vos que nao Vos dedignastes de fazer nascer
de u'a mulher Vosso Filho único, Vos que no tabernáculo da Alianca
e no templo estabelecestes mulheres como guardias dos vossos santos
portáis, lancai agora um olhar sobre vossa serva que aqui está, des
tinada ao diaconato; dai-lhe o Espirito Santo, puriíicai-a de toda
mácula corporal e espiritual, a fim de que cumpra dignamente o
oficio que lhe será confiado, para a gloria vossa e para o louvor de
vosso Cristo, com O Qual honra e adoragao sejam dadas a Vos e ao
Espirito Santo por todas os séculos. Assim seja». (1. VIII, n. XIX).

As diaconisas gozavam de grande estima por parte da co-


munidade crista. Embora nao recebessem o sacramento da Or
dem, faziam parte da hierarquia de determinada diocese; eram,

— 101 —
por isto, inscritas no fim do catálogo que compreendia os mem-
bros do clero.

Sob o Imperador Justiniano, no séc. VI, a igreja de Santa Sofia


de Constantinopla contava 60 diaconisas a seu servigo. Figuras de
grande relevo social, principalmente no Oriente, entráram nos qua-
dros dessas beneméritas servas do Senhor: urna das mais famosas
foi Olimpia (t 410), que, tendo-se tornado viúva aos 18 anos de idade,
rejeitou as propostas do Imperador Teodósio e compartilhou algo
das solicitudes de Sao Joao Crisóstomo, Patriarca de Constantinopla,
distr.buindo numerosos beneficios materiais e espirituais entre os
indigentes da dioce.se.

Apesar das tentativas de usurpagáo e abuso do sagrado


por parte das piedosas muiheres, nota-se que a estas sempre
ficou vedada toda e qualquer fungáo sacerdotal. Era S. Epifánio
quem no séc. V escrevia :

«Se as muiheres, no Novo Testamento, fóssem chamadas a exer-


cer o sacerdocio ou a cumprir algum outro ministerio canónico, a
María, antes que a qualquer outra, teria sido confiada a funcáo sa
cerdotal. Deus, porém, dispós diversamente, nao Ihe comunicando nem
mesmo o poder ordinario de batizar. Quanto á categoría das diaco
nisas, se ela existe na Igreja, nao existe para exercer o sacerdocio
nem algum ministerio déste género. As diaconisas sao destinadas a
salvaguardar a decencia que se impSe no que diz respeito ao sexo
íeminino...» (Haer. LXXIX 3).

Observam os historiadores que sómente ñas comunidades


heréticas ou separadas da Igreja é que as muiheres conseguiram
exercer fungóes sacerdotais. Tertuliano, por exemplo, escritor
cristáo do séc. III, atesta :

«As muiheres heréticas como sao insolentes! Ousam ensinar,


disputar, fazer exorcismos, prometer curas e (quem sabe?) até mesmo
batizar» (De praescr. XLI).
Merece átencao o fato de que Sao Paulo, o qual tanto estimava
Febe, era bem categórico ao impor recato e silencio ás muiheres na
igreja ; cf. 1 Cor 14, 34s ; 1 Tim 2,lls.

3. Dcclínio e extincao

Aos poucos o ministerio feminino que acabamos de des-


crever, foi caindo em desuso.
No Ocidente cristáo, conservou-se regularmente até o
séc. VI. Nesta época, porém, os batizados de adultos .tendo-se
tornado relativamente raros, as diaconisas perderam a sua
. principal ocasiáo de prestar servicos; para as práticas de cari-
dade e beneficencia, bastavam matronas ou piedosas muiheres,
destituidas mesmo de instituigáo oficial. Alias, já no séc. V.

— 102 —
em vista das modificac.6es por que ia passando a administragáo
dos sacramentos, fizeram-se ouvir vozes desfavoráveis á exis
tencia das diaconisas.

Assim, por exemplo, legislava o concilio de Orange (Gália)


em 441:
«Para o futuro já nao se ordenaráo diaconisas. As que atualmente
existem, submetam-se á béncáo que é dada a todo o povo» (can. 26).
Um concilio de Epáone na Borgonha em 517, por sua vez es-
tabelecia:
«Ab-rogamos por completo em todo o reino a consagracáo das
vhüvas ditas diaconisas; se quiserem (renunciar ao mundo), poderáo
receber a bencáo que é dada aos penitentes» (can. 21).

O concilio de Orléans em 533 se exprimía ainda mais fortemente:


«Tendo-se em vista a debilidade da natureza feminina, a nenhuma
mulher doravante será dada a bencáo de diaconisa» (can. 18).

Fora da Gália, porém, ou seja, na Alemanha e na Italia,


ainda perdurou algum tempo a instituigáo das diaconisas: os
livros litúrgicos, até ó séc. XI, nestes dois países, mencionam
explícitamente o rito de béngáo das mesmas: Ordo ad diaconam.
Em Roma, tres Papas no séc. XI asseguraram a seus bispos
suburbicários o direito de as consagrar: assim Bento VHI
(1018), ao bispo de Porto; Joáo XIX (1024-1033), ao bispn de
Silva Candida; S. Leáo IX (1049), ao bispo de Porto. Após o
séc. XI, porém, as diaconisas já nao sao mencionadas no Oci-
dente senáo a título de historiografía.
No Oriente, a instituic.áo seguiu rumo semelhante; devagar
deixou de representar um cargo na Sta. Igreja para significar
mera distingáo honorífica : assim sabe-se que no séc. XHI
houve eleicóes de diaconisas em Constantinopla; contudo as
mulheres portadoras do título já nao recebiam a consagracao
tradicional e limitavam suas incumbencias a presidir as assem-
bléias femininas.

Em resumo : mudancas acidentais introduzidas no exercicio do


ministerio sacerdotal íizeram que aos poucos se tornasse desnecessá-
rio o auxilio outrora valiosamente prestado pelas diaconisas aos mi
nistros dos sacramentos. Em conseqüéncia, estas perderam sua razáo
de ser, vindo a extinguir-se paulatinamente, sem que a suprema auto-
ridade da Igreja tenha sido obrigada a se pronunciar sobre o assunto.

4. Fora da Santa Igreja...

Em tempos recentes, o título de «diaconisas» voltou á


ordem do día, desta vez já no seio do Protestantismo.
O histórico e o significado déste novo surto assim se
podem esbogar:

— 103 —
Urna das primeiras conseqüéndas da Reforma protestante
foi a supressáo dos conventos e mosteiros nos países «refor
mados». Tal medida, porém, equivalía á extingáo das casas de
caridade, pois as comunidades religiosas eram, sem dúvida,
poderosos focos de beneficencia pública. Fizeram-se entáo
sentir ñas nagóes protestantes a necessidade e o desejo de
preencher tal lacuna. O horror, porém, do «monaquisino» e o
receio de o restaurar foram durante muito tempo obstáculo a
que se procurasse remedio para a situagáo. Contudo, na pri-
meira metade do séc. XIX (período em que os historiadores
do Protestantismo assinalam um despertar religioso), entra-
ram no cenário da historia homens decididos a agir; traba-
Iharam ao mesmo tempo, mas independentemente, os pastó-
res Teodoro Fliedner, de Kaiserswerth (perto de Dusseldorf),
Haerter de Estrasburgo e Vermeil de París.
Principalmente os esforcos de Fliedner foram coroados
de éxito: em 1833 conseguiu reunir em Kaiserswerth urna
pequeña comunidade de mulheres piedosas, que se deviam
dedicar aos doentes pobres, mas que em breve tiveram que
se consagrar também á instrugáo popular. A essas irmas
Fliedner dava o nome de «diaconisas», querendo com isto evo
car os primordios da Igreja e as generosas mulheres que os
abrilhantaram (Febe, Priscila, Perside, Trifema, Trifosa, Evó-
dia...) e que Sao Paulo designa como colaboradoras suas.
Qual seria o Estatuto observado por essas diaconisas
modernas ?
A Instituigáo nao admite senáo viúvas e donzelas nao
casadas, que tenham mais de 18 e menos de 40 anos de
idade. Sao primeiramente sujeitas a um ano de experiencia
e a alguns anos de provagáo. Caso perseverem, emitem a
«promessa de diaconisas», que tem por objeto «obediencia,
boa vontade e fidelidade na fungáo diaconal» ; tal ato é acom-
panhado de béngáo solene com imposigáo das máos de um
ministro ou da Superiora. Nao é lícito as diaconisas casar-se;
por sua promessa, porém, elas nao se obrigam para sempre,
mas apenas «pelo espago de tempo em que o Senhor as deixar
na sua vocagáo». Podem por termo aos votos contraindo ma
trimonio ; neste caso deixam o Instituto. Conservam a admi-
nistracáo de seu patrimonio financeiro pessoal; além do que,
recebem módico salario cotidiano.
O horario das diaconisas lhes prescreve varios atos de
oragáo comunitaria ; o pastor Fliedner compós, para éste fim,
instrugóes e textos de leitura inspirados ñas antigás obras de
ascética, liturgia e hagiografía da Sta. Igreja ; sao recomen
dadas as írmás a confissáo e a absolvigao públicas das faltas.

— 104 —
Principalmente ñas regióes anglicanas (que sao as mais con
servadoras), o Instituto das diaconisas tomou feicáo muito
semelhante á das Congregagóes Religiosas católicas, de tal
modo que aos 23 de agosto de 1871 o bispo Stanley, refe-
rindo-se as «Irmas da Misericordia», dizia que o seu Instituto
era «muito útil ñas escolas, sim, mas perigoso por sua orga-
nizacáo e demasiado semelhante as Ordens Religiosas ro
manas».

A porcentagem de perseveraba das diaconisas é relativamente


pequeña: sabe-se, por exemplo, que no hospital Elisabeth, de Berlim,
no periodo dos 25 anos de 1837 a 1862, prestaram servico 160 irmás,
das quais 120 (precisamente os tres quartos) deixaram a vocacáo.
Na Casa de Betánia, também em Berlim, estagiaram de 1847 e 1872
(25 anos) 586 Irmas, das quais 337 (mais da metade) deixaram o
hábito.
As diaconisas se diíundiram largamente pela Alemanha. Fun-
daram, porém, suas casas também na Holanda, na Suiga, nos países
escandinavos, na Rússia (outrora), na Franca, nos EE. UU. da
América e até mesmo no Brasil. Em 1894, o Instituto contava 10.400
Irmas, das quais 8.120 residiam na Alemanha ; dirigiam 925 clínicas,
260 hospitais, 160 orfanatos e 570 escolas. Nao temos noticia do
estado atual das diaconisas protestantes. Oxalá continuem a fornecer
ocasiáo a que os Irmáos separados mais e mais se aproximem da
Santa Madre Igreja !

III. SAGRADA ESCRITURA

A. R. C. (Manaus) :

3) «Onde se encontram os corpos de Henoque e Elias


arrebatados aos céus ?
fisses dois justos voltarao a Térra para morrer ?»

