Sie sind auf Seite 1von 50

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEtNTTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperarla a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'.■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
IL vista cristáo a fim de que as dúvidas se
.. dissipem e a vivencia católica se fortaleca
" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.
Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte_ e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
* f\ (H \S Y 1 1

30

76
abrí

1 9 6
ÍNDICE

L FILOSOFÍA E RELIGIAO
Pó».

1) "Praticar a Religido f
Tenho minhas objecóes :

r :
a) Creio... Rezo em meu íntimo. Deus me vé. Basta I
b) Prático a meu modo. Nao é preciso que mo ensinem I
e) Fé em dogmas rebaixa a dignidade humana !
"*"" d) Nao tenho tempo para rezar!

Quem me garante que nao tenho raz&o f" H7

II. SAGRADA ESCRITURA

2) "Como se pode dizer que, ao confiar María Virgem a


S. Joáo Evangelista no Calvario, Jesús tornou sua Müe Santis-
8tma a Mde de todos os homens ? Cf. Jo 19, 25-27" 157

III. MORAL

3) "Qual o conceito cristáo de trabalho em geral f


Será valor positivo ou castigo ?" 16¿

i) "E qual a posicáo do Cristianismo diante do trabalho


manual, também dito servil, em oposic&o ao trabalho chamado
liberal?
Aprégo ou menosprézo ?" 17S

TV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

5) "Quisera saber algo sobre a vida de D. Vüibrordo Ver-


kade, pintor incrédulo que se fez monge" 18S

CORRESPONDENCIA MIODA 190

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPO N D EREMOS »

Ano Vil —N» 76 —Abril de 1964

Í."Í1LOSOFIA E REUGIAO

LUIS (Rio Grande):

1) «Pratícar a ReligiSo?
Tenho minhas objecoes:

a) Creio... Rezo em mcu íntimo. Deus me ve. Basta!


b) Pratico a mea modo. Nao é preciso que mo ensinem!
c) Fé em dogmas rebaixa a dignidade humana!
d) Nao tenho terapo para rezar!

Quem me garante que nao tenho razáo?»

Ñas páginas que se seguem, procuraremos elucidar as quatro diíi-


culdades ácima com simplicidade, recorrendo, entre outras coisas, a
certas analogías aptas para ilustrar o verdadeiro sentido da prática
religiosa.

1) «Tenho minha Religiáo. Creio em Deus e rezo no mea


íntimo. Deas me vé... Tudo mais é invencáo dos homens!»

A esta declaragáo pode-se responder em nome da psicolo


gía humana e em nome da experiencia da vida. Vejamos suma
riamente o que entáo se dirá.

a) Fala a psicología... A psicología ensina que o homem


é um ser composto de espirito e materia ou de alma e corpo-
Por conseguinte, tudo que é humano, traz necessáriamente o
cunho do corpóreo. O homem que queira esquecer esta reali-
dade, dando-se ao chamado «angelismo», desvirtua-se, em vez
de se enobrecer.

Haja vista a ciencia do homem. É um valor intelectual, espiritual;


valor, porém que a pessoa s6 adquire mediante sinais sensiveis (letras,
números, livros, gráficos, etc.) e que só utiliza mediante tais recursos.
Outro valar humano seriam os bons costumes, a polidez e, em
geral as virtudes... Note-se, porém, que a crianca s6 entra na posse
désse' patrimonio devagar, á custa de representacSes bem concretas,
como sao a perspectiva de um castigo sensivel ou a de urna recompensa
palpável.

v — 147 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 1

Em suma : o invisível nao atrai o ser humano nem.lhe é acessível


senao mediante o visivel.

Urna vez adquiridos, ésses valores no homem se nutrem


constantemente de sinais sensiveis; ao mesmo tempo tendem
espontáneamente a se exprimir por tais sinais.

Sim. Lévese em conta o seguinte fenómeno :


A expressáo latina «sénior meus» quer dizer, ao pé da letra, «neu
mais velho» ou também «meu anciáo». Na lfciguagem brasileira coti
diana, pode ser traduzida por «meu velho» ou também por «meu
senhdr». ,i
Ora estas duas maneiras de traduzir, embora manifestem a mesma
idéia fundamental, suscitam, nos homens, afetos ou atitudes Interiores
diferentes pelo simples fato de empregarem palavras ou sons exteriores
diferentes. Com eíeuo; quem diz. «meu velho», exprime e alimenta
urna atitude de familiaridade e intimidade; é éste o tratamento de
amigo a amigo ou de colega a colega. «Meu senhor», ao contrario, mani-
íesla e nutre atitude de respeito e obsequio; é o tratamento de subalter
no a chefe. Embou-a o conceuo de base seja o mesmo em ambos os casos
(«meu anciáo»), cada urna das suas formulac6es sensiveis acarreta urna
"disposicáo de espirito dife.ente. Quem interpelasse um anciáo-chefe
por «Meu velho», ofendé-lo-ia; doutro lado, quem desse a um anciao-
•colega o titulo de «Meu senhor», prejudicaria a amizade ou o «colé-
guismo» natural.

Mais ainda: Quem senté dor, tende naturalmente a gritar. Quem


experimenta raiva ou furor, espontáneamente gesticula. Gritando ou
gesticulando, o homem se «desabafa». Por sua vez, o clamor e os gestos
iepe.cuiem na auna; ajudam-na a refletir sobre a sua atitude e, con-
seqüentemente, a disciplinar o seu comportamento.

Tais exemplos bem mostram como o corpóreo (sensível) e


o espiritual (invisivel) se condicionam mutuamente no homem.

Verifica-se mesmo que os valores interiores tendem a se


«evaporar» ou extinguir, caso nao sejam afirmados por sinais
sensiveis; o individuo poderá chegar ao ponto de julgar que
possui tal ou tal predicado, mas ilusoriamente...; já o terá
perdido por falta de expressáo concreta ou de atuacüo.
É o que se dá, por exemplo, com a arte de tocar piano: se nao é v
exercitada regularmente, definlía e acaba perecendo. É o que se dá
também com o conhecimento de urna lingua estrangeira: se nao é
aplicado em leituras ou coloquios, esvanece-se.

Ora o mesmo se verifica com o senso religioso. O homem


nao o pode reduzir a urna atitude meramente abstraía, nem
pode cultivar a Religiáo como cultiva a metafísica. Urna reli-
giáo meramente abstraía se tornaría puro palavreado elegante*-
de que o individuo usaría para servir a seos caprichos sob o
pretexto de servir a Deus. Seria algo de muito cómodo, pois
permitiría que o individuo fósse o seu próprio legislador reli-

_ 148 — '
PARA QUE PRATICAR A RELJGIAO ?

gioso, isento de dar coritas a qualquer autoridade objetiva. Isto,


alias, nao pode deixar de seduzir o orgulho humano. Daí a
moda...

b) Fala a experiencia... Ninguém ata verdadeira ami-


zade com outra pessoa ém virtude de um silogismo ou de um
raciocinio meramente especulativo. Da mesma forma., ninguém
escolhe a sua esposa ou opta pela sua carreira na vida por
causa de urna «demonstragáo peremptória». Há certos valores
que o homem tem de abra ar por outra via que nao a da pura
especulagáo, mas em virtude de afinidade ou conhecimento ex
perimental. Entre ésses valores, está Deus : Deus é um Ser
vivo, é o primeiró Amigo, é o Pai, nao urna fórmula retórica
ou urna definicáo filosófica. Disto se segué que, para conhecer
deveras ésse Ser, é preciso fazer urna experiencia de vida ou
praticar a Religiáo. O exercício da Religiáo agu^a o ólho da
fé, caso éste se ache embotado; corrobora a crenca.

Na verdade, Deus ultrapassa todo o entendimento humano, de modo


que nao é sómente pelo estudo que o homem O vai conh.ececido, mas
é principalmente pelo devotamente total ao Senhor na prática da Re-
ligiSo.

Dizia muito bem Pascal: «Podes crer. Quando fizeres os


gestos que a Religiáo pede de ti, encontrarás a Fé».

O pensador francés distinguía nesta frase entre «crer» e «encon


trar a Fé». «Crer» seria aceitar fielmente as verdades do credo; «encon
trar a Fé» seria experimentar o sabor, o deleite que o convivio com o
mais rico dos seres nao pode deixar de proporcionar a todo fiel.

Por conseguinte, quem afirma .que tem Religiáo, mas nao


a pratica, corre o perigo de se iludir; cedo ou tarde talvez veri
fique que nao tem Religiáo. Será sempre assaz alheio ou estra-
nho perante Deus. É preciso «assumir o risco» de praticar, para
«ficar sabendo» o que há na Religiáo; requer-se, pois, um pouco
de coragem ou um arranco semelhante ao de um salto no es
curo, para que a pessoa comece a entender realmente a gran
deza da Religiáo.

Tenha-se em vista mais a seguinte analogía: Um nadador deseja


aprender-a arte de mergulhar. Sobe, portanto, ao trampolim da pis
cina... Lá, porém, p8e-se a considerar as circunstancias, os riscos e
perigos do salto... e acaba nSo pulando; falta-lhe a coragem'. Acon-
tece-lhe isto tñdas as vézes que tenta pular. Um belo dia, sobrevéin por
tras um amigo que o empurra para dentro da agua. Que aventura!
Talvez o primeiro contato do nadador inexperiente com as profundezas
da piscina tenha sido desagradável. A experiencia, parém, tórna-se
salutar; dissipa o médo. O jovem empurrado em breve passa a disputar

— 149 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 76/1964. qu. 1

torneios de mergulho com os companheiros, e empurra outros para


dentro da agua...
^Fenómeno paralelo se verifica em Rellgiao. Enquanto alguem nao
a pratica mal sabe o que ela é, ilude-se a seu respeito. Tenha um día a
coragem de se lancar, ou de se deixar lancar, na prátlca da Religlao; e
verá que nao terá dado passo em falso! Ao contrario...: a experiencia
lhe desvendará horizontes que essa pessoa nunca terla suspeltado.

Contudo talvez replique um interlocutor :

2) «Pratico a Religiáo. Mas pratico-a a meu modo. Nao.


vejo a necessidade de pertencer a um grupo religioso determi
nado, obedecendo a normas...»

Em resposta, observe-se o seguinte :


O homem é um ser eminentemente social, como já notava
Aristóteles. Nasce, forma-se e consuma-se no convivio com os
demais homens.

Esta tese soíreu forte contradicáo por parte do filósofo francés


Jean-Jacques Rousseau (t 1T78), para quem a sociedade é fator de per-
versáo da personaüdade humana. — Embo-a as idéias de Rous-eau este-
jam superadas como tais, contribuiram fortementé para suscitar a men-
talidade individualista do homem moderno.

Tenha-se em vista quanto um individuo é dependente de


outros para a aquisigáo da ciencia e da cultura. Entregue a si
mesmo, o individuo definharia em todos os setores da sua per-
sonalidade.

Esta verdade, que já os antigos filósofos inculcavam, é comprovada


por interesante fenómeno da vida moderna. O individuo contemporáneo
tende mais e mais a afirmar sua liberdade : liberdade de cultura, de filo
sofía de religiao, de viajar, de amar.... de contrair matrimSnio, de se
divorciar; os filhos fe emancipam, quanto antes, dos pais; nem a familia
nem a sociedade religiosa retém o homem moderno nessa sua sede de
autonomía. Contudo acontece, quase por ironía, que em nenhuma época
como em nossos días o cidadáo rofreu tSo constrangedora acáo por parte
da sociedade civil. Sim; em lugar da familia e da Igreja, é o Estado que
absorve o homem moderno : sem mencionar o que se dá ñas nac5es
totalitarias, lembraremos que o Estado de fato polariza mediante o ser-
vico militar os impostos, o fisco,, os inquéritos policiais; ao atravessar
urna rúa, o individuo nao pode pisar onde queira, mas tem que entrar
na faixa sob pena de censura policial;' existe «mao» e «contra-mío», e
preciso conservar a direita... E pode-se dizer, usando de linguagem
figurada : há máo e coritra-mao (artificios que avassalam) em todos os
setores da vida social. Estas medidas sSo apresentadas como exigencias
do bem comum. Ninguém negará o que elas tém de sabio e oportuno.
Contudo interessa registrar o fato, pois ele evidencia cOmo. por mais que
o homem queira seguir seu individualismo ele se vé envolvió "'"pa
rede de deveres e obrigag3es para com os seus semelhantes na sociedade.

— 150
PARA QUE PRATTCAR A RELIGIAO ?

Ora a solidariedade dos homens entré si estende-se também


ao setor religioso. A Religiáo é valor nao menos precioso do
que os demais valores. Por conseguinte, tem que ser vivida ou
praticada em sociedade. É a esta conclusáo que se chega pela
consideracáo da natureza humana como tal.

A historia só faz comprovar tal seitei^a. Houve e h* numerosas


sociedades religiosas (ou numerosas «reUtnSes»!. Cada mial exprime do
seu modo o senso religioso inato da natu'-e-'.a humnna. Nao concordam,
porém entre si na maneira de conceber o Senhor Deus e o caminho que
para file leva.
Desses diversos credos religiosos está claro que apenas um pode ser
verídico, pois a verdade é una, e nao contradltória. Disto se segué, para
todo homem, a obrigacao de Indagar, na medida do possivél, qual a Reli-
giSo verdadeira. Nao lhe será licito deixar suspensa esta questao. pois
possui importancia capital; é á luz do seu encontró com Deus ou da Reli-
giSo que o homem deve orientar sua passagem pela térra, dando o Justo
valor aos bens que o cercam.
Há pessoas simples que, em absoluto, nao duvidam da veracldade
da Religiáo .em que foram educadas; é. claro que, neste caso, nao tém
obrigacao de indagar...; salvam-se desde que sejam fiéis a sua cons-
ciencia, consciéncia que, em última análire, é a voz de Deus no homem.
Quem, porém, concebe dúvldas ou percebe o problema religioso, é
obrigado a averiguar..., e obrigado nao sdmente ém nome de Deus,
mas também em nome da sua própria dignidadc de criatura intelectual
(fIcar voluntariamente na incerteza perante assunto de tao graves conse-
queridas equivale a menosprezar a vida neste mundo).
Desde que chegue a alguma conclusáo sobre a verdadeira Reli-
giao, toca naturalmente ao homem o dever de lhe prestar adesao inte
rior e exterior. Agregar-se-á a es?a sociedade religiosa e dai por diante
seguirá as normas que regem a vida de tal familia espiritual, isto é,
procurará praticar a Religiáo comunitariamente.

Nao há dúvida, para tomar esta atitude, requer-se fé e


humildade. Será preciso que o fiel veja na comunidade religiosa
á qual pertence, algo de sobrenatural ou urna entidade em que
Deus está presente, agindo e falando pelos homens. Sem esta
consideragáo sobrenatural, será mais ou menos inútil aderir
a urna Igreja ou a urna Religiáo determinada; o individuo cedo
ou tarde se emancipará da comunidade e vira a ser, em última
análise, o seu próprio legislador religioso ou o autor da «sua>
religiáo; caminhará sózinho á procura de Deus, sujeitando-se
as aberragóes da fantasía...

Eis, porém, que estas conclusóes mesmas sugerem urna


terceira dificuldade:

— 151 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 1

3) «Religiao exige fé; tem seas dogmas, que nao é lícito


discutir. Isto parece ser injuria felta a razáo e á dignidade do
homem». -

Já em «P. R.» 8/1958, qu. 2 consideramos o «porque» dos dogmas


e misterios professados em nome da Religiao. Aqui contentar-nosemos
com um resumo da explanagao proposta.

A existencia de dogmas, longe de ser um desafio á inteli


gencia, vem a ser urna conclusáo a que chega o homem me
diante raciocinio sereno. Sim; usando devidamente da sua inte
ligencia, o estudioso nao pode deixar de reconhecer que ele
(homem) nao explica tudo (1); há "realidades que dependem
de urna inteligencia mais perfeita do que a do homem ou de
urna inteligencia infinitamente perfeita (capaz de explicar todo e
qualquer ser). A essa inteligencia dá-se o nome de Deus.
Donde se vé que a Religiao, pelo fato mesmo de procurar
estabelecer o contato do homem com Deus, nao pode deixar de
apresentar verdades que ultrapassam (mas nao contradizem)
os limites da razáo humana e que, por conseguinte, tém de ser
aceitas na fé; sao verdades que Deus vé com toda a lucidez,
mas que o homem nao consegue ver em si mesmas ou como
tais por causa dos limites de sua capacidade intelectual.

