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VIOIIAYI DE relay ANADAS ererale) QVOIO i. ) INTRODUCAO A CRiTICA TEXTUAL . César Nardelli Cambraia ita Ron Martins Fontes Sao Paulo 2005 ony 02008, ira rine Ea "i oa ar ep cl. fete dren Cation Pb "Canara nine, rat ___ Sennen tine ie ‘im Sar wane sal ir Nat Cake. — to ose 2, le cs) biota ‘San 3620864 cite te Te sini dea ep patna prmgrse resend Toe ee aria Ft Ears i sna Cone Raa 30/3800 so Pano SP Brot ‘te ipaant ae Fo) 3105108 oni: inforasonetcan iptoonenaryomescan inDICE Prefécio. Lista de abreviaturas 1 2. Introdugio 1.1. Definigéo de critica textual 1.2. A mobilidade dos textos 1.3. Critica textual, ecdética e flologia 1.4. Contribuicdes, 1.5. Transdisciplinaridade Paleogratia Diplomitica. Codicotogia Bibliografia material Lingtifstica Breve histérico da critica textual 2.1, Da Antiguidade 3 Idade Média 2.2. Do Renascimento ao século XIX 2.3. Epoca moderna 2.4. A critica textual em Portugal e no Brasil. ¢ 3..A transmissio dos textos, 6 c 3.1, Conceitos bisicos 6 - 3.2. A produgio do livro manuscrito 65 o 3.3. A produgio do livzo impresso 2 antetio, que se . 3.4. Tipologia dos erros 8 defini, que 0 editor 4. Tipos de edigao. a7 srs Ae OF ASS rn 4 Tipos gers fe edigdo ” Menérae Plstumas de Bris Cubs, 1977: 152. 4.2. Tipos findamentais de edigio. - 90 Edigdes monotestemunhais....... 1 EdigGes politestemunhais. 104 5.Normas de edig&o 109 5.1. Principios norteadores. 109 A 5.2. Procedimentos bésicos an oa 5.3. Propostas de normas gerais. 126 Edigio diplomitica 128 c Edigao paleogrifica 129 5 Edigdo interpretativa. 131 o 6. Edigfo critica 133 c 6.1. Estabelecimento do texto critieo: 133 - Recensio. 133 5 Reconstituigio 48 ~ 6.2. Apresentagio do texto ctitico 161 - 7. Critica textual & informitica. - 175 ‘ 7.1. A transmissio dos textos na era digital 175 c 7.2. A edigio de textos na era digital... 181 c A informitica no estabelecimento do texto..... 181 > A informitica na apresentagio do texto 184 c 8. Critica textual & ensino 191 Cc 8.1. Livros didaticos 191 ic 8.2. A escolha de edigdes 194 Referencias bibliogréficas. 199 9 ) PREFACIO Nio deixa de ser surpreendente que a critica textual, ten do mais de dois milénios de existéncia,seja tio pouco difun- dida no Brasil. Raros sGo os cursos de Letras, Bibliotecono- mia, Hist6ria, ComunicagZo Social, dentre outros afins a ela, que 2 tém como disciplina na sua grade curricular. CCertamente um fato que muito contribui para sua pouca difusio no Brasil é 2 limitagZo bibliogrifica em lingua por- tuguesa: raras sio as obras da especialidade, e poucos os ma nusis introdutérios, que, por sua vez, se encontram jé hi tem- pos esgotados — eis, pois, o principal motivo para a claboragio da presente obra. Concebida para ser utilizada em cursos universitirios de graduagio (mas, naturalmente, de utilizago vidvel em cursos congéneres), esta introdugio tem como objetivo fundamental levar 20 conhecimento de leitores sem formacdo prévia em ctitica textual temas essenciais dessa 4rea,a fim de estimular a reflexio a busca por informagées mais ricas e diversifica~ das. Em firngio desse objetivo, procurou-se expor os temas de forma direta com uma linguagem simples, atual e objetiva. Embora se tenha tentado avanger na abordagem do assunto YIDD: ? yoo 2X # INFRODUCAO A ERITICA TEXTUAL com a inclusio de tépicos mais recentes (como, p.ex., critica genética e informitica), a presente obra no escapou da ine- vitével limitago bibliografica: por isso, deve ser entendida como uma sintese critica sobre 0 conjunto de informagées disponiveis ao autor durante sua elaboragio, Adaptages criag6es terminolégicas foram realizadas sempre que se fize~ ram necessirias para dar 4 matéria tratada uma organizagio mais coerente. © autor nao poderia encerrar este breve preficio sem externar seu agradecimento a duas pessoas em especial, que tormaram esta obra possivel: Heitor Megale, responsivel pela iniciagio do autor no mundo da critica textual; e Haquira Osakabe, autor do convite para a publica¢io desta obra.Ao colega José Américo de Miranda Barros, agradece o autor pelos inestimaveis comentirios § primeira versio desta obra. LISTA DE ABREVIATURAS sabre. ~ abreviada ale.~ aleobacense prox. ~ aproximadamente atual.— auaizado(®) aum. — aumentado(a) sag, ~engmentie Bibl. — Biblioteca c= cera de, eaneo of. confer 6d. ~ cbdice collab collaboration = eof dQ). — edigho/einor(e) lett ~ elewénica ‘sp. expanhol) £816). - fi fg). ~ linhals) LC ~ logar-ctitico melhor. melhorado(s) Nac. ~ Nacional NT ~ Now Titamento of ~ oficina ‘org().~ organizador(s) orig. ~ original - Pagina pret por exeinplo port. ~ portugués(es) publ. publicado(a) reed. ~reeditado reimpr ~ reimpresio rev. ~ revisto(t) CAPITULO 1 INTRODUGAO 1.1, DEFINIGAO DE CRITICA TEXTUAL Um dado fandamental para compreender 0 escopo da cri tica textual € 0 fato de que um texto sofie modificazbes ao longo do processo de sua transmissio. Para perceber de forma descontraida essa questo, basta Jevar-se em conta a tradicional brincadeira chamada telefone- sent-fie:20 pé do ouvido de quem esti ao seu lado, uma pes- soa passa oralmente uma mensagem, a gual é repassada para a pessoa seguinte do circulo em que se encontram, ¢ assim su- cessivamente — mas, como todos sabem, a0 retornar ao pri- meiro emissor, a mensagem munca chega como foi. Pode-se dizer que se passa, mutatis mutandi, a mesma coisa na transmis- sio de textos escritos.A cada copia que se faz de um texto, a ituigig deste muda — seja por ato involuntirio, seja por ato voluntério de quem 0 copia. E justamente por causa desse fato empirico incontestivel que a critica textual se constituiu: seu objetivo primordial € a restituigdo da forma genulna dos textos, 2 w inraopugao A cnintca TexTUAL 1.2. A MOBILIDADE DOS TEXTOS ‘As modificagdes que os textos podem softer ao longo do processo de sua transmissio podem ser distribuidas em duas categorias: exégenas e endégenas ‘As modificagbes exdgenas derivam fimdamentalmente da cormupgao do material utilizado para registrar um texto: tanto da matéria subjetiva (papiro, pergaminho, papel, etc.) quan- to da matéria aparente (grafite, tinta, etc.) Isto significa que, mesmo que nenhuma c6pia fosse feita de um registro ori nal de punho do préprio autor, ainda assim a transmissio des- se registro poderia softer modificagées, pois furos no suporte podem criar lacunas que exigirio o trabalho do critico tex- tual para serem preenchidas. A corrupgio do material dé-se por varios motivos: umidade, sol, fogo, insetos, vandalismo (cazio pela qual, aliés, documentos originais demandam con- digdes especiais de conservacio, de que, via de regra, apenas grandes bibliotecas e arquivos dispdem), No dominio da lingua portuguesa, hé casos muito curio~ s0s relacionados a essa questio da corrupgio do material: po- ddem-se citar,em especial, os chamados Pergaminho Vindel e Per- gaminho Sharer. Em 1914, 0 livreiro espanhol Pedro Vindel deu noticia da descoberta de um pergaminho contendo nio apenas o texto de sete cantigas de amigo atribuidas 20 trovador medieval ‘Martin Codax mas também a partitura de seis delas (cf. Vin- del, 1914). Esse pergaminho, datével do séc. XIII, servia até entio de forro a um cédice do sée. XIV, contendo uma e6pia do De Offs de Cicero. © pergaminho, que se encontra des- de 1977 na Pierpont Morgan Library de Nova lorque, tornou possivel, pela primeira vez, conhecer a miisica de cantigas de amigo, pois até entio sé se conhecia a miisica de cantigas ga- lego-portuguesas de cardter religioso ~ mais especificamente inrRopugio «3 as famosas Cantigas de Santa Maria, compiladas na corte de Afonso X, 0 Sabio (1221-1284)*. Se, por um lado, os furos que existiam no pergaminho nio impediram de todo 0 conhecimento do texto das can- tigas pelo fato de elas também se encontrarem registradas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional (ns. 1278 a 1284) e no Can cioneiro da Vaticana (ns. 884 a 890), por outro, o conhecimen- to da miisica nio escapou 4 necessidade de conjecturas, pois tum dos faros encontra-se justamente na parte final de duas pautas da terceira cantiga.A propésito do texto em si, veja-se, na figura 1, como 0 furo na matéria subjetiva eliminou par- te da quinta cantiga (na primeira coluna, zo centro) Historia semelhante acontecen décadas depois: em 1991, 0 estudioso americano Harvey Sharrer noticiou a descoberta de um pergeminho que possuia nfo somente o texto de sete cantigas de amor de autoria do rei D. Dinis (1261-1325) mas também a sua partitura (cf. Sharrer, 1991). Esse pergaminho, dativel de fins do séc. XIM ou princfpios do XIV, fazia parte da capa de um livro do Cartério Notarial de Lisboa copiado ‘em 1571. Novamente houve um grande achado, pois o per~ gaminho, que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do ‘Tombo, em Lisboa, revelou pela primeira vez a miisica de can~ tigas de amor (as de Codax eram de amigo). ‘Também no caso das cantigas de D.Dinis, o conhecimen- to do texto dessas composigdes liricas que se tem atualmente € menos lacunoso do que seria se constassem apenas do refe- rido pergaminho (muito mais fragmentétio que o localizado por Vindel), pois elas encontram-se registradas no Cancioneiro ALA sniica das Contes de Sante Maria reeben jf duns ‘quanto 8 pats de Ribeira (1922) e de Marin Codsx fi [por Manuel Pedro Ferrers 4 a tivrnopucho A cRITICA TEXTUAL Figura 1 — Félio 2x do Pergaminho Vindel (Fonte: Foret, 1986; 74-3) intropugho + § da Biblioteca Nacional (ns. 524 a 529 ¢ 520a) ¢ no Cancio~ neiro da Vaticana (ns. 107 a 113). De maneira igual, porém, a restituigio das notagSes musicais demandou conjecturas. Como se vé, em ambos os casos os estragos no pergami- nho impediram a continuidade da transmissio das notagdes musicais em sua integridade. No que se refere aos textos, em- bora haja outros registros das referidas composicées, ainda as- sim pode-se considerar existir uma perda, pois, do ponto de vista de autoridade, os dois referidos pergaminhos, porque si0 1 registros mais antigos, tém mais valor no proceso de re~ constituiggo da forma genuina dos textos do que os dois can- cioneiros citados, que parecem datar do séc. XVI. Certamente um caso que pode ser considerado exemplar em termos de perda por corrup¢io do material é o da versio medieval portuguesa do Mer Em 1979, 0 pesguisador catalio Amadeu-J. Soberanas trou- xe a conhecimento a descoberta de um fragmento do Merlin em portugués medieval (cf. Soberanas, 1979). Como nio se sabe de nenhum outro registro em lingua portuguesa desse texto, sua reconstituigao integral é simplesmente impossivel ¢ a propria reconstituigio apenas do texto portugués do fiag- mento & certamente bastante limitada. Veja-se abaixo, atra~ vés de um dos trechos transcritos por Soberanas (1979: 191), como 0 texto apresenta lacunas ora passiveis de conjectura (entre colchetes), ora praticamente irrecuperdveis (trés pon- tos entre colchetes): Qvido eles chegaré a abadya e os fitades uiré os caualeifros chagados, fford contra eles {..] ¢ flez[e}r8 [..) a hla camara e (1 fezerdlhys todo afquel seraigo] que poderd. Manbi: eee 6 « nrRoDuGAO A cRiTICA TeXTUAL ‘Nos trés exemplos acima citados, uma c6pia com corrup- cao material chegou até o presente, entretanto certamente riuitas outras cépias corrompidas de textos, as quais desapa- receram no curso do tempo, terio circulado no passado e ser~ vido de modelo para outras cépias, o que terd interferido na transmissio integral de muitos textos. ‘Ja as modificagGes endégenas sio aquelas que derivam do ato de reprodugao do texto em si, ou seja, do processo de reali- zagio de sua cépia em um novo suporte material. As exége~ nas diferem das endégenas porque a origem destas é interna 20 ato de cépia (depende de seu responsivel), enquanto a da- quelas é externa, na medida em que no depende do seu rea~ lizador, pois, mesmo que este executasse a copia com 100% de precisi, o resultado ainda assim estaria comprometido, por defeito no proprio modelo. As modificagdes endégenas po- dem ainda ser subdivididas em duas outras categorias: antorais ¢ ndo-autorais, As modificagées automis so realizadas pelo priprio autor in- telectual da obra, Durante 0 processo de preparagio da edigao impressa de uma obra, é comum o autor receber as provas ti~ pogrificas (impressio da primeira coimposigio tipogrifica fei- ta a partir de um original manuscrito ou datilografaclo): nesse ‘momento, s6i acontecer no apenas de o autor retificar aqui- Jo que 0 tipégrafo tinha alterado por desatengio mas também de ele proprio, o autor, fazer novas intervengées na forma do texto anteriormente enviado 3 editora, Em um passado mais remoto era possivel ainda que um autor divulgasse sua obra através de cSpias manuscritas em um primeito momento, mas, posteriormente, tendo realizado modificagdes na sua obra, di- vulgaria novas cépias, jd com alterages de sua autoria, "Um exemplo de modificagio autoral é 0 que aconteceu com a obra Os Seriées, de Buclides da Cunha (1866-1909). Se~ gundo esclarece Walnice Galvio (cf. Cunha, 2003: 520-9), mnrnopugio «7 essa obra foi publicada pela primeira vez em 1902 pela edito- 1a Laemmert, tendo sido reeditada em 1903 e 1905 pela mes- ‘ma casa editorial, Foi, porém, apenas apés publicada a 4? ed., em 1911, jf sob a responsabilidade da editora Francisco Alves, que se descobriu um exemplar da 3* ed. com emendas de prd- prio punho do autor (cf. figura a seguir) alteracdes estas que foram integradas a0 texto apenas a partir da 5? ed., saida em 1914. Atualmente o exemplar com emendas aut6grafis est, no entanto, desaparecido, mas ainda existe um exemplar com a reprodugio dessas emendas realizada por Fernando Nery (depositado na Academia Brasileira de Letras). Apds ter com- parado as trés primeiras edigdes ¢ exemplar com reprodu- fo apégrafa das emendas euclidianas, Galvio apurou a exis- téncia de nada menos que em torno de 6.000 variantes (sem se inclufrem nessa cifra as corregdes grificas e ortogrificas) Ter consciéncia de que os autores modificam suas obras, de uma edigio para outra é especialmente importante, pois a diversidade formal dos textos tem origem nio apenas em lapsos de cépia mas também na mudanga de vontade do au- tor (que dé origem as chamadas variantes de autor:a dificulda- de, entretanto, esta justamente em se estabelecer com certeza quando se trata de um caso € quando de outro, especialmen- te em relagio a textos muito antigos. Modificagdes no-autoraissio as que ocorrem sem a auto- rizagio nem 0 conhecimento do autor, ou seja, sio fruto da atividade de tereiros. Essas modificagSes podem sex subdividi~ das em voluntérias e inveluntérias. Sao modificagdes voluintdrias aquelas que ocorrem por ato Aeliberado de quem reproduz o texto. razao principal para esse tipo de modificagio costuma ser a discordincia ideoldgica, que se manifesta, via de regra, através de censura (politica, re- ligiosa, etc.). 8 « IvtRopUGAO A CRITICA TEXTUAL Figure 2~Pigin 140 da 3 od, Or Soe com strpos supra de Buches de Cun ont Co 1460) « en a 4 cAoga anltando © winndante rater: Asters bod es sera a parc ‘bod compan ‘Nip tela il earetria-as erm ara meio ger’ ‘engin All| elo, francs, 0 anhropione do elrages axa M1 anfalinedoaticam « 6 qb € mia, © proiis tsadt Clonal da raza sapetor, wx épocn do desisbrimenin © de santo do Baal frag nem, cow D. Jodo 1, Tustgio de completo devquitibrle woval, ‘om tarTores de Rasde-Medje tiabam eraic me genaslary. Para exemplificar censura, pode-se mencionar a primeira edigio que Augusto Magne fez do texto medieval portugués da Demanda do Santo Graal em 1944, Certamente por achar que certas passagens do texto poderiam chocar o piblico, 0 ITRODUGKO #8 editor suprimiu-as do corpo do texto, transferindo-as para uma segdo final intitulada aditamento. Tendo sido criticado por ssa atitude, Magne preparou uma segunda edicio, publicada em 1955-1970, em que no somente recolocou no devido In gar todas as passagens anteriormente deslocadas mas também incluiu reproducio fac-similar do manuscrito para tornar evi- dente sua fidelidade a ele. Veja-se, a seguir, a reprodugio de um excerto censurado na 1 ed.¢ de sua forma integral na 2* (0 excerto, do cap. LIT, § 357, narra 0 encontro do jovem rei Artur com uma donzela): € dés i, foi-se contra a donzela e salvou-a;e ela se ergueu con- tra le € salvou-0 muito apésto; e el-rei se assentou e ela ou- trossis € comegarom a falar de-suii, e achou-a el-rei tam si- suda € de tam booa palavra, que marivilha era, € foi em tam. agado, que a quis levar consigo; ¢ entom aque-vos uu cava~ leiro j4 quanto de idade, que sain da foresta assi desarmado como rei Artur (Magne, 1944, vol. II: 33, itilicos de Magne). 8s i, fofiJ-se contra a donzela e salvou-a; ¢ ela se erguen suda ¢ de tam booa palavre, que marivilha [era], ¢ foi tam pa~ gado, que jouve com ela per fora. E ela, que era menina ainda nom sabia de tal cousa, comesou a braadar mentre ele jazia com ela, mais ‘nom the houve prol, ca toda via fez el-rei o que quis, ¢ fez entom em la uit iho. E depois que how feito seu prazer ea sigo aque-vos ui cavaleiro jé [quanto] de idade, foresta assi desarmado como rei Arent (Magne, 1970: 89, itf- lico nosso). Trata-se obviamente de uma cena forte, poi estupro, Entretanto, no & possivel fazer uma andlise adequada do texto portugués da Demanda do Santo Graal levando-se em conta a edi¢io com censuras: s6 se pode ter uma visio global a I oy 10 4 mermopuco A cniricA PERTUAL © aprofizndada do texto medieval portugués considerando to- das as suas partes. Constituem modificagées involuntérias aquelas que ocor- rem por lapso de quent reproduc o fexto. Esse tipo de modificacio, conhecido tradicionalmente como erro de cfpia, foi j4 obje~ to de diversos estudos, que procuraram descrever ¢ classifi- car cada categoria: tal empenho decorre da consciéncia de que a identificagio da origem de um erro explica a nature~ za da distorgio ¢ evidencia como deve ser sanada na restitni~ ¢fo da forma genuina dos textos. Como no capitulo 3 esse tema serd abordado detalhadamente, apresenta-se aqui apenas um exemplo: 0 salto-bordiio, Quando hi no modelo utilizado para a cOpia duas palavras iguais em pontos diferentes de uma ‘mesma pagina de um manuscrito ou impresso, nfo raramente costuma-se saltar 0 texto que hé entre essas duas palavras, Isto di-se porque 0 copista nfo percebe que, 20 retornar os olhos para o modelo, apés ter registrado na sua cOpia a primeira ocorréncia da palavra em questio, seus olhos se fixam em uma palavra igual, mas em um ponto situado adiante no mo delo. Vasconcelos (1949: 97), comparando dois incundbulos coevos da Histbria de Vespasiano — um com 0 texto castelhano (evilha: Pedro Bran, 1499) ¢ outro com o texto portugués (Lisboa: Valentim Fernandes, 1496) ~, verificou varios casos de salto-bordo. Confira-se abaixo a reprodugio de um ex- certo do capitulo VII em ambas as linguas: cr. Gays el senescal se acordo 7 dixo a Jacob: Yo quero fablar con Pilates; Jacob te disco: «Yo jre con 0s»; ¢ amos a dos var 1 fablarop le delante del remplo de Salamon (Foulché-Del- bose 1909: 14, itdlico de Vasconcelos) Eo mestre-salla acordou-se e disse a Jacob: Eu quero fallar com Pilaty...E fllaron lhe diante do templo de Salamom (Perei- ta, 1905: 47). 