Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Quando o homem
para de pulsar
(Reich e o homem encouraçado)
seja, faz parte de um atavismo milenar que termina por produzir homens
fracos, cindidos, impotentes.
É fato que a psicanálise trouxe inicialmente uma espécie de euforia
para os meios intelectuais, ajudando a derrubar, com o avanço dos estudos
acerca do inconsciente, o mito da razão soberana (já tão atacada por
Nietzsche). Mas apesar de Reich concordar com várias concepções da
psicanálise, ele sente que ela permanece numa esfera demasiado intelectual
para dar conta das conexões mais sutis entre o corpo e a mente, e isso já
pode ser sentido mesmo em sua fase psicanalítica, como podemos observar
pela leitura da obra “O caráter impulsivo”, lançado pela Martins Fontes.
Percebendo que não se tratava apenas de buscar a cura (ou a
melhora) de psicóticos, neuróticos ou esquizofrênicos, mas de entender a
extensão e as causas da aparente predisposição do homem para a
infelicidade, Reich vai em busca da gênese das neuroses a fim de explicar a
generalização da doença humana, ou seja, esse estado de fraqueza e apatia
mórbidas e socialmente cultivadas, em que os seres humanos, em vez de
crescerem e enfrentarem a vida como adultos, permanecem como crianças,
imaturos do ponto de vista emocional e afetivo (aquilo que Federico Fellini
chamou tão bem de “bezerrões”, já que não conseguem parar de “mamar” e
de correr atrás da mamãe). Em certos casos, pode-se dizer que alguns nem
conseguiram sair inteiramente do útero, continuando presos por um cordão
umbilical virtual. Não é sem razão que a humanidade parece estar sempre à
espera de salvadores, mestres e pastores que lhes ensinem a viver; e, num
nível ainda mais corriqueiro e estimulado pela própria sociedade, vemos os
homens buscando na “esposa ideal” o modelo da “mamãe” passiva e
resignada.
Sim... não é tão difícil observar que muitos homens parecem estar
casados com suas “mães” (as “santas” que cuidam deles), enquanto buscam
4
sexo e paixão fora de casa. Mas os homens não são os únicos imaturos
nesse processo: a boa esposa precisa estar apta para fazer o papel de
“mamãe” substituta e fechar os olhos para as travessuras do “neném”. E
esse é apenas um dos exemplos de relações adoecidas, pois – como mostra
Reich – o resultado de um mau desenvolvimento da libido e da afetividade
termina por gerar distúrbios de toda a ordem: mulheres que buscam o pai
ou mesmo a mãe nas suas relações, homens que buscam metaforicamente
“mulheres de pênis”, etc., sem contar as inúmeras perversões sexuais,
transtornos de agressividade e uma moral compulsiva que acompanham a
má-formação da libido. Há quem julgue essas idéias sujas e perversas, mas
o que Reich chama de “resignação neurótica” parece explicar muito melhor
o niilismo humano e a falta de coragem para viver do que o mito
maniqueísta da religião. Além do mais, sujo e pervertido é manter relações
falsas e viver traindo a quem se diz amar e respeitar. Antes mesmo de criar
a sua “Análise do caráter” – e, posteriormente, a sua “Orgonoterapia” –
Reich nos mostra que as pulsões não podem ser suprimidas, mas apenas
sublimadas ou deslocadas, e é por isso que o papel da educação se torna tão
vital.
É verdade que Reich acreditava no amor e na felicidade, e também
numa sexualidade saudável (uma razão a mais para ser chamado de maluco
e pornográfico num mundo tão cheio de perversões e ódios). Mas ele não
era utópico. Ele sabia que a vida é feita de altos e baixos, de alegrias e
tristezas, mas também sabia que aquele que se mantém vivo e pleno,
pulsante e vibrante, será capaz de não endurecer, de não perder o élan, o
vigor, a alegria de viver, até o fim. Para Reich, nada é mais equivocado, em
Freud, do que a idéia da pulsão de morte como uma pulsão primária. A
pulsão de morte é, ao contrário, a própria doença humana, o niilismo que
Nietzsche tanto atacou. Viver é pulsar, é rir e chorar, é sofrer e ter prazer, e
5
é sobretudo querer estar “aqui” e gozar até o fim do privilégio de ser, ser
consigo mesmo e com os outros, de um modo pleno, profundo, ativo, real.
Ser feliz é viver fora da farsa, da inautêntica existência que nos transforma
em atores de nossa própria vida. Ser feliz é simplesmente deixar o palco
para viver de verdade.