Refletindo melhor, o estudioso chega mesmo a verificar:


Justamente a existencia de dogmas deve constituir urna das
características da autentica Religiao. A Religiao cujas propo-
sigóes fóssem todas evidentes ao homem, nao merecería aceita-
gáo, pois sempre se poderla recear: «Foram as criaturas que
a inventaram!» Os dogmas, pois, sao necessários na Religiao.

Mas entao, perguntará o leitor, á inteligencia nao toca funcáo


alguma no setor da fé?
Como nao? Toca-lhe investigar se os dogmas propostos se den-
vam de íante limpa. Caso possa comprovar a autenticidade das íontes

(1) Observava o famoso dentista francés Pierre Lotl:


«A verdadeira ciencia já n&o tem a pretensáo de explicar que ela
tinha ontem. Cada vez que um pobre cerebro humano da vanguarda
descobre o porque de alguma coisa, é como se conseguirá forgar urna
nova porta de ferro, mas para abrir um corredor mais sombrio que
leva a outra porta mais selada e mais terrlvel. A medida que avanga-
mos, adensam-se o misterio e as trevas, e o horror aumenta».
Picard acrescentaria: «A ciencia, á medida que se desenvolve,
tende a tornar-se ... mais dependente dos fatos observados do que
das dedugóes, dos mossos conceitos. Dai o erro de quantos créem que
a ciencia resolverá um dia os enigmas do universo; ela nao fará senáo
aumentar-lhes o número*.
CitagSes colhidas em D. Aubry, La foi sous la coupole. Paris
1930, pág. 18.

— 152 — '
PARA QUE PRATICAR A RELI R. G. S.
(e «la o pode realmente), a única atitude inteligenteáVfclhe resta;-6
a de dizer: «Slm! Creiob (fft
\¿^(f p
Deve-se acrescentar: sao os invisíveis mistériostRr-fc-qtte-^"'
tornam. visível ou compreensível a realidade déste mundo.

Sim. Imaginemos o caso de alguém que contempla urna paisagem


em dia sombrío. Ele a contempla, sem dúvida, por causa do sol que a
ilumina, embora esteja encoberto. Acontece que naquele dia o obser-,
vador nao pode íitar o sol; nem por isto, parém, deixará de afirmar
a existencia do astro-rei. Nao fóra o sol, o observador nSo verla coisa
alguma.
Mais ainda: em llnguagem infantil, digamos que, em meio a urna
floresta úmida, entrecortada de córregos / de agua, cresce frondosa
árvore. Considerando a massa de aguas do océano longinquo, essa
árvore poderia indagar: «Para que serve tao vasta concentracao de liqui
do em lugar onde nao cresce v'egetacao?» Julgaria inútil a massa de
aguas do océano. — Tal atitude, na verdade, so revelaría tolice; a
árvore ignoraría entáo que sem o océano nao haveria chuvas, e sem
chuvas nao haveria córregos, ésses córregos que lhe umedecem as
raizes!... Por conseguinte, sem o océano distante nao haveria árvore
na densa floresta.

Paralelamente diremos: sem as verdades transcendentes •


ou misteriosas de Deus, que a Religiáo professa, nem se com- .
preenderiam as verdades ou as realidades déste mundo.
Passemos a urna última dificuldade :

4) «Praticar a Religiáo? Nao tenho tempo. £ coisa boa


para quem tem vida folgada».

Para responder a esta objegáo, nao é preciso que nos detenhamos


em consideragñes abstratas.

A experiencia ensina que a motivacjio «Nao tenho tempo!»


é, ém muitos casos, mero pretexto, servindo para dar rótulo
de honestidade a omissóes covardes e culposas. Muitas vézes
se verifica que quem «nao tem tempo» costuma arranjar tempo
para fazer o que lhe agrada, ao passo que jamáis o encontra
para fazer outras coisas. Acontece mesmo com freqüéncia que
as pessoas mais atarefadas sao as mais disponíveis e presta-
tivas.

Estas observacOes podem ser comprovadas por significativas esta-


tisticas.
Na Franca, há anos atrás, realizou-se um inquérito s6bre o modo
como o cidadáo francés de nivel medio emprega o seu tempo no decor-
rer de um ano. Os resultados, embora suponham diretamente a rea»
lidade francesa, parecerá nao destoar muito do que se dá no Brasil. -
Eis os dados obtidos :

— 153 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964. qu. 1

Em doze meses, o cidadáo vive aproximadamente 8.700 horas.


Destas,
2.900 horas, éle as passa dormindo; .
930 horas, comando;
620 horas, vestindo-se ou cuidando de seu asseio;
310 horas, conversando ou discutindo;
260 horas, no gozo de algum divertimento ou era passelo;
3.650 horas, no trabalho;

25 horas apenas, éle as dedica h BeligiEo !

Em gráfico:

(Estes dados íoram colhidos no opúsculo «A Religiáo... para que


servo isso?> do P. Thivollier. Lisboa 1956, pág. 90).

— 154 — '
PARA QUE PRATICAR A RELIGIAO ?

Á vista de tais números (cujo significado, naturalmente,


nao se deve exagerar), talvez aflore espontáneamente ao espi
rito do leitor a observacáo : «Nao será ridículo dizer-se que nao
há tempo para praticar a Religiáo?»

Verdade é qüé'óTitmo da vida moderna absorve imperiosamente


o tempo do ddadáo; condigSes materiais, diíiculdades de transporte,
debilidade de saúde podem, para muitas pessoas, constituir estorvos
a prática da Religiáo. .
Contudo nao seria licito esquecer que a civiliza gao do séc. XX,
assim como é dita «a civilizacáo do trabalho», tem sido também cha
mada «a civilizacáo dos lazeres». Náo-sem fundamento, pois o número
de horas de trabalho semanal é limitado por lei; o repouso hebdoma
dario e as ferias anuais remuneradas sao garantidos por estatutos.
Os progressos do automatismo permitem prever ainda maior economía
do trabalho humano (a máquina faz e fará o que o braco fazia ou-
trora); prognosticam-se, por ccciseguinte, ainda mais ampios lazeres
para o trabalhador, a ponto de perguntarem alguns estudiosos : «Como
utilizará o homem as suas novas horas vagas? Nao seria preciso
educar o trabalhador contemporáneo para que usufrua, com sabedoria
e vantagem, dos seus lazeres, em vez de se deixar cair em desgraga
e ruina por ocasiáo dos mesmos? O homem de ontem era escravo do
trabalho; o homem de amanhá será escravo dos lazeres?»
Nao há dúvida, numerosos trabalhadores utilizam seu ocio oficial
para atender a um segundo ou terceiro «ganha-páo»; labutam até
mesmo ñas horas de repouso legal. Mas também há muitas e muitas
pessoas que reservam os seus lazeres (todos ou em parte) para si.
Seria «ecessário lembrar-lhes que a primeira tarefa que entáo Ihes
cabe, é a de cultivar explícitamente as suas reláceles com Deus, prati-
cando devidamente a Religiáo. A alegada falta de tempo é, em muitos
casos, assaz relativa; tornou-se quase «slogan» ou «tabú» na vida
cotidiana. Em verdade, há tempo...; há tempo para praticar a Reli
giáo desde que a pessoa esteja convicta de que Deus é «um valor».
De modo especial, os católicos se lembraráo de como a Igreja
Ihes vem ao encontró, facilitando a celebracáo da S. Missa em horario
vespertino e mitigando as leis referentes á freqüentaeáo dos sacra
mentos. Também nao esquegam que o dia de repouso semanal foi
instituido pelo próprio Deus (cf. Éx 20,10s); é o tempo que o Senhor
quis marcar especialmente com a sua presenga, tempo portanto que
deve «render» para Deus, de acordó com as posibilidades de cada um
dos fiéis. • .
A guisa de ilustragáo, segue-se ainda urna estatistica. Representa
os diversos modos como os cidadáos franceses contemporáneos utili
zam os seus lazeres :

Cinema: 400.000.000 de espectadores por ano;


64% dos franceses vao ao cinema ao menos 25 vézes
por ano;
cada francés vai ao cinema ao menos 10 vézes por ano.

Radio : 10.000.000 de aparelhos receptores.


.Esporte : 8.000.000 de jovens entre os 15 e 20 anos de idade pra-
ticam o esparte (no Brasil, cré-se que a proporgao
ainda seria mais avultada).

— 155 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 1

Fotografía: 6.000.000 de aparelhos fotográíicos na Franca (um


de dois em dols lares). Em tres anos, venderam-se
mais de um milhao de máquinas fotográficas.

Pesca: 4.000.000 de pescadores (amadores) a anzol.

Caca: 1.700.000 de cegadores.

TeleyisSo : 1,326.000 de aparelhos receptores.

Ferias no estrangelro: 1.250.000 de franceses v£o passar ferias


fora do país; dentre éles, 9% sao ope
rarios. . /

Discos: mais de 1.000.000 de toca-discos foram vendidos na


Franca em tres anos.

Teatro: mais de 10.000 equipes de artistas amadores.

Jardinagesn: 50% do tempo total de lazer sao aplicados ao semi-


-lazer de cuidar do jardim, da horta, do pomar...

Como nao haveria lugar para ocupar-se com Religiáo fora das
horas de trabalho, quando tantas outras atividades s&o entáo exer-
cidas ?

Conclusao

Eis algumas consideracóes que se poderiam fazer em torno


das habituáis objegóes hoje em dia formuladas contra a prá-
tica da Religiáo.
Concluindo, nao deixaremos de notar que as reflexóes e os
debates certamente muito podem contribuir para dissipar os
obstáculos á fé; contudo há um elemento aindamáis impor
tante para gerar luz na mente de quem duvida: é a oragáo.
Orem os que tém fé, pelos que nao tém fé!
Mas também orem os incrédulos e os hesitantes!
— E como poderáo estes orar?
— Orem condicionalmente: «Se Deus existe, dé-me luz,\
faca-me compreender o que Ele é!» — O incrédulo pode excla
mar jsto sem contradizer á sua posicáo.

«Fala a Deus todos os dias, ainda que seja apenas para Uie dizer
que nao estás certo de crer nTSle ou que Ele é molesto e oneroso para
tí» (Sertillanges, Catéchisme des incroyants II. Paris 1930, 272).

Quem pratica essa forma de oragáo, certamente nao será


frustrado. Segundo Pascal, Cristo assim fala ao homenv que
O procura sinceramente:

— 156 — -
MARÍA. MAE DE TODOS OS HOMENS ?

«C'est mon affaire que ta conversión; ne crains point, et prie avec


coníiance.
A tua conversáo é intejrésse meu. Nao receles, mas ora com con-
flanea».

Dado que alguém chegue a crer em Deus e veja a necessidade de


praticar a Religiáo,. talvez conceba nova dúvida: será que a crenga
em Deus implica também crenca em Cristo e na Igreja Católica ?
A esta ulterior) questáo já dedicamos' a nossa atenejio em *P. R.»
7/1958, qu. 4; 14/1959, qu. 2; 39/1961, qu. 2.

II. SAGRADA ESCRITURA

V. G. (Salvador) :

2) «Como se pode dizer que, ao confiar Maña Virgem a


S. Joao Evangelista no Calvario, Jesús tornou sua Máe Santís-
sima a Máe de todos os homens? Cf. Jo 19,25-27».

Antes do mais, eis o texto que a questáo focaliza :

19. 25 «Junto á cruz de Jesús estavam de pé sua Máe, a irmá de


sua Máe, María, mulher de Cleofas, e María Madalena. < .
26 Quando Jesús viu sua Máe e, perto déla, o discípulo bem-amado,
disse a sua Máe: 'Mulher, eis o teu filho'.
27 Depois disse ao discipulo : 'Eis a tua Máe'. E, a partir daquela
hora, o discípulo a recebeu em sua casa»7~

A primeira vista, os dizeres de Jesús parecem nao interessar senáo


dois personagens ; María, a Máe do Senhor, e Joáo Evangelista. Con-
tudo quem os considera de mais perto, verifica qué sao portadores de
mensagem universal, que a Tradigáo crista desde cedo soube deduzir
e explanar. ' "

Reconstituamos, pois, os grandes tragos da Boa Noticia


comunicada por Jo 19,25-27. Procederemos observando quatro
etapas. '..*.-.

1. Quem estava junto a Cruz do Senhor?

1. Sobre o Calvario,, onde Jesús pendía do patíbulo, devia.


encontrar-se um número relativamente elevado da pessoas :
soldados romanos, judeus infensos ao Senhor, que O escarne-
ciam,.. ^assim como amigos de Jesús («os que O conheciam»,
conforme Le 23,49). Estes, intimidados, conservavam-se a certa • •
distancia da cruz, talvez dispersos na massa de gente, exce- *
tuarido-se apenas (segundo Jo 19,25), quatro ou cinco pessoas ' ^
especialmente devotadas a Cristo, as quais ousaram colocar-se'^'jí
heroicamente junto á cruz : tais eram Joáo Evangelista, «o dis-- ¿J
cípulo que Jesús amava», e tres ou quatro mulheres menciona-],2

— 157 —
-. -A1
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 2

das em Jo 19,25 (o texto evangélico presta-se realmente a duas


maneiras de entender, ambas aceitáveis).
Há exegetas que julgam tratar-se de tres mulheres apenas:
1) Maria a Máe de Jesús, 2) á irmá da Máe de Jesús, também cha
mada Maria, casada com Cleoías ou Alíeu, e 3) Maria Madalena.
Outros comentadores, separando diversamente as palavras de Jo,
19 25 admitem quatro santas mulheres ao pé da cruz : duas mencio
nadas sem nome (a Máe de Jesús e sua irmá) e duas chamadas Maria
(urna, íilha ou, multo mais provávelmente, esposa de Cleofas; a outra,
originaria da cidade de Mágdala).
Esta outra fciterpretacáo parece preferível. Abalizados autores a
professam na base das seguintes ponderacóes :
parece estranho (embora nao seja impossivel) que duas íilhas do
mesmo casal (a Máe de Jesús e sua irmá) tivessem o mesmo nome:

nao se compreende por que a irmá da Müe de Jesús terá sido


designada de mancira táo minuciosa («Maria, esposa de Cleofas»).
Ademáis, entre os seus títulos característicos o nome próprio «Mana»
deveria lógicamente preceder os predicadas de «irmá» c «esposa»;
nos catálogos de nomes ocorrecites no Novo Testamento, veri-
fica-se a tendencia a agrupar as pessoas em pares (haja vista, por
exemplo, o que se dá com a lista dos Apostólos em Mt 10 3s). Em
Jo 19,25, por conseguinte, teriamos doLs pares de santas mulheres;
estas quatro peosoas estariam junto ao Senhor desempenhando papel
amigo, oposto ao dos quatro soldados que repartiram. as vestes de
Cristo,' como refere o Evangelista em Jo 19.23.

2. Tal debate carece de importancia para a questáo que


focalizaremos adiante. Apenas interessam-nos algumas obser
vares a respeito da presenca da Máe de Jesús no Calvario.

a) María aiáo acompanhou seu Divino Filho durante a


sua vida pública; Ela nao figurava no grupo das santas mu
lheres que serviam a Cristo viandante (cf. Le 8,2s). Isto dá
maior realce ao fato de que a Máe de Jesús tenha estado pre
sente no Calvario (como, alias, estéve presente ao primeiro
sinal ou milagre que Jesús fez, conforme Jo 2, 1-11). — O
Senhor, dirigindo a palavra a Maria do alto da cruz, havia de
explicar o «porque» ou o sentido profundo do comparecimento^
de Maria no Calvario.
b) Note-re que éste comparecimento deve ter sido muito volun.
tario da parte da Máe de Deus. Provávelmente íamiliares e amigos
teráo íeito o possivel para que Ela nao assislisse ao suplicio do seu
Filho pendente da cruz. Nao obstante, Maria quis enérgicamente acom-
panhar Jesús naquela hora suprema, abracando por completo a causa
dé seu Divino Filho. — Um sabio designio da Providencia terá íeito
que as coisas assim acontecessem.

Após esta rápida análise do cenário, consideremos as palavras


proferidas por Cristo:

— 158 — -
MARÍA. MAE DE TODOS OS HOMENS ?

2. «Mulher, eis o tea filho!»

1. Seria esta frase apenas a expressáo da solicitude filial


de Jesús, que desejava prover ao futuro de sua Máe Santissima?
Parece que nao. Na verdade, tais dizeres de Cristo se re-
vestem de alcance muito mais ampio ou de valor messiánico
(isto é, exprimem algo que diz respeito á Redencáo de todo o
género humano).

