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Andréa Borghi Moreira Jacinto AFLUENTES DE MEMORIA: Itinerarios, Taperas e Historias no Parque Nacional Grande Sertao Veredas Dissertagao de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia do Institute de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientagao da Profa. Dra, Maria Sucly Kofes Este exemplar corresponde & redagio final da dissertacao defendida e aprovada pela Comissio Julgadora em 24108 ISB Prof(a) Dr (a) Maria Suely tes COnerladena) we at Prof. (a) Dr(a) Mavre ublliam Barheca de Almercs vi CU lolly Prof (a) Dr (a) Careles Hodtiaves Brande aot - Prof (a) Dr(a) Gurlleamo Raul Ruben (Svplenk) Agosto de 1998 J118a co enee | ee | EQOA a roe SS ae eto bE! preco AGI Oe. Darn wer ah CH-CO117046~3 FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Juda Jacinto, Andréa Borghi Moreira Afluentes de meméria : itinerdrios, taperas e historias no Parque Nacional Grande Sertio Veredas / Andréa Borghi Moreira Jacinto.-- Campinas, SP : [8.1], 1998. Orientador: Maria Suely Kofes. Dissertacdo (mestrado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia ¢ Ciéncias Humanas. 1, Parque Nacional - Grande Sertio Veredas (MG) . 2. Meio ambiente - Preservago. 3. Espago e Tempo. 4, Meméria. I. Kofes, Maria Suely. TI, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. L-Titwlo, Resume © objetivo desse trabalho & compreender 0 Parque Nacional Grande Sertéo Veredas, situado no Noroeste de Minas Gerais, da perspectiva de grupos diretamente envolvidos por seu processo de implantagdo, Acompanhando encontros entre moradores locais ¢ representantes dos orgios que instituem e administram o Parque — Ibama e Funatura -, bem como seus diferentes discursos, memérias ¢ agGes relativas ao lugar, pode-se perceber um espagos miltiplo, cruzado por temporalidades diversas. Num primeiro momento, discuto 0 modelo de parques nacionais ¢ a questi de populagdes tradicionais em suas areas, desenvolvendo uma abordagem centrada em categorias espaciais, 0 que permite também emtrelagar essa discussio 2 reflexio sobre 2 categoria sertéo. Através de itinerérios construidos com esses sujeitos, de entrecruzamentos com a meméria e historia regional ¢ com novo contexto criado pela prote¢o ambiental ¢ seus atores, reafirma-se a idéia de que Parque Nacional, lugar de natureza, é também espago social Abstract ‘The aim of this work is to understand the Grande Serio Veredas National Park — located in the Northwest of Minas Gerais ~ as a practiced space. That means to focus on groups directly affected by or committed 1o its creation, such as the inhabitants of its area, the representatives of a non-governmental organization (Funatura) and of the Federal Bureau for Environment and Renewable Resources (Ibama). Following the steps of these social actors ~ as well as their different speeches, memories and actions related to that place ~ it becomes possible to recognize multiple spaces, twisted by different time perceptions and rationalities At first place, I discuss the ideal of national parks and the issue of traditional communities in such areas, formulating an approach which is centered on spatial categories. This approach makes also possible to intersect the former discussion to the category of Sertao. Later, I take the local point of view, searching for earlier patterns of spatial occupation and social organization, before the implantation of the National Park. By the routes constructed together with this actors, the local memory and history and the new context of environment conservation, the idea of the National Park as a social space is re- asserted, A minha mise, Marilene, por seu amor e a meu pai, Américo, e sua doce lembranga Agradecimentos Agradego ao CNPQ pela bolsa concedida, que possibilitou a reatizagac desse narios do Departamento de Antropologia, da Secretaria de Pés-graduacao e da Biblioteca (IFCH/UNICAMP), pela boa vontade e auxilio prestado A Profa, Arlete Moysés Rodrigues e ao Prof, Carlos Rodrigues Brandio, pelas valiosas leituras ¢ contribuigGes na etapa da qualificagao. ‘Ao Tama, agradeco a autorizagdo de pesquisa na area do PARNA GSV. 0 apoio ea receptividade de seus funcionérios foram fundamentais para a realizagdo do trabalho, sobretudo da equipe na Chapada Gaticha. Agradeco a Funatura, instituigao através da qual cheguei pela primeira vez ao Parque € que, em todas as oportunidades de encontro, mostrou-se aberta ao didlogo e interessada em contribuir ao trabalho, tanto em Brasilia como no Rio Preto. Espero que as reflexes desenvolvidas na dissertaco possam ser percebidas como contribuigao, fornecendo novos elementos para o diélogo, ¢ mesmo para os trabalhos desenvolvidos. Que fique registrado também o respeito pelo esforgo e dedicagao das pessoas ligadas a esses Orgios na regiéo do Parque, terreno dificil em que sobressaem muito mais a vontade © 0 compromisso de realizar 0 trabalho do que condigdes ideais ou infra-estrutura para tanto, Devo um agradecimento a algumas pessoas em especial, que me receberam & deixaram boas lembrangas: Ricardo, Lucié e Eurides, Patricia, Meire e sua familia, Lourdes, Sandra, Rildo, Angelo, Antdnio, Vicente. Inesqueciveis também so as pessoas com quem encontrei na regio do Parque — seus moradores -, na Chapada Gaiicha, em Sao Francisco e Serra das Araras, pedacinhos do Noroeste de Minas. Com eles, mais do que dados e informagSes para uma pesquisa, um aprendizado que é para vida, feito de sentimentos e experiéncias. Entre eles, alguns agradecimentos especiais. A Joao Gandra, da Emater em Séo Francisco, pela rapida porém calorosa e preciosa conversa, Nessa cidade, também uma especial lembranga a Dona Maria Eunicia, e Dona Maria Braz, Na Chapada Gaicha, a Dona Dulce Baron, ¢ 2 professora Inglacir Aparecida Ottoni, pela atengdo ¢ receptividade. Também a Liria e a Claude, entre Parque, Brasilia e Escécia, por lagos que surgiram através de objetivos e pessoas comuns. A Antonio Carlos € Wladimir, tembrangas do Parque em Nova Odessa, A seu Gerdnimo e sua familia, no Onga, e também a Dona Inocéncia, na Vereda Eseura. A querida Dona Edite, Zé Luis, e a toda familia, pela amizade, acolhimento ¢ carinho que generosamente me ofereceram. Aos moradores das localidades do PARNA e entomo, aos guardas-parques, suas familias ¢ amigos, meu muito obrigado. Em Campinas, agradego aos colegas © amigos da turma de mestrado de 1995, pelo espirito de partilha e companheirismo. Também os companheiros de casas: Buke, Eduardo, Ana, Rodrigo, Silvia, Fabio, Paulinho, que acompanharam as primeiras etapas de pesquisa, ansiedades e descobertas. A Dona Zita e aos Borghi Kithl, forga preciosa dos comegos. A Pat, muitas vezes parceira, também em caminhos de Minas. Minha irma Gabi, ¢ 08 afluentes que te trouxeram de volta, Os amigos Liberac, Ricardo, Yara, Leia, Vilson, © professor Niuvenius Paoli, e os amigos do IFCH. Pessoas que, entre momentos de convivéneia, dividiram idéias, conversas e ampliaram os caminhos de reflexdo, Um agradecimento sem tamanho yai para Paula ¢ Simone, amigas queridas, que me acolheram © deram leveza, apoio e alegria as tantas etapas do trabalho que acompanharam, Durante 05 momentos de escrita, em Brasila, algumas presengas foram também fundamentais. Carmem e Edmur, e ajudas de tantas vezes. Aos colegas do NESUB/UNB pela compreensfo e apoio na etapa final. A amiga Juliana - que partilhow a beleza da palavra pedra, a Roberto, Leslye e Beto; novos sertdes abertos pela amizade, Carol, Flavia, Juliana € Leticia, amigas reencontradas, Celi, companheira de trabalho espaco, Dudu ¢ Eneida, sempre presentes. Ronaldo, por sua cumplicidade e carinho. Onde tudo comegou, ¢ tem se renovado, 0 projet “O Sentimento do Mundo”. Brando, Clarissa ¢ Elaine, alegria de té-los encontrado. Obrigado sempre, por tudo, A Suely que, com sua orientago cuidadosa e delicada e seu compromisso com a antropologia, ofereceu a forga ¢ setenidade necessérias para que esse trabalho pudesse se coneretizar. A uma certa casa no Jardim Sio Paulo, ¢ a todo amor recebido entre as pessoas gue nela convivem. Em especial, as mulheres que a tornam possivel, Luzia e Eurydice. Por fim, aqueles sem os quais nada disso seria possivel. Marilene, mie, amiga ¢ coragem, Minha irmd Fabiola, meus irmios Mauricio ¢ Américo. Por suas presengas, sentimentos e apoio em todos os momentos, minha gratidéo. Lista de Abreviaturas CDCMAM - Comissio de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente ¢ Minorias da Camara dos Deputados CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente FBCN ~ Fundagéo Brasileira para a Conservagio da Natureza FUNATURA ~ Fundagio Pré-Natureza IBAMA ~ Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renoviveis, IBDF ~ Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal INTERPRI ~ Instituto de Terras do Piaut ISA ~ Instituto Sécio-Ambiental ONG ~ Organizagio nfio-governamental PARNA ~ Parque Nacional PARNA GSY — Parque Nacional Grande Sertéo Veredas' SEMA - Secretaria Especial do Meio Ambiente SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservagao SUDENE — Superintendéncia do Desenvolvimento do Nordeste RURAL MINAS — Fundagao Rural Minas: Colonizagao e Desenvoivimento Agririo TNC - The Nature Conservaney UC’s — Unidades de Conservagao WWF - Fundo Mundial para a Natureza "A grafia, nesse caso, ndo coincide exatamente com 0 titulo da obra de Jodo Guimardes Rosa, “Grande Sertio: Veredas”. Assim, quando for feita referéncia ao Parque, ou a projetos a ele relacionados. sera utilizada a designacdo fornecida pelos refs responsdveis pela unidade de conservagdo. isto €. sem os saison Side nd HI Indice de Tlustragies 1. Croqui: Gatho da Onga (1) 2. Croqui: Galho da Onga (II) 3. Netos de Seu Pedro Boca/ Gaiho do Firminano 4. Descida da Serra rumo a Santa Rita 5.Croqui: Santa Rita 6. Fonte de Dona Martinha - Riacho Santa Rita 7, Morro Trés Irmaos 8, Dona Ursulina/ Galho do Mosquito 9. Guarda-parque Ivalino/ Rio Preto 10. Diagrama de parentesco. 11, Lagoa Santa Rita vista por Zé Luis 12, Na casa de Ideria - Santa Rita 13. Santa Rita vista do Morro Trés Irmaos 14, O bamuzal 15. Dona Edite na passagem pela tapera 16, Pivé 5] 54 37 58 62 64 68 70 16 7 82 85 86 90 Sumario Apresentacio Capitulo E- Mapeando temas e questies Meio Ambiente, Parques Nacionais ¢ Dilemas Parque: Lugar Amtropolégico e Lugar Praticado (© Parque € os caminhos metodolegicos Algumas palavras sobre o grande sertao on o7 12 20 25 Capitulo II - Perdendo-se pelo Parque: Mapas, Memérias e Lugares Praticados 1.Uina primeira apresentagdo: sobre lugares, pessoas ¢ rios ‘O canto dos galos e o parentesco Chegando a Santa Rita ‘Origem e memérias dos Pagoca 2. Retéricas da caminhada em Santa Rita Narrando a ronda Caminhos ¢ itinerarios Do primeiro dia em Santa Rita O caso de Brasilia ‘Caminho de volta O bambuzal Taperas ¢ parentescos Santa Rita, Pivé ¢ Ibama Capitulo [II - Espacos ¢ Temporalidades: Recontando Parques ¢ Sertées 1. Do vazio histérico a pluralidade de tempos Lemibrangas do Noroeste Na encruzilhada com Anténio Do A volta dos bandeirantes paulistas Os Gauchos ‘O Parque Nacional Grande Sertao Veredas: 2, Um momento no Sertao: 1996 ¢ trés eventos A palestra politica A reunido da Funatura O casamento: 3, De instantes a processos: vivendo Parques Consideracées Finais Bibliografia Anexo A ~ Documentos Anexo B - Mapas 42 34 57 62, 1 DR 75 7 79 82 83 87 89 94 98 106 109 12 7 129 131 135 139 142 167 175 APRESENTACAO O SERTANEJO FALANDO Joao Cabral de Melo Neto A fala a nivel do sertanejo engana: as palawras dele vem, como rebugadas (patavras confeito, pitula), na glace de uma entonagao lisa, de adocicada Enquanto que sob ela, dura e endurece 0 carogo de pedra, a améndoa pétrea, dessa drvore pedrenia (o sertanejo} incapaz de niio se expressar em pedra. 2 Dai porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra uiceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso: © natural desse idioma fala a forga. Dai também porque ele fala devagar: tem de pegar as palenras com cuidado, confeité-las na lingua, rebued-las: pois toma tempo todo esse trabalho. APRESENTACAO A proposta deste trabalho ¢ compreender 0 Parque Nacional Grande Sertio Veredas - lugar criado com fins de preservagao ambiental - na perspectiva de grupos que © habitam, que o criam e © transformam, através de suas agdes, desorigées memeérias. A idéia é de acompanhar encontros entre moradores locais e representantes dos 6rgéos que instituem ¢ administram 0 Parque, explorando 0 encontro entre diferentes contextos s6cio-culturais e historicos, bem como os espagos criados ¢ entrecruzados a pantr dessa interagao. [As ages selecionadas © seqienciadas pelo texto - 0 que Ihe confere um carater narrativo ~ referem-se, em grande parte, as observe¢des realizadas durante a pesquisa de campo, formalmente em periodos descontinuos dos anos 1996 e 1997. Tendo como referéncia 0 PARNA GSV, foram percortidos diferentes pontos em seu interior, bem como areas situadas no seu entorno, ou na regidio do Noroeste de Minas Gerais, onde 0 mesmo se situa, Esse movimento permitiu encontrar ¢ acompanhar diferentes atores, que demonstraram um envolvimento maior de suas vidas em torno do Parque Nacional, Entre esses atores esto os moradores da regio do Parque, para quem a criagio da unidade de conservacdo alterou, ou promete alterar, a relagdo com o lugar de morada, de trabalho, de propriedade, ¢ de vida. Esse grupo, em sua maioria, compde-se de posseiros ou pequenos proprietirios que podem ser classificados, em fungo de aspectos sdcio-econdmicos ¢ culturais especificos, como populagio tradicional, Ha também atores que nfo seriam clasificados dessa forma, como grandes proprietirios ou agricultores ligados a outros sistemas sécio-culturais, mas que também tiveram que repensar seus presentes e projetos de futuro em face da implantago do Parque. Outro gtupo privilegiado pela pesquisa foi o de atores diretamente comprometidos com 2 criago ¢ implantago do Parque, composto por agentes ligados a uma organizagdo nao- governamental, a Funatusa, ¢ outros ligados a uma instituigdo federal, o IBAMA, que co-administram 0 PARNA GSY. Além de um carater narrativo dado ao texto, devido ao seqienciamento ¢ temporalidades das agSes descritas, grande parte do material etnografico reproduzido pode ser classificado como narrativo: pequenos relatos autobiograficos, casos, histérias, membrias. Parafraseando Ecléia Bosi, em seu trabalho sobre memoria dos vethos’, 0 interesse aqui também se concentra menos na veracidade dos narradores, mas sim no que foi lembrado e escolhido para contar sobre os lugares estudados, sobre as histérias que os fazem ¢ neles se fazem. Porém, o trabalho de Bosi traz consigo a delicadeza ea profundidade de oito velhos e suas memérias, na integridade dada por cada narrador ao vivido e ao lembrado de suas longas vidas”. Aqui, diferentemente, os relatos mais frequentes so pequenos fragmentos, instantes de vidas, das quais algumas vezes pode- se saber dos antes dos depois; em outras, s6 um leve vislumbre, uma pequena faceta do narrador e de sua propria narrativa. Ha também outros cortes temporais nas narratives, tanto a do texto como a dos discursos apresentados, Cortes dados nao 36 pela lembranga de passados recentes ov Tonginquos, mas em particular por um presente ¢ um futuro entre parénteses, que aguardam a implantagio definitiva do Parque e a propria regularizagdo fuundiéria de sua rea, Paréntese coletivo, que aftta de diferentes formas os varios grupos envolvidos, ¢ que também participa das narrativas apresentadas ou de seus fragmentos. A utilizago desses fragmentos, que compéem muito do material utilizado, ocorreu em parte pelas proprias caracteristicas da pesquisa antes citadas: varias diferentes pessoas, em encontros descontinuos, muitas_vezes _contingentes, possibilitados por deslocamentos. " Bosi, Eeléia, Memaria e Sociedade - lembranga de velhes. So Paulo: T A. Queiroz Editor, 1979, * Sem que se esquesa. como diz Basi, que “A meméria é um cabedal infinito do qual sé registramos wm fragmento”, in Bosi, E. op.cit, p. 03 Porém, mais do que uma condicao dada pela pesquisa, alguns fragmentos como que se impuseram. Forga da palavra pedra, poetiza Jodo Cabral, haikai sertanejos como percebeu Magalhaes’ em sua pesquisa ao lado de velhos sertanejos do Norte de Minas. A fala, as palavras ¢ os siléncios tém peso nessas paragens, onde se situa o Parque. Onde ele é nomeado, batizado pela obra de Guimaraes Rosa, ela mesma recriada © esculpide da palavra sertaneja, Esse gancho, dado pelos fragmentos, pode também esclarecer que se 0 objetivo da dissertagdo se faz a partir do Parque, ele também se faz através do Sertio. De fato, a porta que conduziu até os caminhos do Parque abriu-se alguns anos antes, com @ participagio em um projeto intitulado “O Sentimento do Mundo: Meméria, Destino ¢ Cenarios da vida entre Errantes Mineiros” *, Formulado ¢ coordenado pelo professor Carlos Rodrigues Brandio, o projeto contou com a participagao de Clarissa Magalhies ¢ Elaine Lemos Zanin, ¢ foi compartilhado também com outras pessoas surgidas nesse caminho Entre as propostas norteadoras do projeto estava a compreensio de uma légica da natureza ¢ de uma ética do ambiente - meméria dos cendrios - revelada pela nogao de destino, entre os sujeitos privilegiados pela pesquisa: personagens de romances de Guimardes Rosa, desbravadores pioneiros de Minas Gerais (bandeirantes, viajantes € cientistas) ©, particularmente, “camponeses mineiros migrantes”, passiveis de serem pessoalmente entrevistados - todos, de alguma forma, sertanejos errantes. A abordagem construida voltava-se sobretudo as proprias reminiscéncias ¢ falas desses sujeitos, nas quais o sentido © o sentimento de destino pediam seu proprio lugar: “Trata-se de devolver ao que bé de pessoalmente incomum no homem comum a sua propria historicidade, Ha mais de Ulisses em Minas do que se imagina” * ° Magalhies, Clarisca. Relatério para Punatura/IBAMA sobre estadia no Parque Nacional Grande Sertio Veredas, 194, mimeo. * Como trabalhos resultantes desse projeto, estéo: Brando, CR. Nés, Sertanejos. “Livro-illbumn”. com depoimentos, reminiscéncias, anotagdes ¢ testemunhos de “sertanejos e afins”. Entre eles, Guimaraes Rosa: obra, entrevistas ¢ outros escritos, Manvelzo, homem ¢ personagem, Maria de Fatima, “garimpeira ‘meia-praga”; Jodo Redondo “vaqueiro das beiras do Paracatu”, Elpidio de Souza Pinto, “mesure sertanejo de folia de Santo Reis”, e “outros viventes do sertio” . Campinas, 1996, mimeo (a ser pubticado) Magalhdes, Clarissa. Minhas Gerais. Trabalho aststico livre, reunindo desenbos, pinturas € memérias, bascado em depotmentos de histérias de vida de cinco sertancjos. Finalizado cm Fortaleza, em 1996, Zanin, Elaine Lemos. “A quesiao do destino: Riohaldo ¢ a mitologia” (ensaio); “O Imagindrio de Si ‘Mesmo - Um sentide de Destino. Joao Braco - Lim garimpeiro” (ensaio). “Um homem chamado Joao” (conto), 1996, mimeo, > Brando, Catios Rodrigues."0 sentimento do mundo: meméria, destino ¢ cenérios da vida entre errantes rminciros” in Brandio, C. R. (org) As Faces da Meméria. varios autores. Cotegao Semindsi0s 2 Campinas: Centro de Meméria/ Unicamp, 1993. p. 78. Em 1994, periodo em que participava desse projeto, recebi um convite de cientista politico Fabio de Andrade Abdaia - pesquisador na area de relagées internacionais ¢ meio ambiente -, para acompanhé-io ao Parque Nacional Grande Sertio Veredas, em sua pesquisa de campo. Até esse momento, minha participagio no projeto “O Sentimento do Mundo”, como bolsista de iniciagao cientifica, centrava-se sobretudo em leituras de falas ja registradas daqueles sujeitos e de obras de Guimaraes Rosa, Em janeiro de 1994, uma primeira viagem de descoberta, ¢ 0 inesquecivel ¢ caloroso encontro com Manuelzio ¢ Dona Didi, em Andrequicé, Como a primeira visita a0 Parque, em fevereiro do mesmo ano, a motivagao que levava até esses lugares e pessoas era sobretudo a possibilidade que se abria de vivenciar © me aproximar dos mundos descritos por Rosa. Dois anos depois, em 1996, voltei ao Parque, ja para a realizacdo desta dissertago de mestrado. Ao resgater essas experiéncias anteriores, sio varias as intengdes. Primeiro, como tentei insinuar, a de indicar um universo, sertanejo, que diaioga com a proposta mais formal da dissertagio, Como entre péndulos, a reflexdo ora se faz entre imagens de Parque, ora entre imagens de sertio. Ao longo da pesquisa, abriram-se questionamentos para outros grupos que no os chamados sertanejos, ¢ no determinadas por Tmesmos esses, tentou-se vé-los sob outras perspectivas possiv essa classificagao. Igualmente, procurei afastar muitas vezes a sedugio exercida pela obra de Guimaraes Rosa, que temia poder abafar outras fontes possiveis de reflexao ¢ questionamento. Se, por um lado, afastei-me de algumas das formulagbes mais gerais de “O Sentimento do Mundo”, hé, porém, uma heranga © um aprendizado, intelectual e existencial, que encontraram aqui formas de se refazer ou de se reproduzir, que abriram primeiras portas ¢ ensinaram 0 caminhar com as proprias pernas. Nesse sentido, a dlisseriagao tenta ser também contribuigdo e partilha do que nasceu em conjunto. Outro diélogo de “entrelinhas”, desenvolvido ao longo do trabalho, foi também possivel gragas a uma experiéncia coletiva. No caso, a participago no curso “Itinerarios ¢ Tramas; historias de vida © narrativas”®’, oferecido durante o Programa de Pés- graduagao ao qual a dissertago esta vincnlada, A partir desse encontro, favorecido por um espirito de troca e liberdade intelectual, foi possivel amadurecer a proposta tedrica ¢ © © curso foi oferecido no primeiro semesure de 1996, ministrado peta professora Maria Suely Kofes, € reuniu alunos do mestrado em antropalogia e do doutorado em ciéncias sociais, do Instituto de Filosofia e (Cincias Hamanas/ Unicamp. metodolégica da dissertagdo. Igualmente, ainda que de forma menos sistematica & aprofundada, espera-se poder contribuir para a reflexio sobre “historias de vida" © a outras nogdes © questées 2 elas associadas, como narrativas, memoria ¢ temporaiidade Ao trazer essas diferentes contribuigdes ¢ didlogos estabelecidos 20 longo da pesquisa ¢ do texto resultante, objetiva-se indicar ao leitor varios planos tematicos que, em diferentes profundidades, tentam coexistir no trabalho. Num primeiro plano, uma discussio que se refere ao tema meio ambiente e sociedade, mais especificamente 2 questdes em tomo de unidades de conservagao e populagdes, ou parques ¢ pessoas Outro plano volta-se a reflexdes em tomo da categoria sertéo, do pensar ¢ do viver sertdo, Finalmente, um que tenta articular @ esses campos, questoes referentes a0 uso das historias de vida e narrativas na pesquisa social © primeiro capitulo introduz, a partir de um evento, questdes ligadas a constituigéo dos parques nacionais e presenca de populagdes em suas areas, A partir da reflexéo sobre categorias espaciais, € apresentada a abordagem teérica € metodolégica norteadora do trabalho. Por fim, completando um quadro de referéncias mais amplas ¢ genéricas para o estudo do PARNA GSV, uma discussao referente categoria sertdo e ao nome Grande Sertdo: Veredas segundo capitulo adota uma perspectiva local e centra-se em descrigdes em torno de populagio que habita o Parque. Traz informagées etnogréficas sobre a organizagao social dos moradores e a ocupago espacial na regido estudada. A partir do encontro com sujeitos especificos, de fragmentos de suas falas © memérias, surge também a possibilidade de reconstruir imagens do lugar antes da criagiio do Parque Nacional, bem como perceber algumas das articulagSes com novos contextos formados. © terceiro capitulo amplia 0 foco sobre o focal, temporalmente - através de tragos de passado da regio - e espacialmente, interligando-o a cidade mais proxima, a Chapada Gaticha, e aos atores que acompanham o Parque Nacional propriamente dito, no caso, Tbama ¢ Funatura. Sao colocados assim diferentes principios e imeresses que informam as ages dos varios grupos, bem como contextos ¢ temporalidades que, centrecruzados, multiplicam os significados do Parque Nacional Grande Sertio Veredas. 0 ultimo capitulo retoma, resumidamente, os principais pontos desenvolvidos 20 longo da dissertagdo. So trazidas também, de forma breve, algumas consideragdes a respeito da relagao entre os ériaos ligados ao meio ambiente e populagao tradicional. CAPITULO I MAPEANDO TEMAS E QUESTOES ‘Meio Ambiente, Parques Nacionais e Dilemas Os Parques Nacionais so um dos mais importantes instrumentos criados para @ preserva¢éo ambiental. O Brasil conta, atuaimente, com 35 Parques Nacionais! espalhados por seu territério e que compéem, junto com as reservas biolégicas ¢ as estagdes biologicas, 0 grupo de categorias de unidades de conservagio de uso indireto Enquanto unidades de conservacao de uso indireto ¢ protegdo integral, esto “totalmente restringidos a explorago ou o aproveitamento dos recursos naturais, admitindo-se 0 aproveitamento indireto dos seus beneficios”?, A principio, havendo moradores na area delimitada como parque nacional, é prevista a sua remogdo, através de mecanismos egais. Porém, nos ultimos anos, a “remogao” e a propria concepgdo que a sustenta enfrentam um dilema que cruza direitos ambientais e direitos sociais. Para situar esse dilema, pretendo narrar brevemente um evento signiticativo - 0 didlogo construido por dois acontecimentos particulares, entre 1996 e 1997. O primeiro ocorreu entre 26 ¢ 29 de novembro de 1996, no auditorio Nereu Ramos/ Camara dos Deputados, em Brasilia: 0 Semindrio Internacional sobre Presenga Humana em Unidades de Conservagéo’, Esse seminario contou com a representagao de diferentes segmentos © tendéncias da sociedade brasileira envolvidas no s6 em questées relacionadas @ conservagdo do patriménio ambiental, mas em um dos instrumentos criados para tanto, as unidades de conservagdo. Nesse sentido, o seminario organizou-se "Art, 16, (..)8 10. ~ (.) eonsideram-se Parques Nacionais, as ércas geogrificas extensas e delimitadas, dotadas de aributos uaturais excepcionais, objeto de preservagio permanente, submetidas 4 condicao de inalienabilidade de seu todo § 20. Os Parques Nacionais destinam-se a fins cientificos, culunrais, educatives e, criados € adminisirados pelo Governo Federal, constituem bens da Unido destinados a0 uso comum do povo, cabendo as autoridades, motivadas pelas razdes de sua criagio, preserv-los e manté-los intocaveis, § 30. -O objetivo principal dos Parques Nacionais reside na preservaco dos ecossistemas natursis englobades contra quaisquer alteragdes que os desvirmem” Decreto no, 84.017, de 21 de setembro de 1979, Regulamento dos Parques Nactonais Brasileiros Legislagao reeditada pelo IBDF. em julho de 1980, ? IBAMA. Marco Conceitual das Unidades de Conservagao Federais no Brast!. Toama/GTZ. Brasilia. abril de 1997. P. 15 * O seminirio foi organizade conjuntamente pela Comissio de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente € Minorias da Camara dos Deputados (CDCMAM), Associagao Nacional dos Procuradores da Repiblica (ANPR), Instituto Sécio-Ambiental (ISA), Fundo Mundial para a Natureza (WWF), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazénia (IPAM), Sociedade Civil Mamiraua ¢ 0 Banco Mundial, com 0 apoio do Conselho Britinico e do Programa Pitoto de ProtegSo is Florestas Tropicais (PPG) “com o objetivo de propor novas orientages para a atuago do poder piblico das organizagdes ndo-governamentais, visando compatibilizar a ocupagdo humana, particularmente a de populagdes tradicionais, com a necessidade de preservacdo dos recursos naturais em areas destinadas a prote¢o ambicatal”* E importante lembrar que o seminario ocorreu em um momento em que se revia © projeto de lei no. 2.892 *, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservagio (SNUC), onde se “estabelece critérios e normas para a criaco, implantagao e gestao das unidades de conservagao™. Fago uso aqui do registro oficial do encontro’, que documenta um momento de um debate que jé se desenvolve ha muitos anos e que explicita diferentes posigdes presentes e envolvidas. De qualquer forma, quero me ater somente a dois pontos, discutidos na abertura do seminério ¢ em sua primeira mesa, com o titulo de “Fungoes Objetivos das Unidades de Conservagaio"* Em sua abertura, a fala de Jodo Paulo Capobianco, representante do Instituto Sécio-ambiental, repercutin e encontrou ressondncia com quase todos ali presentes “Gostaria de, em nome do Instituto Sécio-ambiental, externar o enorme prazer de estar reunido ¢ participando da promogao desse encontro, que, para mim, como um ambientalista originalmente preservacionista, € um momento * Folder de divulgacdo do Seminario * Diggues apresenta uma anilise critica sobre 0 desenvolyimento dos regulamentos & decretos relativos iis unidades de conservago, ¢ também ao SNUC, sobretudo . Redigide pela primeira vez como um plano pelo [BDF, em 1979, 9 SNUC tinha como principal objetivo “o estudo detathado das regides propostas como priortérias para a implantagdo de novas unidades. Ademais, 0 Plano se propuha a rever as CDEMAM Semindrio intemacional sobre Presenca Humana... (op.cit}, documento no. 0826/96. p.7. » Segundo cilculo técnico da WWF, mencionado no Seminario, estima-se a nccessidade de 10% de cada ‘un dos grandes biomas estarem protegidos em forma de tnidades de conservagao, enquanto que a media brasileira € de 1,8% de éreas protegidas no pafs. Ver CDCMAM Semindrio Internacional sobre Presenga Humana... (op-et) documento 10, 0826/96, p. 8. 25 definigfo do termo “populagdo tradicional” nifo ¢ consensual, ¢ esta inserida, como aponta Diggues (op. cit,, pp. 80-86), em um debate mais amplo que inclui também outras noses como populacces tribais, indigenas ou nativas. O awior fornece, inclusive, uma caracterizagdo do termo passivel de congregar as populagdes camponesas,caigaras,indigenas, ibeirinhas ou seringueiras. 44 0 Projeto de Lei do SNUC ¢ 0 substitutive do PL 2892/92, de autona do Dep. Femando Gabeira, apresentam duas definig5es distintas ‘Para 0 termo, No primeiro caso, trata-se de “populagio culturalmente diferenciada, vivendo ha varias _gsragdes em um determinado ecossistema, em estreita dependéncia do meio natural para sua alimentaciio, abrigo e ontras condigées materiais de subsisténcia’” No substitutrvo temos: “populagdo que vive em cestreita relagio com 9 ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua reprodugdo sécio-caltural, por meio de atividades de baixo impacto ambiental”. ver Tabela Comparativa,.. op cit. tdanifesto da Rede Pro-Unidades de Conservagiao sobre a realizagao do Semindrio Internacional sobre Presenga Humana em Unidades de Conservazao, Assinam © manifesto: FBCN, SPVC,GEEP-Agungsi, Fundaglo O Boticirio, Fanatura, TNC, PANGEA, ADEG - ADT, Fundagio Biodiversitas, Brasilia, snoverbro/1996 u do seminario, A rede exigiu também a realizagao de um encontro do mesmo porte sobre a protegdo integral do patriménio brasileiro. As justificativas para tais posigdes foram apresentadas em cinco itens, que se apoiavam em pontos da Constituicao Federal, na Convengao da Biodiversidade’”, e na visio de que “a selecao, criagdo, ampliagao e gestdo das unidades de conservagao de protegao integral slo atividades pautadas em critérios eminentemente politicos, cientificos e técnicos, que devem continuar prevalecendo sob quaisquer outres consideragdes”. A ago antropica foi apontada como causa basica da degradagdo das unidades de conservagao de protegiio integral, e os custos sociais dai advindos foram vistos como “co-razdes [que] podem ser socialmente penosas”, porém questionar @ protegZo integral a partir deles foi indicado como a substituigao de um dano por outro'* Como mencionei, a leitura do manifesto durante o seminario acabou por inseri- lo na discussio © suscitou muitos questionamentos e respostas sobre 0s pontos levantados. Igualmente, para além da posigio entZo marcada, contraposta ao espirito concitiador da abertura ¢ a “quebra de tabus”, a auséncia das instituigBes que assinaram © manifesto foi lamentada nio s6 pela representatividade de algumas delas na historia do ambientalismo brasileiro, como contribuigdes que poderiam ampliar o debate. dilema ea polémica em torno da questio “parques /pessoas” € 0 tabu a que se referiu Capobianco mostraram, em outro acontecimento no ano seguinte, que sua resolugio ainda é bastame problemitica Em novembro de 1997, foi realizado, em Curitiba, o Congresso Brasileiro de Unidades de Conservagdo, organizado pela Dirctoria de Biodiversidade e Areas Protegidas do Instituto Ambiental do Parana, pela Universidade Livre do Meio Ambiente, e pela Rede Pré-Unidades de Conservacéio - a mesma que, um ano antes, assinou © manifesto citado anteriormente ¢ exigiu a realizag3o de um encontro do mesmo porte sobre protesdo integral do patriménio ambiental brasileiro ‘Ao final desse Congreso, foi aprovada uma mogio de repiidio ao substitutive do Deputado Fernando Gabeira, que institui o SNUC. Um dos principais pontos da mogio » Ou Convengdo sobre Diversidad Evolégica, assinada durante a Conferéncia das Nagées Unidas sobre Meio Ambiente © Desenvolvimento (CNUMAD) Rio 92, sondo o Brasil um dos signatarios. O documento “esabelece um conjunto de medidas a serem adotadas para conservar a diversidade de ‘cossistemas, espécies ¢ genes de cada nagio, conferindo especial destaque & conservacdo in situ, cu seja, 4 protego dos compontentes bioldgicos no proprio local de sua ocorréncia natural, o que constitui 0 objetivo maior das unidades de conscrvagio de uso andireto dos recursos", in IBAMA, Marco Conceitual.., op.it, p.10 *® Qs wechos citados fazem parte do manifesto, apresetado no Anexo A 2 foi justamente a idéia de que as unidades de conservacdo de uso indireto devem ser vetadas & presenga humans “A presen¢a humana nessas Areas implica em alteragdes nos ecossistemas uma série de problemas. Coloca em risco a seguranga do pais do ponto de vista da conservagio da biodiversidade. Devem existir espagos do territério sem a presenga da populagdo humana, para que as coisas aconteram naturaimente, evoluindo ou se extinguindo”””, Tendo em vista essa posigdo, uma das acusagdes feitas ao Deputado durante 0 Congresso, mencionada pela imprensa, foi a de que “Gabeira distorceu os objetivos do projeto e que quer usar as unidades de conservagao para a reforma agraria”””. Como 0 proprio seminario anteriormente citado, também esse Congresso foi criticado por sua falta de representatividade, niio somente pelo viés conservacionista privilegiado, mas pela propria forma de organizag%o do encontro, que teria limitado consideravelmente a “livre troca de idéias”, tendo se revelado “pouco democratico””" Os debates e discussdes em torno do SNUC ~ ilustrados através do didlogo entre © Seminario e © Congreso - ¢ 0 que ele vira a normatizar em relagio as unidades de conservacao de uso indireto, entre as quais os Parques Nacionais, ndo chegaram 2o seu fim. O projeto nfo chegou ainda a ser votado, tendo sido retirado da Pauta da Comissio de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente ¢ Minorias, aguardando parecer da Casa Civil da Presidéncia da Republica wee © Parque: Lugar Antropolégico e Lugar Praticado Através desse evento, que ilustra alguns dilemas em tomo das unidades de conservago de uso indireto no Brasil, particularmente no relativo ao tema “parques € pessoas”, é possivel também desfiarmos algumas questées e perspectivas que norteiam a dlssertagao. E importante, primeiro, lembrarmos que estamos diante de uma disputa '® Miguel Milano, professor da Universidade Federal do Parand e diretor técnico da Fundagio O Boticério de Protegao & Natureza, citado por Bento Filho, Warner. “Deputado do Partido Verde é 0 novo alvo dos ecologisias”. Correio Brastliense, Brasilia, 23/11/1997, p. 11 * Bento Filho, Warner, “Deputado do Partido Verde é 0 novo alvo dos ecologistas", Correio Brasiliense, Brasilia, 23/11/97, p11 2) Bensusan, Nurit ¢ Freitas, Analuce. “Os conservacionistas ¢ 0 SNUC: brincadeira?” in Jnformativo INESC, Dezembro 1997, no. 81, p. 11 também em toro de um modelo ideal, que devera estabelecer o parimetro para a criagao € © manejo de parques nacionais no pais. Ou seja, discute-se 0 modelo © os principios de um lugar ideal, caracterizado por sua fungao de preservagao ambiental, a se efetivar concretamente em lugares especificos, como é 0 caso do Parque Nacional Grande Sertao Veredas. Tais dilemas, entretanto, que impedem ainda uma concepgao consensual a respeito desse lugar ideal, explicitam tragos da historia, das relagdes ¢ identidades postas em jogo tanto do lugar chamado parque nacional, quanto dos grupos que o pensam, discutem-no ¢ © implementam no espago politico ¢ ideoldgico do ambientalismo brasileiro. Essas trés caracteristicas - 0 cardter reiacional, identitirio e historico -, dizem respeito também ao que Augé™ chama de lugar antropolégico. O termo refere-se inicialmente no tanto a materialidade de um lugar, mas & sua representago e interpretagéo, e & percebido como um lugar comum ao etndlogo © aqueles de quem ele fala, O lugar antropolégico ¢ compreendide, num primeiro momento, a partir da relagio entre um grupo social ¢ o tertitério reivindicado como seu, ctiando-se uma marea social, que o etnélogo procura reencontrar. Um ponto importante ressaltado por Augé seria o caréter de “invengo” na criagfio dessa marca social do solo, nem sempre original, mas que integra “os génios do lugar e os primeiros habitantes & aventura comum do grupo em movimento”. Invengao do native ao fundar a marca, € do etndlogo, ao reencontré-la. Auge percebe também que, se 0 lugar antropolégico revela uma realidade além de sua propria materialidade territorial, cle nfo deixa de gerar fantasias e ilusdes Fantasia dupla que, de um lado, se expressa na idéia de um mundo fechado, “fundado de uma vez por todas” *( a fantasia indigens), que no discurso fundador revela-se nos termos espaciais frequentemente utilizados, exprimindo a identidade do grupo, e“o que © grupo deve defender contra as ameacas externas ¢ internas para que a linguagem da identidade conserve um sentido” © eindiogo, por sua vez, duplica a semifantasia, a0 se ver tentado a identificar aqueles que ele estuda com a paisagem onde os descobre e 0 espago que eles informam. Porém, jé se mencionou, no se trata de uma “mentira”, mas uma “semifantasia”, uma vez que o entologo “nfo ignora mais do que eles as 2 Augé. M. Ndo-lugares: Introduedo a uma Antropologia da Super-modernidade. Campinas: Papirus, 1994 ® Augé, M, op cit. p 44 * Auge, M. opsit, p45 * ugé, M., op cit, p45. W vicissitudes da sua historia, sua mobilidade, multiplicidade dos espagos aos quais cles se referem ¢ a flutuagao de suas fronteiras”™ A associagao do territorio @ sua fundagdo e as identidades construidas, dessa perspectiva, estatia assontada em uma tentacdo intelectual, a tentagio da totalidade “Por tras da idéia de totalidade e de sociedade localizada, ha aquela de uma transparéncia entre cultura, individuo e sociedade”””, Do ponto de vista da disciplina, tal “tentagdo” expressaria um ideal de interpretagio exaustiva (Lévi-Strauss), e¢ da representatividade do “homem médio” (Mauss). A critica ao ideal de totalidade volta-se também & visdo culturalista das sociedades, que teria como modelo ideal de reflexio a imagem da ilha, “lugar por exceléncia da totalidade cultural”, ignorando a complexidade, 0 movimento, “o caréter intrinsecamente problematico” de cada cultura singular substantificada™™ Mas onde se encontra a realidade subjacente a essa fantasia indigena e iluso antropologica, a essa tentago intelectual? A resposta aponta para a necessidade de os individuos e as sociedades pensarem, simultaneamente, identidade e relagao: a organizagio do espago e a constituigdo dos lugares so, no interior de um mesmo grupo social, uma das motivages ¢ uma das modalidades das priticas coletivas © a individuais" © lugar antropoldgico, tugar pensado, “€ simultaneamente principio de sentido para aqueles que © babitam e principio de inteligibilidade para quem o observa””’, Dai, chegamos, finalmente, ao que seriam as trés caracteristicas desse lugar: © cardter identitério, 0 relacional e 0 histérico. Partindo dessas ilusdes e semifantasias nativas e etnolégicas, bem como da realidade subjacente a elas - expresso espacial de identidade, relagdo ¢ histéria - , sio varias as tentagbes intelectusis que motivam considerarmos a idéia do Parque Nacional como um lugar antropoldgico. Outros autores, que refletiram sobre o modelo, a historia e constituigdo de Parques Nacionais, no Brasil e no mundo, oferecem-nos base para tanto, Partamos, de inicio, das tentagSes totalizadores. O modelo ideal dos parques como “ilhas de conservagio”, materializado na criagio de unidades de conservagao de uso indireto, por exemplo, é analisado por Diégues como elemento do que o autor chama de “mito da 2 angé, M., pit, p 48. * Auge, Mare. Opt, p49. * Augé. Marc. Op cit, p. 50 » Auge, Marc. Op.cit, p50 * Augé, Marc. Op.cit,p. 51. 1s natureza intocada” - um mito, ou neomtito, operante no pensamento € ayes de um grupo particular, o dos ambientalistas™. Nao por acaso, entre os marcos significativos na historia do movimento ambientalista no Brasil encontra-se justamente a criagdo de seu primeiro parque nacional, o do Itatiaia, em 1937°. Ou Yellowstone, para o caso americano - que se tomou o primeiro parque nacional do mundo, em 1872, modelo inspitador para 0 Brasil e outros tantos paises do mundo - ¢ mesmo Yosemite, “a primeira reserva designada conscientemente para a protego de “Areas virgens"”™ ‘Também Schama nos remete a forga da “invengdo” no caso desse lugar especifico, quando nos conduz 20 fundador do modeno ambientalismo, Henry David Thoreau, ¢ idéia da “preservagao do mundo” garantida pelos “ermos bravios”, o lugar da natureza imocada: “Qs ‘ermos bravios’, contudo, eram, naturalmente, produto do desejo da cultura ¢ da elaboragGo da cultura tanto quanto qualquer outro jardim imaginado. O primeiro Eden Americano, por exemplo, e também o mais famoso: Yosemite. Embora o estacionamento seja quase tio grande quanto 0 parque, ¢ 08 ursos estejam fugando entre embalagens do McDonald’s, ainda imaginamos Yosemite com Albert Bierstadt o pintou ou Carleton Warkins e ‘Ansel Adams o fotografaram: sem nenhum vestigio da presenga humana” Outro ponto apontado por Schama € também significative para essa discuss’o: 0 fato de que a natureza selvagem nfo se demarca a si mesma nem se nomeia, Em 1864, uma lei do Congresso dos Estados Unidos designa o Yosemite Valley como “o lugar de significado sagrado para a nao”. Esses dois pontos so extremamente importantes para a consideragio dos parques nacionais como um “lugar antropolégico”, 31 yer Diggues, Anténio Carlos, op.cit. Tendo como tema mais amplo a questo das unidades de conservagio ¢ ‘a prescnga de populacdes tradiciomais em suas reas, © anior acompanha 0 desenvolvimento histbrico & ideologico da nogdo da reas protepidas, & luz dos “neomitos” ou mutos ‘modemos de uma ratureza imocada, ¢ seu ideal edémico, Sua andlise também se debruga sobre os diferentes grupos ¢ tendéncias cnvolvidos diretn on indiretamente com a questio no Brasil. avaliando os impactos politicos, sociais e cururais da eriaglo de parques sobre as popuilagies tradicionais envolvidas. 5° Ver Serrano, Célia M.'T. “Dos modos de conhecer ¢ conquistar 0 Hatizia; @ invengo da nanureza © da protegéo ambiental no Bras” in Temticas, ano 4, no, 7, lo, semestre de 1996. Campinas: IFCH/ ‘UNICAMP. pp. 91-127 ® MeCormick, Jonh, Rumo ao Paraiso: A Historia do Movimento Ambientalista, Rio de Fancito: Relume umard, 1992, p.30 ,citado em Pareschi, Ana Carolina C._Realismo ¢ Utopia: O Trabalho de Formigas ‘en um Mundo de Cigarras. Um Esudo Aniropoldgico do Discurso Ambiemtalista. Brasilia, 1997. Dissertagao de Mestrado, Programa de Pés-Craduagdo ¢m Antropologia Social/ ICS/ UNB. 1997, p. 21 ™ Schama, Simon. Paisagem ¢ Meméria, Si0 Paulo: Cia. das Letras. 1996, p. 17 * idem, ibidem. E importante esclarecct que embora tenha sido a primeira reserva demarcada para a “protesdo de areas virgens", somente em 1890 Yosemite toma-se Parque Nacional, ou seja, depois do Parque Nacional de Yellowstone 16 particularmente no caso brasileiro - @ presenga/auséncia humana, e a questi de sua criagdo © regulamentaedo através das leis, como também expressa o evento citado anteriormente Entretanto, 20 lado de elementos que induzem a analogia entre lugar antropolégico e Parque Nacional, também ela totalizadora, ha pontos que a problematizam e complexificam, e que nos lembram tratar-se sobretudo de um instrumento anatitico, nao devendo tomar-se um modelo interpretative que imobilize a reflexio, Um dos pontos reside na lembranga de que, na conslituigio do lugar antropolégico do ponto de vista conceitual, ha a reivindicagdo indigena sobre a posse do lugar, lugar fundado porque habitado. Ora, os parques nacionais, teoricamente, sio lugares em que nio se habita Iguatmente, aqueles que o defendem ¢ o reivindicam como lugar legitimo - genericamente, o movimento ambientalista - 0 fazem em nome de outros: em nome da natureza, do direito a vida de outras espécies, da preservagdo dos ecossistemas ¢ da biodiversidade, do patriménio nacional, da integridade do planeta ou das geragdes fituras. Um segundo problema é justamente a totalizagio feita sobre o “grupo” que o reivindica, o movimento ambientalista. Na verdade, trata-se de um movimento de carter “complexo, multissetorial, ¢ mundializado™*, bastante diversificado imternamente, inclusive no que se refere especificamente & questio dos parques nacionais e pessoas, assim como ao modelo que deve prevalecer. Por fim, como indica Diégues, ndo somente os neomitos so acionados na idealizagao das unidades de conservagio, onde se incluem os parques nacionais. De fato, num primeiro plano dos discursos, € © pensamento empirico-racional que tenta prevalecer, justificando & claborando idéias em tomo das unidades de conservagao™” N&o é meu objetivo, embora possa parecer até o momento, defender a idéia do parque nacional como lugar antropolégico, Entretanto, essa analogia permite introduzir algumas das principais questées colocadas ao longo do trabalho A primeira, mais explicita talvez, é a que desenvolve uma reflexfo sécio-cultural sobre parques nacionais a partir das nogSes de espago, de lugar, ou desdobramentos das mesmas, Trata-se de uma perspective jé desenvolvida por outros autores, uma ** Pareschi, Ana Carolina C. op.cit. * Nesse conjumo de representagdes sobre 0 mundo nanutal intocado € intocdvel existem elementos ‘laros que reportam 20 pensamento empirico-racional, como a existéncia das funedes evologicas ¢ sociais dda natureza selvagem”. Diégues, A. C. opcit, p. 59. Ver também D'Antona, Alvaro de 0. O verdo, 0 inverno e 0 inverso. Sobre o mado de vida de comunidades residentes na regido do Parque Nacional dos Lengéts Maranhenses. Campinas, 1997. Disscriagao de Mestrado/ Deplo, de Antropologia, IFCH! UNICAMB, p. 36. a aproximagao recorrente em alguns estudos sobre unidades de conservasao/ meio ambiente e sociedade, ou mesmo “parques nacionais e pessoas” Entres caminhos possiveis, hé 0 trabalho de Serrano", sobre como o Itatiaia toma-se, além de um espago legalmente delimitado a fim de proteger e conservar 0 patriménio ambiental, um “lugar” significativo social, cultural ¢ historicamente para determinados grupos, Trata-se de um estudo sobre “modos de ser e estar na montanha & no Itatiaia”, através da recuperagao de praticas e imagens da natureza registradas em antigos livros de visitantes e outros documentos, desde os anos de 1910, de aventuras © impressdes dos que passaram ou viveram nesse regidio - naturalistas, cientistas, excursionistas, imigrantes - onde foi criado 0 primeiro Parque Nacional Brasileiro, em 1937. Através dele, torna-se possivel também perceber a importancia de significados, valores ¢ praticas que esse “lugar” Itatiaia suscitou entre grupos diferenciados, ao longo de décadas, a ponto de inaugurar para o caso brasileiro a institucionalizaglo de uma forma de apropriagio do meio ambiente D’Antona nos traz, do PARNA dos Lengéis Maranhenses, uma reflexio sobre a populacio moradora dos Lengdis Maranhenses, ¢ a particularidade de um mundo entre dunas ¢ arcia, constnuido ¢ vivido entre deslocamentos, alternancias e fronteira méveis, ‘em contraste com a natureza cercada da unidades de conservagio. Junto com isso, uma reflex tedrica a respeito das nogdes de espago ¢ lugar, de priticas e disposigoes em relago ao meio ambiente, além uma disposigao especifica do olhar analitico - que pode recomhecer o lugar em diversas escalas, como o observador que de dentro de um “baliio cada vez mais alto”, estabelece diferentes distancias entre o olhar ¢ 0 “lugar” observado, descobrindo gradualmente as ligagSes entre os elementos do lugar e 0 espago que criam”, Com Tsukioka’, através de seu caminhar ¢ olhar pela Itha do Cardoso (litorat sul de So Paulo), o leitor ¢ convidado a desvendar as diferentes apropriagdes representagSes de um mesmo espago € natureza por antigos moradores, e pelo olhar da preservagiio ambiental que a unidade de conservagio criada - o Parque Estadual da Ilha do Cardoso - institui, Ao mesmo tempo, desenvolve-se uma abordagem metodologica que, mediante o recurso textual do relato de viagem, constréi uma analogia aos livros Serrano, Célia MT. opi. * D'Antona, Alvaro de. op.cit, p. 218 *® Tsukioka, Crismere Gadelha, “Ilha do Cardoso - © Otho Magico” in Femdticas. ano 4, no. 7, 10. semestre de 1996, pp. 129-163, 18 intitulados “olho magico”, que brincam com diferentes dimensdes, desvendando “um. espago prospectivo sob um conjunto de configuragdes e manchas coloridas estabelecidas sob um plano, ou seja, observar um outro conjunto de configuragdes como que numa outra dimensio do espago nio dada imediatamente no primeiro nivel de observagao”" Nesses trabalhos, além de se problematizar unidades de conservagao particulares ~ no caso, o Parque Nacional do Itatiaia, o Parque Nacional dos Lengdis Maranhenses © Parque Estadual da Ilha do Cardoso, respectivamente - a partir da perspectiva de grupos que nele interagem - como a chamada populagio tradicional, cientistas, naturalistas, ou ambientalistas -, de suas éticas, logicas e priticas particulares em relagio & natureza @ ao meio ambiente, pensa-se antropologicamente 0 espaco ¢ outros aspectos a ele relacionados, como o proprio lugar, a paisagem, ou o olhar “metodolégico” desenvolvido em relagdo a eles. Assim, a presente dissertagdo tem em comum com esses trabalhos, além de um campo disciplinar, e também um tema de estudo - delimitado pela questo das unidades de conservagio/ pessoas -, a reflexéo teérica e metodologica sobre categorias espaciais, de nogdes como as de espago ¢ lugar, ou de priticas e idéias relacionadas a elas A utilizagto que fago das nogées de espaco e lugar informa-se a partir desses autores, mas tem em Certeau sua principal referéncia tebrica - referéncia essa também utilizada por Augé na construgio de seu “lugar antropolégico”. Enfim, nos diz Certeau: “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relagdes de coexisténcia (....) Um lugar € portanto uma configuragao instanténea de posig&es. Implica uma indicagao de estabilidade. Go) Existe espago sempre que se tomam em conta vetores de dirego, quantidade de velocidade e a varidvel tempo. O espago é um cruzamento de méveis.(..) Espago € 0 efeito produzido pelas operagdes que o orientam, o circunstanciam, © temporalizam levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. O espago estaria para o lugar como a palavra quando falada, isto 6 quando € percebida na ambigidade de uma efetuagdo, mudada em um termo que depende de miltiplas convengies, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo), e modificado pelas transformagdes devidas a proximidades sucessivas, Diversamente do lugar, nfo tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um proprio (..) O ‘Tsukioka, C. G op cit p. 130 © Comeau, Michel, A imvengao do Cotidiano - Artes de Fazer. Petwopolis: Vozes, 1994. 