4 meraoDuGio # It Percebe-se que, no texto portugués, houve a supressio da seqiiéncia preservada no texto castelhano (cf. trecho em it essa omissio deu-se justamente porque 2 seqiiéncia es- tava entre as duas ocorréncias do nome Pilatos. Em se tratando da lirica medieval, no entanto, as modifi- cages nos textos podem ter uma origem mais complexa do que simplesmente um lapso. Como assinala Cunha (1985b:36), as modificagées eram motivadas ainda por dois fatores: 4) a indiferenga dos escritores medievais pela propriedade e pela originalidade da obra, que estimavam ver alterada ou a (Js ) a wansmis mcteriza oral, com a“falsa reiterabilidade” que a ca- ‘A atuago desses fatores, a que Zumthor (1981) chamou de movencia, tern naturalmente implicagdes para o proceso de estabelecimento de textos dessa época, pois, como j alertou Cunha (1985b: 36), é preciso levar em conta no apenas a exist&ncia de variantes (imputiveis aos copistas) mas também de variagao, sto é, modificagdes decorrentes das diversas per~ formances de uma poesia difundida por umm século e meio sob a forma cantada, Segundo Azevedo Filho (1998: 268), também em textos da lirica camoniana é possivel perceber casos de “interferéncia da meméria em caso possivel de trans missio o: Modificagées naio-autorais em um texto podem, por ve- zes, irapor-se de tal maneira que acabami obtendo uma sorte mais afortunada do que a da forma genuina. Um caso mnito interessante & 0 do texto da Carta de Achamento do Brasil, re~ digida por Pero Vaz de Caminha e datada de 1500: Mattos «¢ Silva (1999: 134) chama a atengao para o fato de como um dado trecho da referida Carta, que tem circulado atualmen- 12 + wermopUGAO A cRiTiCA TexrUAL te de uma forma quase cristalizada, simplesmente no existe no original, pelo menos dessa forma, Nao haveré um falante culo de portugués que nio conhesa a expressio “em se plantando, tudo da” (ou ainda “aqui tudo, em se plantando, di”), tradicionalmente considerada parte da Carta de Cami- nha, No texto genuino (f6l, 13y, s. 19 a 21), porém, 0 que hf 6“em tal maneira he graciosa que querendoa aproueitar darsea neela tudo per bem das agoas que tem” (Caminha, 2001: 79). Segundo a referida pesquisadora, é bem provivel que essa forma derive de alguma leitura atualizada do texto original. De qualquer maneira, no deixa de ser impressio~ nanté como esse bordio parafféstico acabou por se enraizar profiandamente na cultura lus6fona, Os exemplos apresentados acima poderiam induzir o lei- tor a achar que as modificagdes ocorrem fandamentalmente em relagio a textos de épocas muito pretéritas, mas nao é ver dade:2 mobilidade do texto manifésta-se em qualquer época Exemplos bastante curiosos da mobilidade do texto no mun- do moderno sio apresentados por Garcia (2002:92-3) no que diz respeito 4 musica popular brasileira: lagraram-se jé diver- 80s casos em que intérpretes modificaram 0 texto genuino. ‘Um caso muito interessante é 0 relativo A cangdo Ultimo De- sejo, de Noel Rosa: na estrofe “E as pessoas que eu detesto/ Diga sempre que eu no presto/ Que o meu lar é o bote- quim’ (cf. Chediak, 1991, vol. 2:124 e 128), muitos cantores alteram a titima frase para “Que o meu lar é um botequim”, subvertendo o sentido do texto. Se, no texto or tor considera que o seu lar é fora de casa, & 0 botequii texto modificado a idéia suscitada parece ser a de que o seu lar é a sua propria casa, mas ela assemelha-se a um botequim. Enfim, de diversas ordens sio as raztes pelas quais 0s tex- tos se modificam; e certamente varias razSes entrecruzam-se eTRoDugho = 13 xo processo de transmissio de cada texto, Justamente por isso, quanto mais ciente o critico textual estiver dessas possibilida- des, tanto mais proparado estard para desvendar os mistérios da historia da transmissio de cada texto. 1.3. CRITICA TEXTUAL, ECDOTICA E FILOLOGIA Quando se fala em atica textual, nio raramente despon- tam dois outros termos: erdética¢ flologia. No hé atualmente consenso* sobre 0 campo de conhecimento que cada um des- ses trés termos designaria: ora sio tratados como sindnimos, ofa como denominagio de campos de conhecimento distin tos ainda que intimamente relacionados No que se refere a expressio artica textual, costurna-se empregi-la em lingua portuguesa como designadora do cam- po do conhecimento que trata basicamente da restituigdo da forma genuina dos textos, i. é, de sua fexagio ou estabelecimento (cf, Houaiss, 1967, vol. I:204; Azevedo Filho, 1987: 15; Spi- na, 1994: 82). Jéo termo ecdbtica” tem sido utilizado para nomear o cam- Po de conhecimento que engloba o estabeleaimento de textos € a sua apresentasao, i. é, sua edigaot (cf. Azevedo Filho, 1987: 2. Et problems texminclgica, de que nfo piece spenas gus portage, fo es is quai 0+ ede emedicls.A Bedties 63 sit, ocglene iad ; or Spin (19771958) is oa lis ein o rnc den Noe aaprsenapio de um te osegund desig sus Compete ipogrifica/eletrénica e impressio. = = pee n eeooce: dor dQ Q JANISAS + ; 14 merropugho A cntrica TeXTUAL 15; Spina, 1994: 82): nessa acepgGo, o termo abarca no ape- nas 0 processo de restituigo da forma genuina de um tex- to mas também os procedimentos técnicos para apresentar © texto ao piblico, Se, para os dois termos acima discutidos, hi um certo li- mite nas oscilagées de sua definicio, pois, ainda que even- tualmente sejam empregados como sinénimos (cf, p. eX., Houaiss, 1967, vol. I: 204), referem-se sempre ao proceso de edigio de textos;o mesmo nio se verifica, porém, em relago a0 termo filologia, para o qual circulam definigées muito dis- tintas. No Dicionério Houaiss (2001: verbete filologia) repis- tram-se quatzo significados para essa palevra: A. estudo das sociedades e civilizacSes antigas através de do- ‘cumentos € textos iegados por elas, privilegiando a lingua escrita e literdria como fonte de estudos estudo rigoroso dos documentos escritos antigos ¢ de sua transmissio, para estabelecer, interpretar ¢ editar esses textos 3.0 estudo cientifico do desenvolvimento de uma lingua ou de familias de Linguas, em especial a pesquisa de sua his- téria morfolégica e fonolégica baseada em documentos escritos ¢ na critica dos textos redigidos nessas linguas (p. ex, filologia latina, filologia germénica etc.); gramética hist6rica -estudo cientifico de textos (no obrigatoriamente antigos) ¢ estabelecimento de sua autenticidade através da compa- ragdo de manuscritos € edigdes, utilizando-se de técnicas auniliares (paleografia, estatistica para datacio, historia lite- ratia, econémica etc), esp. para a edigdo de textos Como se pode ver, os conceitos acima ora apresentam grande afinidade com a definigio de orftica textual adotada nesta obra (cf. significados 2 e 4), ora identificam-se ao estado IterRODUGAO « 15 de historia da lingua (cf. significado 3). Numa concepgio ‘mais abrangente, relacionar-se-ia ainda ao estudo de civiliza~ ‘ses, a partir de textos (cf. significado 1) A polissemia do termo filologia nao é, porém, fendmeno modemo, pois, 20 gue parece, na Grécia antiga, periodo em gue teria sido cunhado, jé apresentava sentidos diversos. Do ponto de vista etimol6gico, 2 palavra filolgia origina se, em Shima instincia, do vocébulo grego gikohoyle, com- posto de um radical vinculado ao verbo gitet (“amar”) ¢ de um radical relacionado do substantivo 46 ys (“‘palavra sim sendo, a idéia bésica originalmente expressa pelo termo em questio seria “amor 4 palavra”, Esse valor semintico bisico nao escaparia de softer deslo- camentos, pois verifica-se 0 emprego do referido termo com outros significados ja em autores gregos dos sécs. IV-III a.C. Bailly (1950: 2076) lista os seguintes: 1."'desejo de falar, pala vrério” em Licénio, Ath. 548a; 2."gosto pela dialética” em Plato, Thaw. 146a; 3."gosto pela literatura ou pela erudi- cdo” em Aristételes, Probl. 18, Plutarco M. 645¢— por exten- si, “disserta¢do sobre um assunto literdrio ou de erudigao” em Isdcrates, Antid. O deslocamento por tris do sentido cons- tatado em Aristételes parece ser : trajeto como “palavra” > “sentenca’” > ““discurso’ mento” > “erudi¢ao”. A idéia de filologia como “erudigio” parece ser a que esti na base do uso que Eratéstenes de Ci- rene (¢. 276-196 a.C.), um dos responsiveis pela Biblioteca da Alexandria no Egito, fez 20 se auto-intitular filélogo. Segun- do o historiador romano Suetdnio (c, 69-140 d. tar de Liicio Ateio Pretextato no texto De Grammatiis et Rhetoribus, Bratéstenes teria sido o primeiro a adotar a refe- rida denominagio no mundo helénico, enquanto Ateio 0 te- ria feito no mundo romano: INTRODUGAO A CRITICA THXTUAL Philologi adpellationem adsumpsisse videtur, quia sic ut Eratos- thenes, qui primus hoc cognomen sibi vindicavit, multipli va- Hlagque doctrina censebator® (Tranquillus, 1960 [1991}:610.4-5), Jano mundo moderno, o termo fi micamente, um significado mais restr © fato de o alemio Friedrich August Wolf ter-se matricula~ do na Universidade de Géttingen, em 1777, com 0 titulo Studiosus Philologiae. Segundo Herrero (1988: 17), Wolf teria definido filologia como o “estado do que é necessario para conhecer a correta interpretagao de um texto literario”. ogi ainda no séc. XVIII, parecia continuar polissémico, pois em Bluteau (1712 (2000), +.VI: 482) apresentam-se duas definicdes, uma mais ampla e outra mais restrita (nas trés linhas finais a seguix): PHILOLOGIA. He palavra Grega composta de Philos, Amigo, & Logos, discurso; & Philologia val o mesmo que Estudo das le tras humanas, comegando da Grammatica, (que antigamente ‘era a parte principal da Philologia,) & proseguindo com a elo- quencia Oratoria, & Poetica, com as noticias da Historia an- tiga, & moderna, com a intelligencia, interpretagio, 8¢ Critica dos Authores, com a erudicio sagrada, & profana, & géralmen- te com a comprehensa6, &¢ applicagio de todas as cousas, que podem ornar 0 engenho, & discurso humano. Rigorosamente fallando, Philologia he a parte das sciencias, que tem por ob- Jjecto as palavras, & propricdades dellas. Um século depois 0 termo nfo deixaria de designar aquele conceito amplo, relacionado 3 interpretagio de tex- inrRopugso «17 to, Isto € 0 que se infere da definigio apresentada por Sil- va (1813 [1922], t. 2: 446): PHILOLOGIA, s.f.A arte, que trata da intelligencia, e interpre taco critica grammatical, ou thetorica dos Autores, das anti- guidades, historias, &c, E possivel constatar, porém, que em principios do séc. XX esse termo poderia ser utilizado enfocando-se especial- mente 0 estudo da lingua, ficando a interpretagio dos te tos como parte acess6ria — isto depreende-se de como L te deVasconcelos (1911 [1959: 9}) definia flologia portuguese: (..) © estudo da nossa lingua em toda a sua amplitude, no tempo e no espago, ¢ acessoriamente o da literatura, olhada sdbre tudo como documento formal da mesma lingua. Essa concepgio perduraria ainda pelo menos até meados daquele século, pois Silva Neto (1956a: 15) reiterou, décadas © de filologia portuguesa, bastante seme- Ihante Aquela, mas apresentada por Carolina Michaélis em suas prelesSes de 1911/1913 (cf Vasconcelos, s.d.; 156) [o ex- certo a seguir aparece de forma idéntica nessas duas obras]: ) 0 estado cientifico, hist6rico e comparado da lingua nacio- nal ema téda a sua amplitude, ndo s6 quanto & gramética (foné- tica, morfologia, sintaxe) ¢ quanto & etimologia, semasiologia, etc., mas também como Srgio da literatura e como manifesta- sao do espfrito nacional. Por volta dessa mesma época, porém, a definigao de fi- lologia como estudo do texto também. existia, pois Melo (1952: 54-5) defendia ser a filologia portuguesa: (..) © estado largo e profuindo dos textos de nossa lingua para atin~ gir em cheio a mensagem intelectual ou artistica néles contida, ny YQ) fy 18» mrRonuGio A cRiTICA TaxTUAL também circulava uma ia, pois Bueno (1946 Alguns anos antes, no enta definiggo bem mais ampla de [1959: 22}) assim a delimitava: O conhecimento da civilizagio de um povo, num dado mo- mento da sua histéria, através dos seus monumentos liters ios (...) Contemporaneamente, 0 termo filologia, como jé se viu mais acima pelo verbete do Dicionério Houaiss, continua a ser empregado de forma polissémica, mas ha uma tendén- cia a se associar esse termo ao estudo do texto, reservando- se o termo lingiiistica para identificar estudo cientifico da linguagem humana. Seguindo essa tendéncia, emprega-se aqui © termo filolagia para designar o estudo global de um texto, ou seja,a exploracdo exaustiva e conjunta dos mais variados as- pectos de um texto: lingiiistic, literitio, ctitico-textual, s6- cio-histérico, ete Para finalizar esta sego ser de grande proveito conhecer ‘um pouco mais quais seriam as tarefas do critico textual. Uma visio expandida dessas tarefas foi exposta de forma bastante instrutiva por Carvalho e Silva (1994: 59-60): + A definicio do conceito, do objeto, do método ¢ das f- nalidades da ciéncia e das diferentes épocas da sua evolucio. + O estudo e clasificagio dos textos e das edigdes, e, nos 250s de ditvida, a averiguagio da sua autenticidade e a fan- damentada identificagio de textos apécrifos ¢ de edges frau- dulentas (contrafacdes) + O exame da tradiglo textual e da fidelidade das transcri- 962s, cOpias e edigdes + A pesquisa da génese dos textos, sem deixar de lado qual- quer elemento (inclusive fréginentos textuais) que possa con- twibuir para as conclusdes sobre o labor autoral. ietnopugko «19 + A fixagdo de principios que devem orientar 0 trabalho da reproduio e da claboragao de todos os tipos de edigdes de textos. + A aplicagio de tais pring tes tipos de textos, eendo em vista os contextos hist turais em que es + O estabelecimento de normas gerais e de normas espe- cificas para a conversio dos textos orais em textos escrito. * A indicagio dos pressupostos filolégicos para a boa rea~ lizagio da traducio dos textos. * A organizagio dos planos de publicagio das obras avulsas ou das obras completas de determinado autor, apoiada em ri- goroso levantamento de dados hist6rico-culeurais e biobiblio~ grificos; e a formulagio de normas editoriais para cada caso em exame, + A preparagio de edigdes fidedignas ou de edigdes eriti- cas, enriquecidas, sempre que recomendével, de estudos pré- vvios, notas explicativas ou exegéticas destinadas a valorizar © labor autoral ¢ normas gerais a diferen- ico-cal- 1.4. CONTRIBUIGGES Com certeza a contribuigio mais evidente e importante da critica textual & a recuperasio do patriménio cultural escrito de uma dada cultura, Assim como se restauram pinturas, escul- tras, igrejas e diversos outros bens culturais da humanida- de,a fim de que mantenham a forma dada por seu autor in- telectual, igualmente restauram-se os livros em termos tan- to fisicos (recuperagio da folha, da encaderagio, da capa, etc.) quanto de seu contetido (recuperagio dos textos) Considerando que, apés se ter restituido a forma genui- na de um texto escrito, ele é, via de regra, publicado nova mente, contribui-se também, assim, para a transmissfo e pre- servagio desse patriménie: colabora-se para a transmissio dos 20 + uwrnopucho A circa rexruAL textos, porque, a0 se publicar um texto, este torna-se nova- mente acessivel 20 piblico leitor; contribui-se para a sua preservagdo, porque se assegura sua subsisténcia através de re~ gistro em novos e modernos suportes materiais, que aumen- tarlo sua longevidade. Nio é necessério muito esforgo para se perceber a vasta extensio do dominio do conhecimento humano que se be- neficia do exercicio da critica textual: basta dizer simplesmen- te que tem impacto sobre toda atividade que se utiliza do texto escrito como fonte, Exemplificar cada uma dessas atividades, sa- lientando a importincia da utilizagio de textos fidedignos em cada caso, é uma tarefa praticamente infindavel, dada a vas- tidio dessas atividades. Nio se pode, porém, deixar de men- cionar duas delas: 0s estudos lingtifsticos e literdrios No dominio dos estudos lingiistias, os textos escritos, nao raramente, io utilizados como corpus, isto 6, fonte de dados para o conhecimento da lingua. Uma descricio lingiiistica sé tem validade se, de fato, os textos adotados como fonte de da- dos espelharem o emprego efetivo da lingua (ainda que ape- nas na sua modalidade escrita): textos com deturpacdes levam uum lingilista a considerar, como atestagio de uma palivra ou de uma estrutura ln algo que € simplesmente erro de cépia e que, portanto, nio reflete 0 uso real da lingua. Um caso digno de mengio em lingua portuguesa é 0 da palavra cofie: Machado (1995, vol. II:177) registra no verbete respectivo a ocorréncia dessa palavra jé no séc. XIV, mais es- pecificamente na Demanda do Santo Graal. Entretanto, sabe- se, desde a reseniha dessa edigio feita por Piel (1945), que se trata de um erro do editor: assim, embora tenha lido em sua primeira edi¢do “Pois assi 6, disse Galvam, eu irei buscar, preto ou longe unt cofre (..)” (cap. XLI, § 271; Magne, 1944, vol. I: 354, itilico nosso), jé na segunda edigo leu correta- mrRODUGAO # 2t mente “Pois assi , disse Galvam, en irei buscar, preto ou lon- ge wo soterre (...)” (Magne, 1970: 5, itélico nosso). Ou seja, © que havia sido lido como um cofre era, na verdade, u 0 50- terre (i, &,“onde o enterre”), pois o cavaleiro Galvio estava procurando lugar para enterrar o rei Bandemaguz, que aca- bara de morrer. J& no dominio dos estudos literdrios, os textos escritos sio ainda mais essen que sio a principal forma de expressio da literatura — principal, mas certamente nio a ‘inica, pois no se pode esquecer da literatura oral, em que, alifs, se fundamenta a produgio postica primitiva no apenas grega na Antiguidade mas também vernacular na Idade Média, Considerando, porém, teratura escrita, a contribuicio da critica textual estd em assegurar que 0 critico literdrio possa exercer sua fungio com base em um testemunho que efetivamente reproduz 2 forma do texto que o autor Ihe den, ou seja, sua forma genuina. Ainda que se argumente que é legitimo realizar uma ané- lise literdria voltada para a forma como o piblico-leitor per- cebe um dado texto independentemente de sua forma ser genuina ou néo, tal argumento néo invalida 0 fato de que é igualmente legitimo realizar outros tipos de anilise, como aquelas voltadas para o texto como ato de criagao literdcia so- cio-historicamente contextualizado, caso em que é fandaren- tal saber se o testemunho do texto em estudo é ou nio fiel & forma que o autor lhe deu. Como exemplo iustrativo para essa questio, pode-se citar a anilise literitia do poema “Aporo”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), realizada por Lima (1968: 188-9) ‘Apés apresentar uma transcri¢ao desse poema, da qual se re~ produz abaixo a primeira estrofe 22 « inrnopugie A calrica reeTUAL Um inseto cava cava sem alarme perfiamando a terra sem achar escape. comenta 0 czitico: “A escavagio do inseto perfiama a terra, ‘mas a escava sem perfurar, sem achar escape” (itilico de Lima). Considerando a estrofe tal qual acima reproduzida, nio hi absolutamente nada que se possa objetar em relagio a0 co~ mentirio do critico. © problema esté, porém, no fato de que essa estrofe apresenta um erro, pois a forma que Drummond (cf Andrade, 1945: 54) havia Ihe dado, como se verifica na primeira edi¢io da obra em que veio a lume (A Rosa do Pov), tinha como terceiro verso 0 trecho “perfurando a ter 1°. Como se vé, diante do texto genuiino, o comentirio do 0 deixa de ter validade: o choque de idéias assinalado, i. & “escava sem perfirrar”, simplesmente nao existe naquela cestrofe — ha, na verdade, um refor¢o, pois 0 inseto cava e, por consegiiéncia, perfura. Como nio consta em Lima (1968) a edigio utilizada como modelo para a transcriggo que reali- zou, nao é possivel verificar a origem da forma nao-genui- na. Independentemente da origem, é fato que a forma “per- famando” nio parece ser atribuivel 2 Drummond, o que significa que nio pode ser considerada em uma anilise de abordagem s6cio-histérica, em que se leva em conta a von- tade autoral. 1.5, TRANSDISCIPLINARIDADE Umna das caracteristicas mais instigantes da critica textual € sua transdisciplinaridade. Para o efetivo exercicio da fixagio de textos sempre necessirio um conjunto muito diversifi- cado de conhecimentos, que obriga o trinsito por diversas reas do conhecimento. neraoDugho « 2 HA algumas éreas em especial que tém impacto direto so- bre a atividade do critico textual: a paleografia, a diplom a codicologia, a bibliografia material e a lingifstica. 