Mas por que nao admitir que Jesús tenha simplesmente


intencionado garantir o amparo futuro de sua Máe Santíssima?
Eis as principáis razóes :
a) Os últimos momentos da vida de Jesús já nao eram
a ocasiáo oportuna para que o Divino Mestre pensasse no ar
rimo de sua Máe. Desde o inicio de seu ministerio público, Jesús
se havia separado definitivamente de María; portante já eatáo
devia ter solucionado a situa"áo de sua Máe Santíssima. Esta,
por sua vez, podia muito bem continuar a viver após a morte
de Jesús ñas condigóes em que antes vivera.
b) Considerando-se de perto os pormenores da cena do
Calvario, verifica-se que nem a situacáo de María nem a do'
discípulo bem-amado justificava a intervencáo de Jesús men
cionada em Jo 19,25-27.
Em verdade, María estava ao pé da cruz acompanhada par sua
irmá e por Maria de Cleofas (sua cunhada?). Tais pessoas, piedosas
como eram deviam estar dispo^tas a prestar todo o amparo á Vi'gem
M3e. Se nessas circunstancias Jesús intencionasse prover a María SS.
confiando-a a um jovem de outra familia, teria íeito algo de inútil ou
mesmo oíensivo em relacáo aos familiares de Maria (suporia que estes
nao podiam ou nao queriam auxiliar á Mae de Jesús).
Da sua parte, Joáo tinha sua genitora ainda em vida, mesmo pre
sente ao drama do Calvario (era Salomé, da qual falam Mt 27,56; Me
15,40). Por conseguinte, teria sido injurioso para Salomé atribuir as
suas fungóes maternas a outra mulher. ou seja, a Maria SS. Além disto,
note se : Jesús exigia que seus dvscipulos abandonassem pai e máe para
O feguirem (cf. Le 9,59-62); nao se compreende entáo que tenha pen
sado em proporcionar a S. Joño os cuidados humanos que urna genitora
pode dar.

c) Chama a atencáo o fato de que Jesús, considerando


Joáo e María, ao pé da cruz, comegou por confiar o discípulo á
Virgem Máe. Fez justamente o contrario do que se poderia
esperar caso quisesse simplesmente assegurar o futuro de
Maria: teria primeiramente (e talvez. únicamente) confiado
sua Máe ao discípulo. Por conseguinte, dizendo em primeiro
lugar a Maria: «Eis o teu filho!», Jesús, manifestava designio
inverso do que se poderia imaginar; mostrava, sim, o desejo

— 159 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 2

de que María se encarregasse do futuro de Joáo,... nao, porém,


no plano temporal ou humano (isto nao vinha a propósito,
como acabamos de ver), e, sim, num plano superior, ou (como
ainda melhor se perceberá) no plano da Redengáo que Jesús
estava para consumar na cruz.

d) A mesma conclusáo somos levados se consideramos o


título «Mulher» que Jesús atribuí a María em Jo 19,26. Se .
tivesse em vista apenas despertar a solicitude humana ou ma
terna de María para com Joáo, té-Ia-ia chamado «Máe». /

«Mulher» é um apelativo de índole messiánica. Faz eco ao cha


mado «Proto-evangelho» ou á primeira profecía messiánica da S. Escri
tura, profecia em que o Senhor assevera: «Porei inimizade entre ti
(serpente) e a mulher, entre a tua linhagem e a déla» (Gen 3,15). Em
conseqüéncia, a designacáo «Mulher» na Escritura Sagrada aparece por
vézes (cf. Jo 2,4) para lembrar o papel'da mulher na obra da Redencao
do género humano; éste papel comecou com a penitencia efetuada pela
primeira Eva após o pecado e culminou com o devotamento total que
Maria, a segunda Eva, prestou á causa do Redentor. María é a Mulher
por excelencia.

Donde se vé que Jesús no Calvario, ao interpelar Maria


como mulher, quería enunciar algo que competiría a Maria nao .
no plano das relacóes íntimas vigentes entre máe e filho, mas
no plano da obra pública da Redencao.

e) Por íim, ainda se poderia observar que as palavras de Jo 19,26


foram proferidas na hora mais solene do ministerio de Jesús. Neste mo
mento parece que estaría fora de propósito um paréntesis dedicado a
questdes pessoais ou a preocupacóes de familia. De resto, o Evangelista
insinúa o valor messiánico das palavras de Jesús, acrescentando-lhes
logo a seguir: «Depois disso, Jesús, sabendo que tudo estava consu
mado...». «Tudo... consumado», isto é, a ohra que o Pai confiara a
Jesús para a salvagáo do mundo, obra da qual conseqüentemente devia
íazer parte o episodio de Jo 19,25-27.

Em vista de tais considerag5es, pode-se dar por certo qué Jesús em


Jo 19,26 tinha em mira entregar a Maria urna verdadeira missao no \
plano da Redencao humana. Pergunta-se entáo:

2. Qual terá sido essa missáo?

Sem dúvida, trata-se de missao materna. O papel da ma-


terriidade de Maria nao terminava na cruz; ainda estava come-
cando ou... ia recomegar. Doravante essa maternidade se
exerceria em relacáo a Joáo ; Jesús pedia a Maria, fomentasse '
maternalmente a vida nova, vida da Redengáo que Ele, o Sal
vador, adquiría na cruz em beneficio de Joáo e — digamo-lo —
em beneficio de todo o género humano.

— 160 — '
MARÍA, MAE DE TODOS OS HOMENS ?

De fato, o Apostólo Sao Joáo no Calvario era um repre


sentante ou um individuo que fazia as vézes de todos os homens.
E como?
Se María foi interpelada por Jesús em vista de urna mis-
sáo pública, compreende-se que S. Joáo também tenha sido con
siderado pelo Divino Mestre na mesma perspectiva : nao a titulo
pessoal, mas a título de discípulo de urna grande mensagem.
Por conseguinte, Joáo, que estava no Calvario como «o discí
pulo bem-amado», simbolizava todos os discípulos de Cristo,
isto é, todos os homens (pois todos sao amados e remidos por
Cristo). Era, portante, o género humano que Jesús confiava a
María na pessoa de Joáo e naquela hora suprema,, a fim de
que a Virgem Máe a todos estendesse a súa protegáo materna.
Fazendo-se discípulos de Jesús, os homens através dos sáculos
receberiam a vida de Cristo, tornando-se irmáos adotivos de
Jesús; em conseqüéncia, Mana deveria, por suas preces assí-
duas, desdobrar néles a sua acáo materna, a fim de que em
todos os cristáos o Cristo fósse devidamente formado.
Esta maneira de explicar a presenca e o significado de Jo3o¡ ao pé
da cruz é.assazantigajia Tradicao crista. Já Orígenes (t 2S4/255) a
propunha nos séguintes termos :
«Todo cristao perfeito pode dizer : 'Nao vivo mais eu, mas é Cristo
que vive em mim\ Ora, se Cristo vive néle, diga-se a María: 'Eis o teu
fflho1, 0 Cristo» (Comentario em S. Joáo I IV 23).
A doutrina do Carpo Místico ou do Cristo prolongado em seus
membros através da historia é a fonte de inspirado destas palavras.
Os Sumos Pontífices nos últimos tempos tém feito eco freqüente
a tal concepcáo. Tenham-se em vista, por exemplo, os dizeres de Pió XI:
«Maria, a Santissima Rainha dos Apostólos recebeu no Calvario
o encargo de zelar maternalmente por todos os homens. Conseqüente-
mente, Ela ama e favorece aqueles que ignoram ter sido remidos pelo
Cristo Jesús, nao menos do que aqueles que- gozam da plenitude dos
beneficios de Cristo» (ene. «Rerum Eccleslae», de 28/11/1926).
Os teólogos propSem mais de urna sentenga sobre a maneira exata
como a Virgam SS. exerce a sua protesto materna em relagao aos ho
mens. Estaría fora do propósito déste artigo debater as opiniaes res
pectivas. Interessa-nos apenas o fato da protecáo materna de Maria,
pois sobre tal fato sobriamente entendido já se pode Construir digna e
frutuosa piedade mariana.

3. Podem-se indicar algumas razóes de conveniencia


pelas quais a Sabedoria de Deus dispós que Joáo ao pé da cruz
representasse todo o género humano. Com efeito,
a) Ele havia de sobreviver aos demais Apostólos, chegando aos
cem anos de idade aproximadamente; corxeu mesmo o rumor de que
S. Joao nao morreria (cf. Jo 21,21-23). Por esta particularidade, o Evan
gelista tornou-se como que a imagem da perenidade do Corpo Místico
através dos sáculos.

— 161 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 2

Pode-se tambera .recordar que S. Joáo foi o primeiro discípulo a se


apresentar a Jesús no inicio do seu ministerio (cf. Jo 1,37) e o único
que d'Éle nao se afastou na hora derradeira.
b) Joáo era o discípulo bem-amado, nao o Chefe hierárquico da
Igreja (éste outro titulo competía a Pedro). Ora acontece que justa
mente Joáo, e nao Pedro íoi escolhido para representar o género hu
mano junto h cruz. Isto insinúa, de modo delicado, que a maternidade
de María nao se sobrepSe á autoridade de Pedro; nao é urna instancia
superior na hierarquia da Igreja. Ela se exerce nao prdpriamente sobre
bases jurídicas, mas na base do amar. Quanto mais alguém ama a
Jesús e é discípulo amado de Jesús..., quanto mais alguém procura
identificar-se com Jesús, tanto mais participa da flliagáo de Jesús em
relacáo a Maria, tanto mais vem a ser filho de Maria.
D. Columba Marmion, um dos grandes autores de espiritualidade
do nosso século, diria em poucas palavras : «Todo cristao é um outro
Jesús. Terá devocáo a Maria nao ao lado da devocao a Cristo, mas em
conseqüéncla e através de urna genulna devogáo a Cristo» Cf. «P. R.»
50/1962, qu. 2.

c) Sao Joao era o discípulo virgem; por conseguinte,... aquéle


que mais semelhanca ou aíinidade devia ter com Maria.

Consideremos agora os dizeres de Jesús ao S. Evangelista :

3. «Eis a tua Mae!»

A rigor, para que a matemidade de Maria fósse válida, nao


era necessário que Cristo dirigisse a S. Joáo tais palavras; bas-
tavam as anteriores. Nao obstante, o Senhor as quis proferir
a fim de inculcar ao discípulo bem-amado e aos demais fiéis
cristáos a necessidade de assumirem perante Maria a atitude
de afeto e veneragáo que todo filho cultiva em relagáo á sua
máe. Nao basta aos homens saber que Maria é Máe devotada;
é preciso que lhe correspondam com devotamento consciente e
prático. Em outros termos: faz-se mister que a vida espiritual
dos cristáos seja marcada por urna disposigáo de amor filial
para com Maria.
É, pois, ñas palavras de Jesús a S. Joáo que se encontra
um fundamento teológico da devocao do cristáo a Maria SS.
Em conseqüéncia do que Cristo disse, refere o texto sa
grado :

4. «A partir daquela hora, o discípulo recebeu-a


em sua casa»

«A partir daquela hora». É estranha a mencáo de hora nesta


frase. Mais normal teria sido dlzer: «A partir daquele dia...» ou
«a partir dessa época...». Em verdade, Joáo nao voltou ¡mediatamente
para casa com Maria; permanecen ao pé da cruz, mesmo após a morte'
de Jesús, pois foi testemunha do golpe de langa que o soldado iníligiu
ao Divino Mestre; pode-se supor que também tenha tomado parte ñas
atividades de sepultamento do Senhor.

— 162 — -
MARÍA. MAE DE TODOS OS HOMENS ? • •

Nao obstante, o Evangelista fala de «hora».'.. Fala de «hora», sim,


porque lhe interessava realcar a atitude interior, e nao o comporta-
mentó exterior que Joáo assumiu frente a María. «Hora» é, no quarto
Evangelho, uín vocábulo cheio de sentido messiánico; designa a grande
intez-vencSo de Deus que trouxe a plenitude da Redengáo, a transíor-
macao do homem e do mundo (cf. Jo 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 17,1).
Ora justamente Joao ao pé da cruz, aceitando as palavras de Jesús,
terá experimentado de maneira especial essa renovacáo espiritual que
Jesús veio trazer ao mundo na sua hora; Joáo usufruiu, em grau sin
gular, dos beneficios da hora (da intervengáo salvtfica) de Jesús. Por
isto diz o Evangelista que «a partir daquela hora» acolheu Maria em
sua casa.

Essa «acolhida de María» nao foi própriamente a recepsáo


de Maria na habitagáo material de Joáo ou da familia de Joáo.
Mas foi, antes do mais, a acolhida que Joáo em sua mente e
seus afetos doravante prestou a Maria. Daquela hora em diante,
com efeito, Joáo compreendeu melhor o estreito vínculo que
une Maria a Jesús na obra da Redengáo, assim como o papel
da Santa Máe de Deus na santificado dos homens. Natural
mente, a expressáo dessa transformacáo interior haveria de ser
a acolhida de Maria na casa visível de Joáo.

Recebendo Maria em seu domicilio civil, Joáo imitava o Divino


Mestre, que no limiar da sua vida pública acolhera Joáo em seu
domicilio (cf. Jo 1, 38s). De fato, o primeiro contato do Evangelista
com Cristo se deu em agradável coloquio na residencia de Jesús :

«Fixando o olhar em Jesús que passava, disse Joáo Batista : 'Eis


o cordeiro de Deus'. Ouvindo-o falar assim, dois discípulos de Joao
Batista seguiram a Jesús. Jesús voltou-se e, vendo que O seguiam,
perguntou-lhes: 'Que procuráis?'
Disseram-Lhe: 'Rabi (o que quer dizer Mestre), onde moras?'
— 'Vinde e vede', respondeu-lhes.
Éles O acompanharam e viram onde morava e ficaram com Ele
durante aquéle dia. Era cérea da hora décima».

Ésse coloquio «em casa» tornou-se símbolo da intimidade que,


para o futuro, deveria unir Jesús e S. Joáo.

Pois bem. O discípulo bem-amado retribuiu ao Senhor á sua hos-


pedagem caridosa, prestando hospitalidade á Máe de Jesús; Joáo'
assim pagou a Maria o que ele recebera de Jesús. Nao seria licito dai
depreender que a intimidade com Jesús implica intimidade filial com
Maria? Todo e qualquer cristáo, pelo fáto mesmo de ser irmáo de
Cristo, procurará receber Maria «em sua casa», isto é, em seus afetos
e em sua vida.

Sirvam estas idéias de conclusáo á explanagáo de Jo 19,


25-27 que as páginas precedentes tentaran» apresentar!

— 163 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 76/1964, qu. 3

ID. MORAL

CHRISTIANUS (Minas Gerais) :

3) «Qual o conceito cristáo de trabalho em geral?


Será valor positivo ou castigo?»

Segundo os melhores filólogos, a palavra «trabalho» deriva-se do


vocábulo latino «tripaliu», que designa um dispositivo composto de
tres paus, destinado a dominar cávalos relutantes no ato de ser fer
rados. Era, portanto, um instrumento ao qual se associavam as idéias
de sofrimento e dor.
Semelhante associagáo de conceitos se terá dado, quando na anti-
güidade se falava de trabalho: desde .remotos tempos, parece que os
homens o consideraran! como algo de penoso, a que a natureza tende
espontáneamente a se íurtar. Esta concepcáo, porém, nao corresponde
a genuina mentalidade crista, a qual é otimista, e nao pessimista, em
relacáo ao trabalho.
É o que vamos averiguar, focalizando sucesslvamente cinco aspec
tos do trabalho inspirados por urna visáo crista ou bíblica da realidade.

1. Trabalho; continua$ao da obra do Criador

O trabalho humano constituí algo de muito nobre, diz-nos


a mensagem crista, pois, em última análise, é a continuagáo1
da obra mesma do Criador.
Com efeito. Chama á atengáo a freqüéncia com que a
S. Escritura (usando, naturalmente, de linguagem figurada)
apresenta o Senhor Deus a trabalhar.