1s espago é um lugar praticado.” A distinggo expressa por Certeau, entre espago e lugar, amarra-se fortemente a seu objeto de observagao - praticas do espago - , ¢ também a grande metifora por ele utilizada para a claboragio de sua andlise: a lingua. Em um duplo movimento, ele, de um lado debruga-se sobre praticas cotidianas de sujeitos, singulares ¢ plurais, no contexto das cidades. Pergunta-se, ento, como esses sujeitos olham para o ambiente em que vive, como nele se deslocam ou se fixam, como orientam suas préticas diarias de ir 4s compras, ou de visitar alguém em um bairro distante, de que forma caminham. Por outro lado, para descrever e interpretar tais préticas © agdes, ele recorre a uma “root metaphor”: a lingua, em sua versio estruturada © em sua versio vivida, enunciada A partir dessas duas referéncias, sua delimitagdio das nogdes de espago e lugar, ambas significativas sociaimente, & construida, A diferenga entre elas é estabelecida néo num sentido absolut, mas relacional, Isto é, 0 espago ¢ 0 lugar assim o séo, no tanto pelo que podem significar positiva ou negativamente, mas pela relago ativa que 0 sujeito ( que caminha) mantém com eles Apesar das idéias de Certeau a respeito das préticas do espago se desenvolverem principalmente a partir dessas praticas no espaco da cidade - e da idéia de cidade, e de civilizagao que pode sugerir ser uma das oposigdes possiveis a idéia de sertdo, espago onde podernos também situar 0 PARNA GSV - essa correlagdo me pareceu ainda assim bastante oportuna, Em parte, porque a proposta é a de acompanhar procedimentos, a partir dos “passos que moldam os espagos ¢ tecem os lugares”, ¢ os passos - enquanto parte do ato de caminhar - podem nos levar a ambos os espagos, como se podera ver a partir do contexto especifico do PARNA GSV. De outra parte, pela legibilidade que Certeau percebe no espaco a partir dos deslocamentos do caminhar. A aproximagio que faz entre 0 ato de caminhar e o ato de falar revela as fungdes enunciatives daquele, considerando os “relatos de espacos” (mapas ¢ itinerdrios) como ages narrativas Essa leitura permite, assim, do ponto de vista analitico, um olhar sobre o parque nacional que articula ¢ entrecruza categorias espaciais ¢ temporais, contrapondo espagos percorridos e vividos, a espacos pensados, narrados e rememorados A intengfo de descrever 0 evento que abre esse capitulo deu-se no somemte para ilustrar a complexidade ou diversidade de grupos, interesses ¢ ideologias envolvidos na discussio especifiea sobre unidades de preservagio ambiental e populagdes humanas - € * Certeau, M. op.cit, p201- 202 20 interpretar esses elementos como constituidores de um paradoxal “lugar antropolégico” Ela também ¢ indicativa porque situa, entre os participantes do seminario ¢ os integrantes do manifesto, dois grupos que se deslocam no espago geogréfico do Parque Nacional Grande Sertio Veredas. No caso, uma instituigio federal, 0 Ibama - participante do seminério -, uma organizagao nao-governamental - a Funatura - que subscreveu o manifesto e participou do Congreso mencionado. E a partir do deslocamento, dos passos ¢ “configurages instantaneas de posigdes”, das agdes, eventos, e relatos em tomo desse temtitério, 0 Parque Nacional Grande Sertdo Veredas, que o presente trabalho € construido. Os acontecimentos antes mencionados, na verdade, dizem sobre um lugar antropologico - 0 modelo ideal de Parque Nacional - que coexiste com 0 caso particular do PARNA GSV, porém que abafa e camufla outras praticas em tomo desse lugar, outras historias, interesses, contextos © grupos que dele participam. Qual € 0 Parque que encontramos ao visitar seus moradores, a chamada populagdo tradicional, em localidades como a Onga ou Santa Rita, situadas dentro da unidade de conservagdo? Que outros lugares ali existiam antes da criagao do Parque? Quem os criava ¢ a que espacos eles se articulavam? Que relagdes o Tbama mantém com tais pessoas no contexto atual? O que é ou quem é a Funatura que habita a localidade do Rio Preto, praxima ao rio de mesmo nome? Que programas conflituais ou proximidades contratuais podem ser lidas, observando-se esses atores? Que posigdes cles parecem marcar? Que hist6rias podem ser desfiadas desses lugares a partir de referéncias como a do rio Carinbanha, um dos limites do Parque? Que outros “lugares antropolégicos” coxistem com o lugar parque? Sao essas algumas das perguntas que nonteiam a dissertagdo que se apresenta, Comecemos, gradativamente, a nos aproximar desse “epicentro”, o Parque Grande Sertio Veredas. © Parque ¢ os caminhos metodolégicos © Parque Nacional Grande Sertio Veredas foi criado em 12 de abril de 1989, através do decreto federal no. 97658. Estabelecendo uma rea de 83.368 ha, situada no noroeste de Minas Gerais, entre os municipios de Arinos, Januéria © Formoso, sua implantagdo tem como objetivo a preservagéo e conservago dos Gerais ¢ de seus atributos naturais excepcionais. E importante lembrar que seu processo de regularizacdo fundiéria esta em andamento, e que nfo conta ainda com um plano de manejo“ © Parque inaugurou também a primeira - tinica até 0 momento - experiéncia brasileira de conversio da divida extema para fins ambientais, possibilitada pela tesolugo no 1840 de 16.07.1991, no “Plano de Conversio de Divida para Fins Ambientais”, do Banco Central do Brasil*, O programa, realizado no PARNA GSV pela Funatura com a cooperagao da norte-americana TNC - The Nature Conservancy - sob orientagio do Ibama, prevé em seus objetivos trabathos de protegao ambiental, bem como 0 desenvolvimento de projetos especificos voltados a conscientizagto das comunidades locais, educagdo ambiental, agricultura sustentével e medicina & satide“* Aprovado em maio de 1992, em julho de 1993 o Banco Central autorizou 0 recebimento, em nome da Funatura, dos juros do valor depositado pela TNC. Em agosto de 1993, a Fundagao ¢ liberada para receber mensalmente 0 valor de US$ 11,000, durante 20 anos, passiveis de serem prorrogaveis por mais dez, para aplicago no PARNA GSV* Se esse aspecto particulariza 0 PARNA GSV no conjunto de unidades de conservagao de uso indireto, ha outros que esse parque compartilha com 0 conjunto de “© Plano de Manejo é o instrumento de planejamento oficial das unidades de conservacio de uso indireto, Trata-se de um projeto dindmico que, utilizando técnicas de planejamento ecolégico, determina ‘© zoneamento de uma unidade de conscrvacdo, caracterizando cada uma de suas zona e propondo seu desenvolvimento fisico, de acordo com suas finalidades, estabelecendo diretrizes bisicas para o mancjo da unidade .(.,) Caracteriza-se por ser participativo, ja que envolve varios segmentos da sociedad. continuo, pois 0s conhecimentos zerados de acordo corn o planejamento evoluirio ao longo de tempo: eradativo, pois da profundidade dos conhecimentos gerados depende o grau de intervengao do mancjo da area, flexivel, pis a tomada de decisOes dependera também da auto-avatiagfo e da retroalimentagao fornccidas pelas experiéncias com o manejo” in IBAMA, Marcos Conceituats.... opcit,p. 24. “0 programa visa permitir que ttulos da divida extema brasileira gerem rendimentos a serem aplicados fem projeto de preservago do meio ambiente, Instituigbes ou fudos sem fins fucrativos, situados no Brasil, pode receber doagdes de entidades publicas e privadas estrangeiras, sob a forma de créditos, Uiulos ¢ depésitos vineulados acs acordos de reestruturagao da divida externa. Mediante o recebimento de tinulos represenuativos da divida extema, 0 Banco Cental do Brasil tibera recursos, em mocda nacional, 8 instituigdes ou fundos sem fins lucratives situados no Brasil.” in Abdala, Fabio de Andrade. Um estudo de Caso: Conversibes de Divida Externa com Finalidades Ambieniais, mimeo, 1996. p. 108- 108. * Comentarei com mais detalhes esses projefos no capitulo 3. * © valor so zefere ao prego pago pela TNC para a compra de titulos da divida extema brasicim: no mercado interacional. Para uma descrigo mais precisa desse mecanismo, ver tamféra Pareschi, Ana Carolina C. op.cit. A amiora chama igualmente atcagdo para o fato de que a questéo da conversio da divida cxtema para fins ambientais ter sido uma das questGes polémicas durante Férum Global, que reuniu organtzagSes nilo-governamentais ¢ movimentos seciais, encontro paralelo 4 Conferéncia das ‘Nagoes Unidas sobre Meio Ambiente ¢ Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992. Segundo Pareschi “outra questio polémica dentro do movimento {ambientalista] fot a questo da conversdo da divida em projetos ambientais, onde as ONGs de desenvolvimento decidiram nfo zpoiar tal proposta por questées ‘ideologicas ¢ econémicas, ea FUNATURA rachou com o resto sendo a tinica entidade que mantém 0 ‘inico projeto deste tipo no Brasil, no Parque Nacional Grande Serto Veredas". in Pareschi, Ana Carolina C.opcit. p. 108 2 arques nacionais brasileiros: a presenga das chamadas “populagGes tradicionais” - 0 ‘que, lembrando as palavras de Capobianco, deveria ser visto como um fato © no como um problema para o movimento ambientalista. Assim, outra informagio fundamental & descrigdo da situagdo dese Parque € a presenga, em sua area, de uma populagdo nativa calculada em torno de 100 familias que, pela legisiagao atuaimente vigeme, teré que abandonar a érea para a efetiva implantagdo da unidade de conservagao. Considerando essa informagio, se fSssemos deduzir a relagdo entre Funatura essa populagio nativa, a partir de seu papel como uma das mais importantes ONGs conservacionistas brasileiras, ou mesmo do manifesto apresentado pela Rede Pro- Unidades de Conservagao (da qual participa) durante 0 seminario antes mencionado - lembrando do que se coloca sobre a ago “antrépica” ou sobre responsabilidades acerca, das “co-razdes socialmente penosas” -, as conclusdes provavelmente iriam em um sentido de distanciamento, centradas num discurso conservador e numa visio apocaliptica das relagdes homem-natureza Porém, para além de um discurso que chega a parecer anacrdnico quando se acompanha 2 institucionalizagao da questo ambiental, ou a “crescente ecologizacio das esferas sociais, politicas e econdmicas”, a atuagdo da ONG, no caso especifico do Parque, introduz outras praticas (como podem sugerir os projetos desenvolvidos pela ‘mesma, voltados a comunidade local), posturas e nuances que pretendo investigar © estudo aqui apresentado sobre o Parque Nacional Grande Sertao Veredas, nao desconsidera a historia ou 2s posicdes ideoligicas das instituigdes envoividas, no relativo a concepedes sobre a relagdo homem-natureza ou, mais especificamente, sobre parques ¢ populacdes humanas. Entretanto, se a idéia de parque nacional pode ser considerada como um “lugar antropolégico”, a partir dos atores que o fundam eo implementam, se percebemos uma configurago instanténea de posigdes entre as quais se localiza 0 parque idealizado, num tempo mundial, no espago do mundo globalizado dos financiamentos internacionais, existem outros espagos onde esse Parque se ‘materializa e se configura, além de outros atores que o informam ¢ o praticam Os capitulos seguintes pretendem trabalhar outros niveis de observagdo - buscar © parque enquanto lugar praticado -, buscar as “operagSes que o orientam, © circunstanciam, 0 temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de Abdala, F.de A. op.cit ,p. 88 2B programas conflituais ou de proximidades contratuais” ”. A escolha, aqui, para alcangar tais objetivos em relago ao Parque Nacional Grande Sertio Veredas, voita-se aos caminhos da memoria, as trajetorias dos sujeitos envoividos, a um pouco de suas vidas. Para tanto, entre as principais fontes utilizadas para o trabalho esto os relatos orais - pequenas narrativas, entrevistas, fragmentos que, entrecruzados, multiplicam as possibilidades de interpretago sobre o Parque Nacional ¢ as, Tendo isso em seus significados entre sujeitos que o constroem em suas praticas di mente, 0 desvio anterior - através do evento antes mencionado, 0 didlogo entre 0 Seminario e 0 Congresso - seguiu algo da recomendagao de Denzin sobre o estudo de historias de vida, tentando vinculd-las a um “tempo mundial” ¢ a um movimento historico mais amplo™. © caminho metodoldgico que orientou a pesquisa de campo ¢ seus resultados inspirou-se também em leituras como as de Gewertz&Errington, Gluckman © Turner Tentei evitar os pélos daquele tabu, o dilema “parques x pessoas”, ¢ relativizar inclusive minha propria empatia pela situag&o dos moradores locais, pelo direito que acredito terem de permanecer em seus lugares de vida, ou de participar diretamemte dessa decisio Para tanto, busquei perceber aqueles grupos - populaco local, Ibama, Funatura - a partir do espago demarcado petos limites do Parque e seu entorno, isto é, igualando-os num momento da analise, como grupos que partilham de um mesmo espaso, relacionam-se, convivem, Algo semelhante aquilo que Gewertz&Errington realizam na biografia coletiva de Chambri*, entre os nativos, os turistas ocidentais, representantes do estado e cantores de rock’n roll; ao que Ghickman’ faz em sua anélise sobre a Zululandia moderna em relagao a grupos raciais distintos, no caso negros ¢ brances. Como esse tiltimo coloca a partir de Fortes, a unidade de observacdo ¢ a unidade de Certeau, M. op.cit., p. 202 * onde 0 autor nos Jembra que “Uma vida existe dentro de uma teia aticulada, pouco visivel, de lagos interacionais, contratuais, politicos, econdmicos ¢ de parentesco que fornecem um. “pano de fundo’ no qual as coisas se realizam.” “(...) As vidas mio podem ser estudadas isoladamente nem fora do tempo ‘mundial. O estudioso das est6rias de vida deve ligar as vidas das pessoas aos documentos historicamente situados ”, in Denzin, N. “Interpretando as vidas de pessoas comuns: Sartre, Heidegger ¢ Faulkner”, Dados, vol, 21, no.1. Rio de Janeiro: Ed. Campos /Publicacio do Instinuto Universitrio de Pesquisas do Riv de Jancixo, p.37 #40, respectivamente % Gewertz, Deborah & Errington, Fredcrick, Twisted histories, altered contexts ~ Representing the (Chambré in a world system. Cambridge University Press. Melbonrme, 1991 * Gluckman, M. “Anflise de uma Simuagao Social na Zululéndia Modema’, in Aniropoiogia dos Sociedades Contempordneas, (org, Bella Felidman Bianco) Sao Paulo: Global Universitéria, 1991. 24 vida, e nao de costume. ‘Uma outra referéncia teorica ¢ metodologica apropriada é a fornecida por Tumer, que privilegia em sua andlise processual as qualidades dindmicas das reiagdes, sociais, através do conceito de drama social. A perspectiva de Tumer mostra-se bastante apropriada em contextos como o aqui. estudado, conforme indica 0 estudo de Pompa’’, sobre o Parque Nacional da Capivara, no Piaui, Nesse trabalho, a autora busca entender os efeitos sociais produzidos pela proposta de implantagio do Parque Nacional a partir daqueles instrumentos tedricos fornecidos por Turner (e também Sablins), analisando os diferentes momentos do processo, os atores envolvidos, 0s lagos de alianga e conilitos estabelecidos, além do encontro de estruturas sécio-politicas © culturais baseadas em principios distintos, como 0 do povoado Zabelé (locus privilegiado da andlise), o da “sociedade envolvente” ou da politica oficial™. Se chamo atengéo para a analise do processo social que tem como palco os limites do Parque Nacional Grande Sertéo: Veredas - ¢ que conduzira muitas das observagdes a serem apresentadas, ha as outras pretensées de andlise que foram antes indicadas. Nao so, acredito, perspectivas excludentes, mas carregam varias implicagdes. Sobre aquelas que posso prever, esta a tentativa de sobreposigdes de temporalidades - ou um entrecruzamento de tempos, como o sugerido por Gewertz & Errington. Assim, se existem os tempos do processo social, também tem seu curso 0 tempo das historias particulares, das pessoas ¢ lugares envolvidos, ou mesmo das narrativas trabalhadas. E de se supor que tal equivaléncia, no plano formal, corra o risco de impor um esquecimento de outros planos relevantes, ou mesmo um mascaramento de diferengas, como as de poder. * Pompa, Maria Cristina O Parque Nacional da Serra da Capivara. Campinas, PPGA’ IFCH/ UNICAMP, mimeo, 1987 ** © wabalho de Popa seré posteriormente retomado ao longo deste estudo, nao 6 pelas aproxinmactes 1a abordagem sobre o problema, mas também pelo inimeros paralelos que podem ser feitos na questo da ‘mplantagao dos parques nacionais, e os efeitos sociais que podem ser lidos. E de se ressaltar que a utilizagdo do termo ‘efeitos sociais” pela autora desloca-se de uma viséo simplista de “causas-efeitos”, imas justamente percebe-os como processo, levando em consideragdo a estrutura social pré-existente, 05 atores envolvidos, interesses, projetos de avdo, contingéncias - tanto quanto as representagdes simbélicas tambésa em jogo. Os paralelos mais imeressames, parece-me, dizem respelto a0 carter dos atores envolvidos - populagdo tradicional (Zabelé), instimigdes do Estado (IBDF. INTERPRI), orgios nio- governamentais ligados pesquisa na regio do Parque (Missdo Franco-Brasileira, Museu do Homem Americano) - ¢ as diferentes relagdes wantidas entre cles cm varios momentos do processo de ‘mplantagao do Parque Nacional da Capivara, Outro paralelo relevante no que muitas vezes ¢ chamado de relagbes emire 0s “de dentro” ¢ os “de fora!” é a anélise sobre 0 encontro de “politicas”: a organizagio social do Zabelé, assentada sobre principios do parentesco € do compadrio, o “tempo da politica” ou @ época de cleigdes - vista como pequeno “drama social” que institu momentos de ruprura, crise © reintegragio; ¢ 0s dominios da politica oficial dos érgdos envolvidos Esse risco, entretanto, pode ser considerado de outra forma, como ilumina Said®* Seu trabalho, que toca alguns temas comunicaveis com © desta dissertacao, estabelece um cruzamento entre imperialismo, geografia e cultura, ou como coloca, “um exame geografico da experiéncia historica” do imperialismo, entrelagando e sobrepondo historias de colonizadores e colonizados, percorrendo passados ¢ presentes. Ao justificar suas “razSes filosoficas metodolégicas”, diz’ “Se insisti na imegraglo e nas ligacoes entre o passado € 0 presente, entre o imperializador e 0 imperializado, entre a cultura ¢ 0 imperialismo, nao foi para nivelar ou reduzir as diferencas, mas para transmitir um sentido mais preemente da interdependéncia das coisas.”** Said continua esse trecho, aprofundando a idéia da interdependéncia dessas dimensSes, da necessidade de se falar em tertitorios que se sobreptem € em historias que se entrelagam, “comum a homens mulheres, brancos e nao-brancos, moradores da metropole e da periferia, passados, presentes e futuros”, tendo em vista a forga do “imperialismo como experiéneia de dimensdes culturais cruciais”*”, No caso da presente dissertagao, o tema trabalhado nao alcanga to grande escopo. Mas talvez as escolhas tenham sido estimuladas, pare além de uma intengdo analitica ¢ interpretativa, ou de uma alternativa metodolégica, pela forga de lugares, espagos € tempos que se chamam Sertdo. Algumas palavras sobre o grande sertio “Sertdio é onde o pensamento da gente se forma mais forte que 0 poder do lugar 88 Se existem categorias que podem concentrar as varias idéias propostas por Certeau acerca do caréter significative ¢ simbolico do espago, ou do poder enunciativo do caminhar sobre ele, Serido ¢ certamente uma delas. ‘A densidade significativa da categoria é, por exemplo, revelada por Vidal e Souza’. O objeto de sua andlise retine narrativas do pensamento social brasileiro, ou © * Said. Edward W. Cultura e Imperialismo, S60 Pavto: Companhia das Letras, 1995. % Said, E. W.opsit, p 98 © Said, E. W. op.it, p 98. 5 Rosa, Guimaries, Grande Sertdo: Veredas. Rio de Janeiro: Livranta José Olympio Editors, 1979. P, 22, 5 Vidal e Souza, Candice. 4 Patria Geogréfica: Sertao e Litoral no Pensamento Social Brasileiro. Goifinia: Hd, da UFG. 1997 2% que chama de “sociografias” — “modalidades de resolugéo textual da pergunta sobre @ origem e o destino nacional (...) obras que querem a sintese da alma nacional”®, Entre 0s varios autores trabalhados nesse grupo, encontram-se Fernando de Azevedo, Capistrano de Abreu, Euctides da Cunha, Gilberto Freire, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro. Configurando as obras como propostas explicativas de brasilidade, sua abordagem sobre o material ¢ a de uma anélise que considera tais narrativas como miticas, nao se preocupando tanto como a cronologia ou com a correspondéncia dos contetidos com espagos reais, ou “verdades histéricas”, mas sim procurando interligar teoricamente os “enunciados nativos” (os textos), para alcangar caminhos de compreensio sobre “versdes da nossa mitologica nacional” ‘Ao se aprofuundar no discurso do pensamento social que qualifica o espago fisico e social da nago, Vidal e Souza percebe uma representagiio do Brasil fundada no espago, e mais do que isso, construida como um “lugar onde ha sertao e litoral”®. Ambas as categorias surgem, portanto, como afticuladoras do discurso construtor da nagdo, € também como componentes estruturais da construgéo que acontece inclusive no dominio histérico, onde sertZo e litoral funcionam como “temas pré-figurados que treinam o olhar”™. Seu trabalho divide-se em trés etapas, que sintetizariam “os momentos mais notaveis da seqiiéncia descrigo-avaliagdo-projegio do Brasil, e de seu patriménio sécio-geografico”“. No primeiro momento, estéo as nartagdes do “nascimento” do Brasil, em que surgem as excursdes para a hinterlandia, a conquista do patriménio do espago, @ a geragio do povo verdadeiramente brasileiro, através de um movimento que se faz da costa para o interior, e que forma o lugar tido como sertao. E onde também se encontram imagens que tornam simultaneos a génese da brasilidade e a otigem do serto, e se reproduz a distingao litoral/sertao. Entre as representagdes que se destacam nessa reflexdio sobre o espago geografico e a geografia imaginada de Brasil, através do sertdo e do litoral, trés imagens sobressaem: “as bandeiras ¢ 0 evento hist6rico original”, “a sociedade € 0 viver do sertao”, ¢ “as enormes distancias”®*, © segundo momento agrupa textos percebidos como formuladores de uma © Vidal e Souza, C. op.cit, p19 ® Vidal e Souza, C. op eft, p. 25, © vidal e Souza, C. op.cit. p. 25. Vidal ¢ Souza, C. op cit, p. 27 % Vidal e Souza, C. op cit, p. 32 © ais imagens, na verdade, nomeiam os itens que compe 0 primeiro capitulo do livro de Vidal ¢ Souza. 0 ‘geografia que localiza no sertdo a raiz dos problemas nacionais. Textos que proporiam um movimento civilizatério, conduzindo o desenvolvimento ¢ a civilizagao do litoral ao sertdo, neutralizando 0 atraso ¢ 0 vazio do sertio, Por fim, um terceiro momento, onde sio trazidas consideragdes sobre as fronteiras internas do pais. Indica-se o que seria 0 desdobramento do imaginario sobre o Brasil e sua construgio na nogo de fronteira em movimento, Narragdes © representagGes que indicariam a ocupagio do “vazio-sertao”, “(..) para onde corre a renovacdo econdmica e social tevada pelos pioneiros do Brasil” « Novamente reencontramos as tentagdes totalizadoras. Nao mais através de um conceito como o de “lugar antropolégico”- apeser de ressurgir nessa andlise, além das categorias espaciais, tragos que 0 caracterizam conceitualmenie -, mas sobretudo por meio dos componentes estruturais encontrados nas obras estudadas por Vidal e Souza, consideradas como narrativas miticas. Alguns deles, bem como os “temas pré-figurados que treinam 0 olhar” ao redor da categoria sertdo, poderdo ser reconhecidos adiante pelo leitor, ndio somente nos textos aqui apresentados para ampliar os significados desse termo. Também nas descrigdes ¢ analises formuladas pela dissertagdo, tanto a partir da reflexdo sobre um universo narrado e imaginado, como sobre dimensdes da pratica, da agdo ¢ do vivido, quando é dificil delimitar as fronteiras entre conteidos mi ‘espagos reais e historia As leituras seguintes tentam trazer outros sentidos ¢ outras intepretagdes sugeridas por esse nome, sertéo, Também fomecem outros pontos de vista, relatos ¢ imagens sobre o espago que situa 0 Parque Nacional Grande Sertao Veredas. A primeira delas considera, na verdade, a regio do norte mineiro (onde se inclui ‘0 noroeste aqui tratado) :“Grande Sertéo: Veredas e seus Ecossistemas”” E imporante mencionar que se trata de um trabalho escrito por integrantes de um grupo de estudos ambientais, de cardter interdisciplinar, e com sede em Montes Claros - um dos grandes centros regionais da regio. © trabalho aborda os ecossistemas que compéem o territ6rio norte mineiro e, homenageando a obra de Guimardes Rosa ¢ nela inspirando- se, passam 2 denominé-los de “Grande Sertdo: Veredas"®, Traz uma descrigéo mais “ Vidal ¢ Souza, C. op.cit. p.33. © Costa. Jodo Batista Almeida, Forrcia, Antonio Carlos; Luz, Aline. Grande Sertdo: Veredas © seus Ecossistemas. Montes Claros: Grupo de Estudos Ambientais/ GEA, 1990. mimeo ** 4 justificativa para essa inspiragao associa-se a uma realidade empirica ¢ tangivel que o romance também descreve, onde citam Paulo Rondi: *.. todas as audicias da construxdio, toda tiqueza do contedido filosofico seam apenas jogos de inteligéncia se o Sertdo de Guimaraes Rosa nao fosse também, além de simbolo, realidade viva'e concreta, com seus bichos, plantas, agentes e superstigGes admiravelmente 28 ampla do bioma do qual fazem parte tais ecossistemas - 0 Cerrado, que no Brasil abrange 2 milhdes de km2 ¢ constitui o segundo bioma em importéncia da América Latina -, composto por uma das formagSes vegetais mais antigas do Pais, ¢ funcionando como o maior dispersor de aguas da América do Sul. A regio denominada pelo autores como ecossistemas do Grande Sertdo: Veredas faz parte desse bioma e iocaliza-se mais especificamente no norte mineiro, formando uma area de aproximadamente 12 milhdes de hectares, descrita a panir de suas caracteristicas fisicas e geograficas Uma das pretensdes do trabalho 6 a de analisar as transformagées nesses ‘ecossistemas, 0 que ¢ feito principalmente através da anélise das mudangas histéricas © sécio-econdmicas no norte mineiro, Uma época marcante nesse sentido € 0 final da década de 60, sobretudo apés a instaurag3o do governo militar ¢ da criagio da SUDENE. Sio duas marcas associadas ao inicio de transformagdes esiruturais na regidio, e que trazem um novo ciclo, marcado pela expansio das relagSes capitalistas de producdo, através da implantaco de empreendimentos industriais e agroindustriais, em projetos de grande porte de pecuaria extensiva, reflorestamento (cucalipto ¢ pinus) e monoculturas (algodao, soja ¢ cana-de-agiicar) © modelo sécio-econdmico ¢ cultural que sofre esas transformagdes - tanto quanto os ecossistemas - ¢ descrito através da anilise dos sistemas de ocupagdo territorial ¢ de produgdo antes predominantes. Tal modelo, na anélise dos autores, comega a se configurar no que seria a terceira fase de ocupago espacial no norte de Minas, apés a criago de grandes fazendas®. Essa terceira fase ¢ caracterizada pela alocagio de camponeses as margens dos pequenos cursos d’agua, e proximos as chepadas existentes na regio. Uma das marcas dessa ocupagio espacial é a existéncia de areas comunais - as chapadas - que forneceriam um suplemento a reprodugdo familiar (bascada na agricultura de subsisténcia), permitindo a coleta de frutos e de plantas medicinais, a caga ¢ Areas de pastagem. O gado era oriado solto nessas areas, funcionando nessa economia sobretudo como reserva de valor. ‘Uma outra caracteristica desse modelo reside na articulagio desse sistema descritos”. cado em Costa, J. B. A: Ferreira, A.C: Laz, A, op.cit, p04 © © primeiro momento dessa ocupago seria dado pelas nagdes indigenas que ai habitavam, © suas formas particulares de apropriagao do espago/ambiente. Um segundo periodo ¢ iniciado, a partir do século XVM, com as “Entradas ¢ Bandeiras", que culmina com a funciagao de grandes fazendas - sobretudo em {és pontos que posteriormente serio transformados em centros regionais: Montes Claros, Januria ¢ Rio Pardo de Minas. 2» camponés com as grandes fazendas ¢ seus proprietérios. Porque, se por um lado ha a constituigdo de relagdes verticalizadas ¢ hierérquicas do ponto de vista econdmico politico, haveria também a conjugagao desses dois sistemas de reprodugéo, através do que 0s autores caracterizam como “principal valor cultural” desses grupos: as 1rocas & solidariedade, por intermédio das relagdes de compadrio e vizinhanga (onde a troca de favores também aparece como um dos principais instrumentos de obtengo de poder politico pelos grandes proprietarios). ‘Tal modelo, fornecido a partir da andlise da ocupagéo e dos sistemas de organizagdo da produgdo, teria se estruturado num ritmo bastante lento. ¢ possibilitado uma “auto-sustentagdo”, onde: “as duas formas de estruturagao interdependentes se articulam: a grande fazenda com seus agregados, € os camponeses com suas pequenas posses ¢ utilizagdo coletiva das chapadas, cada um, por seu lado, estruturando-se num todo econémico, ocorrendo, ainda, a conjugagao das duas””. Um outro fator importante nessa articulagto, segundo os autores, encontra-se em manifestagdes culturais através Gos inimeros festejos (sobretudo religiosos), onde seriam estabelecidas relagdes horizontais, mediante um calendario comum, a vivéncia do festejar, 0 encontro e 2 fartura - integrando as diferentes classes econémicas, Dessa forma, tal modelo parece fincionar, na andlise dos autores, como ponto de partida para a compreensio das transformagies s6cio-econdmicas que modificam os ecossistemas do norte mineiro, a partir da década de 60. Nas entrelinhas - e as vezes, explicitamente - esta também um olhar que considera 0 antigo modelo, tradicional, como mais proximo e integrado aos ecossistemas descritos O referido texto é interessante aqui por varios motivos. Um deles encontra-se na descrigao desse modelo de ocupagéo que, conforme veré 0 leitor nos capitulos seguintes, traz uma série de correspondéncias com 2 vida dos moradores do Parque Nacional Grande Sertéio: Veredas. Outro, numa dimensio mais analitica, esta na confluéncia de um olhar sobre a regio (tanto da perspectiva social quanto ambiental) com um olhar sobre a obra de Guimardes Rosa. Tal confluéncia pode ser vista em outros textos e contextos, como, por exemplo, em didlogo travado com a Funatura sobre a propria constituigo do Parque Nacional. Em 1994, visitei pela primeira vez o PARNA GSV, acompanhando 0 cientista politico Fabio Abdala que, época, realizava pesquisa de campo na regido. Um dos pontos de ” Costa, J.B, A; Ferreira, A. C.: Laz, A. op.cit, p.18 30 nosso relatorio de visita, enviado posteriormente a Funatura, criticava, em certo momento, a retirada da populagao nativa de sua area, € 0 ideal de natureza “ecocéntrico” que embasava tal ago. Para isso recorremos & obra de Rosa: “(...) Nos parece uma ironia usar de Guimaraes Rosa, e ao mesmo tempo, ignorar um elemento central em sua ‘obra ¢ seu sertdo: os homens ¢ mulheres que dele fazem parte”! ‘A resposta da Funatura ao nosso relatério considerou, de um lado, a existéncia de outras unidades de conservagio que contempiariam necessidades humanas, respondendo com outra questéo: “se formos sempre considerar que, para se criar uma unidade de conservagio de uso indireto (como parques nacionais, reservas biologicas & estagdes ecolégicas) ndo deva existir pessoas em seu interior, onde ¢ que se encontraria tal area?” Por outro lado, também recorreu a obra de Rosa para reafirmar sua posigao: “Na abordagem de Guimardes Rosa, em seu livro “Grande Sertéo: Veredas”, mais que uma descrigao da cultura, é uma impressionante imagem vivida dos ecossistemas, jamais assim interpretada. Por que nao considerar uma drea~ testemunho disto tudo? Os Gerais - que retratam o casamento cultura © meio ambiente - tm 13 milhes de hectares (ou tinham, originalmente). Por que haveriamos de sacrificar a rea do Parque, que nfo chega aos 84 mil hectares, ou cerca de apenas 0,64% deste total? Por que nfo se rebelar com toda 2 agressividade (no bom sentido) contra 0 “ecocidio” (outro neologismo, agora usado por mim) praticado pelas plamtagSes de soja, fabricagao de carvao vegetal a partir do Cerrado nativo, plantagSes de cucaliptos, fazendas sem manejo, queimadas, posseiros, falta de politicas de distribuigao de terras, desgoveros, estradas, desvios de estradas?"”. Essa resposta nao desconsiderou a importancia da cultura local, indicando, para tanto, os proprios trabalhos realizados com a comunidade - mas, reforgou também os objetivos primeiros da instituigao: “Somos uma instituig&o de conservagdo da natureza que esta tentando adequar seu trabalho as comunidades locais, conforme em varios trechos do relatorio de vocés é lembrado. Quantas instituigées existem no Brasil para cuidar da cultura? Acredito que no seriam 0, 64% de Area, que so os Gerais do GSV, "1 Abdala, Fabio de Andrade e Jacinto, Andeéa Borghi M. Relatério de visita realizada ao Parque Nacional Grande Sertdo: Veredas/ MG - Feverciro dc 1994. Campinas, mimeo, p. 16,17. °° Carta em resposta ao “Relatério de visita realizada ao Parque Nacional Grande Serio: Veredas/ MG - Fevereiro de 1994" - eviada pela Coordenaeao do Programa GSV - Funatura/ Brasilia, junho de 1994, 3 * idem, p.3e4. que podem ser culpados da ruptura ou da perda da riqueza cultural” Uma outra fala da Funatura, de outro momento, ¢ também interessante, refere-se ao periodo de criagao do Parque: “... ¢ foram muitos os esforgos da Funatura, especialmente da pessoa da Maria Teresa™, para que esse parque fosse criado (...) O Grande Sertao teve um parto dificil, mas enfim o Sarney™... apelou-se a caracteristica dele ser escritor e tal “olha, 0 Guimarties Rosa e ial..”, (..) € a justificativa que se tinha da importéncia ambiental daquela area, entéo 0 parque foi criado, isso foi em 39.7 Ao trazer essas diferentes falas que interpretam a regidio, os ecossistemas, 0 parque nacional, a cultura local, a luz de diferentes principios e objetivos, trazem-se também interpretagdes da obra de Rosa, e de um mundo de ficgo descrito ¢ imaginado por ele, A utilizagdo dessas diferentes bases na argumentacdo talvez pudesse ser vista como certa incoeréncia, Ou, ao invés disso, como uma tenséo entre um mundo empirico © outro imaginado - tensio presente na propria obra do autor, ou na propria representagao mais ampla do sertao. Essas duas tiltimas afirmagdes, na verdade, sio idéias desenvolvidas em maior profindidade por alguns autores, como Galvao™, Schenttino” e Sena” © trabalho de Galvdo, por exemplo, na area da critica literaria, encontra uma ambigidade na obra de Rosa, que interpreta como principio organizador do romance, € que © atravessa em todos os seus niveis. Prope-se, a partir dai, a descobrir “em que niveis da composig&o literdria se detecta esta ambigtidade instauradora™', Partindo dessa questo, cla tenta analisé-la na matéria do romance, que se desdobra em duas: @ idem, p. 4 “ Maria Teresa Pédua ¢ presidente da Funatura, Treta-se também de uma das figuras mais importantes do ambientalismo brasileiro, tendo dirigido o Depto, de Parques do TBDF, wabathado na formulagio do primeiro plano do SNUC, e também presidido 0 Tama, 6 José Samney, que assinou o decreto presidencial que cria o Parque Nacional Grande Sertio: Veredas ” Enrevista com coordenadora do programa GSV e coordenadora de wabalhos de Campo! Programa GSV. Brasilia, sede da Fumatura, em noverbro de 1996, ® Gatulio, Walnice Nogueira, As Formas do Falso. Sto Paulo: Ed, Perspectiva., 1972 Schenttino, Marco Paullo Frées. Espazos do Sertdo. Brasilia, 1995, Disscrtagao de Mestrado, Programa de Pés-Graduago em Antropologia/ Instituto de Ciéncias Humanas/Depto, de Antropologia/UNB © Sena, Mana C4 categoria sertéo: um exercicio de tmaginagdo antropoldgica. Brasil, 1986. Anteprojeto elaborado para o exame de Doutorado em Antropologia Social e apresentado ao Dept. de ‘Antropologia da Universidade de Brasilia. mimeo. * Galvao, WN, op.cit, p. 12 32 “materia historicamente dada”®, e a “matéria imaginada” da ficgdo ¢ da narrativa de Riobaldo Tatarana. Com esse objetivo, Galvéo percorre também o sertdo representado e descrito por Euclides da Cunha, por Oliveira Vianna, por Camara Cascudo, pelos romances de Cordel. Um dos pontos em que encontra aquela ambigtidade, por exemplo, esta no “tratamento de uma matéria como essa em termos de novela de cavalaria”, que associa a dois fatores:“Um, a sobrevivéncia verificével do imaginario medieval no sertéo brasileiro, seja na tradigo oral, seja no romance de cordel. Outro, o pendor irresistivel que tém os lettados brasileiros, dentro e fora da ficgdo, para representar 0 serto como um universo feudal. © primeiro fiundamenta, portanto, a verossimilhanga, o segundo entra em tenso com aquele por veicular representagdes que servem a propésitos de dominagao. Novamente, aqui, a ambiguidade”™ A ambigilidade, num plano externo ao romance (mas que também informa sua composigao ¢ leitura), vai sendo repassada em outros dominios, como no olhar ora de admiracao, ora de repulsa, de Euclides da Cunha sobre os “sertanejos em geral”, e sobre “sertanejos concretos"™, Ou através de outros autores, que se debrugam sobre as insituigGes, leis, e costumes, os desmandos e aparente anarquia do universo social do sorto. O camino seguido na primeira parte de seu livro percorre, portanto, descrigdes andlises dessa “matéria historicamente dada”, centrando-se também em elementos que compie 0 Grande Sertio: Veredas, ¢ que norteardo as andlises propostas na segunda ¢ terceira partes (um olhar que agora parte da “matéria imaginada”)™ “A condicao jagunga”, discorre sobre a violéncia privada ¢ organizada, a let das chefias wriedade das familias senhoriais, 0 banditismo. Conduzindo A primeira parte, e dos coronéis, a sol também o leitor ao cenario dessas praticas historicas e tradicionais do sertio, Galvao nos introduz uma definigdo de serto e um dos elementos que a compée, o gado: © A matéria historicamente dada “é ela a matéria do sertao, com o homem pobre do meio rural brasileiro, sou estilo de vida, sua mancira de enfremtar o mondo. o sistema de dominacio vigente, a violéncia que 0 garante. E privilegiado no romance um dos aspecios desse meio, qual seja 0 cangago, com 0 jagunco ‘como sua figura central”. in Galvao, W. op.cit, p.12 © Galvio, W. op cit, pI2 * Galvao, W. op.cit. p.18 *% 0 livro ¢ composto de tés partes. Na primeira, “A condi¢ao Jagunga”, com os seguintes capitulos: “A lei ea lei do mais forte’, “o sertéo € 0 gado”, “A plebe rural”. “O init ublizado”. A segunda part, ‘chamada “A Forjadara das Formas do Faiso”, apresenta “A matéria: matéria e matéria imaginada”, € “A Iinguagem ¢ a fala". E finalmente, altima parte “o Ponteador de Opostos”, com trés capitulos: “O Jetrado: a vida passada a limpo", “O jagunco: destino preso”, 0 “O certo no incerto: o pactario” “Da-se o nome de sertéo a uma vasta ¢ indefinida 4rea do interior do Brasil, que abrange boa parte dos Estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraiba, Pemambuco, Rio Grande do Norte, Ceara, Piaui, Maranhao, Goias e ‘Mato Grosso. E o micleo central do pais. Sua continuidade é dada mais pela forma econdmica predominamte, que é a pecuéria extensiva, do que pelas caracteristicas fisicas, como tipo de solo, clima e vegetaggo. Embora uma das aparéncias do sertéo possa ser radicalmente diferente de outra nao muito distante - a caatinga séca ao lado de um iuxuriante barranco de rio, o grande sertiio rendilhado de suas veredas -, 0 conjunto deias forma o serto, que nao uniforme, antes bastante diversificado.**" A diversidade natural desse sertio ¢ sua unificagao, sobretudo através do gado, vio sendo descritos através da histéria do ocupagio econémica do serto e do proceso de expansio do capitalism. Dos pontos que chamam atengo nessa anilise, esto a figura do vaqueiro, sua relagdo com o boi e com um universo limitrofe entre natureza e cultura, ¢ um ideal de liberdade que parece associado aquela figura, onde “Neles [os vaqueiros], a percepoao dos seres naturais é parte integrante da vida, como fonte de informagiio, como fruir de companhia, como garantia de sobrevivéncia. Basta lembrat o papel importante que tem o ensino da observacao e deleite da natureza e dos bichos feitos por Diadorim 2 Riobaldo. De outro lado, cuidar do gado e receber em paga a quarta dos bezerros, encadeia o homem a possibilidade de passar de empregado a dono." ‘Nos dois illtimos capitulos dessa parte, “condigdo jagunga”, Galvo voita-se a reflexdo sobre a “plebe rural”, caracterizada ai como um grupo uniforme ¢ andnimo, cuja existéncia fisica e social se vé situada entre os limites da subsisténcia e da sobrevivéncia, Dessa caracterizaglo, decorre uma organizagio social fragil, um desapego e grande mobilidade, ¢ uma participacio no povoamento que constituia pequenos nucleos rurais, isolados entre si, e submetidos ao poder de grandes propriet Esses sto alguns dos elementos explorados por Galvao em sua feitura da turais. “mnatéria historicamente dada”, que informa a segunda parte de seu livro - numa anélise agora interior da obra, voltada & composicao literdria, a estrutura narrativa, e a0 mundo ficcional propriamente dito. No entanto, mesmo naquela primeira parte, 0 universo descrito assim 0 € a partir de referéncias importantes aquela obra ficcional. Sua descri¢do da estrumra de poder assentada no poder de chefes rurais ¢ seus jagungos, os * Gaivdo, W. op.it. p. 26 * Galvdo, W. op.cit p. 34 cenarios que percorrem, a pecudria como valor econdmico, social ¢ cultural, @ “plebe rural” pobre, andnima © submissa - tudo isso desemboca no olhar que posteriormente desenvolvera sobre a obra - 0 que, na verdade, ela j4 aponta na introdugao, que trata- se de analisar onde radica a ambigitidade constituidora da obra e, ao olhar sua matéria, também nela encontra esses elementos Apesar de abordar a “matéria historicamente dada”, sua anilise guarda uma imprecisiéo temporal, marcada por imagens difusas, que ora parecem tratar-se dos tempos de colénia, ora tempos de império, ora de nascente repiiblica, como se também ela propria reproduzisse a imprecisdo deliberada que percebe em Rosa". A tensGo entre mundos reais e imaginados novamente surge aqui, percebida na obra que a autora analisa, e também presente em seu proprio olhar Trazendo essa leitura, traz-se também a dificuldade de abordar genericamente esse universo do chamado sertdo, ou mais especificamente do sertio do norte mineiro, sem revelar também a condigao “ficcional” ¢ imaginada que 0 envolve, que o transforma e que o recria Schenttino trabalha mais diretamente com essa questo, ao buscar “os fundamentos simbélicos que informam a construgZo do sertio enquanto espaco- paisagem”®, Para isso, analisa diferentes autores do pensamento social brasileiro e as definigdes mais recorrentes de sertao, Uma de suas conclusbes estabelece que: “© campo discursive sobre o sertio é caracterizado por dois niveis que se comunicam, e que dio a tessitura dos discursos. O nivel de uma empiria ecolégica, social, politica e cultural, que informa outro nivel, que por sua vez é imaginado e idealizado. Acredito que a arbitrariedade das representagSes do sertao tem forte relago com sua existéncia empirica. Essa existéncia empirica funciona como estimulo criativo para se imaginar 0 sertio. Walnice Nogueira Galvio, analisando Grande Serto: Veredas fala desse estimuto criativo dentro do romance: ‘Se, de um lado, seu romance € 0 mais profundo e mais completo estudo feito até hoje sobre a plebe rural brasileira, por outro lado também é a mais profunda e completa idealizagiio desta mesma plebe’.””” Mediante a utilizaclo e interpretaciio dos conceitos de espago e paisagem”’, “Mas 0 solerte escnitor de que me ocupo dissimula a Historia, para melhor desvendé-la, Nao data seu cnrédo, mas finge dati-lo; ¢ téda vez. que o leitor depara com uma data, cla é contradita peta imprecisao”. in Calvo, W. op ct, p. 63 Schenmino, MP. op.cit,p.1 » Schenttino, MP. op.cit. p. 3 *(..) 0 conceito de paisagem aqui adotado relaciona a realidads com a sua representagdo, ou seja, a paisagem ¢ entendida como wma construcdo que relaciona os niveis do simbélico e do empirico” (..) 35 Schenttino percebe a articulagdo desses dois niveis - empirico e simbélico - , e nela explora seu tema, Reinterpreta também uma das definigdes mais recorrentes de sertao, a que se da através da contraposi¢&o ao litoral. Primeiro, o faz multipticando seus sentidos geograficos, onde o sertao surge em regides tio distintas entre si como a zona serrana de Santa Catarina, a Mata Atlantica, a regio amazénica. Buscando uma unidade entre essa indeterminagio geogrifica e diversidade natural, recorre ao que seriam representagdes comuns que a envolvem, associadas ao espaco fisico, a0 povo, a sociedade e a cultura, numa colagem de diferentes imagens - que nos indicam, por exemplo, séries de arcaismos, ¢ a intensa presenga do mato, ou da relago com o mesmo, Sua leitura daqueles conceitos (espago e paisagem) conduz também a um novo par de opostos, definindo o sertio nao mais na oposigao ao litoral, mas 4 civilizagéo: “Sertdes, portanto, sfo geografias imaginadas sem se referirem a uma mesma base fisico-natural, mas a diferentes meios que se identificam pela caréncia de civilizago. As condigdes que determinam um sertio podem se alterar, transformando um sertfio em nio-sertio. A fronteira da civilizagio, entendida como o limite do avango ¢ da expansio do espaco civilizado (espago estriado, como veremos) ¢ a principal forca de transformagio do sertfo”"*(p. 12) A idéia que estrutura todo o seu trabalho baseia-se em outra reinterpretagdo - @ dos conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guatarri, de espagos estriados ¢ lisos, associados a dois tipos de organizagao social e politica. O primeiro relaciona-se “[a] as organizagées decorrentes do aparato do estado: os érgdos de poder, a propriedade privada, ¢ a organizagdo do trabalho”, que caracterizam um espayo que “se mede para ‘ocupar”, como o da civilizagio, Jé 0 espago liso refere-se “as organizagées segmentarias, exteriores ao aparato de estado e continuamente conspiradoras contra o seu surgimento”, As imagens realgadas aqui sio a da diversidade, a da heterogencidade, ¢a da descentralidade, num espaco “ocupado sem se medir”, aberto. E, por analogia, considera esse 0 tipo caracteristico de organizagao social atribuida ao sertio do So Francisco”. Sheenttino volta-se entéo ao que chama de “paisagens etnogréficas”, onde do alto © médio vales do Rio Sio Francisco e dos concentra seu olhar para a reg “Bntendo espago como conjuntos de significados, procuzidos a partir de experiéucias espaciais, constimuidoras de sentidos. Muitos desses significados podem ser organizados e expressos através das paisagens”, Schenttino, MP, op cit, respectivamente p46. ® Schenttino, M.P.. op.cit, p12 % Schenttino, MP, op.cit, p.14 36 planaitos centrais, denominada por ele Sertéo dos Gerais ou Sertio Central. Nao por acaso (novamente) , a definigao que traz dos Gerais vem de Guimaraes Rosa, em correspondéncia com Edoardo Bizatti “Vocé sabe, deste grande parte de Minas Gerais (Oeste e sobretudo Noroeste), aparecem os “campos gerais”, ou “gerais” ~ paisagem geogrifica que se estende, pelo Oeste da Bahia, e Goias (onde a palavra vira feminina: as gerais), até 0 Piaui ¢ a0 Maranhio.”” C) “O que caracteriza esses Gerais s40 as Chapadas (planaltos, amplas eievagdes de terreno, chatas, as vezes serras mais ou menos tabulares) ¢ os chapaddes (grandes imensas chapadas, is vezes séries de chapadas). Sio terra péssima, varios tipos sobrepostos de arenito, infértil (Brasilia é uma tipica chapada .) 1% poroso, que, quando bate chuva, nfo se forma lama nem se véem enxurradas, @ agua se infiltra, rapida, sem deixar vestigios, nem se vé, logo depois que choveu A vegetagdo é a do cerrado: arvorezinhas tortas, baixas, enfesadas (s0 persistem porque tém longuissimas raizes verticais, pivotantes, que mergutham a incriveis profundidades). Eo capim, ali, € aspero, de péssima qualidade, que, no reverdecer, no tempo-das-4guas, cresce incrustado de areia, de partioulas de silica, como se fosse vidro moido: e adoece por isso, perigosamente, o gado quando 0 come. Arvores, arbustos e mé relva, s40, nas chapadas, de um verde comum, feio ¢ monétono"™ 0 Sertéo dos Gerais ¢ desdobrado em outros espagos simbélicos: “espago da diversidade infinita”, “espago da ambignidade”, “espago do deslocamento”, “espago do entrelagamento”. E sto sobretudo atribuigées tradicionais, lidas no pensamento social brasileiro, em viajantes e literatos ,que fimdamentam sua andlise ¢ sua classificacio desse espago Algumas so imagens indicadas pelos outros autores que aqui tratei, como a autonomia de um poder organizado localmente, ou peculiaridades da ocupagio do espaco pelos “povoadores tradicionais inseridos nesta paisagem, indios ¢ sertanejos, [que] so peculiares em acuparem o espago sem ‘estrié-lo’, ou seja, sem efetuarem rupturas na paisagem que demarque separagdo, divisio ou oposigao entre as formas materiais de sua ocupagao ¢ 0 meio ambiente”**. Também aqui se repete 2 ambiguidade, vista no ideal igualitario que torna compadres 0 fazendeiro e seu vaqueito, onde se estabelece trocas reciprocas - sem colocar em cheque, entretanto, as diferengas de poder ai representadas, Schenttino a indica também no carster do deslocamento dos sertanejos; sua grande mobilidade © aparente liberdade seriam sobretdo motivadas por fatores % cf Schenttino, M. P, op.cit. p. 27 © Schenttino, MP. op-cit, p21 7 sécio-politicos, que 0 tomam um “sujeito a ser desalojado a qualquer hora, sem explicagées ou direitos” Mas, onde os deslocamento no deixam também de aparecer como trago cultural, e com especificidades proprias”” ‘As imagens e os espagos-paisagens percorridos por Shenttino revelam aspectos representapses também da regio em que 0 Parque se encontra, classificados em seu exercicio de abstrago, que aproxima esse universo a complexidade dos conceitos de Deleuze ¢ Guattarri Outro trabalho que desloca os sentidos do termo rumo a uma dimensdo mais abstrata é 0 de Sena. Apesar de ser um trabalho breve, e ndo ter um cardter conclusive (trata-se de um ante-projeto de pesquisa), ele aponta caminhos interessantes. Ao estudar a categoria sertéo, a autora a aproxima do hau dos maori, sendo vista, menos como categoria sobre a qual o nativo pensa, e mais como uma coisa através do qual ele pensa Disso, decorre que "(..) a questio da definigdo do termo como a propria percepgio de se estar perante uma representagdo coletiva privilegiada s6 se coloca para o estranho dado que, a despeito dos miiltiplos significados, o sertio é algo em que os brasileiros habitam”?