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Há assuntos em que as pessoas são muito sensíveis.

Ao almoço, a propósito de um comentário


"então é sexta-feira e aqui come-se carne?", disparo o meu habitual discurso sobre o consumo de
carne na Quaresma. Antigamente, começo eu, a carne era um bem de luxo. Matava-se um animal
para uma festa, muito de vez em quando, e não havia dinheiro para comprar carne. Comia-se sopa,
ok não falei de sopa mas fica bem nesta crónica, comia-se sopa todos os dias. Assim, a carne era um
alimento rico, um luxo. E, por ser raro, muito apetecido. Ao privarem-se de carne, na Quaresma, as
pessoas estavam a abdicar de um luxo, a fazer o sacrifício de comer coisas menos suculentas e
energéticas. O que acontece agora, concluí, é que come-se lagosta, caldeirada de peixe, arroz de
polvo, evitando a carne, como se dessa forma se estivesse a fazer jejum. As pessoas repetem o
hábito, mas restringiram-no ao menos essencial. A carne, em si, não tem nenhuma característica que
a torne anátema ou pecado ou sequer excessiva (no cristianismo). Não faz sentido, à luz do espírito
da Quaresma, deixar de comer carne para comer uma bela raia de pitáu (prato delicioso, típico de
Buarcos, Figueira da Foz), uns apetecíveis mexilhões da Galiza ou um inefável arroz de tamboril. E
atenção: isto não é uma teoria minha, ou uma conclusão da minha inteligência e/ou vontade de
derrubar tudo o que é a mais pura e louvável tradição. Isto é o que eu aprendi quando frequentava a
Igreja, tinha catequese, era acólito e católico cumpridor.

Mas, e volto ao que suscitou esta reflexão, noto que muitas pessoas têm uma dificuldade crónica e
aparentemente inultrapassável em confrontar-se com algo tão simples como o questionar os seus
hábitos, pensar sobre o que fazem de forma repetida porque os pais e os avós já faziam, pôr em
causa o que aprenderam no seu meio social, na sua comunidade. Eu - principalmente nessa altura,
porque era adolescente - sempre gostei de questionar, pensar, pôr em causa, quando frequentava a
Igreja Católica. E desconfio muito de qualquer sistema de valores assumido por um indivíduo que
se negue a confrontá-lo com a história, o raciocínio, o contraditório. Suspeito sempre que esse medo
em escrutinar o que se pensa por hábito brota do medo de que afinal aquilo que se faz e pensa não
tenha pés nem cabeça. Isto é mais grave, parece-me, quando acontece a malta nova, da minha idade
ou mais jovens ainda. Ser-se fechado, estar hermeticamente protegido da razão e da lógica não deve
ser saudável. Eu, pelo menos, sei que não quero essa blindagem para mim. Questionem-me por
favor!, Façam-me pensar e repensar o que sou, o que faço, o que acredito.

A ligação entre o primeiro e o segundo parágrafo: quando, à mesa na cantina, disparei "o meu
habitual discurso sobre o consumo de carne na quaresma", não obtive um único comentário, apenas
caras maldispostas, incomodadas. A partir daí, houve apenas comentários unilaterais. A mesma
pessoa a fazer outro comentário reprovador e já salpicado de indignação, sobre quem estava a
comer carne. Eu a dizer, então e se se comer lagosta ou arroz de polvo, tudo bem?, tentando dizê-lo
de forma ligeira, bem humorada. E de novo silêncio incomodado e sobrancelhas empertigadas,
caras reprovadoras e sem paciência para o meu delírio hereje e infundado. Eu, no fundo,
compreendo que as pessoas, neste país de tradição católica, dêm importância a estes sinais de que
ainda respeitam as boas tradições dos seus pais, estes pormenores que confirmam que são, de
alguma forma, católicos, estas demonstrações de que não desprezam os "bons costumes". Mas
espero mais das pessoas. Que se fique pelo social, pelo simbólico, na religião, é triste. E se se quer
valorizar uma tradição, há que compreendê-la, conhecê-la, saber de onde vem, porque é como é. E
há que ter a coragem de dizer, pela nossa cabeça e autonomia, "isto não está certo", "isto está certo",
"isto faz sentido", "isto não faz sentido", em vez de repetir "sempre foi assim", "foi assim que
aprendi", "já o avô do meu avô assim fazia", "toda a vida foi assim".

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