Em nossa resposta, deveremos em primeiro lugar notar que a


maneira um tanto misteriosa como a S. Escritura se refere a Henoque
(cf. Gen 5,22-24; Eclo 44,16; Hebr 11,5) e Elias (3 e 4 Rs), enalte-
cendo a vida e o transe désses justos, deu lugar a que os pósteros
tendessem a acrescentar traeos novos á genuina figura dos dois homens
de Deus ; principalmente a missao de Elias tornou-se objeto de refle-
xáo e elaboracáo por parte das gerac5es judaicas e cristas. É o que
explica, se afirmem hoje em dia a respeito de Henoque; e Elias algu-
mas proposicoes que carecem de fundamento ñas fontes bíblicas mes-
mas e se devem principalmente á piedade popular. Será preciso,
portento, em nosso estudo discernir bem o que está na S. Escritura,
daquilo que se narra á margem desta. É o que vamos fazer nos
parágrafos abaixo.

1. Urna nova sentenca de exegese

Os textos de Gen 5,24 e 4 Rs 2,lls sugerem que Henoque


e Elias foram arrebatados vivos aos céus ; daí decorrem as

— 105 —
duas questóes formuladas no cabegalho déste artigo.
Eis, porém, que exegetas contemporáneos (católicos e nao
católicos) julgam dever dar nova interpretagáo as passagens
citadas, nova interpretagáo que revolve por completo toda a
problemática referente aos dois mencionados personagens.
Vejamos, pois, como raciocinam tais comentadores.
Comegaremos pelo que diz respeito a
1) ELIAS. Eis o texto a ser considerado:

4 RS 2,1 «Eis o que se deu no dia em que o Senhor arrebatou


Elias ao céu num turbilháo : Elias e Eliseu partiram de Galgala...
9 — Elias disse a Eliseu : 'Pede-me algo antes que eu seja arrebatado
de junto a ti; que poderia eu fazer por ti ?' — Eliseu respondeu :
'Seja-me concedida dupla porcáo do teu espirito'. 10 — 'Pedes coisa
difícil, replicou Elias. Entretanto se me vires quando eu f&r arreba
tado de ti, isso te será dado ; mas, se nao me vires, nao te será dado'.
11 Continuando éles o seu caminho, entretidos a conversar, eis
que de repente um carro de íogo e cávalas de fogo os separaram
um do outro, e Elias subiu ao céu num turbilháo. 12 Vendo isto,
Eliseu exclamou: 'Meu pai, meu pai! Carro e cavaleiros de Israel!'
E nao o viu mais. Tomando entao as suas vestes, rasgou-as em duas
partes. 13 Apanhou o manto que Elias deixara cair, e, voltando até
o Jordáo, parou á beira do rio».

Os exegetas reconhecem de maneira geral que éste texto


refere o transe de Elias tal como Eliseu o vhi. A corrente
moderna, porém, acrescenta que se trata de urna visao extá
tica de Eliseu, como parece insinuar o próprio autor sagrado.
Sim ; quando Eliseu pediu a Elias dupla porcáo do seu espirito,
respondeu Elias : «Se me vires quando eu fór arrebatado...»;
a visáo condicional aqui mencionada parece ser urna visáo
gratuita, carismática; em outros termos: significaría um éx-
tase profético, semelhante ao que tivéram outros homens de
Deus. como Miquéias, ouando viu os céus abertos (cf. 3 Rs
22,19-22),... o discípulo de Eliseu, quando percebeu as mon-
tanhas cobertas de cávalos e carros de fogo (cf. 4 Rs 6,17)....
Isaías, ao contemplar o trono de Deus (cf. Is 6,1-13), ou ainda
Amos (cf. Am 9,1). — Verificado isto, concluem os referidos
exegetas : do fato de que Eliseu, em éxtase, contemplou Elias
elevado aos céus, nao se poderia deduzir que paralelamente,
na realidade histórica, Elias tenha terminado seus dias na
térra por um arrebatamento, escapando assim ao imperio da
morte.
Poder-se-ia entáo definir o significado exato do episodio
de 4 Rs 2,12s ?
Eis como o interpreta a sentenga mais recente.
Note-se que o cenário de «arrebatamento» de Elias é o
cenário simbólico que costuma enquadrar as teofanias ou ma-

— 106 —
nifestagóes de Javé na historia sagrada: o fogo e o vento forte
denotam, sem dúvida, a presenga de Javé em Éx 3,2; 24,17;
Jz 13,20 ; Is 30, 27; Ez l,4s ; Dan 7,9s ; o carro de fogo, por
tante, em 4 Rs 2,11 nao parece significar senáo a fórca divina
que atraiu Elias. E para que o terá atraído ? — Provávelmente
para um coloquio místico em lugar retirado ou elevado acimá
da térra, coloquio semelhante aos que se deram na vida dos
grandes profetas de Israel, seja no monte Sinai (com Moisés,
cf. Éx 3; 19; com Elias, cf. 3 Rs 19), seja no templo de
Jerusalém (com Isaías, em Is 6), seja no santuario de Betel
(com Amos, em Am 9,1). Terminado o éxtase de Elias (que
Eliseu, especialmente agraciado por Deus, pode contemplar),
aquele profeta terá voltado ao seu estado normal, vindo a
morrer pouco depois disso .. .A morte de Elias parece insinua
da aos mencionados exegetas modernos pelo fato de que Elias
rasgou suas vestes e recolheu o manto de Elias, ao verificar o
desaparecimento definitivo do mestre. (cf. 4 Rs 2,12s). — O
Padre Spadafora faz observar que o verbo hebraico laqah,
tomar, arrebatar, o qual domina a narrativa de 4 Rs 2,3-13,
designa «a intervengáo de Deus na morte serena do justo» em
textos como SI 48,16; Is 53,8 e até mesmo Gen 5,24 (episodio
de Henoque); cf. o artigo Elia, em «Enciclopedia Cattolica» V.
Roma 1950, 233. — Observam outrossim os comentadores que o
trecho de 4 Rs 2 de modo nenhum nos diz que Elias nao mor-
reu; verdade é que a lacónica e misteriosa construcáo de frases
dessa passagem era apta a sugerir aos leitores tal conclusáo
(como, alias, se depreende de passagens biblicas posterior
mente redigidas, como Mal 3,23s [Vg 4,5s] ; Eclo 48,10 ;
lMac2, 58).

2) Quanto a HENOQUE, eis o que a Biblia nos diz a


seu respeito :

«Henoque caminhou com Deus... Toda a duracáo da vida de


Henoque íoi de trezentos e sessenta e cinco anos. Henoque caminhou
com Deus ; a seguir, desapareceu, pois Deus o arrebatou» (Gen 5,
21.23S).
A última írase do texto ácima poder-se-ia entender também do
seguinte modo : «Após urna de suas comunicagñes com Deus, Henoque
nao mais voltou (á companhia dos vivos)».

Alguns exegetas modernos julgam que tais dizeres sao


demasiado sobrios para se deduzir algo de certo sobre o fim
de vida de Henoque. O verbo laqah, ocorrente em Gen 5,24,
significaría apenas, como no caso de Elias, que Henoque gozou
de íntima uniáo com Deus, sem que isto implicasse em isengáo
da morte ; essa intima uniáo é ademáis atestada pelo «cami-

— 107 —
nhar com Deus» táo característico de Henoque, assim como
pela cifra de 365 anos, que assemelha a vida déste justo a
passagem de um sol sobre a térra.

«O arrebatamento de Henoque. relatado por fonte antiqülssima


do Código Sacerdotal (isto é, por um dos mais antigos documentos
que entraram na composigáo do Génesis), tem nítidamente o caráter
de urna epopéia (poema que decanta o maravilhoso) primitiva. O
significado désse texto arcaico permanece obscuro» (J. Steinmann,
Élie dans l'Ancien Testament, em «Élie le prophéte» I. Paris 1956,114).
Steinmann chega a dizer que «lendas semelhantes ás que circula-
vam a propósito de Frederico Barbarroxa (t 1190), atribuiram mis
teriosa sobrevivencia íisica a Henoque e Elias» (ibd. 114).

É nos termos ácima que se apresentam duas recentes teses


de exegetas católicos a respeito do desfecho da vida de Elias
e Henoque nesta térra.
Que dizer de tais explicagóes ?
Elas tém contra si o testemunho da tradigáo judaica e
crista, que até o nosso sáculo sempre eximiu da morte Henoque
e Elias (verdade é que se trata nao de tradicáo dogmática,
mas exegética apenas, a qual por si nao se impóe á fé dos
cristáos). Além do mais, os argumentos literarios e filológicos
apresentados pelos autores da inovagáo nao parecem dirimen
tes. Como quer que seja, o que nos interessa aquí observar, é
que a sentenga segundo a qual Henoque e Elias já morreram,
é aceita dentro dos quadros da exegese católica. Ora quem a
aceita, já nao propóe as questóes formuladas no cabegalho
déste artigo.

Visando, porém, elucidar o mais possivel o assunto, consideremos


agora a sentenca tradicional referente aos dois homens de Deus, e
procuremos esclarecer as perguntas que a ela se prendem.

2. Onde estaráo. .. ?

Os autores judeus e cristáos que asseveram o arrebata


mento de Henoque e Elias vivos aos céus, nao estáo de acordó
entre si sobre o local em que se possam encontrar os seus
corpos.

Entre os judeus antigos, Elias ocupava lugar importante ñas


tradicQes rabí nicas, principalmente a partir do séc. II a. C. Era tido
como intercessor junto a Deus em favor do seu povo; os rabinos
narravam que ele aparecía multas vézes sobre a Térra, fósse para
instruir os rabinos, fósse para curar os doentes, fósse para punir os
pecadores. Contudo o que mais se afirmava, era que voltaria á Térra
como Precursor do Messias, a fim de excitar o povo de Israel á

— 108 —
penitencia Xdai as numerosas alusOes á vinda de Elias nos SS. Evan-
gelhos; cí. Mt 17,10s; 11,14; 27,47.49; Le 1,17; Jo 1,21.25).
O companheixo de Elias no desempenho da tarefa de preparar
(mediatamente a vinda do Messias seria, conforme algumas escolas
rabinicas, Moisés. Éste nao teria morrido (embora a S. Escritura
mencione claramente o seu desenlace em Dt 34,5) ; estaría atual-
mente vivendo junto de Deus, prestes a voltar ao mundo na era
messiánica ! Todavía, ao lado de afirmaedes déste género, nao se
lé, ñas tradicSes rabfnicas, indicacao precisa sobre o lugar onde
possam estar os corpos de Elias, Moisés, Henoque, etc.; apenas al-
guns mestres ousavam afirmar que ésses justos se achavam no
paraíso terrestre (de Adáo e Eva) transferido pelo Senhor Deus
para fora déste mundo.
A tradicáo crista nao se mostrou mais segura sobre ésses
assuntos.
Ao passo que o texto hebraico de 4 Rs 2,11 diz simplesmente que
Elias subiu aos céus, os tradutores gregos désse texto, na edicáo
dos LXX, escreveram «hoos eis ton ouranon» (como que para os
céus) ; por sua vez, os primeiros tradutores latinos puseram «quasl
in caelum» (como que...).
Na Idade Media, Sao Tomaz, retomando a opiniáo de antigos
escritores cristáos (como Tertuliano, S. Ireneu e outros), propunha
o paraíso terrestre, transferido para longe déste mundo, qual man-
sáo dos corpos de Elias e Henoque:
«Elias foi arrebatado para o céu aéreo, nao, porém, para o céu
empírio (de íogo), que é a mansáo dos santos. De modo semelhante,
foi Henoque arrebatado ao paraíso terrestre, onde se eré que ele
vivera com Ellas até a vinda do Anticristo» (Suma Teológica III
49, 5 ad 2).
Nesse texto, «céu aéreo» significa o paraíso de Adáo e Eva se-
qüestrado pelo Senhor Deus para um lugar qualquer da atmosfera
terrestre, ao passo que o «céu empírio ou de fogo» designaría (con
forme, alias, o modo de pensar comum dos medievais) o lugar reful
gente (nao quente, porém) onde os justos sao premiados para todo
o sempre.
Nao se deve atribuir autoridade decisiva á opiniáo abracada por
Sao Tomaz, no caso; ela versa sobre um assunto em que nao se
podem propor senáo conjeturas. A existencia do paraíso terrestre
transferido para longe desta Térra, como, alias, t6da a geografía do
Além que é explanada na literatura exegética medieval, exprimem
pressupostos e teses dos antigos que hoje em dia estáo abandonados
pelos teólogos.