* ‘A autora trabalha com o pressuposto da multiplicidade que o termo integra, sua simultanea singularidade e pluralidade - indicando-o, também, como representagio coletiva e, espago real e habitado. O ponto de partida para pensar a categoria sertéo, que utiliza como referéncia etnogréfica, sio tés clissicos da literatura brasileira considerados como expresso legitima da reflexdo sobre o pais seus sertdes: Euclides da Cunha (Os Sertées), Bernardo Elis (O Tronco) e Guimaries Rosa (Grande Sertao: Veredas). © trabalho de Sena, através desses autores, ¢ das “teorias nativas” que produzem, conduz a caracterizagdo do termo como “categoria inconsciente do entendimento”, nos moldes de Mauss, e da leitura que Lévi-Strauss faz do autor, indicando o “excedente de significagao” que o termo traz em si Sua proposta, a partir dai, é buscar algo da historia social dessa categoria, que comega a apontar nos tempos da Primeira Repiblica, ¢ das tentativas de unificagio * Darey Ribeiro citado em Shenttino, M. P., op.cit.p. 47 “...) Tais fluxos nfo se dirigem a pontos detcrminados, mas a direebes, uma esia¢do de caga, uma area de coleta ou o lugar onde se encontre trabalho, enfim, a um ramo que se constrdi no caminho, indeterminado a priori, construido passo a passo entre as indeterminagdes dos obsticulas, dos desvios € das facilidades, trangado no inesperado, sobre o qual se problematiza contextualmente © cujas respostas sio dads localmente: “um giro-o-giro no vago dos gerais.", Schenttino, MP. op.cit,p. 48 * Sema, MC. opcit. p+ 38 politica do pais, junto com a busca por uma imagem unificadora. Serio passa a ser lido como um dos caracteres formadores de uma identidade nacional, leitura que coincide com 0 trabalho de Vidal e Souza, citado no inicio desse item. Sena, porém, como Schettino, contrapde-se a viso sobre 0 termo que o toma nos sentidos da representagao dualista litoral/sertdo, e 0 aponta como “uma categoria necesséria ¢ principio diretriz subjacente do proceso de constituigao de nossa nacionalidade”™, Fato é que poderiamos ficar horas ¢ paginas desfiando esse mundo de significagdes € fontes, recorrer a tantos outros autores que descrevem e interpretam esses mundos, reais ¢ imaginados, em tempos ¢ propésitos diferentes. Poderiamos ter introduzido esse universo por outra via, como o relato de Richard Burton, ¢ sua viagem em meados do século XIX, descendo o rio So Francisco, passando por pontos. proximos a rea do Parque, e importantes para sua historia, A definigao de Burton sobre © sertdo, por exemplo, tem fundamento etmologico, onde associa o termo a uma “contrago do aumetativo desert, e muito usada na Aifica e na América do Sul”! jor Também Saint-Hillaire associa o termo ao de deserto'””, e em sua terceira viagem descreve a parte do sertéo mais préxima ao presente trabalho, 0 oeste do Sao Francisco Seu relato € igualmente repleto de impresses sobre a paisagem, sobre os habitos costumes dos mineiros e sertancjos que vai encontrando pelo caminho, e por seus préprios sentimentos ante as “virtudes” e “embrutecimentos” com que se depara. % Sena, MC. op.cit. p10. 2° referéncia é sobretudo 30s relatos de sua viegem no segundo semestre de 1867. nos capitulos referentes & passagem pelo Rio Sto Francisco; ¢ de Guaicui a Sdo Romao: de Séo Roméo a Januaria, de Januaria a Carinhanha, ¢ de Carinhanha a Senhor Bom Jesus da Lapa, Sao pontos tangenciais a regio do Parque, que se configuram entretanto como centros regicnais - jé naqueles tempos, ¢ atalmente, Bom Jesus da Lapa, no Estado da Bahia ¢, por exemplo, um ponto tradicional de peregrinaedo ¢ romarias para ‘0s moradores da regio. Daqueles tempos diz Burton’ “Esse centro de romaria goza da mais elevada reputagao: para visité-lo, vém devotos de todas as direcdes ¢ das maiores distmcias, mesmo do Piawt. As vve7es, Iai uma multidao de 400 visitantes..”, in Burton, R. Viagens aos Planattos do Brasil, Belo Horizonte: Ed. Iatiaia, 1983. p. 233 ef Schenttino, M. P, op.cit, p. $4 \ “0 nome de Sertéo ou Deserto nio designa una divisdo politica de territério; nfo indica senfo uma cespécic vaga ¢ Convencional determinada pela natureza particular do teritério e, principalmente, pela ‘escasse? de popilagao. O sertio compreende, nas Minas, a hacia do Sto Francisco e dos seus afluentes, ¢ se estende desde a cadeia que continua a Serra ds Mantiqueira ou, pelo menos, quase a partir dessa cadcia ‘até os limites ocidentais da provincia Abarea, a0 sul, uma pequena parte das comarcas situadas desde Sabard e do Serro Frio, ¢ finalmente, a oeste, toda a comarca de Paracatt, situada ao ocidente do Sio Francisco. Bova imensa regio constitu: assim cerca da metade da Provincia de Minas, ¢ se estende ‘aproximadamente, desde os 13°até os 21° de latitude; mas néo se deve pensar que o serio se testrinja & Provincia de Minas Gerais, prolonga-se pelas da Bahia ¢ Pernambuco, ¢ a Provincia de Goids, pela qual se continna, no ela toda senio um imenso deserto.” As viagens referem-se ao petiodo entre 1816 ¢ 1822. Ssint-Hillaie, A. Viagens pelas Provincias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte, Fd Iattata/ Ed, da Universidade de Sao Paulo, 1975. p. 307 39 0 tao mencionado Rosa seria outro caminho, multiplo e denso, com os tantos sertées que enftenta ¢ por onde conduz seu leitor. Contrapondo a visio pessoal de sua ‘obra - que chega mesmo @ chamar, no caso de GSV, de “auto-biografia irracional”, numa unido de “fic¢io potiica e realidade” -, a extrema objetividade presente no seu trabalho de criagao, ao jogo entre universalidade ¢ individualidade, multiplicam-se os sertdes descritos ¢ imaginados, tanto quanto as interpretagdes possiveis. Viggiano, por exemplo, ao constatar a “realidade” dos top6nimos mencionados no livro, percorre 0 Norte de Minas, Sudoeste de Bahia ¢ Sudeste de Goiis, para reencontrar 0 rastro de Riobaldo'™ Ou Valadares que, em seu levantamento sobre os personagens da obra, calcula através deles ¢ dos dados histéricos mencionados no livro, a época ¢ o tempo em que a historia teria se desenrolado, Entre os fatos e personagens citados, ainda que superficialmente, surgem figuras histéricas, tanto da historia nacional, como Prestes, quanto da regional: Maria da Cruz, Anténio Dé, Major Alcides do Amaral." Igualmente, encontramos leituras voltadas a densidade da experiéncia narrativa e 205 vivida, e a estrutura metafisica da obra’, outras que se utilizam de uma perspectiva historica ¢ sociologica (Galvao), ou mesmo a leitura ambiental da Funatura. O préprio autor, aliés, indica uma dirego consciente dessa coexisténcia de elementos ¢, portanto, de leituras possiveis: “(..) quero escrever livros que depois de amanh3 no deixem de ser legiveis. Por isso acrescentei a sintese existente a minha propria sintese, isto ¢, inclui em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidades de expressio.”!°° A intengao aqui, também permeada por ambighidades, se por um lado foi a de acrescentar informagdes para uma crescente significagao sobre o espago onde se situa 0 Parque, ampliando © quadro em que pode estar inserido, foi também a de possibilitar a subverso desse olhar genérico sobre ele. Por varios motivos, como jé nos lembra Riobaldo: “Uma coisa € por idéias arranjadas, outra é lidar com pais de pessoas, de came e sangue, de mil e tantas misérias..”” Se muitas das afirmagSes que percorti "© Viggiano, Alan. O Itinerdrio de Riobaldo Tatarana. Rio de Janeiro: J. Olympio, Brasitia; INL, 1978, ™ Valadares, Napoledo, Os personagens de Grande Sertao: Veredas. Brasilia: Ed, Andrequicé, 1982. "5 Albergaria, Consuelo. Bruxo da Lingwagem no Grande Sertdo Veredas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 197 5 As citagdes desse parigrafo referem-sc a entrevista concedida por Guimardes Rosa 4 Gunter Lorenz, in Didilogo com a América Latina - Panorama de uma literatura do futuro, Sao Paulo: Editora Pedagégica e Universitaria Lda, 1973, pp. 352. 326 €338, respectivamente. "Rosa, Guimaries, op cit, p. 15, 40 sobre 0(s) sertio(Ges) fazem sentido e tém validade para o mundo daqueles que habitam 0 PARNA GSV, outras 0 estereotipam, nfo fazem sentido no contexto local e sequer nos dio a chance de pensi-lo e entendé-lo de formas diferentes. De fato, 2 pesquisa ndo foi direcionada a um questionamento sobre significados locais do termo'’, embora, algumas vezes, ele tenha se insinuado. Certa vez, um guarda-parque me perguntou porque eu achava que o Parque Nacional tinha aquele nome. Respondi pelo que achava Gbvio, pela homenagem ao escritor e sua obra, O guarda, por sua vez, munca tinha ouvido falar do eseritor, ou de seu livro, e sua resposta me fez, ao invés de pensar nas letras, olhar para a paisagem que nos cercava, Portanto, a reflexio desenvolvida aqui configura-se mais como tentativa de estabelecer um didlogo com esses autores ¢ com significados que fornecem aos termos serio e Grande Serio: Veredas. Ela compie, também, como a primeira parte desse capitulo, um quadro de referéncias mais amplas e genéricas para o estudo do “epicentro” dessa dissertagdo, o PARNA GSV. Isso possibilita imaginar um parque que & também criado, envolvido e disputado por simbolos, idealizagdes e ficgdes. Outra coisa é pensar nesse lugar, a partir de falas, experiéncias e reflexdes daqueles que 0 habitam - objetivo que os préximos capitulos pretendem alcangar. 2 Um trabalho que percorre esse caminho é o desenvolvido por Brandéo, na regiéo da Serra do Mar, no municipio de So Luis do Paraitinga/ SP. Numa andlise da légica social dos temntérios do cotidiano, investiga-se, entre 0s camponeses que ai vivem, os significados de espacas como 0 serio, 0 bairro, a vila © a cidade, Também se percebe, através das transformagées sécio-cconémicas que a regio vive, a transformagio desses sigmificades ¢ o deslocamento espacial, por exemplo, de tertérios nomeados sertGes, in Brando, Carlos Rodrigues. Do sertdo a cidade: os terntérios da vida ¢ do imaginario do ‘camponés tradicional, in Brando, C. B e Mesquita, Z.(organizadores) Tervitérias do Cotidiano ~ wma introdueéo a novos othares e experiéneias. Porto Alegre/Santa Cruz do Sul: Ed, Universidade! UFRGS! Fa. Universidade de Santa Cruz do Su/UNISC, 1995. pp. 155-177 CAPITULO PERDENDO-SE PELO PARQUE: MAPAS, MEMORIAS E LUGARES PRATICADOS a2 1, Uma primeira apresentacdo: sobre lugares, pessoas e rios Como antes indicado, o Parque Nacional Grande Serto Veredas possui ume area de aproximadameme 84.000 ha, territério esse que se coloca entre uma dupla encruzilhada. Localiza-se em areas do Estado de Minas Gerais, limita-se a0 norte com a Bahia, pelo rio Carinhanha, relativamente proximo ao limite do Estado de Goiis, situando-se no entroncamento de trés municipios mineiros - Arinos, Januaria e Formoso Segundo dados informais do IBAMA local (em margo de 1997), Formoso possui cerca de 70% da rea do Parque; Arinos, cerca de 5%, ¢ os 25% restantes fazem parte de Januaria. Entretanto, quando de minha ultima visita & regio, o IBAMA ¢ as prefeituras dos municipios de Formoso, Januaria e da recém-fundada Chapada Gaticha estavam em negociagdes no sentido de refazer os limites dos municipios dentro do Parque! Em entrevista” com a chefia do PARNA GSV, varios pontos foram apontados, justificando essa reorganizagiio espacial e a incorporagaio de areas daqueles dois municipios pela Chapada Gaticha. O principal motivo estaria ligado ao fato de a Chapada Gaiicha ser 0 municipio que mais mantém um “relacionamento” com o Parque, por sera sede de municipio mais proxima, cerca de 5 km, quando as outras areas urbanas esto ha pelo menos 70 Km, Ainda a partir dessa entrevista, indicou-se inclusive que a Chapada Gaticha situa-se na area de entorno do parque, 10 km previstos pelo CONAMA (e é também sede do IBAMA local). Além da proximidade espacial e da incluso na area do entomo, ocorre também a importéncia dessa drea urbana para a populagdo do Parque, pois, mesmo aqueles moradores de areas de outros municipios, acabam recorrendo a Chapada Gaiicha na busca de servigos como os de educagdo, satide, ou do comércio local, por exemplo, * Segundo dados preliminares do IBGE, na contagean de Populagdo ein 1996, Januéria possui 64,215, habitantes, Arinos 16.977, Formoso 6.260, e a Chapada Gaticha 4.784 (fonte’ Diretoria de Pesquisas ~ DPE/ Dept. de Populagdo ¢ Indicadores Sociais -DEPIS - tabela’ populacdo residente por sexo, segundo municipio- MG/ IBGE). Entretanto, em conversa com a prefeinira da Chapada Gaticha, em margo de 1997, os dados referentes & Chapada Gaicha eram vontestados, ¢ a prefeitura indicava um mimero em torne de 9000 pessoas. Segundo entendi, essa contestagio se fazia em fungfo de certas areas de outros ‘munictpios (como Formoso e Jannaria) estarem em negociagao entre os municipios, para serem ‘formaimente incluidas como territério da Chapada Gaticha - 4 que, de fato, os vinculos da popnlagao dessas drcas seria malores com esta Whima, do que com seus préprios municlpios, Indicaram-s, inclusive, territérios de Formoso, cuja existéncia de populagSes era desconhecida por parte dessa prefemura ? Entrevista realizada em margo de 1997, na sede do IBAMA/ Pama GSV, no municipio da Chapada Gavicha, a Jé que mencionamos a populagdo do Parque - nativa ou tradicional - é hora de comegar a falar sobre ela. Até 0 momento, nfo existe um célculo exato de quantas pessoas vivem em seus limites, Segundo uma reportagem sobre o Parque, publicada na re 'a Caminhos da Terra, seriam 700 pessoas que moram dentro de seus limites: “mais de cem familias que moram em casas simples de telhado feito com palha de buriti, praticamente isolados no meio do sertéo. Para chegar a um posto de satide ou um armazém, por exemplo, eles tém que ‘torar’ dezenas de quilémetros , a pé, a cavalo ou em carro de boi até o povoado mais préximo, a Vila dos Gatichos.”? Informalmente, tanto 0 IBAMA quanto a Funatura, indicam “em torno de 100 familias”. O tnico levantamento mais sistematizado feito nesse sentido, data de 1991, quando foram contadas 97 familias’. nee Se lembrarmos do modefo de ocupacdo espacial do norte mineiro, mencionado no capitulo anterior’, também aqui encontramos pequenos agricultores, residindo Prdximos aos cursos de agua, utilizando-se do cerrados e suas varies formacdes® como “areas comunais”, onde se cria o gado solto, coletam-se frutos e plantas medicinais e, antes da criagio do Parque Nacional, costumava-se cagar A principal base econémica dessa populagdo é a agricultura, sendo as culturas mais frequentes as do arroz, feijao, milho e mandioca, cultivadas em areas descontinuas, * ver Capela Jr, Afonso. “O Grande Sertao”, in Os Caminhos da Terra. Ano 4, no. 9, Edigho 41, setembro de 1995. p 70 * Trata-se do trabalho Conscientizagiia Ambiental das Comunidades da Regido do Parque Nacional GSP - Questionirio 01° caracterizacdo das comunidades do interior do Parque Nacional GSW’ Coordenadora; Lourdes M, Ferreira: equipe: Luciano F. Ribeiro, Marcio S, Boitex, Suelma R. Silva Brasilia, 1991/92. FUNATURA. mimeo. O material consiste de 97 questionarios aplicados na regido, gue tazem um amplo campo de imformagées composicio da “familia”, origens das pessoas, escolaridade, simagao fundiaria, ¢ até o uso de plantas natives como medicamentos. Os questionirios ado chegaram a ser tabalhados posteriormentc ¢, por trazet questdes as vezes genéricas, mnitos dos dados permanecem incompletos e ambiguos - alm de se considerar a recusa de virios moradores em ‘esponder as perguntas. De qualquer forma, trata-se de um material interessante e que pode trazer informagées relevantes se chegar a ser explorado adequadamente. Quanto as 97 familias, esse valor é problematizivel, sobremdo por confundir-sc no questiondrio grupos domésticos ou unidades técnicas (grupos de pessoas vinculados por residéncia, consumo, trocas e trabalho) e diferentes tipos de familia (Grupo de pessoa vinculadas por parentesco). Tive um contato répido com esse material, e calculei, a partir dele, um niimero de 463 pessoas. Outro material que pode fornecsr dados correlatos a esse € Demarcagao do Parque Nacional Grande Sertao Veredas - Laudos de Vistoria., IBAMA, FUNATURA, ‘Topocart. 1992 * Costa, Jodo Batista A; Ferreira, Anténio Carlos; Luz. Aline. op cit “ Entre as varias formagées vegetais caractersticas dos cerrados ¢ encomtzadas na trea do Parque est4o: 0 cerrado, campo cerrado, campo sujo, campo limpo e sujo, 0 carrasco, as veredas. 44 © a distancias relativas do espago da casa, Sobretudo nas plantagdes de arroz, muitos se utilizam da técnica de construgao de “esgotos”, estreitos canais construidos a partir das veredas, para a irrigacao das areas cultivadas, Na maioria dos casos, trata-se de culturas destinadas ao consumo de subsisténcia - ao contrério do passado ainda recente, em que 0 excedente era vendido em cidades, como Januéria, ou em feiras ¢ festas anuais - como a de Santo Anténio, na Serra das Araras’ -, onde também se compravam mantimentos como o sal, agiicar ¢ furinha. Mais préximo do espago da casa e do terreiro, encontram- se em geral pequenas hortas, cultivadas nos brejos, ou seja, em areas que margeiam 0 curso de agua mais proximo. Também préximo ao espago doméstico, criam-se pequenos animais, sobretudo galinhas, para 0 consumo familiar. A pecuéria, como mencionado, é uma das principais atividades desenvolvidas, havendo criagSes sobretudo de bovinos, equinos suinos. Porém, deve-se lembrar que a criago de animais também funciona como reserva de valor, sendo uma atividade desenvolvida sobretudo por aqueles em melhor situaglo econdmica, mostranda-se como simbolo de “riqueza”. A nogao de riqueza, e mesmo a de “qualidade de vida”, nao devem ser entendidas por padres como os de consumo, ou lidas por indices como “conforto”, variéveis que fazem mais sentido num universo urbano, mas no nesse contexto. A “tiqueza” especiticamente relaciona-se sobretudo & produgio agropastoril ¢ aos bens de que um dia, em caso de necessidade, poder se dispor - como 0 gado. No entanto, ela no diferencia radicalmente o modo de viver, os habitos e os costumes entre as pessoas. ‘As varias familias encontram-se espalhadas e dispersas pelo Parque Aparentemente, nao ha “comunidades”, ou povoados. Existe, porém, uma organizacdo e um padrio de ocupagéo espacial, que trazem muitas semelhangas com os “baitros rurais”’. Ou seja, existe uma unidade de agrupamento que constitui grupos rurais de vizinhanga, ligados pelo sentimento de localidade, por lagos de parentesco, pelo trabalho ° Trata-se da Festa de Santo Anténio, no Distrito da Setra das Araras, agora pertencente 20 municipio da ‘Chapada Gaticha (antes, parte do municipie de Sao Francisco). E um dos algomerados mais antigos da regido proxima ao Parque, tendo por volia de 170 anos. A fesia de Santo Amténio, na semana de 13 de Junho, é seu grande acomtetimento, reunindo pessoas que ver de varios pontos do Norte de Minas Gerais, Goids, Distrito Federal, Bahia, ¢ mesmo de So Panlo, * Sobre o conceito de “bairro rural”, ver Brando, C. R. “Do sertdo a cidade: os territories da vida e do imaginirio do camponés tradicional” in Mesquita, 2. ¢ Brandio, C.B. Territérios do Cotidiano - una ntrodugdo a novos olhares e experiéncias. Porto Alegre! Santa Cruz do Sul: Ed. Universidade! UFRGS/ Ed, Universidade Santa Cruz. do Sul/ UNISC, 1995. pp. 155-177, onde o autor faz uma breve revisdo sobre o mesmo, Ver também Queiroz, Maria Isaura Pereira de. “O sitiante tradicional e a percepeao da espago”, in O Campesinato Brasilewro, Ed Vores: Petropolis. 1973. pp.48-71 8 da terra, por trocas e reciprocidades. Aqui também valem as palavras de Candido sobre o universo caipira: “(..) As habitagdes podem estar de tal modo afastadas que o observador muitas vezes ndo discemne, nas casas isoladas que topa certos intervalos, a unidade que as congrega”. ‘Nao sdo, entretanto, como no caso desse tipo de organizacto em areas rurais paulistas, chamados de bairros. © olhar estrangeiro que vé a auséncia de organizagao, reforgando 0 isolamento € a distancia, engana-se facilmente, como indicou um comentario de Seu Messias, morador do Parque, sobre o Batista, O Batista é uma localidade situada a sudoeste do Parque, parte do municipio de Arinos. Tem como um de seus limites a localidade de Maria Ant pertencente a0 municipio de Formoso. A divisa ¢ feita na linha de uma estrada: de um lado a escola no Batista, do outro a venda de Seu Elias na Maria Antonia Na época da construczo da escola, Seu Messias contou sobre alguém de fora que teria ido visitar a obra, ¢ teria se espantado com sua construgo no meio do nada, Para quem seria aquela escola, se ali ndio havia ninguém? Nao me lembro exatamente das palavras de seu Messias, mas relacionava-se a surpresa da mesma pessoa ao ouvir tantos cantos de galos pela manh’, que no eram poucos - a constatago de que sim, ali morava muita gente, embora niio fosse assim tAo facil de se ver. Na verdade, nfo cheguei a ouvir nenhum termo especifico para o tipo de organizago existente (como o de “bairro rural”), ainda que tenha tentado. Certa vez, perguntei quais eram as comunidades que havia ali, e soube que “comunidade era de crente, néo tinha nenhuma ali no”. No maximo, ouvi certa vez, de uma moradora, sobre a oportunidade de visitarmos “todas as sociedades ali da regitio”, ou do guarda- chefe do parque a referéncia a “gentes de veredas” De qualquer forma, sendo ou nao pensadas através de um conceito abrangente como o de “bairro rural” e sendo demarcadas por linhas invisiveis ao olhar estrangeiro, esses agrupamentos existem Uma das referéncias para percebéos situa-se no encontro © na interagio do espago social com 0 espaco fisico, Isso porque constituem-se também enquanto territérios que so marcam pelas aguas ¢ rios que banham suas terras, nomeados preferencialimente pelo rio principal - ou rio mestre - coincidindo provaveimente com as. ° Cindido, A. citado em Brandao, C.B, idem, p. 160. 16 microbacias da regiao”. Assim, © nome do rio é também de um conjunto mais proximo (distancias relativas!) de casas ¢ unidades domésticas, ¢ é também, algumas vezes, o nome de uma fazends. Por exemplo, enire esses conjuntos, ha Carinhanba, Rio Preto, Mato Grande, Santa Rita, nomes que designam Areas banhadas pelos principais ios que cortam o Parque, e seus afluentes - galhos, ou veredas, como so chamados. E 0 caso também de outros nomes, que, junto com esses, compdem 0 conjunto de localidades inseridas nos limites do Parque: Barbatimio, Capim-puba, Batista, Maria Anténia, Costa, Mato, Boiada, Pau Grande. Sio nomes que designam também fazendas que sio ou que jé foram; € sé0 também enderegos. No questionario aplicado em 1991 pela Funatura (ver nota 4), uma das questoes que surge ¢ “enderego completo”, ¢ que tem como padrées de resposta “Vereda Maria Antonia - Fazenda Mato Grande”, “Fazenda Terezinha - Galho do Carrasco”, “Vargem Bonita - Carinhanha”, “Vereda do Mandui - Rio Preto”; “Fazenda Santa Rita - Januéria”, “Fazenda da Boiada”. Ou seja, 0s nomes citados como exemplos, informam tanto sobre um espago fisico como sobre um espago social 9 categoria émica que designa afluentes, ou a veredas, corredores de vegetagio. mais 1 deve notar, 20 Jongo do texto, Heqlientes mengBes aos “galhos”, densa, marcadas pela palmeira buriti e também pela presenga de agua. Porém, além da significagio relativa ao espago fisico, os termos designativos dos curso @”agua carregam outros sentidos, que podem descrever marcas do territério social, ou mesmo da relagao que individuos e grupos mantém com tais “lugares”, revelando inclusive tragos de uma identidade local. Nao por acaso, surgem expressbes como “gentes de veredas”, ou “uracuianos’™ 2° De fato, a importincia das aguas e rios para 0 universo sertanjo é mencionada ou desenvolvida por muitos autores, E 9 que nos indica, por exemplo, Fernando Correia Dias na apresentagio do livto de ‘Alan Vigiano: “(..) Numa vertente oposta & dos que tém buscado perscrutar 0 substrato ideolégico © lingiistico do livro famoso [Grande Sertéo: Veredas} , tomando sempre o sortio como singnimo de ‘Mundo, o autor buscou captar a sucesso de fatos e, especialmente, a superficie morfotégica da area sertanj expres por Ghar «50 ous cuss Uru ao como acini goers fos. simples dados contidos no mapa. mas caminhos, obstéculos ¢ centres de vida do homem serianzio, notadamente dos cangaceiros, igualmente relacionados com a realidade humana e coletiva; 2s populagées que se movem e as que se fixam ¢..) A dimensdo universalista do romance nao deve impedir ‘que se perceba, em suas paginas, a presenga de tragos de uma subunidade de estrutura social Brasileira ‘2 Minas Sertaneja”, in Viggiano, Alan. Iinerério de Rlabaldo Tatarana, Rio de Taneiro: Livraria José Olympio Editora’ MEC. 1978. p, xix. (grifo meu) ™ A referéncia ¢ a pessoas origindnas da regio do Vale do Urucuia, rio que nao cruza os limites do a Como foi mencionado, as casas entre vizinhos podem encontrar-se bem distantes entre si, o que pode significar algumas léguas a cavalo, a pé e s vezes ainda uma travessia de rio, Entretanto, é interessante notar como essa nogo de vizinhanga pode atravessar certos limites e demarcagSes, naturais ou no. Trés exemplos. Um deles, que cruza os limites do Parque, & © caso da Onga (nome também de um tiacho, afluente do Rio Carinhanha), localidade situada no entorno do Parque, bem proximo a “picada””. Aqui, a vizinhanga - e a propria localidade - atravessam a linha divisoria Parque/entorno. Outro exemplo me parece ocorrer entre localidades como a do Batista, pertencente ao municipio de Arinos, ¢ Maria Anténia, parte do municipio de Formoso - penso sobretudo na area limite entre 2s localidades/municipios -, onde se percebe uma vizinhanga que atravessa a estrada de terra, e faz-se também com o outro lado. Por fim, num terceiro exemplo, a “vizinhanga” se insinuou entre os limites de Estados, onde por algumas vezes presenciei ou me foi mencionada a travessia do rio Carinhanha, limite entre os Estados de Minas Gerais e Bahia, em siuagdes de trabalho (Firmiano, por exemplo), € do convivio social em uma festa (galho da Estiva, entorno do Parque). A idéia que perpassa essas descrigSes, portanto, insinua duas dimensdes da organizagao interna e da ocupagao espacial dessa populagZo. Uma, indicadora de certa estabilidade, remete ao bairro rural e constitu o que chamo aqui de localidade - territorio nomeado, muitas vezes, de forma sobreposta ou simultinea a dimensdo fisica, aos desenhos dos rios e riachos, aos galhos e veredas, as microbacias, A outra dimensio, a vizinhanga, de caréter mais dinimico, faz-se através de deslocamentos, dos lagos ¢ relagdes mantidos entre as pessoas (geralmente marcada também por lagos de parentesco), ¢ transborda, mais facilmente, tais limites fisicos , seja entre as proprias localidades, entre limites do Parque, de cidades ou Estados Nesse ultimo aspecto, ¢ lembrando Certeau sobre as préticas do espago © 05 relatos que os passos enunciam, parece valida a metéfora que 0 autor constrdi com “fronteiras” e “pontes”. Imagens que tepresentam a relagdo entre um espago legitimo € 0 que esta além da fronteira, a sua exterioridade. Dessas imagens, 0 autor desenvolve 0 Parque. mas é um dos mais importantes € conhecides rios do Noroeste de Minas Gerais . Brasilia inclusive, conta com uma associaglo propria desse grupo, a “Associacio dos Urucuianes de Brasilia" *Picada” mostrou-se o termo preferencialmente utilizado para indicar 05 limites do Parque Nacional e. de fato, assim sio reconhecidos objetivamente esses limites, através de estrcitas trilhas abertas no cerrado. a8 que chama de “Patadoxo da fronteira: criados por contatos, os pontos de diferenciagao entre dois corpos so também pontos comuns. A jungio e a disjungio so ai indissocidveis. Dos corpos em contato, qual deles possui a fronteire que os distingue? ‘Nem um nem outro”!*. O que faz a fronteira e impée os limites pode também articular e comunicar, criando inch e uma unidade chamada por ele de regiiio, enquanto espago criado por interagdes ¢ encontros™, A sobreposi¢&o ¢ 0 entrelagamento de limites - a criaglo de regides - repete-se em outras dimensdes relevantes aqui, porém colocadas em outro nivel de observagio Por exemplo, na idealiza¢ao inicial do Parque - tomando portanto uma perspectiva do espago ambiental -, pretendia-se nele incluir partes do Gerais que considerassem também lerritérios na Bahia, © que por outros motivos acabou nfo acontecendo'*. Aqui, a principal justificativa seria do ponto de vista da continuidade dos ecossistemas que caracterizam o Gerais. Igualmente, a manutengio de relagdes entre moradores do Parque, de localidades como Firminano ou Estiva, com a Bahia, parece também articulada a esse continuidade, expressa no proprio conceito de Gerais, tanto em suas significagdes fisica e ambiental, quanto cultural e social’®. “..é gerais, é nessa boca de gerais ai. esse gerais tem cho demais. A concentrago de pessoas nas localidades tem também uma base no parentesco, ¢ em varias das que pude conhecer, constatei, por exemplo, a recorréncia de pais, filhos e suas familias nucleares morando proximos, ou. grupos de irmlos e suas respectivas familias, na mesma localidade - 0 que parece indicar um padrio, a0 menos ideal, de familias extensas patrilocais, compartilhando um mesmo territério. Segundo uma das Certeau, M. opcit., p. 214. + (..) A ‘regiao" vem a ser portanto 0 espago criado por uma interagdo. Dai se segue que, num mesmo lugar, ba tantas “regites” quantas interagies ou encontros entre programas. E taunbém que a {determinagao de um espago ¢ dual e operacional, portanto, numa problematica de emmciagao, relativa a "um processo “interlocutorio’ .", Certeau, M. op.ct, p. 212. ‘> Entrevista realizada com Coordenadora do Programa GSV e Coordenadora - trabalho de campo do Programa GSV, novembro 1996, na sede da Fimatura, em Brasilia. ver Capitulo 1: “Algumas palavras sobre o grande sertio” 9 téonicas da Funatura, numa conversa sobre a predominancia de uma mesma familia em determinada localidade, “... @ 1880 acontece, principalmente, quando a familia tem muito filho homem, porque... 0 filho casa, ¢ ele se estabelece préximo aos pais.. Jia filha, ela jé vai perto da familia do noivo... Entdo, eu néo sei, quantos fithos homens, de repente, tém na familia... De repente, pode ter alguma coisa relacionada com isso também... ai eles vao se estabelecendo..’”* ‘Nas paginas seguintes, podem-se perceber alguns desses principios - bem como aqueles relacionados a importancia do conjunto de rios - em dois croquis desenhados durante a pesquisa de campo. O primeiro foi desenhado segundo indicagdes de um representante do Tbama local. O desenho tinha como idéia represemtar a localidade chamada Onga, “a grosso modo”; no entanto, ela ¢ situada em relago a varias outras localidades/ cursos d’aguo: Carinhanha, Barbatimao, Pau Grande, Santa Rita, Rio Preto A finha superior do croqui indica rio Carinhanha, do qual 0 Onga é um afluente, ou galho. Ao longo dessas varias representagdes dos cursos de agua, estio também desenhos de casas © nomes de seus moradores, ou dos “donos da casa”, e outras referencias espaciais como a “vila” (Chapada Gauche), uma ponte, uma vereda, ¢ 0 perimetro/picada do Parque, No caso da Onga, especificamente, esti ai situados 0 que parece ser, pelo menos, dois grupos de parentes - um deles constituido por Seu Gerdnimo e, em casas bastante proximas, dois de seus filhos e suas respectivas familias. segundo croqui foi desenhado por Vicente A. Silva, ex-morador da localidade da Onga, que na época da pesquisa vivia na Chapada Gaticha ¢ prestava servigos ao Tbama. Também pedi a ele que desenhasse um mapa da Onea. E interessante notar que em seu desenho, novamente, esto representados cursos de gua, casas ¢ nomes de alguns moradores, algumas das relagdes de parentesco, e outra referéncia espacial como o “curral”. Porém, mais nesse caso do que no anterior, o centro do desenho é de fato a localidade e o galho da Onga: os ris Carinhanha © Preto esto presentes mas de modo tangencial, ¢ a atengdo especial é dada ao Onga e seus aos afluentes, todos nomeados: “Estrema”, “Gaio Grande”, “Lucaidinha”, “Buriti Torto” * (Seu Pedro Boca, gatho do Firmiano’ Depoimento - fevereiro de 1996 »* Entrevista com coordenadoras do Programa GSW/ FUNATURA, novembro de 1996. Anererd cet? JA open ons £0°5) jo emo ~ aon Opow o “CHRinhawha Hem 1) Sado Seu Pedro Boca e Dona Francisca, moradores do Firmiano, dizem também algo a respeito da organizago social e das historias da regido. Seu Pedro, mais de 80 anos, é um dos moradores mais conhecidos da regio do Parque e é um dos “contadores de caso” a quem mais se levam os visitantes do Parque, vindos 4 procura do Sertio dos Gerais, Clarissa Magalhies foi uma delas, pesquisadora que passou por sua casa, © nos traz algo das lembrangas e origens de seu Pedro Boce: “Minha avé Andreza era serrana apurada do cabelo de pala A véia pala casou com 0 véio Ant6nio. Tudo de Minas Gerais, a ponto que néio tem nenhum de contrabando””. casal vive numa localidade - ou em um galho - chamado Firmiano (afluente do rio Carinhanha), embora so tenha ouvido esse nome do proprio Seu Pedro Boca. De ‘outras pessoas, tanto de fora como de moradores do parque, a referéncia ao local é a seu proprio Pedro Boca - a sua casa, ou entio a localidade mais ampla do Rio Preto (ver mapa “Onga a grosso modo). Mas disse Seu Pedro: “. aqui se conhece por Firmiano... tem uma grotinha ali, mais em riba é os Porcos, tem wm galhinho... (...) eu vim dagui, da beira de Carinhanha. porque eu fui nascido, criado e retirado dagui para viver.... a 20, 25 léguas (..) nasci mesmo nessa beira de rio, ai eu vim assubindo, para cima... eu sai, eu casei, a mulher morreu, ¢ eu vim para o retiro... tive wns tempos de retiro, ai eu casei de novo... Ai, la mum tava dando, lugar de trabathar néio tinha, ¢ eu sou envocado na roca, ai eu larguei Ia. ... eu digo... mew pai morava agui... Ai, eu larguet lé, e vim... encontrar com ele. Quando cheguei ai, toquei o servico, ele ainda durou uns dois anos, ai ‘morren... eu quis (ser arrendario?), mas (antes dele morrer, ele pediu para eu nao ser arrendério?)... que eu chegasse agui, aqui eu ia tutando (....) que esses filho, tudo era pequeno... Eu fui lutando, lutando gragas a Deus; aqui eu criei eles, boiei para esiudar todo mundo. Os inico que néo aprendeu, nao queixa de mim, mas gracas a Deus, para viver tém.... ido vivendo. © depoimento recolhide em maio de 1994 Magalhges paricipou da pesquisa “O Sentimento do “Mundo”, e percorreu por 40 dias o Norte de Minas. Um dos pontos de seu itinerério foi também a regio do Parque Nacional GSV. Em sen relatério de visita ao Parque, caviado 2 Funatura © a0 IBAMA, Magalhes discute, entre outras coisas, a manipulago ¢ apresentaydo do material que recolicu, sobretudo depoimentos de velhos sertancjos, Buscando esse objetivo, faz urna bela aproximagdo da fala sertaneja, da reflexividade ¢ intensidade muitas vezes expressa em pequenios fragmentos, a poesia haikai ‘Japonesa. Minha propria uuilizasio de fragmenios teve inspiragdo om seu trabalho, ¢ em sua exploragao ‘desses mundos “diminutives”, do pequeno que fala do grande, ver Magalhies, Clarissa, Relatario para Funatura/IBAMA sobre Estadia no Parque Nacional Grande Sertao Veredas, Mineo, 1994. p.12 Agora, depois que eles estudou, ue | (...) foi, espenicou tudo... SO tem mais eu, um. Os outros ja se lascou tudo. Tanto seu Pedro como sua esposa dizem viver ali hé mais de trinta anos. Dona Francisca, que € nascida na Bahia (a fronteira com o Estado esta ha alguns minutos de caminhada da sua casa, do outro lado do sic Carinhanha) e depois do casamento se ‘mudou para o local, fala sobre os filhos: “.. tudo espathado... aqui junto de mim, ainda tem um bocado... tem wrés, trés que mora aqui pertinho. Uma naguela casa ali; outro ali naquela casa; ¢ outro é em outra casinha que tem ali... é porque 0 marido dela, o pai dele, mora acolé ld em cima, pelo outro lado... Ai, eles trabalham 1d, ¢ vem para aqui também... mora ai, fica trabathando aqui (...) tudo aqui junto de mim... € tem wma que mora ld em batxo... tem duas que mora 1d na beira do (morro?).. Tem uma que tava mabathando em Brasilia: tem outro que trabatha em Formosa - 0 que trabatha em Formosa esta agui, agora... veto para aqui, para ajudar 0 rapaz a colher 0 arroz. é doze filhos.. fem um outro que mora lé pertinho da Vila, casou 0 ano retrasado, td ‘morando Id pertinho da Vila... fem um outro que mora na Taboca, também, é casado e também mora Ié, perto do Formoso... é gente demais!”” Sobre outros moradores da localidade, ela diz: “.. &, agui morava muita gente... uns jé morren, outros mudow.... sé restaram as taperas... Mas, aqui de primeiro tinha muita gente, que tinha. ( Uns vai mudar para cidade, outros morrem por id mesmo, outros morrem aqui mesmo... 0s filha novo gue fica, vai saindo tudo... 56 fica o taperdo al...” ‘Assim, se parecem existir padrdes ou referéncias de fixaglo © ocupagéo dos espagos vinouladas aos grupos de parentesco, a mobilidade é grande também - “o giro-o- giro no Gerais”. E o que aparentemente também diz esse mundo de taperas que, vistas do olhar estrangeiro, nao se diferenciam muito do cerrado que as circundam - terra, alguns restos de madeira, arbustos... mas que os olhos ¢ falas nativas apontam como tapera, a antiga morada A grande mobilidade nao se mostra somente como um fendmeno recente, resultante do apelo de centros urbanos, por exempto, O proprio seu Pedro Boca narrou ® Visita a casa de Seu Pedro Boca ¢ Dona Francisca, gallo do Firmiano/ Depoimentos - Fevereiro de 1996. uma aventura, quando chegou a ir até Brasilia - antes da fundago da cidade - talvez ha cerca de 40 anos, a tinica vez que teria saido dali e cuja volta demorou 16 dias a pé.“... ¢ andava que nem noticia ruim. Antes de falar de disperses e mobilidades, porém, s4o necessérios mais alguns enraizamentos. E também, alguns parénteses. netos de seu Pedro Boca ¢ Dona Francisca/ Galho do Firmiano O Canto dos Galos e 0 Parentesco Desde o ini iio dessa dissertaco, tentei multiplicar e transformar as referéncias de observagdo: de Parque Nacional Grande Sertio Veredas, em Gerais e Noroeste de Minas, de Estados ¢ municipios, em rios, nimeros e pessoas - até chegar as menores unidades de ocupagiio e organizagdo social percebidas pela pesquisa as localidades inseridas nos limites do Parque e algo de sua composigao. Nesse movimento - em diregao ao “local”, e a0 caso especifico - lembrando que ha nomes de lugares e pessoas, algumas das relaces mantidas entre elas, ¢ os agrupamentos que compdem - forma-se também um quadro mais amplo, que dialoga com anélises ¢ reflexdes sobre sociedades camponesas e universos rurais. Nao ¢ a $8 proposta aqui desenvolver uma reflexdo tedrica sobre a Antropologia do Campesinato, sua tradigdo, debates ¢ tendéncias. Porém, trata-se de um campo que traz chaves necessirias para a compreensiio do contexto do Parque nos moldes aqui propostos - da mesma forma como se fez necessaria anteriormente, para 03 objetivos pretendidos, uma contextualizagio minima da politica ambiental em torno dos parques nacionais. Ambas as dimensOes so “inevitaveis”, e a reflexio a partir delas nos traz aproximagdes interessantes Fla nos aproxima, por exemplo, do povoado do Zabelé e do Parque Nacional da Serra da Capivara, mencionados no capitulo 1 (Pompa, 1987). Esse povoado do Piaui, na Serra do Vitorino, nos interessava pelos paralelos com a situago mais ampia do “Parque Nacional” com grupos e atores por ele envolvidos, por sua implantagdo ¢ processos dela decorrentes, pelo dramas sociais, Aqui, nesse capitulo que tenta passar pelo mundo dos diminutivos, o PARNA GSV encontra-se novamente perto do Zabelé, a partir do olhar e da anilise de Godoi” ‘Nesse trabalho, a autora estuda através da memoria coletiva do Zabelé, condutas dos camponeses em relagdo @ ocupacdo da terra ¢ apropriagao da natureza, bem como suas reorientagdes pelos costumes e pela cultura, em tempos de tradigdo ¢ de transformagio. Vale lembrar que 4 area estudada foi posteriormente englobada pelo Parque Nacional Serra da Capivara, situagao analisada por Pompa, & qual voltaremos no capitulo III. As aproximagdes que busco agora, a partir dessa leitura ¢ de outras, s40 feitas pelo viés do universo chamado camponés, ¢ de suas memérias. ‘© Zabelé, bem como o trabalho de Goddi, ¢ retomado por outra autora que fornece aqui muitas idéias-guia. Refiro-me a Woortmann”, no scu trabalho sobre colonos do Sul (Dois Immios, Rio Grande do Sul) e sitiantes do nordeste (Lagoa da “Mata, Sergipe). Woortmann, ao revisar as teorias do campesinato ¢ do parentesco, & analisar aquelas duas localidades, privilegia as relagdes que interligam os grupos domésticos, mostrando nos dais casos focados, como os principios do parentesco se articulam a principios territoriais. Ao resgatar também o Zabelé, ¢ associa-lo sobretudo 2 Godoi, Emilia Pietrafesa de. O Trabatho dla Meméria - um esnudo aniropolégico da ocupagao camponesa no serio do Piavi, Campinas, 1993. Dissentag3o de Mestrado, Departamento de Antropologia. IFCH. UNICAMP, = Woonmann, Ellen F. Herdleiros, Parentes ¢ Compadres - Colonos do Sul Sitiantes do Nordeste. Hucitec/Sto Paulo; Edanb/ Brasilia, 1995, 56 a0 caso de Sergipe, em Lagoa da Mata, a autora mostra 2 importincia fundamental da descendéncia para a reprodugio camponesa, bem como a recorréncia de certos tipos de casamento que reforgam a manutengio da terra/propriedade, intensificando também um ideal endogamico e patrilienar. Outro aspecto relevame desenvolvido, sobretudo nesses dois dltimos casos citados, articula essa tendéncia - percebida como ideal e pratica - a meméria do grupo, marcada por uma origem que revela a fundagao de um territério, de ‘uma familia (ou de um grupo de parentesco) e de uma localidade - no caso de Zabelé, chamado povoado, ¢ no de Lagoa da Mata, chamado sitio. Visitante do Batista, localidade do Parma GSV, e seu olhar estrangeiro que se espantou com tantos cantos de galos pela manha, provavelmente se espantaria também com 0 que esses cantos podem dizer. Uma das linguas que traduz. algo desses cantos justamente essa trazida a tona pelos principios e reflexes da antropologia do campesinato, Como nas areas de estudos de Woortmann e das outras leituras, também na regido do PARNA GSV, o parentesco ¢ um tema privilegiado pelos nativos. Nos primeiros dias de pesquisa de campo, logo ouvi de alguém que me recepcionou na Chapada Gaticha uma comparagdo. Quando vooé est na cidade ¢ quer saber quem é alguém, diz: fulano € 0 padeiro, sicrano é o agougueiro... E que, ali, na roga, no . Ali voeé diz: falano filho de sicrano, Beltrano de Fulano, 0 outro ¢ primo daquele Um caminho rumo 2 um quadro mais preciso nos dados que fornece, ou mais delimitado © continuo nas historias € relatos narrados, que da corpo aos principios ¢ conceitos mencionados até agora, leva-nos em dirego 2 Santa Rita, Foi essa a localidade que mais visitei e percorri, onde pude pemnoitar, encontrar ¢ reencontrar pessoas ¢ conversas, perceber lagos e membrias, La foi possivel ouvir sobre historias € presengas enraizadas no lugar, em taperas ou em tempos perdidos - as coisas “do principio do mundo”, expresso to mencionada em casa de Seu Pedro Boca. Se muitas das observagbes que generalizo ao longo da dissertagio puderam ser constituidas a partir do oliar sobre Santa Rita, elas também o foram apesar de Santa Rita “Apesar de”, em fuungdo nfo s6 de especificidades da localidade que talvez tragam problemas, se generalizadas, também porque, para mim, Santa Rita tornou-se um lugar de afetos e sentimentos - 0 que significa dizer algumas vezes 0 que foi sentido, ou calar 0 que foi pensado E tempo de baixar a altitude. Desgamos a Serra! Descida da Serra rumo a Santa Rita Chegando a Santa Riti Como acontece com a maioria das outras localidades presentes no Parque, ¢ na regiao do qual faz parte, trata-se de um mesmo nome associado a um rio, ao territorio por ele banhando - incluindo seus afluentes ou galhos -, e também o nome de uma Fazenda. Tudo isso pode ser Santa Rita. Localizada na area sudeste do Parque, ¢ a localidade mais proxima a um centro urbano, estando a cerca de 5 km do municipio recém-fundado da Chapada Gaiicha Na pagina seguinte, um croqui de Santa Rita, desenhado a partir da indicagao de quatro homens, que vivem ou viveram na localidade, ou em suas proximidades, sendo dois deles guardas-parque na época JRincho Santrde RET Bare a 2 E Lite. Cicada) de Perrys $9 No croqui ha representacdes, conforme veremos, que insinuam alguns” dos principios antes mencionados, sobre rios que cortam e atravessam o Parque, seus afluentes ¢ veredas, sobre casas de moradores, sobre a dimensio geografica e a vizinhanga, as sobreposiges ¢ entrelagamentos de iimites, fronteiras ¢ pontes Em azul no desenho, uma linha vertical: o riacho Santa Rita ¢ sua Lagoa Partindo dessa linha, scus galhos ou afluentes, as vezes veredas - ou simplesmente Varge Larga, Pelado, Trés Irmios, Tiririca, etc -, que no croqui estéo representadas por linhas verdes, quase perpendiculares 20 riacho. ‘As linhas em verde claro representam afluentes dos afluentes. E interessante notar que, no desenho, elas concentram-se em seu trecho superior, entre o Estévao e o Trés Trmiios, ¢ ha também uma delas, soli Olhando as linhas do Estévao e do Trés Irmaos, pode-se perceber 0 desenho de aria, do lado direito, saindo do galho do Mateus. quatro casas, sugerindo uma proximidade espacial, ¢ também de vizinhanga E, no caso Gaquelas ligadas ao Trés Irmaos ¢ seus afluentes - Capim de Cheiro ¢ Polado -, a proximidade sugere também lagos de parentesco ¢ provavelmente de relag&o com a terra, enquanto propriedade e espago de trabalho. ‘A casinha solitéria, abaixo dos Trés Irmaos, é a de Dona Martinha - na verdade, sua fonte”* ¢ de aguas do proprio Santa Rita, em cujas margens ela mora com seus dois filhos, Delmiro” ¢ Maria. Na época de minha visita, pareciam ambos ter mais de trinta ‘anos, ambos surdos ¢ com problemas mentais. Olhos e sorrisos de crianga, sorriam sempre que olhados, Na casa, vivia também uma menina de cerca de dez anos, a neta de D. Martinha: Maria Madalena, responsivel por grande parte das tarefas domésticas. O outro filho Maximo, talvez quarenta anos, estava deitado na esteira, macérrimo, com 0 © Para situar o momenta de sua feitura, um pequeno trecho do diario de campo: 23.07.96. Hoje, pele manha, o mapa de Santa Rita, feito por Seu Ercino, Zé Luis, Idelino e Seu Juquinha, Discutta-se sobre & localizagéo dos galhos, des coisas, até chegarem num consenso, @ me orientarem 0 desenho [ninguém quis desenhé-lo, dizendo que no sabiam}. Seu Juquinha se lembrou dos limites do Parque, o mapa deveria it $6 até seus limites. Assim foi, ¢ quo estava * de fora’, nde fol incluido no mapa por consenso, ‘a nao ser as casas mais proxies a ploada. A representacac do rio foi a "espinha de peixe’, como isseram, De alto do motro Trés limBos , Zé Luis indicou que o Santa Rita tem a forma de um 'S. 4 fonte & 0 pomto doméstico do rio, omde se busca gua para os afazeres do dia, onde séo lavadas as roupas ¢-vasilhas, onde se bana. Mas, ola no deve ser vista somente de um ponto de vista “wulitario” ‘A agua, nos Gerais, de uma mancira geral, & um bem escasso, no esté em toda parte, nem sempre ) wa sawou oweweseo = tiny e1ueg 9p sav0pesOU! :9\)9W19s We S@WOU epuabey oulwisseg eineg o1uguy sepin7 sin eueor elpiziv eulgieg jeouew o1uowy = oulworelL uogsela opleouy eyuinbnp coueUIY = outsagd = opauity “| = eumnies = olpIs| = bulaxie | O80} euinueW, eueW eso] @ O1UOIUY ap +E Bio} = O1UQIUY ed v seo0ded - oosejuaied op ewesBelg a 2, Retérieas das Caminhada em Santa Rita “0 senhor sabe 0 mais que &, de se navegar serido rumo sem termo, amanhecendo cada manhi num pouso diferente, sem juizo de rats? Nao se tem onde se acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve. Isto ¢ assim. Desde 0 raiar da aurora, 0 sertdo tonteia. Os tamanhos. A alma deles™® Na descrigdo feita até agora, que se centrou sobretudo na ocupagio espacial dos moradores do Parque Nacional Grande Sestio Veredas, focando 0 territério de Santa Rita, foi reforgada a organizago social a partir de principios do parentesco. Delimitaram-se localidades e vizinhangas, criando-se um olhar sincrénico sobre elas, € foram também utilizadas referéncias diacrdnicas, como a descendéncia ¢ os tragos de uma meméria “histérico-mitico” sobre 2 mesma. vies diacrénico, entretanto, ou a inclusio do tempo nesse olhar, privilegiou temporalidades, analisadas através de padroes sociais ¢ coletivos. Aigo que pode nos dar certa vis4o geral, mas que também descorporifica @ passagem do tempo e a duragio, 0 proprio enraizamento ou deslocamento nos lugares. Nao é um ato analitico inconseqliente. Pois que a vontade de ver © conjunto , como o da “cidade-panorama” de Certeau, constr6i também um “simulacro tebrico (...) um quadro que tem como condigéo de sua possibilidade um esquecimento ¢ desconhecimento das praticas’”? Como um relato de espaco, reforgau-se uma descrigio que sendo lida pelas idéias de Certeau, seria provavelmente aquela feita por objetos, “o estar-ai de um morto, lei de um “lugar”, Por exemplo, para ler a organizagdo territorial ¢ espacial do lugar Santa Rita, recotti, entre outras fontes, a leitura de croquis, uma representago espacial que, como os mapas, sugere a singularidade ¢ estabilidade dos lugares representados, O proprio Certeau nos lembra, porém, de outras formas de identificar lugares ¢ efetuar ‘espagos, uma através dos mapas, outra através dos itinerérios. Esses ultimos tém como particularidade especificar “espagos” através de agdes, ou operagées daquelé que caminha ¢ narra o caminhar. Rosa, Guimartes. Grande Sertdo: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Faitora, p. 239 © Certeau, M. opeit., p.171 Ceneau, M. op.cit, p.202 n Narrando a Ronda lirecionado © © itinerdrio da pesquisa, particularmente em Santa Rita, foi construido inicialmente por uma nogio - e uma prética de espago - relativa a propria existéncia do Parque, e & fungSo dos guardas-parques: a ronda. A expresso “ronda” refere-se ao itinerario formal, programado e cotidiano dos guardas-parques, responsaveis pela fiscalizacao™ de areas especificas, determinado a principio por orientagSes do Ibama da Funatura Porém, se tal itinerdrio (da ronda) é enviesado pela presenga do Parque, ¢ por orientages dos drgdos que o administram, na verdade ele é sobreposto a conhecimentos habitavam a regio € praticas de espago anteriores, desenvolvidas por aqueles que antes da criago da Unidade de Conservagio, como os proprios guardas-parques. Reproduzo alguns dos trechos da ronda em Santa Rita, em que percorti a localidade em geral acompanhando o guarda-parque responsavel pela area, José Luis, e, algumas vezes, sua mée, antiga moradora da localidade (atualmente morando na Chapada Gaticha), ou seus irm&os mais novos, adolescentes na época. So duas as intengdes: primeiro, a de narrar priticas € memoérias acionadas ao se percorrer seferéncias espaciais recorrentes durante a pesquisa, como casas ou antigas casas de moradores, areas de roca, um morro, ou uma lagoa, algumas delas ja representadas anteriormente nos croquis. Nao se trata de uma apresentago sistematica de categorias espaciais Emicas, j4 que nao foi desenvolvido pela pesquisa um estudo mais aprofundado esse sentido. Antes, trata-se de registrar parte desse caminho que foi articulado por referéncias cruzadas, inclusive a da propria pesquisa, e refletir sobre como ele entrecruza-se com outros caminhos, efetuando espagos diversos. ‘Na busca de Certeau pelas priticas do espago, associa-se ao ato de andar 0 ato de falar, ¢ sd organizadas referéncias para uma leitura da “fala dos passos perdidos” - ¢ © “jogo dos passos que moldam os espagos ¢ tecem os lugares”, Nesse sentido, 0 ato de caminhar, ou a emunciagio pedestre - aqui, talvez melhor dizer caminhante - carrega trés caracteristicas (pensedas entre as formas empregadas num sistema ¢ os modos de “© termo mais adequado talvez scja 0 de “vigilincia”, jd que os guardas no dettm poder efetive de fiscalizagio e autuagdo, De fato, posteriomente ao perfodo circunserito de pesquisa, 0 termo” guarda- parque” foi transformado em “vigilantes”, justamente por esse particularidade da fungdo. © Centeau, M. op cit., p.176, B usar esse sistema). Primeiro, 0 presente, ou a atualizagio da ordem espacial, das possibilidades ¢ proibigSes, por onde o caminhante se desloca e as destoca, atualiza-as e inventa outras. Segundo, e junto com essa primeira, 0 descontinuo, que se mostra através da sclegio dos significantes espaciais, e efetua triagens nos significantes da lingua espacial. Por fim, 0 aspecto fatico do caminhar, ou seja, aquele que 0 coloca também como um ato de comunicasao, entre um cd ¢ um Jé, por exemplo, que implica um “eu” que se apropria do espago, e um “outro” relativo a esse eu, ¢ a seu deslocamento, negativa ou positivamente™ Partindo dessas trés caracteristicas do caminhar (ou de sua enunciagao), Certeau apresenta o que seriam suas trés modalidades, ou tipos de relagéo que se mantém com 0 percurso ~ as modalidades “aléticas", que Ihe atribuem um valor de verdade - do necessétio, do impossivel ou do contingente; as modalidades “epistémicas”, que lhe atribuem um valor cognitive - do certo, do excluido, do plausivel, ou do contestavel; ¢ as modalidades “dednticas’, relacionades ao valor dever-fazer - do obrigatorio, do proibido, do permitido, ou do facultativo “. Deve-se ressaltar, também, que as modalidades no sdo percebidas de forma estanque, mas entram todas no jogo do deslocamento, transformando-se umas nas outras, variendo conforme 0 percurso, 0 momento, o caminhante A utilizagdo teérica feita aqui das idéias acima no deixa de subverter algo da anélise de Certeau, Sobretudo se lembrarmos, primeiro, que 0 autor discorre sobre praticas exeroidas na cidade, nfo s6 um espaco diferente do trabalhado na presente dissertagdo mas, de fito, signo de uma das oposigdes possiveis ¢ talver classicas de se pensar e definir 0 sertio“ ¢ os espagos rurais. Igualmente, a analisc sobre a enunciag#o pedestre traz os passos sobre a cidade, passos de seus habitantes, imersos num ambiente vivenciado e exercido através de diferentes critérios ¢ condigdes. No caso de minha andlise, no so o ambiente € aquele outro. O itinerério © 0 caminhar observado ¢ interpretado incluem 0 meu proprio, junto com aqueles que me guiaram. ‘Ainda assim, o olhar de Certean sobre a cidade e suas praticas mostra-se bastante ssa caracterizagdo assenta-se-se na ifplice fungao cnunciativa do ato de caminhar, em seu nivel mais elementar: a apropriagio do sistema topogrifico, a realizagio espacial do lngar, ¢ 0 estabelesimento de relagles entre posigies diferenciadas, cf Certeau, M. op cit, pp. 177-179 “* Centeau, M. op.cit., p. 179. * Vor sobretudo Schenttino, MP.op cit. 4 adequado para esse outro espago, o do sertdo. O que relativiza essa oposigao encontra- se na especificidade de sua propria abordagem: afirmando-se a cidade como espago urbanistico, controlado, administrado, planejado e disciplinado a partir de critérios premissas particulares, 0 que interessa a Certeau so justamente os procedimentos que resistem, criam, ¢ escapam 4 disciplina - sua anilise volta-se as chamadas priticas “microbianas, singulares ¢ plurais”. E se estas sio percebidas ¢ pensadas em sua capacidade de enunciagio, aniloga 4 enunciagio (“speech act”) para @ lingua - parece coerente considerar a aproximagao feita aqui como uma espécie de tradugio entre as diferentes enunciagSes, a partic de passos conjuntos ¢ compartilhados, de quem habite o sertiio e de quem habita a cidade Dos tipos de relagdo mantida com os percursos em Santa Rita, uma era enviesada pelo meu proprio andar, de pesquisadora, e outras por aqueles que me guiavam, conheciam os caminhos ¢ viviam na regio. O valor-verdade (o necessério, o possivel ou impossivel, 0 contingente) talvez fosse o mesmo ali para todos - eu certamente no 0 comtestaria - , dado pelo espago geografico e pela Ieitura dos que o conheciam: trifhas intransponiveis, um caminho mais aberto e facil, uma vereda fechada ¢ morada de sueuris, um boi bravo. valor-cognitivo - 0 certo, © plausivel, o comtestavel - era em geral indicado por meus guias também, mas as vezes comigo discutido ou questionado: “vocé agiienta subir 0 morro? Tem que ser répido, porque daqui a pouco escurece...”