1.5.1, Paleografia A paleografia pode ser definida, de uma forma bastante bi- sica, como 0 estudo das escritas antigas. Modernamente, apre- senta finalidade tanto teérica quanto pragmética.A finalida- de tebrica manifesta-se na preocupagio em se entender como historicamente os sistemas de es jfia finalidade pragmatica evidencia-se na capacitagio de lei- tores modernos para avaliarem a autenticidade de um do- cumento, com base na sua escrita, e de interpretarem ade- quadamente as escritas do passado. Sua constitui¢do como campo de conhecimento sistema- tizado costuma ser situada no século XVII. Em viagem pela Europa, 0 jesuita Daniel van Papenbroeck (1628-1714) teria constatado a existéncia de muitos documentos falsos, o que 6 teria levado a escrever a obra Propylaeum Antiquarium circa Veri ac Falsi Diserimen in Vetustis Membranis (Antuéepia, 1675), onde apresenta critérios para discernir documentos falsos de verdadeiros: como subsidio 2 esse julgamento, Papenbroeck apresenta uma classificacio das diferentes escritas. Tentando responder is criticas deste aos documentos da Abadia de Saint- Denis, o monge beneditino Jean Mabillon (1632-1707) redi- i ica Libri IV (Paris, 1681),em que termo que nomeia esse campo de estudo sé apareceria com a obra Palacagraphia Graeca Sive de Ortu et Processu Litterarum Graecarum (Paris, 1708), escrita pelo também beneditino Ber- nard de Montfiucon (1655-1741), "A relevincia da paleografia para o critico textual é bas- (x evidente: para se fixar a forma genuina de um texto, 24 INTRODUCAO A ERITICA TEXTUAL € necessirio ser capaz de decodificar a escrita em que seus testemunhos estio lavrados. & muito comum, aliés, existirem edigdes de texto que apresentam falhas decorrentes de equi- voco na leitura do modelo por parte do editor. Dada a importincia das informagées de natureza paleo~ grifica para a compreensio da leivura das fontes realizada pelo ctitico textual, pode-se incluir em edigdes de texto mais eru- ditas uma breve seco dedicada a comentarios dessa natureza. Nessa se¢o costuma-se abordar aspectos como os seguintes: 4) classificagdo da escrita, localizagio e datagi b) descriggo sucinta de caracteristicas da escrita, a saber: 2 morfologia das letras (sua forma), 0 seu tragado ou ductus (or~ dem de sucessio e sentido dos tragos de uma letra), o éngulo (telagio entre os tragos verticais das letras e 2 pauta horizontal a escrita), o médulo (dimensio das letras em termos de pau- ta) € 0 peso (relagio entre tragos finos e grossos das letr: ) descrigo sucinta do sistema de sinais abreviativos em- pregado na referida escrita; 4d) descrigo dos outros elementos nao-alfabéticos exis- tentes e de seu valor geral: nitmeros, diacriticos, sinais de pon- tuacio, separagio vocabular intralinear ¢ translinear, paragra~ facto, etc; €) descrigdo de pontos de dificuldade na leitura e as so~ lugdes adotadas. Embora haja hoje em dia disponivel no mercado biblio- gratia introdutéria em paleografia relativamente variada (p. ex., Batelli, 1999; Stiennon, 1999; Cencetti, 1997; Bischoff, 1997;'Terrero, 1999), obras em lingua portuguesa ou voltadas para a escrita latina no mundo lus6fono sfo muito raras: den- tte os textos mais gerais, podem-se citar Cruz (1987), Santos (1994, 2000) e Berwanger & Leal (1995). Sua leitura, porém, deve ser complementada com a pritica efetiva de contato com textos lavrados nas mais diferentes escritas, 0 que pode ser N neraopucko « 25 feito utilizando-se as reprodugdes fac-similares presentes nos Albuns de paleografiat voltados para documentos portague~ ses e/ou brasileitos, tais como Burnam (1912-1925); Costa (1997);Valente (1983); Nunes (1984); Dias, Marques & Ro- drignes (1987); ¢ Acioli (1994) ~ infelizmente quase todos esgotados, mas encontriveis em bibliotecas académicas. jomatica Pode-se definir basicamente a diplomdtica como 0 estudo de documentos (em especial, os juridicos). Deve-se entender aqui por documento, em um sentido estrito, toda noticia escita de algum acontecimento. ‘As origens da diplomitica esto fortemente entrelagadas com as da paleografia,j& que os tratados mais antigos visavam 2 orientar a avaliagdo da autenticidade de documentos legais, tanto ateavés de sua escrita quando de sua forma ¢ de seu con- como campo de conhecimento smatizado remonta, assim, 3 j mencionada disputa entre Papenbroeck ¢ Mabillon (podendo ser arribuida a este, em sua jf teferida obra de 1681, cunhagem do nome deste campo). Os comhecimentos diplomaticos so especialmente rele- ‘vantes para o critico textual que edita documentos.A decifia- io e a reprodugio de um documento podem ser realizadas ‘com mais seguranga e propriedade quando se tem conscién— cia de como exam produzidos os documentos, em que clas ses se distribufam e como se estruturavam internamente, so- bretudo porque apresentavam constantes formais em termos tanto estruturais quanto lingiifsticos, para abrevacurae 5)se para portugues Nunes (1981) e Fle~ ODE d y y r > yey y orion, oes 5 : t 26 « mTRopucho A entice T=xTUAL ‘Tratados introdutérios modernos de diplomitica aplica~ dos especificamente a documentos portugueses parecer ine~ xistir, mas podem-se obter informagées relevantes em Mar- ques (1963-1971, vol. 1: 823-8), Berwanger & Leal (1995) ¢ Cruz (1987); uma visio hist6rica recente dessa disciplina em Portugal aparece em Coelho (1991). Dada essa escassez no dominio luséfono, pode-se recorrer 4 leitura de obras basea~ das especialmente no dominio hispanico, o que permite ain- da que se tenha uma visio ibero-rominica do tema: atual~ mente encontram-se disponiveis manuais espanhéis como 0 de Tamayo (1996) e Terrero (1999). 1.5.3. Codicologia consiste basicamente no estudo da thonica do livro manuscrito (i. 6, do cédice). Esse termo, que tem sua pa~ ternidade reivindicada por Dain (1975: 76), é empregado atualmente, porém, em um sentido mais estrito do que aque- le postulado por quem o cunhou, Dain (1975: 77) conside- rava como misses e dominio da codicologia a historia do ma- nuscrito,a hist6ria das colegdes de manuscritos, investigages sobre a localizacéo atual dos manuscritos, problemas de cata~ logagio, repertérios de catélogos, 0 comércio dos manuscritos, sua utilizagio, etc.,sendo do escopo da paleagrafia 0 estudo da escrita e da matéria escript6ria, da confec¢io do livzo e de sua ilustragio, ¢ 0 exame de sua “arquitetara”; mas obras mais re~ centes tendem 2 redistribuir as tarefas dos dois campos do co- nhecimento mencionados: Lemaire (1989: 3) postula dever @ g ( ‘codicologia fixar-se sobretudo em compreender os diversos aspectos da confec¢io material primitiva do cédice. f Para o critico textual, a codicologia é de grande <2 | cia, pois fornece informages que permitem compreender al- gumas das razGes pelas quais os textos se modificam no pro- SN \ etRoDUGAO «27 cesso de sua transmissio. Saber, p.ex., que nos antigos reci tos em que se realizavam as cépias (chamados scriptoria) havia © babito de se desmembrar um cédice para que suas partes (0s cadernos) pudessem ser reproduzidas simultaneamente por diferentes copistas permite ao critico textual elaborar hi- péteses sobre por que certas cépias tém seu texto em ordem diferente de outras: possivelmente porque, a0 se recompor © cédice utilizado como modelo, teriam ocorrido equivocos na ordenagio de suas partes. ‘Além de permitir uma compreensio mais profunda do ‘processo de transmissio dos textos, os conhecimentos codico- Jégicos também sio utilizados mais pragmaticamente na des- crigdo de cédices,a qual deve constar na edigo de textos pre~ servados em manuscritos. Como orientago para essa desc ¢4o codicolégica, apresenta-se na pagina seguinte um guia isico’ (outros modelos podem sez consultadas em Bohigas, ‘Mundé & Soberanas, 1973-1974, e em Ruiz, 1988: 316-40). S/O guia de descrigao apresentado a seguir cobre aspectos es- senciais de um cédice, mas pode naturalmente ser estendido coma inclusio de detalhes que a tornem mais abrangente: po- de-se, p.ex.,incluir um diagrama com a composi¢io dos ca- dernos, identificando a natureza das faces dos pergaminhos (carne x pélo), rebarbas de Slios sem sua parte solid: regularidades, etc.; podem-se ainda acrescentar 0 inc explicit de cada texto, aspecto importante para textos até en- tio desconhecidos; e diversos outros aspectos. Por outro lado, 6 possivel, em nome da concisio, suprimir alguns dados ¢ eli- minar os titulos dos itens de descricdo, organizando assim as informagdes em um pardgrafo bastante compacto (sistema cortente em grandes catilogos de manuscritos). 7. Cersamente muites dos tsemos ompregades neste gin nfo so de dominio ger, sas grande parte deles ser expicada na segio 3.2, mais adiane 28 « wwrnopucio A cRitica rexruAL Guia Basico de Descrigo Codicolégica - Cota: cidade em que se encontra 0 cédice; nome da tuigio; colecéo de que faz parte; e nimero ou sigla de identificagao. 2. Datagao: ta (transcrever, informando félio € linha em que consta) ou inferida (apresentar justficativa). - Lugar de origem: explicito (transcrever, informando f6- Jio ¢ linha em que consta) ow inferido {apresentar justifi- cativa). Folha de rosto: Colofio: trans ou papel (certcec) ~ sendo membrandce espessura, cor e obediéncia 3 Lei de Gregory; sendo cartécco, informar tipo, linhas-d’égua (diregdo dis- tincia entre pontusais ¢ vergaturas), filigrana (descrigio da figura). ‘Composieo: nimero de flios; mimero ¢ estrutura dos c2- ddexnos (bina, ni, quaterno, ec.) formaato (inf etc) e dimensio dos flios (altura x largura, em milimetos). 8. Organizagio da pagina: dimensio da mancha; néimero de colinas; nitmero de linhes: pautedo; numeragao (foliagao [ntimero s6 no recto do folio} ou paginas [namero no ree- to € no verso); eclamos (auséncia ou presenca, localizagio, na pagina e freqiién inaturas (presenga ow auséncia, sisterna) 9. Particularidades: miniaturas (capitulares ornamentadas); ilumimuras; marcas especiais (carimbos, ex pessoais, etc) 10, Encadernacio: ipo (original ou nio-origin: material; natureza € cor da cobertura; decoragio; texto na capa; nervos no lombo. 11. Contedido: identificagio dos textos do cédice por f6li0(), informando autor ¢ obra. 12, Descrigdes prévias: bibliogratia. x IneTRODUGAO = 29 Como sugestio bibliogrifica introdutéria sobre codi- cologia, podem-se citar Dain (1975), Petrucci (1984), Ruiz (1988) e Lemaire (1989), além dos ricos vocabulirios da drea preparados por Muzerelle (1985), em francés, mas ja com tradugio para 0 espanhol datada de 1997, e por Arnall i Juan (2002), em catalio, porém com indice de correspondéncia pare o espanhol, francés ¢ italiano. No dominio lus6fono, 0 Gnico volume publicado com dados afins parece ser 0 de Nas- cimento & Diogo (1984). 15.4. Bi iiografia mat Um campo de conhecimento andlogo ao da codicologia & a bibliografia material, que consiste no estudo da técnica do li- 70 impress. Embora os estudos sobre imprensa em si nfo sejam tio re~ centes, data de pouco a constituigo de uma abordagem des- se tema diretamente ligada aos problemas de transmissio dos textos. Muitos dos trabalhos que contribuiram para essa nova abordagem derivam especialmente da experiéncia de estudio- sos de lingua inglesa na pritica de edigao e anilise de textos literérios dos sécs. XVI e XVII. Dentre esses estudos, certa~ mente destacam-se trabalhos como Greg (1914), McKerrow (1927), Bowers (1949, 1959, 1964) e Gaskell (1972). Como jé disse metaforicamente Greg (1914 [1967: 47)), € apenas através da aplicago de um método bibliogréfico rigoroso que a dltima gota de informagio pode ser extraida de um documento literétio. Dentre os instrumentos desse método, incluem-se naturalmente as técnicas de descri¢o bibliogréfica, as quais jé foram minuciosamente tratadas por [Bowers (1949). Embora nfo haja aqui espago para discutir de- {alhadamente os diversos aspectos a que se deve dar especial 30 # ivrmopucio A calrica rexTuAL :ncio na investiga¢io do livro impresso, nfo se pode deixar de listar itens que deve ser observados em sua descricio® Guia Bisico de Descrigio Bibliogréfica @ Identificagdo: nome do autor; titulo da obra; nome do edi- cal de publicagio; nome da editora e data de publicacio. 2. Folha de rosto: transcrigio. 3. Colofiio: transcrigéo. 4. Suporte material: tipo de papel; linhas-d’égua; filigeana 5. Composiciio: némeros de félios ou de pagin: estrutura dos cadernos; formato € dimensio dos folios. © Tivografia: dimensio da mancha; ndmero de colunas;nii- mero de linhas; espécie e dimensio dos tipos; capitulares; numeragio; reclamos; assinaturas. 7. Particularidades: decoragdes;ilustragdes; marcas especiais. 8. Encadernacio: tipo; dimensio; material; natureza e cor da cobertura; decoragio; texto na capa;nervos no lombo. 9. Contetido: identificagio das partes do texto por pigina. (@ Exemplar examinado: cota ¢ nome da instituigdo de- tentora, 11. Descrigdes prévias: bibliografia. Apesar de o livro manuscrito se constituir por um pro- cess0 distinto do impresso, hé inegavelmente diversos aspec- tos comuns a ambos, como se pode verificar através da com paracio deste Giltimo guia e do exposto na segio anterior. Para exemplo interessante de descrigo de livro manuscrito e de impresso de uma mesma tradi¢io em lingua portuguesa, po- de-se consultar 0 primeiro volume da edigio das Vidas ¢ Pai- 8, Como orientagio pars rilisaio de uma dscrgio bibliogsifica,podem-se ain «ha consular Diss (1994) os dcionirios e especidade de Fara & Peicio (1988) de Sous, iwtRoDuGko « 31 .xtes das Apéstolos, de responsabilidade de Cepeda (1982-1989): como sua edicio se baseia no texto presente no cédice alco— bacense CCXXXII/280 € no impresso de 1505, precede o \ texto critico uma minuciosa deserigo de ambos. Naturalmente uma descrigZo bibliogrifica bem executa~ da pressupée familiatidade com a sua terminologia, ainda que esta nio seja totalmente consensual. Para se ter uma idéia dos termos empregados na identificago das partes principais de tum livro impresso, pode-se consultar a descrigio figurativa a seguir (figura 3), adaptada para 0 portugués por Nascimento & Diogo (1984) As seis obras citadas logo no inicio desta sego so sufi- cientes para suprir 0 interessado de informagio sobre a bi- bliografia material, mas baseiam-se fundamentalmente no livro impresso em lingua inglesa; para os livros impressos em lingua portuguesa, nio parece haver até 0 momento nenhu- ‘ma obra introdutéria que siga a abordagem preconizada por aqueles autores. Existem, no entanto, bons titulos traduzidos para o portugués sobre o livro impresso, CE, p. ¢x., MicMur- trie (1982) ¢ Febvre & Martin (1992). Especificamente sobre a histéria da imprensa em Portugal, pode-se consulta, p. ex, Anselmo (1981, 1991); ¢,no Brasil, Martins (1996), Sodré (1966), Hallewell (1985) e Paixio (1996). 1.5.5, Lingiiistica A lingifstica, entendida como estudo cientifico da linguagem humana, tem, de todas as Seas j6 citadas,a rela¢io mais Sbvia e essencial com a critica textual, pois os textos tém como pi- lr a lingua. Certamente 0 primeito aspecto que deve ficar evidente & ( fato de que a adocéo de uma mentalidade purista ou nor- mativista quanto 3 lingua no exercfcio da critica textual tem 32 INTRODUGKO A GRITICA TEXTUAL Figura 3 — Partes principals do liveo (Gonte: Nascimento & Diogo, 1984: 98) Crear ¢ dacisto wide de JOSE MARDINEZ DE SOUSA, Disoneis 6 imariey kt Ube, Bas, Parts princpas do loo 4, adoro, past 21, carta 2, tranche, sobrecboyids, wine 22. tela de coberura afi, reife 25. marcas de scrnaturs 2 ecala corte de cabera AGbride ‘com ‘fietes 4 edie ‘exntonsiea, posta ia) ceademos 5. to abertura, feente, goteiea uma forte de diantsina, gotelre 1 de oe BESSRERER 5 . mio Tomko enn Toabo ‘margem interior comedian 5. entre nerves conindel (tio confundir com florio fnteretnio) lo 33. mugen de ebors 5 nerve 34. coluna de texto eben 55, Branco de scparagio de texto ome 35, margem de cone plase (proto on anteior pé 37. sobrecpa, sobrecobers, cami fe segunda cu psteri) 38. boca ‘efeitos nefastos.A confusio de perspectivas (cientifica x pu- rista/normativista) compromete seriamente o resultado no estabelecimento da forma genuina de um texto, pois o criti- HuTRODUGAO « 33 ‘co incauto acaba por fixar uma forma do texto em perfeita consonincia com os padrdes preconizados pelas graméticas normativas, mas completamente dissonante dos padrdes ge~ nuinamente empregados pelo autor do texto em edi¢ao. Na realidade, 6 verificademente comum esse tipo de adul- ‘teragio de textos no processo de edigio, pois com freqiiéncia procura-se fazer com que o texto editado se encaixe nas nor- mas das graméticas tradicionais. Melo (1988: 18) cita como exemplo de “corregio” de formas genuinas o fato de muitos editores modificarem, no texto de Iracema, de José de Alen- car, a seqincia genufna “Onde vai” (no cap. I) por “Aonde ~ certamente para subordinar o uso do advérbio 4 nor ma tradicional de que onde se utiliza para “sicuagio” e aonde para “direcio"”, 7 Dentre os varios ramos da lingtifstica,pode-se dizer que aquele que tem mais impacto sobre a edigio de textos é a lingisticahistbrica, pois a critica textual debruga-se amitide so- bre textos do passado, O desenvolvimento dos estudos diacr6~ nicos tem contribuido para a formagio de uma visio mais realista e abrangente da historia das linguas: atualmente os es- tudos diacrdnicos dialogam com diversas areas, permitindo luma percepgio mais agucada dos fendmenos lingiiisticos — Jcomo exemplo, pode-se citar a importincia dos estudos so- ciolingiifsticos na compreensio da variacio lingt racterfstica constitutiva da linguagem (cf., p. ex., Weinreich, Labov & Herzog, 1968; e Laboy, 1972). Embora todo critico textual deva necessariamente ter uma formagio lingtiistica ampla ¢ variada, para a edigio de textos a, em deiacardo com a propris hi no sé. XIV expresiria os valor CK COCEC 34 « vTREDUGKO A eRiTICA TEXTUAL do passado deve ainda possuir conhecimento aprofundado da Tingua da época.A aquisicio desse conhecimento dé-se efe- tivamente, em especial, pela leitura continuada de textos da época, fidedignamente estabelecidos. A esse proposito, diz Melo (1952: 53) Urge que o fildlogo e o lingitista procurem conhecer a lingua, isto 6 0$ textos, € ndo os gramiticos, muito menos os gramati- ¢queiros: conhecer 2 lingua, estudando-a com olhos de técnico € com olhos de artista, Sem divide € muito mais ficil conhecer rmeia diizia de compendios rangosos e sonolentos do que conhe~ cera lingua diretamente, pelos seus documentos e monumen- 10s, ~0 que demanda uma vida inteira de devogio,— mas é &te 0 sinico e verdadeiro caminho do flélogo (télico de Melo). Embora nfo se possa deixar de admitir que as graméti- cas tradicionais sejam relevantes no estudo de lingua” (pois registram padrdes que atuafrajm de forma coercitiva sobre ela), nio se pode pensar que seu conhecimento é suficiente para se saber como a lingua efetivamente foi ou é usada: hi, na verdade, nessas gramiticas uma mescla de descrigio de fa- tos reais de lingua ¢ de padres preconizados, mas niio neces- sariamente adotados pelos autores de textos. Modernamente, no entanto, além da leitura de textos do passado, o conhecimento da Kngua de épocas pretéritas pode ser complementado com a consulta a obras da especialidade, como manuais introdutérios (p. ex., Bueno, 1955; Silva Neto, 1957b; Melo, 1971; CAmara Jr., 1976; Teyssier, 1982; Fon seca, 1985; Castro et al., 1991)" graméticas histéricas (p. ex., 10, Para o conhecimento de graméticas da lingua portuguesa de 1500 1920, pode eraopugio # 33 ralmente acrescentados no apenas outros relevantes mas tam~ ‘bém estudos de tema particular, aqui omitidos em nome da concisio, Nao se pode,no entanto, deixar de fazer men¢io aos dicionérios, instrumentos de grande importincia: hi os especi- ficamente etimol6gicos (p. ex., Machado, 1952; Cunha, 1982; Corominas & Pacual, 1980-1991) e aqueles nio necessaria- mente etimolégicos mas de interesse hist6rico (p. ex., Blu teau, 1712-1721, 1727-1728; Silva, 1789; Viterbo, 1798; Sil- ‘va, 1813): Como os dicionérios tém sempre suas limitacées, a consulta a glossirios (que eventualmente acompanham a edi- ‘go de um texto) costuma ser de grande auxilio: além dos vo~ Tumes da colecio Dicionério da Lingua Portuguesa: Textos e Vaca- buldrios Berardinelli, 1963; Gomes Filho, 1963-1964; Pereira, 1964; Rossi, Mota, Matos & Sampaio, 1965; Pereira Filho, 1965; Cunha, 1966; Grillo, 1966; Cunha et al., 1966; e Be- rardinelli & Menegaz, 1968), ha amplos glossarios como do Cancioneiro da Ajuda (Vasconcelos, 1920), das Poesias de S4 de Miranda (Carvalho, 1953), das Cantigas de Santa Maria (Mettmann, 1972), € da Vida ¢ Feitos de Jilio César (Mateus, 1974-1992). capiTULo 2 BREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL ‘A historia da critica textual & bastante complexa, ¢ no apenas porque suas origens remontam para mais de dois mil anos atrés: sen progresso deu-se através de um conjunto de ages que ora a tangenciavam, ora 2 abordavam diretamente, além de ter sido exercida historicamente sobre fontes de na~ tureza distinta — primeiramente sobre textos pagios gregos ¢, em seguida, latinos; depois sobre textos religiosos (em espe cial, o Novo Testamento); e, por fim, textos em verndculo (i, é em linguas no-cléssicas), Foi, enfim, desse conjunto hetero- géneo de atividades que se constivuiram técnicas, se sedimen- taram priticas, se consolidaram métodos e, inevitavelmente, se formaram polémicas. Justamente por ser tio complexa, essa historia no po- der ser exposta aqui de forma minuciose, restando como al- ternativa abordé-la através de algumas de suas figuras mais marcantes. Para falar dessas figuras, serdo retomados aqui al~ guns dos dados ricamente coligidos e comentados, em espe- cial mas nfo apenas, por Pffeifer (1998, 1999) e por Reynolds & Wilson (1995). c COO ¢ 38 « uwTRODUGKO A calriCA THKTUAL 2.1. DA ANTIGUIDADE A IDADE MEDIA O primeiro grande momento da critica textual, pelo me- nos no Ocidente', situa-se na época dos primeiros diretores da Biblioteca de Alexandria (sécs. III a I a.C). Por ordem de Ptolomeu I, rei do Egito (de 306 2 283, a.C.), se teria constitufdo na cidade de Alexandria, situada no delta do Nilo, um centro de estudos, oficialmente chamado de Museum (um templo em honra das Musas, portanto), onde se reuniam estudiosos de diversas éreas. Em sua biblioteca, ha~ veria jA na primeira metade do sée. III a.C. por volta de c tenas de milhares de rolos de papiro, 20s quais se agre; posteriormente outros tantos mais em um anexo conhecido como Serapeum. Como nao se sabe quantos volumes seriam parte de apenas uma obra, nem quantos seriam cépias de uma mesma obra, o niimero de titulos existentes na biblioteca constitui um mistério.A destruicdo da biblioteca deu-se em 47 .C.,em um incéndio ocorrido durante a guerra de Jalio César contra o Egito. Dentre os diretores dessa biblioteca, destacam-se, no cam- po da critica textual, Zenédoto de Efeso (¢, 325-234 a. Aristéfanes de Bizancio (¢. 