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LIVRO

Feroz, trágica, excessiva: assim é a condição de pirata.


¬ Luísa Costa Gomes resolveu contar a história de Mary
Read,uma inglesa que nunca se deve ter queixado de mo-
notonia. ¬
Foi soldado nos Países Baixos e flibusteira
¬
nas Antilhas. Apaixonou-se duas vezes,não teve tempo
¬
para mais. A sua vida rocambolesca conta-se neste livro:
A Pirata.Para ler sem constrangimentos de classe… etária.

Romance
TEXTO

da
Carla Maia de Almeida

pirata O coração move montanhas e, às vezes,

A
oceanos. Por amor a um marinheiro, Charlot-
te de Berry trocou os vestidos por calças e em-
té os piratas mais expe- barcou num navio da armada inglesa. Não vi-
rientes ficam, por vezes, veu o suficiente para contar histórias aos ne-
desnorteados. Para não tos, mas teve tempo de gozar o seu quinhão do
arriscar perder a batalha, século XVII e a idade de ouro da pirataria, que
Grace O’Malley pegou nas armas ainda exaus- abraçou por razões pouco esclarecidas. Do
ta do trabalho de parto, um dia depois de ter Atlântico para os mares da China, encontra-
posto no mundo um rapaz, e deu o exemplo de mos a senhora Cheng I Sao. Quando o marido
resistência à sua tripulação. Descendente de morre, em 1807, é ela quem assume o coman-
um clã de homens do mar, a única filha de Du- do de milhares de malfeitores que aterrorizam
dara O’Malley fintou durante anos o domínio e saqueiam as localidades costeiras, subme-
inglês e controlou o tráfego na costa oeste da tendo-os a uma disciplina draconiana. Não
Irlanda, na segunda metade do século XVI. muito longe dali, uma figura pequenina e ma- A escritora Luísa Costa Gomes
Dois séculos antes, Jeanne de Belleville, uma gra, de cabelos pretos e preferência por adere- não gostaria que o seu livro
beldade da Bretanha, deu caça aos navios do ços de jade, fez também os seus estragos. Nos A Pirata, sobre a vida de Mary
rei de França, por motivos que hoje classifica- anos vinte do século passado, Loi Chai San era Read [na página ao lado]
ríamos de «passionais». O marido, senhor de «a rainha dos piratas de Macau», assim a des- «fosse catalogado como infantil,
Clisson, cavaleiro de Nantes, fora acusado de creveu um jornalista americano que relatou juvenil, infanto-juvenil ou… senil.
conjura e mandado decapitar por ordem real. em livro as suas amizades em águas turvas. Este romance é um divertimento
Mas aquela a quem chamaram «a leoa sangui- A história da pirataria comporta os nomes para todos».
nária» não era adepta da morte rápida e mise- de dezenas, talvez centenas de mulheres, ain-
ricordiosa, e na sua demanda cuidou de vin- da que delas às vezes se saiba apenas isso: o
gar-se com todos os requintes de crueldade. nome. A mesma margem de incerteza afecta

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CORBIS/ZEFA

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Mary Read e Anne Bonny, duas mulheres que se fizeram passar por homens, e piratas. E cujas vidas se
cruzaram no navio de Jack Rackam. Há quem diga que foram amantes e as tenha «elevado» a ícones lésbicos.