. © dever-fazer (obrigatério, permitido, facultative) colocava em contraste meus interesses de pesquisa e aqueles do mou guia - como guarda e como morador da localidade, Se sua obrigagao, como guarda-parque, era a de conduzir a pesquisadora a todos os moradores, poderia haver um com quem, na relagdo de vizinhanga, tivesse ocorrido um conflito © nao fosse de bom tom aparecer de repente, com uma visita estranha e cheia de perguntas. Assim, iamos negociando o dever-fazer, calculando os certos ¢ plausiveis, enfrentando as verdades dos caminhos: colocando ¢ mudando as modalidades no jogo dos pasos” © Um exercicio para entender essas modalidades ¢ pensé-las no contraste entre a cidads, ¢ ein seus contextos. Na primeira, ao invés da vereda instransponivel on da trilha mais conhecida, poderiamos associar 20 valor-verdade uma avenida interditada, condigao de possibilidade ou contingéncia que 0 pedestre enftenta como obsiiculo, ou © desvio aberto como caminko possivel a seu destino. O valor cognitivo, relacionado & modalidade epistémica do eaminhar, pode nos pér diante da escolha em seguir, 8 Caminhos ¢ itinerarios Boa parte das informagies e dados fomecidos nas descrigdes ¢ andlises anteriores, sobre Santa Rita - da ocupagao espacial, das familias e grupos de parentesco, das casas e moradores, ete - foram pela primeira vez colhidas durante os dois primeiros dias na localidade, em fevereiro de 1996 e, ao longo da pesquisa, foram sendo revistas ¢ confirmadas, ou no. Segui até la acompanhada por representantes do IBAMA local, me foi permitide hospedar-me na localidade durante alguns dias, na casa de um dos guardas-parques, Zé Luis, junto com outras pessoas de sua familia. Sua casa, no croqui de Santa Rita, encontra-se demarcada onde esta a palavra “Piv6” - proxima a descida da serra e do lado direito do riacho, no desenho © itinerario do dia 08 de fevereiro de 1996, por exemplo, foi pensado para ser mais rapido, passivel de ser concluido durante a manbi - jé que, a tarde, deveria me dirigir a outra localidade - a Onca - percurso que levava quase duas horas a cavalo (no ritmo de amazona iniciante). Dessa forma, acatei a sugestéo do guarda-parque para esse dia, pela manh&, de visitar as casas proximas ao pivé, casas dos Pacoca, da linha de Joo Teixeira Durante @ caminhada, Zé Luis, guarda e companheiro de muitas trilhas indicava “lia” rastros de animais, ou falava das plantas: amesca, pau da terra, embu, pau santo, sapubé/ amigo do lobo, unha d’anta, pau d’éleo (remédio), pimenteira (remédio) - a fruta parece vagem, so gongalo: cheirosa e boa para dor na coluna®.. Esse tipo de interagao ¢ interpretago voltada as plantas e aos animais, que me foi indicada em varias ocasides da pesquisa como uma atividade/ fungi dos guardas para com os visitantes, na verdade, ‘mostrou-se como pratica € conhecimento exercitados pela maioria das pessoas com quem caminhei, inclusive criangas @ noite e 2 pé, por uma via mais répida porém deserta, op trechos mais longos, porém mais ‘movimentados, on qual énibus pegar para tal lugar, o que dependeri da avaliagao do pedestre, Por fim, 0 valor do dever fazer, das modalidades dednticas, situar-nos-ia diante de um pagamento de ingresso, ow de estacionamento em local proibido, Interpreto essas modalidades ¢ esses valores, entretamlo, como ideais, visto que na pritica eles podem se colocar simultancamente, ou pouco definidos entre si Parcoem, também, na leitura de Certeau, associar-se as trés caracteristicas da enunciacSo pedestre, onde as relugies estabelecidas com os percursos trabalham com uma ordem empirica, (na atualizagao da ‘ordem espacial), uma ordem do conhecimento, que implica em saberes ¢ escolha (a scloydo do escontinuo), e a uma ordem de exterioridade social, cultural ¢ ética, onde sc estabelece tanto a comunicago com 0 lé ¢0 cd, quanto com espagos © ambientes sociais. didrio de campo, 08/02/96 6 Seguindo as trilhas, atravessando pinguelas e cercas, fomos chegando as casas dos Pacocas. Foram duas casas visitadas, de dois filhos de Jodo Teixeira, casas boas par © padrao local, amplas, ¢ construidas de buriti e adobe. Nessa ocasido, passamos também pela lagoa Santa Rita, proxima a uma dessas casas. Trata-se aqui de um lugar que sugeriu as “legendas locais”, narrativas que segundo Certeau permitem espagos de habitabilidade e legibilidade, evocando memérias e sua partilha, os espiritos locais” Pois, na beira dessa lagoa, 0 espirito evocado era o de sua grande profundidade, das grandes e poderosas sucuris que, segundo dizem, tém ai uma morada certa. Depois de ouvir sobre isso, e ja um pouco intranquila e atenta para movimentos suspeitos, estava provavelmente pronta para ouvir a historia de Seu Joaquim Doido, historia de quem ja morreu contada por Zé Luis. Doido porque entrou na lagoa, num dia em que cagava anta, Pois 0 homem sangrou a anta e ela, firgindo, refugiou-se dentro da lagoa, Seu Joaquim Doido nao se fez por rogado. entrou na profunda e misteriosa lagoa atras de sua anta, E a sucuri pegou ele? Nao, ele pegou a anta ‘A lagoa Santa Rita vista por Zé Luis Pela possibilidade que oferecem de esconder ricos siléncios ¢ desfiar histbrias sem palavras, ou antes por sua capacidade de criar em toda a parte adegas ¢ celeizos. as legendas (lendas) locais (legenda ‘aquilo que se deve ler, mas também aquilo que se pode ler) permitem saidas, metos de sair ¢ de entrar portanto espagos de habitabilidade Sem divida o ato de caminhar e de viajar suprem saidas. idas © vindas, garantidos outrora por um legendario que agora falta aos lugares.” in Certeau, op.cit. p. 188. >a tornou-se um dos assuntos ao qual se retornou em ocasides dispersas, outros itinerdrios, e outros encontros. Num diferente momento da pesquisa, certa vez, em casa de D. Luzia Pagoca, viiiva de Seu Joao Teixeira, e entre outras pessoas da familia, conversava-se sobre o /ugar e alguém comentou sobre 0 segredo da lagoa - que nunca secou e, mesmo em épocas de enchente, nunca transborda. Em outros tempos, em visita a casa de outro de seus filhos, conversava com um rapaz de seus 16 anos, morador dos Buracos, ¢ que ali estava em Santa Rita, trabalhando em roga dos Pagoca, Em al 1m momento, surgiu novamente a Lag = e soube entdo que estava diante do neto de Seu Joaquim Doido. Mateus, uns dois anos antes, resolveu repetir a proeza do av6 mergulhou na Lagoa de Santa Rita, com a intengao de chegar até seu fundo. Nela alcangou profundidade suficiente para quase perder a nogao de superficie, apesar de nao atingir seu fundo. Nao deixor contudo, de reviver e reinventar a proeza do avd, Joaquim Doido, ¢ as memérias evocadas pela Lagoa neiro dia em Santa Rita Do pr No dia anterior a visita aos Pagoca e a Lagoa de Santa Rita - 07 ¢ Fevereiro de 1996 - pereorri pela primeira vez as terras de Santa Rita Ws Foi nesse dia, ¢ no itingrario percorrido, que conheci a casa de D. Martinha, ludeada pelas salvadoras mangueiras, Antes dessa casa, haviamos passado por outra, que entretanto foi pulada - mareando uma descontinuidade - para evitar uma situagio constrangedora, ou nao intensificar um conflito antes ocorrido, entre esses moradores & certas normas do Tbama, Mas da casa de D. Martinha saimos, 2é Luis e eu, passamos por algumas veredas ¢ seguimos até a casa da filha de Dona Martinha, La chegando, atravessamos a roga de arroz, € encontramos Ideria tomando conta dos gros, afugentando as jandaias e passaros pretos que rondavam a futura colheita A tltima casa visitada esse dia foi aquela que, no desenho de Santa Rita, encontra-se entre o galho do Estévio ¢ a Vereda Escura, casa de D. Inocéncka, Como mencionado em algum outro momento, foi a familia em Santa Rita sobre a qual menos soube. A parada ai, e © encontro nao deixaram de ser, por isso, menos importantes, Em certo momento de nosso itinerdrio, antes de saber qual seria a préxima parada, fai questionada pelo guarda-parque sobre o teor da pesquisa, de minha visita ao Parque, ¢ de minha vineulagio ao IBAMA e a Funatura, Depois de explicar sobre a pesquisa ¢ afimar que nao trabalhava para nenhum dois dois érgios, soube entio que rumavamos para a casa de D. Inocéncia. No caminho até ela, a mais distante do meu ponto de partida no Piv6, soube também que se tratava de uma familia muito fechada, e que até etic havia se recusado a receber qualquer visita formal da parte do IBAMA ou da Funatura. Relembrando as trés caracteristicas da “enunciagdo pedestre”, nosso caminhar rumava a um presente possivel do ponto de vista espacial, e da modalidade “alética”; também possivel em seu valor cognitive, pelo menos do ponto de vista do guarda- parque, que havia nascido na regio e conhecia em pormenores o lugar, seus caminhos ‘© que encontrariamos. Entretanto, dependendo da minha prépria posi¢go enquanto visitante do Parque, poderia ser uma visita inadequada em sua modalidade “deéntica”, relativa ao valor do “dever-fazer”, na leitura de Zé Luis, Como guarda responsavel por meu trajeto naquela regio, deveria me conduzir as casas dos moradores para que a pesquisa, autorizada pelo IBAMA, fosse realizada. Porém, ao fazé-lo, poderia estar pondo em risco a propria efetividade de sua fungdo entre as pessoas do lugar, e também a confianga dos mesmos sobre ele. Era necesséria também a autorizagiio dos moradores e das pessoas, Discutimos entio sobre minha presenga na regio e, depois disso, ganhei esse dia o visto para visitar a case de D, Inocéncia, e seu lindo jardim. » Nesse ponte, faz-se um salto cronolégico para se reconiar algo da historia narrada por Dona Inocéncia, meses depois dessa primeira visita ao Parque, a Santa Rita e a sua casa O caso de Brasilia Na segunda visita a Santa Rita - alguns meses depois”, repeti com o guarda- parque responsavel pela localidade, ¢ também nela morador, a ronda na regidio banhada pelo riacho Santa Rita e seus afluentes. A casa de D, Inocéncia, desta vez, foi estrategicamente ~pulada”, pois ela ja havia informado ao guarda-parque - também vizinho, e filho de sua comadre - que preferia nao receber visitas. O desejo foi respeitado €, com certa tristeza e surpresa, 0 acatei Porém, dois dias depois dessa segunda ronda, iriamos seguir viagem rumo a outra ponta do Parque, na regido do Rio Preto, para visitar a sede da Funatura e para assistit a um casamento - 0 que significava varias horas de viagem a cavalo, A casa de D. Tnocéncia ficava no caminho e, para os moradores da localidade - como aquele a quem eu acompanhava -, era lugar de parada, de prosa e café ‘Nessa condigfio, acompanhando quem passa por ali rumo ao casamento de seus conhecidos, pude retornar & casa de D. Inoeéncia ‘Alguns dias depois, reconstrui no diério de campo os momentos passados em sus casa, € uma certa historia contada por ela’. 5S juthoragosto de 1996 *' Hole, 29. 07 Lembrando navamente da viagem de D. Inacéncia a Brastlia, da historia que ela contou nna noite passada em sua casa. Fol a Brasilia também por motivos de sale, como grande parte dos da regio. Lé foi guiada por algum parente, algum conhecico que vivia em Bsb. A historia que contou foi a do medo @ do desesporo na cidade grande, da sonsagao de nunca mais volar ao proprio lugar. Sous gestos, suas falas, foi como se estivesse mesmo revivendo © momento, pondo as mao no rosto, ‘epetindo os didlogos que IA teve, pedindo ajuda a Deus: *“Chegamos" - 0 Gnibus - 0 motorista: “€ aqui que vao desapiar.- as referencias do diecurso se mantem as doia mesma Em um momento, se vitam perdides. Resolveram perguntar em uma casa qualquer. D. Inocéncia, ‘acompanhando © parente, fol, disse, corn muito mado. A casa era pequeninhinha, $6 cabia 0 fogio ea cama. A mutherzinha que 0s atendeu fo' muito boa, mas nao havia como Ines dar pouse. { Aqui ihe veio ‘a lembranga do pal ensinando @ der comida @ pouso a qualquer pessoa que aparecesse © precisasse) © parente era crente, e aiguém so lembra que ail perto ha uma igreja dos crentes, e 0 parente de D. Inacéncia resolve ir até Id pedir ajuda Ele a deixou na casa da mulherzinha muito gentil © foi procurar a igreja, enquanio D. Inocéneia ficou com muito medo esperando e rezando, © temendo o mario ca rmulherzinha que ia chegar, o que ia dizer, 0 que ia fazer, ai que mede do homem... © hamem chegou e comegou © origar com a muliier. multe bravo, falango alto, onde ja se viu bolar gente estranha para dentro de case, Medo.. Mas, al Deus iluminou D. imocéneia, que criou coragem e disse algumes patavras para ole, talver aquelas que seu pal the ensinou, e foram palavras acertadas, porque © omenzdo ouviu e pediu desculpas, ¢ tudo ficou bem gragas 2 Deus. Al entdo, o parente de D. Inocéncia chegou, e foram ernbora e nunca mais voltaram. Diario de Campo, juihofagesto de 96 80 dia em que essa historia foi narrada - da segunda visita a casa de D. Inocéncia - parecia agitado, muita gente de visita, seguindo para o casamento no dia seguinte. Mas, por um breve momento, ela sentou-se, nos bancos forrados de esteira de buriti, conversamos e mudamos de conversa, silenciamos. Dona Inocéncia € narradora, no sentido de Benjamin® e em quantos outros? Entio, revive-se a experiéncia, os momentos as falas, as imagens e o povo com quem se falou E ela contou a historia da tnica vez em que saiu dali, com destino & cidade grande. Foi também por motivos de saiide, como muitas pessoas da regio. L4, ela era esperada por um parente, primo ou sobrinho, um conhecido que vivia em Brasilia Em seu relato, 0 “é aqui que vao desepiar” da fala do motorista, também chamou atengao e tenta-se imaginar um motorista de Gnibus urbano em Brasilia ou no Gama dizendo, daquela forma, que era ali o lugar de saltar, de descer - com a fala de outro contexto, fala de sertio. Foi a derradeira vez que Dona Inocéncia saiu dali a Brasilia, para longe e cidade grande, Lembrangas de medo, do sentimento de estar perdida, da necessidade da ajuda do outro - que é também estranho -, da intervengéo de Deus. Sua historia diz também sobre descaminhos de mapas, lugares ¢ itinerérios, porque se encontra com outras tantas. Sua narrativa, por exemplo, traz uma série de semelhangas com outras histérias ouvidas sobre viagens & Brasilia. Como Dona Inocéncia, muitos dali vio a Brasilia em busca de servigos médicos, de ensino ou trabalho, muitas vezes, migrando efetivamente Porém, é importante esclarecer que 0 nome do destino pode representar, muitas vezes, ‘um lugar muito maior do que 0s limites administrativos e politicos da cidade". Brasilia ‘compreende, no discurso dos que vivem na regito do Parque, 0 Guara, o Gama, Contrapondo-se ao mundo modem, ¢ aos dominios da informagdo, que permitem uma verificagao imediata, Benjamim discorre sobre a narrago como “forma artesanal de comunicaglo”, por seu trabalho de paciéncia, e sobretudo por constituit-se coletivamente, como trabalho conjunto, bascada na troca de experiéncias Seus ideais de narrador associam-se ox Aquele que viajou pelo mundo recothendo ‘experiéncias, ou aquele que se manteve em seu lugar, recolhendo ao longo da vida lembrangas € acontecimentos ~ para entio constituirem suas narrativas, a partir da troca de experiéucias com 0 ouvinte, ¢ de uma percepeao da coisa narrada que se recria na proprio ato de criagfo. Ver Benjamin, W. "O nartador: consideragies sobre a obra de Nikolai Leskov" in Magia ¢ Técnica, Arte e Politica enscios sobre a Ineratura e a historia da cultura, Sao Paulo: Brasiliense, 1985. pp. 197-221. Brasilia, sede do governo federal, corresponde em termos administratives e polities, & area do Plano Piloto. E uma das regidcs admninistrativas do Distrito Federal, formado também pelas chamadas cidades- satelites, e outras regides administrativas, como: Taguatinga, Guard, Nécleo Bandeirantc, Riacho Fundo, Recanto das Emas, Samambaia, Santa Maria, Gama, Coildndia, Brazlindia, Cruzeiro, Paranoi, Sobradinho, Planaltina, e outras compondo ao todo 19 regiées administrativas. F importante mencionar também a importincia do entorno do DF, co qual fazem parte 42 municipios de Minas Gerais ¢ Goids, ¢ 8 Taguatinga, Sobradinho, Agrovila, e outras areas do Distrito Federal. Dessa perspectiva, Brasilia pode compreender em seus limites um territorio que atinge até Corumbi de Goids, Ter parentes ou amigos em Brasilia ter vivido ou passado por 14, é uma imagem que engloba outros territorios que nfo os contidos na delimitagao formal e administrativa do signo, palavra e cidade de Brasilia, que podem transbordar os limites do Distrito Federal e ser mesmo em Goids. Refletindo-se sobre a historia de Dona Inocéncia, ¢ usando imagens associadas a0 sertio, lidas em movimentos de largueza ou amplidao - como o “nunca mais voltar para casa” -, ou na indiferenciagio Gamal Guaré/ Brasilia - entre o que pode ser extremamente diferenciado, minimo, inesperado - reencontra-se 0 deserto € 0 vazio na incompreensio ¢ na solidio da cidade grande, Referéncias associadas aos “espagos do sertio”, como diria Schettino, e a suas tantas imagens que tambem incluem esse nome de lugar" Mas ha tantas outras historias. Brasilia, para essa regiao do Noroeste de Minas, parece ser a “grande capital” da regido, mais que outras grandes cidades possivels, como Montes Claros ou Belo Horizonte’. A expressao ¢ utilizada aqui no sentido émico, onde a referéncia nfo & & capital federal, como poderia ser pensado, nem mesmo a uma vinculagdo politico-administrativa, e sim, no mesmo sentido em que # “Vila dos Gatichos" é a capital para aqueles de Santa Rita - a capital, como a cidade, ou 0 ambiente urbano mais proximo, para onde se vai em busca de suprimentos, bens, servigos. Como, numa outra gradagio, Januaria pode se-10 para o Noroeste de Minas, ou Montes Claros para 0 outro lado do Sao Francisco, Mas € tempo de voltar para 0 itinerdrio do dia 07 de fevereiro - a primeira visita a Santa Rita. ‘que conta inclusive com uma secretaria propria. 5! Brasilia € metafora da tentativa de conquista desse espaco. A construgao de Brasilia tentou quebrar cease isolamento [do serio]. © punhal estriante ¢ cartesiano da civilizaglo foi cravado no espago vazio dos gerais (..) A capital da nago que se pretende civilizada, veto de cima, alienigens, aterrorizou scu plano piloco no nada, sobre 0 mato do seriéo, None, Sul, Leste, Oeste, quadra, Bloco, W3, 12, eixos, ‘ima profusto de esirias sobre o indeterminado espago do sertéo goiano, (.) Brasilia-idade ¢ também planalto, gerais, cerrado. Espago recriado. A arquitetura, o planejamento wbano e, principalmente, a Fecente ¢ ostensiva ocupacao do espago nao conseguiram dominar por completo o vazio, © honzonte ainda dornina (...) O cerrado insiste, esiste, embeleza..”, in Schenttino, MP., ap.cit, p81 3 Belo Horizonte encontra-se a 750 km do Parque, enquanto Brasilia est a cerca de 350 kan. Caminho de volta Passada a primeira visita a casa de Dona Inocéncia, nos dirigimos ao caminho de volta, Nele, ha a lembranga de passagens marcantes, Uma delas, aconteceu entre uma vereda ¢ outra, quando ja me sentia entregue ao estar perdida no enorme sertio, entre as grandes distancias, e de repente depara-se com postes de luz! Foi o primeiro sinal de existéncia, durante a pesquisa, da Fazenda Carinhanha - uma grande fazenda nos moldes da agro-indastria e atualmente desocupada, incluida na area do Parque facional. Um indice que o leitor deve manter em mente, porque posteriormente voltaremos a ele Durante a longa volta da casa de D. Inocéncia rumo ao Piv6, também 0 Morro ‘Trés Irmaos, outro lugar criador de “legendas locais”**, e de espagos de habitabilidade que se fazem através de memorias ¢ lembrangas. Meméria que tem o cariter de um antimuseu, diz Certeau, que traz presengas de auséncias, como o pati que ja foi cruz, Jembranga da sepultura de Seu Emilio ao pé do morro ‘Santa Rita vista do Morto Trés Irmaos. A esquerda na foto, 0 guarda-parque José Luis % Centau, M.op.cit ag Do aito do morro, a visio do vale até o infinito, de veredas, cerrados, gerais, até onde se encontra com a linha do céu, céu de cerrado. Certo é que havia paisagens ali, segundo contou Zé Luis, em que até onde a vista alcanga vé-se o Parque. O morro evoca outras subidas e de outras tantas pessoas que por ali passaram. Dali também, o nacho Santa Rita faz um “s” O Bambuzal Ao reproduzir parte do itinerdrio de pesquisa, reflito também sobre diferentes significados atribuidos a lugares, entre sujeitos diversos que percorrem espagos, Nesse ponto, podemos trazer a percepcdo de Certeau, na observagao da cidade, de um “sentido literal” relativo ao espago, representado no discurso normative fornecido pelo espago geomeétrico dos urbanistas e arquitetos. © caminhar ¢ sua enuciagio, a “retdrica habitante”, revelaria desvios de significados expressos nas “figuras de estilo da retorica da caminhada”, a sinédoque e o assindeto” © assindeto 6 uma figura de estilo que permite que se suprimam os termos de ligagio, conjungdes e advérbios, numa frase ou entre frases, ou “quando as oragées de um periodo ou as palavras de uma oragio se sucedem sem conjungéo coordenativa que poderia enlagé-las**, Assim como a lingua, a caminhada também permite a selegdo fragmentagio do espago percorrido, que se saltem ligages ¢ que se omitam trechos inteiros, Ja a sinédoque possibilita, através de seu uso, que uma palavra com um sentido original de parte de um todo, possa designar seu todo. “Da mesma forma, a cabana de alvenaria ou a pequena elevacdo de terreno & tomada como o parque na narrativa de uma trajetoria”. A sinédoque refere-se, portanto, a uma enunciagio da pratica que “amplifica © detalhe e miniaturiza 0 conjunto™. Nas descrigées de um itinerétio construido dialogicamente, pode-se perceber emunciagdes particulares relativas ao espago. Algumas das desotigbes anteriores trouxeram 0 que, para diferentes sujeitos, podem evocar uma lagoa, um “pau” ao pé de © Centeau. M. opcit. Cunha, Celso Ferreira da, Gramdtica da Lingua Portuguesa, FENAME. Rio de Janciro, 1980, p. 584. Centeau. M. op.cit. p. 181. um morro, ou o deslocamento até a cidade grande, Porém, dos varios pontos desse trajeto, o mais enunciador foi um bambuzal ‘Quando estavamos quase chegando ao pomto de partida e, agora, de chegada - 0 Pivé - Zé Luis mostrou-me o que, para ele, setia um lugar bonito para se fotografar. Para mim, num primeiro momento, nao significou mais do que isso, um bambuzal como tantos ‘outros que ja havia visto - menos do que exéticas plantas do cerrado que me chamavam a atengao. Tinha poucos filmes, € optei por nao tirar a foto. O bambuzal sugeriu, nesse momento, um ponto a ser omitido na descri¢ao do itinerario - 0 assindeto. Revelando também, uma relaglio com o espago que se remete ao nio-lugar, e a seu modelo arquetipico na viegem do turista: uma pratica impessoal, fragmentada e instanténea® [Assim que chegamos de volta ao Pivd, ao fim da tarde desse dia, reencontramos a mie de Zé Luis, D. Edite. Um pouco depois, chegaram da Vila alguns de seus irmaos, para também peroitar ali; e também receberam 2 visita de um dos filhos de Joao Teixeira - vizinho, ¢ primo. A certa altura, reunidos dentro da casa, conversivamos ¢ comecei a perguntar sobre as pessoas que ali viviam. Dona Edite contou entio dos que primeiro adquiriram as terras: Finados Anténio e Flora, Tinha ouvido, até entio, algumas pegas soltas da historia do casal, mas foi D. Edite que peta primeira vez as amarrou, ¢ ofereceu visdes de Santa Rita e dos Pagoca através dos anos ¢ geragoes. Foi ela também uma das ‘inicas a entrar em aspectos da posse da terra, mencionando um documento sobre a mesma, tirado talvez depois da morte do finado casal, quando Jacinto e Joao © Para Auge, 0 “ndo-lugar” refere-se a um espago que nfo pode ser definido nem como identitirio ou relacional ou histérieo. Porém, ni se trata da oposicio pura e simples a idéia de “lugar antrapatigica”. fe sim da referéncia & constituicdo de espagas caracteristions da “supermodeznidade” (como aeroportas. ‘aulo-csiradas, superinescados. parques. metrds), marcados por experiéncias solitérias, andnimas ¢ Fragmentadas (como no modelo da viagem turistica contempordnea, entre outras referéncias) - espacos de passagem, superficialidade ¢ mio-fixagdo, ver Augé, M. op.cit, Entretanto. como coloca Labate. @ Yyiagem no se reduz ao fenémeno do turismo, € mesmo no campo do turismo contemporineo € ‘lobalizado, revela outras experiéncias. inclusive de “conhecimento do outro c da natureza”. como a dos Suieitos que analisa; os “viajantes-turisas”.( Labate, Beatriz Caiuby. “A Eperigncia do *Viajante- Tunisia’ na contemporancidade” in Turismo e Meio Ambiente. (org. Maria Tereza D. P. Luchiari) TTextos Diditicos.. IFCH/ UNICAMP. no. 31 (1) ~ novembro de 1997) Sua refiexio trax também a ccontraposigdo desses tipos de viagem 4 viagem caracteristica da antropologia, remetendo-se sobretwdo 2 Clifford. Nesse autor. € discutida a caracterizagio da prépria antropotogia atraves da pesquisa de campo ieldwork), da viagem, do deslocamento fisico e da residéncia temporaria, problematizando-2s como priticas espaciais definidoras do campo. (“Spatial Practices: Fieldwork, Travel and the Disciplining of ‘Anihropology” in Clifford. James. Rows’ Travel and Translation in the Late Twentieth Century ‘Cambridge, Massachussets: Harvard University Press. 1997. pp 52-91. Tais perspectivas sdo relevantes za reflexto sobre parques nacionais se lembrarmos da utilizagto prevista dessa categoria de unidade de conservacio: pesquisa. turisino ¢ educagdo: além do fato da atividade turistica integrar-se de mancira Intensa, ¢ muites vezes problemética, ao contexte de alguns dos parques nacionais no Brasil, como os da ‘Chapada Diamantina, Chapada dos Viadeiros ou Lengéis Maranhenses. 85 Teixeira ainda eram bastante jovens, Em algum momento, durante essa conversa que reunia a todos ali presentes, voltamos a falar do itinerério ¢ dos lugares que havia visitado, ou por onde havia passado. Zé Luis mencionou ento termos passado pelo bambuzal, ¢ a sesso de fotos frustrada - foi quando o bambuzal revelou-se mais do que um bambuzal qualquer O bambuzal Por volta do final do anos 70, inicio dos 80, D. Edite e seus filhos moravam naquele lugar, ¢ foi ela mesma que plantou o bambu. E importante dizer que também cles so Pagoca - ela é casada com um dos filhos de seu Jacinto, terceira geragao desde os finados Ant6nio e Flora, Por algum motivo, como 0 de haver muitas cobras no local, resolveram se mudar e ali deixaram a tapera. Construiram uma nova casa no muito distante, proxima ao local onde vivem hoje filhos de Joao Teixeira. A nova morada nao durou muito tempo, pois aquele grupo dos Pagoca reclamou de invasio em suas terras e, diante da recusa de D. Edite em sair dali, resolveram tomar providéncia. Sua narrativa conta o dia como tragédia, Destruiram a casa, soltaram os animais, diante dela e dos filhos pequenos, Segundo ela, dois policiais acompanhavam 0 grupo que reclamava sobre a terra, e um deles, quando se deu conta da situagio - ela s6, com criangas, ¢ desabrigados -, recusou-se a participar da expulsdo, 0 que no evitou, entretanto, sua consumagao. Sem morada, dormiu a primeira noite, de tempestade, ao relento, tentando abrigar como podia os filhos pequenos. Meméria narrada com muita emo¢do ¢ tristeza Passou meses morando em baixo de uma lona, até que recebeu auxilio de um primo de 86 Januaria, seu lugar de origem. O tempo passou, ¢ conseguiram por fim comprar um lote na entdo chamada Vila dos Gaitchos, onde a familia vive até hoje. © bambuzal contava uma historia. No itinerario construido por José Luis, ele revelava beleza a ser fotografada, talvez da propria historia que podia ser contada ¢ da Juta de sua mae. Junto ao relato de Dona Edite, 0 bambuzal condensa temporalidades e transforma-se em elemento que se remete a algo mais, como a sinédoque - “figura st Ele passa a designar a meméria da antiga morada ¢ sua ambulatoria da densidade’ propria narrativa. O bambuzal torna-se signo de lembrangas, sentimentos ¢ reflexdes sobre a vida - ¢ condensa uma representagio de Santa Rita como espago construido ¢ desconstruido por vinculos entre parentesco, meméria e territorialidade Além dessa importancia, tal ponto do itinerario mostrou-se também articulado a outros elementos, que se somam as histdrias de Santa Rita e as colocam a partir de novas perspectivas, Dona Edite na passagem pela tapera CenteauM. Op cit, 87 Taperas e Parentescos Do ponto de vista do grupo ¢ de seu territério, ¢ também das relagdes de parentesco, essa histéria nos foi passada por um “parente incorporado”*, Como outras mulheres que se casaram com homens da localidade, a narradora também veio de Januaria. De sua origem, de uma das maiores cidades do Norte de Minas, trouxe também rouitas memérias, e uma maneira de olhar o mundo - ¢ seu novo lugar, Santa Rita - difereme Dona Bite, mudou-se, ainda jovem, com sua familia para uma regio proxima ao Parque, de onde muitos dali - inclusive seu sogro, o velho Jacinto - dizem ter sua origem, Vargem Bonita’, Fazenda Larga. Casou na década de 60, aos 19 anos, quando se mudou pare Santa Rita e para o mundo dos Pagoca “li, nat época que eu casei, a gente ndo via, a gente ficava assim.. eu pelo ‘menos, quando eu casei que eu cheguei 1d, que eu vi aguilo, aquele modo daquele povo, eu fiquei doldinha. quando 0 sol saia, 0 sol entrava, eu ‘achava... Teve um dia que eu achei que 0 mundo estava era acabando... Teve tana época que ex fiquei perdida, eu falei Meu Deus do Céu, 0 mundo esta acabando! .. me dew uma batedeira no coragao... (.-) ‘uma soliddo, Andréa... Uma solidéio.. Um povo assim que morava dentro “do mato, sem assim uma frente, sem um terreiro, sem assim... Uma coisa assimn mais esquisita.. (..) |. nada, nada voce ndo via... ume laranja, vocé néo via um mamdo, voce nao Via nada. Era sé a casa, e 0 que comer dentro da casa... Tinha sb a casa, ¢ as coisas de comer na casa... (A -.... as pessoas ndo se encontravam? Onde tinha mais movimento ali?) ‘Encontrava, ali na casa do outro... 0 lugar mais movimentado era allt punto ao Tord, no meio do Piv6, perto da casa da véia Martinha... Era dai para cima de onde nds tava... que ali finha mais movimento; que era Isidio, era a familia © A partir do estudo de Soares sobre a comunidade de Olhos Agua, “Esta pessoa é, pois um parente ro-parente, ou melhor, um parentc incorporado, pelo fato de que incorpora 0 papel de estar parent ¢ inao de ser parent, ¢ por isso mesmo carrega por toda a sua existéncia o estigm de ser “de fora’, mesmo ‘depois de contair metriménio com oma pessoa “de dentro.” Soares L...O forte ¢ o fraco, o dentro ¢ 0 ‘fora, Disseracto de gradvagio. Departamento de Antropologia, Universidade de Brasilia, 1987, p20 Citado em Woortmann, E, op.cit, p.253 © Atém dos moradores do Parque, muitos habitantes de Chapada Gaticha vieram também de Vargem Bonita, no municipio de Fanuiria Cruzando novamente caminhos historicos ¢ ficcionais,€ relevante Imencionar que tal localidade ¢ indicada como tendo sido local de refigio do jagungo Anténio D6, © paleo de batho entre ele © seu grupo, contra tropas do governo, em juno de 1913, sendo ele figura histovica ainda lembrada, sobretudo pelos mais velhos. Lé também, o personagem Ricbaldo Tatarana diz {elo conhecido: “... Antonio Dé eu conheci, certa vez, na Vargem Bonita, tinha uma feirinha 1s, ele 6e chegou, com ums seus cabras, formaram grupo calades, aredados..”, in Rosa, Guitmaries. op citp 129: Sobre Antonio Dé, ver também Braz, Brasiliano. op cit. pp. 369-409 e Valadares, Napoteda, op cit. 88 dele, era os fithos, que era... genra, tudo dele... Mas, dali para baixo era uma tristeza... Era o compadre Aljreldo, que era cunhado de Ercilio; era meu sogro no Ogénio... Id é igual assim um remanso que a gente... so que ele é bem fundo, que vocé $6 vé ele (.) onde a dgua desce...” ‘Ainda nessa conversa, que tinha @ presenga também de sua filba, Dos Anjos, D. Edite falou de sua infancia, de carinhos da mie e da madrinha, que contrastou com suas primeiras experiéncias ¢ sentimentos com relagao a Santa Rita: de certo a senhora estranhou.. D. Baite - .. agora, e depois, Andréa! A gente passar para um lugar igual a esse em que eu me ache... Dos Anjos -... criar no meio de gente, para depois ir para o deserto.... D. Edite -... a gente acha .. muito esquisito. Para acostumar, vou falar... a gente vive, igual falava e fala... Hoje, gracas a Deus estou numa mansiio. ‘Mas, eu falava: olha, eu gui nesse meio, eu estou vivendo. Mas acostumar, nunca! Nunca, minca eu acostumo.. N&o porque o lugar era ruim, era o movimento... @ movimento” Pensando, primeiro, nas descriges feitas anteriormente sobre a localidade, sobre © predominio de um grupo de parentesco, essa historia parece reforgar 0 ideal endogémico, e a importancia da manutenglo da terra entre a famitia, privilegiando as relagdes entre consangiineos - 0 que também parece dizer a historia do bambuzal. E significativo 0 fato de, na época, o matido de Dona Edite, Pagoca “legitimo”, filho de Seu Jacinto, estar afastado de sua familia nuclear, ¢ no ter presenciado ou se envolvido no episodio, Se, segundo as leituras de Woortmann sobre localidades como Lagos da Mata, ou Olhos d’Agua, os lagos de afinidade séo subestimados em relagio aos de consanguinidade, neste caso, a auséncia do esposo pareceu amular os vinculos existentes, © anular também os direitos da familia em permancecer no local. Voltando & narrativa do bambuzal e 20 momento do itinerario em que ela foi narrada, estévamos no Pivd, casa do guarda-parque Zé Luis, Presentes, além de sua mie ¢ irmaos, também um primo, irm&o daqueles que haviam participado da expulsdo, A historia foi relembrada diante dele, que a ouviu silencioso, sem contesté-la ou comenté- Ja Talvez porque ele proprio com ela no concordasse - ele no participou da expulsao, na época. Talvez, também, porque o principal mentor do caso, © mais velho dos inndos, J tivesse deixado hi muitos anos a localidade, tendo passado a viver em Formoso, Mas, além dos anos passados e da “poeira assentada”, novos contextos se impuseram e permitiram inclusive fetorno a localidade da familia amtes expulsa, O 89 Parque Nacional Grande Sertio Veredas foi criado e, nos termos de sua co-gesti, entre IBAMA ¢ Funatura, foram contratados guardas-parques locais. Entre cles, José Luis, que foi designado para trabalhar em sua regio de origem, Santa Rita, Agora, como se 0 tempo houvesse arcado com a justiga entre os grupos, eles voltavam, porém a partir de novos prinefpios, configurando um nove quadro de relagdes. Sobre esse novo quadro de relagies configurado, que envolve novos nomes como 6 IBAMA, voltarei a comentar mais adiante, no proximo capitulo. Antes disso, porém, falemos mais um pouco sobre Santa Rita, e de um iltimo caso envolvendo seu territorio, seus marcos ¢ as pessoas que por Ia passaram. Santa Rita, Pivé e BAMA Durante a pesquisa, fiquei varias vezes hospedada em Santa Rita, na casa de Zé Luis, junto também com seus pais ¢ irmos que, sempre que possivel, descem da Chapada Gaischa até o Pivé Central, onde fica a casa Depois de um tempo, jé atuando como guarda e vivendo novamente na regiéo, Zé Luis mudou-se para essa casa, construida ali por gatichos, ¢ que estava até entéo abandonada em fungo de um processo de desapropriagio. Foi feito algum tipo de ‘acordo entre os antigos proprietarios, ele € o IBAMA, e sua nova morada passou ser no Piv6. ‘Trata-se de uma casa rara na regio do Parque, de alveneria, com infra-estrutura para instalagdo elétrica e hidraulica, apesar de nfo t€-1as funcionando, Na parede da sala, estdo marcadas as maos do homem que a construiu, m&os de seu Idearte Gaiicho™, como os fundadores da cidade, que ali chegaram num projeto de ocupagio € assentamento de colonos gaichos em 1976/77, Seu Tdearte comprou parte das terras que ‘um dia foram dos Pagoca, talvez as mesmas que foram vendidas por seu Isidio. AB fer sua fazenda ¢, com financiamento do Banco do Brasil, instalou na rea um pivd de irrigagao central - que se tornon marca na paisagem, avistado ainda do alto da Serra, ¢ também um nome designativo do luger mais amplo, como talvez 6 leitor tenha notado nas vérias vezes em que foi mencionado o lugar usando o termo Piv6. GOA qeferéncia aos “gaichos”, aqui, parte da acepgao local - € mineira, que inclul todos os colones vindos do sil, sejam eles gaiichos de fato, vindos do Rio Grande do Sul, ou dos outros estados sulistas, Paratsé ou Santa Catarina 9% No segundo plano da foto, a drea desmatada onde encontra-se o pivo de irrigacao, ¢ também o lugar cchamado Pivd Algo da historia de Santa Rita, do Pivd e de seu Idearte, nos conta um representante do Ibama, no PARNA GSV. “(sobre Sania Rita, e seus moradores) ‘eu no sei, eu nao tenho esse levantamento de quem tem documentagéio, ¢ se essa documentagiio ¢ uma documentagao que poderia ser considerada boa. quem tem documentagio é a familia do Idearte, que esti em fase de desapropriagdo... Esté sendo questionada na justica uma série... Porque tinha projeto de irrigag&o deniro da fazenda, financiado pelo Banco do Brasil. Porque, em determinado instanie, logo, dois anos depois da decretagtio do Parque. da criagdo do Parque, eles tiveram que abandonar o projeto, e estéio ai brigando na justiga, pelo fato de ser um projeto caro - segundo informagies de hoje, do pessoal da Justiga Federal, a divida no banco desse pessoal ja tem um milhdo de reais, por causa do financiamento, que eles néio tiveram condigdes de pagar em virtude de néio poderem produzir, porque eles ficaram impedidos de produzir. A situagéio néio tem previsiio. Hoje mesmo, ao reunir aqui com os Idearte, a Justica Federal, mais 0 projetista que fez 0 projeto, mais o pessoal do IBAMA, nds chegamos a uma conclusdo muito triste da situacdo... Porque para desapropriar é facil, facil... valor da terra, que foi pego hoje ai, foi feito varias cotagées do valor da terra na regio; as benfeitorias que esto Id, ja st estiio descriminadas no processo e.. a terra mais benfeitorias - entéio, isso at é de facil sohigio. ‘Agora, o que fica é a questito... o projeto parou, eles nao tiveram condigées de pagar ao banco, a divida foi aumentando, os bens deles, outros bens deles foram penhorados ¢ vendidos em leiléo, ¢ eles continuaram ainda com uma grande parte de divida, hoje sem condigdes de pagar. Eo proceso que rola na Justica é 0 de desapropriagdo.. ou eles teriam que tentar um acordo entre IBAMA, eles e © Banco do Brasil, acordo esse que a gente nao sabe dizer se é possivel, ou ento eles entrarem com um novo processo contra 0 IBAMA, por perdas e danos.. Entéo, a situagdo deles é critica: causow um problema social muito grande, porque envolvia uma familia grande, cujo chefe de familia ja é falecido, entiio jd é espéi food (J Ai, a drea deles, como tinha o projeto de irrigagdo lé dentro, dentro do regulamento do Parque ndo & permtido, eniéio eles foram obrigados ... a abandonar, E uma quesiéo bastante complexa, e até mesmo wn pouco duvidosa de como a coisa foi fetta... porque o responsavel do [BAMA aqui, na época, néio fez oficialmente nenhum embargo (...) “Mas, por outro lado, a familia alega que 0 rapaz usou de forga... ¢ até de wm certo terrorismo para eles sairem da drea.. Eles acabaram abandonando a Grea, abancionando inclusive o pivé central, que é um custo muito alto... ¢ provavelmente 0 IBAMA néo vai ressarci-los porque nio é previsto ressarcimento dos bens méveis... O pivo é um bem mével. Agora, a questdo é essa: eles no teriam aonde aprovettar o piv, porque eles no finham terra onde tivesse agua... eles até tinham uma outra terra, que parece até que foi penhorada pelo banco, mas eles néio podiam botar 0 pivd ta. Vender o pivé eles nizo podiam, porque o pivs estava preso ao banco.. Eniio, ficou essa questiio... E, eles ficaram amarrados, sem o que fazer. Néo podiam entrar na rea, porque uma pessoa intervia, em nome do érgao. Nao podiam retirar 0 material, porque ele ndo tinha serventia em outro lugar - faltou nesse caso, No ‘meu entender... que as partes deveriam ter sentado junto, inclusive 0 Banco do Brasil, para tentar solucionar o problema da femilia, Isso ndo foi feito. Nao consia no processo nenhum ato de tentativa de negociagdo, de acordo.. . ‘Hoje, eu estava dizendo para as pessoas da Justiga Federal que ainda seria um ‘caminho, essa negociagdo... mas, que eu via muita dificuldade, porque ela teria que envolver a politica, porque seria a decisdo mais politica, e.. com interferéncia até de politicos mesmo, porque quando se fala em negociasao... ‘Néo tem nenium tipo de norma orientando negociagdo nesse sentido... de ‘acordo, Para um érgao public, as pessoas passam por ld, nas diregdes desses rgds, enido estiio sempre decidindo em cima do que existe de legislagéo, entio é muito dificil um acordo nesse momento, a ndo ser via politica. E a ‘outra alternativa é eles entrarem com um processo de perdas ¢ danos contra IBAMA, 0 que levaria muitos anos € muitos anos, e talves geragoes ai da familia deles...°” © Entrevista realizada em marco de 1997, na sede do IBAMA/ PARNA GSV, na Chapada Gaiicta, 92 Entramos pela porta de Santa Rita e saimos por outra, a do Pivé. A historia dos Idearte, contada por um representante do Ibama, permite-me concluir essa parte, introduzindo novos elementos Do inicio desse capitulo até aqui, foram trazidos aspectos mais gerais sobre a ocupagdo espacial e a organizagio social em regides delimitadas pelo PARNA GSV, entre seus galhos ¢ veredas. Acompanhando mais particularmente a historia dos Pacoca, percebemos tragos da meméria do grupo que reforgam a ligagdo entre parentesco e territorialidade na construgio desse lugar. © relato sobre o itinerério em Santa Rita, seguindo as trilhas da “ronda”, tentou pereeber a localidade a partir de encontros proporcionados por deslocamentos - revelar Santa Rita como lugar praticado, criado recriado por memérias, agdes ¢ identidades proprias. A relagdo entre 0 bambuzal e 0 Pivé insinua que Santa Rita é também um espago de interagiio, que pode reinterpretar novos atores € contextos segundo seus proprios termos. Porém, o drama de Seu Idearte - 0 investimento na Fazenda ¢ no pivd de irrigagie, a expulsio perda dos bens em fungio do Parque, os entraves legais burocriticos que transformaram essa mesma perda em divida a ser paga por ele e sua familia - indica que Santa Rita, como outras localidades do Parque, pode ser vista como lugar miiltiplo, cruzado por outros e diferentes principios ¢ temporalidades. O proximo capitulo pretende compreender alguns desses aspectos no contexto da historia regional ¢ da implantag&o do Parque, e seus novos atores, CAPITULO 11 ESPACOS E TEMPORALIDADES: RECONTANDO PARQUES E SERTOES o “Ah, esse norte em remanéncia: progresso forte, fartura para todos, ategria nacional! Mas, no em mesmo, 0 afi da politica, eu tive endo tenko mais... A gente tem de sair do sertao! Mas s6 se sai do sertao tomando coma dele a dentro... Agora perdi, Eston preso. Mucei para adiame!. Zé Bebe, em seu julgamento’ 1, Do vazio histérico & pluralidade de tempos Neste capitulo - através do desvio que traz historias de outros tempos - procura- se quebrar uma impressiio que se faz forte, muitas vezes, aos “estrangeiros” que chegam pela primeira vez a regio do PARNA GSY, sejam eles pesquisadores, ambientalistas, empreendores, ou mesmo turistas ou visitantes. Refiro-me a impresso do deserto vazio @ intocado pela histéria, que reforga o proprio “mito da natureza intocada”, a ser legitimada pela criagao de um parque nacional, ou desbravada pelas “frentes pioneiras” ou'‘fientes de expansio” © capitulo anterior procurou desconstruir outra impressao, a do vazio social - expresso também em significados atribuidos a categoria mais ampla de serto -, quando, na verdade, mais do que uma auséncia, percebe-se uma forma particular de organizagio social e territorial. Considerada de uma perspectiva temporal, a impressio do vazio social transforma-se em outra, de um vazio histérico, Ora, se tomarmos as caracteristicas da regio que permitem percebé-la como uma regido de fronteira - agricola, sécio-econémica, cultural -, ¢ relevante lembrarmos uma caracteristica mais geral que envolve as situagSes de fronteira, apontada por Martins” - a coexisténcia de temporalidades desencontradas: desencontro de temporalidades historicas € lugares sociais distintos. Desse ponto de vista, se para agentes da moderna agricultura capitalista a historia da regido mostra-se incipiente - a de um desbravamento e de uma ocupacio ainda por se fazer -, por outro lado, a ocupagdo camponesa Rosa, Guimaraes. op cit, p. 21. = Martins, José de Souza. “O tempo da frontcira - Retomo controvérsia sobre o tempo hiistérico da frente de expansio e da freme pioneira”. in Tempo Soctal - Revista de Sociologia da USP, volume no. 1. Margo de 1996. pp. 25-70, A tese central desse trabalho & a de que a fronteira “e, simultancamente, lugar de altcridade ¢ expressio da contemporaneidade dos tempos histéricos", assentada inclusive ma idéia de que 0 conflito € 0 que ha de sociologicamente mais relevante pasa caracterizar ¢ definir a fronteira, Martins traz também, junto ao descnvolvimento dessa tese, uma reflexio critica sobre diferentes concepgoes de frontcira no Brasil, revendo sobretudo as concepgdes de “frente pioncira” & “frente de expansio”. desenvolvidas respectivamente a partir da geografia dos anos 30, e da antropclogia os anos 50, 98 registrada desde 0 século XVII, através da expanstio da pecuaria e do deslocamento das bandeiras paulistas, ou mesmo as tentativas de intervengiio econémica ¢ politica do Estado desde o periodo imperial, revelam outros tragos de diferentes modos e tempos de participago na histéria regional, ¢ mesmo diferentes historias que coexistem contemporaneamente. As maneiras de se registrar € interpretar esses tempos e passados so também diversas, Por exemplo, entre a historia regional trazida a tona por memorialistas ou historiadores e as memérias locais de cardter oral, diferentes séo as incorporagdes, 08 marcos, a extenso temporal compreendida, o que é lembrado € 0 que & esquecido. Assim, num primeiro momento, esse capitulo traz materiais diversos que se contrapem impressio do vazio histérico: narrativas e relatos de historiadores, relatos orais obtidos durante @ pesquisa, agrupando-se sem um tratamento diferenciado, trechos de entrevistas, comentarios, casos ¢ reminiscéncias. Enfim, historias cruzadas dos lugares do Parque Nacional Grande Sertio Veredas Posteriormente, tendo situado 0 Parque historicamente, serio descritos trés acontecimentos em lugares do PARNA GSV e em seu entorno. Vistos como situagdes sociais, de um lado, expressam encontros ¢ desencontros entre os diferentes grupos envalvidos no contexto estudado, muttiplicando os significados atribuidos aos lugares do Parque e colocando em contraste distimtas racionalidades, programas de aglo e referéncias sicio-econdmicas e culturais. Por outro lado, so também eventos, isto & momentos significatives que revelam menos uma oposigio entre tempos de antes depois, ¢ mais as historicidades e complexidades desses encontros. Lembrangas do Noroeste © caminho até Anténio ¢ Flora nos traz uma temporalidade particular, uma forma de se relacionar com o tempo, com o passado e com as memérias. Essa particularidade fica mais clara, por exemplo, nas formas mais recorrentes de se demarcar o passado entre os habitantes do Parque. Na maioria das conversas com as pessoas da regidio, moradoras das localidades do Parque, tanto mais velhos quanto mais jovens, os acontecimentos narrados, descritos com mais preciso, parecem circunsereverem-se em um passado que, ‘em geral, cabe nos “30, 40 anos atras”, ou numa margem préxima Nessa periodizagio, refembra-se a chegada dos primeiros moradores das 96 localidades, vindos de outros lugares de Minas Gerais, Goiés ou Bahia, construindo outros lugares que iam ganhando nomes como Santa Rita, Onga, Firminano, Sao imagens ¢ memérias povoadas por viagens de carros de boi a Januaria ou Sao Francisco, das quais muitos participaram de grandes boiadas como tropeiros. Os tempos anteriores, as fembrangas cuja origem ou participantes néo podem ser situados, perdem-se frequentemente na névoa do “tempo dos antigos”, no “principio do mundo” - onde talvez se incham marcas de outros tempos, tempos dos bugres, como parecem expressar as “fumas” de indios de Santa Rita Paradoxalmente, ha também a impressio de quase poder se tocar tais passados, dentro do proprio presente. Nao tanto como nas cidades histéricas, onde o passado se presentifica materialmente, por exemplo, em casas que abrigaram tantas geragdes de uma ‘mesma familia, No caso da regio aqui trabalhada, essas marcas sto mais sutis, como as proprias taperas que se desfazem e se confundem com a paisagem. Muitos aspectos da vida coletiva também mostram-se tradicionais, atravessando tempos, como ¢ 0 caso da Curraleira - uma danga popular que alguns diriam extinta’ - e que ali é encontrada, e dangada pelos proprios guardas-parques. Os distanciamentos e aparentes isolamentos do mundo urbano e desenvolvido, que envolvem as comunidades e a vida das pessoas da regio do PARNA, provavelmente contribuem para tanto, porém uma explicagao unicamente relativa ao espago - através da distancia ¢ do isolamento- no se mostra suficiente para a compreensio dessa forma particular de se relacionar com o tempo e com o pasado. Ainda que a existéncia de grupos ¢ pessoas da regido passe despercebida até mesmo para o municipio proximo’, que as distincias entre os vizinhos mais proximos sejam grandes - que dira das cidades, ° A referdncia a essa “extingo” encontra-se no Diciondrio do Brasif Central. A partic do verbete “eurraleira” temos: “/. Danga sertaneja: ‘Nao coligimos todas as dangas goianas: algumas, come a ccurraleira, ficam § margem por termes incompleto 0 seu desenvolvimento. as nossas reminiscéncias nao retratam todas as fases vividas nos serves’ “Curraleira - 2 danca golana extinta, que Americano no pode reconstituir (..) 