Logo ñas suas primetras páginas, ao terminar o relato da criacáo


do mundo, diz a Biblia Sagrada: «Deus concluiu no sétimo dia a obra
que íizera, e «o sétimo dia repousou^se de toda a obra que fizera»
(Gen 2,2).
O Senhor Deus aparece também como Arqulteto, que estabeleceu
a térra sobre as suas bases e desdobra os céus como urna tenda.
Cf. SI 103,2-5; 1 Cor 3,9; Ef 2, 19-22.
É também o Lavrador, que rega os sulcos dos campos e dá fecun-
didade á térra. Cf. Si 64, 10-14; 103,13s; 1 Car 3, 6-9.
Apresenta-se outrossim como Olelro ou trabalhador em barro, que
confeccionou o homem com carinho especial. Cf. Gen 2,7; Is 45,9-12;
64,7; Jer 18,6, Rom 9,19-23.
Mais ainda: Deus é tido como Alfaiate, que prové ao vestiario
dos primeiros pais após o pecado, conforme Gen 3,21. É tido como
Jardineiro, que planta um jardim, em Gen 2,8. É considerado como
Cirurg-itto, que extrai urna costela de Adáo, em Gen 2 21.
Em todas as suas obras — insinúa o texto de Prov 8, 27-31 — a
Mao de Deus é dirigida por maravilhosa Sabedoria. Ao realizá-las, «o
Senhor nao conhece cansago nem extenuac.áo> (cf. Is 40,28), de modo
que Ele continua a trabalhar até os nossos dias, como assevera
Jesús :

— 164 —
TRABALHO : VALOR POSITIVO OU CASTIGO ?

«Meu Pai trabalha sempre, e também eu trabalho» (Jo 5,17).


«Meu alimento é fazer a vbntade de meu Pai e cumprir a obra d'Éle»
(Jo 4,34).

Estas expressóes sao, evidentemente, antropomorfismos


(figuras de estilo) usuais entre os semitas e na Escritura Sa
grada.
Que querem dizer?
Nao significam que Deus tenha feito o mundo em seis dias,
ou tenha tirado o homem 'do barro da térra..., mas apenas ser-
vem para estabelecer urna relacáo entre a acáo infinitamente
sabia de Deus e o trabalho do homem (do arquiteto, do lavra-
dor, do oleiro, do alfaiate, do cirurgiáo...). Mostram assim
que a atividade do homem sobre a térra é como que a conti-
nuacáo da obra do Criador déste mundo.

Por isto também «deve o homem sair para o seu trabalho desde
o nascer do dia e q ele se entregar até o crepúsculo» (cí. SI 103, 23).
Guiado pela Sabedoria Divina é que o homem há de executar a sua
tarefa, seja nos campos (cf. Is 28,24-26), seja ñas oficinas de arte-
sanato (cf. Éx 31,1-6), seja no estudo e na escola (cf. Eclo 39,1-11).

Toda especie de preguica é, por conseguirte, fortemente recrimi- ^


nada pelas Escrituras :

«Vai ter com a formiga, 6 preguigoso;


Observa seu proceder, e torna-te sabio.
Ela nao tem chefe, nem inspetor, nem mestre;
Prepara no veráo sua provisáo,
Apanha no tempo da ceifa sua comida.
Até quando 6 preguigoso, dormirás?
Quando te levantarás do teu seno?
Um pouco dormirás, outro pouco dormitarás,
Outro pouco cruzarás as maos para dormires,
E a indigencia vira sobre ti como um vagabundo;
A pobreza, como um homem armado.»

(Prov 6,6-11)

Vejam-se outrossim os textos de Prov 24,30-34; Eclo 7,15.

Tal é a accepeáo primaria do trabalho na visáo bíblica e


crista do universo : constituí realmente algo de muito digno.
O homem procurará, pois, em todos os seus afazeres observar
o Modelo Divino e seguir as leis da natureza incutidas pelo pró-
prio Deus a cada ser criado. Em vista disto é que o Senhor o
fez á sua imagem e semelhanga (cf. Gen 1, 26) e o chamou
a dominar a criagáo inteira (cf. Gen 1, 26).

A éste primei.ro e otimista aspecto do trabalho se deve logo acres-


centar a seguinte observacao:

— 165 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 3

2. Fadiga no trabalho: conseqüencia do pecado

A instituigáo do trabalho faz parte dos designios funda


mentáis de Deus a respeito do género humano. Segundo a reta
ordem das coisas, o trabalho deveria acarretar prazer para o
homem, que se vería assim elevado á dignidade de colaborador
de Deus.
Aconteceu, porém, que os primeiros pais desobedecerán!.
Romperam a harmonía instaurada pelo Criador. De entáo por
diante, a atividade humana ressente-se da desordem introdu-/
zida na historia pelo pecado; tornou-se algo de penoso e arduo:

Entende-se bem que o trabalho tenha tomado essa nota dolorosa.


De lato, havendo orientado no paraíso a sua atividade para o servico
do próprio «Eu», em vez de a dirigir para Deus, o ser humano nao
pode deixar de experimentar quao dolorosa é essa deslocacáo dos valo
res. -Atualmente, .o trabalhador~tem que lutar contra a resistencia
tácita das criaturas inferiores, que se acham em desordem... E
acham-se em desordem porque o homem, seu chefe e administrador,
se p6s em desordem frente a Deus. Revoltoso contra o Supremo
Sanhor, o ser humano hoje tem que enfrentar a revolta das criaturas
contra o próprio homem.
Dai se segué que o trabalho, em vez de ser sinal de feliz obedien
cia ao Criador, vem a ser, nao raro, constrangimento penoso, ao qual
a natureza- humana, consciente ou inconscientemente, tende a se lur-
tar. Mesmo quando aplicado com zélo á labuta, o homem freqüente-
mente só colhe da sua fadiga resultados exiguos ou nulos. Par fim, a
morte, que paira no horizonte, parece responder com sarcasmo-ao
ideal do labor humano.

Assim refere a S. Escritura como o varáo ressente as con-


seqüéncias do pecado na sua fungáo típica de chefe de familia
e trabalhador:

«Maldita será a térra por causa de ti! Déla tirarás com trabalhos
penosos o teu sustento todos os dias da tua vida. Ela te produzirá
espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da térra. Comerás o teu pao
com o suor do teu rosto, até que voltes á térra, da qual fóste tirado.
Pois tu es pó e voltarás a ser pó» (Gen 3,17-19).

O Livro Sagrado também apresenta exemplos de desvio do


trabalho. Éste, em vez de ser dirigido ao servigo e louvor de
Deus, Alfa e Omega, é aplicado ao servigo do homem, como
se éste fósse um novo Deus.

Haja vista o episodio da torre de Babel (Gen 11,1-9): os homens


se esforcam por construir o símbolo (= torre) de um imperio que
iguale ou suplante o imperio de Deus...

Em Filipps da Macedónia, um casal de pagaos explorava jovem


escrava que,' possessa do demonio, profería oráculos e adivinhava,
com grande lucro pecuniario para seus amos. Sao Paulo, passando

— 166 — -
TRABALHO : VALOR POSITIVO OU CASTIGO ?

por aqueta cidade, libertou do poder.diabólico a pitoniza... Em con-


seqüéncia, o casal, apegado a tal fonte de renda, excitou grande pe
leuma contra o Apostólo; donde resultou o encarceramento de Sáó
Paulo (cí. At 16,16-22)!
Em Éfeso, foram os vendedores de dstatuetas e objetos do culto
idolátrico de.Diana que se insurgtram contra Paulo, porque éste, pre
gando o Evangelho, lhes tirava as possibilidades de sucesso ■ comer
cial mediante trabalho desvirtuado (trabalho que íomentava a ado- •
racáo de um ídolo). Cf. At 19,23-34.
Nestes dois casos, o dinheiro, resultante da industria e do comer
cio, aparece claramente como o novo Deus (Ídolo), que toma o lugar
do verdadeiro Deus.

A Escritura consigna outrossirh os gemidos do homem


acabrunhado pelo peso do labor cotidiano.

Por exemplo, Jó, leproso, vé no estado do trabalhador a figura da


sua situacao desgracada : -

«A vida do homem sobre a térra é urna luta;


Seus días sao como os dias de um mercenario.
Como um escravo que suspira pela sombra
E como o assalariado que espera seu sóido,
Assim também eu Uve por quinháo meses de sofrimento,
E noites de dor me couberam por partilha».

(Jó 7,1-3)

Principalmente o autor do Eclesiastes é porta-voz da grande amar


gura experimentada pelo homem que luta e vé frustrados os seus
esforgos: ■
«Quando me pus a considerar todas as obras de minhas mSos e
o trabalho ao qual eu me tinha dado para executá-las, verifiquei: tudo
é decepgáo e vento que passa; nada há de proveitoso debaixo do sol!»
(Ecle2,ll).

Náó é esta, porém, a palavra definitiva da Escritura "Sa


grada a respeito do trabalho. A Biblia traz também a Boa
Nova ou o Evangelho.

3. Trabalho:. instrumento de Redengáo

O trabalho, doloroso como é, foi abracado pelo Salvador,


que assim lhe quis dar sentido novo e valor positivo.
De fato, o Filho de Deus se dignou tomar a natureza hu
mana e experimentar as conseqüéncias do pecado a fim de as
tornar instrumento de purificagáo e volta a Deus. Trabalhando,
sofrendo, Cristo testemunhou sua obediencia ao Pai, em oposi-
cáo ao que fez o primeiro Adáo. De entáo por diante, as fadi-
gas deixaram de ser mero castigo para.se.tornar imita;áo de
Cristo e meio de redencáo. Feliz o homem que sabe aceitar süa

— 167 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 3

labuta cotidiana em uniáo com o Redentor; o padecimento


torna-se-lhe assim fonte de alegría! Por conseguinte, a última
palavra da S. Escritura com relacáo ao trabalho é cheia de
otimismo: apresenta a labuta humana com a sua nobreza ini
cial (continuacáo da obra do Criador) acrescida de valor novo:
é redencáo e santificagáo.

Os Evangelhos dáo a ver com muito realismo como Jesús se quis


identificar com o homem acabrunhado pelo trabalho e a miseria.
Assim, par exemplo, referem que
Jesús se sentou, cansado, á beira do poco de Jaco, quando o sol
do meio-dia se fazia sentir (Jo 4, 6);
adormeceu, esgotado, na popa de um barco de pescadores
(Me 4, 38);
percorria cidades e aldeias, ensillando ás multidSes e curando os
enfermos (Mt 9,35);
comparou a sua missao
á do médico (Mt 9, 12),
á do pastor (Mt 9, 36; Jo 10, 11),
á do ceifador (Mt 10, 37).

Ademáis, em sua vida oculta Cristo exerceu o humilde trabalho


manual de um carpinteiro, trabalho que, na qualidade de verdadeiro
homem, Ele haverá aprendido de seu pai adotivo Sao José: foi car
pinteiro de aldeia, filho de carpinteiro (Me 6, 3; Mt 13, 55; Le 2, 52).
O Senhor deve ter passado anos de sua vida mortal a fabricar objetos
indispensáveis para o uso dos homens : mesas, cadeiras, prateleiras,
arados, jugos de animáis ; também terá consertado pacientemente
tais movéis e utensilios, pobres e gastos. Veio, enfim, para servir....
e servir de todos os modos: com as máos, as palavras, a vida e a
morte. Fazendo isto, Jesús executava a vontade do Pai, santificando a
vida dos homens na térra. A consciéncia de estar cumprindo o designio
do Pai devia superar n'ÉIe a monotonía da tareía cotidiana, dissemi
nando verdadeira alegría humana sobre toda a sua atividade.

A conseqüéncia ¡mediata desta consagracáo do trabalho por parte


do Salvador é focalizada no titulo abaixo :

4. Trabalho: obrigacáo de consciéncia

Para o discípulo de Cristo, o trabalho nao é apenas meio


de ganhar o ptáo, mas também instrumento de purificacáo e
santificagáo. Conseqüentemente, trabalhar é dever que incumbe
a todo cristáo (para.náo dizer: a todo homem), mesmo aque
les que já tenham a sua subsistencia material assegurada.

Na verdade, «a ociosidade é inimiga da alma», como sempre ensi-


naram os autores de espiritualidadé, fazendo.eco á sabedoria do Antlgo
Testamento (cf. Sao Bento, Regra dos Monges c. 48 e Eclo 33, 28s).
De fato, a ociosidade permite a dispersáo das idéias, abrtodo brecha
para as tentacSes. Ao contrario, o trabalho vem a ser amigo da alma,

— 168 — '
TRABALHO : VALOR POSITIVO OU CASTIGO ?

porque a sujeíta a disciplina, fazendo-a imitar o Cristo é voltar ao


Pai-(l).

Procuremos agora colhér na S. Escritura do Novo Testa


mentó e na Tradigáo crista alguns grandes éxemplos de valori-
zagáo religiosa do trabalho.

a) Os Apostólos foram os primeiros a ensinar e praticar


esta atitude.
Sao Paulo dizia muito categóricamente : «Quem nao tra-
balha, também nao coma» (2 Tes 3,6-12); dirigía estas palavras
principalmente aos cristáos que pretendiam poder entregar-se

(1) A fim de realgar melhor estas afirmagfies, transcrevemos as


oportunas palavras de H.-B. de Warren no seu artigo «Le travail ma-
nuel chez les moines á travers les ages», em «Vie Spirituelle» Supplé-
ment, sept. 1937, pág. [81] :
«Nao se pode conceber um cristao que viva de suas rendas, sem1
ocupagao útil. Aínda que os rendimentos o dispensem de. exercer uma
proíissáo, o cristáo deve trabalhar tanto para se tornar útil como para
íazer a penitencia outrora imposta no paraíso terrestre... O íiel ba-
tizado que «nao se sujeita a essa lei... poderá conseguir a salvagáo
eterna, mas com mais dificuldades; após a morte, terá que satisfazer*
a essa divida de penitencia nao paga sobre a térra. Tal doutrina parece
ter sido mais compreendida pelos fiéis dos primeiros séculos do que
pelos cristáos contemporáneos».
«Mais compreendida pelos fiéis dos primeiros séculos...». Eis
como no séc. IV o monge Paulo compreendia a imperiosa necessidade
de trabalhar (citamos éste caso nSo porque seja padráo, mas porque
exprime bem uma mentalidade) :
«O monge Paulo, o modelo dos solitarios, vivia em vasto deserto
chamado Porphyrion. Seu canteiro de térra e os frutos de suas pal-
melras bastavam a todas as suas neeessidades. Nao podia conseguir
lucro algum com o seu trabalho porque estava separado das cidades.
e de qualquer habltagáo humana por uma caminhada de sete días.
O transporte de seus artefatos teria custado mais do que o respectivo
prego de venda. Nao obstante, colhia ramos de palmetiras, e determi-
nava para si uma tarefa a ser executada cada dia como se déla tivesse
que viver. No fim do ano, ele tinha a sua-gruta cheia de cestas, con
feccionadas com extremo cuidado. Ateava-lhes entáo o fogo e as des
truía. Enslnava-nos assim que, sem o trabalho das mSos, um Religiosa
nao pode perseverar; sem ésse exercicio, é difícil atingir a perfeigSo,
de modo que é preciso pratlcá-lo, mesmo quando a necessidade nao o
impOe; o trabalho purifica o coragao, firma a inteligencia, conserva
o momg& na cela e faz vencer a preguiga» (Cassiano, InstituigSes 1.
X §'24). *
Oxalá a mentalidade desse antigo asceta se prolongue na condutf
de vida dos cristáos de nossos dias, ficando cada um, sem dúvida, na
vqcagSo que Deus lhe assinalou!
Evidentemente, nao estáo compreendidas ñas observac5es ácima,
as pessoas doentes ou idosas, impossibilitadas de trabalhar.

— 169 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 3

ao ocio, visto que Cristo veio orientar os homens para a vida


eterna.

O próprio Paulo deu o exemplo do trabalho, e trabalho manual,


exercendo as fungdes de curtidor de peles (cf. At 18,3). Tinha, sim, o
direito de viver de remuneragáo devida ao seu intenso -apostolado
(cf. 1 Cor 9,6-11); contudó quis abrir máo désse direito, a fim de nao
ser molesto aos fiéis (cf. 1 Tes 2,9; 2 Tes 3,9; 1 Cor 4,12) e gozar de
toda a liberdade na pregacáo do Evangelho. Com o seu trabalho che-
gou mesmo a auxiliar o próximo: «Vos mesmos sabéis», dizia ele
aos eíésios, «estas máos supriram ás minhas necessidades e ás de
meus compaaiheiros» (At 20,34).
Sao Paulo considerava, de resto, o próprio apostolado como um
verdadeiro trabalho (1 Tim 5,17; 2 Tim 4,5), comparável ao do cam-
ponés que planta e rega, esperando de Deus o crescimento da seara
(1 Cor 3, 6-9). O sucesso désse trabalho seria proporcional aos esfor
cos e a generosidade do apostólo (2 Cor 9,6). Assim considerado, o
trabalho apostólico nao deixava de ser penoso para S. Paulo, mas
constituía, ao mesmo tempo, fonte de imensa alegría, porque era par
ticipado dos sofrimentos de Cristo (Col 1,24); era um parto doloroso,
sim, mas prenhe das alegrías de urna vida nova ou da vida de Cristo
que Paulo gerava ñas almas : «Fühinhos meus, por quem de ndvo
sofro as dores do parto, até que Cristo esteja formado em vos...»,
dizia ele aos Gálatas (4,19).