a pirataria em geral, dada a facilidade com riências sob pseudónimo. O mistério per- fosse catalogado como infantil, juvenil, in-
que verdade e ficção se misturam. No caso manece, como diria o próprio. fanto-juvenil ou… senil. Penso que é uma das
das mulheres, acresce um outro factor, o da Luísa Costa Gomes pensou traduzir o li- perversidades magnas da indústria livreira
invisibilidade social. Só há pouco tempo é vro de capa preta que a Cavalo de Ferro lan- contemporânea, a compartimentação dos
que o sentido da revolta e da insubmissão fe- çou o ano passado, mas acabou por não o fa- leitores dos dez anos aos dez anos, quatro
minina começou a ser interpretado, sendo zer. Em vez disso, descobriu Mary Read, de meses, uma semana e três dias e dos sete
de supor a existência de mais mulheres pira- quem se propôs reescrever a história, crian- anos aos sete anos e oito meses! É uma for-
tas, muitas mais do que a história registou. do a biografia romanceada que saiu agora ma de menorizar as pessoas. Este romance
Entre estas, encontram-se Mary Read e An- pela Dom Quixote. Surge imediatamente à é um divertimento para todos.»
ne Bonny, que o acaso determinou cruza- memória um título seu de 1991, Vida de Ra-
rem-se no mesmo barco de John Rackam, món, sobre o filósofo e místico do sécu- Como Mary se tornou Mark
um pirata não tão terrível quanto isso. lo XIII, Ramón Llull, mas as semelhanças Estamos na Inglaterra dos finais do sécu-
ocorrem apenas «do ponto de vista da in- lo XVII, «em mil seiscentos e muitos», e co-
Um romance para todos vestigação», já que A Pirata troca a preocu- meçamos a perceber a situação logo à pri-
Os resumos das suas vidas turbulentas são pação obsessiva com os pormenores histó- meira frase: «A mãe da Mary Read tinha
narrados na História Geral dos Piratas do ca- ricos por uma escrita «mais solta», capaz de um problema, que era gostar imenso de ra-
pitão Johnson (ou, para sermos mais rigo- estabelecer «uma relação mais directa e pazes.» É o prenúncio de que a heroína do
rosos: História Geral dos Roubos e Assassínios cúmplice com o leitor». O humor, umas ve- livro não vai viver uma existência pacata a
dos Mais Notáveis Piratas). Lá estão Bartho- zes picaresco, outras irónico, é um elemen- costurar saias e saiotes. Pelo contrário.
lomew Roberts, William Kidd, George to estruturante de toda a narrativa. Ainda muito nova, Jenny, a mãe da Mary,
Lowther, John Rackam, Edward Teach e «É um romance humorístico e nitida- torna-se «viúva» de um desaparecido; o
mais uns quantos párias do mar «com quem mente um romance de aventuras», como marido é um dos muitos marinheiros em-
não se deve manter nem fé nem juramen- explicou à nm a escritora, que muitas vezes barcados de quem nada mais se sabe. Ma-
tos». Publicada pela primeira vez em Ingla- tomou o modelo de A Ilha do Tesouro. Criti- ry nasce fora do casamento e, desde cedo,
terra, em 1724, três ou quatro anos depois cando a falta de «uma tradução decente» pa- a mãe decide vesti-la com roupas de rapaz,
da morte de Mary Read, a obra foi durante ra o clássico de Robert Louis Stevenson, Luí- precisamente do primeiro filho, que mor-
muito tempo atribuída a Daniel Deföe, o sa Costa Gomes aponta o exemplo de um ro- re ainda bebé. Seja uma «transferência»,
mesmo de Robinson Crusoe, até que essa hi- mance que é «uma leitura extraordinária como se diz agora, ou apenas uma manei-
pótese se substituiu por outra: talvez o dito para todos». Por isso, manteve também fora ra de poupar no orçamento, a moda pega.
capitão Charles Johnson fosse também ele das suas apreensões a miragem de um leitor E assim Mary Read se torna no seu irmão,
um pirata, tentado a contar as suas expe- predestinado: «Não quereria que [A Pirata] Mark Read.