2. Raga de gado goiano de chifres grandes (curraleiro), assim chamado por proceder dos currais do Sdo Francisco ...". in Orténcio, Waldomiro Bariani . Diciomario do Brasil Camtral. Séo Paulo: Editora Atica, 1983 Em conversa informal com o misico, violeiro € pesquisador Roberto Correia © a pesquisadora Juliana Sacnger. indicou-se que a referéucia a “curraleira” & ‘praticamente inexistente na bibliografia sobre dancas populates ¢ cultura regional nas regiges de Minas Gerais © Goids. Entretanto, como suas proprias pesquisas tém demonstrado, « danca “sobrevive™ milo sb na regido do Parque, como também em Goids ¢ no chamado extomo do D.P. * Numa conversa com a primeira-dama da Chapada Gaicha, por exemplo, soube da assisténcia que 0 ‘municipio pretendia dar a pessoas, moradoras de uma localidade dentro do Parque. portadoras de hanseniase, Pessoas que, em fungdo do proprio medo e estigmatizagio em tomo da docnga vivam escondidas. Nunca havia chegado ajuda do municipio ao qual a localidade antes pertencia - Formoso - porque o proprio municipio desconhecia a existéncia de moradores na ogi. 7 da televisao, dos jornais, do “mundo globalizado” - as pessoas também circulam, viajam, transitam e, de uma forma ou de outra, descobrem acessos e formas de aleangar coisas de “outros mundos”. Nesse ponto, é importante mencionar a circulagao de noticias locais ¢ regionais, ou mesmo externas a esses contextos - como, por exemplo, resultados de jogos de futebol, de campeonatos nacionais ¢ até internacionais ~ por meio da propria ‘movimentago das pessoas e das informagSes que levam ou buscam, ‘Nem por isso, a impressio de “passados” que coexistem no “presente” diminui Outro caminho também ¢ revelador desse aspecto, quando, por exemplo, se procura 0 passado da regido na escassa bibliografia existente, ¢ reencontramos certas descrigées ~ de cenarios, situagées, pessoas, habitos, costumes - que se mostram contemporineas aos moradores atuais da regio, ¢ as suas vidas As semelhangas de desctigdes de viajantes como Burton e Saint-Hillaire, por exemplo, com os tempos de hoje, dizem respeito as deserigdes do espago, do ambiente, das pessoas que © habitam, e da vida ali conduzida, Podem-se reconhecer toponimias, descrigdes sobre o cenirio, a paisagem, as casas construidas, as relagdes com o gado, palavras sobre o “burity”, o uso de cobra como remédio, as peregrinagées a Bom Jesus da Lapa, as taperas. Também as descrigdes sobre os habitantes do sertéo”, seus habitos, modos de falar’, ¢ tantos outros elementos vindos do passado - escritos ha tantas décadas, ou hi mais de um século - participa de “presentes” da regitio. Outra maneira de se pensar esse pasado, através de outras temporalidades, & percebé-lo por meio de alguns autores que tém a preocupagdo de reconstruir uma histéria local ou regional, como é 0 caso de Brasiliano Braz” e de Matta-Machado*, Nesses autores, as areas incluidas no Parque participam marginalmente da historia do Noroeste de Minas Gerais, historia dos grandes centros como Januaria, Sdo Francisco, Formoso, dos grandes acontecimentos e nomes que nela tm papel relevante. Brasiliano Bras, em So Francisco nos Caminhos da Histéria coloca como foco **(. )Considera-se neste pais uma grande falta de delicadeza recusar a um homem, quc goza de alguna ‘considera. uma graga que pede para outrem: mas se essa mole condescendéncia tem por origein um sentimento delicado, no ¢ menos verdade que faz violar constantemente as leis © a justiga. p. 283 in Saine-Hillaire(..) op.ct “*(..9 Poderia mencionar pessoas hospitaleiras em cujas casas me apeei, © que & todas as perguntas so ze respondiam com essas palavras: “E conforme’.", Saint-Hillaire, 476 * Braz, Brasiliano. Sdo Francisco nos Caminhos da Historia. Editora Lemi S.A. Belo Horizonte, 1977. * Mata-Machade, Bemardo. Historia do Sertdo do Nororeste de Minas Gerais (1690-1930). Belo Horizonte - imprensa Oficial, 1991 98 de seu livro 0 municipio de Sao Francisco, que até recentemente incluia os distritos da Serra das Araras ¢ da Vila dos Galtchos, e que exerce 0 papel de um dos principais centros da regido, ao lado de Janudria, Formoso, ou mesmo Montes Claras. Seu objetivo, como o proprio titulo da obra diz, € situar Sao Francisco e sua regio na Historia. Escreve da perspectiva de homem da regido, letrado, ¢ com passado politico, que em 1937 exerce pela primeira vez 0 cargo de prefeito, percorrendo a pantir de entio uma longa vida politica. Pela propria participagio do autor nessa historia, ¢ de ressaltar 0 tom memorialista ¢ intimo que muitas vezes se revela. © compo principal de sua obra é divido em trés periodos: a Historia Antiga, a Historia Média ¢ a Histéria Contempordnea, até o ano de 1976. Seu fio condutor ¢ 0 politico, especialmente o da politica oficial local, que se revela-se mais claramente a partir da “Histéria Média”. Entretanto, quase como um apéndice, Braz traz também outros temas em seu livro, como entre as quase cem paginas das chamadas “Generalidades”, onde inclui dezoito crdnicas de pequenos fatos ¢ personagens menos ilustres de Sdo Francisco, nem por isso menos conhecidos localmente ou menos dignos de registro. Guarda lugar também para percorrer manifestag6es do folclore local”, os esportes, as organizages partidérias, uma cronologia e descrigdo do ensino no po municipio, a “geografia e sua evolugdo histérica™”, a reprodugao de alguns documentos histéricos, além de uma narracao bastante afetiva e espirituosa dos “tipos populares” Encontraremos as origens da cidade na “Historia Antiga”, junto aos bandeirantes, “quando as terras eram disputadas pelos bugres e as feras”. Braz vai longe no tempo e, para localizar 0 nascimento de Sio Francisco, traz Pizarro ¢ Cortés, as lutas entre Espanha e Portugal, e os tempos de D. Manuel, o venturoso. Partimos da segunda metade do século XVI, com D. Jodo III, 9 rei povoador, dos relatos de “fabulosos tesouros nos fumdos de nossas matas”, das narrativas alucinantes sobre a Serra Resplandescente, De modo que, em 1531, sob o reino de D. Joao Ill, acontece a primeira expedig2o colonizadora, a “bandeira Espinoza”, enviada por Martin Afonso de ° Tépico formado pelos seguintes itens: ~O humorismo das chulas”, “Os reisados”, “O carnaval”. “O Zé Pereira”. “O entrudo”, “Quadrinhas populares”, “Frascologia popular”, “Lendas, Tradigbes ¢ superstigaes” 5. Criagio das Vilas, municipios, formagio do atual municipio e distrites gue © compe, terrt6rios, ttazendo esclarecimentos sobre limites € terrtérios do municipio 1 Sendo eles: “O Jeia”, “O cabrinha”. “O Chico Durinho”, “A Raguel", “O Joaquim da Maria do adie”, “A Chica-paio”, “O Antdnio Besta”, e “O Chico Besunta" oo Souza em busca da Serra Resplandescente, Essa expedigao, pereorendo o tio Sio Francisco, teria deixado tragos na historia de quase todos os municipios do Norte Mineiro. “A historia do municipio de Sao Francisco esta intimamente ligada 4 do grande rio que the empresta o nome. Cidade e rio se confudem numa mesma toponimia, Vamos, pois, buscar na mesma remota fonte a razio de ser do nome que ostenta”, Seu relato percorre a criago do proprio municipio, por seus nomes anteriores, por sua povoasdo ¢, como mencionado, pelo rio que the empresta o nome. Situa 2 fundagio de So Francisco, ou sua primeira povoagao, logo depois da entrada do Cel. Januario Cardoso, entre 1700 e 1702. Passa por seus varios nomes - Pedras de Cima, Pedra dos Anjicos, Sao José da Pedra dos Anjicos até que, finalmente, em 1877, em homenagem ao rio, recebe o nome de Silo Francisco, Esse, nomeado muito antes, quando em 1501 partiu de Lisboa a expediglio que batizou diferentes paragens do litoral, a partir do calendario ¢ sempre em louvor aos santos do dia e, em 04 de outubro, o rio recebe seu nome em louvor a Sao Franscisco de Assis. Braz, enquanto desfia essa historia, apresenta seus varios participantes ¢ contrapée aos bandeirantes - desbravadores e civilizadores - os outros personagens da historia fundadora: “Niio importa discutir o itineririo © sim registrar o fato historico que foi a chegada em terras, hoje do nosso municipio, dos primeiros homens civilizados. Aqui, no antigo dominio do indio Xacriabé, foi o iltimo posto da bandeira, onde voiveu ao litoral, em junho ou julho de 15$4”,"? A referéncia aos povos indigenas é feita por meio do embate com os bandeirantes, e por meio da miscigenago, onde o principal nexo entre as ragas branca ¢ indigena teria sido a mulher. Braz preocupa-se com a constituigao da raga brasileira, além de refletir sobre o “caldeamento das ragas”, procurando descrever 0 que de melhor © brasileiro teria tomado de cada uma delas. Do negro pouco fala, mas dos “indigenas” tenta trazer as “sombras do passado de uma raga infeliz, que outrora vagava livre por estas barrancas”. Sua descrigo € genérica, como quando discorre sobre seus “usos e "Braz. B. opecit., p39 100 costumes”, ressaltando também aqueles que teriam se perpetuado no “caldeamento” contribuido @ cultura regional. A narrativa sobre a “formosa Catarina” ¢ significativa nesse sentido, revelando aspectos do encontro, da miscigenagdo, e desse “papel da mulher ‘Ao longo da apresentagio de nomes de coronéis, bandeirantes, indios, de acontecimentos como 0 rapto da india Catarina, da miscigenag3o dos grupos, das historias de Matias Cardoso de Oliveira, “Senhor do Unucuia”, da conquista de Tapiragaba, Brés vai pasando pelas diversas fases vividas pela regio. Como por exemplo, ¢ relevante ali, nfo tanto os bandeirantes do ouro, mas os bandeirantes do couro: “(...) Eram os bandeirantes do couro que também avangavam sertio adentro, acompanhando a passo lento, mas seguro das boiadas, ‘gemendo pelas chapadas, aos latidos das ventanias ¢ aos agoites dos aguaceiros’ e, aerescentamos nds, a0 som do aboio dolente dos vaqueiros, com os seus descantes que tanto enriqueceram nosso folelore””™. Contado algo da historia do gado na regio, Braz conclui a Histéria Antiga com © “ano fatidico” de 1736 ¢ a Conjuragao do Sao Francisco, quando Domingos do Prado e Oliveira, D. Maria da Cruz, Pedro Cardoso, André Gongalves da Figueira ¢ seus companheiros revoltam-se contra a coroa, a taxagdo de impostos, e organizam o levante. ° Segundo Braz, nas tempos do Cel. Janurio, “principio da era de setecentos”, esse foi procurado por um aventureiro portugués, Manoel Pires Maciel, foragido da justica do Norte. “elemento de inestimével valor naquela conjuntura, por isso que. conhecia bem os aldsiamentos indigenas”. Manoel Pires Maciel gion as forgas que atacaram ¢ extcrminaram os indies Guaiba, nas regido de Sio Romo. Habitou durante um periodo junto aos caiapés de Tapiracabs, as margens do rio Sao Francisco. cujo cacique The teria dado a filha em casamento. a “formosa Catarina”. Teria tentado evitar 0 “sacrificio da tribo”. visto tero Cel. Janudrio Ihe prometido a aldeia como “partitha da conquista”. Entretanto, 0 grupo das caiapos teria repelido sua proposta de submissGo, A aldeia foi tomada e massacrada. Partiu, com sua formosa Catarina, para a regido do Brejo do Salgado, ¢ fundou mais tarde 0 povoado que situatia a sede do ‘municipio de Januéria, Porém, passado algum tempo, 05 grupos indigenas que ainda resistiam revoltaram-se @ “Do vao do Parana ao Alto Tocantins e do Carinhanha a0 Paracatu ecoou 0 grito de ‘guerra (..) O ar cobriu-se de flechas ¢ travou-se 0 duro combate”, Manoel Pires Maciel parte para luta; porém, em sua auséncia as indios raptam sua esposa Catarina, Resolve entlo esperar, ¢ desiste da idia de represilias, Nesse interim, Catarina. com a ajuda de “indios de sua confianga” consegue fugir ¢ retormar a caso de seu marido, Sua volta ¢ narrada como 0 principio da paz, sendo ela “o anjo que conseguiu implantar a harmonia entre os conquistadores € seus irmdos de raga”. Manoel Pires Maciel ‘concede liberdade 20s caiapés cativos, os indios concordam em se afastar do arraial: thes é dado todo 0 Sertio do Acari, no atial municipfo de Sto Francisco, onde teriam passado a viver em paz. Braz. B. opcit., pp.47-48, Também Burton traz uma verséo da histéria de Catarina, em sua travessia de Sao Romi a Januaria, Burton, R. Viagens aos Planaltos do Brasil. Tomo It. INL. Fundagio Nacional Pré- Memria. Cia Editora Nacional. Bsb/Rio de Janciro, 1983, p. 74 ™ Braz, B. op.cit, p. 50. Jol Luta aproximada da Inconfidéncia Mineira - apesar da distancia espacial, temporal ¢ mesmo contextual desses acontecimentos - pelo ideal, pois a Conjuragao do Sao Francisco surgiria como precursora da luta pela liberdade Braz comega a narrar entdo sobre o periodo que chama de Historia Média, nas entradas do século XIX. até a década de 30 do século seguinte. Chegam até nos as consegliéncias daquele movimento revolucionirio: a fore, a peste © as enchentes, a decadéncia des povos ribeirinhos - “a interrupgdo do passo rumo a civilizagao”. A partir desse periodo, 0 autor centra-se cada vez mais na histéria politica local, trazendo as personalidades politicas ainda da fase monarquica, os embates entre os partidos conservador e liberal, além de alguns fatos administrativos que transformavam, aos poucos, 0 cenirio da cidade, Adentramos 0 Period Republicano, ¢ cada vez mais o leitor se afasta de fatos © acontecimentos regionais ou nacionais, para percorrer as intimidades politicas e administrativas do municipio de Sdo Francisco, ¢ a sucessio dos grupos de poder local A reconstrugao historica do municipio segue esse padrdo na chamada Historia Contempornea, a partir da década de 30 até o ano de 1976, Nela, entretanto, 0 leitor yolta a ter vislumbres de uma vinculagdo da bistéria politica local a fatos ocosridos em outras dimensées da politica, estadual ou nacional. Um fato importante, nesse sentido, € que tem inicio no Governo do General Furico Gaspar Dutra, foi a constituicao da Comissio do Vale do Sao Francisco, que financiou obras como a construgao da Hidrelétrica de Pandeiros, ou de estradas como a de S20 Francisco - Brasilia de Minas - Montes Claros, Nesses casos, vale ressaltar igualmente, a énfase que o autor da & participagao e esforgos de politicos locais em torno de tais obras, criticando aqueles que por “interesses politicos” ou por uma “pontinha de despeito procuram insinuar que Pandeiros foi uma obra de exclusiva inciativa do Presidente Dutra ¢ da Comissio do Vale do Sao Francisco, vale dizer, que nenhum esforgo custou aos homens piblicos dessa regio” Essa historia ¢ contada da perspectiva de um municipio que ndo possui terras no Parque, nem engloba as localidades Id situadas, como seria o caso de Januéria, Formos ou Arnos. A historia desses municipios provavelmente traria outros dados © informagdes. Acredito, entrentanto, que esse fato no invalida sua utilizagio aqui, tampouco a ampliagdo que fornece ao olhar sobre a regido estudada, Sao Francisco foi uum dos lugares tangenciais ao Parque, para onde a pesquisa de campo também conduziu, 102 € mostrou aspectos significativos que procuram aqui ser explorados, situando uma das possiveis articulagdes das localidades trabathadas com o contexto regional. Matta-Machado é outro autor com um interesse particular sobre a regidio do Noroeste de Minas, Seu trabalho, de cunho académico, contrapée-se a um desconheci fento que o sertio minciro teria entre trabalhos de historiadores e cientistas sociais, na verdade um reflexo do isolamento econdmico, politico, social e cultural a que a regido teria sido submetida em toda sua historia, e que revelaria a prioridade dada por pesquisadores as regides atreladas ao mercado externo, em detrimento daquelas vinculadas ao mercado interno, Introduzindo dois marcos representativos dessa historia - o rio Sio Francisco, ‘como “camino da civilizacdo brasileira”, e as imagens associadas ao sertio como “cerne da nacionalidade” ou “base fisica da unidade brasileira” -, Matta-Machado critica a falta de conhecimento empirico a respeito da evolugdo dessas areas. A partir dessas colocagies situa seu trabalho e seus objetivos: primeiro, o de voltar-se a uma regifio niio- exportadora, ligada ao abastecimento interno, 0 sertio Noroeste de Minas Gerais, segundo, 0 de situar seu trabalho como ponto de partida para a realizagdo de uma historia regional de Minas Gerais, um estado visto como mosaico de sub-regides, marcadas por diferenciages historicas e socio-econdmicas. Num sentido oposto ao de Braz, que parte da Historia para alcangar Sdo Francisco, Matta-Machado propée-se partir do noroeste marginal, para contribuir para a historia mais ampla de Minas Gerais". Em relagao & periodizagio utilizada - Colénia, Império e Repiiblica - seus marcos crondlogicos so dois, 1690 e 1930: o primeiro, delimitando © final da conquista do sertio. brasi iro, a derrota ¢ escravizagiio dos nativos e a inicio da colonizago portuguesa; 0 segundo, 2 Revolugiio de 30 © 0 proceso de centralizagao politica e econdmica do Brasil Republicano, quando o Vale do Sio Francisco teria comegado a sair de amento em que se encontrava, © trabalho inicia-se com o “panorama” da regio, trazendo dados sobre a extensio territorial, aspectos geogrificos e a marca do rio Sao Francisco e seus afluenies: Paracatu, Urucuia ¢ Carinhanha, Ao falar da vegetagdo caractetistica, refere-se a ela como “campos naturais de pastagem”, com imagens associadas ao sertio noroeste " Dizendo-se mais marrador do que intérprete, o autor caracteriza a pesquisa como tendo “earater exploratério”, e sendo basicamente bibliogrifica, Trabalha sabretudo bibliografias ligadas ao vale do So Francisco (estando inciuidos os viajantes. © também Braz). e organiza scu material através de aspectos eondmicos, politicos ¢ sociais considerades relevantes para uma sintese historica da regio. 193 através dessas duas marcas: o rio eo gado, Outro aspecto reforgado nesse panorama so as varias tentativas do Estado Nacional de integrar a area, eo contraste do isolamento da reprodugao, até a década de 30 desse século, dos mesmos tragos socio-econdmicos, politicos ¢ culturais. Sobretudo na narrativa do Periodo Colonial, é grande a aproximagéio dese autor ao texto de Braz, Também aqui a historia comega com o embate entre bandeirantes paulistas e indios, porém sendo reforgada uma povougio inicial creditada igualmente a0 movimento dos vaqueiros vindos da Bahia e de Pernambuco, Dessa perspec organizagio e divisio do territério comega a se delinear a partir da constituigao e divisio de duas grandes sesmarias": a Casa da Torre ¢ a Casa da Ponte, que se especializaram na criagéo de gado'”, ocupando seus vastos territérios sobretudo através do arrendamento. Nesses primeiros tempos, 0s indios so cagados impiedosamente pelos bandeirantes, escravizados e conduzidos para 0 trabalho de expansio da pecuaria, © que teria garantido um periodo de prosperidade entre 1690 ¢ 1736. Derrotadas as nagdes indigenas, os paulistas se fixam e tomam-se criadores de gado. O descobrimento do ouro em Minas, no final do século XVI, altera 0 quadro regional, e a regiao do Noroeste torna-se principal fornecedor das Minas, com boiadas ¢ 1 Voliando a idéin da coexisténcia de distintas temporalidades mas regides de fronteira, vale trazer 0 comentario de Martins sobre a concepedo, entre grupos camponeses, do reconhecimento do dircito a terra, gerado a partir do trabalho sobre a terra - uma concepedo propria do regime sesmarial. onde 0 dominio era separado da_posse: “O vocabukirio e 0 imagindrio mondrquicos, ainda 130 fortes na frente de expansti. nJo so unicamente devidos arcaismos religiosos, mas também a uma concepoio de direito muito proximo dos pobres: a do direito (de uso) gerado pelo trabalho em oposicdo aos direitos (de ‘propriedade) gerados pelo dinheiro”. Reforcando essa consiatacdo, “Sonia Lacerda, Eduardo Graziano ¢ Margarida Maria Moura observam no Jequitinhonha o costume ancestral da posse em comm das terras de chapada, como contrapartida ¢ compleimento da posse privada das grotas ¢ veredas (...) Esse mundo riastico, dotado de légica propria, sobrevive (e se recria) no s6 nas frentes de expansio, mas também em “polsbes de resistéacia(testemunhas vivas de outras épocas) nos intersticios dos amplos latinas”, in “Manins, José de Souza, op.cit, p. 44 e p. 61. respectivamente Segundo Matta-Machado: “Duas familias, a de Garcia de Avila (Casa da Torre) ¢ a de Ant6ni Guedes Brito (Casa da Ponte) receberam grandes sesmarias (na margem diteita ¢ esquerda do rio Sdo Francisco, respectivamente) ¢ se especializaram na criaglo de gado”. op.cit, p29, Bertram, a partir de Pedro Calmon, forneve outros (¢ diferentes) dados a respeito da distrbuiggo de terras entre a Caso da ‘Forte. dos Garcia D'Avila, © a Casa da Ponte. de Anténio Guedes Brito, Relatando a disputa entre as sduas Casas pelos territorios do Vale do Sao Francisco, em meados dé 1600. coloca-se que: “Hove um conflito entre ambas as casas latifundiatias. mas antes que muito sangue corresse, entraram em acorde, ficando a Casa da T Garcia D'Avila com tudo ri Francisco. e os Guedes de Brito - ou_Casa da Ponte - com as terras a leste do rio_até 0 centro de Minas Gerais. (..) Assim, salvando-se para a Casa da Torre a "parte do lef", acordou-se que os Guedes de Brito, a Casa da Ponte, so se estendesse pins regides a leste do Sdo Francisco, Todo o atual norte de ‘Minas pertencia, alé as mediagies de Belo Horizonte, a Casa da Ponte.” (grifo meu) in Bertram. Paulo fisténia da Terra ¢ do Homem no Planalto Central ~ Eco~histéria do Distrito Federal. Solo Editores. Brasilia, 1994. p.58. Ios géneros alimenticios. Porém, em 1701, a corte portuguesa inicia uma série de restrigdes a0 comércio, o que cria tensbes, provoca protestos e culmina com a “Sedicdo de 1736” ou “Conjuragao do Sao Francisco”. Também Matta-Machado situa @ Conjuragao como um marco, que finaliza um periodo préspero de trocas com a regito mineradora, ¢ inaugura um tempo de isolamento social ¢ econdmico pela Coroa, que se estenderd até a primeira metade do século XX. © Periodo imperial remete, assim, principalmente ao isolamento ¢ a decadéncia do Noroeste de Minas, provocado pelas proibigdes comerciais ¢ também pelo novo caminho criado até 2s Minas, pelo Rio de Janeiro. Entretanto, esse autor aponta a contrapartida positiva do isolamento: o Noroeste volta-se para dentro, fortalecendo um comércio intra-regional, ampliando suas relagdes com 0 estado de Goids, criando uma autonomia particular. Matta-Machado sublinha 0 cardter de uma sociedade distante da mentalidade ccapitalista, que se faz auto-suficiente pela da exploragao dos recursos naturais, mitiga as diferengas entre posigdes sociais através do compadrio, ¢ onde 0 luxo € a ostentagio no fazem sentido - 0 que teria levado muitos a descrevé-la como miserdvel ¢ sem recursos, quando, na verdade, revela a parciménia ¢ a simplicidade Paralelamente a essa discussao ¢ leitura do “isolamento”, o autor revé algumas discussdes, sobretudo apoiado em Euclides da Cunha, Wilson Lins e Geraldo Rocha, acerea da idéia de unidade nacional desenvolvida em tomo do rio So Francisco e acerca de uma unidade historica, geogratfica e antropologica do Vale. Traz ainda a histéria da tentativa de criar, na Camara ¢ no Senado do Império, uma “Provincia do Sao Francisco”, entre 1830 ¢ 1875, que no entanto acabou “sepultado nos arquivos do parlamento”, demonstrando “a preponderancia dos interesses partidirios sobre a questo nacional” © Periodo Republicano inicia-se marcado pela nova capital construida, Belo Horizonte, e a intengdo de integrar o Norte de Minas. Se até entfio, as relagdes comerciais eram mantidas sobretudo com a Bahia, através do Sdo Francisco, a construgéo da nova capital veio a alterar esse quadro. Outro aspecto desorito ¢ a “estrutura coronelistica” predominante, uma organizagao politica baseada na ordem privada, marcada pela violéncia politica ¢ pelo “banditismo social”, Se até ent&o o poder dos mandatérios locais havia sido estimulado pelo isolamento, com o advento da Primeira Republica e com o fortalecimento da federagéo ¢ do municipio, além da 105 amplingao do voto, 0 fendmeno do coronelismo teria se institucionalizado, Segundo autor, todos os municipios do Noroeste de Minas teriam assistido a lutas, marcadas pela violéneia na disputa de poder. A historia de Antonio Dé ¢ reveladora desse cardter da organizago social ¢ politica de regido, ¢ ambos os autores aqui citados dio a ela atengdo especial, Matta- Machado utiliza-se da histéria de D6, buscando interpreté-la junto & analise da estrutura politica e econdmica regional, nas primeiras décadas do século XX. Aponta, por um Jado, uma organizago em que as disputas politicas se fariam nio por uma distingio social ou ideologica entre facgdes, mas por uma disputa pelo poder politico municipal, e pela manutengdo do poder econdmico © do “status politico”, entre grupos que se diferenciariam pela configurago “situagio” ¢ “oposig&o”. Desse ponto de vista, Dé mostrava-se vinculado, no momento anterior a sua entrada no conflito, a oposigo, aos chamados “morcegos””. Por outro lado, Matta-Machado interpreta a entrada de Anténio Dé no banditismo a partir de Hobsbawn: o banditismo mostra-se como sinal de substituigo do sistema pré-capitalista por um regime de capitalismo agrério. Os anos 30 sdo um marco para tal leitura, porque a partir de entdo © coronelismo e 0 banditismo, faces interdependentes de uma mesma sociedade, iriam desaparecer gradativamente com a centralizagio politica ¢ unificagao do mercado interno, que transformam o quadro geral do pais. Matta-Machado conclui, nesse periodo, a historia do Noroeste de Minas Gerais, pincelando um atual presente que reforga imagens de isolamente e atraso, de desvinulaco com o “litoral”, ¢ de ndo-integragdo ao ritmo de desenvolvimento de outras regides do pais. E mencionada a tentativa de integracao da regido ao contexto nacional, sobretudo a partir de 1947, e especialmente nos iltimos 20 anos. Entrentanto, 0 contraste dessa tentati com 0 quadro de isolamento revelaria uma politica econdmica que tem beneficado sobretudo 0 governo e as empresas privadas, muito mais do que a populacdo regional; e mesmo na regiao, somente as elites locais. A saida para um desenvolvimento efetivo da regio, segundo 0 autor, podera somente ocorrer com a participacao da populagao, considerando-se, ao lado do que deve ser introduzido e desenvolvido, os tragos positivos da sua histéria - associados sobretudo ° Segundo Braz, morcegos e gavi8es eram “denominagdes tipicamente locais das correntes opostas do mesmo Partido Republicano Municipal”. e reproduziriam a distingdo dos partidos montirquicos extintos. 0 Conservador ¢ © Liberal, respectivamente. Tal tipo de classificagao era comum na regido. sendo em ‘Montes Claros ¢ em Brasilia de Minas a dos “estrepes © pelados". © em Janudria a dos “hwzeiros ¢ escurelros". in Braz, opccit, p. $3. log 4 autonomia, a certos tragos culturais ¢ ao conhecimento ambiental da regio - num movimento de dentro para fora. Na EneruziJhada com Antonio Dé Percortidos esses pontos, retomemos alguns deles. Por exemplo, a historia de Anténio Dé, Diferentemente de Matta-Machado, Braz também traz, no corpo principal de seu livro, 0s episddios da historia de Anténio D6 que tiveram “influéncia decisiva no curso da histéria do municipio”. © que nio impede que em outro momento de sua obra, dedique-se a essa figura em detaihes, nas 40 paginas que so “Antinio Dé a Luz da Historia - Vida e Morte do Valeme Sertanejo”. Sua narrativa, mais apaixonada e parcial (sendo também Braz um “morcego”), vé aquela figura sobretudo & luz do heroismo ¢ da coragem - ¢ a nfo ser pelo assassinato em Mato Grande, que o teria transformado em “verdadeiro bandido”, é essa a imagem que sobressai Essa historia é trazida resumidamente aqui, a partir da versio de Braz, também por oferecer vislumbres de areas incluidas nos limites do Parque, ou que eruzam historias dos que nele habitam, Antonio Antunes de Franga - 9 Anténio Dé - originério da Bahia, teria migrado com os pais ¢ irmios, instalando-se na regio de Sao Francisco, trazendo “nas veias a mescla inconfundivel do sangue tapuiuo e na alma a chama de uma esperanga’”®. Pequeno proprietirio, estabelecido e conhecido na regio, em 1913 Dé indispde-se com um fazendeiro vizinho, 0 Chico Peba, ligado a politica local situacionista (“os gavides”), ‘em uma disputa em torno de um olho d’Agua e seu cercamento. 0 primeiro momento do contfito leva Anténio Dé a pristo, em So Francisco, por trinta dias. Ao sair do carcere, retine um grupo de jagungos e sai a desforra, intensificada ainda pelo assassinato de seu jirmao, cujos assassinos sairam impunes. Invade a cidade”, humilha seus inimigos e da » Braz. B. opcit, p377 > “Mas, mire e veja 0 senhor: nas éras de 96. quando os scrranos cismaram ¢ avancaram, tomaram conta de Silo Francisco, sem prazo nem pena. Mas, nestes dertadsiros anos, quando Andalécio © Anténic Dé forcejaram por entrar Ii. quase com homens mil ¢ ¢ meio-mil, a cavalo. 0 povo de Sao Francisco soube, se reuniram. e deram fogo de defesa: diz-que durow combate por tempo de trés horas. tinham _armado tranquias, na boca das ruas ~ com tapigos. montes de arcia ¢ pedra, ¢ érvores cortadas. de través —brigaram com boa populacio! Dai, aqueles retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda. conforme gucrrearam contra o Major Alcides Amaral ¢ uns soldados. cercados numas duas ou és casas € um quintal, guerrearam noites ¢ dias. A ver, por vingar, porque antes 0 major Amaral tinha prendido o Andalécio, contado os bigodes dele.“ in Rosa. G. op.cit. pp. 128-129 107 inicio a um conflito ao qual se ineorporam forges policiais vindas da capital, ¢ que se estende por dezessete anos - na maioria dos embates ocorridos Dé saiu como vitorioso Em junho daquele mesmo ano, 1913, parte entdo da capital uma coluna militar para o ataque a0 “bandoleiro”, que se refuugia, segundo Braz, em Vargem Bonita, “pequena povagao perdida nos confins de Januatia” - povoagdo por onde passaram os primeiros “Pagocas”, e varios habitantes de Santa Rita, do Parque e da Chapada Gaiicha. © ataque tem por principais vitimas os agricultores que ld viviam, entre eles os fundadores de Vargem Bonita, o velho Ludgero e sua mulher. Anténio Dé foge para Cocos, na Bahia, ¢ depois para o sitio d’Abadia, onde recebe protegao do Coronel Joaquim Gomes Omellas. Outros combates ainda so travados, mas em 1914 a policia deixa de perseguir 0 bando. Antdnio Do teria se transformado aos poucos numa espécie de juiz popular da regiao, arbitrando em conflitos locais de terra e questdes de vinganga. Entre eles, Braz cita um em que teria sido assassinado, em setembro de 1914, 0 fazendeiro José Antonio Soares, dono da “melhor parte” da fazenda Mato Grande, as margens do rio Carinhanha ¢ do Rio Preto - outra toponimia que nos leva a localidades do Parque. Em novembro de 1929, depois de 17 anos de conflito, Anténio Dé € morto a traigio. Dos varios episédios e momentos da historia regional acima relatados, a historia de Antdnio Dé nao s6 traz tona lugares familiares a regito do Parque, mas também € lembrada ¢ comentada pela pessoas da regidio, E, por que no dizer, mostra-se como um ponto de intersecgao entre a historia regional, registrada, analisada ¢ interpretada, e um episédio exercitado pela memoria local, Nao cheguei a buscar narrativas ou versdes locais sobre Anténio Dé, mas ouvi algumas conversas sobre ele. Nao havia nelas a preocupagiio de percorrer todas as seqiiéncias ou episddios de sua historia, como nas narrativas de Matta-Machado ou Brasiliano Braz. Antes, comentava-se sobre essa ou aquela pessoa que o havia conhecido pessoalmente, ¢ que podia confirmar e legitimar a ‘versio, eram também trazidas as qualidades desse homem - valente, criminoso, bravo -, ‘ou referéncias gerais as lutas que enfrentou - “nesses tempos, teve uma guerra, iio grande que nem a das Europas". Um dos episédios que ouvi, que explicava a sua forga ¢ valentia, referia-se ao conflito em Vargem Bonita, quando teria ooorrido diante da Igreja um enorme confronto entre ele, seu bando, ¢ forgas policiais, Tiros para todos os lados, € todos os homens da banda de li tombaram. Anténio Dé, de corpo fechado, saira 108 ileso Uma histéria poxa a outra, e como Anténio Dé, outros valentes e criminosos, como © Salustiano, sto chamados & lembranga - e pode-se, nessa sequéncia tematica, chegar a historias contempordneas, de homens que ainda hoje fazem valer seus interesses violentamente, que enfrentam o poder das leis, criam suas proprias leis. Nem todos os criminosos porém s&o iguais, e alguns oferecem as historias toques maiores de crueldade Em uma historia que ouvi recentemente, sobre um homem que vivera até pouco tempo atras na regio, foram desfiados varios de seus atos, inclusive varios assassinatos, Entre © grupo de ouvintes, foi consenso a opinido sobre a enorme maldade do homem, no momento em que souberam da matanga de animais que ele realizou por vinganga - bois, vacas, éguas, bezerros. Os assassinatos eram condenados, porém a maldade com o animal, criagdo de Deus e inocente dos mandos e desmandos humanos, mostrou-se como © requinte e 0 extremo da maldade Alem de Anténio Dé e das historias de valentias, outra conexio entre a historia regional ¢ a meméria local refere-se o aspecto do “pasado indigena”. Matta-Machado passa mais rapidamente sobre o assunto, remetendo-se a cle somente através dos embates entre bandeirantes ¢ indigenas, ¢ 0 subseqiente exterminio desses tltimos, Ja Braz, apesar de tambem se referir a esse fato, ressalia © aspecto da miscigenagao - sobretudo através da mulher indigena - , ¢ muitas vezes chama a atengo a aspectos da cultura regional que teriam como heranga esse pasado Tentei algumas vezes trazer a discuss4o, entre moradores do Parque, esse possivel passado. Certa vez, perguntando sobre a existéncia de indios na regido, ouvi a referencia sobre dois que tcriam por ali aparecido ¢ sido cagados. Quando questionei ‘uma ex-moradora da regido de Santa Rita, ela surpreendeu-se por meu interesse pelo assunto, dizendo que, se soubesse dele antes, teria me levado para conhecer as “furnas” que existem na localidade, buracos de indios: “.. ld no fundo do Pivé tinha uma moradia de indio... até hoje tem as furnas 14... 6 como se fosse um buraeao... por baixo da minha fonte... tem li aqueles burfao... 10s na terra, ¢ reconhecidos como antigas moradas O povo velho que morou ali falava que ali era morada de indio, que aquele pessoal ‘mais velho conheceu indio ali. Agora, hoje jd ndo conhecemos, ouvimos falar...”. Como sugeri no inicio desse capitulo, o passado indigena talvez se situe entre a névoa do tempo dos antigos, © desses tempos ¢ dessas gentes nenhum dos viventes me disse muito. Talvez alguns ainda saibam, mas com eles nio encontrei ou deles nada soube, E 109 significativo, nesse aspecto, ressaltar também que, se & possivel perceber nas feigdes ¢ tragos das pessoas algo daquela heranga, da qual nos fila Braz, a mengao a essa semelhanga entre as pessoas da regio mostrou-se ofensiva e ineonveniente, Da inter-relagdo entre narrativas dos historiadores ¢ meméria local, através desses exemplos, percebem-se diferengas e aproximagdes, incorporagies¢ esquecimentos, diferentes marcos através dos quais os passados da regio, na qual o Parque se situa, podem ser alcangados. Ao invés do vazio histérico, quantas camiadas de tempos! A volta dos bandeirantes paulistas A historia da regido e dos lugares do Parque pode, entretanto, ser contada de maneira diferente. Para outros agentes ¢ sujeitos - ligados, por exemplo, a0 desenvolvimento e expansio da agricultura capitalista - a historia tem sew principio na segunda metade do século XX. No final da década de 1960, - periodo em que a SUDENE comega a incentivar investimentos na regiio do Norte de Mines -, ouve-se sobre uma primeira venda de terras, feita a gente de fora: quando parte da fazenda Santa Rita (a parte de seu Isidio, provavelmente) foi vendida para uma firma com o nome de “Proarve”, uma empresa de reflorestamento que ainda possui terras em So Francisco. Os tempos povoados por viagens de carro de boi, grandes boiadas e vaqueiros, de primeiros desbravamentos, comega a se abrir a um movimento que vem de fora, que se inicia em outros contextos, ‘que vem de outras cidades, de carro, com agrimensores ¢ técnicos que medem terras, colhem materizis, inspecionam, que tém nomes como Feltrim, Rural Minas, ou Proarve. Sobre essa utlima, pouco ouvi, além do nome, e do homem que (rejabrin caminho até Santa Rita e proximidades: Jodo Correia, paulista de Pindamonhangaba e funcionétio da Proarve, que também montou outras fazendas da Proarve na regio, inclusive em Januatia, na década de 60. Ele praticamente, ele foi 0 bandeirante... Ele que abriu caminho para 0 pessoal dagui comprar a fazendat 1a, naquela regio” A fala acima é de um paulista, Wladimir Feltrim, e foi ouvida em Nova Odessa, cidade proxima a Campinas, So Paulo, em dezembro de 1996. No inicio desse mesmo no ano encontrei os primeiros sinais da Fazenda Carinhanha, que me levariam até a regio sudeste do Brasil. Se o leitor recordar, no capitulo anterior, comento sobre a surpresa de encontrar no meio do sertéo postes de eletricidade. Aos poucos fui ouvindo mais ¢ mais sobre a Fazenda Carinhanha, uma enorme fazenda nos moldes da agroindistria, semi- abandonada atualmente em fangao do Parque. De pessoas da regio, a grande lembranga dessa fazenda era associada a tempos de fartura, de emprego e de movimento. Seu Gerénimo, morador da galho da Onga ha quase 40 anos, e pai de um guarda-parque na época, contou-me um pouco sobre a chegada do movimento. Antes da fazenda propriamente dita, a0 que parece, comegou a set feito por parte da Rural Minas” um levantamento topografico da regio: “.. @ Rural Minas... bavvaram, garantindo direitos... os herdeiros de escriuura velha venderam para a fazenda... esses primitivos... lantos mit réis... 40 € entos anos que os impostos nao eram pagos... Antes das Rural Minas, teve um dia que encostaram um carro... tinha poucas estradas naquela époce.... 0s engenheiros acamparam... eu informe’ para eles, eles estavam na Fazenda Santa Rita. Eles pediram para levé-los no Rio Preto, no Sama Rita, onde 0 Onca cai no Carinhanha, nos Trés Irmios. Tratemos para no dia seguinte itn. em trés dias rodamios nesses trem tudo...” Segundo Seu Gerdnimo, tais téenicos colhiam amostras nas nascentes, “onde as veredas cai na ouira, colhiam mato, dgua, barre”. Até que um dia, alguém telacionado provavelmente propria Rural Minas, deu o seguinte conselho a seu Gerénimo: “Dr. Pedro, ele faton para eu criar raiz, que ia criar movimemo (...) Depois veto a certeza”, Passado esse proceso i icial - provavelmente nos primeiros anos da década de 1970 - do periodo de demarcagao © regularizagzo das terras, 0 “Joao da Proarve” articulou a passagem dessas terras para um grupo paulista de tecelagem, os “Inmaos Feltrim”, com sede em Nova Odessa. Segundo um dos diretores da empresa, que participou de todo 0 proceso de montagem da fazenda, tais terras foram por eles recebidas como pagamento de uma divida, intermediada por um dos diretores da Proarve, ligado a familia Feltrim A entrevista realizada com os dois diretores do grupo Feltrim, diretamente *' Fundago Rural Minas: Colonizagao ¢ Desenvolvimento Agririo, Criada em 1966, com 0 objetive de implantar Piano Integrado de Desenvolvimento da Regio Noroeste de Minas Gerais, hoje atua em todo o estado, ¢ promovc alividades relacionadas 20s seguintes campos de atuagdo: ago fundiaria, engenharia e moto-mecanizasdo agricola, ¢ gerenciamento de programas e projelos de desenvolvimento rural ul envolvidos no processo, trouxe lembrangas de desbravamento, dificuldades da chegada e do trabalho. A prépria iniciativa da implantagio da fazenda foi narrada num tom de aventura, ia que 0 projeto, que se iniciava com a implantagdo da fazenda de gado, fuugia completamente a tradigdo dos negécios do grupo, sobretudo ligados a tecelagem. &, nos comegamos, fui eu, 0 Anténio Carlos, os primeiros Id... a chegarem . néio tinha estradas; sé até a Vila dos Gatichos, e nem era estrada para a Vila. eva quase wma picada, Para voce imaginar que de Januéria até a Vila dos Gaiichos, voc’ levava meio dia de caninhonete... isso fot em 7... foi no inicio da Vila - foi, quatro, cinco casas sé, na Vila.. e dai nos fonos conhecer a terra Ii, a gente nao sabia nada. Encontramos o seu Gerdnimo, a familia dele, que ele tem 15, 16 fithos... que eles, o pessoal ali tava povoando aquilo... (...) enitiio, realmente a primeira pessoa que nds tivemos contato fot com 0 sex Gerénimo mesmo... aliés, foi © primeira funcionério nosso Id (..) pela idade dele, 0 grau de escolaridade, que é nenhum, ele até é uma pessoa muito ativa 4.) Ele sobressaia em torno daquele pessoal que tem ali... Porque ali é 0 seguinte: tinka o Seu Geronimo, mas cada dia chegava mais gente, ai voc’ ia procurar saber onde morava aquelas pessoas, 0 que era aguilo! Voo® nto ‘anagina.... 0 que tem de gente no meio daquele mato. O relato sobre os tempos da fazenda Carinhanha, em tom bastante emocional, trazia pessoas, acontecimentos, estranhamentos, desafios e solidariedade. Das boas lembrangas dizem. “.. tem asin... 0 primeiro bezerro que nasceu dentro da fazenda, tem até fotografia... De chegar na fazenda, a gente vé o que era, e depois ver toda aquela criangada na sala de aula, 0 pessoal ali é tarde... Eles faziam quesiao de estar perio da gente, sempre querendo contar o que era... Entao, tinha ‘momentos muito bons, bons mesmo... as pescarias, que a gente ia com eles no rio... Entdo, a gente comvivia com eles.... Até a hora do servigo, depois era outra historia: Vamos pro rio, vamos pro rio! Botava a caminhonete, e ia para o rio... uma regio de bastante Agua... A vaguejade.... (W) Essas boas lembrancas é realmente 0 que nos detxamos Ié.. que quando nos chegamos, que ainda néto existia nada, era uma caréncia chocante...€ isso NOS deixou bastante contentes, de ver 0 que nés deixamos para eles... A gente chegava ld, realmente era uma festa... eles gosiavam bastante da gente, "(AC) © envolvimento dessa dupla de paulistas, alids, foi continuo durante um longo Essa fala ¢ de Wladimir Feltrim, um dos diretores do grupo Feltrim, ¢ mas proximas citagdes a referencia a cle é feita sob a sigla “W". As falas do outro diretot, Aniénio Carlos, sfo referidas por ne 12 tempo, e uma vez por més, um dos dois diretores permanecia pelo menos dez, dias na regio, o que teria significado inclusive 0 “muito trabalho, em pouco tempo”. Foram construidas a sede da fazenda, casas de funcionérios, escola; uma vez por més levavam um médico para a area. Chegaram a ter 2 mil cabegas de gado, e a expectativa era a de alcangar 0 nimero de 10 mil. Havia também uma area demarcada para a agricultura, especialmente soja, que ja comegava a ser cultivada - foi também lembrada a margem que era deixada para a preservago das veredas Seu Gerdnimo, por sua vez, ao lembrar-se da grandiosidade da fazenda, contava “Je feve 1800 reses, 200 porcos, quase 200 ovethas; ainda tem umas 70, 80 ovethas... Méquinas, tinha 9 tratores, trator-toco, caminhéo boiadeiro, caminhéo trucado... Forante os caminkoes que trabathavam alugados, preando caledrio ta de Unai.. o caledrio usu para amansar a terra, a terra fica boa para produsiy”. Lembra-se, com seu jeito sério e compenettado dos tragos daquele tempo e do movimento, que o levou inclusive para Nova Odessa, no Estado de So Paulo, onde conheceu a sede do Grupo Feltrim, Com a instalagdo da fazenda, um de seus filhos foi iniciado no mundo das midquinas ¢ tratores, 0 que o capacitou profissionalmente para oportunidades futuras Nesse ponto, os diretores do grupo, ¢ implementadores do empreendimento comentaram sobre a preferéncia pelos trabalhadores da regidio. Segundo eles, a tentativa de levar igonicos de Sao Paulo nio era proveitosa, ¢ as pessoas treinadas, por exemplo, no trabalho em fazendas de So Paulo nfio se acostumavam as dificuldades e distncias de centros urbanos - 0 que 0s levou a selegiio ¢ treinamento de pessoas locais Esses primeiros anos da década de 70 trouxeram um outro movimento, que mais do que esse, mostrou-se fundamental na historia futura da regito: a chegada dos “gatichos”. Os Gatichos” Muito tempo antes disso, dificilmente se poderia vislumabrar a cidade que ali nasceria, A area era conhecida pelos moradores de localidades préximas, sobratudo por homens que através dela conduziam boiadas ou cagavam. Mas até mesmo cagar ali era dificil, pois havia o risco de se perder e de morrer de sede, ja que nfo ha na area nenhum curso de agua proximo, * Como mencionei anteriormente, a denominago agrupa pessoas vidas de outros estades sulisias, 13 Na Vila... $6 tinha carrasco, néto tinka ninguém ld néo... era um carrascéo, nao tinha dgua, tinha ninguém... s6 0 carrascéto la, bruo.” (Seu Excitio, antigo morador de Santa Rita) A colonizagdo da area teve inicio em 1976/1977 e, a partir do projeto da RuralMinas, foi implementada por uma imobilidria de Carazinho, no Rio Grande do Sul: a Rioterco, responsavel pelo projeto de assentamento dos sulistas do PADSA - Projeto de Assentamento e Desenvolvimento da Serra das Araras -, que tinha como objetivo tornar produtivas as terras devolutas. Os pioneiros dessa colonizagio, primeiros a chegar, foram Elcio Facomini, funcionario da imobiliria, ¢ Arnildo Kirch Gersino Anténio dos Santos, atual morador da Chapada Gaiicha, mineiro vindo de Vargem Bonita, € conhecido na cidade por ser dono de uma das pensdes, e também por ser 0 video-maker local, possuindo um pequeno estidio chamado Serido Vereda. Um de sous registros, onde entrevista 05 primeiros a chegarem na antiga Vila, traz a voz de seu Amildo Kirch - “...Sai do Rio Grande do Sul quando a inflagdo comegon...”. O depoimento traz também um dado recorrente dos relatos sobre o inicio da Vila - a dificuldade de se conseguir agua: os primeiros moradores precisavam andar cerca de 20 km para obté-la. Ou, como disse uma jovem da cidade, mineira por sinal, conta-se mesmo que os primeiros moradores chegavam a cozinhar arroz na coca-cola, por falta agua 0s relatos sobre 0 inicio da Vila, que coincide com a implantagdo da Fazenda Carinhanha, remetem-se as grandes dificuldades encontradas ¢ ao espirito de solidariedade - entre gatichos, paulistas, téonicos (como os da EMATER™) e os moradores das localidades existemtes. Nesse momento, 0 “desencontro de temporalidades histéricas”?> que a aproximagio em fungdo das dificuldades. Aberta a “picada” pelos primeiros galichos, aos poucos outras familias foram chegande ao que se constituia como a Vila revelou menos © conflito e a intensificagdo de contrastes, do dos Gatichos - familias de gatichos, ¢ também de localidades proximas, estimulados pelos recursos de uma urbanizagio que se iniciava, do comércio mais proximo, da escola e, talvez, pelo proprio “movimento”. Aos poucos, a Vila dos Gaichos foi se formando, tornou-se o principal centro urbano - a “capital” - para a maioria das localidades a0 seu * EMATER - Empresa de Assisténcia Téonica ¢ Extcnso Rural * Martins, José de Souza, op cit 14 redor, ¢ alterou também a vida daqueles que vivem nas localidades hoje situadas no Parque Nacional A partir de alguns trabalhos escolares de alunos da Escola Estadual Moacir C&ndide, do 30. ano do magistério em 1996”, e também do primeiro jornal local, “O Clarint” (que apés 0 quinto nimero tomou-se érgo de comunicagao oficial da prefeitura™), é possivel conhecer alguns dos marcos e imagens predominantes nos relatos sobre esse pasado, que talvez venham configurar, em algum momento, uma historia oficial Entre esses marcos, apds a chegada das “familias pioneiras”, assistimos ao ini do plantio de arroz e soja, em 1976, financiado pelo Banco do Brasil de Januaria, Ou a Cooperativa local, COOAPT™, fundada em 1982; 0 primeiro comércio em 1979, a primeira missa em 1977, a escavagdo dos primeiros pogos artesianos em meados de 1978, ou a criag&o da primeira Igreja Luterana em 1979”. Assim, no primeiro numero do jornal citado, so enumerados 21 itens, descrevendo cronologicamente a instalagiio das “infie-estruturas” basicas, que possibilitaram o desenvolvimento do PADSA ao Jongo de pouco mais de 20 anos de historia.” Esses fatos sio também citados pelos trabalhos escolares, como marcos importantes. Cada um dos trabalhos, entretanto, centrava-se num tema especifico, como: “Potencialidades do Municipio Chapada Gaticha”, “Protegfio e Conservagdo - Vida em Comunidade”, “A Educagio ¢ Religido na Chapada Gaiicha”,; “Produgio, Distribuigao e * Como nem todos os trabalhos trazem 0 nome completo de seus autores, indico somente as professoras ‘das disciplinas envolvidas: Inglacir Aparecids Ottoni, Jeane S.C. Dias, e Glaucia Amancio da Silva * Jornal “O Clarim - Justiga ¢ Verdade”. Fundado em 26/12/96, por Otilio Pinto de Meirelles, Com edigdo quinzenal, a partir do seu segundo nimero (15/01/97) torna-se dred oficial de comunicagdo ¢ divulgagdo da prefeitura municipal da Chapada Gaiiha. * Cooperativa Agropecudiria Pioneira, “servindo como mediadora ¢ intermediéria na compra de fertilizanies, sementes, defensives agricotas ¢ avessérios de origem ¢ aplicagéo agropecuério”. Citado ‘no primeiro nimero do Jornal © Clarim. 31/12/96, * Atualmente. além da Luterana. a cidade coma com as seguintes igrejas: Catolica, Assemibléia de Deus. Batista, Ipteja de Deus. Adventista do Sétimo Dia, ¢ Petenconstal "esus Te Ama” © Em 1996, © municipio contava com aproximadamente 7 mil habitantes, sendo 2.500 residentes na 4rea urbana e o restante na ‘rea rural, Desses. $100 constituiam 0 niimero de eleitores. A principal base evondmica encontra-se na agropecuiria e na agroindiistri, cujas principais culturas sio a soja, 0 milho, © arroz, feifto, 0 sorgo milheto, © plantio de soja atingiu, em 1995. 10,000 hectares. com uma estitativa de produgdo de 130,000 sacas, e mais 10,000 hectares voltados ‘is outras culturas. A renda do ‘municipio nesse mesmo ano atingiu o valor de seissentos € sessenta ¢ scis mil reais. Dados obtidas no primeiro nimero do jornat, era 31/12/96. 