258-180 a.C.) e Aristarco de Sa- motricia (c. 216-144 a.C,). ‘Una das contribuigdes desses alexandrinos, que se dedi- caram em especial a obra de Homero, mas nio apenas, esti na constituigio de um sistema de critica (gr. Bi6pOaor, i. & “corregio”) baseado na utilizagio de sinais com a finalidade BREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL # 39 de explicitar seu julgamento quanto & genuinidade do texto. Desde Zenédoto (introdutor do primeiro dos sinais, 0 ébelo), ‘esse sistema foi cada vez mais se ampliando e, com o passar do tempo, adotavam-se no apenas novos usos para antigos sinais como também novos sinais’. Para se ter uma idéia desse sis- tema, apresenta-se abaixo uma descri¢o dele com base no uso que faria Aristarco, extraida de dados fornecidos por Gayo (1979-1980: 21-3), com algumas retificagSes aqui: 2) dbelo (—): verso apécrifo; ») anti-sigma (> ): verso destocado; 6) asterisco (x): verso incorreto repet 4) diple (>): remissio a comentario; ¢) diple peiestigmene (>: ): verso distinto em relago a0 tex- to de Zenédoto e em desacordo com outros comentadores; £) estigma (« ): verso duvidoso ou suspeit 8g) estigma com anti-sigma (# 3): verso apés © qual se ha~ via dado a0 texto nova disposigio; ¢ hy) sigma pontuado (C+): verso(s) transferido(6) para outro ponto do texto. ‘Além desses, podem-se citar ainda outros aparentemen- te nfo empregados por Aristarco: 0 cerdunio (T), utilizado por Arist6fanes para assinalar seqiiéncia de versos apécrifos; © anti-sigma com estigma (> +), empregado por outro alexan- Grino, Aristéhico, para marcar alterago na ordem de versos; © anti-sigma periestignene (+> +), presente em dois manuscri- tos dos sécs. IX-X. com a Ilada (Venetus A e Cdice Ve), mar~ cando conjunto de versos com mesmo sentido, mas com di- versas formas e de dificil escolha; o belo periestigmeno (=), presente no referido Venetus A, indicando corregées consi jo em outro lugar; 3. Isidoro de Sevih eal (0 cap. XI seus valores, 370-636 .C) dedica, em suas Ein tulad Dus sls das seen) & deserigio des segio espe sinaise de 40 « wrnopucio A caltica rexrunt deradas acertadas; © ébelo com asterisco (—X), também no Venetus A, identificando palavras cujo lugar néo se acha; e, por fim, 0 asterisco com dbelo (x—), existente no ji mencio- nado Cédice Ve, marcando supressio de asterisco. Entre os principios que Aristarco pregava no exercicio da cexitica, consta o de que cada autor é 0 seu melhor intérprete, ou seja, deve-se esclarecer uma passagern com outras passagens do ‘mesmo autor — aspecto este que, de certa forma, anteciparia 0 tradicional critério do sus scibendi (tratado mais adiante na 156), que também era empregado na discussio da genui- nidade de certas formas lingiiisticas dos textos, especialmente homéricos. ‘Como assinalam Reynolds & Wilson (1995: 15-25), deve se reconhecer que a atuagio dos alexandrinos teve impacto significativo sobre a tradicZo dos textos gregos clissicos: no apenas fixaram a forma dos textos de autores comumente li- dos, como também se empenharam na imposigao dessa for ma como fonte para c6pias posteriores; além disso, criaram auxilios ao leitor, através de transliterago de textos em outros alfabetos para o utilizado na época, do melhoramento do sis- tema de pontuacio e da cria¢Zo de um sistema de acentuagao (este, atribuido a Aristéfanes). As dificuldades na fixagio de textos fidedignos levaram-nos ainda & elaboragio de comen- trios para discutir problemas e propor interpretag6es: por isso, mesmo que certos estudiosos mio tenham produzido edigdes ctiticas a0 longo de sua vido, podem-se ver suas contribui- ‘Ges para a critica textual, em alguns casos, na discussio de va~ riantes textuais em seus comenticios, Convém lembrar ainda que o sistema alexandrino, baseado em sinais ¢ em comenti- rios, 1 importante para assegurar a transmissio 4 posteridade do que existia (mesmo do que nfo fosse tido na época como genuino), pois, em vez de suprimirem ou modificarem 0 que considerassem ndo-genuino, apenas o assinalavam, DREVE HISTORICO DA CRiricA TEXTUAE « 41 Rivalizaria com os alexandrinos o estéico Crates de Ma- Jos (¢ 200-140 a.C.), diretor da Biblioteca de Pérgamo (ci- dade da antiga Asia Menor, atualmente tertitério turco), pro- vavelmente fundada por ordem do rei Eumenes Il (197-159 2.C). Comentador de textos de Homero, Crates diferiria de Aristarco em suas leituras ¢ interpretagdes. Sua oposi¢io, alis, se consubstanciaria em uma das grandes controvérsi lingitfsticas da Antiguidade (cf. Robins, 1983: 15-7): 0s ale~ xandrinos defendiam 0 principio da analogia (organizagio re~ gular da lingua), enquanto os estdicos sustentavam o principio da anomalia (organizacio suscetivel a irregularidades). Natu ralmente essas concepgées refletiam-se no estabelecimento dos textos do passado: Gayo (1979-1980: 20) assinala que Aristarco tera preferido as formas analégicas no estabeleci- mento do texto homérico, regularizando a forma dos lexe- mas ¢ das desinéncias nominais e verbais. ‘No mundo romano, merecem especial atengio Marco Te- réncio Vartio (116-27 a.C.) e M. Vilério Probo (20-108 d.C.), embora L. Elio Estilo (sécs, II-T a.C.), que teria realizado es- tudos sobre Plauto nos moldes alexandrinos, pareca ter sido © primeiro dos latinos a empregar os sinais criticos alexandri nos. Varrio, dentre cujas contribuigées esti o estabelecimento do cinon das pecas de Plauto tidas como genuinas, reservava em seu paradigma de estudo do texto um espaco proprio para © exercicio da critica: é o que se depreende de sua divisio des- se estudo, de acordo com Elia (1995: 83), em lectio (leitura ex- pressiva), enaratio (explicacio das passagens obscuras), ement~ datio (revisio e cortegio) e iudicium (comentirio literstio), sendo que a emendatio era especificamente definida, segundo Reynolds & Wilson (1995: 30), como recomrectio enronum qui per seripturam dictionemve fiunt (18, “corregio dos eros que se fa~ zemm pela escrita e pela di¢io”). 42 « nrmopucko A cniTicn TexruaL Avangando no tempo, deve-se citar Origenes (185-253 d.C):€ de sua autoria uma adaptago do Antigo Téstamento, chamada de Hexapla, na qual empregou sinais como os dos alexandrinos ao comparar excertos gregos ¢ hebraicos. Se- gundo Reynolds & Wilson (1995: 54), seu trabalho anteci~ paria, de certa forma, o sistema de aparato critico atualmen- te empregado, pois apresentava 0s textos e suas tradugdes em colunas paralelas, Ainda considerando 0 texto biblico, nao se pode deixar de mencionar Sio Jerénimo (c. 347-420 .C. ‘© qual,a pedido do Papa Damaso (c 305-384 d.C.) por volta do ano de 382, preparou uma versio latina revista da Biblia baseada em antigos manuscritos gregos, 2 qual, conhecida como Vilgata (vulgata editio = edigSo popular), foi conside- da o texto legitimo pela Igreja Catélica a partir do Con- de Trento (1545-63). Segundo Metzger (1992: 153), Jerdnimo seria um critico textual mais sagaz do que Ori- genes, estando realmente ciente das variedades de erros que surgiam na transcrigio de manuscritos, o que se verifica atra~ vés de sua mengio 4 possibilidade de confusio de letras simi- lares, confusio de abreviaturas, ditografias e haplografias (res- pectivamente, repeti¢ao e supressio de partes iguais em uma seqiiéncia), roca de lugar de letras, assimilagSes, transposiges ¢ emendas deliberadas de escribas'. Mas € 0 bizantino Demétrio Triclinio, que viveu em Tessalénica entre 1305-1320, quem deveria, na opiniio de Reynolds & Wilson (1995: 79), ser considerado © precursor dos editores modernos, pois executou busca de novos ma~ nuscritos para melhorar os textos com que lidava, registran- do em notas as diferentes leituras dos testemunhos que con- dx eéeniea do lero ceo de corres, apesentada por As Wo So Jerdnime,ineluindose 0 pro 93), BRAVE HISTORIC DA CRITICA TEXTUAL # 43 sultara e acrescentando de préprio punho uma boa quanti- dade de aiteracdes. 2.2, DO RENASCIMENTO AO SECULO XIX Segundo Pifeifer (1999: 42), teria existido na Itilia renas- centista uma cadeia de cinco gerag6es de estudiosos, compa ravel 4 dos alexandrinos. Na primeira geragio, encontra-se Francesco Petrarca (1304-74), que teria aberto caminho para © ressurgimento da critica textual: sua especial admiracio por autores latinos levou-o nio apenas a localizar ¢ transcrever textos, mas também a tentar restitué-los onde achasse escarem. corrompidos; nos casos em que teve a oportunidade de com- parar dois manuscritos de um texto, registro variantes emendou passagens. A essa mesmna geragao, pertenceu Boc- caccio (1313-75), que no chegaria a exercer a critica textual com a mesma sofisticasio de seu contemporaneo, restringin~ do-se & recuperagio € & tradugio de obras de autores latinos. Na segunda geragio, insere-se Coluccio Salutati (1331-1406), que, além de ter sido um colecionador ativo de manuscritos, ‘mostrou notivel conhecimento das formas como os textos se haviam corrompido ¢ realizou contribuigdes para a criti- a textual (como, p. ex., através de corregSes de textos). Na terceira geragio, encaixam-se Niccold Niecoli (1363-1437), infatigivel na coleta e cépia de manuscritos real prio punho, que os comparava e organizava em pardgrafos com adigio de titulos; e Poggio Bracciolini (1380-1459), évi- do cagador de manuscritos, que tentava, em suas cOpias, pro duzir um texto legivel, corrigindo os erros Sbvios dos copis- tas, Na quarta geragio acha-se Lorenzo Valla (1407-5 ponsavel por um passo decisivo na reintrodugao da textual: criticou ferozmente os esforgos de seus contempori- neos em restaurar textos corrompidos, e realizou, ele proprio, 44 w INrRODUGHO A CRITICATEXTUAL suas emendas; tendo comparado o texto do Novo Testamenio da Vulgata de Sao Jerénimo com o texto grego e com textos patristicos, assinalou-Ihe os erros. No final dessa cadeia, ja na quinta geragio, situa-se Angelo Ambrosini (1454-94), tam- bém chamado Poliziano, Este, que se dedicou no apenas a0 mundo latino mas também ao grego, tera sido 0 primeiro a realizar comparagées integrais de manuscritos, registrando cuidadosamente notas na sua cOpia. Insistia na importincia do conhecimento dos melhores manuscritos como defesa contra as conjecturas precipitadas de seus contempordneos: segun- do ele, devia-se partir do estado mais antigo recuperivel de uma tradigo. Antecipou o principio da eliminatio codicum des- criptorum (cf. explicagdo na p. 146) através do estudo da rela- cdo de manuscritos com a obra de Cicero, ¢ igualmente com a deValério Flaco, Reynolds & Wilson (1995: 138) assinalam que, assim como honve estudiosos escrupulosos nesse tempo (em especial, no séc. XV), existiram também aficionados cujos limites de for- magio devem ter propiciado deturpacdes nio-intencionais no processo de corre¢io dos textos: haveria a tentagio de os embelezar, de produzir textos legiveis e elegantes ~ razio pela qual se deve utilizar com precaugio testemunhos des- sa época A partir de fins do séc. XY, difunde-se a imprensa de tipos, miéveis, 0 que certamente teve impacto sobre 0 processo de transmissio dos textos. Mas, segundo Pfeifer (1999: 50), num primeiro momento nio teria gerado progresso real no esta- belecimento de textos, ja que freqientemente se publicava um texto extraido de um manuscrito ~ no necessariamen- reo melhor—sem 0 editar:se, por um lado, possbilitava a cir- culagéo e a integracio de textos aos acervos particulares em. constituigo, por outro, estaria difundindo textos ruins. A im- pressio de textos latinos foi no principio mais intensa do que DBREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL # 45 a de gregos: deve-se a Aldo Manuzio (1449-1515), admira- dor ¢ impressor de obras de Poliziano, uma considerével par- te de primeiras edigdes em grego (de texto em latim, apenas uma primeira edigio) em sua oficina na cidade de Veneza, Um dos colaboradores de Manuzio foi o cretense Marco ‘Musuro (1470-1517): em sua atividade de editor, teria com- parado manuscritos, organizando seus diferentes tipos de es- élios através de selegBes e combinacSes para que pudessem ser imptessos; ademais teria realizado corze¢des, eventualmen- te se excedendo, j4 que, na edigio de um poema de Mosco, teria inclufdo seis versos de sua propria autoria para sanar uma lacuna, Enquanto, no passado, a critica alexandrina se centrara principalmente em textos homéricos, a partir de Desiderius Erasmus (¢. 1469-1536), de Rotterdam, passa a receber espe- cial atengao a critica neotestamentéria, embora a critica bibli- ivesse sido abordada com especial rigor anteriormente por Valla, Erasmus, que também se ocupou da edi¢do de varios textos gregos e latinos, publicou sua edicéo do texto grego do Novo Testamento em 1516", na oficina de Froben na\cidade da Basiléia, Nao tendo conseguido nenhum manuscrito com 0 texto grego completo do NT, teri empregado mais de,um tes- temunho para certas partes, mas a base tera sido dois manus~ ctitos da biblioteca monéstica da Basiléia, dativeis do séc. XII (pertencentes & chamada Tiadiglo Bizantina, considerada 2 mais recente e mais pobre (cf. Aland & Aland, 1995: 4). Como 0 testemunho com 0 Livro da Revelagio (i. &, 0 Apocaipse) esta~ va mutilado, traduziu o trecho final (cap, 22, vers. 16-21) para 5. Segundo lembra Merger (1992 tretant, inks acorrido como smaico, greg e lating) realzads ses at. Comp impresdo do Nove Tstanent, cm ia Palit (com texto hebraico, ara 14, cidade espanhola de Alealé de Hena- 46 # INTRODUCKO A eRiTICA TEXTUAL © grego a partir da versio latina da Vidgata. O texto de Bras- mus tornou-se a base das edigdes que se sucederam, de for- ‘ma tal que acabou sendo considerado, por muito tempo, 0 texto padrio do Novo Testamento— especialmente a edigéo pu- blicada em 1550 por Robert Etienne (1503-59) -, ao qual se costuma referir como textus receptus. Essa designagio, de acordo com Metzger (1992: 105-6), derivaria de uma passa gem, dirigida ao leitor, presente na segunda (de 1633) das edigdes do NT realizadas pelos irmaos Elzevir na cidade de Leiden: Tésstum ergo habes, nunc ab omnibus receptum: in quo ni- hil immutatum aut coruptum damus (i. &,"Tens entio um tex- to, agora por todos recebido, no qual nada apresentamos de alterado ou corrompido”). ‘Ao que parece, seria do italiano Francesco Robortello (1516-67) a primeira tentativa de se redigir um breve manual de critica textual: sua dissertagdo De Arte Sive Ratione Corri- _gendi Antiquorum Libros Disputatio (Padua, 1557) trata de ques- t5es como o valor dos manuscritos antigos, principios que regem a arte da conjectura, classificagio das emendas. ‘Na Franga do séc. XVI, destacaram-se no campo da ctiti- ca textual figuras como Henri Etienne (f 1598), Adrien Tar nabe (1512-65), Denis Lambin (1520-72) e Joseph-Juste Scaliger (1540-1609). Henri, filho do ji mencionado Robert, {oi um fecundo editor, tendo publicado 74 textos gregos (18 deles, pela primeira vez), 58 latinos e ainda 3 hebraicos. Se~ gundo Pfeifer (1999: 109), diversas edigdes suas tornaram-se textos basicos por dois séculos ou mais, sem necessariamente terem constituido uma vantagem para os estudos clissicos, pois no seria um editor verdadeiramente critico ¢ cuidado- so. Jé Turnébe foi diretor da Imprensa Real e publicou di- versos textos gregos ¢ latinos, sendo uma de suas mais im- portantes obras de critica a miscelinia Adversarionum (P: 1564-1565), em que corrigiu e explicou diversas passagens BREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL # 47 de autores antigos. De acordo com Reynolds & Wilson (1995: 168), mesmo tendo seguido o método de corrigir tex- tos com base em outros testemunhos da sua época, Turnébe viu a necessidade de se utilizarem manuscritos mais antigos € melhores que os geralmente empregados nas primeiras im- presses; ademais, 6 admirado por sua intuigao, bom juizo € talento para a conjectura. Lambin, por sua vez, publicou uma grande colecio de textos latinos, tendo produzido edigées, que se tornaram referéncia até a de Lachmann (no séc. XIX). Scaliger, que preparou importante edigio de autores como Festo ¢ Manlio, aplicou-se especial- mente na edigio da crénica de Eusébio, baseando-se em ex- certos bizantinos e em Sao Jerénimo, cujos erros corrigiu: evi- déncias posteriores (em especial, a publicacdo de uma versio arménia quinhentista de Eusébio em 1818) viriam a confir- mar o trabalho de Scaliger. De acordo com Reynolds & son (1995: 170-1), Scaliger teria, em sua edi¢io de Catulo, tentado provar que, pela natureza das corrupgdes nos manus ctitos, todos eles descenderiam de um mesmo, antecipando assim a tradicional nogo de arguétipo; entretanto, sua atitu- de critica acentuada levou-o a equivocos ¢ excessivas liberda- des em relagio aos textos transmitidos. Embora nao tenha deixado legado tio marcante como os quatro acima citados, Isaac Casaubon (1559-1614) seria também digno de mengio, pois contribuiu especialmente para 0 progresso do conhecimento da obra Os Caracteres, de ‘Teofiasto, através de sua segunda edicio, publicada em 1599, na qual acrescentou cinco outros caracteres até entio des- conhecidos. Segundo Péfeifer (1999: 122), seria bastante con- servador no exercicio da critica textual, inistindo sobretudo na autoridade dos manuscritos, sem, entretanto, temer con~ Jjecturas mais ousadas. 