Em torno de Sao Paulo aparecem diversas figuras do mundo do


trabalho :
o casal Áquila e Priscila, que, compartilhando a mesma tarefa
de curtidores de peles e fabricantes de tendas, costumavam hospedar
S. Paulo em sua casa (cf. At 18,3);
Lucas, o médico gentío, que convertido, muito beneficiou o Apos
tólo com seus prestimos (cf. Col 4,14);
Lidia, vendedora de púrpura em Filipos (cf. At 16,14);
Tirano, professor de escola, que pos urna sala á disposigáo de
Paulo para que éste pregasse em Éíeso (cf. At 19,10); - . •
em Corinto, Sao Paulo converteu gente de condicáo muito mo
desta (cf. 1 Cor 1,26), o que nao impedia tivesse boas relacCes com
Erasto, o tesoureiro da cidade (cf. Rom 16,24);
a Filemon, senhor abastado e patráo em Colossas, assim como a
Onésimo, seu escravo, dedicava igual afeicáo paterna (cf. Fim).
Em urna palavra, o Apostólo sabia realmente íazer-se tudo a todos,
a fim de ganhar todos para Cristo (cf. 1 Cor 9,22).

b) A Tradicáo crista continuou a manifestar grande


apreso pelo trabalho.
Os antigos escritores da Igreja sublinhavam de maneira
especial o espirito religioso, espirito novo, com que os cr'istáos
se deveriam desincumbir dos afazeres cotidianos. Assim, por
exemplo, escrevia Clemente de Alexandria (t antes de 215) :

«Se és lavrador, dá atengáo & lavoura, mas recorda-te de Deus


enquanto trabalhas nos campos. Se és marinheiro, navega, mas nao
deixes de invocar o Piloto Celeste» (Protr. X, ed. Migne gr. 8,216).

— 170 — -
TBABALHO : VALOR POSITIVO OU CASTIGO ?

Um tópico apenas da historia merece aqui especial consi-


deragáo; refere-se ao género de vida dos antigos monges.
Retirando-se para o deserto, a fim de ai viver em silencio e oragáo,
os primeiros ascetas cristáos se dedicavam habitualmente ao trabalho
manual: teciam cdrdarries, cestas e esteiras com as íólhas de pal-
meiras do deserto: -Éste género de trabalho lhes era caro, porque se
exercia de maneira um tanto mecánica, deixando certa liberdade a
mente para pensar em Deus; de outro lado, o movimanto das máos
servia para combater a soñolencia que, em caso de total imobilidade,
os poderla acometer. Destarte procuravam chegar, tanto quanto pos-
sível, a um estado de oracáo continua.

Nao íaltaram, porém, casos de monges que, em nome de maior


perfeicáo, queriam isentar-se de todo trabalho, a fim de se concentrar
totalmente na oracáo. Foi o que'se deu, por exemplo, na comunidade
de Hadrumetum na África setentrional (séc. IV/V). Muitos dos irmáos
aí diziam :
«Aqui víamos para orar. Que as homens do mundo, por quem nos
rezamos, se encarreguem de nos vestir e de assegurar a nossa subsis
tencia! A Providencia de Deus alimenta até as aves do céu».
Outra parte da comunidade, porém, replieava, apelando para o
exemplo de Sao Paulo. — S. Agostinho, solicitado para restabelecer
a paz em tal mosteiro, escreveu a propósito o opúsculo «De opere
monachorum (Sobre o trabalho Sos monges)», recusando a falsa pie-
dade dos inovadores: lembrava que S. Paulo sempre praticara o tra
balho manual, ao mesmo tempo que percorria o mundo pregando o
Evangelho; observava também que, se nao fósse Cristo, mais de um
dos monges alheios ao trabalho teria ficado no mundo como escravo
de um senhor terrestre; por lim, acrescentáva que Deus, na verdade,
tem cuidado das aves do céu, mas nao as alimenta em gaiola (ou seja,
em condicoes de vida artificiáis)!
. • A exortagáo de S. Agostinho foi eficaz, pois a tradicáo monástica
e ascética se firmou sobre o principio «Ora et labora —■ Ora e tra-
balha».

No séc. XIII, S. Tomaz de Aquino, tentando elaborar sis


temáticamente toda a teología crista, indagava: «Devem os
Religiosos (monges e frades) exercer o trabalho manual?».
Embora ésse mesmo século fósse o período áureo dos estudos
filosófico-teológicos, o Santo Doutor (ele mesmo professorde
Universidade e frade dominicano) nao hesitava em responder
afirmativamente; e corroborava a sua sentenga assinalando
quatro finalidades ao trabalho manual:
Assegurar a subsistencia do individuo e da sociedade,
evitar a ociosidade,
refrear a concupiscencia,
possibilitar a prática da esmola (cf. Suma Teol. II/II 187,3).'

A enumeragáo resume bem a doutrina dos antigos douto-


res e fiéis cristáos. Até nossos dias ésse ensinamento conserva
pleno vigor. De fato, ainda recentemente o S. Padre Pió XH,
diriglndo-se a Religiosas enclausuradas, repetía, por sua vez,

— 171 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 3

que a vida contemplativa, por mais voltada que esteja para- a


oragáo, nao excluí, mas ao contrario exige, trabalho... traba-
Iho ou intelectual ou manual:
«Os varOes e as mulheres, sem excegáo, que se dedicam á vida
contemplativa, estSo obrigados ao trabalho, manual ou intelectual,
nSo sé por fórca da lei natural (cf. Gen 2,15; 3,19; Jó 5,7), mas também
por um dever de penitencia e satisfacao (cf. Gen 3,19). Ademáis o
trabalho geralmente é o meio que preserva a alma de perigos e Ihe
possibilita elevar-se as alturas; é também o meio de darmos a nossa
devida colaboragáo á Divina Providencia, tanto na ordem natural como
na sobrenatural. É mediante o trabalho que podemos executar obras
de caridade» (Const. «Sponsa Christi», Documentation Catholique 47
[19501 1687).
Está claro que, se a obrigacáo de trabalhar para se santificar cabe
aos Religiosos e Religiosas de clausura, nao é menos imperiosa para
os cristáos que Deus chama a viver no século, lidando com afazeres
temporais. — Contudo, a fim de colherem o fruto religioso do traba
lho, será preciso que todos, quer no mundo, quer no claustro, obser-
vem mais a seguinte proposicáo :

5. Trabalho cristáo :. trabalho á luz da eternidade

O discípulo de Cristo nao se ilude sobre a precariedade do


seu labor na térra: será sempre penoso e nunca satisfará ple
namente as suas aspiragóes. Contudo o cristáo nao se intimida,
porque sabe que haverá a consumac.áo de seus esforgos na vida
eterna. É isto que Ihe incute paz e coragem.
Donde se vé quáo pouco crista é a predicáo de Renán, «o profeta
do futuro da ciencia» : há de vir dia, julgava ele, no qual pequeño
punhado de homens terá em suas máos a subsistencia mesma do nosso
planeta, pois seráo capazes de o fazer explodir em poucos minutos
mediante o recurso á ciencia; contudo nao desencadearáo a catástrofe,
porque sqráo também perfeitos do ponto de vista ético (Ciencia e
Moral se acompanharáo mutuamente). Em conseqüéncia, o género
humano nada terá que recear por parte do progresso científico.
Esta expectativa de redengSo e paraíso mediante o desenvolvi-
mento da' cultura meramente humana é sonho irrealizável aos olhos
do cristáo. A plenitude da Redencao e a bem-aventuranga, éste as
aguarda após o fim da vida presente. Aqui na térra ele nSo pode
esquecer as palavras de Sao Tiago:
«Sede pacientes, irmáos, até a vinda do Senhor... Vede: o Juiz
está ás portas!» (5, 7-9).
Nesta perspectiva torna-se de grande importancia para o cristáo
o domingo, dia do Senhor. É a ocasiáo em que os fiéis, de certo modo,
antecipam a eternidade: na S. Missa oferecem os trabalhos de seis
dias ao Pai do Céu com Cristo, e recebem o fermento para recomegar
a luta cotidiana, revigorados pela ffirga da Redengao e da vida eterna.
Assim o trabalho de cada dia, por mais humilde que seja, se reveste de
imenso valor.
As' consideragOes déste artigo se completaráo lógicamente na res-
posta seguinte.

— 172 — -
CRISTIANISMO E TRABALHO MANUAL

. 4) «E qual a posicao do Cristianismo diante do trabalho


manual, também dito servil, em oposigáo ao trabalho chamado
liberal?
■ Apréco ou menosprézo?»

Antes do mais, observaremos que nao se pode acentuar com multa


éníase a dlstincáo entre trabalho manual e trabalho Intelectual.
Nao ha dúvida, o trabalho manual é executado preponderante-
mente com as máos; nem sempre supOe grande estudo ou preparo
técnico. É tido como ativldade humilde. — Ao tnvés, o trabalho inte
lectual solicita prepdnderantemente a inteligencia e o estudo.
Contudo dizia muito sabiamente S. Tomaz que Deus concedeu ao
homem, como características suas, a razüo e as maos (cf. Suma Teo
lógica I 76, 5 ad 4). Na verdade, a criatura humana nao foi feita para
trabalhar só com a inteligencia ou só com as maos. De um lado, tra-
balhar com a inteligencia apenas, sem concretizacáo em íatos, torna
o homem doente ou neurasténico. De outro lado, o trabalho das máos
nao pode deixar de ser orientado pela inteligencia; trabalhar sem com-
preensáo é deprimente; Donde se vé que o «homo faber» (o homem
que fabrica) é também, e simultáneamente, o «homo sapiens» (o ho
mem que raciocina).
Para avaliarmos com toda a clareza a posicáo do Cristianismo pe-
rante o trabalho manual, oportuno será considerar prlmelramente
como os pagaos tí os judeus anteriores a Cristo consideravam essa
íorma de atividade.

1. O fundo pagáo

Ñas tribos primitivas da humanidade, verifica-se acentua


da tendencia a entregar os trabalhos mais penosos e monóto
nos as mulheres e aos escravos (quando os há), ao passo que
os horneas se furtam as fadigas e procuram usufruir...

Nos povos de civilizagáo mais evoluida, o trabalho manual


era tido como algo de vil e degradante. Por isto ficava reser
vado aos escravos. Os senhores dedicavam-se ao estudo, á arte,
á administracáo pública, etc.; eram os cidadáos (cives, liberi,
no vocabulario romano), ao passo que os escravos eram consi
derados coisas e instrumentos (res et instrumenta). As rela-
cóes entre uns e outros eram concebidas mediante urna compa-
ragáo: como, no ser humano, o corpo deve servir ao espirito,
também na sociedade os que trabalham com as máos devem
sujeitar-se por completo ao dominio dos que exercem atividade
do espirito.

Assim pensava na Grecia Xenoíonte (t 354 á.C), por exemplo,


o qual admoestava a tratar os escravos com bondade, temperando
pancadas e nutrigáo a lim de se obter o maior rendimento (Econ. IV).

— 173 —
. «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964. qu. 4

Aristóteles (t 322 a.C.) julgava que por natureza o escravo é in


capaz de íelicidade, como é incapaz de livre arbitrio (cf. Polit. III 3;
IV 13; V 2; VII 8).
Platáo (t 348 a.C), em alguns escritos, compartilhava seme-
lhantes idéias (cf. República VI 54; Leis V. VV.VIII).
Em Roma, Cicero (t 43 a.C.) se mostrava benévolo para com
os- escravos, mas adotava o preconceito comum (cf. De officiis I 42).
Séneca (t 65 d. C.) protestava contra os maus tratos infligidos aos
servos, mas nao deixava de os menosprezar.
Nao carece de importancia notar que tais idéias pareciam.aos pa
gaos confirmadas pelas suas concepgoes e narrativas religiosas: os
deuses da mitología davam o exemplo de vida ociosa, entregue ao
prazer, á volúpia e as aventuras.

Assim — numa palavra — o ideal do cidadáo era repouso


e ocio, baseados no .trabalho penoso de multidáo de escravos.

Passemos agora a

% O fundo judaico

Entre os judeus, no inicio da era crista, era um pouco am


bigua a mentalidade concernente ao trabalho manual.
Os rabinos, inspirando-se ñas licóes da Biblia, ensinavam:
«Ama 6 trabalho»; «Grande é o trabalho, pois dignifica o arte-
sáo», ou ainda : «Quem nao tiver trabalhado, nao comerá».
Aos pais de familia Rabino Jehuda dirigía a seguinte admoesta-
cáo: «Todo homem está obrigado a enslnar urna arte manual ao seu
filho; quem nao o fizer, deverá permitir que seu íilho exerca a arte
do ladráo» (Tosifta Kidduschim I II).
R. Gamaliel interrogava: «Com que se parece o homem que
conhece um oficio? Compará-lo-emos a urna vinha cercada de muro e
a um jardim rodeado de sebe».
R. Eliezer dizia com muita énfase: «Ainda que urna mulher leve
cem escravas para a casa de seu marido, éste poderá obrigá-la a fiar
a la, pois a ociosidade gera a má conduta» (Kethuboth 13).
Em particular, a agricultura gozava de estima; o trabalho do la-
vrador era comparado ao do mestre de escola, contanto que, ao lavrar
o solo, o homem voltasse seu coracjío para Deus.
A tradicáo judaica recordava com prazer que o grande rabino
Hillel (séc. I d. C.) exercéra oficio multo humilde, tendo sido o seu
exemplo seguido por outros rabinos famosos (Aqiba, Meir...).

Contudo nem todos os mestres de Israel pensavam assim.


Muitos julgavam que o trabalho manual absorve o operario de
tal modo que nao encentra mais tempo para realizar a obra
essencial da vida, que seria o estudo da Lei de Moisés.Daí conce-
biam certo desprézo para com o 'am-haaretz, o povo da térra,
isto é, a massa de trabalhadores que nao tem lazer para sondar
a Lei/

— 174 — '
CRISTIANISMO E TRABALHO MANUAL

Em conseqüéncia, certa tradigao rabinica desaconselhava deter


minados aíazeres (em si honestos), como o de guia de asnos e came
los, o de barbeiro, o de marinheiro. o de comerciante de drogas...
(Kidduschim 4, 14).
O rabino Simeáo ben Jochai admitía que o povo de Israel nao teria
necessidade de trabaltiar com as máos se cumprisse fielmente a von-
tade de Deus, pois as nacSes pagas entáo se encarregariam de o sus
tentar materialmente (Talmud, Berakhoth 35 b).
A leitura atenta da Torah ou Lei (trabalho intelectual) era esti
mada de tal modo que Rabino Meir podia dizer : «Todo aquéle que se
dedica ao estudo da Lei por causa da própria Lei, é digno de todo
bem. Mais ainda; o mundo inteiro em sua plenitude nao tem mais
valor do que ésse estudioso» (Pirké Aboth VI 1).
Reciprocamente, o homem que ignorava a Lei nao podia ser con
siderado piedoso: «Nenhum 'anvhaaretz (homem da térra) é piedoso»,
terá dito R. Hillel (Pirké Aboth II 5).

O extremado aprégo pelo conhecimento da Lei chegava a


criar urna barreira entre os justos e estudiosos de Israel, de um
lado, e, de outro lado, a gente simples, que vivia ocupada no
ganha-pao material, trabalhando com as máos; os doutores de
Israel nao julgavam suficiente a instrucáo religiosa de um jo-
vem artesáo de aldeia que fdsse assiduo apenas as ligóes dadas
na sinagoga do seu povoado.

; Urna casuística se desenvolveu em torno dessas idéias: segundo


a oplnlao dos doutores, um hasid (piedoso) ou um verdadeiro íariseu
:náo deveria vender ao «homem da térra», nem comprar déle, alguma
fruta sequer (fósse fresca, fósse seca); nao deveria estudar a Lei ou
fazer ablucSes rituais em presenca de tal pessoa; muito menos lhe
seria licito viajar em companhia do «homem nao piedoso» ou entrar
na casa déste (... a menos que deixasse fora da casa as suas vestes
exteriores). A «gente da térra» nao podia ser admitida como testemu-
nha em tribunal, nem encarregada de fungáo pública. Em suma, era
urna carnada de povo da qual era preciso desconfiar e com a qual os
bons só deviam ter o mínimo possivel de retacees.