15 Consumo”, entre outros Uma questéo levantada pela maioria desses trabalhos, direta ou indiretamente, refere-se a0 encontro entre os gatichos ¢ os mineiros. Os primeiros sempre lembrados pelo pioneirismo ¢ pelo desenvolvimento levado a regio, os segundos pela contribuigao a cultura local (na comida, nas festas religosas, no forts), pela receptividade com que receberam 0s gatichos, ou algumas vezes, em oposigio A principal caracteristica daquele primeiro grupo, pela “apatia e submissio”. Dois dos trabalhos enfrentam mais diretamente a questio, procurando refletir sobre as diferengas entre esses dois grupos, as contribuigées e 0 “intercémbio”, & também os “‘choques culturais”. Um deles aborda as diferentes contribuigées de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul a cidade, e raz um conjunto de imagens significativas para esse tema: na capa, os desenhos de um pilio ¢ de um chimarrfo; no corpo do texto, a foto de um vaqueiro com roupas de couro, e também a de um gaticho de bombachas, junto ao gado. O trabalho percorre costumes, linguagem, festas tradicionais, lendas, religides € artes, trazendo de cada um dos Iados aspectos que se encontrariam no municipio da Chapada Gaucha, onde se podem ver gatichos ¢ mineiros tomando juntos 0 mate amargo, ao som do forré mineiro. Um outro trabalho salienta o confronto entre essas duas tradigSes, ¢ acrescenta aos conflitos gerados pelas diferengas culturais as diferengas sociais: os mineiros teriam softido um “processo de exclusdio territorial”. Nesse caso, porém, se ¢ vista uma “certa indisposi¢ao” e uma “linha diviséria” entre os grupos, lembra-se bem “que nem todos pensam ou agem assim”, A leitura dos trabalhos escolares ¢ dos artigos do jomnal revelou também as marcas de alguns fatos, ainda no mencionados nessa historia, Um deles rofere-se emancipagdo da Vila - com a mudanga do nome para Chapada Gaiicha -, ocorrida no final de 1995, ¢ a primeira eleig’o municipal, ao final de 1996 Levando em conta tal contexto, a recorréncia do tema “gatichos/mineiros” nos trabalhos escolares mostrou consonincia com a campanha politica que se iniciava, onde as identidades “mineira” ¢ “galicha” converteram-se em instrumento politico ¢ rotularam as duas chapas concorrentes. Outro fato importante para a leitura daquele material, ainda no mencionado aqui, é a propria ctiagio do PARNA GSV, em 1989. Atualmente, o municipio da Chapada Gaticha tem 0 centro urbaao mais proximo aos limites do Parque - estando mesmo em seu entorno - e também situa a sede do Ibama 16 Embora nfo seja meu objetivo aprofundar o impacto da criagao do Parque sob a perspective do municipio, vale mencionar que, mesmo nao tendo alterado diretamente a vida de seus moradores - 4 no ser no caso daqueles que possuiam terras nos novos limites criados, como Seu Idearte (situagdo relatada ao final do capitulo anterior) -, essa proximidade cada vez mais acrescenta um novo aspecto a historia do municipio. A preocupaggo com a questo ambiental, encontrada tanto no jornal quanto nos trabalhos escolares, provavelmente comunica-se com 0 espago que 0 tema do meio ambiente vem conquistando em campos como o da educagao, da politica ou da midia, na sociedade nacional, Porém, parece dialogar mais ainda com a proximidade do Parque e com os novos atores que se somaram ao contexto local. No caso do primeiro nimero do jomal, por exemplo, ao se fazer a “retrospectiva” da histéria do municipio, iniciada com o cultiva do solo ¢ o plantio das primeiras cultucas agricolas, a referéncia ao desmatamento considerado necessirio é feita a0 lado da preocupagao ambiental: “Entao assim deu-se 0 inicio ao desmatamento dentro de técnicas para a época de primeiro mundo, pois buscaram sempre em manter o equilibrio ecolégico”. Se nos lembramos de que 0 inicio dessa colonizagao se deu na época da Primeira Conferéncia sobre Meio Ambiente, em Estocolmo (1972), ¢ de que a posigio brasileira nessa Conferéncia foi marcada pelo discurso centrado no desenvolvimento econdmico - grandes empresas multinacionais (¢ poluidoras) foram convidadas a investir no Brasil -, a preocupag&o ambiental mencionada pelo jornal, na “retrospective” do municipio, pode ser questionada e, sobretudo, revista pelo quadro contemporaneo, pela proximidade com o Parque, e até mesmo pelo didlogo com os Grgios por ele responsiveis. Esse didlogo, alids, é visto em nimeros subsequente do jornal, em artigos que tratam questdes ambientais, escritos por representantes. ¢ funcionérios do Tbama: em um deles, manifesta-se a preocupaglia em envolver o municipio na quest4o, por meio do estimulo a0 ICMS ecolégico, em outro, & desenvolvida uma reflexdo sobre problemas com a qualidade de vida e o lixo na cidade. No caso dos trabalhos escolares, um deles aborda o tema diretamente - “Proteg#o Conservagdio - Vida em Comunidade”, desenvolvendo suas questées através da mengio aos érgos comprometidos com a protegiio e conservago ambiental - o Tbama e a Funatura - ¢ remetendo-se diretamente a importincia da unidade de conservagio eriada na regio. Com essas referéncias, os alunos comentam a importincia da protegio da fauna ¢ flora - “a riqueza da regiao”., discorrem sobre a utilizagaio dos recursos naturais, n7 contrastando um presente de alteragde do quadro natural um passado em que o homem era integrante dos ecossistemas naturais. Também refletem sobre o impacto ambiental da atual utilizagio, trazendo 0 problema do crescimento demogrifico e do lixo, a preocupagio com as “geragdes futuras”, concluindo com a importineia dos drgiios de protegdo conservagio. Curiosamente, é esse um dos trabalhos que, ao tratar da vida em comunidade, faz referéncia a sua diversidade cultural e aos encontros, solidariedades e contlitos entre gatichos e mineiros Se tomarmos novamente as idéias de Martins” a respeito do “desencontro de temporalidades” em regides de fronteira, podemos interpretar o caso da Fazenda Carinhanha, e também a chegada dos Gatchos na regio, como componentes e participantes de uma situagio de fronteira, onde se véem racionalidades sociais, econdmicas € cuhurais distintas reconstruindo os contextos, colocando em relagio campesinato, grandes proprietirios e agentes de modernizagdo da economia capitalista. Em 1989, tal quadro ¢ complexificado por um novo elemento - 0 PARNA GSV -, ¢ outros atores que introduzem novos interesses, agdes e racionalidades na “disputa” pelo cespago € por suas fronteiras. O Parque Nacional Grande Sertio Veredas ‘As primeiras agdes que viriam a dar corpo ao projeto de um parque nacional na regido comegaram a acontecer logo no primeiro ano de fundagdo da Funatura, Em 31 de julho de 1986, era eriada em Brasilia a Fundaglo Pré-Natura, ou Funatura, a partir da iniciativa de treze conservacionistas, que reuniram 69 sécios fundadores e um conselho iniciaimente composto por treze membros. Alguns aspectos relevantes, no sentido de caracterizar a instituiglio e sua historia, estio ligados & propria formagdo desse grupo, marcada por nomes importantes, j4 naquele momento na historia do ambientalismo brasileiro, com trajetérias académicas ¢ cientifices - sobretudo ligado as areas das ciéncias naturais - ¢ também experiéncias junto instituigdes do governo. Uma das proprias motivagdes para a criago da entidade teria sido a insatisfagio de seus fundadores com relagio as reslizagdes de instituigdes governamentais ligadas ao meio ambiente, aliada 4 descontinuidade da maioria de seus projetos ambientalistas™ © Mamtins, José de Souza. op.cit © Pareschi (op.cit.) traz um criterioso estudo sobre a historia da fundagdo. os principais projetos desenvolvidos, ¢ percorre a trajetiria de alguns de seus principais membros. 18 O projeto do parque nacional na regido dos gerais comega a ganhar corpo nesse mesmo ano, como um dos primeiros encampados pela nascente instituigao, apoiado pela propria fundadora da instituigao, Maria Teresa Jorge Padua, ¢ por conservacionistas mingiros. Em dezembro de 1986, obtém-se os primeiros recursos (WWF) para 0 estudo da regido dos Gerais, com 0 objetivo de criagdo de uma unidade de conservagao™*, cuia importancia se assentava, inclusive, na falta de representatividade que esse bioma possuia no conjunto de uc’s no Brasil, € nas ameagas impostas ao cerrado € seus ecossistemas, cada vez mais explorados e alterados pela ago humana”, Segundo entrevista com a coordenadora do Programa GSV durante os anos de 90 2 97, foram inicialmente indicadas nove areas, das quais somente duas mostraram possibilidades de efetivagdo, sobretudo por uma ocupagio territorial que se mostrava muito acelerada, Dessas duas areas, uma delas na Bahia - que incluia parte do municipio de Cécos - foi logo descartada, aparentemente por dificuldades politicas e burocraticas que se insinuavam, Apesar do “parto dificif”, apelou-se para o entio presidente José Sarney, reforgando-se a importéncia da area a ser protegida ¢ 0 apelo literario que a regio ¢ o proprio nome de batismo do parque inspiravam, de modo que, em 12 de abril de 1989, 0 Decreto presidencial no.97658 criou 0 PARNA Grande Sertao Veredas Em margo de 1990, a ecdloga Lourdes M. Ferreira’® assume a coordenagao do Segundo un levantamento feito por Pareschi (opcit) a partir de dados fomecides pela prépria Funatura em seus boletins.é instituido no ano de 1987 o Progrania Grande Sertio Veredas (PGSV), que envolveu até agora duas fases: a primeira de agosto dé 1987 a 1989, de estudos da criacdo do PARNA. GSV e sua criagio efetiva: ea segunda fase. de sua implementagto através de varios projetos, a partir de 1990 ¢ em andamento. O programa contou e conta com diversas paccesias: SEMA (1987-89); IBAMA (a partir de 1990), TNC (1991 a 2013) e WWF (1987 2 1990). Entre 0s resultados ja alcangados pelo programa, situam-se s propria criagdo do Parque: © projeto pionciro -e inico caso no Brasil - da conversio da divida externa para fins ambientais. bem como a prépria criagio de outros projetos a serem ‘aqui mencionades, E importante observar que a data de dezembro de 1986, indicada no texto como periodo em que foram obtidos os primeiros recursos para estudo da regio. foi fornecida em entrevista ‘or representantes da Funatura, em naventbro de 1996. > Qs cerradas constinuem 0 segundo maior bioma/ dominio morfoclimitice do Brasil ¢ da América do Sul, ocupando mais de 200 milhdes de hectares ¢ abrigando um rico patriménio de recursos naturais Tenovaiveis que se adaptaram is dificeis condigbes climaticas. cdificas ¢ hidricas que determinatam sua propria eaisténcia, Entretanto, apesar de suas restrigSes & agricultura, nas iltimas décadas os Cerrados 52-tansformaram_ne nova frontsita agricola do-nale-a_ ano serem.hoje-uma-das-matores reziles rodutoras de grdos do Br mmhecidos como a iltima grande fromeira a am eapand % da extenio lero do ral eo une das areas peionarias pan conserva, tendo eh vista 0 grau de ameaga que sofrem ¢ 0 pontencial de uso sustentade que ainda oferecem” (grifo meu), in IBAMA. Marco Comevitual das Unidades de Conservagao Federais do Brasil, Diretoria de Ecossistomas, Brasilia, abril de 1997, p. 07. % Com mestrado em Ecologia/ Universidade de Brasilia ¢ Pés-graduagio em Mangjo de Recursos Naturais ¢ Organizacionaisy Universidade de Michigan (EUA)-"Trabalhou nove anos no Depaniamento de Parques Nacionais ¢ Reservas Equivalentes no extinto IBDF, Entrou na Funatura em 1988. coordenando a elaboragio de alguns planos de manejo de varias UC's, dentre elas o Parque Nacional 1s programa, a presenga da Funatura comeca a aparecer na regio de forme mais incisiva © permanente. Segundo o relato"” da coordenadora do programa durante o periodo, apés um primeiro levantamento cartorial de cunho mais informal, ¢ a partir de sua propria experiéncia anterior no Servigo de Parques, ¢ elaborado um projeto voltado ao envolvimento com a comunidade: “ndo adianta nada fazer um trabalho se nao ampliar € envolver a Comunidade”. Aproveitando entio uma segundo doagio da WWF (a primeira foi utilizada para o inicio da implantaco do parque), redige-se a primeira Proposta do “projeto mie” do Programa Grande Sert8o Veredas, de conscientizagio ambiental das comunidades, sendo piblico alvo a populagao do entorno. Porém, segundo a autora do projeto, até entio ela propria no conhecia efetivamente a regio, tendo sido necessaria uma redefinigao da estratégia: havia muita gente morando no Parque, sobretudo posseiros; adiantando-se, no entanto, a uma possivel critica a esse respeito, comentou o fato de o PARNA GSV ter sido o mais bem estudado dos parques antes da criagdo. O desconhecimento inicial seria contraposto, além disso, a uma “corrida contra o tempo” aliada 4 “ma vontade de todos os emvolvidos”, sendo necessiria a tomada de atitudes, A pertir das primeiras visitas ¢ estadas em campo, ela comegou a perceber a necessidade de redirecionamento do projeto e, em conseqiiéncia, o “movimento” da Funatura comega a aparecer. Marinho de Femando de Noronha (PNMFN) ¢ 0 de Abrothos (BA), além da praia do Forte (BA), Em 1990 passou a coordenar o Programa Grande Sertdo Veredas da entidade. Recebeu, em Dezembro de 1996, o Prémto Dunning. concedido pela TNC, pela coordenacdo do Programa e pelos resultados obtidas na sua carrcira profissionaf”. In Pareschi, A. C. op.cit, p. 132, % Em 1990, tem inicio os Projetos de Manejo ¢ Conservacio da Regido do PARNA GSV, em parceria com 0 IBAMA ¢ a TNC, ¢ financiamento da TNC ¢ da Fundagéo © Boticirio de Proteydo & Natureza Enire 05 resulados indicados como jf realizado estio a reforma/construgo da casa da Funatura na érea do Parque, @ construgo de fossas e banheiros para as casas dos guardas-parques: ¢ 0 andamento do projeto de organizasdo conscientizagdo da comunidade Jocal (Pareschi. A. C.. op.cit). No sentido do envolvimento com a comunidade local ¢ do entorno, Ferreira indica o Projeto de Conscientizagdo das Comunidades da Regio do Parque como marco inicial do Programa GSV. e que tem em seu Plano de Agdo “todo 0 delineamento das ayécs da Funatura ¢, portanto, do Programa GSV (..) As ages do Programa GSV tém trés componentes bdsicos: 1) @ protego do Parque: 2) 2 conscientizagio das contunidades locais em telagao A esttatégia basica da conservacdo sob a forma de areas naturais protegidas ¢ a existéncia do PARNA GSVe 3) 0 envolvimento voluntario das comunidades, ebjetivando sua mobilizago ¢ fortaccimento.” in Ferreira, Lourdes M. “Co-gestio ou Parceria - A Atuagdo da FUNATURA no Parque Nacional Grande Sertio Veredas - MG?" in Funatura, Parcerias ¢ Co-gestao em unidades de conservacao, Anais do semindrio ocorrido em Brasilia nos dias 10 ¢ 11/09/96. Fundago Pr6 -Natureza, Brasilia * Entrevista realizada com a coordeandora do Programa GSV ¢ coordenadara dos trabathos de campo do Programa GSV. Novembro de 1996. Sede da Funatura. Brasilia, Os trechos subsequentes ontre spas. no corpo do texto, referem-se a essa entrevista 120 “(..) em relacéio aos posseiros, que 0 Parque... & basicamente ocupado por posseiras .... Eu consegui formar uma eguipe de irés pessoas, para wabalhar com a comunidade. E foi ai que gente fez nossa primeira grande adaptagio na nossa estratégia.... que tinha muita geme morando deniro do Parque, em niimeros absolutes, nao relativos, e gue ao invés... com a gente o entendimento era 0 segninte: esas siio as pessoas que vito ser mais diretamente atingidas - nao atingidas no sentido de vitimas, eu ndo considero que ha vitimas quando voce cria um parque ~ mas no sentido em que elas Seriam as primetras pessoas que teriam que entender 0 processo de criagao do Parque, de protegéo det natureza, que elas teriam que sair dali, ¢ era melhor, seria methor que elas saissem compreendendo 0 gue era (.. YPor 1880 entéio, focatizamos a conscientizacdo nas pessoas de dentro do Parque, @ no entorno muito préximo, quando a proposia original era no entorno...” Inicialmente, foram contratados dois guardas-parques, pessoas da regido, um deles atuando nessa fimgio até hoje. O outro, que atuou por pouco tempo, e de perfil bastante diferente do que depois se configurou entre os guardas, era um “latifiandidrio e pessoa influente da regido”, ambos conhecedores da area, que comegaram a abrir caminhos ¢ articulagdes possiveis do novo grupo que se criava, Posteriormente, foram sendo contratados outros guardas-parques, todos cles moradores nativos, formando em 1997 um grupo de nove guardas-parques. Sobre a formagio dessa equipe, a ex-coordenadora colocon que. “., a idéia era essa, era aproveitar as pessoas da regio... Em geral, elas se ‘adeqnam methor a viver no lugar, conhecem mais, ambientalmeme a area, socialmente as pessoas... E a gente ndo divide 0 pensamento com aquelas (pessoas gue acham que voce corronipe as pessoas da comunidade quando voce chama elas para trabalhar, como se fosse um empregador comum.... eles tem que se reportar ao Ibama, o Thama é que teria que acompanhar, ver 0 que eles esti fazendo ou ndo” Sobre a contratagio de guardas-parques nativos, cabe fazer uma digressio situando-a numa discussie mais abrangente do “campo de batalha ambiental” ¢ da questio “populagdes! parque”. A contratagio de guardas natives é criticada, por exemplo, pelo “Movimento dos Moradores de Unidades de Conservagio do Estado de Sto Paulo”. Ela é também criticada por Diégues”, que desenvolve essa critica no * 2° Encontro des Moradores de Unidade de Conservacao do Estado de So Paulo - Resumo das ‘Resolugdes:. Resumo do documento elaborado por 74 moradores, de 23 comunidades, localizadas emi 05 ‘unidades de conservagio de 07 municipios. CMUTICUT - VR / MOAB/ PROTER/ REBRAT. As principais rivindicagdes sinetizam-se em quatro pontos: “o dite de permanecer nas nossas teas", “de trabathar como os mais velhos”. “eriar os filhos e melhorar de vida’. “Queremos direitos iguais entre a natureza. os animmais e 0 homem”.No item “Os Problems”. sfio desemvolvicis trés pontos: 1) “A. populagde no foi ¢ mio vem sendo consultada”,, 2) "A tegislagdo condena os moradores", 3) “O. 1a momento em que discute a necessidade da participagao das comunidades locais nos Projetos de conservagio e de preservagdo em unidades de conservagio, devendo o Estado considerd-las como interlocutores privilegiados, Porém, aquela contratagio é vista como postura “patemalista”, que destaca “moradores mais ativos, geralmente Jovens, para o exercicio de guardas-parque. O que sucede é a instituigio da delagio, pois, os chamados “guardas-parques locais' acabam sendo obrigados a delatar e reprimir membros da comunidade, muitas vezes os mais velhos, que para sobreviver “desrespeitam’ a lei, Essa instituigdo desorganiza ainda mais as comunidades tradicionais que baseiam sua autoridade no conhecimento e poder dos mais velhos™” E importante também considerar essa discussfo no contexto de uma questio mais, ampla - a votagio do SNUC, ¢ a resolugdo sobre a permanéncia ou nao de populagses, em parques nacionais" - em que possiveis conflitos ¢ enfraquecimentos das populagdes tradicionais, diretamente envolvidas ¢ atingidas pela resolugao, colocam um peso a mais em uma das balangas Em termos mi simplificados, trata-se de uma divergéncia que pode ser desfolhada, que “contém” e “esta contida” em outra, em que as balangas tendem para Jados opostos. De um lado, ela tende para a efetivagiio das unidades de uso indireto, ‘como 08 parques nacionais, enquanto areas onde nao deve qualquer intervengio directa, uititizago ou alteragdo dos ecossistemas protegidos - 0 que exclui a residéncia de pessoas ¢ grupos em suas areas - ou seja, onde ha parques no ha pessoas, inclusive aqueles que podem ser chamados de “populagdo tradicional”. A Funatura compartilha essa concepgio, e a idéia de no considerar as populagdes como “vitimas” do processo, nem 8 contratagéo dos guardas como “corrupedo” nao sé é coerente com tal posig’io, ‘mas traduz também uma visio que entende a contratago de guardas-parques nativos como forma de integrar © grupo da populagao tradicional a0 processo amplo de criagao c implementagao dos parques nacionais. © outro lado da balanga entende que, em determinadas situagdes e contextos, a desrespcito aos dicitos ea dignidade do cidado.” © Diégues. Anténio Carlos. op.it,. © autor é também pesquisador do Nicleo de Pesquisa sobre Populagées Humanas ¢ Arcas Uimidas do Brasil (NUPAUB/USP), que consta como entidade de apoio no ocumemio do Encontro dos Moradores de Unidades de Conservagio do Estado de S80 Paulo. Diggues, A.C. op.cit,p. 121 * Sabre © processo de criagdo e discussio do Sistema Nacional de Unidades de Conservagae (SNUC), ver Capitulo 1. 12 postura diante de unidades de conservagao de uso indireto deva ser flexibilizada, podendo haver acordos com tais populacdes chamadas “tradicionais”: pagando-se indenizagdes (alternativa ja prevista na implantagdo dos Parques), criando-se contratos por tempo determinado de permanéncia, dentro de determinados principios de agdo condutas, ou mesmo reclassificando a area. Essa tendéncia critica no s6 a forma de se considerar as unidades de conservagio como “iihas de conservagao”, a hierarquia estabelecida entre as categorias de manejo”, os principios e a ideologia que sustentam fais posturas, mas a visio que percebe a sociedade, © também as comunidades tradicionais, como adversirios ou problema. “Nao se trata somente de indenizi-las [as comunidades tradicionais] pela perda de acesso livre ao uso dos recursos naturais, mas também recompensi-las pelo préprio trabalho exercido em proveito da conservagio da natureza™* Sie posigdes que, nos iltimos anos, radicalizaram-se como polos opostos, onde a questo, segundo Pareschi, transformou-se no “nd gordio que devide 0 movimento ambientalista em dois”. No caso do PARNA GSV, os guardas-parques, contratados pela Funatura © *(..)o SNUC estabeloce uma hicrarquia entre as varias categorias, subtendendo-se nas entrelinhas que hi julgomento de valor entre as “mais completas e importantes” (as unidades de protegao integral) ¢ as menos importantes; as unidades de mancjo sustentavel. onde se prevé, de modo timido. a presenea de populagdes locais. Outta vez, essa hierarquizagtio parte de uma visto reducionista da realidade como se as unidades de provera0 integral fossem mais importantes para 2 conservaclo que as unidades de manejo sustentavel"in Diégues. Antinio C.. op.cit.. p. 119. © Diggues. op.cit. p. 120. * Pareschi A. C. C.. op.it, p. 137, Segundo a autora, pode-se perceber de um lado 0 grupo dos ‘conservacionistas mais preservacionisias, geralmente ligados a ‘reas de ciéncias biolégicas ou naturais: de outro os conservacionisias ("gue J foram prescrvacionistas”) que congregam sociéleges. antroptloges ¢ demais profissionais ligndos trea de humanas. Pareschi analisa também essa dualidade @ oposicdo de um ponto de vista ideotégico e discursivo, onde tais posigles relacionam-se a outras ‘oposigdes, como a das ciéncias naturais x ciéncias humanas, ou do “biocentrismo” x “antropocentrismo”, envolvendo essas opesigSes aparentemente descontinnas. uma gama de ages ¢ ambigtidades que as aproxima ou confunde esses pélos e classificagécs. ‘A historia do SNUC € bastante expressiva nesse sentido. ¢ os dois grandes encontros. realizados «em torno da questo, em dezembro de 1996, e novembro de 1997 {ver Capitulo T) slo ifustragdes dessa ‘oposigao. O primeiro tinha como tema abrangente a questo Unidades de Conservacdo © Populagies. Diégues era um de seus participantes. Esse seminirio foi, no entanto, boicotado por uma partc das institigées convidadas. notadamente 0 grupo que assinow 0 “Manifesto”. entre os quais situa-se a ‘prépria Funatora e outras ongs das quais ¢ parceira (apesar de podermos identificar outros parceiros da Funatura entre o grupo organizador ¢ participante desse mesmo encontra). Talvez, come uma idéia sinttizadora nesse sentido. cssc foi o seminario do fine do tabu parques x pessoas. ‘Um ano depais, foi realizado o Congresso Brasileiro de Unidades de Conservacdo. com um viés, em seus temas de discussio, centrado nas ciéncias natura ¢ fisicas. ¢ que em suas conclusdes tenicas politicas langou uma mocdo de repudio ao substitutivo do PL. 2892, do Dep. Fernando Gabeira. Criticou- se a presenga de populagdes humanas em tais Areas © apoion-se a exisléncia de ecossistemas completamente protegidos da ago humana. bordio desse encontro talver pudesse ser: queren fazer reforma agréria nos parques!. 123 cedidos ao Ibama, so todos nativos, sfo parte do que se chamaria ali de “populagao tradicional”. A andlise que se desenvolve aqui, inclusive sobre essa situagio, tende a exercer outra forma de considerar a questo, onde os guardas-parques ¢ a populagao tradicional situam-se como um grupo que, diretamente, nfo participa dessa comenda cientifica, politica ¢ administrativa. Igualmente, nfio chegaram a se organizar em torno dessa suposta identidade comum, no caso, de serem moradores de uma unidade de conservagio. Mas, por outro lado, so grupos ¢ individuos que vivem as conseqiléneias dessa disputa, vivem 2 propria “opinido” disputada, e que, sobretudo, interagem com aqueles Orgdos - aprendendo, inclusive, a entender alguns aspectos do novo contexto, ¢ quando possivel, utilizé-lo para seu proprio benelicio. Voltemos a outro aspecto da implantagao do Parque, a partir da historia da Funatura Retomando a progressiva atuagdo da Funatura no Parque, € seu envolvimento com a populagdo local, a partir de 1993, © programa conseguiu fixar uma equipe relativamente estivel em campo - que passou a residir no proprio parque, na casa-sede da Funatura - 0 que ampliou ¢ aprofundou © contato com os moradores locais, bem como os projetos desenvolvidos. Feita entdo a primeira grande adapatagio do projeto, focalizou-se o trabalho na conscientizagao ambiental dos moradores de localidades do Parque: “(..) E essa estratégia foi definida om ies dreas (...) : satide, higiemte, plantas medicinais, curas populares; a outra & agricultura, conservaciio do ‘solo, micro-hacias; a outra educagdo informal, ¢ uma quarta de mobilizagéio e Jortalecimento populares.... porque essa é a integragio de todas as areas, ¢ através de agoes nas reunides comunitérias, passando informagbes, fazendo com que eles discutam problemas, encontrem solugdes..(..) Entdo, esse componente, fortalecimento popular, o piblico alvo é quem aparece nas reunides, e que vira um agente multiplicador.... Fai, cada pessoa da equipe (da Funatura} ficaria responsével por uma area” Sobre os primeiros comtatos da Funatura com os moradores da regio, os relatos assemelham-se a0 de outros “estrangeiros”, como os criadores da fazenda Carinhanha, que se espantavam com as pessoas se escondendo, com gente tendo medo de gente. No caso da Funatura, essa primeira recepglo talvez tenha sido potencializada por sua propria postura e seus objetivos, e pelos boatos de expulso que corriam ao redor da idéia do Parque. Assim, além de um carater mais reservado, desconfiado e até timido das 124 pessoas da regio, havia o medo de serem expulsos de suas prOprias terras © casas, € as primeiras agées de fiscalizagio da Funatura e do proprio Ibama certamente intensificaram esse medo € distanciamento. Provavelmente, foi assim com a repressio ao trifico de animais sitvestres que comegou com 0 auxitio da Policia Florestal de Arinos, atingindo algumas pessoas da comunidade, que passavam os animais para atravessadores. A ago mostrou resultados positives, porque, segundo a ex-coordenadora do Programa, foi controlado 0 comércio ilegal de animais silvestres, bem como a caga na regio. Com o tempo, com o desenvolvimento do Programa voltados 4 populacao local ¢ com a convivéncia frequente com a equipe do Programa GSV, o clima tornou-se aos poucos mnenos apreensivo ¢ de maior interagao. O movimento, cada vez mais intenso, de pessoas de fora na regido do Parque - tanto ligados as instituigdes envolvidas na sua implantagdo, quanto visitantes, pesquisadores, estudantes, estagidrios — além da contratagio de guardas-parques nativos, tudo isso facilitou a adaptagao nova situagio, € 4 pocira inicial foi aos poucos se assentando Sobre a relagio entre o andamento do Programa e de seus objetivos, ¢ a progressiva aproximagio com os moradores, a coordenadora da equipe de campo, em seu trabalho atuando sobretudo na area de satide, traz uma das experiéncia vividas: uma senhora, de uma das familias mais carentes. Todos sdo carentes, mas tem algumas em que a situagio & mais eritica, por uma série de razies (...). Mas, ela é muito jovem, tem a minha idade, ¢ na época Jc tinka cinco filhos Eera uma pessoa muito arredia, desconfiada, sb respondia com monossilabos (.) as criangas se escondiam (...) atrés da porta... Dai um dia, eu fui conversando... Como a Lourdes estava falando, as mulheres, elas tent, vamos dizer assim, um universo que elas dominam, que & 0 uiiverso da saiide, de cuidar da casa, dos filhos, da horta...e ela jé estawa com cinco fithos, nao tinha tomado nenhuma precaugéio para evitar filhos, ¢ eu jé tinha ouvido por outras pessoas da regiio que ela estave interessada em parar de ter fithos. Dentro da nossa linha de trabatho, a gente faz uma orientagito na parte de planejamemo familiar, ndo uma coisa formal do tipo encaminhar..... mas de orientar mesmo. E na primeira visita foi essa aversiio, na segunda, na terceira, na quarta.. ai, & medida que as visitas iam se repetindo, vocé ia sentindo as pessoas relaxando, Entéio, na quinta visita... e eu jé tinha tocado nese assunto, muito discreramente sobre orientagdo, do planejamento familiar (....) € dai, na quinta visita, ela chegou simplesmente de uma hora para outra ¢ pediu: “a senhora conversa sobre parar de ter nenén, né? Porgue eu esiava querendo umas explicagdes, porque eu néo quero mais ter menino."(...) E de 1a para ca, assim com a intensidade das visitas, com esse trabatho, ela mudow completamente a aceitacéo dela em relagéo as pessoas da Funtura, aos visitantes...° Assim, 20 longo desse period do Programa (1990 a 1997), foram desenvolvidas varias atividades: mutirdes, reunides comunitarias, visitas aos moradores, além de um imtenso trabalho de educagao ambiental junto as escolas. No discurso sobre o trabalho, percebido por exemplo através dessa entrevista, e também de outras situagdes que pude observar, era recorrente a referéncia uma metodologia de trabalho - expressa na forma de se relacionar com os moradores locais, ¢ de se estimular mudangas em condutas visdes sobre o meio ambiente. A equipe do projeto assumia a postura de “facilitadores”, no devendo haver uma indugdo direta a essas mudangas, © a introdugo de novos habitos, o que indicava preocupagHo em respeitar a cultura nativa em seu proprio tempo. Ao responder sobre os resultados obtidos como o Programa GSV, ao longo do periodo indicado, mencionou-se um que estaria ligado a mudangas no discurso local sobre a natureza, que jé podia ser percebida, por exemplo, na incorporagio da nova terminologia introduzida, como a referéncia a “fauna” ao invés de a “caga”, Outro aspecto mencionado entre esses resultados estaria ligado 2 uma “humanizagio” dessas pessoas, “A drea que eu acho que traz mais resultados, a humanizagdo da existéncia dessas pessoas. Isso é emocionante, é a coisa mais forte que tem ali... é voce methorar a socializagiio das pessoas, humanizar mesmo a existéncia delas, porque elas viviam completamente marginalizadas, ¢ ainda vivem... mas, a gente levon alguma informagéo, algum contato... nas reunives, elas tem wm carder assim... para eles ¢ uma festa, ¢ um momento de encomrar, de divertir.... qualquer coisa que voce fac, eles ficam absolulamente agradecidos™®. Diferentemente da Funatura, a presenga ago do Ibama no Parque percorreu ‘outros caminhos, apesar da “intimidade” institucional dos dois érgios em outros planos e de um acordo de co-gestao do Parque. Sobre os primeiros diretores, ou segundo a atuat terminologia - chefes de parque - pouco ouvi, a niio ser daquele que iniciou a “desmontagem” da fazenda do Gaticho Idearte, uma ago contada no capitulo anterior pelo atual Chefe do Parque e por ele questionada. De fato, num primeiro momento da * Entrevista com coordenadora do Programa GSV, e com a coordenadora dos trabalhos de campo do Programa, ein novembro de 1996. * idem 126 criagao do Parque, o Tbama parece ter mais se caracterizado mais pela auséncia e, segundo a entrevistada da Funatura e coordenadora do Programa GSV, foram necessirias varias presses para a nomeagao de um diretor, ¢ para o pagamento de algumas areas a serem indenizadas Em agosto de 1994, Ricardo M. Barbalho"’, assume a chefia do Parque, e 0 Tama passa a se “materializar” na regido. A sede da instituigao € montada fora do Parque, na ent&o Vila dos Gatichos, e comegam a ser contratados funcionarios para trabalhos de campo € servigos burocréticos, sobretudo entre moradores da Chapada Gaiicha, Em 1996, no periodo da pesquisa, o que se pde notar em relagdo 4 atuagdo desse OrgHo , a ndo ser no caso dos guardas-parques (que pareciam ser a Unica ponte entre os dois grupos), era a de uma atuagdo bastante independente dos trabalhos da ONG, e vice-versa. Ao contrario daquela, o trabalho do Ibama, além das atividades burocraticas realizadas no eseritério, mostrava-se - tanto em relagto a populagao situada dentro do Parque, como em seu entorno proximo (o que inclui a Chapada Gaticha) - mais pragmatico e informal “Hoje, do jeito que 0 parque esta néio existe um plano [de manejo}, entéo a gente ndo tem 0 que seguir. Hoje nds nos preocupamos simplesmente com a protegcio do Parque, e esporadicamente a gente faz um trabalho, acredito até informal, é informal, de educagiio ambiemal, na propria lida que a gente tem com esse pessoal, a gente esté fazendo esse trabalho: visita wm, visita outro, informa, recebe eles aqui no escritorio, da informagdo disso, daquilo...”" Conforme citado anteriormente, existe entre as duas instituiges um acorda de cooperagio téonica, prevendo agdes identificadas e executadas em conjunto pela Funatura e pelo Ibama, em parceria, Entretanto, no periodo estudado, particularmente no ano de 1996, as relagdes concretas entre as duas instituigdes “em campo” - ou seja, do ponto de vista do Parque enquanto “lugar praticado” - eram de distanciamento, discordancia e conflitos, ¢ em nenhuma acasiéo encontrei os coordenadores de cada um dos orgaos simultaneamente Essa oposigao mostra-se clara, por exemplo, no texto de Ferreira sobre a questo * Com formagio na area de commnicagao social ¢ pedagogia, ¢ curso de gestio ambiental pela Universidade Federal de Minas Gerais. Trabalhou no SENAR. 6rgo de formagdo profissional do Ministério do Trabalho (desativado em 1991) na supervisdo de cemros ¢ agéncias de treinamento espalhados pelo estado de Minas Gerais. que faziam ireinamento de mao de obra-rural, Em 1986, tomnou-se delegado do orgio no Estado, Em 1991, comecou no IBAMA, trabalhando na drea de recursos ‘numanos da Superinteneéncia do érgdo, cm Minas Gerais. Em 1994, assumiu a chefia do PARNA GSV. “* Entrevista junto a chefia do PARNA GSV/ Tama, margo de 1997. 127 da co-gestao, de dezembro de 1996". Neie, a autora e ex-coordenadora do Programa GSV, depois de discorrer sobre os signifieados formais do acordo e de descrever detalhadamente os trabalhos do Programa, descreve mais diretamente as relagdes entre 0s dois érgaos “box) desde 0 inicio dos irabalhos na regido do Parque, as relagbes enire a FUNATURA e 0 IBAMA, apesar de esparsas, déto-se mais facilmente com a Diretoria de Beossistemas (DIREC) e a Presidéncia do Instituto. A chefia do Parque, desde sua instalagdo jumto ao Parque, tem-se mantido & parte dos mrabathos da FUNATURA, apesar do discurso inicial de cada nova chefia de ser do seu interesse acompanhar ¢ apoiar os wrabathos da FUNATURA na regido do Parque (de 1991 até hoje (1996), 0 Parque esié em sua terceira chefia)”* Na continuagao de sua critica, Ferreira apontou o que setiam os pontos negativos positivos da relagao entre as instituigdes. Entre os positivos, estariam a propria atuagio da ONG no trabatho de implantagao do Parque, a disposigao formal do Toama para a parceria, ea clara intenglo dos escaites mais altos do Tbama no trabalho com a Funatura”, entre 0 pontos negatives, estariam a falta de uma clareza sobre o posicionamento do Ibama em relagao A co-gestio; uma auséncia de acompanhamento conjunto dos trabaihos de cada um dos érglos; a existéncia de “mal-entendidos” entre representantes do Ibama, inclusive da propria chefia do Parque e da Funatura, no caso da coordenagao e equipe de campo do programa. Do ponto de vista mais informal ¢ percebido no cotidiano das relagdes entre os grupos, a critica da Funatura voltava-se & conduta profissional dos representantes do Ibama no Parque, em agdes ou inagdes por les praticadas, & postura em relagdo a pessoas da populagdo local, ou em relagao a grupos da Chapada Gaiicha, A critica vinha também do outro lado, Os integrantes do Ibama nesse periodo nao haviam formalizado nenhuma critica - como no caso do texto da coordenagio do Programa Grande Sertio Veredas. Ela, entretanto, surgia no somente em comentarios cotidianos ¢ corriqueiros sobre essa ou aquela agao do grupo, mas pelo proprio distanciamento das atividades promovidas peta ONG, como as reunides mensais com os guardas-parques, Certamente, parecia haver um minimo denominador comum nessa °° Ferreira, L. M. “Co-gestio ou Pareceria - A atuagio dx FUNATURA no Parque Nacional Grande Sertdo Veredas” in Funatura, Parcerras e Co-gestao em unidades de conservacao, Anais do semindrio gcorrido em Brasilia. 10 ¢ 11/ 09/ 96. 128 relago, como um pacto de toierancia que garantisse a convivéncia necesséria, o que possibilitava inclusive um movimento freqiiente de pessoas entre as dois grupos de ¢o- gestores: pessoas como os guardas, moradores do parque, fuuncionérios e técnicos das instituigdes, pesquisadores ou visitantes do Parque. Para tentar descrever essa critica, que se exercia num plano mais subjetivo, podemos partir das palavras de um dos representantes do Ibama, em 1997: se ndio fiver envolvimento da comunidad... Uma coisa que en questionava muito da propria equipe [da Funatura], deles quererem... Eu achava um pouco até agressivo, sem base... Liles falavam que eu néio tinha base para falar ss, mas en disse isso a eles: que ew nunca vi fazer educaydo ambiental sem procurar se integrar com a comunidade... ¢ eles se isolavam da comunidad. Tanto dentro do Parque, como da area do entorno. Enido, eles achavam ruim eu falar isso com eles, mas era verdade... Eles queriam saber com que base eu faio isso... A base que eu tenho é vivencia, é escurar as pessoas, € conversar com as pessoas... Eles néio se misturavam, procuravam manter a disténcia.... € se colocanda num pedestal, que eu ndo sei que pedestal & esse, mas eles colocavam... De ter uma disténcia com a comunidade. Principalmente, a comunidade gaiicha, que eles procuravam evitar..."” © que, provavelmente, mais salta aos olhos quando nos depatamos com esse “toma la, da ed” é a ambigitidade. A critica feita 4 Funatura pelo Ibama sobre 0 ndo- envolvimento com a comunidade parece destoar quando exeminamos os inumeros projetos, investimentos ¢ esforgos desenvolvidos pela ONG e pela coordenagio do Programa GSV até entéo, em relagio comunidade, E, certamente, presenciando a agio da equipe no Parque, ou mesmo examinando a entrevista com parte da equipe, percebe- se um envolvimento com a populagio, sobretudo a populagdo do Parque. A fala do representante do Toama, entretanto, encontra ressondincia quando se omega a perceber 0 caréter desse envolvimento e 0s principios que o orientam © periodo da pesquisa e 0 intervalo de tempo que compreende inclusive esse confronto entre as duas instituigées no “luger-parque”, referem-se a um contexto que, logo depois, ou seja, nos principios de 1997, foi alterado de diversas formas, havendo uma reorganizagao e um reposicionamento dos grupos e atores no espago contratual da imeragao. Resumindo a Opera, a recém-emanciapada Vila dos Gatichos transforma-se no municipio da Chapada Gatiche, ¢ vé decidida sua primeira eleigao para prefeito ¢ c&mara municipal. A coordenagao do Programa Grande Sertao Veredas, que atuava desde os primeiros anos do Parque, ¢ afastada e um novo grupo toma a frente do projeto. Do lado 129 do Tbama, um de seus funcionérios mais conhecidos ¢ processado pela antiga coordenadora do Programa GSV. O Ibama e a Funatura passam a estabelecer um novo padrio de imteragdo e trabalho, a co-gestio aponta novas metas € comega a re: ages conjuntas, colocando em pritica os termos de cooperagao. © proximo item traz acontecimentos que fornecem chaves para o entendimento daquelas posigses e confrontos, ¢ para algo da relago entre os grupos envolvidos pelo processo amplo do Parque: a Funatura, o Ibama, a “populagéo tradicional” ou moradores, os guardas-parques. Procura-se compreender, também, 0 sentido da reorientagio dos dois érgaos e alguns de seus porqués, 2. Um instante no Grande Sertio: 1996 e trés eventos Voltemos a descrigées de espagos e tempos no PARNA Grande Sertéo Veredas, Mais precisamente, & descrigfio de acontecimentos ocorridos no més de julio de 1996, em duas localidades: uma, em seu entorno proximo - a Estiva, ou Galho da Estiva -; ¢ outra, em seu interior - a localidade do Rio Preto, ao redor do rio de mesmo nome. Procuro explorar, simultaneamente, duas dimensdes desses acontecimentos. De um lado, percebendo-os como situagies sociais", o que permite diferenciar os grupos participantes, os quadros de referéncias sécio-econdmicas ¢ culturais, ¢ os diferentes contextos principios colocados em prética e interagdo. De outro lado, eles também se reyelam como eventos’, ou seja, sio significativos na medida em que exprimem a complexidade do instante ¢ a historicidade dos encontros, Esses acontecimentos tém em comum o fato de reunirem varias pessoas, vinculadas aos diferentes grupos estudados, em lugares inseridos dentro do Parque Nacional, ou em seu entorno imediato, com um determinado fim social e coletivo. No caso, uma “palestra politica”, uma reunido promovida pela Funatura e um casamento. E importante assinalar que, entre os diferentes grupos participantes de cada um dos eventos, um determinade grupo teve representantes em todas as situagdes: 0 grupo dos ©! "Tomo inspiracie em Gluckman, ¢ na classica descrigao ¢ andlisc da inauguraggo da ponte. em que $¢ ‘véem cruzados os contextos da domingo colonial e dos sistemas tribais locais, na Zululandia Moderna. Sua definigZo do conceito estabeloce que: “uma situag2o social € 0 comportamento. em algunas cocasiées, de individuos com membros de uma comunidade, analisades © comparados com seu ‘comportamenio cm outras situagSes. Dessa forma. a andlise revela o sistema de relagées subjacentc entre estratura social, ¢ meio ambiente ¢ a vida fisiolégica dos membros da communidade”. Gluckmana, op cit. p.238, ® Sahlins. M, Ithas de Histérta, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, 150 sguardas-parques © Programa GSV contava na época com nove guardas-parques. Todos eles foram ou sto moradores de diferentes localidades no interior do PARNA GSV , importante ressaltar também, mantinham entre si - como grande parte dos moradores da regido - lagos de parentesco ¢ afinidade: irmaos, cunhades, coneunhados, primos. A maioria dos guardas-parques mostrava-se satisfeito com a fungdo, o que pode ser lido de diversas formas. A primeira, relativa 4 seguranga e estabilidade do salério ‘mensal, algo pouco freqiente para a maior parte dos moradores da regiao. O salario, portanto, aparece como forma de melhoria de vida, um dinheiro estavel ndo somente para o guarda contratado, mas as vezes a unica fonte de renda fixa do grupo familiar a0 qual pertence, Igualmente, a rotina de trabalho, marcada pelas rondas em areas definidas, permite uma administragao propria do “tempo de trabalho”, o que thes possibilita a manutengio da roga e dos animais que porventura tenham, Ha também um “status” diferenciado que o grupo parece ter e, mais aparente em alguns casos do que outros, a fungao pode estar rodeada pela imagem de prestigio € de certo poder. E relevante também indicar a importéncia que a maioria deles atribui ao proprio trabalho, a idéia de conservacio ¢ protegio do ambiente em que vivem, ao proprio Parque - “Sabe 0 que seria isso aqui se ndo fosse 0 parque? Ta virar tudo carvdo”. A partir dessas consideragées, se, por um lado, como apontaria Diégues, a func&o tende a criar diferengas marcantes e gerar conflitos entre os compromissos com os empregadores € os compromissos com o grupo de vizinhos e parentes, por outro lado faz com que os guardas scjam também intermedidrios dos interesses locais diante da Funatura e do Tama A presenga constante dos guardas-parques nas descri¢des subseqitentes deve ser vista, do ponto de vista analitico, no como uma fixagio da identidade do grupo e dos individuos, como se tal fungdo os classificasse estatica e monoliticamente. Pelo contrario, como pessoas vinculadas aos outros grupos aqui trabalhades - moradores do parque, Tama, Funatura -, esse cardter se adiciona a outras posigdes sociais entre as quais transitam, se identificam, experenciam, Assim, acompanhando os diferentes lugares que 08 guardas percorrem, ¢ seguindo algo de seus pasos, passeamos também por outros elementos que compéem 0 contexto, os movimentos, fixagdes e ambigaidades presentes nos espacos do PARNA GSV. BI A Palestra Politica Sexta-feira, 26 de julho de 1996. Um momento especial, visto que a ento chamada Vila dos Gaiichos havia obtide sua emancipag0 politica do municipio de Sao Francisco no ano anterior, e a regio vivia seus primeiros momentos de campanha politica, para as primeira eleigdes a prefeito e cimara municipal. Outra disputa, sobreposta a essa, dava-se em relagio a outro distrito emancipado conjuntamente de Sao Francisco, a chamada Serra das Araras. Assim, a ex-Vila dos Gaiichos e a Serra das Araras, formariam um novo municipio , a partir das eleigdes, seria decidido também qual delas seria a sede administrativa. Formaram-se duas chapas concorrentes, marcadas fortemente pela oposiggo Gaiichos x Mineiros. Apesar de ambas contarem, em diferentes graus, com pessoas que poderiam ser classificadas em ambos os grupos, e pertencentes tanto a Vila dos Gauchos como a Serra das Araras, a chapa dos Gatichos parecia contar com 0 peso da propria histéria da findagio e do caréter de desenvolvimento e progresso da Vila dos Gaiichos, em contraste com a antiga ¢ tradicional Serra das Araras®. Do ponto de vista dos moradores de localidades do Parque ¢ da politica local, o candidato a prefeito pelos gaiichos havia sido © primeiro vereador ¢ lider politico da Vila, tendo na regio um prestigio ligado também & participagio e pritica politica anteriores, além de ser muito mais conhecido ali do que o candidato a prefeito do partido opositor. Ja a chapa dos mineiros era encabegada por um candidato pouco conhecido Tocalmente, porém com forga maior na Serra das Araras, Como vice-prefeito, entretanto, trazia um candidato residente na Vila dos Gaiichos que, apesar de baiano de origem, mostrava-se francamente identificado com a “identidade mineira” ali expressa e utilizada como instrumento politico, E importante mencionar que ele mesmo era funcionario do Tbama - na época, desligado formalmente do 6rgéo para poder concorrer como candidato - e sua chapa comtava também com outro cendidato ligado ao orgio, um ‘guarda-parque ¢ morador do PARNA GSV. Segundo um radialista que trabalhou na campanha dos “mineitos”, cujo grande eleitorado situava-se 1a Serra das Avaras, havia poucas chances de essa tiltima sitwar a sede do municipio. A razio, segundo cl, estaria no “espirito” de atraso desse distrito, que é uma dus povoaches mais antigas da regtto - com cerea de 150 anos - ¢ a0 mesmo tempo, uma das que menos se transformou ¢ desenvolveu, comentando le que até a Inz elétrica era uma aquisicdo bastante recente, O contrasie com @ Vila dos Gatichos realmente se fazia forte. que em 20 anos dc criaydo tornou-se smunicipio, comando também com wma infra-estratura visivelmente mais ampla que a Serra das Araras. 132 © encontro na Estiva, portanto, insetia-se nesse momento de expectativa, disputa, aliangas, encontros, conflitos - o tempo das politicas. Revelava-se também como primeiro encomtro politico acontecido na regido do Galho da Estiva, mais precisamente na casa de Dona Erminia ¢ Seu Négo, sogros de um dos candidatos a vereador, também guarda-parque. Como ja foi mencionado varias vezes, as distancias entre as localidades do Parque ¢ mesmo da regido podem ser bem grandes, e so poucos aqueles que possuem um meio de transporte proprio, quando muito algum cavalo ou mula, Assim, para garantir um nimero de pessoas razodvel num encontro como esse, ¢ na maioria dos eventos politicos em époce de campanha, a questo do transporte era fundamental Consegui uma carona de caminhonte, ¢ cheguei ao local ainda pela mann, A maioria dos candidatos nao havia chegado e no local encontravam-se os moradores da casa, além de alguns vizinhos que ajudavam na organizagio da “palestra politica” Num primeiro plano da area em que ficava a casa, logo apos a cerca sertaneja, & esquerda da casa, havia um barracdo feito de madeira e patha, onde alguns homens preparavam a came do churrasco. A grande casa de adobe - que se constitui como centro espacial dessa descrigio - era ampla, com varios eémodas, cercada de plantas ¢ sombras. Na sua lateral direita, uma varanda que se ligava a cozinha e a uma das salas. La, encontravam-se as mulheres junto com as criangas pequenas, preparando 0s outros pratos da grande refei¢do que se prometia - a carne cozida, 0 arroz, 0 macarrao, as folhas. Contiguo a essa varanda, 0 pomar, onde em uma pequena fogueira, uma mulher preparava a enorme panela de arroz. A palestra politica anunciava-se, nese momento, como um grande almogo, Eu acompanhava D. Edite, comadre da dona da casa e, como © momento ainds era de certa trangiiilidade, tivemos tempo de caminhar até © pequeno riacho no fundo da casa, a esquerda, em cujo brejo cultivavam uma enorme horta: entre buritis, cresciam a alface, a riicula, a cebola, o alho, a aruda, © milho, a mandioca.... 0 casal anfitrido, na faixa dos 60 anos, cultivava sozinho essa Area. ‘© ambiente ainda era de tranquilidade, e comegavam a chegar os vizinhos mais proximos, alguns vindos ali do outro lado do Carinhanha, na Bahia, velhos amigos, pessoas da mesma “era” ~ expresso bastante usada pelas pessoas na faixa de 50 ou 60 anos. © proprio Seu Négo, ha $7 anos morador no local, apresentava-me amigos de inffncia, Houve tempo, entio, de ouvir seu Négo falar sobre essas antigas amizades, sobre tempos passados de fartura e riqueza, em que tinha “para vender”. De carro de boi, 133 ja e voltava de Januaria em 14 dias, para vender 0 que produzia, Trazia de volta somente © que ele mesmo nio tinka condigdo de plantar: 0 café, 0 sal, © agicar. Apesar dos tempos atuais nfo serem descritos como os da fartura do passado, as condigSes afi eram de pessoas bem situadas econdmica e socialmente para os padres da regitio: possuiam ‘areas de cultivo ndo-contiguas, proximas s casas de seus filhos, onde cultivavam arroz, milho, feijio, cana, mandioca; possuiam um engenho de cana perto de uma das filhas, onde produziam rapadura e garapa, e mantinkam uma casa de farinha Porém, a tranquilidade que permitia conversas sobre o passado e fazia até esquecer a finalidade do encontro, deu lugar a uma multidio de possiveis eleitores que chegavam, ao som de fogos de artificio, vindos nas cagambas de caminhdes e caminhonetes, mobilizados para reunir as pessoas para a “palestra politica”, Inicion-se entho a festa A cozinha © a area coberta onde eram assadas as carnes foram rapidamente tomadas, © as conversas trangiilas deram lugar ao “vamos comer”, cada um preocupando-se em encher o proprio prato, Além da comida ¢ dos espacos articulados em volta dela, também a pinga ganhou seu lugar, reunindo sobretudo 0s homens. Logo, as pessoas procuravam uma sombra ao pomar, para um descanso, ou para as laranjas que ali se ofereciam para completar a refeigo. As criangas, sobretudos os meninos, encontravam-se no ultimo plano desse cendrio, refrescando-se na algazarra da Agua fresca do riacho, Em determinado instante, alguns dos candidatos ou dos envolvidos na campanba propriamente dita comegaram a questionar se o almogo deveria ter sido servido antes da palestra. Sim, j4 era mais do que tempo da palestra, antes que todos dela se esquecessem. Voltamos ao primeiro plano do cenério, a area coberta onde antes eram assadas as cares, Ali, perpendicular ao pequeno coberto, foi colocada uma mesa, com um arranjo de flores de plistico © uma cadeira. Sob a choupana, perpendicular a essa mesa, sentaram-se as mulheres mais velhas, em maioria, Atris de mesa, em semicirculo © em pé, 0s candidatos a prefeito, a vice-prefeito, a vereadores e outras pessoas envolvidas na campanha, além de presente também um candidato a vereador do partide dos gaiichos, mineiro e morader dos Buracos, ali recebido como um conhecido de todos. Completando 0 semicicculo, do outro lado da mesa, espalhados de pé, 0s convidados da palestra politica ¢ os possiveis eleitores. 