Em conclusáo: dado que Henoque e Elias existam real


mente em corpo e alma fora déste mundo (hipótese que, como
vimos, em nossos dias já nao encontra unánime aceitagáo), será
necessário renunciar a indicar o lugar da sua atual mansáo.

3. Voltarao a Térra ?

É comum dizer-se que Henoque e Elias imediatamente an


tes do juízo final apareceráo de novo neste mundo, onde daráo
testemunho a Cristo perante o Anticristo; finalmente pagaráo

— 109 —
seu tributo á morte, para depois serem ressuscitados e reinarem
na gloria dos justos.
Quais os fundamentos dessa crenca ?
a) No tocante a Elias, a tradicáo judaica pré-cristá admitía
que Elias voltaria como Precursor do Messias. O texto do
profeta Malaquias (3,23s; Vg 4,5s), dava expressáo a essa
expectativa judaica. Contudo o Senhor Jesús explicou qual o
sentido da apregoada yolta de Elias á Térra: as qualidades de
ánimo do profeta — zélo pela causa de Deus, destemida exor-
tagáo á penitencia — deveriam manifestar-se na pessoa de
Joáo Batista, o ¡mediato Precursor do Salvador; de fato, o Ba
tista, pregando enérgicamente no limiar da era crista, realizou
tarefa paralela á de Elias no séc. IX a. C. Por isto também
Cristo houve por bem por o ponto final á expectativa judaica
asseverando, com explícita referencia a Sao Joáo Batista qué
Elias já veio; cf. Mt 17,10.12s.
b) Entre os cristáos, apesar das palavras de Cristo, persis-
üu a crenca na volta de Elias, alimentada, em parte, por famoso
texto do Apocalipse (11,1-13), ao qual voltaremos agora nossa
atencáo:

APC 11, 1 «Foi-me dada urna vara semelhante a urna vara de


agrimensor, e disseram-me: 'Levanta-te! Mede o templo de Deus e
o altar com seus adoradores. 2 O adro, fora do templo, porém, deixa-o
I d0? ?So ° meCas: foi dado aos gentíos, que nao de calcar aos
pés a cidade santa por quarenta e dois meses. 3 Mas Incumblrel as
minhas duas testemunhas vestidas de saco de profetlzarem durante
mil duzentos e sessenta días. 4 Sao éles as duas oliveiras e os dois
candelabros que se mantém diante do Senhor da térra. 5 Se alguém
Inés quiser causar daño, sairá íogo de suas bdcas e devorará os inimi-
gos. Com efeito, se alguém os quiser lerir, cumpre que assim seja
morto. 6 Ésses homens tém o poder de lechar o céu para que nao
caia chuva durante os días de sua profecía ; tém poder sdbre as aguas,
para transformá-las em sangue, e poder s&bre a térra para a íerir
sempre que quiserem, com toda especie de flagelos. 7 Mas, depois de
terem terminado o seu testemunho, a Fera que sobe do abismo lhes
fará guerra, os vencerá e os matará. 8 Seus cadáveres (jazeráo) na
praca da grande cidade que se chama espiritualmente Sodoma e
Egito (onde o seu Senhor foi crucificado). 9 Muitos homens dentre
os povos, as tribos, as linguas e as nagóes virao para ver seus cadá
veres por tres dias e meio, e nao permitirao que sejam sepultados.
10 Os habitantes da Térra alegrar-se-áo por causa déles, felicitar-se-ao
mutuamente e mandarao presentes uns aos outros, porque ésses dois
profetas tinham sido seu tormento. 11 Mas, depois de tres dias e
meio, um sópro de vida, vindo de Deus, os penetrou. Puseram-se de
pé, e grande terror calu sobre aqueles que os viam. 12 Ouviram forte
voz do céu que dizia : 'Subi aquí!'. Subiram entáo para o céu huma
nuvem. enquanto seus inimigos os olhavam. 13 Naquela mesma hora
produziu-se grande terremoto, caiu urna décima parte da cidade, e
pereceram no terremoto sete mil pessoas. As demais, aterrorizadas,
deram gloria ao Deus do céu».

— 110 —
Como se vé, o autor sagrado, ao descrever uma cena que
alguns comentadores (erradamente) julgam ser a do fím do
mundo, afirma que

dois varees apareceráo sobre a Térra e durante 42 meses apre-


goaráo a Verdade;

possuiráo mesmo o poder de realizar prodigios semelhantes aos


que Moisés e Elias ouLrora obtiveram de Deus.
Sim. Elias fez descer fogo do céu sobre os inimigos de Javé
(cf. 4 Rs 1,10 e Apc 11,5); fechou os céus a fim de que nao chovesse
(cf. 3 Rs 17,1 e Apc 11,6a) ; além disto, vestia-se de um saco como
as duas testemunhas (cf. 4 Rs 1,8 e Apc 11,3). — A respeito de Moisés,
lé-se que converteu aguas em sangue e assolou a Térra com Dragas
diversas; cf. Éx 7,17-11,10 e Apc 11,6b;
acabaráo, porém, vitimados pelo Adversario, que os matará ;
finalmente, após tres dias e meio, ressuscitarao e seráo elevados
aos céus.

Ao procurar identificar as duas testemunhas anónimas, os


exegetas, até nossos tempos, quase unánimemente indicavam
ao menos Elias, visto que éste profeta foi arrebatado aos céus...
Quanto á outra testemunha, pensaram em Henoque, pois tam-
bém se lé a seu respeito que deixou éste mundo sem ter passado
pela morte... Henoque e Elias, portante, deveriam voltar á
Térra antes da consumagáo da historia ! — Outros exegetas
pensaram em Moisés, pois alguns tragos das duas testemu
nhas apocalípticas sao, sem dúvida, derivados da figura his
tórica de Moisés... Alguns estudiosos ainda propuseram Jere
mías, visto que a Escritura nao refere a sua morte e assevera
que seria um dia «Profeta entre as nagSes» (fora de Israel),
coisa que nao coube a Jeremías no Antigo Testamento (cf.
Jer 1,5).
Na verdade, o episodio de Apc parece pedir interpretagáo
bem diversa, ou seja, muito mais sobria. — Sem desenvolver
aqui o sistema mais plausível de exegese do Apocalipse, frisa
remos apenas que a cena de Apc 11 muito provávelmente se
refere á historia da Igreja em toda a sua amplidáo através
dos séculos. Nesse currículo a Esposa de Cristo jamáis deixa
de proferir ao mundo o testemunho da verdade. Ora ésse
«testemunhar» da Igreja se acha simbolizado em Apc 11
pelos dois varóes misteriosos, pois, conforme a Lei de Moisés,
«qualquer afirmacáo verídica tem que ser expressa pela pa-
lavra de duas testemunhas» (cf. Dt 19,15 ; Jo 8.17).

O testemunho da Igreja assim simbolizado em Apc 11 é o tes


temunho que dao a Cristo os mártires, os confessores, os doutores e
os justos em geral. em quem o Espirito Santo vive através dos
tempos; tal testemunho pode ser tido como «profecía» (isto é, palavra
proferida em nome de Deus) continua (cf. Apc 19,10).

— 111 —
A duracáo désse pronunciamento é de 1260 dias o que vem
a ser: 42 meses ou 3 1/2 anos, isto é, a metade de 7 anos. Visto que
7 exprimirla, segundo a mentalidade antiga, plenitude e consumacáo,
3 1/2 designa, no nosso caso, justamente urna época de demanda da
plenitude. Tal é, sem dúvida, o período de combate contra o erro em
prol da verdade, que caracteriza a historia da Igreja entre a priméira
e a segunda vinda de Cristo. — É, pois, durante 1260 dias, isto é, du
rante toda a sua historia, que a Igreja (representada pelas duas
testemunhas) apregoa o Evangelho neste mundo. E é durante tres
dias e meio, isto é, em segmentos de sua historia, que a Igreja su
cumbe aqui e ali aos golpes do Adversario, em virtude de persegui-
c6es, heresias ou cismas nesta ou naquela regiáo. A voz da Igreja,
porém, será finalmente vitoriosa.

Note-se ainda que as testemunhas de Apc 11 (ou também


o testemunho da verdade e da vida proferido pela Igreja ao
mundo) sao descritas com tragos de Elias, Moisés, Jesús (filho
de Josedeque), Zorobabel (cf. Zac 4,2s) e — muito mais duvi-
dosa e pálidamente — com tragos de Henoque, porque nos
cristáos continua a viver o Espirito que animou e moveu ésses
grandes varóes do Antigo Testamento. Nao se procure outra
explicagáo, mais precisa, (a qual nao poderla deixar de ser
forgada ou artificial) para os tragos característicos das duas
testemunhas do Apocalipse. Seria, portanto, gratuito concluir
desta passagem que o autor sagrado quería predizer a volta
ao mundo e o martirio de Henoque e Elias.
Numa derradeira observagáo, lembraremos que, se nao
há fundamento real para sustentar a segunda vinda ao mundo
désses dois varóes, convém nao acentuar tal crenga na cate-
quese e na pregagáo. Antes, chamaremos a atengáo dos nossos
pupilos para os tragos espirituais e religiosos que caracterizam
Henoque e Elias; ao contemplá-los, o cristáo aprenderá mais
e mais a caminhar na presenta de Deus, sem divagar inútil
mente pelo mundo das conjeturas...

VERÓNICA (Porto Alegre) :

4) «Que se pode dizer de seguro sobre Verónica e o véu


com o qual esta santa mulher terá enxugado a face do Divino
Mestre ?»

O nome de «Verónica» na literatura crista, pode designar


a) ou urna piedosa mulher, da qual um dos traeos hoje em dia
mais propalados terá sido o de limpar a face ensangüentada do Se-
nhor Jesús, quando Éste carregava a cruz. Em tal caso, costuma-se
derivar o termo latino «Verónica» do nome pessoal grego «Bernike,
Beronlke» ;
b)... ou a própria imagem de Cristo gravada sobre urna toalha
veneranda. A origem desta estampa é diversamente explanada pelos

— 112 —
historiadores cristáos: há quem diga que a eílgie resulta do ato ple-
doso da mulher ácima referida, como há quem recorra a explicares
independentes dessa, como abaixo veremos. Tomado na accepcao de
«Imagen», o apelativo latino «Verónica* proviria, conforme alguns
filólogos, do dístico greco-latino «Vera Eicon» (= Verdadeira Ima-
gem, a saber, de Cristo), distico certa vez colocado junto á imagem
exposta á veneracáo dos fiéis.
O fato é que o nome de «Verónica» vem a ser hoje em dia ponto
de cristalizacáo para o qual através dos séculos confíuem varias tra-
dicCes populares, geralmente inspiradas pela piedade simples, pouco
ou nada critica, num intervalo que vai do séc. IV até o séc. XVL
Procuremos discernir através da historia a evolucáo das idéias
concernentes & «Verónica».