48 » wrnoDucho A cRitica TEXTUAL Nos sécs. XVI ¢ XVII, na Holanda, destacar-se-iam outros 1542-75), Joest Lips (1547-1606), Frangois de Maulde (1536-97), Huig de Groot (1383-1645), Gerard Johann VoB (1577-1649) e seu fi- Iho Isaac VoB (1618-89), Daniel Heins (1580-1655) e seu filho Nicolzas Heins (1620-81), Johann Friedrich Gronov (1611- 71) e seu fitho Jakob Gronov (1645-1716). Destes merece especial mengio os quatro primeizos, pois, segundo Pffeifer (1999: 129), 0s outros teriam contribuido mais em termos de ampliagio ¢ de consolidagio do conhecimento jé constituido até entio do que em termos de originalidade. De Can editor de textos, em especial, gregos, terd sido a segunda ini- ciativa de redagao de um manual de critica textual: rata-se do ensaio De Ratione Emendandi Scriptores Graecos Syntagma Basiléia, 1566), no qual apresenta classificagio sistemética dos diferentes tipos de erro em textos gregos, distribuidos em classes como confusio de letras, divisio equivocada de pa~ lavras, omissbes, adicdes, transposicdes, assimilagio ou m4 compreensio de abreviaturas. Segundo Reynolds & Wilson (1995: 173), esse tratado, apesar de sistematizar os erros, apre- sentaria pouca coisa nova para os grandes criticos de sua épo- a, Ja Lips realizou importantes edigdes de autores gregos (como Euripides, S6focles ¢ Esquilo) e latinos (como Séneca, Tacito, Lucano ¢ Claudio), destacando-se ainda por ter con- centrado seus estudos na postura politica desses dltimos au- tores. De Maulde, tendo se dedicado & edigio de textos lati- nos, insistia em ser a conjectura sozinha inttil e perigosa, em dever haver um equilibrio adequado entre a autoridade do manuscrito ¢ a corre¢io ¢ ainda em ser a recensio uma tare- fa preliminar essencial para a edigdo. De Groot editou Luca~ 1no € Silio Itélico, ¢ publicou conjecturas sobre obras de S¢- neca eTicito, Ainda no séc, XVI, viria a lume outra obra que também discutia questdes de critica textual: trata-se do tex- [BREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL # 49 to De Arte Critica (Nuremberg, 1597), de autoria do alemio Kaspar Schoppe (1576-1649) Em fins do séc. XVII foram publicadas as obras do fran- cés Richard Simon (1638-1712), considerado por Metzger (1992: 155) o responsivel pela fiandamentaglo cientifica da critica sobre o Novo Testamento: uma de suas mais importantes obras foi a sua Histoire Critique du Texte du Nowveau Testament (Rotterdam, 1689) ¢ dentre suas contribuigdes estava a con vicglo de que o rastreamento da historia de textos antigos de- veria ser a base para a avaliagio dos manuuscritos e para a cons- titwigo de um texto verdadeiramente critico. Ainda nesse pe~ iodo, deve-se mencionar o suico Jean Le Clerc (1657-1736) 6 qual formulou, na sua obra Ars Critica (Amsterdam, 169 ‘uma primeira versio do principio a que se chama atualmen- te de lecto diffciior (cE. explicacio na Certamente constitui figura de destague em prinefpios do séc. XVIII o inglés Richard Bentley (1662-1742), cuja pro- dugio editorial f0i rica, abarcando autores como Calimaco, Horicio, Teréncio ¢ Manlio. Segundo Pffeifer (1999: 155), no haveria paralelo para Bentley em termos de critica con~ Jjectural na hist6ria da critica textual. Um exemplo de sua ousadia conjectural esté, como informa Reynolds & Wilson (1995: 179), na fibula da raposa, de Horacio (Epistolas, 1.7.29): insistindo que a raposa (lat. vulpeaula) nfio come gris, propu- ha como leitura esquilo (lat. nitedula), desconsiderando que a raposa teria sido escolhida por ser animal representativo de avidez, independentemente de suas caracteristicas natu~ rais, Dentre suas contribuigdes est a elucidagio do sistema métrico de autores latinos de drama, o que teve conseqiién- cias revolucionarias para o estabelecimento de seus textos. ‘Embora tivesse projeto de realizar uma nova edigfo do Novo ‘Testamento, nio através de reprodugio do textus receptus com 50 « ivrnopuche A caitica Texruat modificagdes, mas sim através de reconstrugio baseada nos ‘mais antigos manuscritos gregos, nlo conseguiu concluf-lo € publicé-la, A tarefi de realizar outra edigio do Novo Testamento, indo além do textus receptus, foi retomada sucessivamente por trés alemies: Johann Albrecht Bengel (1687-1752); Johann Jakob ‘Wetsstein (1693-1754) e Johann Jakob Griesbach (1745-1812). Suas edigdes do Novo Testamento foram publicadas, respecti- vamente, em 1734 (Tibingen), em 1751 (Amsterdam) e em 1775-1777 (Halle). Entre suas contribuigdes est’io os textos em que apresentaram ¢ defenderam os principios a serem adotados na edigio do Novo Tstamento: de Bengel, hd. 0 Gro- mon Novi Testamenti (Tiibingen, 1742); de Wetistein, os Pro- legomena ad Testamenti Graeci Editionem (Amsterdam, 1730);€ de Griesbach, o Preficio & sua segunda edi¢ao do Novo Testa- mento (Londzes/Halle, 1796-1806). Em fins do séc. XVII, uma das figuras de destaque na edi- fo de textos clissicos foi o alemio Friedrich August Wolf (1759-1824). Tendo se concentrado especialmente nas obras de Homero e Platio, publicou Prolegomena ad Homenim (Hal- le, 1795), obra em que se encontra a primeira tentativa met6- dica e seguramente embasada de reconstrugio da historia de um texto antigo. Segundo assinala Pffeifer (1999: 174), Wolf pretendia fornecer 2 base para um julgamento sobre o valor dos manuscritos com o texto de Homero e para a constitui- Go do texto que intencionava publicar, mas chegou 3 con- clusio de que seria impossivel reconstitnir o texto tal qual te- 6. A primeiea enzatva de organiza os princpios em forma dela sintsica parece re= {Aland (1995: 280-2), Exemplos serio apresentados na segio 6.1.2.4 mals aint. SREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL # $1 tia saido das mios do seu autor, sendo, porém, possivel tentar reconstituir 0 texto alexandrino, ou seja, o texto que os ale- xandrinos haviam fixado no séc. III a.C. 2.3. EPOCA MODERNA Certamente apenas apés as experiéncias editorais que se realizaram 20 longo de tantos séculos, foi possivel a consti- tuigio de métodos mais rigorosos para a fixago de textos. Deve-se ao alemao Karl Lachmann (1793-1851) a apre~ sentagio de uma sintese dessas experiéncias passadas, is quais também se agregaram suas proprias contribpigSes. Essa sin- tese, um marco na histéria da critica textual, constitui 0 que se passou a chamar de método lachmanniane, nd qual a critica do texto estaria dividida em duas partes: a reenso (lat. recen- sio) © 2 emenda (lat. emendatio): Seus principais trabalhos foram a edigio do Novo Téstamento (Berlim, 1831) e a do De Natura Renim (Berlim, 1850), de Lucrécio, em cujo preficio externa liza sua doutrina, De acordo com Timpanaro (2002: 77-8), 0 método de Lachmann engloba um conjunto de critérios especificos para a recensfo: 1) o repiidio da vulgata’ e a exigéncia de nio se recorrer inregularmente aos cédices, mas de os empregar como fun~ damento da edigio; 2) a desconfianga em relagio aos cédices da época hu- manistas 3) a reconstrugio da histéria do texto e, particularmente, das relagdes genealégicas que ocorrerem entre 0s manuscri- tos que subsistiram; ¢ 6 ds form do texto que pastow a ser reproduaida sucesivamente desde as cis ediges (Timmpanar, 2002:3). 82 » INTRODUCKO A CAITICA TEXTUAL 4) a formulagao de critérios para determinar mecanica- mente, sem se recorrer ao jufzo (lat. iudicium) do editor, qual, dentre varias ligdes, remonta a0 arqué! Embora quase todos esses critérios jé tivessem, de algu- ma forma, sido antecipados pelos seus predecessores, seria © quarto acima listado a sua contribuicio mais pessoal, na opinido de Timpanaro (loc. cit.). A orientagio proposta por Lachmann foi objeto de refinamentos e retificagdes por dois outros grandes estudiosos: Paul Maas (1880-1964), na sua ‘Texthritke (Leipzig, 1927); Giorgio Pasquali (1885-195: sua Storia della Tiadizione e Critica del Texto (Florenga, 1934). © modelo lachmanianno de critica textual foi especial- mente criticado, quase meio século depois, pelo francés Jo- seph Bédier (1864-1938).Embora tenha seguido 0 método de Lachmann em sua primeira édigao (de 1890) do poema medieval de Jean Renard, Lai de l’ Ombre, Bédier rejeitou-o a0 realizar a segunda (de 1913), convencido de que o méto~ do anteriormente seguido conduzia quase sempre & distribui- io do conjunto de manuscritos a uma tradigo de ramos bi- fidos, o que praticamente inviabilizava a escolha mecinica de variantes (baseada na prevaléncia numérica). Tendo retomado a classificagio dos manuscritos para sua segunda edi¢io, de- monstrou ser hipétese plausive] no apenas a classficago dos manuscritos ja anteriormente proposta por ele, mas ainda outras tantas clasificages. Em fungio disso, defendeu o mé- todo de se editar um texto com base em um “bom manus- crito”, publicado quase sem retoques e acompanhado de no- tas que marcam, segundo afirme o proprio Bédier (1928: 177), um retorno na diregio da técnica dos antigos humanistas. ‘© método proposto por Bédier nao escapou, porém, de severas criticas, tendo sido par elle (Paris, 1926), mas fi reiterado logo em seguida pelo BREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL « 53. préprio Bédier em seu famoso La Tiadition Manusorite du Lai de LOmbre: Réflerions sur VArt d'Eeditr les Ancens Textes Patis, 1928). Quentin, que se ocupou especialmente do texto da Valgata de Séo Jexénimo, acentuaria ainda mais o aspecto me- cinico da selegdo de variantes ao fandamentar sua proposta em dados estatisticos, enfitizando ainda a distingo entre ori- ginal ¢ arquétipo, Nas palavras do proprio Quentin (1926: 37): Empenho-me, entio, em retirar a ctitica editorial do terreno do original para a levat ao do arquétipo dos manuscritos con- servados. Rejeito, desde 0 primeiro minuto, todo olhar dize- cionado a liso primitiva. Néo reconhego nem erros nem fal- tas comuns, nem boas nem més ligdes, mas somente formas diversas do texto, baseado nas quais, por um método que se apsia em estatisticas rigorosas, delimito lias, depois classifico os manuscritos no delas e finalmente as familias entre si. Dessa classificagio re- sulta um einon etitico que impbe, para o estabelecimento do texto, uma regra de ferro ¢ assim logro reco: tipo que, em suma,é a forma do texto a mais préxima do ori~ ginal A qual se pode chegar por meio dos manuscritos conser- vados (tradugio nos: Embora a critica textual moderna tenha acabado por se polarizar fundamentalmente entre o método de Lachmann © o de Bédier,a investiga¢io na 4rea nio tem cessado desde ‘entio ¢ uma extensa e fecunda bibliografia de orientagio cada vex mais teérica tem sido publicada, Pode-se dizer, no entan- to, que uma das caracteristicas mais marcantes da critica tex- tual moderna é a especial atengio dedicada a textos em guas vernaculares, jé que, pelo menos até fins do séc. XIX, havia énfase — senfo exclusividade — em relagZo a textos pro- fanos e sagrados em linguas classicas. Dentro dessa orientago de buscar a especificidade metodolégica da edigio de textos o oO 54 « tneRopUcio A cRitica TEXTUAL em linguas modernas, encaixa-se, p. ex.,a chamada Teoria do Texto-Base (ing). Copy-Text) apresentada por Greg (1950-1951), cujo impacto na edicio de textos de autores americanos foi Giscutido por Tanselle (1987), 2.4. A CRITICA TEXTUAL EM PORTUGAL E NO BRASIL Pouco se sabe ainda sobre a pritica de edigio de textos com lingua portuguesa anterior a fins do séc. KIX, data a par- tir da qual essa atividade passa a ser realizada de forma mais rigorosa, Num sentido mais lato, pode-se dizer que mesmo os co- pistas medievais ensaiavam um certo tipo de edicdo, porque eventuaimente faziam, p. ex., comparagio de fontes para a realizagio de novas cépias, ainda que seja bem provavel que utilizassem critérios de escolha de variantes bastante subje~ tivos, sendo arbitrérios.A utiliza¢io de mais de um modelo para a cépia (fendmeno tradicionalmente chamado de con taminagdo) verifica-se, p. ex., na tradigio da versio medieval portuguesa da Vida de Santa Maria Egipciaca: segundo Sobral (1993: 672-3), a cépia existente no c6d. ale. CCLXX/461 derivaria da cépia em portugués do céd. ale. CCLXVI/462 corrigida com base na versio latina presente no céd. ale CCLXXXII/454. Com o advento da imprensa, textos em Iingua porta- guesa passaram 2 vir a lume impressos. Segundo Silva Neto (1957a: 281-8), 0s impressores eram pouco fiéis as suas fontes, ‘Tendo comparado 2 cépia® subsistente da tradugio portugue~ sa do Vita Christi, obra composta por Ludolfo da Saxénia, 8, Silva Neto devera estar se referindo acs eSds. le, CCLIIX/4S1, CCLXXX/452 « CCLXXXI/453:0 primeico dado de 1445,€ 05 outros dois dativeis do mesmo ano ou de 1446 (ef Lorenzo, 1993: 685), BREVE ISTORICO DA-CRITICA TEXTUAL # 55 com a versio impressa de 1495, verificou, além de inevitiveis saltos e transposicdes, o propésito de se modernizar 0 texto. Eis alguns exemplos de variagio entre a copia de 1445 € 0 impresso de 1495, respectivamente: carga x carga; gram x gram= de; posottas x pesonhétas. Tal sitaacio persistiria, de forma ge- ral, nos sécs. XVI, XVII e X' Nio seria exagero dizer, portanto, que a realizacio de edig6es rigorosas de textos em lingua portuguesa comegaria em fins do séc, XIX: é nessa época que parece fazer-se pre~ sente 0 impacto da consolidacio dos métodos modernos de edigio; além disso, havia pouco a filologia portuguesa tinha pasado a seguir uma abordagem cientifica mais estabelecida: ‘Vasconcelos (1929; 886) considera como inauguracio des- se perfodo cientifico a publicagdo, em 1868, de A Lingua Por- tugueza: Phonologia, Etymologia, Morpholagia e Syntaxe, de Fran- cisco Adolfo Coelho (1847-1919). Mesmo que se tente descrever a pritica editorial de textos, Kingua portuguesa somente a partir desta época, ainda as sim nfo € possivel delinear um quadro suficientemente tido,e por uma razdo em especial: « natureza difsa dessa pri tica. Parece ser quase norma, pelo menos no dominio hus6- fono, que a pritica editorial tenha sido exercida — ¢ ainda 0 scja ~ por um conjunto fortemente heterogéneo de pessoas afeitas a0 mundo das letras, cuja atuagio nfo raramente se res- tringe & edigo de somente uma obra, Naturalmente 0 tra- balho de edi¢ao é suficientemente complexo e extenuante para justficar restrigdes quantitativas, mas © que salta aos olhos & a descontinuidade: nio se trata apenas do problema de se editar um nimero restrito de obras, mas sim de no haver produgio sistemitica ¢, além disso, sob a responsabilidade de especialistas. Se, nos primérdios da abordagem mais cientifi- ca dos estudos lingiisticos e czitico-textuais no ambito lus6- fono, essa heterogeneidade era fruto inevitével da delimitagio 56 « nvrnoDuGho A eRitica TEXTUAL de novos campos e da constituigio de novas abordagens, jé em pleno séc. XI sua permanéncia é surpreendente e segu- ramente no constitui beneficio para 0 progresso na area. A propésito da referida heterogeneidade em fins do séc. XIX, é interessante o comentario de Prista & Albino (1996: xi), 20 justificarem o método de orgenizagio de seu catélogo sobre flblogos portugueses entre 1868 ¢ 1943: Por veres € forcado falar de filblogos; seria melhor, por exer 1 ‘etndgrafo que ica’; ou ‘historiador des ” em termos de pritica de edicio de textos em lingua portuguesa no mundo lus6fono. De forma geral, pode- se considerar, porém, que a atividade de critica textual tanto em Portugal como no Brasil apresenta, no minimo, dois gran- des perfodos: um primeiro, que vai de fins do séc. XTX até aptoximadamente meados da década de cingiienta do século seguinte; e um segundo, dessa época em diante. O que per mite estabelecer essa divisio & fato de, até por volta dessa época, a atividade editorial ter sido quase sempre fruto de ages individuais, enquanto, apés essa data, comegou ase es truturar em equipes/projetos ¢ a se institucionalizar. Na faixa de tempo do primeiro perfodo (aprox. de 1870 2 1955), vieram a lume edigGes de estudiosos como Epifé~ nio Augusto da Silva Dias (1841-1916), Carolina Michaélis de Vasconcelos (1851-1925), José Leite de Vasconcelos (1858- 1941), José Joaquim Nunes (1859-1932) e Joseph-Maria Piel (1903-1992) em terras portuguesas; ¢ como Joio Ribeiro BREVE HISTORICO DA-ERITICA TEXTUAL # 87 (1860-1934), Manuel Said Ali (1861-1953), Oskar Nobiling (1865-1912), Alvaro Ferdinando Sousa da Silveira (1883 1967), Augusto Magne (1887-1966), Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), Carlos Henrique da Rocha Lima (1915-1991), Serafim da Silva Neto (1917-1960), Gladstone Chaves de Melo (1917-2001) e Olmar Guterres da Silveira (1922-1999), em terras brasileiras, ‘A passagem de um perfodo para o outro nfo se dex cer- tamente de forma abrupta, pois hé estudiosos cuja produggo editorial j4 havia se iniciado antes de meados da década de ingiienta e ainda se estendeu a depois dessa data, constituin- do assim um elo de ligagdo entre esses periodos: encaixam-se neste caso, em Portugal, Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989) ¢ Luis Filipe Lindley Cintra (1925-1991); no Brasil, Celso Cunha (1917-1989). Dos que publicaram suas edigdes apenas apés meados da década de cingtienta, convém apenas citar aqueles aos quais se deve prestar homenagem péstuma (jé que a produgio dos cespecialistas em atividade é facilmente localizével): deixaram, especial contribuigio, em Portugal, José de Azevedo Ferrei- 12 (1942-1995); € no Brasil, Silvio Elia (1913-1998), Ant6- nio Houaiss (1915-1999), Darcy Damasceno (1922-1988) ¢ Emanuel Pereira Filho (1924-1968). ‘Apés meados da década de cingiienta, passaram a existir iniciativas mais sistematicas de edigio de textos dos dois lados do Atlintico. Em Portugal, destaca-se a atividade editorial do Centro de Estudos Filolégicos, que jé havia sido fimdado em 1932 € que passou a se chamar Centro de Lingiilstica da Universi de de Lishoa a partic de 1976: foram publicadas por esse centro diversas edigdes de textos medievais (cf., p. ex.,a edigéo dos Foros de Castelo Rodrigo por Cintra, 1959). Como fruto da atuagio de Lindley Cintra, formaram-se, direta e indireta~ mente, pesquisadores que atualmente realizam edigSes em di- y 58 « iNTRopUGAO A CRITICA TEXTUAL ferentes campos, abarcando textos medievais e modernos, li- terérios e nao-literdrios (neste tiltimo caso, com énfase em fontes para 0 estudo da histéria da lingua portuguesa). Natu- ralmente a atividade editorial portuguesa nio esteve restrita 20 referido Centro de Lingiifstica, havendo também impor- tante produgio na érea em outras instituigdes, em especial a Universidade de Coimbra ¢ a Universidade Nova de Lisboa. Jano Brasil, é a partir de meados da década de cingiienta que comeca a se institucionalizar efetivamente, nos centros de ensino superior, a atividade editorial: embora historicamente a produgio estivesse concentrada em instituigdes dos estados do Rio de Janeiro (UFRJ, UFF e UERJ), de Sio Paulo (USP) da Bahia (UFBa),apés meados da década de oitenta expan— diu-se também para outras instituigdes, tais como PUC-SP, UFPb ¢ UEMG. Particularmente produtiva no Brasil foi a década de ses- senta: datam dessa época duas grandes is a Comissio Machado de Assis e a colegio Dicionério da Lingua Portuguesa: Textos ¢ Vocabulérios. A Comissio Machado de Assis foi instituida em 19 de se- tembro de 1958 e o seu primeiro fruto foi a edicZo critica de Memérias Péstumas de Brds Cubas, publicada pelo Instituto Na~ cional do Livro em 1960, tendo outros titulos sido publicados mais tarde pela Civilizagio Brasileira em 1975. O trabalho realizado pela referida Comissio atingiu um tal grau de ex- celéncia que sua orientagio passou a ser paradigmitica para a edigéo de autores brasileiros (para conhecer o método se~ guido, pode-se consultar a introdugZo ao texto das Membrias publicada em Houaiss, 1959). A colegio Dicionério da Lingua Portuguesa: Textos ¢ Vocabu- lérios, organizada e dirigida pot Anténio Geraldo da Cunha (1924-1999), tinha como objetivo “promover a publicagio de textos portuguéses pouco conhecidos em edigées figs, e, bem. DREVE HISTORICO OA CRITICA TEXTUAL « 59 assim, de vocabulétios das obras de autores de lingua portu- guésa” (Berardinelli, 1963: 9). Embora nfo se tenha seguido, a0 longo dos nove volumes publicados de 1963 a 1968 (cf. lista na p. 35 deste livro), um padrio uniforme de edigio, a presenga de fac-similes propiciava ao leitor um instrumento precioso de consulta, ‘Também foi 2 partic da década de sessenta que aparece- ram, no Brasil, os trés Gnicos manuais introdutérios & critica textual publicados em lingua portuguesa’ e voltados para scus problemas: 0s Elementos de Bibliologia (1967), de Houaiss;a In- trodugio a Edbtica: Critica Textual (1977), de Spina; e a Iniciagio em Crltica Tesstual (1987), de Azevedo Filho. Como precurso- ra deises manuais, havia sido publicada a obra Textos Medievais Portuguéses e seus Problemas (1956), de Silva Neto. ‘A partir de meados da década de oitenta, duas grandes, freas passam a estimular a atividade editorial tanto em Portu- gal quanto no Brasil: lingiiistica histérica e a critica genética ‘A retomada dos estudos diacrénicos fomentou uma ati- vidade editorial voltada para uma abordagem mais conser- vadora, justificada pela necessidade de edigdes adequadas 20 estudo lingiifstico. Como fruto dessa corrente t8m-se editado rarios tanto em Portugal (cf., p-ex., Maia, 1986; Martins, 1994; Emiliano, 1996) quan- to no Brasil (cf., p. ex., a edigdo de cartas baianas do séc. XVIII, Lobo, 2001) Paralelamente, difundiu-se nos dois lados do Atlintico a chamada attca genética, que se ocupa da génese dos textos lte- rarios com base na documentagio deixada pelos autores. Essa abordagem tem impulsionado particularmente o estudo da ‘im ~ ambot originalmente produsidos no inicio da década de stent. 