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O problema inicial de Jenny (gostar soldado nos Países Baixos, combatido em capacidade de disciplina, no gosto pela vida
imenso de rapazes) não é nada, se compara- batalhas horríveis, apaixonado por outro regrada e normal, nos louvores que recebeu
do com o problema de não ter dinheiro para soldado, saído do exército, casado na cidade como soldado de Cavalaria...»
sustentar a filha. Ser viúva e mãe solteira não de Breda e governado com o marido a esta- De resto, a ambiguidade assenta-lhe lin-
é um estatuto favorecido, muito menos pela lagem As Três Ferraduras (e, pelo meio, ain- damente, também como personagem lite-
época. Como a necessidade aguça o enge- da ter aprendido a usar toucas holandesas, rária – ao contrário de Anne Bonny, a aman-
nho, resolve pegar em Mary/Mark e levá-la sempre muito brancas e engomadas), é algo te de Calico Jack, que também passou a in-
a conhecer a avó, mãe do seu (presume-se) que tem de ser aqui resumido. Digamos que fância vestida de rapaz para manter as
defunto marido, na expectativa de que esta teve um grande desgosto e ficou sem saber aparências. Entre as duas, justifica-se a op-
a ajude a criar o «neto». A estratégia resulta, o que fazer, acontece muito. «É justamente ção da escritora: «A Anne Bonny é uma per-
mas o providencial subsídio familiar é inter- para estas pessoas que estão numa fase em sonagem um bocado óbvia. Acho-a uma
rompido com a morte da velhota e a situação que não sabem o que querem que se criou o adolescente rebelde, que é sempre uma coi-
agrava-se novamente. Mary emprega-se co- exército. E Mary alistou-se num momento e sa um bocado cansativa. Era uma menina ri-
mo lacaio na casa de uma dama francesa, depois arrependeu-se, mas aí já era tarde.» ca e muito mimada pelo pai, que por ela –
tem então 13 anos. Fim de capítulo. sua filha única, mas ilegítima – fugiu de In-
Era «alta e forte», tinha «as pernas com- glaterra e comprou uma plantação na Caro-
pridas, as mãos fortes»; e as roupas de rapaz Mudar de vida nas Caraíbas lina do Sul. Depois fez uma data de malfeito-
contribuíam para cultivar uma certa agili- Alto, magro, olhos pretos, bem vestido, po- rias, era uma exaltada, dizem que por ser ir-
dade, também no plano mental. Se a huma- se de dandy e maneiras de bon vivant, dez landesa... No meu livro, não há realmente
nidade se divide entre «as pessoas que gos- mulheres em cada porto e a tentação da in- paciência para a Anne... A Mary, ao contrá-
tam de ver ao pé e as pessoas que gostam de dolência: o retrato que Luísa Costa Gomes rio, era uma criminosa que sabia muito bem
ver ao longe», como Mary vai um dia con- faz do pirata John Rackam está mais perto o que andava a fazer, pois que tinha uma só-
cluir, sem dúvida que ela pertence ao segun- de Jack Sparrow/Johnny Depp do que des- lida consciência moral.»
do grupo. Não demora muito até deixar a se- se Rackam, o Terrível que conhecemos dos
nhora francesa e a embarcar como grumete livros do Tintim. Na economia paralela da De piratas a ícones lésbicos
num galeão, dando provas de – agora a pala- pirataria, John Rackam, ou Calico Jack, se Há outra nuance nesta história. A par de
vra ao capitão Johnson – uma «personalida- preferirem, é uma espécie de PMP, um pe- usarem roupas de homem e de serem pira-
de ousada e forte, e de mentalidade errante queno e médio pirata; isto é, prefere a ma- tas, Mary Read e Anne Bonny têm sido re-
e inquieta». Vai ser assim durante toda a vi- nutenção do estatuto adquirido ao risco das feridas como amantes, o que representaria
da, que não durará, segundo as contas de grandes investidas. A escritora assume a pa- o cúmulo da transgressão. «Os estudos fe-
Luísa Costa Gomes, «uns trinta anos». ródia: «Os meus piratas são de opereta, são ministas e sobretudo os Gay and Lesbian
Como Mary começou a aproximar-se da um bando de bêbedos ignorantes, uma gen- Studies americanos transformaram-nas em
pirataria, depois de se ter destacado como te primária e irresponsável... Vão na onda. ícones lésbicos, mas a única evidência é
Os piratas a sério, como ainda os há nos ma- que viveram ambas na tripulação de Jack
res, não têm graça nenhuma. O que redime Rackam», afirma Luísa Costa Gomes. Ape-
A ilustração da capa os meus piratas, se há alguma coisa, é o seu sar de suspeitar que Anne Bonny «avanças-
de A Pirata, ed. Dom Quixote, lado adolescente da procura do prazer sem se sobre tudo e sobre todos», a autora de-
é um óleo sobre madeira consequências, a arrogância de se julgarem marcou-se das intenções programáticas e
da autoria da artista invencíveis e um certo cavalheirismo des- cingiu-se aos factos.
norte-americana Sally Baker. locado... Uma espécie de mascarada perma- «Penso que ambas teriam o que hoje se
nente, como num espelho perverso do na- chamaria issues [questões] no campo da
vio normal.» identidade sexual, mas como naquele tem-
E é neste cortejo extravagante, ao sol das po não havia issues, cada qual se amanhava
Caraíbas, sempre a meio caminho entre a como podia.»
festa e a ressaca, que Mary Read vai cair. Sem Quanto à opção por roupas de homem – a
que se perceba muito bem porquê, torna-se partir de certo ponto, voluntária –, seria
uma flibusteira, uma pirata das Antilhas. uma forma de desafiarem as convenções so-
Mas Mary é maior do que as suas circunstân- ciais da época? Nos séculos XVII e XVIII, a es-
cias, chamá-la de «vítima» é quase um insul- tratégia não é de todo invulgar: «Ir à guerra
to. Desde o princípio, move-a um sentido como os homens; revoltar-se, fazendo-se
imanente de busca, conciliado com o dom passar por homem: o “travestimento” é uma
de manter o equilíbrio entre ambiguidades. das formas habituais da revolta popular», lê-
Treino de parecer homem em corpo de mu- -se na História da Mulheres, de Georges Du-
lher, talvez. by e Michelle Perrot.
«Mais do que ambígua, foi hipócrita», A conclusão à autora de A Pirata: «Não sei
afirma a autora, que aqui e ali vai dando se haveria um desafio consciente. Anne de-
(bons) conselhos à sua heroína, sem suces- safiou o pai que não a queria casada com um
so. «Queixava-se de ter sido raptada, justifi- marinheiro, e Mary, que começou por ser de
cava assim uma vida de pilhagem que terá facto vítima de circunstâncias, elevou-se
durado quase dois anos, com pelo menos muito acima do seu estatuto de vítima e tor-
uma amnistia desperdiçada. O que achei cu- nou-se até bastante feroz. Diria que usou e
rioso nela, e aparece no livro, é que enquan- abusou das liberdades do mundo masculino.
to a sua vida se lê como uma fuga para a fren- A certa altura, escolheu lucidamente uma
te, de vitória em vitória até à derrota final, vida criminosa e aceitou as suas consequên-
uma vertigem para o abismo, a sua natureza cias, até com bastante panache.» E isso, caro
não seria assim tão aventurosa. Isso vê-se na leitor, é próprio de quem tem tudo no sítio.«

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