1. A Verónica no Oriente

O berco das narrativas referentes á Verónica é o Oriente;


talvez mesmo se possa dizer com mais precisáo: é a cidade
de Edessa, na Siria.
Com efeito, nessa localidade, em fins do séc. IV ou inicios
do V, foi escrito um livro apócrifo (o que, entre outras coisas,
quer dizer : livro de estilo muito semelhante ao das Escrituras
Sagradas) que narrava os primordios do Cristianismo na re-
giáo de Edessa. Labubna, o autor do opúsculo, ai refere que
o rei Abgar V Uctema, de Edessa (13-50 d.C), tendo ouvir
falar das curas milagrosas realizadas por Jesús na Palestina,
mandou um emissário á presenga de Cristo, rogando ao Senhor
fósse curar o rei Abgar, acometido de grave enfermidade;
Cristo terá respondido nao Lhe ser possível deixar a Pales
tina antes de terminar a sua missáo pela cruz e pela ascensáo
aos céus; haverá, porém, acrescentado que enviaría a Abgar,
após a sua volta ao Pai, um Apostólo que curasse o enfermo.
Ora, de fato, assevera o apócrifo, na época prevista, Tadeu
ou Adai, um dos 72 discípulos, foi enviado a Edessa, onde
realizou grande número de conversóes. Nessa historia, interes-
sa-nos o pormenor seguinte: o autor narra que Ananias, ar-
quivista e pintor enviado pelo rei Abgar, antes de deixar a
presenga de Jesús, resolveu fazer um retrato a óleo do Senhor
em «cores preciosas» ; o monarca recebeu respetosamente a
pintura, foi em verdade curado ao contemplá-la e, em conse-
qüéncia, guardou-a reverentemente em seu palacio.

Nesta narrativa, que os críticos, católicos e náo-católicos, com


razáo tém na conta de lendária, se acha o cerne das futuras historias
populares concernentes h sagrada efigie de Cristo e á Verónica.

Efetivamente, os escritores posteriores deram grande im


portancia ao episodio ácima referente ao retrato de Jesús;
resolveram, por isto, retocar e embelezar a narrativa, de

— 113 —
acordó com o seu bom senso. Um dos tragos do episodio, por
exemplo, que nao agradou as geragóes posteriores, foi a supo-
sifiáo de que Jesús se tenha postado perante a tela do pintor
Ananias ; isto parecía pouco reverente, quase escandaloso...;
em conseqüéncia, S. Joáo Damasceno (f 749), Hamartolo
(séc. IX), Nicéforo Calisto (séc. XIV) referem que Ananias
tentou, sim, reproduzir com o pincel os tragos de Cristo, mas
nao o pode, pois foi ofuscado pelo fulgor do semblante de
Jesús; outros escritores, como Cedreno, Xavier, dizem que
Ananias, após haver tragado as primeiras linhas, as comparou
repetidamente com as do Modelo e verificou que estas haviam
mudado... Entáo, continuam os comentadores orientáis, Jesús,
que causara tal embarago ao pintor, houve por bem auxiliá-lo:
tomou a tela, dizem uns, aplicou-a ao próprio rosto e nela
deixou gravado o seu Divino semblante ; outros relatam que
Jesús pediu agua, lavou o rosto, enxugou-o com a tela do
pintor ou até com urna toalha comum, nela imprimindo seus
tragos.

Ananias pos-se entáo a caminho de volta para Edessa. Ao passar,


porém, por HierápolLs na Asia menor, deteve-se em urna olaria e
ocultou o retrato de Jesús entre dois tijolos ; ora durante a noite o
vigia viu nesse lugar urna coluna de logo que se elevava aos céus;
deu alarme ; a populacao, tendo acorrido, quis apoderar-se da ima
gem sagrada, mas esta se reproduziu sobre urna placa de barro da
olaria; isto contentou os tumultuosos, que resolveram deixar Ana
nias continuar viagem com o retrato original; mais adiante no ca
minho, Ananias com a preciosa efigie curou um paralitico e, final
mente, ao chegar a Edessa, restituiu a saúde ao próprio reí Abgar,
que. conseqüentemente, mandou reservar para o sagrado vulto um
lugar de honra no palacio.

Como se vé, no decorrer dos tempos, ©s títulos de gloria


da lendária imagem se acresceram: a piedade crista quis
dar-lhe origem milagrosa como se nao houvesse sido feita por
máo humana, mas diretamente pelo próprio Deus. Com outras
palavras: a imagem teria sido «aquirópita» (do grego achei-
ropoíetos, nao feita por máo humana).
De todos os dizeres ácima, porém, apenas se pode reter
como certo que, já talvez no séc. III, existia em Edessa urna
imagem de Cristo, cujo autor nao nos é conhecido, imagem
altamente estimada pelo povo cristáo. Os cronistas orientáis
ainda narram que em 944 a famosa efigie foi transportada
para Constantinopla, onde os pintores a reproduziram, dundo
origem a numerosas imagens, todas tidas como milagrosas e,
de certo modo, «aquirópitas».
No decurso dos séculos, a veneragáo dos cristáos quis
acrescentar ainda outros tragos a historia da imagem de

— 114 —
Edessa. Interessa-nos aqui apenas o seguinte : alguns escrito
res orientáis asseyeraram que Jesús havia enviado sua sagrada
efigie nao ao rei de Edessa, mas a urna princesa chamada
Berenice (ou Verónica) ; essa princesa, por sua vez, foi sendo
identificada com a mulher que o Salvador curou do fluxo de
sangue, conforme Mt 9,20-22, pois desde o séc. IV no Oriente
a esta mulher se deu o nome de Berenice ou Verónica.
Assim é que no Oriente «imagem aquirópita milagrosa»
e «Berenice ou Verónica» foram associadas numa só narrativa.

2. .. .No Ocidente

1. Entre os cristáos ocidentais, nao há noticia da historia de


Verónica e da sagrada efigie até o séc. VI. Nesta época, poréra, ela
aparece com suas modalidades próprias dentro de um bloco de escritos
apócrifos que se referem a Pilatos. Efetivamente, entre os séc. VI e
VII originou-se no norte da Italia o livrinho latino «Cura sanitatis
Tiberii» (Cura da saúde de Tiberio), ao qual faz eco no sul da Gália
o opúsculo «Vindicta Salvatoris» (Defesa do Salvador); em tais es
critos narra-se urna historia cujas linhas gerais sao assim concebidas:

Verónica, a piedosa mulher curada do fluxo de sangue


por Jesús, mandou pintar a. sagrada face do seu Divino Ben-
feitor. Aconteceu, porém, que o Imperador Tiberio adoeceu
(como se vé, o monarca romano, nesta modalidade ocidental
da lenda, substituí o rei Abgar de Edessa) ; mandou entáo um
emissário a Jesús (á semelhanga, alias, do que fez Abgar),
emissário chamado Volusiano; éste, chegando á Palestina, foi
informado de que Jesús, o taumaturgo que ele procurava, já
falecera ; o legado irritou-se conseqüentemente contra Pilatos,
que O condenara, e mandou encarcerá-lo. Volusiano, porém,
também ouviu dizer que u'a mulher outrora curada por Jesús
guardava urna estampa do Divino Mestre ; o romano mandou
entáo que seus soldados procurassem a morada da Verónica ;
tendo-a encontrado, pediram-lhe a sagrada efigie, que a mulher
lhes recusou ; diante disto, a soldadesca pilhou a casa de Ve
rónica e achou finalmente a preciosa tela escondida dentro
do travesseiro de Verónica. Imediatamente levaram o paño
para Roma, onde Tiberio o contemplou, recuperando sem de
mora a almejada saúde; o Imperador Romano teria entáo
recebido o Batismo e haveria mandado guardar a sagrada
imagem num estojo de pedra preciosa. Urna outra forma, mais
tardia, desta «historia», em vez de dizer que o emissário im
perial arrebatara a imagem de Verónica, afirmava que o
mesmo conseguirá a ida da santa mulher a Roma com a es
tampa ; Tiberio teria sido milagrosamente curado, e Verónica

— 115 —
haveria permanecido na Cidade Eterna convivendo com os
Apostólos Sao Pedro e Sao Paulo ; ao morrer, teria deixado
a sagrada tela ao Pontífice Sao Clemente de Roma.

A titulo de complemento, váo aqui consignadas ainda as seguintes


variantes da historia de Verónica, variantes que, á semelhanca do
que se deu ñas crónicas orientáis, tendem a apresentar a sagrada
imagem como «aquirópita» ou nao feita por máo humana: narram,
por exemplo, algumas versdes menos antigás que, quando Verónica
ia com a tela ao encontró de Cristo para pintar ou mandar pintar a
sua Divina Face, o Salvador mesmo, conhecendo o anelo da piedosa
mulher, lhe pediu o paño e dignou-se imprimir néle os tragos do seu
semblante. Certos escritores acrescentam que Cristo fez isto depois
que Sao Lucas em váo tentara tres vézes fixar os seus traeos sobre
a tela (na verdade, nao se poderia sequer afirmar que Lucas tenha
sido pintor). Outros referem que Jesús, certa vez entrando cansado
em casa de Verónica, lhe ped'u urna toalha para enxugar o rosto;
em recompensa, o Salvador lhe haveria deixado a sagrada face im-
pressa no paño...

Merece atengáo, porém, o fato de que os escritores latinos,


ao referirem tais historias, jamáis indicam onde terá ficado a
milagrosa imagem após a época do Imperador Tiberio...

2. Note-se agora ulterior etapa da historia de


Verónica:
sabemos que na Alta Idade Media as cruzadas muito
avivaram
a devogáo dos fiéis para com a Paixáo do Senhor. Ora éste
trac.o mais acentuado da piedade crista repercutiu
no tema
que vimos abordando: ao passo que as primitivas efigies de
Cristo apresentavam a face serena ou transfigurada do Sal
vador, as «imagens de Verónica» posteriores dáo a ver o sem
blante de Cristo ensangüentado e coroado de espinhos. De
acordó entáo com a tendencia da época, Verónica, deixando
de ser identificada com urna princesa oriental ou com a he-
morroíssa, foi concebida qual piedosa mulher que, durante a
caminhada de Jesús para o Calvario, Lhe enxugou a face
adorável.

Esta concencao se deve, pela primeira vez, a Rogério d'Argenleuil,


que por volta de 1300 escreveu um comentario da Biblia Sagrada ; foi
posteriormente muito difundida pelos autos e misterios populares
que representavam as cenas da Paixáo do Senhor com finalidade edi
ficante, assim como peló exercicto da Via Sacra, de que tratamos em
«P.R.» 26/1960, qu.8. Foi éste o aspecto de Verónica que prevaleceu
na piedade dos últimos séculos.