60 « INTRODUGAO A CRITICA TERTUAL tradi¢do de obras literérias, bem como a realizagio de edigdes genéticas, ou seja, com registro de variantes textuais de res- ponsabilidade do préprio autor. Dentre as atividades relacio- nadas a esse campo, destacam-se, no Brasil, a constituigio da Associago dos Pesquisadores do Manuscrito Literério em 1985, os diversos encontros que serviram como férum de dis- cussio para pesquisadores em edigio de textos (anais publica- dos em Encontro, 1986, 1990, 1993, 1995, 2000a, 2000b, 2002) e ainda a criagio da revista Manuseritca, da referida associagio. Em Portugal, por volta dessa mesma época, constitui-se a chamada Equipa Pessoa (em junho de 1988),a qual se res~ ponsabilizaria pela edigio das obras de Fernando Pessoa (1888-1935). Segundo informa Castro (1990:31), adotou-se como modelo editorial o da edigio artico-genétia (..) enquanto crltia, esta edigio procura fixar urn texto mais autorizado (isto é, mais préximo da vontade reconstituivel do autor); enquanto genética, procurar documentar 0 percurso se~ guido pelo autor na construgio de cada texto, Por iniciativa da Association Archivos de la Littérature Latino-Américaine, des Caraibes et Africaine du XX¢ Siécle Amis de Miguel Angel Asturias, sediada na Universidade de Paris X (Nanterre) e vinculada 4 Unesco, tém sido publicadas edigdes criticas de obras em lingua portuguesa, na sua Co lego Archivos: até o presente momento jé foram publicados DREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL # 61 total de dezenove titulos. Discussdes de pesquisadores en- volvidos nessa colecio, realizadas em semindrio no ano de 1984, foram publicadas em Segala & Tavani (1988). ara concluir, ndo se pode deixar de mencionar duas gran- des fontes de contribuigio para a constituicao do patriménio ecdético em lingua portuguesa: os historiadores € os pesqui- sadores estrangeiros. Tanto em Portugal quanto no Brasil, houve um signifi- cante niimero de historiadores que se ocuparam da edigio de textos: em Portugal, podem-se citar nomies como Jodo Pedro Ribeiro (1758-1839), Alexandre Herculano (1810-1877), Pe- dro de Azevedo (1869-1928), Rui de Azevedo (1889-1976), Jodo Martins da Silva Marques (1894-1922) ¢ Avelino de Je- sus da Costa (1908-2000); no Brasil, Francisco Adolfo de ‘Varnhagen (1816-1878), Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891), Jodo Capistrano de Abreu (1853-1927), Eugé- nio de Castro (1869-1944), Rodolfo Garcia (1873-1949) e José Honério Rodrigues (1913-1987). ‘Jano caso de estrangeiros, cuja contribuigao se refere ge ralmente a textos medievais, podem-se citar nomes de italia~ nos como Ernesto Monaci (1844-1918), Giuseppe Tavani, Luciana Stegagno Picchio, Giuliano Macchi, Giulia Lancia- ni, Valeria Bertolucci, Aurélio Roncaglia; de alemies, como Walter Mettman; de americanos, como John M, Burnam (1864-1921), Henry H. Carter, Richard D. Abraham, Joseph H.D Allen Jr;e ainda do suigo Henry R. Lang (1853-1934) Obviamente os dados acima arrolados dio apenas uma vvaga imagem de experiéncias editoriais em lingua portugue- sa, j4 que uma lista completa seria demasiado longa, pois, como ja se disse aqui antes,a producio editorial tem sido nor- malmente bastante difusa. Considerando, no entanto, ser de grande utilidade para aqueles que se interessam pela critica textual conhecer mais 62 w inrRoDUCHO A GRITICA TEXTUAL detalhadamente a pritica de edigio de textos em Ingua por- uguesa, lista-se aqui uma selecio de textos que historiogra- faram os estudos filolégicos do portugués e/ou que tratam da edigo de textos: Vasconcelos (1929: 839-919; 1959: 223-6), Veiga (1955: 63-76), Silva Neto (19572), Elia (1963: 157-232), Naro (1976: 77-9), Houaiss (1980: 12-5), Pinto (1982: 175- 87), Lima (1992: 144-58), Spina (1994: 77-80), Azevedo tho (1998: 19-44), Bittencourt (1998: 171-84), Telles (19 39-58) ¢ Megale & Cambraia (1999: 1-22). CAPITULO 3 A TRANSMISSAO DOS TEXTOS 3.1. CONCEITOS BASICOS Considerando como é complexa a historia que um tex- to pode ter no processo de sua transmissio ao longo dos tem- pos, convém apresentar e definir alguns termos que permitam tratar desse tema com maior precisio. ‘Chama-se aqui de obva qualquer produto do engenho hu- mano, com inalidade pragmatica ou artistica. Dentre os tipos possiveis de obra, interessa aqui o fexto: obra fundada na lin guagem verbal, podendo existir em forma sonora (texto oral) e/ou grifica (texto escrito). Cada registro de um texto escrito constitui um testemu- nnho, que pode ter sido fixado pelo proprio autor (testemunho auldgrafe), por outa pessoa mas com supervisio do autor (tes- temunho idiégrafe) ou ainda por outra pessoa sem supervisio do autor (testemunho apdgraf'). Nos dois primeiros casos, pode se dizer ainda que se trata dos originais, pois registram efetiva- 1, Hi extudiosos que chamam de appro apenas a primeira ceproducio nio-aucé- (gaa de um tetemunho aurdgrafo, definigio eta no adotada 293i, 64» meraopuche A cairica TEXTURE mente a vontade do autor em fisngio do controle exercido pelo préprio de forma direta (test. ant6grafo) ou indireta (test. idiégrafo); j4 no terceiro caso, diz-se que se trata apenas de uma dépia?.Ao testemunho utilizado como fonte na produgio de uma c6pia, chama-se de modelo ou antigra’. Levando-se em conta a natureza do processo de registro dos textos, 05 testemunhos sio tradicionalmente classifica~ dos em manuscritos (registrados por meio de instrumentos de escrita tradicionais como pena, lapis, caneta, etc.) ¢ impressos (registrados por meio de algum tipo de sistema mecinico de impressio). Modernamente devem-se reconhecer dutas no- vas categorias de testemunhhos: os datiloscitos (registrados por meio de maquina de escrever) e os digitoscritos (registrados por meio de computador). Embora tanto os datiloscritos como os digitoscritos sejam lavrados através de um teclado, © processo di-se de maneira distinta: um datiloscrito preser- vva, sobre © papel, as marcas de intervengio na sua elaboragio (rasuras e correges), enquanto o digitoscrito geralmente nao jormalmente ndo aparecem na tela do computador as mo- dificagdes realizadas no processo de constitui¢io do arquivo com 0 texto) ~ razio pela qual convém diferencié-los. Esses testemunhos podem, porém, ser novamente registrados atra- vvés de mecanismos distintos dos que Ihe deram origem: en- tretanto, mesmo que ur datiloscrito seja digitalizado, p. ex., ‘como imagem, continuaria sendo um datiloscrito (ainda que em formato digital), pois o sistema de registro originalmen- te utilizado foi datilografico; da mesma maneira, um digi- toscrito, cujo suporte original é digital, pode ser registrado em papel através de impressoras, mas sua origem primitiva como digitoscrito nio muda. ATRANSMISSAO DOSTEXTOS « 65 3.2. A PRODUGAO DO LIVRO MANUSCRITO Como ja se esclareceu, um manuscrito constitui um dos tipos de registro escrito de um texto. Os manuscritos podem Circular em folhas avulsas, mas podem também se apresentar na forma de um conjunto organizado e unido de folhas, a0 «qual se pode chamar de liv, Para se entender melhor como se faz um livro manuscrito, convém conhecer os materiais cempregados, suas formas tradicionais de organizagio e ainda os procedimentos seguidos no ato de cépia em si do texto, 2) Materiais Na produgio de um livro manuscrito, constituem elemen- tos basicos as matérias subjetiva, aparente e instrumental subjetiva A matéria subjetiva constitai o suporte material para a escri- ta, Pode-se dizer que, de forma geral, os livros manuscritos tém como suporte uma (ou mais) das trés seguintes matérias sub- Jetivas: papiro, pergaminho e pape papiro era produzido através da uniio de finas laminas extraidas do talo de uma espécie vegetal (Cyperus papyrus) co- mum 3s margens do Nilo, Sobre uma tibua timida, essas limi- nas eram colocadas umas ao lado das outras em uma dada di- regio e em seguida, em cima dessa camada, colocava-se outta camada no sentido perpendicular, formando um retingulo. Apés ter sido prensada e secada ao sol, essa folha retangular era polida para se obter uma superficie mais lisa. A data de sua invengo parece ser bem recuada, pois encontrou-se jé 66 # INrRoDUCKO A cRiricA TexTUAL um rolo de papiro em branco na tumba de um dignitirio egipcio da I Dinastia (. 3000 a.C.). Os fragmentos de pay 10 com texto em grego mais antigos de que se tem not sio attibuiveis ao séc. IV a.C. Teria sido empregado no mi- nimo até o séc. XI, pois subsiste ainda documento, nesse su- porte, do Papa Leo IX, datado de 1051. © pergaminho consiste de pele animal, da qual se elimi- nam a parte mais externa (a epiderme) e a mais interna (a hi poderme), restando, assim, a parte intermediéria, que é fibrosa (@ derme), Sua elaboracio seguiria, gosso modo, as seguintes eta pas: motho em agua corrente, liberagdo da epiderme através, de cal, eliminagio dessa camada, raspagem da hipoderme, ten- sionamento da pele, alisamento para a tornar mais fina, po- limento com pedra-pome e operagdes de acabamento. Em. fangio da diferente natureza das partes em contato com a derme, os pergaminhos apresentam a face pél te em contato com a epiderme) e 2 face came (originalmente em contato com a hipoderme). Os animais de que se extraia a pele eram normalmente bezerro, cabra ¢ carneiro/ovelha: 0 tipo de pergaminho segundo o animal chama-se, respectiva~ mente, charta vitelina, caprina € montonina/ovina.Q emprego desse suporte também é bastante recuado no tempo, jé que hé mengio a ele desde a IV Dinastia (c. 2700-2500 a.C.), sendo © exemplar com texto grego mais antigo datavel de II a.C. Segundo Plinio (Hist. Nat., XIIl, 21), 0 termo pergaminko derivaria do nome da cidade de Pérgamo: o rei Eumenes I] teria inventado esse suporte para solucionar a falta de papi~ ro resultante da proibi¢io de sua exporta¢io por Ptolomen Epifinio, que invejaria a Biblioteca daquela cidade. O papel constitui um suporte de natureza vegetal: sua fa- bricagio dava-se no passado através de um processo de ma- ceramento de elemento vegetal (como, p.ex., trapos de linho) colocado em agua até a obtengio de uma pasta fina, i qual A-TRANSMISSAO DOS TEXTOS « 67 podem ser acrescentadas substincias aglutinantes e branquea~ doras. Uma poreio dessa pasta era colocada sobre uma tela formada de moldura de madeira com trangado de fios de metal mais grostos ¢ distantes uns dos outros na dirego ver~ tical (os pontusais) e de outros mais finos e préximnos entre si na dirego horizontal (as vergaturas). Escorrida a égua, a lémi- na de pasta que se formava era posta sobre um feltro para se~ car; uma pilha de laminas sobre o feltro poderia ser colocada ‘em uma prensa para serem alisadas. Por volta de 1280, passou- se a entrelagar no trangado da mencionada tela fios em forma de figuras (info, estrela, ancora, ete.), os quais deixavam sobre a limina de papel sua marca, perceptivel contra a luz: a cha~ mada marca-d’égua ou filigrana’.A invencio do papel costuma ser atribuida a um oficial do imperador da dinastia Han, cha~ mado Tsi Lun, no ano 105 4.C, (os testemunhos mais anti- gos conhecidos, porém, datam de 137 d.C.). O papel teria sido introduzido na Europa através dos arabes e, desde 1151, |jé haveria uma oficina de papel na cidade de Jativa, a0 sul da Espanha. Em se tratando de manuscritos lavrados em lingua portu- guesa (que comesar a aparecer por volta dos sécs. XII-XI as matérias subjetivas bésicas sio o pergaminho e o papel. Segundo informa Dias (1994:29), o mais antigo documen- to portugués em papel, conservado, é uma atestagio notarial do tabelio da cidade de Seda, escrita em 23 de margo de 1268, a qual se encontra no Arquivo Nacional da Torre do ‘Tombo (Mosteiro de Aleobeca, maso 44, n. 117 (4]) em Lisboa. Esse dado relativiza a proposta de Peixoto (1982: 92), segundo a qual o uso do papel em Portugal remontaria ao reinado 4+ gam, cement de gd ino ra aa nei de tem ‘hos em papel, foi eatalogada por Brique 68 « inrnopughe A cnirica TexTuAL de D. Dinis (periodo de 1279 a 1325): sua afirmagio deveria se basear no mais antigo documento em papel conhecido até entio, que era uma folha de inquirigdes datada da Era (His pinica) de 1326 (ou seja, 1288 da Era Crist) mantida no Ar~ quivo Nacional daTorre do Tombo (Casa da Coroa, gaveta 20, mago 10, 1, 5).De qualquer maneira, foi determinacio do re- ferido rei, promulgada em 1305, que os tabelides escrevessem suas notas em papel e nfo em pergaminho, como se fazia até entio. O primeiro moinho de papel em Portugal teria sido instalado em Leiria no ano de 1441, embora se saiba da con cessio de autorizacio real, em 1411, para sua construgio jun- to a0 rio Lis. Em fungio da escassez de papel em terres lusita~ nas, ecorria-se em especial a produto proveniente da Franca. A transformagio da indastria do papel, de artesanal em ma- nufatureira, se daria apenas na passagem do séc. XVI para o XVI + Matéria aparente ‘A matéria aparente consiste propriamente na finta. Esta compée-se basicamente de elementos com as seguintes pro~ priedades: corante (responsivel pela cor do pigmento),solven- {responsivel pela liberacio do pigmento em uma solugio liquida), aglutinante (responsivel pelo ligamento homogéneo dos componentes da solugio liquida) e fixador (responsivel pela adesio da solucio sobre 0 suporte). Os elementos que faziam parte da tinta poderiam ser de origem vegetal (p. ex.,noz-de-galhs, azeite de oliva, vinho bbranco, goma-arabica), mineral (p. ex.,sulfato de ferro) ¢ ani- mal (p. ex. lata de ovo). Havia no passado dois tipos bé- sicos de tinta:a de carbon e a ferro-gélica; mas era também pos 5. InformagSes mais sstemsscas sobre © papel em Portugal podem ser obtidas ane ¢h em Ataide Melo (1926), ATRANSMUSSAO DOS THXTOS # 69 sivel um tipo misto, composto de elementos comuns a essas duzs.A tinta de carbono tinha base orginica, por isso no so- fria oxidacio nem redugio, mas, pelo fato de no reagir nem. penetrar profandamente no suporte material, borrava com fa~ cilidade. J4 a tinta ferro-gélica, que parece ter predominado 1a Europa ocidental na [dade Média, compunha-se geralmen- te de elementos como noz-de-galha (resina liberada por cer- itrfolo (sulfato de cobre ou ferro) e goma. Esse segundo tipo de tinta, por apresentar propriedade céustica, soia corroer a matéria subjetiva, o que era ainda favorecido pela sua oxidacao. ara secar a tinta depois de utilizada em um texto, empre~ gava-se p6 de madeira, limalha de cobre ou areia fina. De acor- do com Santos (1994: 55), 0 uso de areia fina é ainda visivel em cédices portugueses do séc. XVI em diante. Sua ago so- bre o suporte material costuma ser desastrosa, provocando, es- pecialmente no papel, danos grandes ¢ irreversiveis. + Motéria instrumental ‘A matéria instrumental consiste no instnumento que registra 4 escrita sobre o suporte. Sobre suporte duro, que era o caso da argila ou da tébula encerada, utilizou-se o estilo (pequena has- te de metal ou osso). Sobre o suporte brando, que é 0 caso do papiro, do pergaminho e do papel, empregaram-se 0 pincel (formado originalmente por um talo de junco com as fibras csgarcadas na ponta), 0 clam (talo de cana seca) € a pena de ave (preferenciaimente de ganso) para distribuir a tinta. Segundo Santos (1994: 37), pena de ave teria sido o instrumento pre~ dominante na época medieval no Ocidente peninsul bora haja indicios do uso de célamo nos sécs. VIII-XI. $6 a partir do séc. XIX € que se difundem novos instrumentos como a pena de aco, a caneta-tinteiro, a caneta esferogr’~ fica, 0 lapis, dentre outros. > 1 70 » wzRoDUGAO A CRITIC TEXTUAL Além dos trés elementos bisicos acima descritos, deve-se Jevar em conta também o emprego de outros elementos au- xiliares na confecgio do livro manuscrito, tais como tinteiro, raspador, esponja, régua, compasso, grafite, pungio, etc. b) Tipologia do livre manuscrito 5 livros manuscritos apresentaram-se historicamente em duas formas principais: o volume e 0 cbdice. © volume (at. voixmen) consistia em um rolo composto de folhas, normalmente de papizo, coladas umes as outras pelas Iaterais, formando uma longa seqiiéncia em cuijas extremida~ des se colocavam bastdes que serviam para, simultaneamente, desenrolar ¢ enrolar com cada uma das mios. Com a substituigzo da matéria subjetiva de papiro para pergaminho, viabilizou-se uma nova forma de livro, imple- mentada entre os sécs. Il e IV d.C.: 0 ebdice (lat. codex). Em ver de serem coladas pelas extremidades como antes, as folhas ram dobrads 20 meio, formando um bifsio,e colocadas umas dentro das outras, constituindo assim um conjunto a que se cchama de cademo, Os cadernos eram costutados pelo vinco da dobra, unindo-se uns aos outros ¢ também a uma capa cons- titufda de urn material mais firme, como, p.ex., placas de ma~ deira. O formato do cédice decorria do sistema de dobragem utilizado para se obterem os bifélios: quando se dobrava a fo- ha de pergaminho ou papel uma vez, obtinha-se um bifélio no formato in-folio; dobrando duas vezes, obtinham-se dois no formato in-quarto; és vezes, quatto bifolios no formato in-ociavo;¢ assim por diante. Um caderno poderia ser formado de apenas um bifolio, constituindo assim um singu- lério; com dois bifdlios, um binio; txts, témio; quatro, quaterno; cinco, quinio; seis, séuio; etc. ATRANSRISSHO DOS TEXTOS # TL ) Procedimentos no ato de cépia (O elemento-chave da produgio do livro manuscrito é cer tamente 0 copista, embora participem de sua confec¢io outros agentes, como 0 chefe de atelié, o revisor, o rubricador,o ilu- minador (ou miniaturista) e 0 encadernador. copista normalmente realizava sua tarefa com base em um testemunho jé existente, a que se pode chamar de mode- lb, Segundo esclarece Dain (1975: 21-2), as cépias por ditado seriam casos excepcionais, pois a iconografia do passado (p. ex.,a8 miniaturas) retrata, via de regra, um testemunho escri- to ante o copista ¢, além disso, apenas a existéncia do mode- lo permitiria 0 exercicio da caligrafia ‘Apesar de se constatarem registros visuais em que 0 co pista faz uso de mesa para apoiar a matéria sobre que escreve (cf. figura 4 na pigina seguinte), geralmente escreveria sobre a face de umn bifélio (ainda no encadernado) posicionado so- bre uma tabua por cima de seus joelhos. Percebe-se assim que © ato de cépia seria muito fatigante, nfo apenas pela atengio que demandaria mas certamente também pela propria posi- Gio de execugio do trabalho — algo que se confirma por no- tas como a seguinte, registrada por um escriba do séc. VIII: © quam gravis est scriptura: oculos gravat,renes fragit, simul et omnia membra contristet. Tia digita scribunt, totus corpus laborat® (Wattenbach, 1958: 283) O inicio do trabalho do copista dava-se com a obtengio de um modelo, provavelmente escolhido pelo chefe do ate~ id e passivel de mudanga mesmo depois de iniciado 0 pro~ 6.