Fora da Palestina, os judeus também tendiam freqüente-


mente a desprezar as atividades servis por influencia da menta-
lidade dos povos pagaos em meio aos quais viviam.
Tal era, sumariamente, a atitude do judaismo frente ao
trabalho manual no inicio da era crista.
Sobre o fundo de idéias israelitas e pagas assim reconsti
tuidas é que comecou a ser apregoada

3. A mensagem crista

Examinaremos sucessivamente as atitudes de Jesús Cristo, de


Sao Paulo e da Tradicáo crista no tocante ao trabalho manual.

— 175 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 4

a) Jesús Cristo, «o Carpinteiro»

Conforme os SS. Evangelhos, Jesús, o Arauto da Boa


Nova, foi «o filho do carpinteiro» (cf. Mt 13,55) ou mesmo «o
Carpinteiro» (cf. Me 6,3).
Que quer isto dizer precisamente?
O térémo grego «tékton», utilizado pelos Evangelistas, de-
signava, sim, o carpinteiro. O carpinteiro, porém, em aldeía do
Oriente costumava prestar-se a todos os pedidos do público, en-
saiando-se com éxito em diversas tarefas relacionadas com a
carpintaria.

Mais ainda: dos papiros antigos pode-se depreender que um car


pinteiro de aldeia oriental freqüentemente possuia ou alugava um
pequeño terreno, que ele mesmo cultivavá. Se tal foi o caso da fami
lia de Jesús, compreendem-se os tragos muito realistas que Ele impri-
miu ás suas parábolas referentes á vida agrícola; Jesús terá tido a
experiencia nao sómente do machado, do martelo e do serrote, mas.
também da sementeira, da messe, e da joeira.

Até os trinta anos de idade, Cristo entregou-se humilde


mente a ésses oficios. Entrementes manteve-se alheio as esco
las e as observancias dos fariseus ou da pretensa élite religiosa
do seu povo; de fato, nao praticava os jejuns devocionais de cer-
tos judeus piedosos (cf. Mt 9,14-17; Me 2, 18-22), nao se
submetia a todas as locóes prescritas pela casuística (cf. Me
7,2); escolheu seus apostólos entre os pescadores e os publica-
nos tidos como imundos (cf. Mt 9,9-12; Me 2,13-17; Le 5,27-32).
Procedendo assim, Jesús identificou-se com o 'am-haaretz ou
com a gente da térra, gente que constituía a categoría menos-
prezada do povo de Israel; os publícanos convidavam-no a ceiar
sem temer que recusasse (cf. Mt 9,10-13; Me 2,15-17; Le 5,
29-32); a'multidáo assediava a casa em que Ele se abrigava
(cf. Me 2,ls); os doentes se Lhe apresentavam com toda a
familiaridade.
Com isto quería Jesús significar que Ele vinha anunciar
urna «justiga melhor» (cf. Mt 5,20), ou seja, um novo conceito
de santidade; nao os homens «justos», ricos de «seus» méritos
(e eivados de orgulho), seriam os herdeiros dessa justiga, mas,
sim, os homens contritos e humildes, que eram tidos como «a
gente da térra». Nos ambientes de pobreza, de labor singelo e
de oragáo é que a sementé do Bom Semeador devia dar seus
mais abundantes frutos. Para nos fazer compreender esta
grande verdade é que o Senhor quis ser pobre e humilde, vi-
vendo do trabalho.de suas máos.

— 176 — '
CRISTIANISMO E TRABALHO MANUAL

b) Sao Paulo, o fabricante de tendas

Logo após Cristo na historia do Novo Testamento surge a


figura de Sao Paulo, que de muito perto imitou o Divino Mes-
-tre. Pregou ardorosamente a Palavra de Deus e quis ser, ao
mesmo tempo, o trabalhador manual: curtidor' de peles e fabri
cante de tendas (cf. At 18,3 : «skenopoiós»).

O trabalho manual tornou-se mesmo táo familiar a SSo Paulo


que élé a designava os falsos pregadores como «maus operarios» ou
«operarios fraudulentos, enquanto recomendava a Timoteo fósse «um
operario Irrepreensiveb (cf. Flp 3,2; 2 Cor 11,13; 2 Tim 2,15).
Paulo chegou a ser simples trabalhador a servico de um casal de
patrSes amigos (Aquila e Priscila); cf. At 18,2s. O oficio que exercia,
era assaz rude; nada tinha de comum com o de artífice; devia mesmo
proporcionar a Paulo freqüentes ocasiSes de cotejar escravos. Tra-
tava-se da exploracáo industrial das peles e dos longos pelos de
cabra e camelo provenientes da Espanha, da África e, principalmente,
das regiaes asiáticas da Frigia e da Cilícia (térra natal áef S. Paulo,
donde se deriva o nome de «cilicio», dado ao rude tecido que lá se
fabricava). Essas peles, fortes e impermeáveis como etram, serviam
para confeccionar tendas- de soldados e beduinos, cortinas e portas,
mantos contra a chuva, vestes de marujos e pescadores, sacas e
cabos... Tal industria se exercia de preferencia nos grandes centros
. urbanos, pois se destinava á exportacáo. Por isso sómente quando se
detinha em urna cidade de maior vulto é que Paulo encontrava meios
de praticar o seu ganha-pao; provávelmente, ao chegar em tais cida-
des wocurava logo um fabricante, com o qual se entendía para^tra-
balhar. Feito isto, punha-se a labutar duramente a fim de conseguir
algum dinheiro, que, zelosamente economizado, lhe permitiría nao
sdmente comer o seu pao, mas também prosseguir suas viagens mis-
sionárias. Apenas no fim da vida, quando enearcerado em Cesaréia e
Roma, impedido de freqüentar oficinas, talvez também cansado pela
idade,' é que Sao Paulo deve ter experimentado algum repouso, re-
pouso éste ao qual os fiéis.de Filipos, mediante as suas generosas
esmolas, quiseram dar um pouco de bem-estar e alegría (cf. Flp
4, 10-14.18; At 28,30).
Na base destas observares, podemos assim reconstituir urna jor
nada de Sao Paulo nos seus anos de pleno vigor : passava a melhor
parte do dia em urna fábrica de tecidos grossos, ladeado por compa-
nheiros muito simples; aos quais nao podía deixar de anunciar oca
sionalmente o Evangelho; entretinha-seentáo com visitantes e clientes,
' ouvia os casos de uns e outros, ]angando oportunamente a sementé
da boa palavra. No fim do día, retirava-se da oficina, cansado, para
ir visitar os fiéis cristáos em suas casas, corroborando e disseminando
ulteriormente a fé, por vézés celebrando a S. Eucaristía em urna sala
de culto; quando nao fazia isto, dítava talvez a um discípulo alguma
de suas epístolas (cada qual destas devia levar varios serBes!), ou
tratava de outros interésses da Igreja.

Tal género de vida devia ser incompreensivel a um homem


de mentalidade greco-romana da época; equivalía a triste ou

_ 177 _ ■ .
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964. qu. 4

mesmo escandalosa decadencia: Paulo, cidadáo romano como


era, nascido em condigóes de liberdade, filho de familia rica
ou abastada, caia no estado de vida de um escravo, entre-
gando-se a ocupagóes servís!

O contraste torna-se especialmente clamoroso pelo fato evidente


de que S. Paulo nao era um plebeu qualquer; disto davam testemunho
a desenvoltura com que se comportava perante os grandes horneas,
a íacilidade de entrar em relacoes com éles (cf. At 19,31) e a consi-
deragáo com que o tratavam os magistrados civis (cf. At 22-25).

Se o Apostólo adotasse o género ds existencia dos prega-


dores cínicos da época, pedindo esmolas e catando os seus
piolhos ñas vias públicas, monos escándalo e dó causaría ao ho-
mem «bem-pensante» do Imperio romano.
Ora justamente ésse fenómeno paradoxal da vida de
S. Paulo era um auténtico eco da mensagem de Cristo ao mundo.
Sim; o que parecía humilde e desvalorizado aos olhos da socie-
dade, Cristo o veio valorizar. S. Paulo tinha consciéncia disto
(cf. 1 Cor l,27s); quis entáo traduzir esta consciéncia abra-
Cando um género de trabalho e de vida humilde, passando por
louco aos olhos do mundo (cf. 1 Cor 4,10).

Mediante tal procedimento, o Apostólo intencionava participar


mais Intimamente da paixáo de Crirto (cf. Col 1,24; 2 Car 4,10s>.
Desejava também mostrar a todos os homens (amigos e adversarios)
que ele pregava o Evangelho com toda a benevolencia, sem visar
interésses pessoais (certamente Paulo tinha o direito de viver á custa
dos fiéis, já que atendía aos seus interésses mais importantes). O afeto
paterno nao lhe permitía tornar-se oneroso ás comunidades evangeli
zadas; ele mesmo dizia que nao sao os filhos que devem angariar
tesouros materiais para os genitores, mas, ao contrario, estes é que
devem reunir bens pecuniarios em favor dos filho.3 (cf. 2 Cor 12,14).
Assim punha-se ele no nfvel dos mais humilde" crlstSos. os quais cons-
tituiam a maioria dos membros das comunidades da época. Pelo seu
exemplo Paulo lhes mostrava como re deviam comportar ñas. condi-
Cóes de escravo, e como poderiam enobrecer o próprio trabalho servil.
t

i ■
O exemplo foi certamente eficaz... Tudo ia transfor-
mar-se e rejuvenescer no mundo antigo; outros criterios de
valor iam ser aplicados á realidade terrestre. «Nao há mais
gentío e judeu..., bárbaro e cita, servo e livre, mas Cristo é
tudo em todos» (Col 3,11). Aquéle que fósse servo devia saber
que, feito cristáo, se tornara liberto de Cristo, e, vice-versa, o
homem livre na sociedade devia saber que, feito cristáo, se
tornara servo de Cristo (cf. 1 Cor 7,20-24).

— 178 — '
CRISTIANISMO E TRABALHO MANUAL

c) A Tradicáo crista

Ininterruptamente, a partir do séc. I até nossos dias, os


mestres de espiritualidade crista, inspirados pelo exemplo de
Cristo e do Apostólo, recomendaran! o exercício do trabalho
manual como" elemento importante de purificacáo e santifi-
cacáo.

Já tlvemos ocasiáo de aludir a isto na resposta n' 3 déste fas


cículo. Aqui procuraremos reunir mais alguns significativos depoi-
tnentos.

Nao poderíamos deixar de lembrar explícitamente o caso


do monge Paulo referido á pág. 169 n. 1.
Aínda dentro do quadro dos grandes ascetas (verdadeiros
heróis) dos séc. IV e V pode-se mencionar o seguinte episodio :

S. Antáo (t 356), o Patriarca de todos os monges, encontrou-se


certa vez. no deserto, acometido de tedio e agitado por pensamentos
diversos. Entáo orou ao Pai do Céu apresentando Lhe a sua perturbacáo
de alma. Em conseqüéncla. teve urna visao : avistou um monge sen
tado na solidáo a trabalhar; tecia urna esteira com fólhas. de palmeira.
Em breve o monge deixou o trabalho e íoi rezar; a seguir, voltou e
continuou a tecer; depois levantou-se mais urna vez e foi orar. A esta
altura apareceu um anjo, qué disse a Antáo: «Faze assim, e serás
salvo». Tal visáo comunicou a Antáo profunda alegría e confianza;
seguiu o género de vida assim indicado, distribuindo o seu tempo entre
a oracSo e o trabalho manual.

O episodio, conforme xeferem escritores antigos, teve importancia


decisiva nos rumos da ascese crista : o trabalho manual, juntamente
com a oracáo, passou a ocupar lugar primacial entre os instrumentos
de santificagáo do monge.

Havia, porém, entre os Padres do deserto alguns idealistas


que julgavam dever abster-se de todo trabalho a fim de orar
e contemplar apenas; tal seria a vida mais perfeita. Engana-
vam-se, como dá a ver o seguinte tópico :

Certa vez um monge estrangeiro foi visitar Silvano, Abade do


Monte Sinai no fim do séc. IV. Viu entáo os irmáos da comunidade a
trabalhar e disselhes : «Porque trabalhais para adquirir um alimento
que perece? María nao escolheu a melhor parte (cf. Le 10, 38-42)?».
O santo anciáo, informado disto, mandou a seu discípulo Zacarías:
«Leva ésse irmao para urna cela, onde ciada haja que comer, e dá-lhe
um livro a fim de que se ocupe». Chegada a hora nona (3 h da tarde),
o mpnge peregrino olhava a todo momento para a parta, aguardando
que o Abade o mandasse chamar para comer. Passada, porém, a
hora, ninguém aparecerá; ele entSo foi ter com o anciáo e lhe per-
guntou:
«Pal, os irmSos nao comeram hoje?
— Sim, respondeu o Abade, já comeram.

— 179 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 4

— Porque entáo nao me mandaste chamar?


— Porque és um homem todo espiritual; escolheste a melhor parte,
e passas os dias inteiros a ler; nao precisas désse alimento perecivel.
Nos, ao contrario, somos carnais; nao podemos dispensar o alimento;
e isto nos obriga a trabalhar». ' *
Reconhecendo entáo a sua falta, o monge peregrino prostrou-se
aos pés de Silvano e exclamou: «Perdoa-me, 6 pai!»
Ao que respondeu o Abade: «Estou contente por teres reconhé^" ¡
cido que María precisa de Marta e que assim Marta participa dos lou- ' -
vores tributados a Maria». .

Semeühante episodio registrou-se no Ocidente entré os monges de


Hadrumetum, como se lé á pág. 171 déste fascículo.

Urna nova etapa na historia da espiritualidade se verificou


guando os monges, sem deixar o rude e clássico labor das m,áos,
comegaram a se dedicar também á transcrigáo de códigos, tra-
balho éste meio-manual, meio-intelectual.
Esta arte teve inicio nos mosteiros bizantinos, onde havia
oficinas de caligrafía para a canfecgáo de preciosos manuscri
tos. Constantinopla, por toda a Idade Media, ficou sendo o
grande «mercado de livros» do Oriente por causa de seus mon
ges copistas.

«Aos copistas recomendavam os Superiores, sob penas severas,


tivessem grande cuidado com o asseio da copia e do original, obser-
vassem exatamente as linhas e os intervalos, marcassem fielmente ■
os pontos e os acentos, obedecessem em tudo ás ordens do primeiro
calígrafo. Seu-trabalho era oragáo; mais ainda:... era urna pregagáo
continua (pois copiar livros é pregar com a máo, é apregoar no .silen
cio as palavras da salvacao e combater contra o demonio com a tinta
e a pena)... O Superior dessa vasta comunidade (Teodoro de Stu-
dion em Constantinopla), apesar de seus múltiplos afazeres..., dava
o exemplo aos monges, e sabia encontrar tampo para se aplicar ao
trabalho de copia» (Abbé Martín, Les moines de Constantinople depuis
la fondation de la ville jusqu'á la mort de Photius [330-898] Decoffre
1897, pág. 409-411).

Para'conservar o espirito religioso em suas obras, os mon


ges guardavam o anonimato. Haja vista a observacjio seguinte
posta no fim de um manuscrito :

«Quem escreveu éste livro? Deus o sabe. Para quem escreveu?


Deus o sabe. Gragas sejam dadas a Cristo todo-poderoso, que me pres-
tou seu apoio».

Os monges ocidejitais adotaram, com o mesmo espirito


religioso, o costume dos bizantinos. O seu belo trabalho era ver-
dadeira penitencia, como se depreende de dísticos colocados no
fim dos manuscritos.

— 180 — '
CRISTIANISMO E TRABALHO MANUAL

Assim, por exemplo, escrevia úm copista da Abadía de S. Galo


(Sulga) :
«Quem nao sabe escrever, julgará que isto nao é trabalho. Contudo,
embora tres dedos apenas escrevam, o corpo inteiro ressente o can-
sago». ■

. Outros concluiam suas obras nos seguintes termos:


«Eu me Iembrarei, ó Cristo, de que escrevi isto por amor a Ti,
pois me sinto assaz cansado hoje. Domingo á noite».
«Urna béncáo para a alma de Fergus. Amen. Estou sentindo bas
tante frió». ' '
«Amigos leitores que utilizardes éste trabalho, rogo-vos encareci
damente nao esquegais aquéle que o copiou : era um pobre irmáo
chamado Luis; enquanto copiava o volunte trazido de um país estran-
geiro, sentía frió; teve que terminar de noite o que nao pudera acabar
á luz do dia. Tu, Senhor, serás para ele a digna recompensa de seus
trabalhos» (Montalembert, Les moines d'Occident t. IV, 1. XVIII c. IV).