3. A conseqüéncia derradelra de tantas narrativas a respeito de


Verónica é que. a partir de fins do séc. XV, se passou a prestar culto
explícito a urna «Santa Verónica de Jerusalém», celebrada anualmente
aos 4 de feverelro e tida como padroeira contra o fluxo de sangue.
Alguns biógrafos julgaram poder dizer que Verónica de Jerusalém
se transferiu para a GAlia com seu marido Amator ou Amadour (o
qual terá sido o publicano Zaqueu do Evangelho; cf. Le 19,2) ; Ve-

— 116 —
Ü6ní?ÍLhaveria aJudad° eficientemente a evangelizagáo do territorio
de Médoc; apontava-se o seu túmulo na diocese de Bordéus, em
oOUlctC

Em Paris «Sainte Venise> tornou-se durante certo tempo a pa-


droeira das Irmandades de lavadeiras e engomadeiras com sede na
igreja de Sto. Eustaquio ; era invocada contra os males de visceras
e de cabeca. Houve mais tarde até quem, sem ter autoridade para
isso, a quisesse fazer padroeira dos fotógrafos !

Contudo, sem demora os estudiosos católicos (como Ma-


billon, f 1707, Papebroch, t 1714), assim como as autoridades
eclesiásticas denunciaram o caráter lendário da «historia» de
Verónica. Em conseqüéncia, seria condenável toda tentativa
de dar foros de historicidade á lenda de Verónica ; os doutos
católicos, conscientes de que a verdade é a base da virtude,
abster-se-áo do falso zélo apostólico de fomentar a edificagáo
dos fiéis mediante a exploracáo dos tragos lendários ácima
referidos.

3. Na basílica de Sao Pedro em Boma

Nao se poderá, por fim, deixar de levar ainda em conta


o tópico seguinte : famoso se tornou o «véu de Verónica» guar
dado na basílica de Sao Pedro em Roma. A origem dessa pega
é, como ensinam os autores católicos, assaz incerta: apenas
se sabe que desde o séc. XII ela ai goza de férvida veneracáo.
Por essa época, Pedro de Mallio afírmava que, como lhe haviam
referido os mais velhos, o Senhor mesmo havia impresso seus
divinos tragos no véu sagrado quando suou sangue no horto
das Oliveiras. — Eis mais urna versáo apta a recomendar o
véu sagrado, carecente, porém, de fundamento histórico.
Nao resta dúvida de que as tradicQes referentes á Verónica sao
independentes do chamado «véu de Verónica» guardado em Sao Pe
dro ; éste véu é multo posterior áquelas tradicóes. Conforme o fa
moso arqueólogo Pe. Wilpert S.J., a venerada pega consta de linho
cá e lá marcado por manchas de ferrugem, linho sobre o qual no fim
do séc. XII se pintou urna efigie de Cristo (cf. Romische Mosaiken
und Malereien H 2. 1924, 1123/25). Varias reproducoes desta imagem
foram feitas, o que concorreu para difundir a veneracáo da mesma.

O «véu de Verónica» foi transportado para urna das tri


bunas da cúpula de Sao Pedro aos 21 de maio de 1606; em oca-
sióes solenes do ano, como no fim da Semana Santa e na festa
de Páscoa, é mostrado públicamente aos fiéis. Ao fazer esta
exposigáo, as autoridades da Igreja nao entendem definir algo
a respeito da «historia» de Verónica e do respectivo véu; éste
paño sagrado é utilizado apenas como estímulo da devogáo
dos cristáos, os quais, pela contemplacáo da face do Senhor

— 117 —
padecente, e independentemente das origens do véu a éles apre-
sentado, se devem excitar a um amor mais ardente para com
o Salvador e sua obra de imensa misericordia. Nao se faga,
portanto, do «véu da Verónica» um documento de historia, pois
tal nao é a intencáo da Santa Igreja; colham-se antes, e apenas,
os frutos sobrenaturais que a Esposa de Cristo quer comunicar
mediante tal devogáo.

IV. MORAL

BACHAREL (Rio de Janeiro) :

5) «Sou bastante madnro para escolher e criticar as


minhas leituras!
As proibicSes da Igreja neste ponto sao pouco condizentes
com a mentalidade do séc. XX!»

A questáo do «índice de livros proibidos» já foi abordada em


«P.R.» 6/1957, qu. 10. A ela voltaremos aquí, dada a oportuhidade
do assunto, procurando desenvolver um ou outro aspecto novo ou
mais importante do tema : trataremos, pois, em primelro lugar, do
poder de influencia da leitura, para, a seguir, lembrar as normas
que conseqüentemente devem orientar a consciéncia do leitor católico.

1. O poder de influencia da leitura

1. A inteligencia humana, feita para apreender a verdade me


diante o raciocinio, nutre-se de idéias: adquirindo idéia após idéia,
vai ela acumulando um cabedal doutrinário de importancia máxima,
decisiva do destino temporal e eterno que tocará ao respectivo sujeito.
Ora é inegável que as idéias se transmitem mediante a palavra.
A palavra, por sua vez, é ou escrita ou oral, apresentando num e
noutro caso seu poder de acáo próprio, mas sempre muito penetrante.
A palavra oral é dotada de vivacidade própria; o tom da voz. a
expressáo do semblante, os gestos, de quem fala, concorrem para dar
& palavra urna fórca de sugestáo característica. Sabemos que o ma
gisterio na antigüidade se exercia quase exclusivamente pela palavra
oral; a letra parecía aos antigos um veiculo mudo e frió, capaz de
depauperar a vida de urna alma que se quisesse comunicar. — Estas
observacSes. inegávelmente válidas até hoje, levam-nos a afirmar que
nunca se poderá extinguir o magisterio oral na formacáo das gera-
c5es humanas. .
Mas. sem desdizer á estima para com a palavra oral, notemos
agora a forca de penetracílo que compete á palavra escrita ou ao Hv.ro.

O livro é, sim, um mestre ou amigo silencioso a quem


espontáneamente tendemos a nos abandonar com toda a con-
fíanca, deixando que ele nos vá insinuando nao sómente as
idéias que estamos acostumados a professar, mas até mesmo
as que, a primeira vista, seríamos propensos a repudiar.

— 118 —
Com efeito, todo individuo está psicológicamente predis-
posto a atribuir antoridade a um antor de livro;... autoridade,
isto é, capacidade para ensinar ou dirigir. Nao é vá a assonán-
cia que une os termos «autor» (= escritor) e «autoridaae»
(= poder maior para orientar); o fato de que alguém se torne
autor de livro parece conferir a ésse escritor soberanía e pres
tigio para insinuar atitudes e incutir doutrinas. É táo espon
tánea á natureza a tendencia a argumentar a partir do que
dizem os autores !

Quando um pensador aprésenla de viva voz a sua doutrina, mais


fácilmente o público exerce sobre ele o devido controle ; quando o
mestre se ergue diante de um auditorio, os ouvintes tendem também
a se erguer em sua personalidade ; principalmente se o orador propde
algo de contrario &s idéias do auditorio, o garbo e o amor próprio
incitam naturalmente os ouvintes a reagir. O mesmo, porém, nao se
dá quando a ideología antagónica é proposta por escrito ; entáo, sem
o saber nem querer, o leitor abre-se com mais íacilidade ; pode tomar
a atitude de discípulo muito dócil sem que alguém (nem o próprio
leitor) observe que se val rendendo ; o sugestionismo exercido pelo
escritor se assemelha muito a urna auto-sugestáo do próprio leitor
e. por isto, fácilmente passa despercebido a éste.

Ademáis, observe-se que a influencia da palavra falada é


geralmente rápida; impressiona no momento, mas pode ser
sem delongas superada pela influencia de outro agente que
sobrevenha; ao contrario, a acáo da palavra escrita, embora
seja menos impressionante e sensível, é mais duradoura e pro
funda; o livro fica sempre á disposigáo do leitor, que a ele volta
movido por urna simpatía talvez pouco consciente, mas real e,
por vézes, corrosiva.
Estas consideracóes nos levam a reconhecer o extraor
dinario alcance que pode ter a palavra escrita na formacáo de
urna personalidade humana.

2. Dentre as diversas categorías de livros, os que por si


tendem a exercer mais profunda influencia, sao certamente
os livros de doutrina.

As idéias constituem sempre as fórcas motrizes da atividade, de


modo que desatinar urna inteligencia é concorrer poderosamente para
o desmoronamento de urna ética. Ao contrario, quando apenas os
eostumes se corrompem, permanecendo incólumes as idéias na mente
do homem viciado, a situacao é menos grave; desde que tal individuo
reconheca que procedeu mal, um ato generoso de vontade auxiliada
pela graga de Deus, pode reergué-lo ao plano de vida anterior. Sendo
assim, compreende-se que os livros disseminadores de falsa filosofía
ou de erróneas concepcOes da vida sejam extremamente nocivos;
obras como as de Rousseau, Augusto Comte, Karl Marx marcam
etapas na historia...

— 119 —
Note-se, porém, que essas grandes sínteses doutrinárias
nao costumam ser de fácil acesso ao público; parecem enfado-
nhas ou obscuras a grande massa; por isto na vida cotidiana
nao constituem o tipo de leitura que mais prejudica o público.
Há outra modalidade de livros que, na realidade, maiores males
produzem; sao os chamados «romances ideológicos» ou «ro
mances de tese», aos quais vamos aqui dedicar breve reflexáo.
O romance ideológico se caracteriza por apresentar uma
doutrina, nao, porém, de forma abstraía, mas bem concretizada
num caso insinuante, que, sensível ou insensivelmente, tende
a se impor como modelo ao leitor. A Psicología ensina que toda
idéia humana é sempre acompanhada de uma imagem mental;
nao há idéia dissociada da respectiva figura concreta que a
excita e sustenta diante da inteligencia humana (basta lembrar,
por éxemplo, a origem do alfabeto : os sinais que hoje indicam
sons universais — A, B, C... — a principio indicavam os obje
tos concretos que, na mente dos homens, excitavam a reminis
cencia de tais sons). Pois bem; o romance ideológico atende
de maneira particular a ésse processo do conhecimento huma
no : descreve episodios e reproduz diálogos empolgantes, que
entram pela alma do leitor, apoderando-se de todas as suas
facuidades, despertando profundas ressonáncias; essas cenas
excitam naturalmente no leitor o senso de imitagáo, o desejo
sensacionalista (ora mais, ora menos consciente) de reviver a
aventura do herói da pega. É por isto que a literatura de ficcáo
inspirada por um fundo doutrinário se torna, junto ao grande
público, muito mais influente do que os volumes de filosofía
especulativa; estes, para ser assimilados, exigem mais esfórgo
do que os romances de tese; tem-se dito mesmo que o poder
sugestivo do romance é comparável ao de um hipnotizador; o
mau romance pode ser assemelhado também a uma toxina ou
a um cáncer que vai minando a estrutura intelectual e moral
do leitor.

2. «Eston ácima das influencias...»

Ao percorrerem estas linhas, talvez digam o homem culto,


na base de sua formacáo científica, e o jovem movido por seu
entusiasmo: «Sei perfeitamente subtrair-me as influencias do
livro. O mal queme possa ser sugerido, nao me afeta». Ora, sem
receio de errar nem de ser mesquinho, o homem realmente
sabio Ihes poderá replicar:

«Engana-se quem assim pensa. As leis da natureza nao nos


conseguimos subtrair com íacilidade. Pode acontecer que no momento
da leitura evoquemos- conscientemente idéias contrarias ás do livro

— 120 —
mórbido que vamos lendo; recalcaremos assim a fórca sugestiva do
mal, mas nem por isto a teremos debelado por completo. Como ja
dizia Voltaire, alguma coisa da mentira ou do erro sempre fica... O
que lemos passa a fazer parte do nosso psiquismo, desee á subcons
ciencia e mais tardé dai subirá como estimulo ao mal, como tentacáo
perigosa ; é um soldado inimigo que se introduziu na praca forte...>
(paráfrase do texto de L. Franca, A formacáo da personalidade 376).