°Oh, ‘todos os membrot. Tits dador erreven todo © corpo tabal 0rd &esrever‘incomods os oot, quebra os rinse de igual maneir aba rdugio nos) 72 w iwrRopucho A critica TexTuAL Figura 4 ~ Detalhe Bil ccesso de cépia. © copista ficava a cargo da reprodugio de um ‘ou mais textos presentes no exemplar que servia de modelo ou ainda de textos distintos provenientes de diferentes mo- delos. Sendo fiel 20 modelo, o copista reproduz todos os ele~ mentos nele presentes, até mesmo a subscrigdo € a assinatura daquele que havia exarado 0 proprio modelo. A origem he- terogénea de um cédice, porém, é passivel de ser destrincha- da: segundo Dain (1975:29), um fildlogo profissiorial deve se esforgar para identificar,em um manuscrito de textos mescla- dos, as partes distintas que constitufam primitivamente um mesmo modelo, Mais de um copista poderia realizar 0 pro- cesso de reprodugio de um modelo, consecutivamente ou pa~ ralelamente. Neste diltimo caso, chamado de c6pia & pecia, os cadernos de um mesmo modelo eram distribuidos para dife- rentes copistas o reproduzirem ao mesmo tempo. Depois de estabelecido o pautado da pagina, determinan- do a extensio da mancha, o mimero previsto de linhas e de colunas, o copista reproduzia o texto do modelo, deixando es- pagos para os outzos agentes do processo: o nubricador, que in- ATRANSMISSAO DOS TEXTOS « 75 minador, que actescentaria imagens as letras capitulares ¢/ou 0s espagos reservados para as miniaturas (representagdes pic t6ricas, geralmente relacionadas a0 contetido do texto). Es- pecial aten¢io merecem as letras de espera (pequenas letras dei~ xadas junto a grandes espagos a serem preenchidos com as, capitulares): a desatengio em relagio 3 sua forma ou mesmo a sua auséncia poderiam confiundir 0 rubricador ou o ilumina~ dor, resultando na insergio de uma letra distinta da presente no modelo, ou seja, na alteragio do proprio texto, Nio rara- mente agia ainda nese processo o revisor, assegurando a fide~ lidade da cépia Considerando que a cépia, via de regra, era feita em bifS- lios (folhas dobradas) que seriam unidos posteriormente em cadernos, utilizava-se um conjunto de recursos para se assegu- rar a correcio na ordem de cépia das paginas e na ordena~ io dos bifélios e dos cadernos. © reclamo consistia na parte de uma palavra, em uma palavra inteira ou ainda em um gra- po de palavras que se colocava, fora da mancha, a direita da jem de pé da pagina, repetindo o que deveria estar no io da coluna, pagina ou caderno que se seguiria, Para in~ dicar 2 ordem dos cadernos, empregava-se a assinatura, que consistia de elemento de natureza alfabética ou numérica 3.3. A PRODUCAO DO LIVRO IMPRESSO Um segundo tipo de registro de um texto escrito é 0 impresso. Tradicionalmente costuma-se utilizar 0 termo edi~ go para nomear o conjunto de impressos obtidos através de sistema de reprodugio mecinica (geralmente em série). A cada um dos impressos produzidos em uma mesma leva de reprodugio mecinica (ou seja, uma mesma tiragem) di-se 0 nome de exemplar. Quando 2 mesma matriz usada para im- primir uma leva é reutilizada em uma nova leva, esse novo COC 7 = iwTRODUCKO A ERITICA TEXTUAL ATRANEMISSAO DOS TEXTOS = 75 Figura 5 ~ Fél. 42r do ms. um. 123 da Biblioteca Nacional de Lisboa, ‘com a Crbuiea de D. Fernando, de Fernto Lopes (once: Biblioteca, 1988) conjunto de exemplares 6 chamado de reimpressdo ou nova firagem. Se, no entanto, a matriz empregada anteriormente @ desmanchada e uma nova matriz é composta para a im~ pressio de um novo conjunto de exemplares, tem-se assim uma nova edigio ou reedigio. Embora tecnicamente os termos reimpressio e reedigfo se refiram a realidades distintas, verifi- ce-se que, na pritica, costumam ser utilizados indevidamen- te de forma intercambiavel: para a critica textual, porém, & capital diferenciar quando dois exemplares impressos per tencem a uma mesma edi¢io (sendo frutos de uma mesma matriz) ow a edigées diferentes (derivando de matrizes distin tas), Sabe-se ainda, entzetanto, que, durante o processo de im- pressio, eventualmente se faziam modificagSes na propria ma triz, sem, no entanto, se destrufrem os exemplares jé impres~ sos antes das referidas alteragSes: disso resulta a produgio de exemplares, em uma mesma leva, que nio s aos outros, caso em que se diz haver diferentes mesma edigio. ‘Um caso interessante de edi¢io com mais de um esta~ do para texto em lingua portuguesa é 0 relatado por Sousa (1955: 103). Na 2% ed. da obra Poesias completas, de Machado de Assis, impressa na Franga a mando da Garnier, o tipégrafo substituiu um e por a no trecho “cegara 0 juizo”, presente no preficio, Para sanar 0 erzo, um fiuncionirio da casa editorial raspou o ae escreveu a nanguim o ¢ nos exem~ plares disponiveis e, além disso, a editora providencio pressio de nova folha, jé com texto retificado, a qual foi subs- tituida nos exempleres ainda em produ¢io; entretanto, antes de se verificar 0 erro, exemplares jé haviam sido Desta forma, percebe-se que a 2? ed. circulou em dos: um com 0 erro, outro com 0 erro raspado e a nanguim, e ainda um terceiro jé sem 0 erro (devido & subs- tituiggo da folha). PPVWVWAID YE ) im- 76 « wwrnopugio A.cairica rexruaL No sistema artesanal de produgio do livro impresso, a pri- meira fase era a composigo: tratava-se do processo em que © compositor, com base em um modelo (manuscrito ou impres- so), montava tipograficamente 2s paginas. Seu trabalho con- sistia em pegar, no caivotim (estrucara dividida em seges), cada uum dos tipos necessétios para formar uma linha de texto e em 08 colocar no componedor, utensilio formado de limina com rebordo em Angulo reto. Um fipe era um bloco, de base de madeira ¢ frente de metal ou todo de metal, em cuja fren- te havia, em alto-relevo, o desenho (jnvertido) de uma letra Depois de composta, cada seqiiéncia de tipos era transferida para a galé (bandeja retangular de trés rebordos), sendo cada linha separada pela intermediagao da entrelinha (uma limi- na fina, mais baixa que os tipos, que servia de alinhador para a seqiiéncia de tipos) e todas conjuntamente amarradas, for mando assim uma chapa. As chapas eram engradadas em uma moldura retangular, a rama, constituindo dessa maneira uma forma ow matriz. Figura 6 ~ Matriz jé moncada (Fonte: Gaskell, 1995:79) ATRANSMISSHO DOS TEXTOS « 7 A segunda fase era a impresio, processo em que se marca, sobre uma folba (geralmente de papel), 2 imagem da matriz, Sobre 0 ménmore (mesa de superficie lisa de pedra ow madeira), era colocada uma forma, a qual se entintava com a bala, instra- mento de madeira em forma de funil invertido. Em seguida, colocava-se uma folha sobre essa forma entintada e descia-se a platina (pega plana de ferro revestida de almofada), fzendo com que a folha ficasse com a marca dos tipos da matriz, Para se im- primi o verso das folhas era necessirio esperar que secassem. Na figura 7, representando uma oficina de impressio se- gundo Estradano (Antuérpia, 1600), é possivel ver, 3 esquer- de, os compositores diante de caixotins e, 4 direita, a prensa manual, com 2 platina ja abaixada, No processo de composi¢o da pagina, muitos dos recur 0s empregados no sistema de cépia manuscrita foram man- Figura 7 ~ Oficina (Fonts: MeMurteie, 1982:2 78 inrRoDUCKO A CRITICA TEXTUAL tidos, de forma tal que é possivel reconhecer, mesmo em tex- tos impressos, elementos como capitulares, reclamos ¢ assina- turas. Confira-se a figura 8, na pagina seguinte, na qual se re~ prodixz o recto do folio 20 da primeira edi¢io da Peregrinaséo de Fernio Mendes Pinto, publicada em 1614 (na décima linha da primeira coluna hé a capitular ornada P; na margem de pé da segunda coluna, hé a assinatura C4 — ou st 10 caderno (C), quarto bifdlio (4) -;¢ mais para a direita vé-se © reclamo cas, silaba com que comega o verso desse félio). 3.4, TIPOLOGIA DOS ERROS No processo de transmissio dos textos é inevitivel a ocor réncia do arr, entendido aqui como modificagio no-autoral do texto, Considerando que o objetivo fundamental da criti- ca textual é 0 de restituir a forma genuina de um texto, ou seja, o de eliminar todos os erros que foram paulatinamente incorporados a um dado texto, é de grande valia compreen- der sua natureza, Segundo lembra Blecua (1990: 19-20), os erros tém si- do classificados no processo de cépia de varies formas. categorias modific rizada por Roncaglia (1975:104) em erros de morizagéo, de ditado interior ou de execugao manual. Esta dlti- ma categorizagio tem nitida rela¢io com a forma como se analisa 0 proceso de cépia em si: Dain (1975: 41) descreve- © como composto de quatro operacdes fandamentais (conco- ATRANSMISSAO DOSTEXTOS # 79 Figaro 8 ~ FSI. 20¢ da Perens (Fonte: Pin Femito Meridex Pinto, 1 impopitiemel ogy. eo eda woeieewereieal spice, temas steqe tenanenerae Seett Saredomer et CAP. XX. ‘Tcrance, coro do Occ, dda See rama gmt SETGRaaacntetonee Setcomoots eo omc rey de gc codon ‘sFuvefs cela fez Mur gee ‘rab ouens dows os un depos ‘eBengalate ea dePegh de que - fondo Elebesevawon sone deus, ‘eaGepiieeleaberichum Tie, porbombirdcroyea gue quete: de deen Lao. eco Rey doa Moots onde odes Secaaayo qoe ‘age fio db Wi ‘morerso em burn fre vio. ‘eo de Alea, bem ovnfoacy dorgidemro tnacea nabarade Chel, 180 110 mm. 1, Dimensfo proxima a de famosis (Clsies Casali ttn aprox. 180 115 rom op das fancesss Hache © 186 « inTRODUCKO A cRITICA TEXTUAL no tem dimensio previamente definida a rigor, mas caracte~ riza-se pela composicio cerrada das linhas, com 0 objetivo de se economizar material. Uma edigio diamante apresenta ta- manho bastante reduzido (bem menor que de bolso) ¢ cos- tuma, atualmente, ser instrumento de promosio/divulgacao. ‘Na subcategoria qualidade do suporte, enquadram-se edi- ges como a popular e a de luxo. Edigdes populares normal- mente sio feitas com material de baixo custo ¢ qualidade (p. , encadernagio por cola, capa de papel-cartio monocromitica, sem ilustracdes). Opdem-se nitidamente 3s de luxo, porque nestas se utiliza material de alta qualidade (p. ex.: papel cuché, encadernagio por costura, capa de prancha romada, com ilustragSes). Uma segunda categor' tro € inclui a edigao impressa meira é registrada por tipo mével; a segunda por sistema digital, legivel apenas através de programa de computador (0 se, por sua vez, em varios tipos: fx, fundamenta-se na publicaydo da edi- io. Tem-se uma edigo princeps/principe, quando se publica um texto pela primeira vez, Uma edigio limitada & aquela que foi feita em ndmero menor que o habitual (em casos especiais, costuma ainda ser numerada por exemplar e assinada pelo au- tor). Uma edicio extra/extuordindria & a que é publicada fora da periodicidade regular (expresso mais propriamente apli- cfvel a jornais, revistas, etc.). Entende-se por edi¢io comemo- rativa aquela cuja publicagao esti relacionada & celebracio de alguma data, normalmente ligada 4 vida do autor (p. ex., nas- cimento, morte) ou da obra (p. ex., primeira publicagio). 2. No pussdoya expresio io impr seiaredandante pois 0 termo edo sage tia ida do impresio. Modernamente« eoferidaexpresio & necessra para evi- ‘arse ¢ confuso ence uma ediglo impress e uma digital. ‘0S DE EDICKO » 89 ‘Una quarta categoria baseia-se na questio da permissio. ‘Uma edigio autorizada é aquela publicada com permissio do autor ou do detentor dos direitos autorais; jé uma edigo dandestina /espira fraudulenta/pirata no possui a referida per- missio. Uma quinta categoria diz respeito & integralidade do tex- ‘o. Quando ha a reprodugio por inteiro de um texto, tem-se uma edigo integral. Esta opde-se 4 edigio abreviada, em que se suprimem partes de um dado texto, geralmente longo, para lico em fase inicial de formagio (p. ex., es- tudantes do ensino biico.e médio). Se se fazem supressbes a um texto sem se explicitar, a edigao pode ser considerada expurgada: tais supress6es costumam ocorter por censura po- Iitica, religiosa, moral, etc. Uma edigio com supressOes, ge- ralmente para ser empregada como material didatico, ¢ cha~ mada de ad usum delphini, ‘Una sexta categoria bascia-se na reelaborao do texto. Uma edigio pode ser revista, porque foi retificada pelo autor ou edi- tor; atualizada, porque se substituiram dados ultrapassados por a ainda ampliada /aumentada, porque se acrescentaram nnovas partes ~ todos esses adjetivos costurmam ser emprega~ dos apenas na reedigio de textos cientificos. Nessa categoria deve entrar também a chamada edigio modemizada: trata-se geralmente de uma edigo em que se realizam moderniza~ ‘Ges, sobretudo lingiifsticas, em textos antigos — se se conside- rat que a identidade de um texto esti diretamente ligada 4 sua forma lingiistica (principalmente no caso de textos literirios), deve-se admitir que uma edigio modernizada é, na verdade, uma pardfiase, um novo texto baseado/inspirado no primiti- vo. Como exemplo de edigéo modernizada, pode-se citar a da Demanda do Santo Graal, realizada por Megale (1988). ‘Além das categorias de edigdes listadas acima, hé ainda uma de valor especial para a critica textual: trata-se da cate- ( COCO L VIVID WV ) 90 w wwTRODUGAO A CRITICA TEXTUAL goria de edigdes que se baseia na forma de estabelecimento do texto, que compreende o que se pode chamar de tipos funda- mentais de edigéio. 4.2. TIPOS FUNDAMENTAIS DE EDICAO A escolha de um dos tipos fandamentais de edigio para ser aplicado a um texto exige especial reflexio do critico textual, pois cada tipo tem caracteristicas muito préprias ¢ distintas. Por iss0, dois aspectos, em especial, devem ser necessariamen- te observados: 0 piblico-alvo almejado e a existéncia de edi- ges anteriores. A importincia de se pensar no piiblico-alvo esti no fato de que dificilmente uma mestna edigéo é adequada para todo tipo de piiblico, pois diferentes sio seus interesses. Assim, uma edigdo que reproduza particularidades gréficas de um texto quinhentista pode interessar a um lingitista, mas niio seria ade- ‘quada a um piblico juvenil interessado especialmente no con- tetido do texto, ou seja, na histéria ali contada. E igualmente importante saber se o texto em questio jé foi editado antes, a fim de se evitarem edicdes redundantes, ‘ou seja, que simplesmente repetem a abordagem das edigdes, ainda disponiveis no mercado, Pode-se dizer que é funda- mental conhecer e analisar previamente 0 campo bibliogréfico de um dado texto, conceito este assim definido por Castro & Ramos (1986: 112), seus proponentes: Campo bibliogrfico & a designa¢io que propomos para um con- Junto estrunurado de unidades bibliogréficas (livros impressos), organizadas em torno de determinado texto: 0 campo de um texto € 0 grupo formado pelas edigbes existentes desse texto. (..) © campo bibliogrifico ideal é aquele em que, de um tex- ‘iPS DE EDICKO « 91 to, existem no mercado, ow sio facilmente acessiveis, exem- plares de todos os tipos de edigao capazes de satisfazer as ne~ cessidades de todos os tipos de leitor potencial Os tipos de edicdo baseados na forma de estabelecimen- to do texto podem ser distribuidos em duas grandes classes: as edigdes monotestensurhais (baseadas em apenas um testemu~ nho de um texto) e as edigSes politestemunhais (baseadas no confronto de dois ou mais testemunhos de um mesmo texto). 4.2.1. Edig6es monotestemunhais As ediges monotestemunhais podem ser divididas essen- cialmente em quatro tipos, diferenciados com base no grax de ‘mediagao realizada pelo critico textual na fixagio da forma do texto: io elas fec-similar, diplomética, paleagréfia e interpret 4.2.1.1, Edigao fac-similar ‘A edigao fac-similar (também chamada de fac-stmile, facsi~ milada ou mecinica) baseia-se, em principio, no grau zero de mediagao, porque, neste tipo, apenas se reproduz a imagem de ‘um testemunho através de meios mecinicos, como fotogra~ fia, xerogratia, escanerizagio, etc. Este tipo de edigo tem como vantagem permitir 0 aces s0 20 texto de forma praticamente direta, o que confere 20 consulente grande autonomia ¢ liberdade na interpretagio do testemunho. Por outro lado, tem a desvantagem de poder ser consultada apenas por especialistas, porque pressupSe a capa~ 3. 1i,na literatura especillada, uma cera osclario na definicdo destes quatro ter sos tenieos:2s defines aqui apresentada io uma tentativa de dferenciar com tis clareza 08 dpor em questo. 92 « INTROBUGAO A CRITICA TEXTUAL cidade de se ler um texto na escrita original (quanto mais an- tiga, mais esse conhecimento se faz necessirio); além disso, costuma ser muito cara, ‘Varias obras de grande importincia para 0 mundo das le- tras lus6fonas ja receberam edicdes fac-similares impres- sas: algumas reproduzindo testemunbos manuscritos, como © Cancioneiro da Ajuda (Cancioneiro, 1994), da Vaticana (Can cioneiro, 1973), da Biblioteca Nacional (Cancioneiro, 1982), as Cantigas de Santa Maria, de Afonso K (Serrano et al., 1979); outras reproduzindo testemunhos impressos, como a Gramd- tica da Linguagem Portuguesa, de Ferno de Oliveita (Oliveira, 1988), Compilagam das obras de GilVVicente (Vicente, 1928), (Os Lustadas (Camées, 1982)', a Peregrinagéo, de Fernio Men- des Pinto (Pinto, 1995). Para que uma edigo fac-similar cumpra, de fato, sua fan- gio de possibilitar 0 acesso quase direto ao testemunho de interesse (p. ex.,a um manuscrito medieval ou a um impresso renascentista), & necessério que tenha sido realizada com 0 miximo de rigor e respeito a0 modelo, fato que nem sempre se verifica Reckert (1983: 201-23), apés ter comparado 4 edigio fac-similar da Compilagam de Gil Vicente, de 1928, com 0 conjunto dos sete exemplares conhecidos da edigo princeps de 1562, constatou a existéncia de diversas divergéncias, tais como supressdes € omissGes (+ 200); erratas, falsas lei- turas e falsas pontuacdes por obra de retoque (+ 90) e “cor regio” de erratas do original (+ 12). Vejam-se, a seguir, al- guns exemplos: 4, Nese edo fac-similar Os Lusladesemie a reprodugio mecinica parela de amas as eigdes daradas de 1572— uma tem © pelicano no ato da porta vira- do pee a esquerda €outr para ditcta. Quando se tem a reprodugio simul de mais de um tstemunho, dir-se que se tats de ed ‘pos ps eDIcho # 99 Bd. princeps Ed, fac-similar ceternidade: (61. 22a.42) eteridade? Tinigos (I. 242.13) inigos ser (284.38) ler _fracelhos ({61. 374.41) tracelhos 2 (1514.25) lembranca. 63.17) sino nosso (f61. 64.25) wosso: Recker: (1983: 221) informa ainda quanto & edigio fac- similar que no s6 no hi nela indicago do exemplar uti- lizado como fonte nem da responsabilidade editorial como ainda parece derivar de um exemplar hibrido, cuja fonte se~ ria, em parte, o exemplar da Biblioteca Nacional de Lisboa e, em parte, o da Universidade de Harvard. ‘A inadequaco dessa edigdo fac-similar acabou por com- prometer os trabalhos feitos a partir dela: Reckert (1983: 206) assinala que, por estar na edigio fac-similar a forma auco (f6l, 22a.16) onde havia na princeps a forma auto, Sa~ lo induzido a ler anco e proposto intervengio esta que desvirtuou a forma genuina do texto. 4.2.1.2. Edigéo diplomstica Na edigio diplomatica tem-se a primeira forma de me- diagio efetivamente feita pelo eritico textual, sendo esta, po- +ém, bastante limitada: trata-se, portanto, de um grau baixo de mediagdo, Neste tipo de edigo, faz-se uma transcrigao rigo~ rosamente conservadora de todos os elementos presentes no modelo, tais como sinais abreviativos, sinais de pontuacio, paragrafacio, translineagio, separagio vocabular, etc. Y Cee 94 w WWTRODUGAO A cRITICA TEXTUAL ‘Como vantagem deste tipo de ediglo, pode-se citar a fa- cilitagZo de leitura que propicia, pois dispensa o leitor da ar~ dua tarefa de deciftar as formas grificas da escrita original do modelo, particularmente dificeis em testemunhos manuscri~ 05. Por outro lado, tem como desvantagem o fato de também poder ser consultada fundamentalmente por especialistas, pois, apesar da facilitago j4 mencionada, a manutengio de certas caracteristicas — em especial, os sinais abreviativos — exi- ge certamente conhecimento especializado, nio dominado pelo grande piblico. Nao se pode deixar de lembrar ainda que, mesmo sendo bastante rigorosa, uma edi¢io diplométi ca ja constitui uma interpretagio subjetiva, pois deriva da I tura que um especialista faz do modelo. No passado, este tipo de edicio tinha uma fangio muito importante: suprir a falta do contato direto com 0 modelo, algo particularmente importante quando se estava trabalhan- do com diversos testemunhos de um dado texto, espalhados pelas bibliotecas de diferentes paises. Certamente exerceria essa fimo, p.ex.,a edigio diplomatica do Cancionciro da Aju- 4, realizada por Carter (1941). Modernamente, porém, com 0 desenvolvimento das técnicas de reproducio mecinica (fo- tografia, microfilmagem, escanerizagio), essa fungio pratica~ mente deixou de exist, pois 0 especialista pode agora traba~ har quase diretamente com um testemunho através das diver- sas formas possiveis de sua reprodugio mecénica, deixando de depender da intermediagio de um outro especialsta, ato que -jé avia assinalado Silva Neto (1956b: 21) ha mais tempo: Hoje, em virnude dos progressos técnicos da fotografia e da re- produgao fac-similada, a transcri¢ao puramente diplomatica & tum atraso, pois com ela ficamos sempre na estrita dependéncia do critério e da pericia do editor, que,no entanto, pode ler mal € ndo compreender algumas palavras, ‘ip0s OF EDICKO #98 Persiste ainda hoje, no entanto, outro motivo para a rea~ lizacio de ediges diplomiticas: a disponibilizacio de dados para o estudo de historia da Kingua, especialmente dos siste- mas grificos de representagio lingiifstica. Como instrumento para a realizacéo de edigdes dessa natureza, tém-se criado re~ cursos eletrdnicos especificos, tais como conjunto de carac- teres para computador (chamados fortes) que permite uma reprodugio bastante rigorosa das caracteri do passado: como exemplo, pode-se citar a fonte para trans- criga6 de textos medievais adotada por Emiliano (2002).Atra- vvés de edges com esses recursos serd possivel construir gran~ des bases de dados digitais que permitirio, p.ex., um estudo, com sélida base empirica, da evolugio dos sistemas grificos empregados. 