Além do trabalho de copia, os monges ocidentais exerciam


os rudes afazeres que a tradigáo lhes apontava. Transmitirán!
assim á civilizagáo medieval grandes valores da cultura antiga,
entre os quais os métodos de agricultura e certas táticas da arte
e da industria dos romanos. Sem dúyida, déste modo torna-
ram-se verdadeiros construtores da sociédade medieval.

A historia da Igreja nos séculos seguintes continuou a apresentar


constantes manifestares de apréco pelo trabalho manual. A.fim de
nao alongar' excessivamente esta exposicao, contentarinos-emos com a
citacao de mais um tópico apenas.

Nos séc. XVTI/XVin floresceu na Franca a famosa Con-


gregagáó dos monges de Sao Mauro, que se tornoü benemérita
pelas suas edigóes de obras dos antigos escritores cristáos. Essa
Congregagáo, aparentemente muito intelectualista, se dedicava
asslduamente ao trabalho manual. A razáo por que os monges
queriam ser táo fiéis á tradigáo, é explicada por um de seus
mais insignes representantes, Dom Mabillon, cujas~ considera-
góes conservam pleno valor ainda em nossos dias :

«Eis os principáis criterios para se avaliar até que ponto vem a


ser obrigatório o trabalho manual.
Éste tornou-se urna penitencia imposta a todos os homens. É o
meio dé termos alguma coisa que possa ser dada como esmola. Per
mite-nos evitar a ociosidade, refrear as paixGes e adquirir a paz do
coragáo.
Perguntarao, porém: o trabalho manual será táo necessário que
nao possa ser substituido por outro exercício, como seria, por exem
plo, o estudo?...
Em resposta, diga-se que o trabalho das máos é imprescindível nae
comunidades monásticas. De íato, a leitura só, ou mesmo a leitura

— 181 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964, qu. 4 . .

unida k oracSo, nao basta para íixar o coracáo do homem num estado
de oracáo continua; é preciso que a máo preste sua colaboracáo'á
prece, a leitura e ao estudo. Se esta colaborado vier a faltar, os
outros oxercíclos, que por si sao muito santos, tornar-se-áo lánguidos
e - incapazes de domar as paixSes do coracáo. Nao se poderla causar
maior prejulzo á vida de oracao do que o que se lhe acarreta quando
se deixa de praticar o trabalho penitente ; éste é, por assim dizer, o
fundamento que sustenta a oracao e o pao que a alimenta. As distra-
Qfies do espirito e a curiosidade sao inevitáveis nos fiéis que fogem
do trabalho... E nao se pode dizer que evita a ociosidade, aquéle que
se ocupa com trabalhos insignificantes ou com bagatelas» (Traite des
études irionastiques. Paris 1691 c. XIV pág. 86-88. 95).

Éste texto muito insiste no valor do trabalho manual como peni


tencia que impóe disciplina ao homem e lhe permite a aplicacáo mais
livre de sua mente á oracáo. É de supor que muito recolhida e pura se
torne a oracáo de quem pratica a penitencia, e a pratica' mediante o
tradicional .recurso ao trabalho manual.

Em nossos dias, verifica-se o surto de varias Congrega-


góes religiosas que visam dar ao mundo o testemunho de Cristo,
dedicando-se ao trabalho das máos em ambientes rústicos; por
essas Fraternidades se manifesta a vitalidade da S. Igreja.
Todavía verifica-se também que numerosos cristáos (sacerdo
tes, Religiosos, ou leigos) sequiosos de perfeigáo espiritual sao
chamados por Deus a tarefas tais (magisterio, cura de almas,
profissóes liberáis...) que nao lhes resta tempo, em seu hora
rio cotidiano, para se entregar ao trabalho manual. É a fórga
das circunstancias, nao a covardia, que cria tais situagóes.
Faz-se entáo mister reconhecer a realidade dos fatos. O cristao
tem que desempenhar a sua missáo no séc. XX de acordó com
as exigencias que lhe propóe o séc. XX. Contudo, mesmo nes-
ses casos ficará válida a doutrina incutida pela Tradi;áo quando
esta valorizava o trabalho manual: o espirito do trabalhador
manual ou do operario, espirito de disciplina, pobreza e peni
tencia, tem que acompanhar o cristáo em todo género de ativi-
dade para o qual Deus o chame. Se nao houver éste acompa-
nhamento, vaos seráo os esforgos da pessoa em demanda das
vias da. oragáo e da santidade.

E, nao há dúvida, um auténtico espirito de penitencia le


vará a auténticas práticas de penitencia (embora nem sempre
as do trabalho manual), apesar de todas as reservas que a vida
moderna pretende impor a ascese ou á mortificando!'

Sdbre o valor da máo como simbolo da dignidade humana, veja-se


<P.R.» 21/1959, qu. 6; 35/1960, qu. 4.
A respeito do sentido dos termos «ascese» e «asceta», cf. «P.R.»
30/1960, qü. 6.

— 182 — '
fe:.
| VILIBRORDO VEKKADE, CONVERTIDO DO SfiCULO XX
' IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

; LTJ1ÍA (Paraiba) :

;■ 5) «Quisera saber algo sobre a vida de D. Vilibrordo


"' - Verkade, pintor incrédulo que se fez monge».

Joao Verkade (assim se chamava no mundo o citado artista)


' escreveu sua autobiografía no livro «Die Unruhe zu Gott» (O tormento
sequioso de Deus). Entre outras características, manifesta ter sido,
.desde crianga. fortemente atraído pela Beleza... De etapa em etapa,
a sua alma dócil chegou finalmente a reconhecer a Beleza incriada,
dedicando-Lhe entáo toda a sua vida num mosteiro. ,

Procuraremos abaixo reconstituir os principáis marcos do seu


itinerario espiritual.

Joáo e Éric Verkade, irmáos gémeos, nasceram aos 18 de


setembro de 1868 em Zaandam (Holanda), de antiga familia
protestante, na qual o senso do dever, da honestidade e da reti-
dáo constituía valor indiscutível. Déla nasceram, ao todo, tres
meninas e cinco meninos.
De acordó com os costumes da crenga menonita, os geni
tores nao mandavam batizar os filhos em idade pequeña.
Os dois gémeos passaram os seus primeiros anos assaz
unidos entre si, principalmente para empreender as habituáis
«aventuras» infantis. Os assuntos religiosos nao os empolgavam
muito; o ambiente de casa, alias, era marcadamente liberal.
Depois dos primeiros estudos, o pai matriculou Joáo e Eñe
em urna Academia de Comercio de Amsterdam. Joáo, porém,
muito mais se interessava pelas lojas de antiquários e as gale
rías de arte da cidade do que pelos cursos de contabilidade.
Em conseqüéncia, abandonou sua iniciacáo no comercio e
entrou para a Academia de Belas Artes. Embora tiyesse cons-
ciéncia de que muito incerto seria o seu futuro de artista, optou
decisivamente pela Beleza em lugar do lucro material.
Áos dezoito anos de idade, recusou explícitamente o Ba-
tismo, por estar pouco convicto da veracidade da religiáo de suá
familia.
Aos^yinte arios, Joáo Verkade experimentava em si o
ardor das paixóes: o amor do Belo se associava néle ao amor
do prazer. Leu Balzac, Flaubert, Zola, Tourguenieff, Dos-
toievsky, escritores cujo estilo elegante encobre o veneno do
naturalismo e da impiedade. Freqüentou também as tabernas
com seus espetáculos' dancantes, experiencia esta que ele re-
cordava nos seguintes termos :

— 183 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/194. qu. 5

«Muitas vézes, de coragáo eü cedía ao riso e me divertía prazentei-


ramente; mas raramente podía impedir-me de pensar: 'Apesar de
tudo, fdste feito para- algo de melhor do que ésses passa-tempos estú
pidos'».

O amor aos encantos da natureza levou-o a mudar resi


dencia da cidade de Amsterdam para a aldeia de Hattem (Ho
landa) :

«Sempre a grande natureza que Deus fez, exerceu sobre mlm urna
iníluéncia pacificadora a puriíicadora. Na solidáo e no silencio,...
eu sentía que me tornava outro homem».

Desde o despontar do sol, nos dias belos, ia Joáo pintar


seus.quadros ao ar livre. Um dia, a chuva o surpreendeu; abriu
entáo sobre o seu caválete o grande guarda-chuva que habitual-
mente lhe servia de guarda-sol. Nessas circunstancias, passou
um viandante; o pintor convidou-o a compartilhar o seu abrigo.
Tendo aceito, o transeúnte lhe explicou a sua aventura: saira
certa vez do cabaré e, cheio de furor, pusera em frangalhos o
mobiliario do seu patráo; em cbnseqüéncia, conjeturava que a
policía estivesse ao seu encalgo. Dito isto, o hospede acrescen-
tou urna reflexáo :

«Veja, senhor, Deus castiga o mal já aqui na térra. NSo eré


nisso?»
Verkade replicou: «Haverá mesmo um Deus?»
Continuou o outro: «Quando tinha dezessete anos, punha-o em
dúvida por vézefe; agora, porém, estou certo de que existe Deus. Pode
contar com isto, senhor. Creia-me; é algo de seguro...».

Mais tarde contava Verkade ésse episodio:

«Até. o dia de hoje as palavras désse homem ressoam em mim.


Foram proferidas com tanta simplicidade e com t3o impressionante
conviccao! Ademáis, tOda a natureza que me cercava, clamava-me
aos ouvidos junto com ésse pecador estraoiho e arrependido: 'Existe
um Deus!'». ~~

Em Hattem, Verkade, movido por constante fome de lite


ratura moderna, pós-se a ler as «Confissóes» de Leáo Tolstoi.
Neste livro encontrou a afirmativa de que só Deus pode saciar
a sede de felicidade do homem. Surpreendeu-se : Deus só,...
nao a arte! E isto, dito por um escritor-que nada tinha de sus-
peito, pois Tolstoi nao se caracterizava pela piedade. Em sua
autobiografía observava Joáo:

«Até entáo a Arte fóra tudo para mim. Fazia-me as vézes de


esposa, filhos, riqueza, alegría, sumariamente... de tudo. Agora com-
preendo a minha loucura.

— 184 — '
VILIBRORDO VERKADE, CONVERTIDO DO SfiCULO XX

Devo, nao obstante, frisar que a incondicional dedicacáo á Be-


leza se me tornou urna fonte de béngáos. Pois assim, desde cedo, se
desenvolveu em meu intimo um espirito decidido que me fez tender,
sem hesitagao, para um bem mais elevado, desdé que éste comejou
a se me revelar».

O sincero amor ao. Belo — ao Beló da natureza e das cria


turas — preparava assim Verkade para se entregar á Beleza
incriada ou a Deus, desde que Éste se dignasse aparecer clara
mente na sua vida.

Tomando contato com poetas e outros autores de fama


mundial (como Baudelaire, Verlaine, Huysmans), o jovem pin
tor sentía despertar dentro de si, como depois dizia ele mesmo,
o «tormento de Deus, a inquietude em demanda de Deus».
Em 1891, fascinado pela miragem de París, Verkade trans-
feriu-se para esta cidade, onde se anexou a um grupo de artis
tas espiritualistas (em parte, teosofistas, reencarnacionistas) :
a Escola dos Nabis. Dizia-lhe um déstes, chamado Gauguin:

«Urna obra de arte também é questáo de alma, e nao sonriente de


habilidade. Ela implica um duplo nascimento: nascimento no espirito
e nascimento sobre a tela».

Aos poucos o pintor holandas foi reconhecendo a existen


cia da alma e a sua imortalidade.
Em breve, porém, enfastiado pelo mundanismo da grande
metrópole, resolveu mudar-se para a Bretanha, regiáo da
Franga mais bucólica e «espiritualista». la junto com um
amigo, outro pintor, o dinamarqués Mogens Ballin.
O peregrino sequioso foi fortemente impressionado pelo
ambiente de fé profunda e simples da Bretanha; cápelas, cenas
da Via Sacra e crucifixos a margem das estradas falávam-lhe
ao íntimo da alma.
Certa vez, na ddadezinha de Huelgoat, Verkade entrou na
igreja, onde pela primeira vez assistiu á Missa. Quando, no mo
mento do «Sanctus», viu que todos os homens se ajoelhavam,
sentiu a repulsa interior que ele assim descreveu :

«Como? Ajoelhar-me? Meu orgulho protestava veementemente


contra semelhante humühacao. Mas entao haveria de ficar em pé, ele
vado ácima de todos? Nao tive outra solucáo se <náo a dé me ajoelhar
como todas as demais pessoas presentes. Quando os homens se levan-
taram, acomoanhei-os. Ao reerguer-me, porém notei que alguma coisa
havia mudado em mim. Eu já era, pela metade. católico, pois meu
orgulho estava quebrado. Eu me tinha ajoelhado».

A esta experiencia seguiu-se um período de inquietude e


vazio. Verkade procurava algo que ele nao possuia, mas que

— 185 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/194, qu. 5

pressentía... Contudo nao podia deixar de amaldigoar «ésse


satánico desejo de se tornar católico». A no;áo de Deus ia
tomando vulto em sua mente.
Entrementes, o amigo Mogens Ballin, seu companheiro,
atacava em conversa a Igreja Católica. E Verkade defendia-a
táo bem quanto possível, pois «eu a amava antes de poder crer
em tudo que ela ensina», dizia.
Mas porque nao seguiría o Calvinismo, cren-a religiosa de
sua familia? É o pintor peregrino mesmo quem o explica :

«Nao, jamáis... Fora da Igreja Católica encofttrei tantas divisSes


que eu n&o procurarla a salvacáo nessa linha. Estava também per-
plexo diante do liberalismo religioso de minha familia assim como
perante a frieza da liturgia protestante. Por Isto dizia comigo mesmo:
'Se me tornar cristao eu me farei cristáo por inteiro! E 'por inteiro',
para mim, quería dizer 'católico'».

Apesar de tudo, Verkade aínda hesitava muito, movido por


tendencias contraditórias. Em conseqüéncia, orava pedindo
luzes a Deus, cuja existencia ele admitía,
Aconteceu que dois sacerdotes jesuítas foram pregar mis-
sóes na cidadezinha de Saint-Nollf (Bretanha), em que resi-
diam Verkade e Ballin. Apenas informados da chegáda dos mis-
sionários, os dois amigos retíraram-se para a aldeia vizinha...
As pulgas, porém, lhes tornaram intolerável a permanencia
nesta; pelo que regressaram sem demora a Saint-Nollf, julgan-
do terminadas as missóes.
Estas, porém, ainda continuavam. Verkade assim entrou
em contato com um dos pregadores, o Pe. Le Texier, que lhe
pareceu táo inofensivo e bom que resolveu expor-lhe o seu caso.
O sacerdote animou-o na procura da verdade religiosa, deixan-
do. porém, livre curso a evolugáo de sua vida espiritual. Outro
padre jesuíta, do Colegio de Vannes, enviou-lhe entáo um
exemplar da «Exposigáo da fé católica» de Girodon.
O pintor holandés posteriormente narrava as impressóes
que tal leitura lhe causara :

«Ésse livro tem a vantagem de indicar com clareza o que é de fé,


ou seja, estritamente dogma da Igreja, e o que fica entregue ao livre
alvitre de cada fiel.
Fiquei muito surpréso por verificar que a Igreja deixa de definir
varios assuntos, principalmente dentre aqueles que me causanam di-
ficuldades. Tornea mais ampio. conhecimento de alguns doutores da
Igreja, em particular de S. Agostinho. Ao terminar o livro. disse
comigo mesmo: Tudo ponderado, ainda é mais fácil crer o que a
Igreia Católica ensina. Tudo que pude aprender ou ler em materia
de Religiao. exige fé muito maior do que a doutrina inegávelménte
lógica do Catolicismo. Seria entao mais dificU crer que o Füho de

— 186 —
VHIBRORDO VERKADE. CONVERTIDO DO SÁCULO XX .

Deus se íéz homem do que' crer na preexistencia, na encarnacáo e na


reéncamacao da alma em sentido budista e platónico, como durante
ceno tempo cxeste?'».