1M © primeiro a tomar a palavra no era candidato mas participava da campanha, ¢ era também ligado ao Tbama, Seguiu-se entio um discurso, em que apresentou os candidatos e coordenou © evento, configurando em sua fala o earater geral do encontro. Ao fechar a apresentagio 0 pedido de votos, sobretudo ao candidato a prefeito, reforgou a distingdo com os gadchos, sendo o grupo ali presente caracterizado por ser “gente da terra”, que gostava entre outras coisas da farinha e do forré, e sabia o que a regido realmente precisava. Como qualidade do candidato a prefeito, foi mencionado 0 fato de ser homem de posses, que ndo precisaria da politica para enriquecer, ¢ se candidatava para melhor servir ao povo. Depois dessa apresentagio, falaram os candidatos a prefeito ¢ vice-prefeito, ¢ também os candidatos a vereadores, homens e mulheres tanto da regio da Chapada Gauicha, quanto os da Serra das Araras. Ao longo da “palestra”, era visivel o contraste entre a pretendida formalidade e o espago para o inesperado, onde entre uma fala regada pela entonacao caracteristica do discurso politico, um homem animado pelo excesso de pinga roubava a ateng&o dos presentes, ¢ fazia macaquices ao redor dos oradores. Alguns deles, para reter a atengto dos presentes, subiram em cima da tnica cadeira existente, transformando-a em “palanque”. Havia também alguns gauichos presentes, visto que uma das candidatas, com © slogan da “forga jovem”, contrapunha-se 4 hegemonia mineira da chapa por set gaicha, As falas, sobretudo das mulheres candidatas, centravam-se nas escolas e na aposentadoria para os mais velhos que, alias, era parte da campanha, ja que os candidatos procuravam orientar e agilizar a aposentadoria para muitas pessoas - que por sua ver, aproveitavam a ocasiao para obter no SO aposentadorias, mas 0 que pudesse ser de beneficio: roupas, comida, dinheiro, trabalho... encontro chegou ao seu final mais pelo cansago de seu piblico do que pelo roteiro planejado, ¢ os ultimos oradores acabaram encurtando suas falas, entre pessoas que se dispersavam ¢ mostravam o desejo de partir. A saida foi agitada, muitas pessoas precisavam de carona, ¢ perdé-la significava muitos quilémetros até a propria casa, no melo da noite que chegava. Caminhdes e caminhonetes repletas, estouro de fogos, ¢ teve seu fim a primeira palestra politica no Galho da Estiva A Reuniiio da Fu Dia 27 de julho de 1996. Segui, junto com o guarda-parque Zé Luis, da regio de Santa Rita até o Rio Preto™', onde se realizaria a reuniio da Funatura. Tratava-se da 10" Reunitio Mensal de Guardas-Parques, na qual estavam presentes vito deles. O encontro se deu na casa que funciona como sede da Funatura no Parque Trata-se de uma antiga fezenda, em area ja indenizada, que foi reformada inicialmente com 0 objetivo de receber doadores internacionais que desejassem conhecer o Parque € 0s projetos ali desenvolvidos. Assim, além da preocupagdo com conforto - possui gerador, agua encanada, ¢ toda telada -, a reforma da casa previa a hospedagem de muitas pessoas, além do cuidado especial com o espago intemo, foi dada bastante atengo a0 espago extemno, sendo a casa cercada por um grande varanda, com muitos ganchos para rede e uma grande mesa. Entretanto, por outros motivos, a casa acabou tornando-se sede da ONG no Parque, hospedando a equipe do Programa GSV - em geral, tecnicos de nivel universitario, vindos de outras regides, que ali tinham sua casa ¢ seu espago de trabaluo. Mesmo sendo, em varias situagdes, aberta para um uso coletivo, havia um espirito forte de organizagao domestica, ¢ também de uma casa, como espago de intimidade. Nessa época, estavam hospedados na sede, além das coordenadoras do Programa GSV, uma delas vivendo ali, também os dez participantes da “Capacitago ¢ Vivéncia Ambiental”* do més de julho (Folder no Anexo A), um dos projetos desenvolvidos pela ONG. Esse reunido recebia também a visita do Superintendente da ONG ¢ alguns visitantes inesperados que foram convidados a participar, como eu propria, ¢ dois ou trés ** Roteiro de Santa Rita até o Rio Preto (entre parénteses, o rio principal): Casa de Dona Inocéncia - \Varge Larga (Santa Rita) - Trés Irmdos (Sama Rita) - Estevdo (Santa Rita) - Circo (Tomé Inacio) - ‘Tomé Inicio (Rio Preto\/Morzo do ‘Tomé Inicio - Cobra (Fuzit) - Fuzil (Passage do Mato)’Morro do Fuzil - Passagem do Mato (Rio PretoyMorro Passagem do Mato - Tirtrica (Passagem do Mato) (36 abelramos da barra até a cabeceira, onde nasce) - Carrasco (Passagem do Mato) (s6 na cabeccira) ~ Gallho do Viado (Veredo), Veredio (Rio Preto) ~ Mandui (gallho de Verediio) (atravessames) - Tiririca (Areia) « Areia (Rio Preto) - Rio Preto (Carinhanha)- sede da Funatura 5 © projeto, também apoiado pela Fundago O Boticério de Protege a Natureza, realizou-se de agosto de 1995 a julho de 1996 ¢. como objetivo propanha: “Pretende-se 2 formagde de massa critica conscientizada, quanto as diversas questdes ambientais. soviais, de ensino, pesquisa, filosdficas, de cidadania e fortalecimento e mobilizagio populares, que se constituird em agentes muliplicadores dos pprocessos. Com a amaclo destes agentes mauhiplicadores. inclusive da propria regio. espera-se um aumento do alcance da divulgagdo dos trabalhos da FUNATURA, especialmente da importincia de um parque nacional e da conscientizacio das comunidades locais. O desdobramento disto sora a ampliacio da conscientizagao ambiental promovida ¢ a consequente proteedo do Parque” Folder de divulgaedo, Funatura, Brasilia. agosto de 1995, 16 comhecidos dos guardas Apesar do grande nimero de pessoas e do clima “social” € amistoso, 0 encontro foi bastante organizado e controlado, contando inclusive com um cronograma (Anexo A), © que € significative no sentido de indicar uma das caracteristica do trabalho da ONG: a extrema organizagao ¢ preocupagao em marcar os espagos ¢ tempos de trabalho Os espagos utilizados foram sobretudo os externos & casa, preparados, como foi dito, para reunides de muitas pessoas, como aquela que ali acontecia. Seauindo o cronograma do dia, percebe-se a previsio ¢ 0 encadeamento de todos os momentos: a chegada dos guardas (vindos cada um de diferentes distincias e pontos do parque); 0 horirio de almogo eo tempo para a organizagaio do espago para a reunitio (visto todas as tarefas da casa serem coletivas), a apresentagdo dos participantes, a apresentagio de trabalhos desenvolvidos por participantes da vivéncia; a assinatura do livro de presenga; a diseussio dos assuntos administrativos; © intervalo para o lanche; a apresentagaio de miisica danga regionais (a curraleira), o encerramento, a fimpeza do local, ¢ 0 momento das fotografias A maior parte da reuniao (sobretudo os momentos de apresentagao das pessoas, dos trabalhos e as discussdes administrativas) foi realizada num gramado ao lado da casa, protegido pela sombra das grandes arvores proximas, As pessoas se dispuseram em uma grande rod. O clima em geral, sobretudo entre os guardas e os participants da vivéncia, era amistoso ¢ algo festivo. Um dos momentos importantes foi o da “apresentagio de uma experigncia de cada guarda-parque”. Cada um deles levantava-se e colocava-se em um local de destaque em relagio ao resto do grupo; primeiro, apresentava-se, situava a rea em que morava e realizava a ronda, sé entéo narrava alguma histéria ou fato acontecido que julgava interessante. A maioria das historias contadas por eles referia-se ao encontro com algum animal: a historia do tamandud-bandeira (ou meleta) no veredao, a historia do macaco- guariba, bugio, gritador ou roncador, cujo macho € barbado; a do carcara tirando carrapato de anta, que veio com 0 comentario de que daria uma linda foto; a historia da “coz-de-pristo” para o lobo-guard, € 0 caso com o tatu-peba, cagador; o avistar das duas congas suguaranas, quase pretas, pardas, num caminho proximo, Essas histérias eram contadas num tom bem-humorado, dando margem a “trogas”, brincadeiras ¢ risadas, Ao longo da narragfo, igualmente, eles eram corrigidos pelas coordenadoras caso usassem de alguma “impropriedade” da linguagem, como foi o caso quando um deles se referiu a 137 um certo tipo de animal como “esse tipo de caga’”. O uso da expressio foi imediatamente corrigido - “ndo & caca, ¢ fauna” Dois dos guardas, por sua vez, trouxeram relatos que problematizavam o trabalho como guarda-parque, e causaram uma resposta mais séria do grupo, levando quase todos 4 discusséo. Um deles levantou a dificuldade de trabalhar em areas indenizadas e n§o indenizadas, da dificuldade de demarcag&o entre tais areas ¢ do controle de uso, reclamando sobretudo da invasio de gado nas areas indenizadas. Outro, pegando 0 rumo dessa conversa, trouxe algo dos conflitos que enfrentavam na fungo, novamente ligados @ questio do gado. As reclamagdes eram diretamente ligadas a um dos fazendeiros do entorno préximo do Parque, ¢ aos confrontos com seus vaqueiros. ‘Mais grave ainda seria o poder desse fazendeiro junto a uma pessoa ligada ao Ibama, que teria facilitado 0 acesso daquele a freas indenizadas: “Se os guardas fossem pessoas de fora, dava até morte”. A discussio ampliou-se, trouxe criticas das coordenadores as condutas do Tbama, e trouxe também ambigiidades das fungées dos guardas: “guarda é para fazer ronda, no é para fazer cerca”, fala que se referia novamente 4 necessidade de demarcagao das areas indenizadas, cerca de 10.000 ha. Ainda durante esse caminho da apresentagao, um deles referiu-se as dificuldade sécio-econdmicas vivides, “a gente tem que viver da casca de pau”, ¢ 0 nico deles que havia de fato realizado um dos projetos do programa - a instalagto de fossas sanitarias - agradeceu 0 auxilio nesse sentido, sobretudo por ter melhorado as condigdes de vida de seu flho deficiente fisico Outro momento de forte envolvimento foi o das apresentagdes dos integrantes da Vivéncia Ambiental. Esse grupo era composto por cerca de 10 pessoas, de proveniéneia: idades e trajetérias distintas: alguns estudantes universitirios vindos de estados do Sudeste, uma geografa de Brasilia, um profissional de comunigio vindo do Nordeste, estudantes do segundo grau vindas da Chapada Gaiicha. O grupo ja estava praticamente ha um més na sede da Funatura, e aquela era a iiltima semana deles no Parque. Parecia haver, portanto, akém da identificagao do proprio grupo enquanto tal, um sentimento de amizade e solidariedade, vindo da convivéncia nas atividades conjuntas desenvolvidas pelo programa, 0 que incluia a divisto de tarefas domésticas durante a convivéncia na casa. Ao longo da reunidio, essas pessoas, divididas em pequenos grupos, fizeram apresentagées ligadas a alguns dos temas dos projetos da Funatura: saiide, medicina popular e meio-ambiente, tendo os seguintes titulos: “Ténia ou canjiquinha””; “O que é 138 que o Cerrado tem?”; “Preserve a farmacia viva", Foram apresentapdes dramatizadas, pequenos teatrinhos, ¢ continham também um carater de esclarecimento, sobretudo nas questées relativas @ saiide ¢ ao contexto cultural da regido. A maior parte do tempo era reforgado o tom do “engracado”. as mais bem-humoradas foram as de maior sucesso. Entretanto, mesmo os momentos mais sérios e didaticos, foram conduzidos para esse lado - sobretudo pela audiéncia dos guardas, que interagiam no meio da apresentagio, surpreendiam e alteravam 0 roteiro com comentarios irdnicos e piadas. Porém, ao lado do clima bem-humorado e descontraido, havia 0 programa a ser seguido, ¢ 0 controle para que assim fosse. Terminadas as apresentaghes dos guardas e dos participantes da vivéncia, seguiu-se um momento mais sério - primeiro houve a fala do superintendente executivo da Funatura, em visita ao Parque; posteriormente, as coordenadoras do Programa GSV trouxeram a discussio aberta assuntos administrativos ¢ de pessoal. Infelizmente, no registrei pormenores dessas duas falas, mas me vem a mente uma discussio que envolveu todos os guardas, e que levou algum tempo a ser resolvida: a questo dos uniformes Contextualizando algo dessa questi, os guardas-parques recebiam, além do salério, uma mula para realizarem as rondas, uma sela, ¢ © uniforme. Tanto o animal quanto os “acessdrios” deveriam ser usados nos horarios de trabalho, nao deveriam ser emprestados ¢ deveriam ser bem cuidados, No entanto, nem sempre essas orientagdes cram seguidas, sobretudo no que se refere aos uniformes que, 4s vezes, nde eram corretamente usados, ou ent&o 0 eram em ocasides inapropriadas, fora do horario e do lugar do trabalho. Assim, parte da discusso sobre questdes administrativas e de pessoal trouxe recomendagdes sobre esse uso, ¢ foram chamados a atengfo os guardas que no ‘momento da reunio vestiam-se inadequadamente, com as camisas desabotoadas, ou um ‘outro chapéu que nfo © boné que compunha o uniforme. Essa questiio foi colocada também em discussio, ¢ levou-se & votagio se 0 uniforme seria composto com um boné ou um chapéu. Ganhou 0 boné. Além disso, chamou atengdo 0 carater aberto da reuniiio, com todos ali presentes, com informagdes sobre os gastos do Programa, de forma detalhada, ficando também clara a preocupagdo com a transparéncia e corresao na utilizagao do dinheiro do projeto, Por fim, a grande roda foi encerrada com a questo dos sanitirios das residéncias dos guardas-parques. Como parte do projeto mais amplo, havia o objetivo da instalagio de fossas nessas residéncias, 0 que também funcionaria como estimulo para que outros 139 moradores seguissem o exemplo, abandonando 0 “banheiro terrano”, ¢ construindo as proprias fossas. Foi trazida 4 discuss4o, entao, a importincia da questio, ¢ 0 fato de somente um dos guardas ter realizado o projeto. A justificativa dos guardas Tigou-se as dificuldades encontradas para a propria instalagao, ¢ a equipe do programa reforgou a recomendagiio de que projeto fosse realizado, destacou sua importéncia, ¢ sugeri meios para sua realizagdo, como os mutirdes Terminada a grande roda, 0 cronograma previa o lanche, a apresentagio de miisica e da danga regionais, 0 encerramento ¢ organizagdo do local e a fotografia do grupo. A partir desse momento, apesar de ainda conduzidas, as atividades correram mais soltas e descontraidas, ¢ seu auge foi a “curraleira”, numa outra area aberta, perpendicular & casa Da danga da curraleira, todos os guardas participaram, e junto ao toque caracteristico da danga, a compenetragio e seriedade dos rostos, a audiéneia contagiou- se. Abriu-se entZo 0 grupo e, no momento seguinte, todos ali, participantes da vivéncia, convidados, coordenadores do programa tiveram a oportunidade de aprender os passos & participar da danga, agora com integrantes mais sorridentes e empolgados, ainda que menos precisos em seus gestos, enquanto alguns corriam atrés de maquinas fotograficas para registrar o momento glegre do fim da tarde © Casamento Na noite desse mesmo dia, aconteceria um casamento nas proximidades da casa da Funatura. Todos os guardas presentes a reuinio iriam a tal evento, como convidados, moradores da regiiio, “primos” ou parentes da noiva e, ao fim do dia de trabalho e de reunio todos se preparavam para a festa. Também os representantes da Funatura, que desenvolviam o Programa GSV no Parque, haviam sido convidados - eram vizinhos do pai do noiva, em cuja casa seriam realizadas a ceriménia e a festa. Entretanto, como hospedavam na Gpoca os participantes da ncia, julgaram desapropriado chegar na cocesiéo com tanta gente ¢ optaram por nao ir. Assim, ao fim do dia, depois do banho & de roupas limpas, seguimos ao casamento. Na noite clara de lua cheia, chegamos ao local onde se daria a festa, a casa de seu Ladu - morador antigo do Rio Preto, respeitado e conhecido por todos. Um dos primeiros comentirios ouvides do grupo que eu acompanhava foi sobre o enorme 140 movimento: “/do cheia s6 vi na Serra”**. O movimento, realmente, era enorme. A estrada de terra, na frente da casa, via-se tomada por carros, caminhonetes, cavalos, mulas, ¢ por pessoas que chegavam ou ali circulavam, No espago em frente 2 casa, como que num primeiro plano da festa, havia uma area aberta, onde foi construida uma espécie de barracdo. Feito da palha e da madeira de buriti, enfeitado com suas folhas verdes, flores ¢ fitas brancas, foi o paleo da missa e da cerimdnia ¢, nas mesas ¢ cadciras de metal branco espalhadas nessa area, encontravam-se provavelmente os parentes mais proximos dos noivos e os convidados ‘mais ifustres - inclusive alguns politicos em campanha -; no momento em que chegamos, ‘cumprimentavam 0s noivos. © grupo dos guardas-parques foi logo se dispersando, encontrando amigos & parentes, Logo comegaram a aparecer as bebidas e carnes, e foi grande a fartura por toda a noite. Aos poucos, os outros espagos e ambientes da festa foram se revelando, bem como seus convidados. Seguindo a idéia do “plano espacial” para essa descrigéo, um segundo plano situava-se depois da cerca sentancja, ao redor da casa, entre 0 pomar de grandes arvores antigas, a luz da lua e do fogo que ali se fazia Havia uma grande fogueira, ao redor da qual um grupo de criangas, mulheres e homens de diferentes idades conversavam e assavam cares. Proximo a essa fogueira, uma pequena cabana onde se assava e cozinhava mais carne, muita care, Dentro da casa, também era grande a circulago, e muitos dos que haviam vindo de longe para a festa garantiam um lugar para dormir, ou trabathavam na cozinha, procuravam pessoas. Literalmente, a casa estava tomade, O tercciro plano dessa festa espalhava-se na parte atris do pomar; depois da cerca “passa um", havia o rio - o galho -, o enorme luar, o barranco de areia ¢ alguns buritis. Ali, o movimento era mais disperso, pessoas que procuravam a agua fresca e Jimpa para beber ou lavar o rosto, depois de tanta came e tanta gente; aproveitando 0 cenario tranqiillo e romantico, alguns casais de namorados. Mais tarde da noite, um dos pontos que configurou 0 maior movimento, foi 0 barracdo do “primeiro plano”, onde havia se realizado a ceriménia. Logo, as cadeiras e * Festa de Santo Antonio, na Serra das Araras, ©" Trata-se de uma passagem na cerca, construida de tal forma que somtente uma pessoa por vex é capar de passar, 0 que impede, também. 0 trinsito de animais de grande porte, como cavalos. ow gado. Uma prada local brinca com a imprecisio desse nome, porque “de um em wm, podem passar até mil.” 1a mesas foram retiradas, ¢ alguns homens encarregaram-se da sanfona, da caixa, do tringulo - teve inicio © forrd. Ao redor desse lugar, foram acesas outras foguciras, que arderam durante toda a fria noite que fazia Para o leitor que nfo conhece algo das festas realizadas nos interiores de Minas, ou Goids ou Bahia, é interessante ressaltar algo sobre a intensidade do encontro e do festejo, Trate-se de uma festa mais ampla, ocorrida por exemplo no contexto de rituais do catolicismo popular, como as folias ou festas de samto, ou um caso como o aqui descrito, onde se celebrava a unio dos noivos e suas familias, se hi 0 momento da celebrago mais formalizada e ritualizada, marcada pela seriedade ou pela devogao, nao falta também 2 hora de “Yestar”, da diversao, da fartura e da convivéncia, Os encontros & trocas ampliam-se e envolvem também vizinhos € parentes proximos ¢ distantes, conhecidos € desconhecidos, politicos ¢ eleitores. E ha de se ter muita energia para acompanhar o ritmo nativo da diversio. Como tantas vezes mencionado, a maioria das pessoas vem de longe, sobretudo em cavalos ou mulas. A idéia de se cansar no meio da noite e resolver ir embora nfo faz ali o menor sentido: ou se procura um lugar para dormir, provavelmente embaixo de algum “pé de pau”, ou se espera ao redor da fogueira, da carne, da pinga ou do forr6, as horas até o amanhecer, Nos varios ambientes, as vezes um homem velho contando 20s ais jovens, ao redor da fogueira, como eram muito mais animados as festas de seu tempo de mocidade. Conterrineos se encontrando, parentes ¢ amigos tentando aproximar dois solteiros ja em hora de se casar, algumas poucas mutheres se dividindo entre os muitos homens, a meioria bébados, que procuravam uma parceira para o forré. Velhas pitadeiras de cachimbo, earnes, embriaguez, eriancas, jovens, aqui ott acoki um radio de carro tocando um sucesso de midia, sertanejo ou dancing. Momento diverso, permissivo e livre, a hora de festar. esse ambiente, a idéia do Parque, ou dos nomes a ele associados - Ibama Funatura - mostrou-se algumas vezes, sobretudo pela mengao as pessoas classificadas por esse nome, ¢ a referéncia era a auséncia ou presenga das pessoas no espaco da festa ‘A explicagao ali, da minha propria presenca, muitas yezes se deu por esses nomes. Algumas pessoas me confundiam com uma das técnicas da Funatura, ¢ perguntavam da presenga dos outros integrantes do grupo, por que os vizinhos no haviam ido, Ou, quando tentava explicar algo do meu trabalho, também a primeira referéncia e associacio era a ONG, vizinha proxima, e provavelmente de pouco adientou minha tentativa de He desfazer a confusio. Meu companheiro de andangas, Zé Luis, para facilitar a resposta & freqitente pergunta “e essa, é filha de quem?”, acabou por decidir pela classificagiio “ah, essa é como minha prima” Ja ao amanhecer, quando os anfitriGes ofereciam café e bolo aos que acordavam ou se preparavam para partir, a mengio ao Parque aconteceu de maneira mais enfética Acompanhava dois dos guardas, quando um morador da localidade de Mato Grande, situada dentro do Parque, aproximou-se ¢ perguntou sobre o meu trabalho ali, Respondi que era pesquisadora, ¢ ele devolveu entre a pergunta e a afirmagdo: “entdo, eu também tenho 0 direito de fazer uma pesquisa... Num tom de revolta ¢ algo agressivo, questionou a criago do Parque, a possibilidade de perder suas terras, sua casa, seu trabalho de tantos anos. Voltando-se mais diretamente para um dos guardas, reclamou de suas ages na localidade, e o atmosfera de conflito comecou a esquentar, Um outro guarda, mais calmo e menos embriagado que os dais homens envolvidos na discussio, apaziguou os animos ¢ relativizou as posigdes. Seguiram-se murmirios de contrariedades e desculpas, e a pequena contenda se dissipou. Era chegada a hora de partir. Juntei-me ao grupo que seguia a Santa Rita, ea cavalo € sob o sol, percorremos por cite horas sonolentas a volta da Festa 3. De instantes a processos: vivendo Parques Para melhor compreender esses eventos, fagamos alguns deslocamentos para fora do Parque Visitemos, primeiro, 0 mundo dos camponeses da Vila de Catugaba, regiio do Alto Paraiba - onde, por sinal, sertao ¢ litoral se aproximam™. Explorando o que chama ao” de “os circulos do ser” entre esses camponeses, Brandao™’ inicia uma anélise auaves de diferentes formas e significados da convivéncia, partindo do “estar 56”, passando pela Segundo Brandi, que reforga a observacio de Emilio Willems, “em um momento da historia do Alto Paraiba. a diteglo simbolica da geografia do sertéo sz inverteu, Durante os anos de abertura das trithas ue traziam ouro das Minas 20 litoral, quando cidades como Cunha ¢ Sao Luiz. do Paraitinga eram pontos obrigatérios de passagem das tropas de buttos. 0 sertio eran as terras na encosta e para além da Serra ou Litoral, A decadéncia do ouro que esvaziot os “caminhos das Minas” ¢ a imvasao do café que cenriqueceu algumas e criou outras cidades do Vale do Parafba. invertendo o trénsito de bens. tropas © ppoderes do eixo oeste-leste (Minas-Litoral) para o eixo norte-sul (Rio - $do Paulo) deslocaram o scrtio para os ermos proximos entre a Serra do mar. onde a serra e 0 sertdo acabam”. in Brandio, C.B. Partitha da Vida. Sdo Paulo. Geic! Cabral Editora, 1995. p. 63 "idem familia ¢ chegando até os grupos de idade ¢ de interesse, No universo de Catugaba, percebe-se que a experiéncia da vida e do trabalho é regida pela convivéncia, pelo “desejo de estar © fazer com o outro”. © viver sozinho, como © caso do velho Marculino, no implica um afastamento ¢ isolamento da familia, de vizinhos ou amigos ~ afastamento esse associado a progressiva perda desumana de qualidade de vida, a tristeza, & saudade, & doenga. Percebe-se a vida social como regida a partir do desejo da convivénela, e construida por meio dela Atravessando esses circulos, cruzam-se também dimensdes da familia, como unidade basica de socializagao, espago do trabalho produtivo e também da experiéncia de estabilidade, da seguranga e afeto; para além da casa, o grupo de idade, marcado como “criagdo social livre e auténoma de realizago do puro desejo da convivéncia™, oposto a obrigagio € ao dever. Através € além dele, também os grupos de interesse que, mediante compromissos muruos, transformam a fruigdo da convivéncia em produgéo do trabalho simbéiico, onde o grupo se converte em equipe - como um time de futebol, ou mais caracteristicamente como as companhias de Folias de Reis ou do Divino, ou as equipes de Cavalhadas. Constréi-se, a partir dai, uma oposigdo entre as idéias de convivéncia © participago. No primeiro caso, “o principio da necessidade ou a intengio de servigo submetem-se a0 desejo da gratuidade, da troca reciproca de tempo entre pessoas”. No caso da participago, a experiéncia gratuita da convivéncia ¢ submetida a produgdo de bens, servigos ou significados por um tipo particular de trabalho coletivo, “de cujos efeitos resulta a propria atribuigao de sentida do grupo, sua identidade de um nés, e da indentidade de seus co-participantes, ignalados por serem dele, desiguais por participarem diferencialmente nele™. Tal oposig&o permite, de um lado, perceber um contraste entre os “de dentro” & 0s “de fora” - no que seriam as diferengas na disposig#o social e na significagdo cultural do trabalho, da convivéncia e da participagio. Por outro lado, ela aponta para as dificuldades de agentes externos, formalizados institucionalmente, de submeter grupos, como os camponeses de Catugaba, as logicas de afiliagao € participagdo com as quais trabalham - dificuldade também em entender por que as “pessoas do povo’ resistem a se © idem, p. 136 © idem. p. 155 idem, p. 155 Ls comprometer “de uma maneira estavel, ‘consciente’ € politicamente produtiva em experiéncias agenciadas de participagio social” No caso de Catugaba, esses agentes externas - “agentes de mudanga social” - so percebidos através da escola - como emissaria de um sistema com interesses de criagiio de unidades de mediagio entre seu trabalho e a participagio das pessoas “da comunidade™ -, e sobretudo através de instituigdes paroquiais, cuja iniciativa depende direta ou indiretamente dos agentes da Igreja, ou cuja legitimidade depende da submissiio 4 ordem ¢ hierarquia da Igreja. Oposta a essas modalidades de participagio, esto as equipes locais que realizam um trabalho coletivo, simbdlico ou produtivo, percebidos nos rituais do catolicismo popular - como a Folia de Reis, as Cavalhadas, os temmos de Congo © Mocambique - ou através dos trabalhos produtivos dos mutirdes. Esse contraste e a pergunta que impée é respondido da seguinte forma: “A sintese grosseira e pouco politica de minhas conclusdes parciais responderia a pergunta: ‘afinal, por que as pessoas de Catugaba participam tio pouco? da seguinte maneira: ‘porque elas estdo convivendo muito”, Nao se trata, portanto, da auséncia de compromissos, afiliagbes, praticas mobilizagées coletivas, mas sim, de um universo onde os limites do trabalho e do lazer, da convivéncia e da participagiio sfio ténues. A forga da afiliag2o aos grupos, em Catugaba, no se da através de razdes ideolégicas ou politicas, mas principalmente por uma razo relacional, em os lagos de parentesco, de vizinhanga, de amizade e afetivos so acionados ¢ reforgados. E dessa forma, também, que a dura experiéncia do trabalho produtivo ou mesmo do simbélico, ao ser transformado em festa ou rito, como os mutirées ou as folias, torna-se possivel de ser aceito ¢ desejado. Igualmente, a existéncia de liderangas nao aparece formalmente. Quando, como uma diferenga entre unidades locais de convivéncia e aquelas de participagao, é reconhecida a necessidade e cxisténcia de uma chefia proviséria, de uma autoridade hierarquica, esse reconhecimento acontece por meio do exercicio do carisma pessoal, de seu proprio poder de acionar os lagos interpessoais ¢ afetivos entre outros sujeitos — reforga-se, porém, como qualidade a participagiio numa “unidade coletiva”, o “ser como todo mundo”. Sao referéneias que aproximam a experiéncia do envolvimento 4 da participagdo obrigatoria, em uma partilha de convivéncia afetiva e simbdlica. F idem, p. 159 dom, p.170 143 Esse empréstimo de percepgdes cothidas entre os camponeses de Catugaba presenta muitos paralelos com a vida social ¢ coletiva dos habitantes de localidades do PARNA GSV, ¢ oferece instrumentos para interpretarmos, adiante, alguns aspectos dos acontecimentos descritos. Continuando o deslocamento proposto, o rumo agora é ao Sudeste de Estado do Piaui, ao Parque Nacional da Sera dz Capivara, através do trabalho de Pomp, E possivel, como fez a autora, pensar a implantagao do parque como um processo social, ou mais especificamente, como um dram social, no qual ela percebe os momentos idealizados por Turner - a ruptura, crise, reparagao e reintegrago, No caso da andlise constituida a partir do PARNA da Serra da Capivara, delimitam-se os atores sociais que participam desse drama, Entre eles, num primeiro momento, 0 Zabelé e o grupo de camponeses que ai residia, organizados a partir de uma estrutura social baseada nos lacos de parentesco, de compadrio ¢ das telagdes de vizinhianga. Até a explosio da crise, ou seja, a implantagao do Parque, esse grupo contrapunha-se em seu cotidiano ao “mundo dos de fora”, personificado no “mundo dos politicos”, estivesse esse grupo associado 4 politica na localidade, ou as esferas estaduais ou federal. Nese momento anterior, 0 “tempo das politicas”, ou seja, 0 tempo das eleiedes, configurava-se como um “pequeno drama social”, onde a “substancial unidade dos grupos de paremtes ¢ vizinhos quebra-se me relagao aos votos”™ A implantagio do Parque traz profundas quebras na estrutura social ¢ no sistema de representago da populagdo camponesa envolvida; e a questao colocada pela autora, Temete-se a uma comparago com outros grupos camponeses, de atingides por barragens. Nao tanto pelos aspectos “quantitativos” do impacto social, mas pela similaridade “qualitativa”: “similares so ndo as reaySes, mas 0s mecanismos logicos utilizados pelos grupos locais para se reproduzir como culturas, isto é, para dar sentido, ou melhor, para continuar a dar sentido a um mundo que esta se fazendo outro”, um mundo que esté se perdendo na medida em que esta se perdendo o elemento para uma sociedade camponesa: a terra”® Assim, a perspectiva dinamica da andlise tenta perceber no so as mudangas em “ Pompa, Maria Cristina, O Parque Nacional da Serra da Capivara. PPGA. UNICAMP. mimeo. 1987. © Pompa, M.C., op.cit. p03 © Pomtpa, M. C. op.it,p.03 146 termos de estrutura social, da caracterizagio dos atores envolvidos no proceso, dos interesses especificos de cada um e dos projetos de ago configurados, mas também © dinamismo das relagdes “significantesisignificado”, em que os sujeitos envolvidos reanalisam ¢ recombinam os signos colocados em jogo, de acordo com os diferentes interesses e projetos de agiio em andamento. Percorrendo esses mecanismos, através dos instrumentos conceituais de Turner ¢ Sahiins, Pompa foca-se no Zabelé e nos outros “atores” que surgem na arena, a partir da chegada do Parque: © IBDF, o INTERPRI (Instituto de Terras do Piaui, responsével pelo trabalho de demarcagao dos limites do Parque), 0 IPARJ (responsavel pelo levantamento social ¢ fundiério na area do Parque), a Missio Franco-Brasileira. O mundo dos “de fora” passa a ser recontextualizado, incorporando esses atores, classificando num determinado momento, por exemplo, 0 IBDF ¢ a missio franco- brasileira como “os donos do parque”, como se fossem proprietérios procurando reestabelecer seus direitos de propriedade através da expulsio dos posseiros. Pompa delimita ento uma fase do drama em que o presidente do INTERPRI resolve “entrar” para a politica, ¢ simultaneamente busca “resgatar™ suas proprias origens, estabelecendo ‘uma linha em que pode ser considerado como “parente” daqueles de Zabelé, passando de uma posigiio inicial de desconfianga - 0 olhar para o politico - para uma que estabelece a alianga com o “parente”. A relagio dos atores é reorganizada ¢, na fase final da sua anilise, a autora interpreta-a como de “femativa de recuperagdo de equilibrio”, assentado entretanto em novas configuragdes e aliancas. Considerando essas duas referencias, os eventos presenciados no PARNA GSV € aqui descritos podem ser analisados como diferentes modalidades de participaso € convivéncia. No caso do casamento, tratou-se de um acontecimento ocorrido em uma das localidades incluidas na area do Parque, a localidade do Rio Preto. Um momento ritual de troca entre familias € o encontro entre parentes, vizinhos ¢ amigos. Concluida a ceriménia, vemos através da festa a intensidade da fiuigo da convivéncia, até 0 raiar do ia, possibilitada também por um trabalho ¢ uma mobilizagaio coletiva - a matanga de bois, 0 preparo da comidas, a oferta das bebidas, a organizagao do espago para o convivio. Um bom exemplo de participagao e trabalho coletivo que se transforma em convivéncia, Nao parece um acaso o fato de, durante a pesquisa de campo, a tinica contestagao mais direta ¢ agressiva em relagao ao Parque, direcionada a um dos guardas- parques, ter ocorrido nesse momento, caracterizado sobretudo pela igualdade de 47 condigdes e posigdes, 0 “ser como tede mundo” proporcionado pela festa. No caso da Reuniio da Funatura, podemos consideré-la como um encontro organizado por um grupo de “agentes de mudanga social”, ciassificavel como “de fora” em relagdo aos moradores locais (embora seja necessirio mencionarmos a existéncia de mecanismos locais de incorporago desse grupo, através, por exemplo, das relagdes de vizinhanga) . Igusimente, 0 encontzo foi organizado e objetivado em fungao do trabalho, delimitando de forma clara quais seriam os momentos e espacos de lazer ou dispersio. E importante ressaltar também uma hierarquizagao entre as diferentes categorias de pessoas presentes, sendo todo o encontro orientado pela equipe de coordenagae do Programa GSV. Ao contrario de uma situagao como a do casamento, teriamos a convivéncia - necessiria para realizag’o dos objetivos propostos - subordinada a participago, obrigaso dos guardas-parques presentes, da equipe do programa, também dos participantes da Vivéncia Ambiental Por fim, o ukimo encontro, a “palestra politica mostra como os lagos ¢ aliangas tradicionais dio lugar as novas negociages, interesses ¢ grupos na relagiio com 0 voto Tendo se configurado como o primeiro encontro do género naquela localidade, e também na regido que incluia localidades no interior do Parque, inaugura-se no 36 0 “tempo das politicas”, mas um novo “espago das politicas”. Aqui, claramente, pode-se perceber a logica relacional convocando os participantes, até mesmo 0 préprio anfitriao, sogro de um dos candidatos. Este, por sua vez, como guarda-parque, intermediava nao 86 0 encontro entre grupos de parentesco, vizinhanga ¢ amizade com o dos “politicos”, ‘mas também, ao menos simbolicamente, 0 encontro entre moradores, politicos ¢ Ibama, ja que 0 candidato a vice-prefeito era também vinculado ao orgao, além de conhecido entre os moradores da localidade. Esse candidato, por sua vez, poderia ser visto fazendo a mediagdo entre as pessoas da localidade, de outras localizadas no Parque ¢ em seu ‘entorno, ¢ em outras areas da Chapada Gaucha, com aqueles canditados vindos da Serra das Araras - onde todos deveriam teoricamente se reunir na identidade dos “mineiros” em oposigdo 4 da chapa concorrente, “dos gaiichos”. Trazendo aquelas referéncias da participacdo e da convivéncia, percebe-se um acontecimento “idealizado” por objetivos eleitorais, € concretizado nos moldes da convivéncia e da festa, como um modelo de encontro coletivo. Considerando os aspectos aqui ressaltados na leitura das situagdes sociais, & importante, agora, integré-los a um olhar mais amplo sobre o PARNA GSV, sobre os 18 grupos que neie vivem e trabalham. axe Se consideramos 0 PARNA GSV tendo em vista a perspectiva de Pompa, ou seja, enquanto processo social, os primeiros tempos de sua instauragao podem ser caracterizados por um desconhecimento miituo: por um lado, dos orgdos oficiaimente envolvidos na criagdo do Parque, que desconheciam mesmo a presenga de moradores no interior da area, como indicou 0 depoimento da ex-coordenadora do Programa GSV; do lado dos moradores, as primeiras noticias sobre 0s “novos” atores relacionaram-se & expulsto da érea - 0 governo criou um parque para proteger a natureza, ¢ eles deveriam dali sair Somado ao medo de perder suas terras, deve-se lembrar também da desconfianga tradicional aos “estrangeiros”, como mencionado pelos representantes do Grupo Feltrim, e que provavelmente foi potencializada pelo poder que esses novos estrangeiros, representantes da idéia do Parque, pareciam possuir. Aos poucos, os orgies envolvidos no projeto foram se fazendo mais presentes, ¢ 0 desconhecimento miitue foi dando lugar a outras percepgdes ¢ programas de agio. ‘Ainda que eu tenha reforcado, durante esse trabalho, aspectos que unificam 0 grupo dos moradores do Parque - como individuos que partilham uma cultura ou principios comuns de organizagio social ¢ econdmica - & problemiitico homogeneizar ‘uma posigio dessas pessoas, tanto em relagdo a idéia do Parque, quanto a forma de interagirem com as instituigSes que o administram. Primeiro, é importante dizer que, por mais que atualmente todos reconhecam aquela idéia, reconhegam seus limites espaciais © saibam classificar suas localidades como dentro ou fora do Parque, ela ndo surge como uma forma de identificagao espacial émica. Nao se diz “vou ao Parque”, tampouco se pergunta se alguém mora no Parque, ou se acabou de vir de la, Essas so falas estrangeiras, como a minha propria, de pesquisadora, e embora fagam sentido, nunca sio preferencialmente utilizadas. Ao contrario, permanecem as referéncias tradicionais: vai- se a Santa Rita, ou ao Rio Preto, vive-se na Onga, na Carinhanha, ou no Barbatimio. ‘Também existem formas diferenciadas de se considerar € se relacionar com as instituigGes envolvidas ¢ seus representantes. Primeiro, ha uma forma diferenciada que se 44 através dos guardas-parques. Como jé mencionado, pela propria relagao empregaticia, ‘em que so empregadas pessoas em uma regio onde uma renda mensal fixa ¢ algo raro © precioso. Mas, além disso, a propria convivéncia resutante entre os representantes dos érgios © 0s guardas, suas familias e os grupos de parentes mais proximos a eles 149 possibilitaram também uma relagao mais préxima e frengiiente, em alguns casos, também de amizade e empatia, e igualmente de “ajuda miitua”. Sao eles também que traduzem, de certa forma, 0 discurso das instituigdes e a idéia de preservacao da natureza entre os outros moradores da regio, “vigiam” as novas normas ¢ condutas®, ocorrendo algumas vezes também o inverso - levando as instituigées os problemas e preocupagdes vividos pelos outros moradores. Se é possivel falar aqui de um tratamento diferenciado que os guardas-parques recebem, através do apoio que porventura os érgios Ihes concedam, deve-se também ressaltar que muitas vezes sao cles os primeiros a terem de se submeter fas novas regras - como, recentemente, quando alguns deles tiveram que se desfazer de animais domésticos, como cies, sob 0 pretexto de que esses poderiam afugentar ou matar pequenos animais silvestres. Outro fator de diferenciagao na relagio dos moradores do Parque com aquelas instituigdes parece ser a propria posigto espacial da sede da Funatura ¢ do Ibama, No caso dos moradores do Rio Preto, onde esta situada a sede da Funatura, a proximidade e a decorrente convivéncia mais freqiente e cotidiana possibilitaram mesmo o desenvolvimento de uma espécie de relagdo de vizinhanga que, embora nao se fazendo entre iguais - ja que no so parentes ou vizinhos comuns -, permitiu que os membros da ONG fossem convidados para o casamento, no vizinho. Igualmente, as proprias atividades desenvolvidas pela ONG, sobretudo as visitas, se davam mais facilmente com ‘0 nicleos familiares ou localidades mais proximas. Ja 08 moradores de localidades mais distantes, tanto da sede da Funatura, quanto da Chapada Gaacha e da sede do Ibama, mostraram com esses grupos uma relagio mais, esparsa € menos pessoal - 0 que pareceu também potencializar as possibilidades de conflitos e divergéncias, bem como dificultar possiveis aliangas. E 0 caso, por exemplo, dos moradores de localidades como Limoeiro, Maria AntOnia, Salto, onde mais ouvi reclamagdes diretas sobre o Parque, ou sobre a atuagao dos érgios. Uma das principais queixas em relagdo a implantagZo do Parque era relacionada & deteriorag&io das poucas estradas existentes®”, 0 que dificulta mais ainda ® No documento ja mencionado, Encontro dos Mforadores de Unidade de Conservagao do Estado de Séo Panto, essa quostio surge entre os problemas registrados. no item “O desrespeito aos direitos ¢ & dignidade do cidadio”; “condenados 4 pobreza, alguns moradores tém recurso a0 ‘abalhar como guardas-parque © passam a fiscalizar vizinhos ¢ parentes. Isto divide familias e comunidades”. “existe ‘um watamento diferenciado entre as familias “protegidas” (em particular a dos guardas-parque) podem cortar madeira, consiruir casas e outras familias, em especial aquelas que resisiem e se organizam. que Go tem os mesinos direitos” © Fesa também & um dos pontos levantades pelos moradores de UC's do Estado de Sto Paulo. 150 ‘uma circulagao que jé ¢ problematica, Nessa regio, a ansiedade em tomo da resolugao da situagao, mesmo considerando o abandono da area, é grande. Alguns ja consideram o Parque um caminho sem volta, sentem-se revoltados diante da impossibilidade de trabalharem na terra ¢ realizerem benfeitorias da forma como julgarem melhor, gostariam mesmo de partir, porém esto em terras que nio podem ser vendidas, ndo tém valor de mercado e, a0 mesmo tempo, os processos de indenizagaio mostram-se lentos © demorados: “\.. a ferra & nossa sem ser”, Para uma senhora, moradora do Salto, “quem tem documento grande, eles to pagando. Quem tem documento pequeno, eles ndo estdo paganda”. Arrematando, outra pessoa fecha seu comentario: “Nao paga nent 0 semtimenio que a gente tem do lugar” Essa conversa, ocorrida na época em que a Marcha dos Sem-Terra rumava a Brasilia, associou também as diferentes situagdes: “wai ver que esse tanto de sem-terra é gente gue sain de outros parques. on Uma analogia feita por uma moradora ¢ professora da localidade do Limoeiro, municipio de Januiria, também diz sobre esses sentimentos: “Estamos igual a um passarinho preso, queremos logo a indenizagtio... 0 boato sempre sai: vai pagar, vai pagar...” Para ela, como para muitos outros, 0 Parque s6 piorou a situagao da regio, como as estradas, que foram se acabando. Na locaidade de Maria Anténia, outra fala surgida, e que se mostrou bastante comum entre as pessoas, accita a raz4o de ser do Parque, porém relativizando-a: “Ew niéo sou contra proieger a natureza, mas tinka que dar uma solugdo para o povo”.” “© Tronicamemte, & 0 argumento opesto aquele utilizado por ropresentantes dos grupos contrarios @ ‘esibilizagdo das reyras em torno das unidades de conservagdo de uso indireto, em fung4o de populacdes tradicionais ai rosidentes: “Gabeira distorceu os abjetivos do projeto {que} quer usar as unidades de conservagao para a reforma agraria” in Bento Filho. W.: “Deputado do Partido Verde € o novo alvo dos ecologistas” Correto Brasirense. Brasilia, 23/11/97, p. 11¢Ver capitulo T) 71 interessante contsastar essas falas com aquela de um dos representamtes da Feltrim/ Fazenda Carinhanha, sobre o processo de instalagdo do Parque ¢ 0 “desmonte” da Fazenda Carinhanha: “(..) ew ime chatcio, primeiro, porque eu acho que wm homem de gabinele, antes de assinar qualquer documenta, ele tem que ver... Sabe, ex aprendi com isso também. E wma coisa que me chateou muita, 0 ‘cara tem que saber. voce dé emprego, sabe, levando progresso para uma regio, sabe, a maior boa tonttade, com sacrificio (..) Do lado hnmano, foi una ligdo de vida para gente, ver 0 que é ser pobre, fo que 6 ndo ter nada... ew acho que nos estamos mum berco de ouro... unt filto seu, (..) dé uma dor de barriga, voc’ corre no médtco... voce tem onde ir... Agora, mum lugar daguele... é uma ligao de vida, ew munca imoginava que eu um dia ia ver aguilo... ver wm lugar como aquele, como as pessoas esto ‘chandonadas... wn ser huumano se esconder do outro, se esconder, Issa nunca passout pela minka Caneca.. Por outro lado, & a magoa que fica, de cerles pessoas tomarem as pasigdes sem ter Consciénoia do que esté acontecendo, do que esté se passande nessa are, (..) Fala-se tanto em nelhorar 0 Brasil, fala-se tanto em democracta, ¢ voc® deixar um povo como aquele na mingua... Porgue a gente sabe que, depois que a gente sain de lé, ninguém fez mais nada. parou, ficou nagullo, ‘quando poderia estar bem melhor, quando poderia fer uma pessoa como 0 Jodozinko (..) que nds trouxemes para cd, ensinamos, demos curso... hoje, eu acredito © quero acreditar que eles esto repassando 180 para 08 outros, que é assim que comeca wma evolusdo... aprendh muito com eles 151 Se existem aqueles que anseiam por uma resolug3o definitiva, ha outros que aproveitam a indefinigdo para prolongar a propria permanéncia no lugar de morada, Foi ‘© que pareceu demonstrar a histéria de preocupagao contada por uma mulher, moradora da Chapada Gaticha, cujo pai vive em um das localidades do parque. Ele ja velho, com mais de 70 anos, e que 1a guarda sua casa, sozinho. Os temores da filha acentuavam-se nico somente pela solidio do pai, mas pela dificuldade de deslocamento até ele, novamente em fuungao das estradas cada vez piores, ¢ do movimento cada vez mais escasso, Porém, mais forte do que sua preocupagdo ¢ seus pedidos para morar com ela na cidade, era a determinagao do homem em continuar no “deserio” onde hi tempos ele vivia, e onde preferia morrer. Tal sentimento me sugeriu algumas das imagens de a A Janyada de Pedra.” Esse romance se const i a partir de um acontecimento fantastico: um belo dia, a Peninsua Teérica descola-se da Europa. Rompem-se os Pirineus, ¢ Espanha e Portugal transformam-se em uma ilha flutuante, que navega a seu bel prazer nas aguas do Atlantico. Panico, calamidade, loucura na comunidade cientifica, politica e econémica, saques ¢ guerra civil. E no meio de tudo isso - sobre a jangada de pedra - também vidas que, por acaso, ali transcorriam e que ali continuam a exercer o direito de viver, amar, comer, dormir, ter filhos, morar: narrativa sobre a vida - e seu desejo - em meio ao caos, a desordem, a incerteza sobre o dia de amanha Uma metéfora flutuante que se transfigura no Parque e seus sertes, de gerais, veredas ¢ galhos, Sobretudo porque, para muitos dos que habitam dentro de seus limites, a incerteza sobre © amanha - sobre a permanéncia ou nao em seus lugares - tomnou-se fato. Se esse dia chegar, vé-se la o que se ha de fazer, mas até 14, muitas bocas tém que set alimentadas todos os dias - é preciso “fazer da fragueza a fortaleza”, como me disse certa vez Dona Luzia, As pessoas pareceram entdo, com o passar dos anos - que em breve serio dez - @ se acostumar com tal fato, ¢ também com as novas regras de residéncia no lugar, como a proibiglio & caga, as queimadas, a0 corte irregular de arvores, & captura de animais nativos, & construgdo e manutengao de estradas, Alguns dos que ai habitavam, talvez ja tenham partido ¢ abandonado 0 local, Outros, como a também... Comer no mato, né Tonio? Passando fome, sb com um saquinko de charque em cima do cavalo (..) foi una ligdo de vide (..)... gue nao & por ins de wna mesa que voce assina uM papel...) Pode até ser que nem sea a gente, pode alé ser que esse Parque seja bem mais beneficio do que seria a ‘gente U4, no sei 0 amanha, ndo set... Mas, pelo que a gente vé, esté tudo abandonado até hoje.” ~ Entrevista com Wladimir Felts, Nova Odessa, dezembro de 1996. ™ Saramago. José. A Jangada de Pedra, Sao Paulo: Fditora Cia das Letras, 1988. 152 familia de seu Idearte, talvez tenham sido expulsos. A maioria, entretanto, pequenos proprictarios © posseiros, It permanece, esperando as sentengas, ou indenizaydes, ou reassentamento, ou seja la 0 que for. H& também um outro lado, de como eram idealizadas e postas em pratica as agdes e posturas daquelas instituig&es em relagio aos moradores. Como foi mencionado anteriormente, desde inicio do Programa GSV até o final de 1996/ inicio de 1997, quando a coordenagao do Programa foi substituida, a postura da Funatura baseava-se num programa definido ¢ estruturado, de agdes previstas em um projeto amplo, em trés principais linhas de agdo - agricultura e parque, salide e parque, educagio ndo-formal e parque - voltadas populagio local, sendo todas elas envolvidas pela idgia de agdo participative e fortalecimento das comunidades locais, Atuando como facilitadores, a regra seria a ndo-indugao de atitudes, condutas e comportamentos”. Eram fortes também as preocupagées de demarcar o papel e a presenga da ONG n&o s6 entre os moradores, mas também entre os guardas-parques. Durante a entrevista realizada junto a antiga coordenagio, em varios trechos ressaltava-se a importincia de esclarecerem para 4 populagao quem eram - nllo eram governo, niio eram Ibama - e 0 que faziam. Se lembrarmos as palavras de Brandio sobre participago e convivéncia em Catugaba, considerando-as validas nesse contexto, as agdes da ONG para promover seus objetivos pareceriam sintonizadas com 0 universo local. Os principais contatos procuravam ser informais, tendo um “carater de visita social”, da convivéncia. Igualmente, eram organizadas reunides comunitirias que, segundo o folder de divuleacdo citado, “sto na casa dos moradores da regiio ¢ ocorrem como wna celebragdo para as pessoas”, ou mesmo mutirdes, formula tradicional de associagiio entre © trabalho produtivo e a convivéncia solidaria. Ao lado de um relacionamento resultante da atuagio dos ténicos ¢ da convivéncia cotidiana com muitos dos moradores, que parecem ter criado algumas relagdes de amizade € respeito, havia ® Sobre © programa, diz um dos folder de divulgagtio da ONG: “A promissa contral do Programa Grande Sertio Veredas (GSV) é 2 conservagio da biodiversidade caracteristica do Cerrado na regiao, através do uso sustentivel, e resgate ¢ conservagdo da cultura regional dos ocupuntes dos Gerais. (O Programa tem trés componente’ filoséficos bisicas: 1) o Programa deve proteger o Parque & seus recursos; 2) é importante promaver a conscientizaczo ambiental das comunidades 1ocais em relago 4 existéncia ¢ relevincia do PARNA GSV; 3) o envolvimento voluntério das contunidades locais deve ser promovide alravés da conscientizagao ¢ do fortalecimento das pessoas. contribuindo para 0 aumento dda auto-estima e autoconftnanea para que encontrem sua maneira propria de vencer a pobreza, (© objetivo final € mostrar que um parque nacional podk, verdadeiramente, promover tal ‘melhoria de vida das comunidades locais vizinhas, através do modelo sustentavel, 0 que resultard em ‘uma experigncia harmoniosa, mostrando que areas naturais protegidas bem mancjadas nic gcram cconflitos entre estas ¢ 2s comunidades locals”. Fokder de divulgapao - Programa Grande Sertao Veredas. Fandagao Pré-Natureza - Funatura, Brasilia, 1995. 