Nao há dúvida, todo homem tende naturalmente a confiar


no seu espirito crítico, que o leva a discernir do bem o mal
e a aceitar aquéle com exclusáo déste. Em geral, porém, ensi-
nam os doutos experimentados que tal confianga decepciona
amargamente, pois, na verdade, é muito raro neste mundo um
espirito capaz de analisar objetivamente urna doutrina, distin-
guindo nela do provável o certo. O espirito auténticamente
critico supóe ampio conjunto de qualidades naturais: perspi
cacia, dom de análise, inteligencia penetrante, bom traquejo
da lógica, hábito de demonstragóes rigorosas, além de filosofía
sólida e cultura geral segura. Ora nao pode deixar de ser muito
exiguo o número daqueles que de fato dispóem de tal cabedal;
dentre mil pessoas que o julgam ter, talvez urna só realmente
o possua. Entende-se, porém, que a vaidade leve todo individuo
a se identificar com ésse único tal e a crer que sao os demais
homens que, por motivo de sua fraqueza, necessitam de se pre
caver de antemáo contra os assaltos do mal.
Além disto, faz-se mister frisar que ao cristáo jamáis
será lícito presumir algo de suas próprias foreas; a natureza
humana, deficiente como é, jamáis pode pretender haver atin
gido a impecabilidade. Toda a ascese crista visa, antes, avivar
no discípulo de Cristo a consciéncia daquela palavra incisiva
de Jesús: «Sem Mim nada podéis fazer» (Jo 15,5). A criatura
humana, por mais sabia ou santa que seja, só nao peca, porque
o Salvador gratuita e benévolamente a preserva disto; ora, já
que ninguém pode assegurar a si mesmo que de fato o Reden
tor Ihe concederá tal graca, torna-se ilícito ao homem (mesmo
ao que presuma ser douto ou virtuoso) expor-se voluntaria
mente aos assaltos do mal; expor-se sem motivo ao mal seria
tentar a Deus, isto é, presumir da parte do Senhor um auxilio
gratuito para satisfazer ao capricho humano (tal presuncáo
é pecaminosa). Em outros termos aínda : expor-se sem motivo
ao mal viria a ser o mesmo que aceitar o risco de cometer o
mal; e aceitar o risco do mal já seria, de certo modo, aceitar
o próprio mal.

3. Os ditames da Igreja

1. Sao os principios até aquí explanados que inspiram a


posigáo da Igreja em relagáo á leitura de livros. Ela sustenta,

— 121 —
sem dúvida, que nao é licito a qualquer homem ler qualquer
livro; a Santa Igreja, porém, frisa bem que tal restricáo,
antes de ser imposta por alguma lei eclesiástica, já é ditada
pela própria lei natural. Sim; se a palavra é o alimento da
alma, a palavra do erro ou da maldade é alimento venenoso
para a alma ; ora, assim como no plano corpóreo a lei natural,
anteriormente a qualquer norma do médico, veda ao individuo
tomar veneno conscientemente, assim também no plano espi
ritual a lei natural proibe a comunháo com a palavra vene
nosa ou com a má leitura. E ninguém, ao ingerir veneno,
alegue ter saúde bastante forte para se imunizar contra todo
e qualquer efeito do tóxico... A alegacáo seria tida como te
meraria e inconsistente.
Por conseguinte, na materia de que vimos tratando, a
fungáo da Santa Igreja consiste em lembrar a injungáo da
natureza e em explicitá-la, a fim de garantir os frutos da
mesma. A Igreja é Máe a quem o Senhor confiou a palavra
da Vida ou o depósito da Verdade para ser transmitido aos
homens. Consciente disto, a Esposa de Cristo julgou, e julga
sabiamente, ser sua missáo ir indicando e vedando aos seus
fílhos no decorrer dos sáculos os livros nocivos á vida da alma;
nao há pai nem máe que nao detenham seus filhos de brincar
com o fogo ou de manusear urna arma perigosa. Como se com-
preende, as leis da Igreja, neste setor, tém que ser universais,
abrangendo os fiéis de toda e qualquer carnada social; váo
seria legislar apenas para os fiéis que «nao tenham ma-
turidade de pensamento ou formacáo sólida», pois a fraqueza
humana é inerente aos próprios santos e doutos até o fim
desta vida.

2. Os. livros explícitamente proibidos pelo Direito Eclesiástico se


acham mencionados em um catálogo próprio dito «índice». Além dés-
ses, há livros proscritos por cláusulas gerais do Código de Direito
Canónico, independentemente de qualquer declaracao da autoridade
eclesiástica (cf. can. 1399) ; tais outros livros já íoram especificados
em «P.R.» 6/1957, qu. 10.

Quanto ao criterio seguró para se afirmar que um livro


é proibido pela própria lei natural, os moralistas ensinam o
seguinte: desde que alguém verifique que um livro, pelas
idéias que propaga, pelos sentimentos que sugere ou pela im-
pressáo geral que deixa na alma, constituí incitacáo ao pecado
e ameaca ao equilibrio interior, a consciéncia já o proibe ; há
entáo obrigagáo de suspender a respectiva leitura. Está claro
que todo livro obsceno ou lascivo por sua natureza é de an-
temáo vedado a qualquer leitor.

— 122 —
Sem dúvida, a Santa Igreja, ao explicitar o direito na
tural referente á leitura de livros, nao quer de modo algum
entravar o progresso da ciencia. Por isto os fiéis que real
mente necessitam de ler obras erróneas para poderem pro
pugnar a verdade ou o bem com maior conhecimento de causa,
estáo habilitados a fazer nesse sentido um requerimento á
autoridade eclesiástica, a qual lhes concederá tudo que fór
oportuno (para encaminhar devidamente tal peticáo, é conve
niente que se dirijam ao respectivo pároco ou confessor).

3. Uma reflexáo serena sobre o assunto aínda contribuirá para


evidenciar quao sabia é a insistencia da Santa Igreja em legislar sdbre
as leituras de seus filhos...
Os filósofos nos lembram que a vida presente é tareve e que só
no fim da vida a maioria dos homens descobre coisas que lhes teriam
sido litéis já em sua juventude, coisas entre as quais certamente se
deve enumerar o método de estado e trabalho... Sendo assim, vé-se
que, para evitar desperdigo de tempo e energía, convém a todo indi
viduo recorrer a um magisterio ou a uma autoridade que o preserve
de dar passos inúteis e tentar caminhos vaos na pesquisa da verdade
e do bem.
Ora tal magisterio é, por excelencia, o da Santa Igreja, a quem
Cristo confiou o depósito da Verdade e da Vida. Requer-se, portanto,
de todo cristao, seja humilde e aceite a sua condicáo de discípulo;
fazendo isto, aproveitará melhor os breves dias desta pere<rinacáo
terrestre e mais certeiramente atingirá o seu ideal. Sao estas as idéias
que nos sugere uma bela passagem de Jean Guitton no seu livro
«Apprendre á vivre et á penser» (pág. 11) :
«Entre os aforismos de Nietzsche, seria preciso gravar com ca
racteres de fogo... o seguinte: 'As verdades mais preciosas sao aque-
las que por último descobrimos; as verdades mais preciosas, porém,
sao os métodos'. Muitas vézes interroguei os homens e as mulheres
que eu via serem metódicos, isto é, que me pareciam obter belos re
sultados com esforgos limitados. Na maioria dos casos, eram pessoas
que haviam sido, em certa fase de sua vida, detidas pela doenca ou
por uma sensacáo persistente de esgotamento e de cansago, ou aínda
que estavam sobrecarregadas de tarefas e haviam sido obrigadas a
avaliar o preco do tempo. Chama a atencáo o fato de que aqueles que
nunca foram doentes e gozam de saúde quase excessiva, nao sao
metódicos e perdem seu tempo. bem insubstituivel. Lembro-me de
Darwin, que escreveu e descobrlu tanta coisa e que só podia traba-
lhar duas horas na parte da manhá ; depois de haver ditado durante
dez minutos, dizia ele a seu f ilho : 'Basta'. É bom, seja breve o
tempo que nos é deixado para produzirmos ; é bom, seja ele táo
precioso quanto essa existencia sublime e tao precaria que só nos
é dada uma vez».

Consciente destas verdades, o cristáo compreenderá melhor


que nao interessa ler toda e aualquer obra que lhe caía em
máos (para satisfazer á curiosidade ou para afirmar uma liber-
dade vá), mas interessa ler com método... com o método com-
provado pela experiencia dos séculos no seio da Santa Igreja !

— 123 —
V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

JOVEM MODERNA (Rio de Janeiro) :

6) «Que sentido tem a clausura dos mosteiros e conven


tos femininos ?
Nao significa depreciacáo da mulher, devida principalmen
te ao Concilio de Trento ?
Ha também quem julgue a clausura nociva á saúde e
contraria as tendencias de nossos tempos !»

«Clausura», no sentido canónico, é o conjunto de leis que,


de um lado, restringem o acesso de estranhos aos recintos onde
vivem Religiosos e Religiosas (clausura passiva) e, de outro
lado, limitam a liberdade de sair désses Religiosos e Religiosas
(clausura ativa).
Quando tais leis sao estabelecidas pela Santa Sé mesma,
tem-se o que se chama «a clausura papal»; esta é própria dos
professos de votos solenes e só pode ser modificada, extinta
ou dispensada pelo Sumo Pontífice. Dado, porém, que as regras
de clausura provenham do bispo da respectiva diocese, a clau
sura é dita «episcopal»; está em vigor ñas Congregagóes de
votos simples e pode ser modificada pelo bispo diocesano mesmo.
A distingSo entre votos solenes e votos simples perpetuos nao
se deve ao aparato externo (canto, música, flores...) que acompanhe
a emissáo dos primeiros. O principio de discernimento é antes de
índole jurídica.
Os votos solenes sao aqueles que, por disposicáo da Santa Igreja,
acarretam conseqüéncias mais ampias e rigorosas, a saber:
a) todo ato contrario a um voto solene é nao somonte ilícito (o
que se dá no caso de um voto simples), mas também inválido; assim
um contrato de venda, doagáo ou permuta feito sem as licencas ne-
cessárias por um Religioso ou urna Religiosa de profissáo solene
nao sómente é grave pecado, mas é jurídicamente nulo. O matrimonio
religioso contraído após o voto solene de castidade é ato destituido
de toda validade;
b) no intervalo dos sessenta dias que precedem a profissáo so-
lene, o Religioso e a Religiosa tém que se despojar de todos os seus
bens pessoais, fazendo q seu «testamento» (can. 581). Ao contrario,
o proíesso de votos simples normalmente conserva até a morte a
propriedade de seus bens e até a capacidade de adquirir novos have-
res (can. 580) ;
c) os mosteiros e conventos de votos solenes sao regidos pelas
normas da clausura papal, normas cuja violacáo implica excomunháo,
da qual só a Santa Sé pode absolver (can. 2342). Ao contrarío, a
clausura dos Religiosos de votos simples, clausura episcopal, é nor
teada por regras menos severas.
A fbn de entendermos devidamente o significado da clausura re
ligiosa, focalizaremos abaixo a espiritualldade que a inspira ; pas-

— 124 —
saremos, a seguir, á consideragáo das principáis etapas históricas que
lne imprimiram sua configuracáo moderna.