Escreveu entáo ao Pe. Le Texier expondo-lhe ainda algu-


masdificuldades contra a doutrina católica. O sacerdote lhe
respondeu. Diante disto, Verkade decidiu acabar com a sua
innuietude religiosa, a aual já muito o acabrunhava: optaría
pelo batismo na Igreia Católica. Realmente recebeu éste sacra
mento, junto com a Primeira Comunháo, na cápela dos jesuítas
de Vánnes aos 26 de agosto de 1892.
O néo-convertido, porém, nao se entregaya as cegas, como
ele mesmo notou na sua autobiografía :

«A mlnha adesao ao Catolicismo se deu numa fa=e em que a hipo-


tese de ser a Igrela Catól'ca a guardia da Revelagao Divina me Darecla
sustentada por tantas razSes que eu podía tomar urna resolucao.
Contudo a fé f'nirá sendo sempre um passo ñas trevas, embora
seja um passo que leva á luz!
Prometí entño a mim mesmo o segulnte: caso nao encontrasse
'paz na Igreia Católica eu lhe virarla para sempre as costas. E. isto,
en crt-wa t&o decidido a fazé-lo como hoje estou pronto a confessar a
fé católica». . " '

Após o batismo, Verkade comegou logo a experimentar


ale<rria e paz. Quis entáo ir á Italia, ende avistaría grandes
obras de arte que seriam ao mesmo tempo sinais de mensagem
crista. Estéve, pois, em Florenga, Fiesole, Sena, Assis, Roma,
vibrando intensamente em seu entusiasmo religioso e art'stico.
Em Florenea, Ballin recebeu, também ele, o batismo. Dora-
vante os dois comnanheiros pensaram em fazer-se francisca
nos e ir pregar o Evangelho pelo mundo afora. Verkade che-
gou a n^sar varios meses no convento franciscano de Fiesole,
compartilhando a vida regular da comunidade.
la sentindo, porém, atrativo crescente pela vida de silencio
e ora^áo; pelo que concebeu também o ideal de se tornar
cartuxo.
Outra era a vontade de Deus...
Em Amsterdam, os velhos pais desejavam rever Jan; por
cartas perGfuntavam-lhe também quais as suas ínteicóes para
• o futuro, ignorando a sua conversáo para o Catolicismo. Ó jo-
vem viu-ise assim obrigado a referir por missivas á familia o
prande passo reliiíioso que havia dado. A noticia nao deixou de
despostar os genitores, ciosos das tradigóes dos seus antepassa-
dos. Contudo aos poucos reconheceram a decisáo do filho, prin
cipalmente apis haver verificado que poderiam sempre contar
com a sua genuína dedicagáo.

— 187 —
«PERGUIsmE E RESPONDEREMOS» 76/194, qu. 5 .

Desejando visitar os seus na Holanda, Verkade deixou a.


Italia. Durante a viageiii, deteve-sé na Abadía beneditiná dé
Beuron (Sul da Alemanha); atraia-o a isso urna famosa escola
de pintura iniciada pelo monge Dom Desiderio Lenz; além do
que, o canto gregoriano executado com esmero e amor na
Liturgia diaria por um coro de cento e cinqüenta monges muito
lhe falava á alma. Assim conheceu o famoso mosteiro, que ele
teve de deixar para seguir viagem; contudo, despedindo-se dos
Religiosos, prometeu voltar.
Em Amsterdam, encontrou o ambiente de casa como o
deixara. Muito contrastava com o que ele havia experimentado
em sua evolu;áo de pensamento :

«Achei-me de repente em um meio que se me tornara estranho, um


meio de antiga burguesía holandesa ancorado em seus costumes é suas
tradicoes. Tinha a impressao de estar em pequeña cidade cercada de
muralhas e fossos, posta em segur&.nca, mas comprimida. Via-me pres
tes a sufocar».

De Copenhague (Dinamarca) Ballin convidou-o para orga


nizar urna exposicáo de quadros : o «Salió Jan Verkade». Aten-
dendo ao pedido, o néo-ccnvertido averigüou mais urna vez
quanto sao vazios os afagos e louvores que o mundo tributa em
festas de recepcáo e homenagens:

«Dáo-me náusea. É a última vez que isto me acontece!»

Tais experiencias iam avivando em Verkade o desejo de


abandonar o mundo para se consagrar totalmente a Deus na
vida religiosa.
Ainda por ocasiáo dessa viagem ao Norte da~ Europa, o
pintor holandés encontrou Joergensen, famoso escritor dina
marqués que estava, por sua vez, á procura da Verdade. Pro-
curou auxiliá-lo:

«Foi precisamente a minha alegría que causou forte impressáo


em Joergensen. Pois ele nao era feliz e tinha desejo de o ser. Ele
chegara á conclusao de que a Verdade nunca pode deixar a pessoa
infeliz, ao passo que a insatisfacáo de um coracáo é criterio irrefra-
gável de que a inteligencia está desviada.
Por isto perguñtava ele a si mesmo : Ballin e Verkade nao estaráo
dentro da Verdade? Os dois sao táo felizes!»

Finalmente aos 26 de abril de 1894 Verkade resolveu par


tir em demanda do Sul. Passou por Berlim, metrópole em que
mais urna vez tomou consciéncia da sua verdadeira vocagáo:

— 188 — '
VHJBROREiO VERKADE, CONVERTIDO DO SÉCULO XX

«Eu já nao tinha a mentalidade de-jovem íogoso que me animava


dois anos atrás. Desde entáo, aprenderá o que é a alegría do recolhi-
mentó: alegría que n3o átral enquanto a pessoa nao a experimenta
diretemente, mas que desperta sede crescente em quem a tenha urna
vez provado».

Do rebuligo da grande ddade, o pintor entusiasta passoü


para o ambiente de paz da Abadía de Beuron (Alemanha). Era
meio á oragáo (e á «oragáo proferida com beleza», como dizia
S. Pió X), a sua alma se dilatava. Parecía encontrar ai o ideal
de toda a sua vida.
Em breve deddiu pedir admissáo no Mosteiro. Ele mesmo
narra como o fez, ponde em realce aínda um pequeño trago de
seu drama íntimo:

«Era a vigilia de S. Joao Batista... quando fui ter com o Sr.


D. Abade. Estava sentado á mesa de trabalho perto da janela e man-
dou que me sentasre junto déle. Olhou-me com semblante amável e
disse com suavidade: '... O Sr. vem da Italia e é um convertido.
Agradece a Deus todos os dias? Quando Ele comega. a dar, nao para
táo cedo!1
Entáo julguei que chegara o momento oportuno, para dizer:
'Muito estimaría... poder entrar aqui no mosteiro...'
Disseo gaguejando, pois de repente Uve nítida consciéncia de que
mlnha autonomía estava em causa, e níeu orgulho .se insurgía contra
a idéia de aue eu ia deDender do 'S'm* ou do 'Nao' de outrem... O
mermo, alias, se deve dar com todo jovem que peca a mao de sua
noiva...»
Tendo D. Abade aprovado e abencoado o designio de Verkade,
acrescentou: «Vá agora procurar o Pe Mestre e pergunte-lhe o que
deve fazer para se tornar um bom novic.o»... «Entao sem dar multa ■
atenqáo ás regras de moderaqáo monástica, corri (ao oé da letra) até
a cela do Pe. Mestre. É o que acontece em todo sacrificio._A principio,
nos nos dizemos tolamente: 'ó Deus, els-me agora prisioneiro, eis-me
perdido*. A seguir, vem a alegría inerente a todo sacrificio».

Corría p ano de 1894. Sob p patroc'nio de S. Vilibrordo,


antigo monge apostólo dos frisóes, Jan iniciou seu noviciado.
Após a profissáo monástica e os devidos estudos, foi ordenado
sacerdote aos 20 de agosto de 1902.
No seu primeiro decenio após a ordenagáo, aínda se dedi-
cou á pintura, trabalhando em diversos santuarios de Beuron
e seus arredores, de Viena, de Montecassino (Italia) e da Pa
lestina.
Coritudo, foi concebendo certo fastio por tal atividade.
Mais e mais entrevia outra forma de arte : a da purificagáo da
alma mediante a disciplina de si, o esquecimento dos bens sen-
síveis e a adesáo a Deus na oragáo.
Dedicou-se assim com ardor crescente á leitura e á medi-
tagáo. Como fruto dessa tarefa, redigia e publicava escritos de

— 189 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/194, qu. 5

espiritualidade mijito apreciados; além disto, exerda intensa


diregáo de almas no confessionário e no parlatorio, sendo, para
isto, muito, procurado por antigos amigos, companheiros e por
inteíectuáis. Estes lamentavam que nao mais pintasse... D. Vi-
librordo alegava a idade e a doenga e, a quem muito insistía,
explicava o que certa vez ele assim exprimiu :

«Meu Deus, em nossos dias há tantos pintores... E a pintura me


causa tedio... Tenho, alias, o tempo demais ocupado: pinto ñas
almas».

Após longa permanencia no mosteiro, fitava consciente e


calmamente a morte. Dizia em seus últimos anos:

«Envelhecer é resvalar lentamente para dentro da solidSo consigo


mesmo e com Deus. É íixar-se no essencial, libertar-se de todas as ilu-
s5es e vas preocupasOcs; é chegar definitivamente a Deus, depois de
perigosa travessia».

D. Vilibrordo Verkade veio a falecer no dia 19 de julho


de 1946.
Seguindo fielmente as aspiragóes de sua natureza que se-
quiosamente demandava o Belo, passou de beleza a. beleza, de
claridade a claridade, sem que a principio soubésse onde iá
terminar. Finalmente cónseguiu contemplar a Faqe da Beleza
Infinita!
Talvez esta biografía ilustre o adagio do famoso escritor
Tertuliano (séc.m) : «C alma humana, és, por tua própria
natureza, crista! — O anima naturaliter christiana!»

CORRESPONDENCIA MIÓ DA

PROFESSOR CATEDRÁTICO (Rio): "A evoluc.So do inorgánico


(inanimado, náo-vivente) para o orgánico (animado, vívente), como
prova a ciencia, se dá sem a interferencia de alguma causa extrínseca
ou de Deus. Como é possível isto ?
Ou Deus realmente nao existe ou a ciencia anda errada 1"

Em resposta, faremos as seguintes observares :

1) A ciencia tem pesquisado com esmero a questáo da origem


da vida. Até hoje, porém, nada pode dizer de definitivo sobre o assunto;
os estudiosos aínda nao conseguiram produzir um ser vivo (embora im-
perfeito) em laboratorio; ñas mais felizes das experiencias, tóm produ-
zido urna ou outra das substancias complexas que entram na composigáo
das células dos organismos vivos ; contudo ainda nao fabricaram urna'
célula viva.

2) Admitamos, porém, que os cientistas venham a produzir em


tubo de ensaio um ser vivo... ...
Nada se mudará ñas concepgóes filosóficas e religiosas dos cr.istaos.

— 190 — '
CORRESPONDENCIA MIÜDA

Com efeito ; a vida é algo de complexo. Apresenta tres graus :


o grau vegetativo (na planta),
o gfau sensitivo (no animal infra-humano),
o grau intelectivo (no ser humano).
Feita esta distincáo, a Filosofía ensina que a vida vegetativa « a
sensitiva dependem de um principio vital material. Quanto á vida inte
lectiva, já que suas atividadea transcendem os limites da materia (cf.
"P.R." 5/1958, qu. 1 e 2), ela depende de um principio nao material,
mas espiritual, que é chamado alma intelectiva ou alma humana. Esta,
pelo fato de transcender a materia no seu modo de agir, nao pode provir
da materia, mas é diretamente criada por Deus.
Sendo assim, nao há dificuldade em se admitir que a vida vegetativa
e a sensitiva sejam produzidas artificialmente em laboratorio. As funches
vegetativas e sensitivas nao ultrapassam o setor da materia ; por isto,
pode-se aceitar que sejam mero produto de reacóes físico-químicas. — A
vida intelectiva, porém, nunca poderá ser obtida em laboratorio por rea-
cóes de elementos materiais, pois que ela ultrapassa as faculdades da
materia. Na mais otimista das hipóteses, os dentistas produziriam sin
téticamente um corpo ou um embriáo humano inanimado, em tubo de
ensaio ; nunca, porém, poderáo coagir o Criador a infundir urna alma
espiritual a essa materia.'
Donde se vé que nao há oposic.áo entre "producao de vida vegetativa
e sensitiva em laboratorio" e "existencia de Deus".
Cf. "P.R." 7/1958, qu. 1.

UNIVERSITARIO (Rio): "Se, como dizem os filósofos, o espirito


é a forma substancial do corpo humano, como é possível a evolucáo do
corpo ou da materia sem a evolucáo do espirito ou da respectiva forma ?
Caso naja evolucáo do corpo, deve necessáriamente haver evolucáo
do espirito ou da forma substancial".
O homem é um ser composto>de corpo e alma (espirito), que se
relacionam entre si como materia e forma (na linguagem filosófica).
Ora, quando falamos da origem do homem, dizemos que o corpo
humano (e nao a alma ou o espirito) pode ser produto de evolugáo. Sim;
a materia do corpo humano pode ter passado por fases de aperfeicoa-
' mentó sucessivo, sem, porém, ser animado por alma humana (ou alma
espiritual); quando, por hipótese, chegou ao grau de complexidade e
perfeicáo correspondente ao do organismo humano, Deus terá criado urna
alma espiritual, racional, e a haverá infundido a ésse corpo. Sómente
a partir de tal momento é que se pode dizer que tal vívente se tornou
homem ou comecou a ser homem.
... E comecou a ser homem 100%. Antes nao era, de modo nenhum,
ser humano, mas símplesmente macaco. Nao há vívente que seja (ou
tenha sido) 50% macaco e 60 % homem, ou... 20% macaco e 80 %
homem. A alma humana é, como dizem, indivisível: ou é 100 % alma
humar.a ou simplesmente nao é, nao existe.
Pode acontecer, sim, que os corpos dos seres vivos sejam uns mais
semelhantes ao do macaco, outros mais semelhantes ao do homem ; cons-
tituem elos entre o corpo do macaco claramente definido e o do homem
claramente definido. Essa evolucáo, porém, ou essa escala gradativa
abrange apenas a materia'do vívente. Qualquer dos tipos assim confi
gurados (antropoide, pitecántropo...) tem um principio vital que é
10Ó % o do macaco ou 100 % o do homem.
Pode também acontecer que a alma humana, sem deixar de ser
100 % alma humana, tenha inteligencia ora mais perspicaz, ora menos

— 191 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 76/1964 ._

perspicaz, ou... que possua ora inaia cultura, ora menos cultura. Nesse
sentido, fala-se de .maior ou menor perfeicáo da alma humana e de
maior ou menor desenvolvimento de sua cultura. Tal evolucáo da alma,
porém, é acidental. Tanto a "alma do pigmeu como a do homem ma»s
inteligente e civilizado sao 100 % almas humanas.

AMIGO DO SABER (Teresina): A respeito da serpente que ten-


tou os primeiros pais, veja "P.R." 18/1959, qu. 5.

AMINTAS (Rio): Nao há má vontade, por parte das autoridades


eclesiásticas, em receber pessoas de vocasao sacerdotal ou religiosa tardia.
O melhor testemunho neste sentido é a recente fundacáo do Seminario
Sto Cura d'Ars para vocagóes tardías em S. Paulo, aos cuidados do
Exmo. Sr. Bispo D. Vicente Zioni (Caixa postal 7188, Sao Paulo, SP).
O candidato poderá dirigir-se a ésse enderégo ou a alguma Congre-
gagáo Religiosa. Caso haja indicios de verdadeiro chamado de Deus,
nao duvide : os Superiores o admitiráo com prazer. É preciso, porem,
levar sempre em conta que, após certa idáde, a adaptacáo do candidato
á vida do Seminario ou do Convento costuma ser mais difícil do que
em idade juvenil.

D. ESTÉVAO BETTENCOUBT O. S. B.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual (porte comum) .. Cr$ 1.500,00


Assinatura anual (porte aéreo) Cr$ 1.800,00
Número avulso de qualquer mes e ano ■. Cr$ 200,00
Cole?áo encadernada de 1957 Cr$ 2.500,00
Colecáo encadernada de qualquer dos anos seguintes .. Cr§ 3.000,00

REDAQAO ADMINISTRACAO
Calxa Postal 2666 R. Real Grandeza, 108 — Botafogo
Bio de Janeiro TeL 26-1822 — Rio do Janeiro

Das könnte Ihnen auch gefallen