153 entretanto algumas outras posturas que relativizam o carater dessas agdes do grupo junto 4 populagdo, No caso, a preocupagao de evitar uma postura de muita “intimidade”, ou assistencialista, além da preocupagio em nao introduzir na cultura local habitos estranhos, adaptando-se a ela. Esclarecedora a esse respeito ¢ a reflexdo desenvolvida por uma estagiaria do Programa GSV, durante 0 més de agosto de 1995, em seu relatério de atividades™ Estabelecendo um didlogo com a ONG, a estagidria debruga-se, em determinado ‘momtento, sobre a preocupagdo em achar a forma mais eficaz de se atingir a populagdo nativa, a fim de sensibiliza-la para a questo ambiental, Entre os varios pontos que levantou, um deles trouxe a preocupagio da equipe de campo do Programa em torne do “confronio com 0 outro”. Comenta: “Diziam-me os integrantes do GSV que o posicionamento da Funatura em relagao aos habitantes do Parque deve ser sempre cortés porém, jé que trata-se de um relacionamento profissional, guardando-se © devido distanciamento ‘Alumas vezes fui chamada a atengfo, pois, segundo as norms de trabalho da Funatura, estaria confundindo este com lazer, estaria durante certas visistas me comportando como se estas de fato fossem sociais"™ Repreendida, a estagidria questiona os integrantes da equipe sobre 0s motives em que uma atitude como a dela poderia influenciar negativamente © trabalho, A resposta da equipe voltou-se 20 problema de se “gerar intimidade”, que dificultaria 0 trabalho pois prejudicava a produtividade. A autora do relatério levanta questionamentos sobre essa nogdo de produtividade, marcada, por exemplo, pela maratona de visitas que a equipe realizava rotineiramente, que na verdade se relacionaria a “criagiio de uma situagdo favordvel durante as visitas onde so introduzidos assuntos de trabalho e volta-se para casa com a boa sensagaio de dever cumprido””*. Igualmente aponta outra contradigao das visitas, quando se deveria simular uma “ocasido social”, porém nao vivencié-las. Outra razio apresentada pela equipe, a partir do relatorio, para justificar esse comportamento “profissional” perante a comunidade seria o receio de que, por se sentirem intimos, se sentiriam no direito de abusar da boa vontade dos técnicos e de todo © aparato que os cercava; “O carro Toyota, por set 0 tinico meio de transporte motorizado, Weber, |. Relatério de Extégio no Parque Nactonal Grande Serido Veredas. Novembro de 1995. ‘aimeo. * idem, pL idem, p12 Ist permanentemente ‘disponivel’ dentro do Parque, ia foi causador de algumas situagdes, constrangedoras quando, por varios motivos e outros, este € solicitado””, Outza fonte que problematiza o tipo de relagdo construida pela ONG junto populagio local ¢ uma espécie de manual de condutas, fornecido pelo Programa a “todas as pessoas que se vincularem, sob qualquer forma, a seus trabalhos na tegido do Parque Nacional Grande Serto Veredas"” Ha basicamente dois tipos de condutas “requeridas” uma em relagdo ao trato com as pessoas, € outra em relagio as atividades desenvolvidas, 0 uso de material do programa, ¢ a permanéncia na casa sede. Sobretudo as de primeiro tipo, parecem demonstrar preocupacdo em preparar pessoas que nunca tiveram uma experiéncia rural, de campo, no sertZo, com a pobreza, a roga, com outros gos e condutas que no os compartilhados pelo mundo urbano, pela midia, ou pela seguranga do asfalto, Muitas vezes, também, sio condutas de “boa educacio”, como “tratar sempre com respeito, educagdo © bons modos os colegas, pessoas das comunidades Jocais, guardas-parques ¢ autoridades em geral”, ou exercitar 0 usos de palavras como “com licenga”, “por favor” e “obrigado(a)”, ou gravar sempre o nome das, pessoas. Com relagao ao trato com os moradores das comunidades locais, algumas delas indicam 0 que seriam alguns hibitos locais a serem respeitados, como nunca entrar pela porta dos findos de uma casa, ou nfo usar 0 beijo no rosto, sendo mais comum entre eles o aperto de mio. Existem alguns, entretanto, que reforcam especialmente aquele tipo de observagao desenvolvida pela estagiaria: 6) No contato com as pessoas da regitio, use uma linguagem simples ¢ de facil entendimento, observe a Equipe do Programa GSY, se usar uma palavra mais dificil, use em seguida um sindnimo simples para nao agredir e nem demonstrar desrespeito as pessoas e para se fazer entender” (...) 9) Nas visitas as pessoas da regio, nfo tente comprar farinha, esteiras, frutas, rapaduras e outros, pois a tendéncia ¢ as pessoas, para Ihe agradar, insistir que voeé leve tais produtos como um presente, portanto, gratuitamente; isto nao & justo, pois voeé estar convivendo com pessoas de poucos recursos e que vé na comercializagéo do que produzem uma chance de aumentar a renda familiar; assim, espere que eles oferegam tais produtos a venda e, ai, vocé podera compri-los” (...) 10) Jamais aceite fazer refeigées e/ou lanches nas casas das pessoas das comunidades locais. Caso sinta-se constrangido ¢ tenha que fazé-lo, vocé deve idem. p. 12 * Funatura, Programa Grande Sertéo Veredas - Condutas requeridas pela Funatura. Agosto de 1995. (Anexo A) retribuir com algum mantimento (agicar, café, feijao, sal, etc); (...) 31) Nao empreste aos moradores qualquer equipamento ou material pertencente ao Programa GSV: em caso de duvidas, fale com a Coordenagéo de Campo.” Todas essas orientagées sobre a conduta podem ser compreendidas através das observagdes antes desenvolvidas - boas maneiras, respeito & comunidade local, respeito a propriedade da ONG. Mas clas também revelam um olhar sobre essa populagio, ¢ uma forma ideal de com ela se relacionar. A utilizagio de palavras “dificeis” & recriminada, ¢ a justificativa se coloca mais do que por dificultar a comunicagio - por poder ser agressiva ¢ desrespeitosa. Nao se deve dar o primeiro passo em “possiveis “ compras, porque & injusto accitar um provavel presente, visto serem pessoas pobres, A mesma justificativa pode ser lida na orientagdo de no se aceitar fazer refeigdes na casa dos moradores. Por fim 0 no empréstimo de material que, apesar de no justificado, mostra-se coerente com outras condutas requeridas a respeito do cuidado com materiais e objetos pertencentes 4 ONG, a serem usados exclusivamente em ocasiées de trabalho. Quando se considera um desrespeito e agressio a utilizagao de palavras “dificeis”, o que isso quer dizer? Provavelmente, a orientag&e se referia a palavras de carater letrado ou erudito, e talvez o desrespeito nesse sentido fosse compreendido por serem muitos dos moradores analfabetos ou semi-alfabetizados. Mas por que faltam: orientaghes para ocasides em que © visitante nao entendesse as palavras dos moradores: locais? Igualmente, a orientagdo de nlo se aceitar presentes ou evitar refeigdes em suas casas, se justificava também por serem pessoas de “poucos recursos”, pelo que Ihes faltava, Em ambos os casos, tenta-se minimizar diferengas sociais e econdmicas através de um controle da linguagem ou da conduta: tenta-se minimizar a diferenga, reforgando- se a desigualdade, Porém, mais do que isso, cabe aqui lembrar que aceitar um presente, aceitar uma refeicéo pode significar também o desejo, o sentimento ou o dever de retribuir, de instaurar a troca, E se as vezes ela pode ser justificada, como na refeigao “constrangida” ¢ na devida retribuigo em mantimentos - uma troca necessaria em fungto da desigualdade - as vezes ela pode ser bastante inadequada, como no empréstimo de material institucional. Para nfo se correr tal risco, lembremo-nos do recurso da evitagdo da “imtimidade”, Se tais condutas podem ser lidas como a intengao de nic desrespeitar os moradores locais, elas podem também ser interpretadas como intengdo de controlar as possibilidades de espontancidade - ¢ de estranhamento, de descoberta, de encontro € conflito - entre as pessoas, no pondo em risco inclusive um relacionamento construido pela ONG Se tal interpretagdo parece um pouco exagerada, 0 mesmo se pode dizer a respeito do “manual de condutas”. Quero dizer que, na pratica, nem sempre o convivio entre a equipe da Funatura, ou de seus visitantes, com a populagio local seguia rigorosamente as condutas requeridas; eu mesma pude observar e compartihar com esse grupo ¢ com os moradores momentos mais espontineos de fuigéo do convivio, com café ¢ bolo. Porém, enquanto ideal e referéncias de ago, essas condutas mostraram-se coerentes com os outros aspectos da postura pretendida pelo érgio Por fim, um altimo exemplo do “afastamento relative” péde ser percebido na entrevista mencionada com a ex-coordenagio do Programa GSV, referindo-se ao projeto voltado agricultura e ao retomo da populagao, percebido pela Funatura’ a agricultura é 0 que tem menos... mas feve una atitude super-importante deles, foi eles nos procurarem (....) Foi quando os agricultores, eles vinham e colocavant nas reunides conunitirias o problema de uma praga no feijdo, uma praga da soja que estava atacando o feijdo. Eles colocaram, ¢ a gente néo induz nada... enido, até que chegou wm dia que eles pediram para a gente ajudar a eles resolverem aquele problema (..) Varios do Parque pediram, mas @ gente centralizou mma area fora do Pargue, porque implicava em melhoria de benfeitoria e a gente ndo vai fazer isso porque... é contraditério com as normas ¢ existéncia de wm parque nacional, ¢ a gente é a fewor do parque™. ‘Tanto esse exemplo, como o da solicitagio dos “Toyota”, sfo ilustragdes da postura diante de problemas diferenciados, de solicitagdes de pessoas da comunidade em telago a ONG. De um lado, solicitagdes individuais, na maioria dos casos, em busca de um beneficio bastante contingente, um deslocamento por carro que dependendo das condigies, eram atendidas ou profissionalmente negadas. No outro, uma solicitagio feita num momento coletive de reunido, em busca de solugSo para um problema técnico que, ‘no entanto, no pdde ser fornecida porque significaria benfeitorias na area do Parque, 0 que ia contra os prinoipios defendidos pela Funatura. Em ambos os casos, a preocupagio com a “corregiio” da postura, a ndo-contradigéo com os principios normativamente estabelecidos, a referéncia a metodologia prevalecem diante das contingéncias ¢ necessidades do cotidiano. Bastante diferente mostrou-se a postura do Tbama, como revela em parte 0 encontro politico. Nas varias oportunidades em que estive junto equipe desses érgio, 157 durante o periodo da pesquisa, ainda que os funcionatios, sobretudo 0s “de campo”, carregassem a marca da instituigao, ela parecia mais diluida, menos impositiva, Na questao das “caronas”, por exemplo, mesmo que houvesse alguma orientaco da chefia em relagdo a isso, a decisilo parecia depender mais das situagdes com que o funcionario que dirigia um carro se deparava em determinado momento - se os andarithos estivessem muito carregados ou no, se houvesse criangas, mulheres gravidas. Também a relagio pessoal de alguns dos fimcionarios com moradores locals mostrou-se mais aberta e menos formal, ocorrendo inclusive visitas reciprocas - nlio com objetivos profissionais - entre moradores do Parque e alguns funcionarios do Tbama. Na época da pesquisa, um dos principais problemas que se colocavam em relagdo aos trabalhos dessa instituigdo referia-se a auséncia de um plano de manejo e do zoneamento do Parque, o que limitava a agio do Tbama localmente, ¢ estimularia o cariter de informelidade, Outro ponto limitante, sobretudo em relagdo a regulamentacdo fundiéria das areas, sugere uma posigio menos ortodoxa do érgio, inclusive em nivel estadual: “0 deereto que torna essa drea para fins de desapropriagao tem vatidade por cinco anos. Jé venceu... tem que renovar, Sé que néio renova porque nao tem dinheiro... Por outro lado, é drea do Parque, é drea que ndo pode ser mexida... E muito complexo isso. (..) € uma coisa meio diibia, a gente poderia dizer... porque continua um Parque Nacional, tem o decreto de criagiio e tudo mais. E, por outro lado, 0 decreto que determina como areas desapropridveis esté vencido. Agora, por exemplo, nés tivemos uma decisdo, a nivel da procuradoria do Ibama em Belo Horizonte, «ntorizando a construgdo de cuas escolas dentro do Parque (...) O regulamento do Parque ndo permite, mas como o decreto esté vencido, os procuradores julgaram que seria diretto” * Outra postura significativa, se contrastada com a posigdo da Funatura na época, pode ser considerada a partir do discurso do Tbama local diante da questo populago/degradagio ¢ também das queimadas, em que parecia prevalecer um pragmatismo da instituiglio em relago ao problema. Sendo a queimada uma técnica tradicional de preparo da terra entre os agricultores do Parque, © diante do perigo de ineéndio que a téenica poderia provocar, a postura tomada pelo tbama era mais, pragmitica e imediata: com a chefia do PARNA GSW/ IBAMA, Chapada Gaicha, mateo de 1997. 138 “(..) qual é 0 grande problema hoje desse pessoal ai? E 0 fogo, colocar fowo Fora disso, esse pessoal ndo degrada nada, eu ndo vejo, mas 0 fogo...(. por causa do gado ¢ também, em grande parte, por cansa do plamio deles, porque eles aliernam as areas de plantio, ¢ colocam fogo sem nenkum controle, ¢ nao confiam na gente para a questo da colocagao do fogo com acompanhanento da gente... eles néo confian nisso, Eu ja temei, ja tentei reunir was 30 pessoas ai dentro do Parque, numa determinada area, e sugeri a eles que quando fossem colocar fogo naquelas reas que eles precisassem, eles comunicassem a gente, que a geme estaria alt supervisionando, e até ajudando a controlar. Isso para evitar que eles cominuassem a fazer da forma que fazem... Eles querem queimar 10ha, 20 ha e botam fogo na area... botam Jogo, se escondem, vao embora, ¢ queiman: 1000, 2000ha de uma vez. Cada ‘pessoa que coloca fogo dessa forma, acaba no periodo da seca, que quase (60% do parque pega fogo por causa disso.... 0 envolvimento indireto do érgio na politica local, em especial no “tempo das politicas”, reflete essa marca do relacionamento, mesmo que seja visto aqui como um caso extremo. Se fossemos analisar aquelas condutas a partir de uma ética profissional, ‘ou mesmo de uma postura politica, @ leitura poderia sugerir 0 favorecimento pessoal através da instituigao, Porém, do ponto de vista dos relacionamentos, inclusive dos esperados em tempos de politicas, os principios colocados em ag4o no se mostraram cofensivos, incompreendidos ou inadequados do ponto de vista dos moradores da regifio, a0 contrario, reforgaram alguns padres ¢ logicas de relacionamento coerentes com 0 que talvez possa ser chamado de “contexto tradicional”, Podemos entender essas diferengas entre os dois érgios, no contexto do PARNA GSV, levando em consideragao alguns aspectos institucionais mais amplos que os caracterizam, O Tbama é uma in: igo federal, de estrutura interna complexa ¢ burocratizada, A agio local do érgio é dependente dessa mesma estrutura, 0 que pode ctiar amarras técnicas, burocriticas ou financeiras, como a auséncia do plano de manejo ou a dificuldade de obtengdo de recursos para © pagamento de indenizagoes. Amarras que, conforme foi sugerido, estimularam uma agio do érgio local pautada pela informalidade, pelo pragmatismo, e por aliangas com grupos da regito. A Funazura, por outro lado, é uma organizagao nao-governamental, com estrutura pouco burocratizada, caracterizada sobretudo pela formagao técnica e cientifica de seu corpo profissional. ‘Ainda que no caso do PARNA GSV tenha sua ago submetida formalmente ao Ibama no nivel federal, a Funatura movimenta-se mum campo mais flexivel em relagio a parcerias com outras instituigdes, e também na obtengio de financiamentos para seus projetos, idem 159 como indica sua propria atuagao na criagio do Parque, no projeto de converséo da divida externa, ou nos varios projetos desenvolvidos pelo Programa GSV No contexto local, essas diferengas transformaram-se em um quadro de divergéncias e criticas mituas, de um afastamento exercido de forma reciproca na maioria das vezes. A linha divisoria desse afastamento era formulada, de um lado, pelo discurso da Funatura, através de nogies como profissionalismo, étiea, transparéneia administrativa, e também por uma orientagfo “metodolégica” sobre como deveriam ser construidas as relagdes pessoais, a partir das quais o trabalho de conscientizagio ambiental cra desenvolvido. © Thama, por outro lado, formulou suas proprias nogdes a esse respeito, dando relevancia a uma ago construida na “integragio” com os grupos, interesses e praticas das comunidades locais - 0 que incluia também os gatichos - ¢ considerando a posigao da Funatura como isolada e construida em um “pedestal”. As diferengas que podem ser percebidas através dessas descrigdes entre os dois 4rgios, na forma como marcavam sua presenga no contexto do Parque, niio pareceu, cntretanto, diferenciar significativamente a postura da populagao local em relagio a eles. Mesmo depois de superada a fase inicial da implantagio do Parque - de medo, afastamento ¢ desconhecimento -, 0 envolvimento dos moradores locais com as equipes do Ibama ¢ da Funatura nfo se determinou por uma diferenga estabelecida entre os 6rgios. Primeiro, apesar dos proprios esforgos da Funatura em delimitar o proprio perfil = “ndo somos governo, nao somos Tbama” - , 4 maioria dos moradores parecem ainda hoje confundir os érgaos, ¢ mesmo que se reconhecesse certa diferenga na época, que poderia estar materialmente demarcada pelos locais das sedes (Rio Proto - Funatura/ Chapada Gaticha - Ibama), ou pelas proprias pessoas que carregavam esse ou aquele nome, fato € que o motivo mais claro de estarem na regio, envolvendo-se com os moradores tradicionais era somente um: implantar o Parque, ¢ “proteger a natureza”, Por mais que pudessem ser lidas condutas diferenciadas das pessoas que representavam cada um dos érgaos, tais distingdes se esfumagavam no momento em que se perguntava o porqué de clas estarem ali. Eu propria, como pesquisadora que fixzia “um trabalho no Parque", me vi, em diferentes situagSes, classificada de ambas as formas, como “mulher do Tbama ou da Funatura”, dependo de uma “proximidade” que pudesse ser mais explicativa. Assim, na festa de casamento da filha de seu Ladu, no Rio Preto, fui muitas vezes tratada como alguém da Funatura"’. Ou entiio, na Chapada, * Em outras situagdes, fui classificada também em termos de “parentesco”, uma analogia de parentesco: 160 Gaiicha, quando via alguém tentando explicar a um terceiro quem eu era, normaimente a associa¢ao era ao Ibama. Segundo, o que talvez procurasse se demarcar como diferengas institucionais, mostrou-se melhor compreendido enquanto diferengas entre pessoas. Nao era essa ou aquela instituigao entendida como rigorosa ¢ normativa, ou de praticas informais e condescendentes, mas fulano ou sicrano vistos como “bravo”, “sistematico”, “legal”, “folgado” ou “valente”. Em grande parte, a dificuldade em perceber a diferenga que os drgios estabeleciam entre si provinha, provavelmente, dos principios a partir dos quais ela se fundava que, pareceu-me, nfo faziam sentido ali, careciam de significagao, A distingao clara entre espagos e tempos de trabalho e de lazer é muitas vezes ténve no universo daqueles pequenos agricultores, e em geral sio tempos © espagos correlacionados. A distinglio entre relagdes pessoais e profissionais entéo, parece bastante fora de contexto. Mesmo que substituamos a palavra “profissional” pela palavra “trabalho”, essa diferenciagio continua problematica, j4 que o trabalho esta sobretudo relacionado ao trabalho da terra, ¢ esse é realizado na companhia de parentes ¢ vizinhos. Assim, a diferenga que as duas instituigées mostravam entre si pomtuava-se por marcas de uma outra racionalidade, que nao a exercida entre as pessoas da regio A posigao dos guardas-parques, nesse caso, niio s6 traz questionamentos como aqueles levantados por Diégues sobre a ambiguidade da posisfio dos guardas em relaslo a diferentes compromissos com seus grupos de parentes e vizinhos, por um lado, e com a instituigges que administram © Parque, por outro, Ela intermediava - ¢ vivificava - esses novos principios que ali tentavam se instaurar, se estabelecer, se fazer entender. As disenssdes sobre 0 uso correto do uniforme, por exemplo, descritas na reunio da Funatura, ilustra essa questi. Tratava-se ali, por um lado, de imtroduzir uma determinada conduta e postura em relagao no s6 20 uniforme, mas & maneita de se tratar tudo que estivesse relacionado a0 wabalho de guarda-parque. A cortegio da linguagem (“é fauna, néo é cagd”), a discussie aberta sobre a utilizaglio dos recursos financeiros, a seqiiéncia do dia estabelecida por um programa de reunitio - introduz no universo local prineipios descolades do mundo que tradicionalmente se pratica ¢ se pensa, . “como se fosse primn”. por exemplo. Esse tipo de classificago em gerat aconteceu entre pessoas com quem de fato estabeleci relagées afetivas © mais présimas, mas foi bem mais freqlente quando a referéncia ao Tbama ou a Funatura parecia pouco explicativa 161 Isso nao quer dizer que eles nfo tivessem certa eficécia, ou que mio fossem aceitos ou considerados seriamente entre tal grupo. Presenciei certa vez um pequeno evento que pode indicar como sao ressignificados esses principios, ¢ colocados em pratica pelo grapo dos guardas. Certa vez, um guarda recebeu a visita de um parente que vivie em outra regio, distante do Parque. Esse parente precisava se deslocar da casa do guarda, até outra localidade dentro do Parque, ¢ pediu um animal emprestado para tanto. O guarda emprestou; porém o animal estava com uma sela que fazia parte do equipamento da Funatura. Como néo iria se utilizar dela naquele momento, ¢ 0 parente precisava, 0 empréstimo foi feito, com a condigao de que a sela fosse deixada em determinado local, conde pudesse ser resgatada, Dias se passeram, e 0 guarda © seu parente se reencontraram. Esse iltimo, ento, contou nfo ter encontrado ninguém no local onde deveria deixar a sela, ¢ deixou-a com outra pessoa, em outro lugar que do 0 inicialmente combinado: foi motivo de uma grande discussao, em que ambas as partes se dliziam com razio. O guarda tinha dois principais argumentos: um, 0 de ter feito um empréstimo sob determinada condigdio, que nao foi cumprida; segundo, que ele havia emprestado algo que nfio era dele, era da Funatura (¢ nfo um material de uso exclusivo no trabalho) € poderia ser punido por isso. J4 havia feito uma concessdo ao parente, © esse 0 havia tratado sem consideragto, O parente, por sua vez, apelou para a contingéncia do momento, nfo havia outra alternativa, e parecia nfo se preocupar especialmente com o fato de a sela ser ou no da instituigio, ja que ela estava em posse “permantente” de seu parente guarda. © problema era sobre o cumprimento ou no do trato Esse pequeno evento fala do encontro entre diferentes racionalidades que, no caso do Parque, se véem colocadas em pratica, em conflito, ¢ sdo redimensionadas por intermédio dos guardas Ao trazer tal discuss, quero epontar, portanto, para dois aspectos. De um lado, a idéia de que as diferengas manifestadas entre as duas instituig6es fazem sentidos se vistas da perspectiva do sistema sdcio-econdmico e politico ao qual elas proprias se vinculam e do qual se originam: © mesmo que separa em dominios distintos Natureza e Sociedade ¢, que cria a necessidade do Parque. Por outro ledo, ela indica como a implantagao do Parque ¢ a introdugio de uma “consciéncia ambiental” entre seus ‘moradores também traz - ¢ transforma - outras nogdes ¢ racionalidades, associadas, nos 162 casos descritos, & dimensdo do trabalho e a modelos de relacionamento humano. Como antes mencionado, a pesquisa de campo e a observagao de situagdes que conduziram a essas reflexdes, centraram-se sobretudo no ano de 1996, ¢ somente no principio da campanba politica, Nao acompanhei o decorrer da campanha, tampouco situagdes nesse periodo que pudessem langar mais luz a respeito da pasticipaggo - ou afastamento - dos diferentes grupos envolvidos no contexto do Parque no tempo das politicas. Quando retornei a regtio da pesquisa, a campanha ja havia se encerrado, as cleigdes j@ haviam se realizado, e um novo quadro, sobre o qual pouco comhecia, configurava-se Esse quadro nfo chegou a ser investigado a fundo, Acredito que traria material ¢ questionamentos para outra pesquisa e andlise, para outros momentos ¢ situagdes do processo social que se revela através da implantago do Parque Nacional, Mas ele suficiente para fechar a seqiéncia ruptura - crise - reparagdo - reintegracGo do drama social, Entretanto, ao contrario do trabalho de Pompa no PARNA da Serra da Capivara, 2 crise instituida pelo do PARNA GSV, como processo ou “drama social” foi percebida aqui, 20 menos no plano da anilise, mais da perspectiva dos drgios envolvidos, do que diretamente por meio de um conflito com a populagdo local, Acredito que esse fato, mais do que indicar um enfoque preferencial de anélise, ou de uma papel aparentemente coadiuvante dos moradores locais, revela uma outra dirego em que esse processo pode se configurar. NN&o somente os “atingidos” pelo Parque, as populagées tradicionais, sofrem quebras em sistemas de representagio, Também os membros das instituigges mostraram- se sujeitos ao dinamismo das relagdes e significados, 4 necessidade de recombinago dos signos colocados em jogo, & adaptag&o dos diferentes interesses ¢ projetos de agiio. O encontro, ¢ 0 impacto do encontro - tanto quanto das diferencas ¢ conflitos - nfo ocorre unilateralmente, Se as trocas materiais entre moradores tradicionais e técnicos ou visitantes foi percebida como injusta ¢ inadequada pela Funatura, em fungao dos “poucos recursos” daquele, o mesmo nio pode ser dito das trocas que acontecem em outros planos, relacionais, subjetivos ou mesmo politicos, Talvez clas expliquem algo do fim de uma etapa, de programas de ages, conflitos e aliangas envolvidos - e inicio de uma nova, baseada numa nova configuragao Ocorreu que a chapa dos gaiichos ganhou a cleigdo, ¢ o envolvimento de alguns dos integrantes do Ibama com a politica local recolheu-se para um outro plano, no mais 163 © do palanque, Nenhum dos candidatos envolvidos com a instituigdo foi eleito, um deles foi afastado da fungao, ¢ outro se viu processado por um dos membros da Funatura, Por ‘outro lado, a coordenagao do Programa GSV, depois de um longo periodo de intensa ¢ produtiva atuagao, desde a criagdo da unidade de conservagao, foi afastada, A nova coordenagao reformulou seus quadras, contratou novos técnicos ¢ redirecionou a linha de ago da ONG no Parque. Como consequiéncia dessas mudangas, houve uma aproximagdo efetiva entre os Toama e Funatura, que agora parecem finalmente ter conseguido efetivar a co-gestio do Parque, convivendo, discutindo ¢ exercendo agdes conjuntas, como pensar o plano de manejo, ou um plano de ado emergencial, ¢ as formas de indenizagao ou reassentamento da populagio moradora do Parque. Dessa primeira impressto, aquele contraste entre principios e programas de ago parece ter se dissolvido ou se atenuado, o Thame tem se mostrado mais “estruturado” em suas relagdes € alento as normas e condutas institucionais , enquanto @ Funatura apresenta agora uma presenga menos formal e normativa. Com relagao 4 populagao do Parque, essa mudanga de configuragao nao parece ter afetado significativamente as condigdes em que vivem, tampouco a relagiio desses com tais instituigdes. Continua-se espera de uma resolugiio, do momento em que @ “Jangada de pedra”” um dia encontre seu porto - alguns esperando menos tal conclusio, outros mais. A situagiio dos guardas, por sua vez, tem sido sutilmente alterada, aos poucos. Sio agora chamados de vigilantes - nomeagdo que tenta desfazer uma ambigiiidade do termo “guardas-parques”, ja que a fungio prevé somente a fiscalizagéo das areas do Parque, mas nio tem poder efetivo de controle, Foram orientados também para que se desfizessem de animais domésticos que colocassem em risco a fauna nativa, como ces, por exemplo, Em conversa com um representante da nova coordenacao da Funatura, ainda no momento em que essa se iniciava (marco de 1997), algumas das idéias e objetivos desenvolvidos pela antiga coordenagdo mostravam-se presentes, porém com novo rosto. Os antigos projetos nas areas de medicina saide, agricultura e educagio haviam sido reformulados, € @ casa-sede da Funatura no Parque hospedava dois técnicos, com origem na regitio - um técnico de saiide e um articulador, Os projetos desenvolvidos diretamente com a comunidade foram centrados na area da saide, sobretudo preventiva e eprodutiva, com orientagdes sobre o planejamento familiar, mostrando uma preocupagdo, nesse sentido, mais pratica e imediata. Atengio especial parecia estar sendo dada & aproximagao com os centros politicos e administrativos da regio mais relacionados ao Parque, uma busca de integragao com as prefeituras, principalmente através das secretarias de sade. Os novos projetos, segundo essa répida conversa, remetiam-se fortemente a um envolvimento regional, sendo pensadas sobretudo agdes que pudessem ser absorvidas posteriormente pelas prefeituras. Falou-se também da intengdo de criat um Conselho do Parque, que trouxesse representantes de varios Orgs, das quatro prefeituras envolvidas, de ONGs, e representantes das localidades do Parque 'A médio prazo planejava-se igualmente uma ago mais permanente na area de protecdo propriamente dita, bem como a resolugo das questes do plano de manejo, do zoneamento, ¢ do reassentamento da populagdo do Parque. ‘Nessa conversa, ao mencionar os estimulos a serem dados ao associativismo, fez- se 0 comentario da extrema “falta de associativismo” entre os “mineiros”, comentario que também se referia aqueles que vivem no Parque, no contraste que pode ser ali visto com os “gatichos”. Ha pouco tempo também, principio de 1998, em conversa com outra pessoa, ouvi outros comentario sobre certos programas de financiamento que estariam sendo executados na Chapada Gaticha, pelo Banco do Nordeste, ¢ que dariam atendimento preferencial a pequenos produtores através de cooperativas ¢ associagses. 0 comentirio se referia a falta de “pritica” dos mineiros em relacdo as cooperativas, ¢ um conseqiente “aproveitamento” de alguns mais espertos sobre outros, que emprestariam o nome em uma “cooperativa” ficticia, fazendo com que o financiamento fosse para o bolso de uns poucos Sao pequenos comentitrios - com um cardter de “impressao” - mas que revelam novamente 0 problema do contraste entre diferentes racionalidades e programas de agao. A critica a “falta de associativismo”, no sentido mais estrito que 0 termo constitui, ou @ observagio sobre a falta de experiéncia na formagio de cooperativas, poderiam se somar & percepedo sobre a auséncia de organizagao € participagdo politicas do grupo dos moradores locais em relagdo a seus direitos, constituides por habitagao ¢ trabalho na regiiio do Parque™. Hlay’Ofa. em sua visio sobre as sociedades do Pacifico. oferece uma resposta intoressante a ess constatagio: “(..) pessoas comuns. camponeses ¢ projeirios que, devido a0 fluxo insuficiente de beneficios vindos de cima, 90 ceticismo diame das politicas piblicas ¢ oficiis ¢ a outras razdes ‘emethantes, tendem a planejar e tomar dscisbes sobre suas vidas de maneira independente, por vezes, ‘com resultados surpreendentes ¢ dramaticos. que passam desspercebidos ou sio ignorados nas esferas Superiores da sociedade. Além disto, os especialisas académicos tendem a desvalorizar ow a interprets extoneamente a8 présicas locais, porque estas no se enquadram nas visdes dominantes sobre a natureza 165 Por outro lado, no se pode negar a existéncia de priticas de solidariedade focal, de trocas e aliangas em beneficio do outro que, por sua vez, um dia podera “dar a paga’”. Da mesma forma, a articulagao dos grupos ai residentes mostra-se bastante eficaz quando se percebe a velocidade da comunicagao oral no local, entre pessoas muito distantes espacialmemte, ¢ entre a grande dificuldade de transporte ¢ locomogao, ou quando se organiza uma reza na casa de alguém, quando acontece, ano apés ano, as festas de santos, ou folias, ow mesmo a participago coletiva em trabalhos produtivos Volta-se, novamente, % discussio que iniciou esse item, ou seja’ sobre modos particulares de participagdo ¢ conviéncia entre certas comunidades camponesas; o contraste entre suas logicas de afiliagao, convivéncia ¢ participagao ¢ aquelas de outros agentes e instituigdes. Porém, como indicaram tragos da historia e meméria locais, os eventos descritos, bem como outras situagdes trazidas pela dissertagio, os contrastes no implicam em posigdes, para os sujeitos envolvidos, imoveis ¢ estiticas, impermedveis a “outros”. Os guardas-parques no So s6 guardas; os moradores transitam em outros espagos (inclusive no sentido do termo para Certeau); os mineiros e gaiichos congregam diversidades, os representantes dos orgios, apesar de marcados por uma posigao institucional, politica ou ideolégica, nem por isso esto menos sujeitos as trocas, ou a0 poder dos encontros ¢ conflitos com outros. Se existem reais possibilidades de implantagao ¢ efetivacao do Parque, tal dindmica certamente faz parte delas. da sociedade © de seu desenvolvimento, Dessa forma. as visdes acerca do Pacifico tomadas da perspectiva da macroeconomia ¢ da macropolitca frequentemente diferem do modo notavel da vis das pessoas comuns (1992, 2-3)", citado em Sahlins. M. °O ‘Pessimismo Sentimental’ ¢ a Experiéncia Etnogrifica: Por que a Cultura nio é um ‘objeto em vias de extingdo" (Parte II). In Mana ~ Estudos de Antropotogia Social, Vokume 3, no. 2. outubro de 1997, CONSIDERACOES FINAIS 167 Entre os eventos descritos no capitulo anterior ¢ aquele que abriu a dissertagao, no primeiro capitulo, percorri um caminho que coloca em comunicagao um modelo de parque nacional imaginado © desejado para um projeto nacional, com um dos trinta ¢ cinco parques nacionais existentes hoje no Brasil: o PARNA GSV. Nesse trajeto, que perpassou espagos de interagao entre individuos e grupos, espagos narrados e vividos, foram buscadas também possiveis ligagdes entre os “diminutivos”, como chamei os pequenos eventos e fragmentos ao longo do trabalho, e outra referéncia espacial e simbélica mais ampla, a categoria sertio. © segundo capitulo centrou-se em descrigdes sobre a populagdo que habita o Parque GSV, sobretudo do ponto de vista da ocupagio territorial e das redes formadas pelos lagos de parentesco e vizinhanga. Os elementos dessa caracterizagio so também partilhados pela regio mais ampla do Noroeste e Norte de Minas Gerais, bem como de regides de Gois e da Bahia, isso significa dizer que os limites colocados pelo Parque para a populagdo ai residente, tanto quanto a classificagio “populagdo tradicional” nio deve perder de vista sua relagdo com um sistema séciocultural mais amplo, que ndo se isola e se congela coma eriagdo desses limites. No caso particular de Santa Rita, tentou-se vasculhar @ memoria doo lugar, bem como perceber possiveis vinculos entre meméria ¢ tertitorialidade. Essa via foi estabelecida tanto pela propria fundagao da fazenda Santa Rita, através de momentos de um determinado grupo de parentes na localidade, como pela idéia-guia da retorica da caminhada, que nos fala sobre especificar espagos por meio de agdes. No decorrer da caminhada, ¢ de relatos surgidos ao longo dela, foi possivel pereeber, por exemplo, os lugares criadores de “legendas locais”, como 0 Morro Trés Inmios ou a Lagoa Santa Rita. Ela trouxe também lembrancas de outros deslocamentos, como o relato de uma das moradoras da localidade acerca de sua Gnica viagem a uma cidade grande, oferecendo densidade e subjetividade ao que objetivamente relaciona-se com um-dos grandes fluxos migratorios originarios da regio com destino ao Distrito Federal Igualmente, ao incluir a deserig#o de uma caminhada conjunta entre pesquisador e moradores, surgiu a possibilidade de estabelecer o contraste, perceber as distancias ¢ aproximagies entre diferentes percepgdes, entre aqueles que assumem vinculos mais profundos e permanentes com os lugares, ¢ aquele que esta de passagem, com lagos provisorios e impessoais, Desse entrecruzamento, surgiu a releitura a respeito do Pivd, ugar simbolicamente miltiplo que, além de reforgar o elo entre meméria & 168, territorialidade, traz casos enunciadores de mobilidades ¢ deslocamentos, nfo sé do grupo de parentes estudado, mas também indicios de priticas e interpretagdes que se comunicam com outros sistemas, com atores ligados a outros contextos sécioculturais - no caso, com aqueles envolvidos na implantagio do Parque -, além de outros afetados por sua criagdo, como os gatichos No tereeiro capitulo, foram contrapostos tragos da histéria da regio e 0 proceso de implantagio do Parque. A partir desse entrecruzamento, foi possivel pereeber esse ltimo como uma forma contemporinea de intervengio no espago/ambiente - espago que, ciclicamente, abre-se a “descobridores” que, por sua vez, parecem tender a desconsiderar ou melhor, desconhecer, as presengas anteriores. Dessa forma, entre Funatura, Gatichos ¢ representantes da Feltrim, sem divida, a intervengao no espacofambiente é orientada por diferentes fins e meios - até mesmo opostos, pode-se dizer -, visto, de um lado, objetivar-se a preservagdo e a intocabilidade dos ecossistemas ¢ dos recursos naturais ¢, de outro, a exploragio, transformagdo e ocupagdo desses mesmos ccossistemas. Entretanto, podem ser notados, muitas vezes, um olhar ¢ um discurso muito proximos sobre esse mesmo espago ¢ sobre a populagdo que jé habitava a regio: inicialmente desabitado, espago intocado - pronto para a preservago dos ecossistemas nfo altemados pela agdo humana, ou justamente, pronto para o desbravamento. Sobre scus habitantes, os “desbravadores” contempordneos mostraram a percepgdo de gente “com medo de gente”, de poucos recursos, de boa indole mas apaticos, receptores dos beneficios que a Fazenda os levou, ou a colonizagao Gaiicha, ou 08 projetos da Funatura direcionados a populagao do Parque Camuflados como as proprias taperas, os habitantes nativas também reproduzem, muitas vezes, esse mesmo discurso de ocupagao, Como Lévi, em 1996 morador da localidade chamada Onga, entorno do Parque, que disse sobre 0 lugar nos tempos em que seu pai, Seu Gerénimo, chegou ao local: “(...) isso aqui era um deserto esquisito... 0 véio Gerénimo foi buscar nés [em Vargem Bonita] para morar mais perto... € 0 morador mais antigo do Onga’. Discursos que, apesar de seus diferentes agentes ¢ fontes, parecem ciclicamente beber das imagens miticas sobre o sertdo, percebidas por Vidal e Souza nas narrativas do pensamento social brasileiro’. Ao deserever trés acontecimentos ocorridos em julho/ agosto de 1996, delimitei grupos envolvides no processo social relativo 4 implantagao do Parque e trouxe aspectos * Vidal e Souza, Candice. op cit. 19 de suas interagdes, como expresses de diferentes temporalidades ¢ racionalidades colocadas em jogo. Através da palestre politica, por exemplo pdde-se perceher que o fato de se acionarem identidades (yaiichas ou mineiras) na campanha politica, no significou que a identificagZo com essa ou aquela polaridade direcionasse por si o voto, ou que fosse qualitativamente mais importante do que interesses, perspectivas e leituras sobre o jogo politico, como inclusive demonstraram os resultados da eleigao. & interessante estabelecer 0 paralelo dessa constatagZo com outra situagdo, a de uma suposta identidade dos moradores de localidades no Parque, em contraste com integrantes dos OrgHos que o implementa. Se é que se pode dizer exist tal identidade, fato é que ela nao impossibilitou que, entre os moradores, se abrisse espago para a atuacio dos orgios, e se estabelecessem relagdes interpessoais tanto formalizadas, através da contratagio de guardas-parques, como informais, de convivio, amizade ou vizinhanga. Porém, 0 fato de se accitar a convivéncia com esses atores, de se ouvir sobre suas intengdes e idéias, de Ihes oferecer um café, de aceitar uma carona, ou participar conjuntamente de uma festa, nao implicou a aceitagdo passiva desses novos principios e posturas. Acerca dos aspectos ligados a preservagao e educagio ambiental, por exemplo, no € necessario ser bidlogo, ecdlogo, ou ambientalista para perceber ou imaginar os impactos da degradagao ambiental causada por agdes humanas. A importancia da protegdo ambiental pode ser entendida mesmo que no se entenda, cientificamente, a importéncia da diversidade ambiental e da manutengdo de ecossistemas, ou mesmo 2 da sobrevivencia de uma determinada espécie animat ou vegetal, © de seus uitimos representantes. A beleza ou a forga de uma paisagem - porgdo do territorio ou do espago ‘que podemos abarcar com o olhar” - pode, muitas vezes, arrebatar por si so todos os motivos para o convencimento da importancia das unidades de conservagio. A transformagio dos cerrados, dos getais, das veredas - © de tantos outros elementos integrantes desses ecossistemas, das formagdes vegetais ou da fauna - ¢ um fato, tanto quanto os enormes campos de soja, ou as florestas de eucalipto, associados, de um ponte de vista ambiental, com a transformagao ¢ a perda da diversidade dos ecossistemas originais, além de outras consequéncias Essa é uma definicdo bastante simples de “paisagem’”, que. segundo Milton Santos, tende a utilizar a ppalavra reforgando a seferéncia A configuragdo territorial. Santos descnvolve com maior profundidade, da perspectiva da geografia. uma distinedo epistemolégica entre paisagem espaco, problematizando inclusive essa utilizagio mais comum do termo. Ver Santos, Milton. 4 Natureza do Espaco. Técnica e Tempo, Razdo e Emocao, Sao Paulo: Hucitec, 1997. p. 83 170 Porém, de outros pontos de vista, a alteragSo da paisagem, do espago fisico ¢ ambiental, nfo é percebida necessariamente como um mal a ser combatido. Para a agricultura e a economia, a soja, © modelo de produgio ao qual ela se liga, a cultura a ela associada, gera dinheiro, fimda fazendas, eidades, traz novos moradores a regido, altera outras coisas que no somente o ecossistema original. De gente que vivia e que vive nesse contexto em que cerrado e soja se comtrapdem, poder-se-ia ouvir varias coisas. De Manuelzio, em Andréquieé, até pouco tempo atras, antes de sua morte, poderia ouvir-se sobre a saudade das veredas onde hoje se encontra a soja, ¢ vai fieando cada vez mais complicado, longe ou dificil de se achar uma vereda, beber uma agua fresca, atravessi- fa... De uma moradora do Parque, que ainda convive com veredas quase cotidianamente = e que aprecia sua beleza, que sabe também aproveita-la, ¢ ainda assim deixé-las permanecer, ouvi sobre como pode ser bonito um campo de soja, aquele horizonte verde, Outras coisas poderiam dizer os agricultores gatichos que investiram na produgao agricola, na soja particularmente. Retomemos uma das ligdes ambientais da Funatura na regiao do Parque: “no caga, é fauna”, De um ponto de vista de educagdo ambiental, ao menos do que primeiramente pode se perceber como leigo, 0 objetivo é o de se deixar de ver o animal como algo a ser cagado (e comido?), € comegar a percebé-lo como algo a ser respeitado, protegido, parte de um reino onde existem fauna e flora, minerais e vegetais, microorganismnes, espécie, género, classes... ¢ outras nogdes ¢ palavras, ligadas a vérias manifestagdes de vida, que abrangem um conhecimento sistematico, cientifico e legitimo a respeito da natureza, da vida bioldgica e fisica Entre os moradores de localidades do Parque, além de uma existéncia intimamente ligada e interdependente da natureza ¢ dos recursos naturais, muitas vezes pude observar agdes ou comentérios que demonstravam 0 interesse e © cuidado com animais, Em geral, com animais domesticados ou passiveis de 0 serem’, € ndo tanto com © “bicho bruto”, No capitulo anterior, se 0 leitor se recorda, ha um caso sobre um “criminoso” cuja ago mais reveladora de seu péssimo carater foi a de matar sem raziio animais, vacas e bezerros, “inocentes criaturas de Deus”. Mas também o “bicho bruto” 9 Um caso interessante fai 0 do “papagaio aleijado”. Uma das familias que visitei. na regio do Parcue, cuidava hi muitos anes de-um papagaio, Ele fora encontrado ainda filhotc, caido do ninko, ¢ tinha uma as patas aleijada. ndo conseguindo firmar-se e ficar em pé. Se fosse ali deixado, certamente marreria Levarantno para casa, ¢criaram o pssaro, sendo esse ja vetho quando Ia estive. © animal deslocava-se com o bico, arrastando o corpo, ¢vivia sempre no terreito. junto as galinhas, Na bora de alimentérto, ele «ra separado dos outros animais, para que mo The roubassem a comida, im tem um lugar privilegiado na cultura local, tanto ¢ que as historias mais freqlientemente contadas so sobre animais, sobretudo ongas e cobras, temidas € respeitadas. Que outras coisas pode dizer a caga a nao ser um mal contra a natureza, ou a maneira inadequada de se relacionar com os animais? Podemos comegar com seu Pedro Boca, morador de uma localidade do Parque que, diante da idéia de se ter um lugar onde nao se pode matar onga, idéia “doida”, previa ainda o dia em que as ongas iam povoar o mundo. Ha pouco tempo, pude observar em uma cidade do Vale do Unucuia, regio proxima ao Parque € que, gencsicamente, compartilha os mesmos principios culturais, um fato interessante a respeito das idéias sobre preservagdo da natureza, que nos permitem reconsiderar a ligdo ambiental: “ndo é caga, é famna,” Trata-se do relato de a uma eagada ocorrida hi pouco tempo’, que havia mobilizado entre dez ¢ quinze homens, muitos cachorros, ¢ durou dois dias. A onga ja havia matado varios bezerros em uma das fazendas da regio, Um deles, porém, teve a propria came defendida pela vaca “mae”, que afagentou a onga. Rondando sua presa, foi descoberta pelos cagadores € seus cachorros que, em seu encalgo, nao deram tempo & ‘nga para comer o bezerro morto. Fugindo, escondeu-se em uma caverna, que antes do episodio era desconhecida. Os cagadores, cansados ¢ talvez néio muito dispostos a enfrenta-la naquele dia, fecharam a entrada da caverna e resolveram tetornar no dia seguinte. No outro dia, os homens voltam, Nem todos querem entrar na caverna, ¢ a cagada continua para os cachorros ¢ alguns homens mais corajosos. Todos s6brios, porque onga ¢ pinga nao sio boa combinagio, conforme foi dito, A caverna tem muitos sales, com trechos de dificil passagem. Os homens levam também uma lanterna, ¢ sabe- se ali da possibilidade da morte e do poder do animal acuado. Avisa-se do perigo as costas. A onga pode estar escondida numa fenda no teto ¢ atacar alguém por tras. Um homem, repentinamente, percebe-se diante da fera, sem o poder da ago. A onga o encara, mas no o ataca, Some novamente pela escuridio da caverna, Tal cagada de fato ocorren, ¢ tive acesso a registros visuais da mesma, fcitos pelos proprios cacadores. F interessante comentar que varios entre eles conheciam algo da legislagSo ambiental, ¢ sabiam que tal gio constituia-se como crime inafiangavel. A justficativa para a cagada centrava-ce num discurso de autodefesa, visto a onea ter atacado virias fazendas na regio. A composigio do grupo era também significativa: somente homens. de diferentes posigies sécioccondmicas, desde pessoas em posigées socialmente mais alias. na cidade, como trabalhiadores de fazendas, quanto homens considerados “mateiros”. moradores de areas mais afastadas ¢ isoladas. que detinham wm conhecimento maior sobre 0s habitos do animal. In Tempos depois, ouvem-se, estampidos, cdes ¢ latidos, ¢ a euforia comega a sair da caverna. Junto com a bela onga, morta, Todos fazem algum comentario sobre o animal, outros, inclusive os que nfo entraram na grata escura, brincam com o corpo morto, simulam uma situagdo de combate, Alguém a examina e observa que aquela nunca tinha patido, onga nova, bicho bonito. Os cachorros latindo em volta do bicho. Depois, soube-se que varios deles morreram, de onga. Que 0 cachorro, depois da cagada, perde o medo, cria coragem de enfrentar a onga, e por isso, muitas vezes acaba ‘morrendo. Essa histéria traz, como o comentario de Seu Pedro Boca, em outra escala, uma observagio nfo 86 sobre a questo moral que se revela no problema, mas também uma questo pragmatica. O que fazer quando ha ongas povoando 0 mundo em que se vive, ou quando elas atacam seu rebanho? Ha também aquele caso da moga gravida, que combinou de encontrar pai na estrada, na descida do énibus. O énibus atrasou, depois de muito esperar, o pai resolveu ir embora. Horas depois, o dnibus passa no local, ‘a moga nao vé o pai, mas acaba descendo mesmo assim. No dia seguinte, a onga tinha deixado do seu corpo s6 a cabeca Historias de onga - como também as de sucuris, sucruis ¢ outras cobras - sio _géneros ou tematicas recorrentes ¢ populares, E entre as varias imagens que suscitam, estio a do medo, a do poder do animal, da asiticia do cagador, da morte ¢ da coragem. Contadas como uma piada mérbida, ou como lembranga de um grande acontecimento, um susto, ou um erro, elas falam também de uma realidade concreta, ou proxima © verossimel Outra histéria significative sobre isso aconteceu no préprio Parque, e envolveu um dos integrantes da equipe da Funatura. A pessoa foi picada por uma cascavel, mas socorrida ¢ tratada adequadamente, ¢ o final foi feliz. A pessoa no soffeu maiores conseqdéncias, ¢ a propria cobra foi poupada da morte, Esse ultimo fato, entre a equipe da ONG, foi interpretado - ¢ relatado - como sendo coerente com a fungio do Parque ¢ com a propria presenga dos técnicos ambientais ali. A cobra estava no seu lugar de dircito, ¢ atacou por razdes de sua natureza ¢ instinto. A pessoa foi socorrida, ¢ estando fora de perigo, nfio havia razo para se mater a cobra. Esse fato, porém, correu entre ventos, ¢ ouvi seu relato tanto em lugares dirctamente ligados ao Parque, como em outro municipio, ha algumas centenas de quilémetros do acontecido. Junto com o selato, seguiam-se comentirios sobre a IB incoeréneia, a ineompreensfio e © absurdo de nao se matar uma cobra que acabou de envenenar alguém. E mesmo possiveis conseqiéncias desse tipo de agéo foram levantadas, como dizer que o nimero de ongas estaria aumentando, e isso sim seria um “desequilibrio ambiental”. Um exemplo do tipo ouga 0 que eles fazem, mas nao faga como eles fazem, os ambientalistas Exsa é uma das problematizagdes que se podem fazer em tomo do “diga fauna, ndo caga”. A substituigto pura e simples, primeiro, desconsidera significados, conhecimentos e praticas ligadas ao termo, 0 que é compreendido sob essa. classificagaio, ou mesmo rituals que porventura estejam associados a tal pratica. Elementos provavelmente interligados a outros, que integram um sistema mais amplo de conhecimento sobre a natureza, também legitimo, e que certamente seriam iiteis as proprias entidades ambientalistas © seus trabalhos, se melhor conhecidos antes de suprimidos. Por outro lado, a substituigdo dos termos por si 6 nio resolve problemas relacionados, como o perigo que uma onga ou uma cobra podem causar ao rebanho, ou a uma pessoa, Nao s6 nas areas delimitadas pela unidade de conservagao, mas em outras tantas pela regio - como a da cagada acima citada - o conhecimento tradicional sobre a caga pode se constituir mesmo como uma forma de defesa, como sugeriu 0 proprio discurso desses cagadores. ‘Nao se trata aqui de se fazer uma apologia a caga, tampouco de subestimar a importancia da educagaio ambiental, ou mesmo os trabalhos de controle e fiscalizagaio em relaglio a caga ou a captura de animais silvestres - caso esse que, segundo informagdes da Funatura, era realizada para o comércio ilegal de animais, vendidos para focais como So Paulo ¢ Rio de Janeiro. © ponto a se ressaltar refere-se ao que pareceu ser uma postura maniqueista sobre os valores e préticas sugeridos nos trabalhos de “conscientizagdo ambiental”, Combinados @ uma relagio idealizada com os moradores do Parque, 0 respeito cultura tradicional pareceu estar direcionado mais a imagens cristalizadas © inertes dessa propria cultura, sobretudo aquelas que nao ferissem os valores a serem introduzidos pela educagdio ambiental, Nesses casos, o respeito, o interesse ou © questionamento sobre a cultura tradicional correm o isco de transformarem-se numa liglo dogmética do que deve ou nao ser dito, pensado, * Esse comentario foi associado a outro, relativo a um documentario cxibido pelo programa Globo Reporter, da Rede Globo de Televisio, sobre elefantes na Africa. Um dos pontos discutidos no programa, «¢ mencionado nessa conversa, era 0 da superpopulaco de elefanies em algumas reservas, © que teria fevado a destraigdo de algumas aldeias © plamiagSes. criando a necessidade de sacrificar wm cero ‘mero desses animais. através de medidas legais e oficiis.

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