1. A espiritualidade da clausura

1. A prática da clausura ou da vida retirada é movida


por um elemento de importancia capital na espiritualidade cris
ta, ou seja, a consciéncia de que éste mundo, mesmo após a
vinda de Cristo, ainda está sujeito á influencia de Satanaz. É
principalmente Sao Joáo quem incute essa visáo da realidade :
«Nao améis o mundo
nem algo do que está no mundo.
Se alguém ama o mundo,
o amor do Pai nao se acha néle.
Pois tudo que está no mundo —
— a concupiscencia da carne,
a concupiscencia dos olhos
e a soberba da vida —
nao vem do Pai, mas do mundo».
(1 Jo 2,15s).

Está claro que o Apostólo nao repudia o mundo no sentido


físico, mas, sim, enquanto é portador de u'a nota moral; com
efeito, os homens que vivem neste mundo, ainda sao freqüen-
temente vítimas de Satanaz e da concupiscencia desregrada,
de sorte que por sua vida e sua atividade ocasionam um clima
de alheamento a Deus. O cristáo nao pode deixar de perceber
éste antagonismo e as dificuldades que daí decorrem para a
realizacáo de urna vida profundamente unida ao Senhor. Em
conseqüéncia, impóe-se a todo discípulo de Cristo que deseje
ser coerente com seus principios, a tarefa de se afastar do
mundo em grau ora mais ora menos acentuado.
A separacáo tem que se efetuar principalmente no espi
rito do cristáo ; éste nao pode pactuar sem reservas com o
modo de pensar e estimar que move a vida mundana. A se-
paragáo espiritual, porém, exige o indispensável esteio de
urna separacáo física ou topográfica, pois o espirito do homem
depende, em larga escala, da materia, de sorte que todo ideal
de perfeigáo envolve sempre um aspecto interior invisível e
um aspecto exterior ou visível.

Tais idéias explicam que, desde os primeiros séculos os cristáos


desejosos de maior perfeicao espiritual se tenham esforcado por
viver & distancia do rebulico mundano. Quando, a partir do séc. IV,
a vida ascética se foi organizando em cenobios ou mosteiros, os le
gisladores monásticos foram ditando normas referentes á localizado
dos monges e ás suas relac.5es com pessoas do mundo ; nos mosteiros
de Sao Pacómio (t 346), por exemplo, os visitantes eram recebidos

— 125 —
em dependencias especiáis situadas junto á porta do cenobio. Mais
tarde, Sao Bento (t 543) prescrevia a seus monges, procurassem «tor-
nar-se alheios aos costumes do sáculo» ; em vista disto, quería que
os Religiosos saissem o mínimo possivel da casa de Deus e que quem
saisse, se abstivesse de narrar aos Irmáos as novidades de que tivera
noticia no mundo.
Nao podiam deixar de influir nessa espiritualidade algumas im-
pressionantes cenas bíblicas. Foi, sim, no coragáo do deserto que Deus
se manifestou a Moisés por meio da sarca ardente (cf. Éx 3,2); foi
no deserto que Elias percebeu a brisa pela qual o Senhor assinalava
a sua presenca (cf. 3 Rs 19,12s) ; foi também no érmo que Sao Joáo
Batista ouviu a palavra de Deus e comecou a pregar penitencia
(cf. Le 3,2).

Assim a separado do mundo — separacáo espiritual e


local — tornou-se um dos elementos característicos da vida
religiosa; conseqüentemente já em plena Idade Media Sao
Tomaz ensinava que ao Religioso incumbem quatro deveres
especiáis: «permanecer solícitamente no mosteiro, prestar
obediencia ao Superior, evitar a ociosidade e entregar-se á
oragáo» (De virt. et vitiis op. 64).
Consciente disto, Santa Teresa de Avila (f 1582) com-
parava suas Religiosas a peixinhos que, urna vez colocados
fora dágua, ou seja, fora da clausura, se devem sentir desam
bientados e sequiosos de voltar ao «habitat» conatural:

«Como os peixinhos que um golpe de rede arrebata para fora


do rio, nao podem continuar a viver a nao ser que voltem as. aguas,
assim sao as almas habituadas a se encontrar em meló as aguas vivas
do Esposo. Caso as tiréis déste ambiente para langá-las ñas redes das
coisas do mundo, elas como que deixam de viver até o momento em
que Ihes é facultado mergulhar-se de novo» (Fundacoes 31).
Com estes dizeres, alias, Santa Teresa nao fazia senáo retomar
urna imagem consagrada pelo Pai do monaquismo, Santo Antáo
(t 356) : «É preciso que, k semelhanca do peixinho que volta ás
aguas, nos retornemos para a monlanha (deserta)» (S. Atanásio, Vita
Antonii 85).
O Papa Eugenio IV (1431-47), por sua vez, recorría a metáfora,
realcando em termos simples o misterio que a clausura deve repre
sentar para os Religiosos : «Como o peixe fora dágua perece, assim
o monge fora do mosteiro. Permanega, por conseguinte, solitario e
taciturno, iá que está morto para o mundo e vive para Deus» (C.
Placuit c. XVI 2,1).

2. Ainda se deve mencionar outro tema de espirituali


dade que, embora em proporgóes mais restritas, deve ter con
corrido para fomentar o amor á vida reclusa : os antigos as
cetas cristáos, principalmente no Oriente, estimayam muito a
chamada «stenochoria», isto é, o fixar-se num recinto estreito,
por vézes contiguo a urna igreja (até mesmo posto em comu-
nicagáo com esta por meio de urna janelinha) ; permaneciam

— 126 —
habitualmente nesse cubículo nao sómente para se preservar
do espirito do mundo, mas também para fazer penitencia.

Dentre as modalidades dessa praxe, assaz conhecido, por exemplo,


é o «estilitismo», imobilizacáo de determinado homem de Deus sobre
urna coluna («stéle», em grego) ou sobre um lugar elevado, de es-
treitas dimensóes.
O mais íamoso asceta désse género é Sao Simeáo Estilita, dito
«o Antigo», do qual citamos aqui alguns traeos 'biográficos.
Nascido na Asia Menor (Sis) em 389, Simeáo resolveu servir a
Deus em comunidade, no mosteiro de Teleda. passando dez anos na
prática das mais severas austeridades; após éste periodo, retirou-se
para as montanhas, em busca de maior solidáo, instalando-se dentro
de urna cisterna vazia. Foi, porém, descoberto ; retlrou-se entilo para
urna cela em Tellnesin. perto de Antioquia. No inicio de urna Qua-
resma. pediu a um amigo, Bassus, que o cercasse de u'a muralha
durante os quarenta dias, sem alimento. Já que Bassus se recusava
a isto, o asceta resolveu aceitar dez páes e um jarro de agua, que
ele usarla em caso de necessidade ; á vista disto, Bassus O murou
de todos os lados. No iim da Quaresma, quando os amigos foram
ver Simeáo. encontraram-no prostrado por térra, quase sem respi
rado ; reanimaram-no. porém. deram-lhe a S. Comunháo e conse-
guiram oue comesse algo de leve.
Simeao permaneceu nessa cela durante tres anos, no fim dos
nuais se mudou para outro local, mandando construir urna cérea em
torno de si; passeava no interior dessa clausura, tendo um de spus
nés nréso a rmsada ppdra por urna corrente de vinte cóvados. Um día,
rwebeu a visita do b'spo Molécio. de Antioouia, que lhe aconselhou
renunc'assn a corrente e íicasse detido apenas por sua vontade;
tendo Simeáo consentido na sugestáo, um ferreiro o soltou do vinculo
material.
Acontecía, porém, que o asceta granjeava creseente nomeada,
tornando-se alvo de peregrinagSes: doentes e aflitos a ele acorrlam,
desejosos de tocar o seu corpo ou de levar alguma parcela de sua
veste. Diante disto. Simeáo decidiu subtrair-se á multidáo, procurando
refugio sobre urna coluna: conseguiu, sim, que lhe talhassem urna
coluna de seis cóvados, deoois urna de doze. mais tarde outra de
vinte c dois cavados, outra de trinta e seis e. finalmente (a ouanto se
pode depreender das fontes). urna de nuarenta cóvados... fainda hoje
se mostra ao menos a base da coluna de Sao Simeáo em Kalat' Seman,
na Siria). No alto désse monumento o homem de Deus vivia em pé,
sem abrigo, suportando um clima ripovoso no invernó e no veráo, re
vestido semore com o mesmo trate. Sua principal ocupacáo era orar;
permitía a certos peregrinos que déle s*> aproximassem mediante urna
e.scada. a fim de receber do santo corseHio* « até beneficios tempo-als
(principalmente a cura de doencas). O estilita nño deixava de receber
os sacramentos: um sacerdote celebrava a S. Missa ao pé da coluna;
no momento da ComunhSo ou o asceta fazia baixar um cestinho, no
qual o celebrante depositava as especies consagradas, ou o sacerdote
subia por urna oseada ao topo da coluna, levando o sacramento ao
asceta.
Simeáo perseverou nesse regime durante 37 anos, vindo a morrer
no seu retiro provávelmente aos 24 de julho de 459.
Numerosos, principalmente na Siria, foram seus imitadores até
mesmo do sexo feminino; alguns, em vez de se fixar sobre urna
coluna, escolheram como refugio urna árvore, no topo ou no tronco

— 127 —
da qual habitavam (eram chamados «dendritas»). O povo cristao
oriental sempre dedicou grande veneragSo aos santos estilitas.
Por muito estranha á mentalidade moderna que sela a historia
de S. Simeáo, os críticos, examinando as respectivas fóntes, tém a
narrativa como fidedigna.

O que nos interessa por em realce aqui, é a mentalidade


do estilita, ou seja, o afá de servir a Deüs mediante a fixacáo
em determinado lugar que preserve o asceta de amiudado con
tato com o mundo. Ésse amor á reclusáo deve ter influido
para a estima da clausura dos mosteiros e conventos tal como
ela aínda hoje é praticada.

3. O que acaba de ser dito a respeito do espirito da clau


sura se acha bem compendiado na metáfora abaixo, devida á
pena de um beneditino do séc. XVm, Dom du Sault:

«O Religioso deve assemelhar-se... a urna nave mercante a viajar


em alto mar... A nave está dentro do mar, mas o mar em absoluto
nao está dentro da nave ; os marujos tomam todas as medidas possí-
veis para impedir que a agua ai entre ; caso esta se introduza por
urna brecha qualquer, tratam de a retirar quanto antes e de a lancar
fora. Assim o Religioso está no mundo, mas o mundo nao deve estar
no coracáo do Religioso ; éste deve, até as últimas conseqüéncias,
vigiar para nao ser invadido pelo mundo. Se algo das vaidades e
da corrupcSo mundanas se insinuar no Religioso, éste bani-lo-á sem
demora... A nave pode estar no mar, mas nao se detém ; demanda o
porto e serve-se das aguas para chegar a éste. O Religioso está no
mundo, mas nao deve prender seu coracSo ao mundo; ao contrario,
há de se servir do mundo e das criaturas, para alcancar o pftrto da
eternidade bem-aventurada> (Avis et réflexions sur les devoirs de
l'état religieux t. I, ch. IV).

Vejamos agora rápidamente como através dos tempos até


o dia de hoje foi sendo observada a clausura religiosa.

2. Circunstancias históricas e praxe atiial

Focalizaremos apenas a clausura das comunidades íemininas. ¡á


que a dos cenobios masculinos nao costuma provocar serias i

1. A legislacáq referente á clausura das monjas se foi


defínindo aos doucos desde o séc. IV (Sao Basilio), seja por
obra dos fundadores de mosteiros, seja por intervencáo de
concilios.
A primeira lei universal, neste setor. é a Constituicáo
«Periculosa» (1298) do Papa Bonifacio Vm (f 1303) : proibia
a todas as monjas, saissem do mosteiro, excetuado apenas o
caso de doenca perigosa para o resto da comunidade ; quanto
a pessoas estranhas, só poderiam entrar no cenobio com ex-

— 128 —
plícita autorizagáo. Caso fosse absolutamente necessário que
urna Abadessa saísse para prestar homenagem ao respectivo
senhor feudal, ela o poderia fazer, acompanhada de comitiva
adequada e á condigáo de voltar quanto antes ; de resto, o
Papa Bonifacio Vin rogava a principes e senhores feudais
que se contentassem com urna homenagem prestada por
procuragáo.

Os ¡mediatos precedentes desta lei dáo a ver que se devia a rela-


xamentos verificados na observancia regular.
O concilio de París, por exemplo, em 1248 prescrevia : «Nenhuma
Religiosa sairá ou passará a noite íora do convento sem razáo muito
grave. Serao muradas as portas inúteis ou suspeitas. Os bispos cui-
aaráo para que os escándalos produzidos em nossa época nao se
renovem» (can. 12).
O Capítulo Geral das monjas cistercienses em 1242 determinava,
«para a salvagáo das almas e a conservagáo da boa íama da Ordem»,
que as monjas só íalariam com estranhos por detrás de espéssa grade,
«...excetuadas as Abadessas e as Ecónomas, quando tém que sair
para tratar de suas incumbencias» (Statuta Generalia n* 61).

Embora muito oportunas, as determinagóes do Papa Bo


nifacio VIII parecem nao ter sido adotadas em toda parte.
Conseqüentemente, o concilio de Trento em 1563 as renovou,
acrescentando a pena de excomunháo para quem entrasse sem
autorizacáo na clausura das monjas. O Concilio, apelando
para o tremendo juSzo de Deus, exortava os bispos a que vi-
giassem pela conservagáo da clausura onde ela existia, a
restaurassem onde fóra violada, e, caso fósse necessário para
a consecugáo do objetivo, recorressem ao auxilio do brago
secular.

No mesmo séc. XVI, Sao Carlos Borromeu (t 1584), arcebispo


de Miláo, aplicou-se em sua diocese á reforma dos mosteiros íemi-
ninos, mandando colocar, as próprias custas, grades nos parlatorios,
caso isto fosse necessário ; quería assim cortar toda ocasiáo de se
desvirtuar o espirito da clausura.

Pouco após o Concilio de Trento, Sao Pió V chegou a


fazer da observancia da clausura, nos termos definidos pelo
Concilio, condigáo indispensável da vida religiosa. Com efeito,
em 1566 impunha que todas as Religiosas proferissem votos
solenes e que todas as professas de votos solenes observassem
a clausura. O Pontífice, em 1570, reconhecia contudo tres
causas que legitimavam a saída do mosteiro: incendio, lepra,
doenga contagiosa ; qualquer saída inspirada por outro motivo
seria punida com a excomunháo. — Em virtude déstes decretos,
só poderia haver Religiosas de votos solenes e enclausuradas
no sentido mais estrito possível. As que nos tempos subse-

— 129 —
qüentes nao satisfizeram a tais normas, nem sequer foram
enumeradas, por alguns canonistas, na categoría de Religiosas
(em sentido jurídico), mas foram tidas apenas como «piae
mulieres» (piedosas mulheres).
No séc. XVIII, porém, as exigencias do apostolado obri-
garam á revisáo de táo rígidas normas : foram, já sem difi-
culdade, aprovadas pela Santa Sé familias religiosas cujos
membros só emitiam votos simples e nao ficavam sujeitos á
clausura papal, mas a um tipo mais suave de clausura, dita
«episcopal» ; as pessoas que professassem em tais condigóes
seriam doravante tidas como verdadeiras Religiosas no sen
tido jurídico (o que representava certa inovacáo no Diveito
Canónico) ; sao hoje em dia muito numerosas e constituem
as chamadas «Congregares Religiosas», jurídicamente bem
distintas das «Ordens Religiosas», que costumam emitir votos
solenes e geralmente sao anteriores ao séc. XVI.

No fim do séc. XDC e no inicio do séc. XX novos abrandamentos


se verificaran! em vista do apostolado : a própria clausura episcopal
íoi mitigada, de modo que se formaram Sociedades Religiosas cujos
membros em parte vivem no século e podem sair livremente, mesmo
á nojte, para se dedicarem ao trabalho missionário. Contudo a Santa
Igreja conserva a norma segundo a qual os votos solenes tém que
ser sempre acompanhados de clausura papal: para que as monjas
possam sair desta. a nao ser em casos de urgencia, requer-sc auto
rizado da Santa Sé (a qual oportunamente delega seus representantes
ou Nuncios ñas diversas nagóes), autorizagáo que costuma ser dada,
desde que para isso haja motivo ponderoso.

2. Como se vé por éste rápido esbóco histórico, a Igreja,


de um lado, reconhece as múltiplas exigencias de apostolado
dos tempos atuais, permitindo a adaptagáo da vida religiosa
ao regime mesmo de missóes. Doutro lado, porém, Ela deseja
continué a haver entre os cristáos vida estritamente enclau-
surada, definida por legislacáo assaz rigorosa...
Tal situa?áo suscita naturalmente a pergunta: por que
motivo a Igreja aínda mantém a preocupagáo de que haja
clausura ?
— Frisemos, em primeiro lugar, que o aparato material
e contingente da clausura (grades, pontas de ferro, cortinas
espéssas, etc.) se deve a circunstancias próprias de épocas
passadas : foi preciso na Idade Media, e ainda no séc. XVI,
defender os mosteiros femininos contra prevaricadores sorra-
teiros e salteadores violentos ; um cenobio de monjas, ¡solado
na montanha ou na planicie, podia tornar-se objeto muito
atraente para a cobica dos homens malvados. Daí a razáo de
muñir a clausura... O que hoje em dia, porém, interessa á

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Igreja, é que ésse ambiente, munido de grades e cortinas como
ele é, ocasionou clima muito propicio ao desenvolvimento de
urna espiritualidade própria e intensa ; valores religiosos alta
mente apreciáveis encontram dentro da clausura estrita o seu
estimulante especial, estimulante que de outro modo éles cer-
tamente nao teriam.
A Santa Igreja nao quer que tal espiritualidade se perca;
por isto é que Ela ainda hoje conserva á instituigáo da clau-
sura^ .até mesmó com seu aparato histórico. É verdade que a
Esposa de Cristo nao faz questáo de que os cenobios désse
tipo se multipliquen! indefinidamente ; 'se as circunstancias
de saúde debilitada e de educafiáo moderna levam as" almas
em nossos dias a procurar outro.tipo dé vida religiosa menos
fechada ou mais dada ao apostolado externo, a Santa Igreja
lhes oferece longa escala de modalidades de vida conventual;
ninguém, para se consagrar a Deus, é obrigado a entrar em
clausura papal. Nao obstante, segundo a mente da Santa
Igreja, esta continua a constituir o clima mais oportuno ou
o clima por excelencia para o cultivo de determinada flor de
espiritualidade... Felizes as almas a quem o Senhor chama
para professarem tal tipo de vida !

Sao fistes os motivos polos quais a Igreja ainda em nossos dias


defende a vida contemplativa enclausurada. A legislacáo eclesiástica
concernente a éste assunto, longe de depreciar a mulher ou de' ma
nifestar desconfiaba para eom ela, equivale á afirmacáo de urna
tese capital: a uniáo com Deus, quanto mais pura e intensa é,
tanto mais fecunda e valiosa se torna ; a alma de todo o apostolado
é a vida de oragáo ; se nao fdssem as almas contemplativas, os
missionários e apostólos careceriam de seus colaboradores mais va
liosos, ou melhor. indispensáveis. — Estas idéias dáo suficientemente
a ver o imenso valor que tem a vida de urna Religosa que em sua
clausura permanega fiel aos santos votos.
Doutro lado, a prova de que a Santa Igreja nao menospreza os
valores femininos, está outrossim no fato de que, justamente a
partir do séc. XVI (época do Concilio de Trento, que muito acentuou
a clausura das monjas), novas tarefas (educagáo e instrugáo da ju-
ventude, enfermagem nos hospitais, catequese dos pagaos...) foram
sendo confiadas a mulhere.s especialmente organizadas para tais fins.
É o que o Santo Padre Pió XII lembrava enfáticamente numa de
suas alocucóes sobre o apostolado leigo :
«Foi precisamente desde o santo Concilio de Trento que. o laicato
tomou posicao e progrediu lia atividade apostólica. É coisa fácil de
se verificar; basta recordar... a introducto progressiva da mulher
no apostolado moderno. E convém. a éste propósito, lembrar duas
grandes figuras da historia católica : urna é a de María Ward, essa
mulher incomparável que, ñas .horas mais negras e mais sangrentas,
a Inglaterra católica deu á Igreja; a outra, a de S. Vicente de Paulo,
figura incontestávelmente de primeiro plano entre os fundadores e
os promotores das obras de caridade católica» (Discurso aos partici
pantes do I Congresso Mundial do Apostolado dos leigos, proferido

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aos 14 de outubro de 1951 e aqui transcrito da «Revista Eclesiástica
Brasileira» 11 [1951] 967).
A guisa de ilustracao, note-se: Mary Ward (t 1645) quis fundar
sob o patrocinio da Bem-aventurada Virgem Maria urna Congregacáo
de Religiosas que nao estivessem sujeitas as leis da clausura. A Santa
Sé deu-lhe a saber que o Concilio de Trento nao reconhecera Religio
sas sem clausura.

Por último, será oportuno notar que, apesar de todas as


adaptacóes da vida religiosa as exigencias dos tempos moder
nos, a clausura representará sempre o ideal que as almas con
sagradas devem reproduzir em si, mesmo quando nao lhes é
dado gozar dos beneficios da separacáo topográfica do mundo.
Tenham-se em vista, a éste propósito, os dizeres de S. Vicente
de Paulo dirigidos as Filhas da Caridade, cuja vida é toda
dedicada aos enfermos e as criangas:

«Tereis por mosteiros as casas dos doentes; por cela, o cómodo


que vos fdr alugado; por cápela, a igreja paroquial; por claustro, as
rúas da cidade; por clausura, a obediencia ; por grade, o temor de
Deus ; por véu, a santa modestia» (Obras, t. 10 pág. 661).

Como se vé, o espirito de clausura levará sempre as almas


consagradas a Deus a viver no mundo como se a éste nao
pertencessem, pois na verdade «passa a figura déste mundo»
e só interessa ao cristáo aderir ao Bem que nao passa (cf.
1 Cor 7, 31).
»

D. ESTÉVAO BETTENCOURT O. S. B.

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