4.2.1.3. Edicdo paleogratica Um passo adiante em termos de mediagio verifica-se na edi¢io paleogrifica (também chamada eventualmente de se- mmidiplomética, paradiplomética ow diplomético-interpretativa). Po- de-se dizer que hi, neste tipo, um gra médio de mediagao, pois, no processo de reprodugio do modelo, realizam-se modificagdes para o tornar mais apreensivel por um pabli- co que nao seria capaz de decodificar certas caracteristicas tais como 0s sinais abreviativos. Enquanto na edi- ¢io diplomitica a mediagio do editor se restringe a repro~ dugio dos elementos do modelo, ji na paleogrifica 0 editor atua de forma mais interventiva, através de operagSes como desenvolvimento de sinais abreviativos, insergio ou supres~ sfo de elementos por conjectura, dentre outras (embora qual- quer uma dessas operagdes fique explicitamente assinalada na reprodugio): os principais objetivos de todas essas opera 96 « mTRODUGAO A CRITICA TEXTUAL Bes sio (1) 0 de facilitar ainda mais a leitura do texto e torné-lo acessivel a um piiblico menos especializado e, por tanto, mais amplo que o da diplomética; e (2) 0 de tentar re tificar falhas ébvias no processo de cépia do texto, tais como supressio ou repeti¢ao de letras, etc. As edigdes paleogréficas sio especialmente comuns quan- do se trata de documentos juridicos: em dlbuns de paleogra- fa, costuma-se apresentar uma edigao desse tipo para os do cumentos reproduzidos fac-similarmente ~ como exemplo, pode-se citar 0 album de Dias, Marques & Rodrigues (1987). ‘Textos litérérios também sio objeto de edigio paleografica: editores americanos de textos medievais portugueses dedi- caram-se especialmente a edigSes dese tipo, tais como a da Regra de Sdo Bento, por Burnam (1911); do Diélogo de Robim win Teélogo, por Carter (1938);a do Barlado e Josafé, por Abra hham (1938); a da Regra de Séo Bernardo, por Carter (1940);.2 das duas versbes da Vida de Santo Aleixo, por Allen Jr. (1953); €.a do Livro de José de Avimiattia, por Carter (1967). Moderna mente, este tipo de edicéo tem sido particularmente adotado na edigio de documentos para o estudo da historia da lingua portuguesa: como exemplo em Portugal, podem-se citar a edigio de documentos notariais medievais da regio do no~ roeste da Peninsula Ibérica por Maia (1986) e da regio cen- tro-sul do territério portugués por Martins (1994); jé no Brasil podem-se mencionar a edigio de cartas baianas do séc. XVIII em Lobo (2001) ¢ a edigio de amiincios de jornais do séc. XIX em Guedes & Berlinck (2000) 4.2.1.4, Edigéo interpretativa O paso mais 8 frente que se pode dar no processo de es- tabelecimento de um texto a partir de apenas um modelo ‘THOS DE EDIGAO + 97 acha-se na edigio interpretativa, a que se pode atribuir © grau rdzcimo de medicgéo admissivel. Assim como na paleogrifica, fa- zem-se operagSes como desenvolvimento de abreviaturas conjecturas, mas, além disso, 0 texto pasta por um forte pro cesso de uniformizagio grifica e as conjecturas vio além de falhas Sbvias, compreendendo intervengdes que aproximem 0 texto do que teria sido sua forma genuina. Esses procedimen- tos permitem, em primeiro lugar, apresentar o texto em uma forma acessivel a um piiblico amplo (ji que dificuldades gra ficas desaparecem corit a uniformizagio); ademais, oferecem 20 piblico um texto mais apurado, na medida em que os ele~ ‘mentos estranhos 3 sua presumivel forma genugna vém clara~ mente assinalados. Nio se pode deixar de esclarecer que, neste tipo de edi- ¢io, a uniformizagio é essencialmente grifica: nfo se uni- formizam variantes fonoldgicas, morfoldgicas, sintaticas € Jexicais (0 que geralmente ocorre na chamada edigio moder- nizada). & evidente, porém, que certas uniformizacées (de pontuacio, paragrafacio, etc.) acabam por fixar apenas uma das leituras possiveis do testemunho, razo pela qual esse tipo recebe justamente o nome de interpretativa, Como se vé, sua maior qualidade ~ a acs lade — determina igualmente seu maior defeito ~ a subjetividade, Embora nio raramente se utilize o termo erica para no~ mear este tipo de edico (i. é, baseada apenas em um teste- munho), tal pratica merece ser revista, pois o método aplicado € 0s resultados obtidos neste caso sio radicalmente distintos dos relativos a uma,ediga0 baseada no confronto de teste- munhos (como ficaré bastante claro através da exposicio a ser feita no cap. 6 desta obra): no hé, portanto, nenhum benefi- cio em se utilizar um mesmo termo, tio importante na area, para nomear produtos to diferentes Cer DVIDE d d ) YD ) J 1 ) i) 98 « iwTRODUGAO A CRITICA TEXTUAL Via de regra, faz-se uma edigio interpretativa de textos, preservados em testemunho tinico (lat. codex: unicus*}, como & © caso, nas letras lus6fonas, da Demanda do Santo Graal (cf. Magne, 1944, 1955-1970), da Gramtica da Linguagem Portugue- sa® de Fernao de Oliveira (Oliveira, 1975) e de varios outros textos. Eventualmente faz-se também edigio interpretativa de um texto que possui diversos testemunhos com os quais 0 exitico textual nfo quis ou nfo péde trabalhar por razées di- versas: nesse caso, 0 critico textual edita interpretativamente apenas um testemunho, algo que se justifica para se tornar dispontvel no mercado uma edicio de um texto, geralmen- te inédito — tal edi¢o, porém, perde valor tio logo uma edi- Gio critica (baseada em todos os testernunhos existentes) seja realizada, pois, na edigZo critica, a possibilidade de diferenciar formas genuinas de no-genuinas é maior, em fingio do con- traste entre os testernunhos, possibilidade esta restrita 4 conjec-~ tura (muito subjetiva) no caso de uma edicio interpretativa, Para que se possa ter uma idéia melhor da diferenga entre 0s quatro tipos de edi¢o monotestemunhal descritos acima, edita-se a seguir 0 verso de um mesmo félio da Carta de Pero Vaz de Caminha’ segundo os quatro tipos de edi¢io ante- riormente descritos: 5..Ne ceeminologia tradicional kina em ertica textual utlisa-se como referdncia © terme coder (= ras na adapragfo para © portugus fita nesta obra em pregs-te como is 0 ever, uma. ver que normalmente as (questdes se aplicam tanto 2 ebdizes quanto 2 lives mpresos ‘pos DE EDiGho « 99 Figura 9 ~ Edisto fac-simllar (6, 11v do ms. Gaveta Seago 2-n? 8 {do Arquivo Nacional ds Torre do Tombo de Lisboa) ‘Fonte: Bibliotec Vieual, 1998) 100 « werRoDUGAO A CRITICA TEXTUAL Figura 10 — Edigho diplomética ‘rvos De EDICKO w 101 Figura 11 — Edigho paleogréfice fil. 119) nho que lhes quiferem dar+ 2 logo thes nofJo S* deu boos corpos boos Rostros comaaboos homes + ele que Ns p aquy trowue creo que nom foy Jem cauja Pp® tanto vofa alteza pois tamto defeja acrecentar 5 ma Janta fe catolicar deue emtender em Jus falua am Pprazera ads que com pouco trabalho fera aly / eles no Jauram nem eriam nem ha aquy boy nen vaca nem cabra nem ovelha nem g* nem out’ nhiii alimarea que cuftumada feja aoviuer dos homees 10 n& come (e nd dele jnhame que aquy ha mujto ? deJa Jemente fruits que atera eas aruiores de ly langam+ com jfto andam taaesPtam Rijose a nedeos* queo no Jomonos tanto com guanto trjgo legumes comemps*/ em quanto aly ete dia am. 15 daram Jenpre ao Jo6 dhitt tanbory noffo dancart Pbailhart cos nofos 4 F maneira que feos-home todes-quifere-comujdar Jam muito mais nofos amj gos que nos Jeus + / fe Ihes home acenaua Je querjz ijt aas naaos fazianfe logo preftes pa jlfo = tal 20 maneira que Jeos hom todos quip a comujdar+/ todos vieram * porem n6 trouuemos efta noute aas naaos Je n8 iiij ou b [+ ocapitT moor dous lima de miranda hOG que trazia ja po paje aires gomez out” aly paje */ os queo capitam 25 trouue era hull deles hut dos feus ofpedes que aa pimeira quando aquy chegamos Ihe trouuer®* oqual veo oje aquy veltido na fua camifar cB ele hud Jeu jrmaas os quazes ford efta noute muy bem agafalhados aly devianda como deca 30 ma de colch5s%s @ lengooes polos mais amanfar+ Eoje que he Jefta feira pimeixo dia de mayo pola manhai faymos em tt cbs nolja bandeira p fom, delenborese acima do Rio contra oful (fl. 110) rho que lhes quiserem dar + ¢ logo lhes nosso Senhor deu ‘boos corpos € boos Rostros comaaboos homBése e ele que nos per aquy trouue creo que nom foy sem causa € por tanto vosa alteza pois tamto deseja acregentar 5 na santa fe catolica * deue emtender em sua salua ‘gam e prazera adeus que com pouco trabalho sera asy / eles né lauram nem criam nem ha aquy boy nen vaca nem cabra nem ovelha nem galinka nem outra nhiiz alimarea que custumada seja aoviuer dos homéés 10 né comé se nd dese jnhame que aquy ha mujto ¢ desa semente ¢ fruitos que atera ¢ as aruores de sy Jangam + e com jsto andam taaes ¢ tam Rijos ¢ tf nedeos * queo nd somonos tamto com quanto trjgo legumes comemose/ em quanto aly este dia am 15. daram senpre ao 366 dhiidi tanbory nosso dangari e bailhara c8 os nosos # € maneira que { {seos homé todos quisera comujdar}} sam muito mais nosos amj {805 que nos seus*/ se Ihes homé acenaua se queja ‘ijt aas naaos fazianse logo prestes pera jsso & tal 20 maneira que seos homé todos quisera comujdar+/ todos vieram* porem né trouuemos esta noute aas naaos se n6 iiij ou b esaliet* ocapiti moor dous ¢ simi de miranda hid que trazia ja por paje e aires gomez outro asy paje*/ os queo capitam 25 trouue era hui deles hut dos seus ospedes que 4 primeira quando aquy chegamos Ihe trouueri+ cogual veo oje aquy vestido na sua camjsa® e c& cele hud seu jrmaa6 os quaaes ford esta noute muy bem agasalhados asy devianda como deca 30 ma de colch8d@s e lencooes polos mais amansar* Eoje que he sesta feira primeiro dia de mayo pola manbii saymos em terra c5{ {sa} nossa ban ¢ fomes desenbarcar acjma do Rio contra osu 102 « mTRoDUGAO A cAlTICA TEXTUAL Figura 12 ~ digo interpretativa Gf. 11v]/ -nho que thes quiserem dar e logo hes Nosso Se~ nhor deu boos corpos € boos rostros coma a boos homéens;e Ele, que nos per aqui trouve, creo que nom. foi sem causa ¢, portanto, Vossa Alteza, pois tanto de- 5 seja acrescentar na santa f& catdlica, deve entender em sua selvagam ¢ prazerd a Deus que com pouco traba- Iho seré as Eles nom lavram nem criam nem hé aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem gelinha, nem ou- 10 ta nh alimérea que custumada seja ao viver dos homens; nem comem senom desse inhame que aqui hé ratito e dessa semente ¢ fuitos que a terra ¢ as érvores de si langam, ¢ com isto andam taes tam rijos ¢ tam nedeos que 0 nom somo'nés tanto com quanto trigo ¢ 15 legumes comemos. Enguanto ali este dia ham, dark sempre a0 s5om dium tambori nosso, dangarém e bailharim com os nos- sos;em maneira que sam muito mais nossos amigos que 20 _nés seus. Se Ihes homem acenava se queriam viinr aas na0s, faviam-se logo prestes pera isso, em tal maneira ‘que, se 05 homem todos quisera Convidar, todos vie ram. Porém nom trouvemios esta noute aas naos senom. “moor, dous;e Simam de Mi- 25 randa,dum que trazia jA por paje; e Aires Gomer, outro assi paje, Os que o capitam trouve, era uum deles uum dos seus héspedes que aa primeira, quando aqui che- gamos, Ihe trouveram, o qual veo hoje aqui vestido na sua camisa e, com ele, uum seu irma6, 0s quaes foram 30 esta noute mui bem agasalhados asi de vianda como de cama, de colchéés e Jengées polos mais amansar. E hoje, que & sesta-feira, primeiro dia de pola mana saimos em terra com nossa bandei mos desembarcar acima do rio contra o sul. ‘POS DE EDICAO « 108, Como é comum confandir-se uma edigZo interpretativa com uma modernizada, apresenta-se abaixo o mesmo fSlio da Carta editado nas paginas anteriores, mas, agora, em uma edigdo modernizada (i. 6, com modernizacéo lingiistica) Figura 13 - Euisfo modernizada (fi. 114] -aho que Thes quiserem dar ¢, entio, Noso Senhor Ihes deu bons corpos e bons rostos como a bons homens; ¢ Ele, | que nos trouxe para ¢é, creio que nio foi sem razio: portanto, Vossa Alteza, porque tanto deseja acrescentar & santa f€ catéli- 2, deve cuidar da salvagio deles e agradari 2 Deus que, com pouco trabalho, seré assim. Eles nfo Iavram nem criam: nfo hé aqui boi, vaca, cabra, ovelha, galinha nem nenhum outzo animal que esteja acostu- mado a conviver com os homens; no comem senio desse inha- me de que hi muito aqui e dessa semente e desses frutos que a terra e as frvores langam de si, e por isto andam de tal forma tio rijos e tio vistosos que nem mesmo n6s nio 0 somos tan- to com a quantidade de trigo e de legumes que comemes. Enquanto for dia ali, permanecerio sempre 20 som de um tamborim nosso, dangario € bailario com os nossos; de tal manera que so muito mais nossos amigos que nés seus. Se al- guém Ihes acenava se queriam vir 3s naus, aprontavam-se logo para isso, de tal maneira que, se se quisesse convidé-los a todos, todos viriam. Por isso, nfo trouxemos nesta noite ds naus senio quatro ou cinco, a saber: 0 capitio-mor, dois; Simio de Mi- randa, um que j& trazia por pajem; € Aires Gomes, outro igualmente pajem. Dos que o capitio trouxe, um deles era um dos seus héspedes que no inicio, quando chegamos aqui, the trouxeram, 0 gual veio hoje aqui vestido com sua camisa e, com ele, um itmio seu, os quais foram muito bem acolhidos nesta noite tanto de comida como de cama, de colchdes ¢ de engéis para amansi-los mais. E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhi saimos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar aci- ma do rio contra o stil 104 # mrnopucko A cRtrica TextuaL 4.2.2. Edigdes politestemunhais As edigdes politestemunhais podem ser divididas em dois, tipos:a aftica e a genética. 4.2.2.1, Edigéo critica Uma ediglo critica caracteriza-se pelo confronto de mais de unt testenuunho, geralmente apégrafos, no processo de estabelecimento do texto, com o objetivo de se reconstituir a tltima forma que seu autor Ihe havia dado. ‘A consulta a mais de um testemunho permite 20 critico textual identificar e separat, na medida do possi tos de um texto que nio seriam genuinos, pois, como 0s co- pistas njo erram sempre no mesmo ponto do texto que re~ produzem, uma forma genuina pode ser adulterada em um ‘ou em outro testemunho, mas geralmente mantém-se intacta em outros. Nesse aspecto, uma edigio critica é muito superior a uma edi¢do interpretativa, pois nesta s6 se pode recorrer 4 conjectura (suposi¢do baseada no juizo do critico textual) como instrumento de restituicZo da forma genuina do texto, ou seja, coda intervengio fundamenta-se apenas em uma de- cisio subjetiva do critico. Dada a complexidade e a importincia de uma edigio cri- tica, ha neste livro um capitulo inteiramente dedicado a ela: © capitulo 6, mais adiante. 4.2.2.2, Edigdo genética Tal como em uma edigZo critica, faz-se uma genética também através da comparacéo de mais de um testemunho, 36 que geralmente autégrafos ¢/ou idiégrafos (0s chamados originais), ¢ almeja-se registrar todas as diferengas entre a te- ‘T1POS DB KDICKO « 105 dagdes preliminares de um texto € a forma final dada pelo seu autor. A edigio genética é fruto do desenvolvimento de uma abordagem de critica do texto litersrio baseada no estudo da sua génese, abordagem a que se chama de artica genética’. Se~ gundo Salles (1992: 17), essa abordagem fandamenta-se em uma constatagio basica: a de que (..) © texto definitivo de uma obra, publicado ou publicével, é,com raras excegdes, resultado de um trabalho que se carac~ teriza por uma transformago progressiva Para delinear o percurso criativo de um texto, o critico ge- nético utiliza uma gama heterogénea de fontes: de acordo com Hay (1991:23), elas podem ser as marcas dos impulsos iniciais (p-ex., notas, cadernos, disrios), os documentos das operacSes preliminares (p. ex., projetos, planos, roteiros) ¢ ainda os ins- trumentos do trabalho redacional (p. ex., esbogos, primeiras redagGes, rascunhos). Uma edigio genética deve, portanto, apresentar a forma final de um dado texto (ou seja, a forma que 0 autor con- siderou como definitiva) acompanhada do registro das in- formagSes relativas & sua génese obtidas através das ja refe- ridas fontes. Porque se trata de uma abordagem relativamente nova (sua repercussio nas letras luséfonas teve infcio em meados da dé- cada de 80), os procedimentos técnicos para a realizagio des- te tipo de edicio estio ainda em franco desenvolvimento: é necessirio refletir ndo apenas sobre o que deve ser registra~ do mas também sobre como o fazer. ia, € comum wtlivatse a expresio fig dautare pas abordagern (Ep. ee, [el 1987). , 9 ) VIII a) » o 106 w iwtRoDUGAG A CRITICA TEXTUAL Um exemplo bastante fecundo deste tipo de edi¢io & a que foi publicada por Mendes (1 Marias, de Raquel de Queiroz (1910-2003). Sua edi ‘que chama de “edigio critica em uma perspectiva genética”, registra as variantes presentes em cinco” testemunhos: — A: manuscrito, Arquivo Mirio de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, meados de 1938; ~ B: datiloscrito, Arquivo de Literatura Brasileira da Fundacio Casa de Rui Barbosa, datado de 07.01.1939; = Dsimpresso, 1? ed. (1939); ima edigfo revista pela autora da obra ¢ testemunho utilizado como texto-base]. ‘Veja-se, na pigina seguinte, a reprodugio de uma pégina da referida edigio genética (3 esquerda, encontra-se 0 ase; direita, o aparato genético com as variantes do: i ). Dentze 05 simbolos utilizados no aparato genético, veri- ficam-se os seguintes no excerto reproduzido a seguir: # = ausincia de parégrafo no testemunho citado 11 = enteelinha superior <= = margem esquerda [) = acréscimo ‘<> = supressio de um segmento apagado ou riscado <> [] = substimigo de um segmento apagado ou riscado <> {} = substituigio por superposigio perdido, cuja dats moixima seria capiTULO 5 NORMAS DE EDIGAO Em todo processo de edicéo de um texto, hi sempre uma série de procedimentos que sio seguidos: a esses procedi- ‘mentos costuma-se chamar de normas (ou crittrias) de edigo. 5.1. PRINCIPIOS NORTEADORES Considerando que cada tipo de edicio atende a uma fi- nalidade, nio se pode dizer simplesmente que um dado con- Junto de normas pode e deve ser aplicado em qualquer caso: ‘norms para uma edigo diplomética sio muito distintas das para uma edigio interpretativa. Por outro lado, no desejavel que, para um mesmo tipo de edigio, se utilize um conjunto de normas ao s¢ editar um texto mas outro con- junto diferente para outro texto: € de esperar que um dado tipo de edicio seja realizado seguindo-se sempre as mesmas normas. Antes de analisar 0s procedimentos bisicos em uma edi- eho, convém refletir sobre alguns principios que devem reger a constituigo de um conjunto de normas adequado: as nor mas devem ser (a) apropriadas ao tipo de edigao e, por conse- CeCEeT’ 110 « uxrRoDUCAO A CAITICA TEXTUAL giiéncia, A sua finalidade; (b) internamente coerentes; (c) expli- citas; € (d) rigorosamente aplicadas. Como cada tipo de edicio atende a uma finalidade, as normas devens possibilitar a satisfago de fnalidade da edigao: nor ‘mas conservadoras nio sio compativeis com ediges desti~ nadas ao piblico em geral, pois, se se admitir que o obje~ tivo desse piiblico é a fruigio pura e simples do texto, a manutengio de caracteristic: inais, como variages pu- ramente grificas ou ainda o sistema de pontua¢io original, s6 dificulta a sua leitura e, portanto, a fruigo; por outro la- do, normas atualizadoras nio so adequadas a edigdes para certos especialistas, como, p. ex., para lingiistas, pois, con- siderando ser o seu obj ise da linguagem do tex- to nos mais variados niveis, o apagamento de caracteristi- cas originais de valor lingiifstico torna impraticavel sua in- vestigacio. Nio se pode deixar de atentar ainda para o fato de que as rnormas deve apresentar caeréncia interna: isto significa que f- tos iguais devem receber tratamento igual. Nio faz sentido, p.ex., optar-se pelo desenvolvimento de algumas categorias de abreviatura, mas nao de outras, nem tampouco pela mar- cagio do desenvolvimento de algumas categorias de abrevia~ tura, mas no de outras: normas incoerentes acabam por in- validar a edigZo como um todo, pois impedem que o leitor exigente possa fazer uso adequado do texto. Outra questio de grande importincia € 0 fato de que as normas deve ser explicitas: nfo se pode exigir de um consu- lente adivinhar quais foram os procedimentos adotados em cada situagio, porque apenas quem viu o modelo é capaz de sabé-los. Por fim, convém esclarecer ainda que as normas devem ser aplicadas rigorosamente, ou soja, em todas as situagdes em que a norma for aplicivel, deve-se aplicé-la NORMAS DE EDIGAO « 111 *ROCEDIMENTOS BASICOS Um dos procedimentos bisicos para a realizagio de uma edigio 6 a transcrigio (exceto, naturalmente, no caso da edigio fac-similar): anscrever significa aqui reproduczir im dado texto em um novo suporte material Diversas so, porém, as formas de se realizar uma trans- crigdo ¢ as diferencas dizem respeito, via de regra, a0 grau de lidade estende-se entre los opostos: 0 da conservago € 0 da uniformizagao®. Em uma transcrigio conservadora, procura-se reproduzir, na medi- da do possivel, cada caracteristica do modelo; ja na sniform~ zadora, certas caracteristicas do modelo sio apagadas através de um processo de uniformizacio de variagdes (gréficas)- Para realizar qualquer uma das possiveis formas de trans- ctigdo, sempre 6 necessério determinar como serio transcri- tos 0 elementos de um modelo, razio pela qual convém co- nhecé-los mais detalhadamente. 2) Caracteres alfabéticos Cada registro escrito de um texto compée-se basicamen- te de um conjunto de unidades graficas minimas encadeadas, 08 caracteres, Estes sio a realizaco material de um sistema abstrato de representagio lingiifstica, cujos elementos so 0s _grafemas. Assim, os caracteres < 2 > e < 3 > constituem rea lizagdes materiais de uma mesma unidade abstrata a que se dé 1, Come se vf, nfo consituem sinSnimos os termos edo € tans: tar sign fica realizar om conjtnta complexo de operecSes das quasfazem parte 0 pe~ ras 3 trascrigao mas também a proposigio de conjectursaselegio de variances iano, sdlzado aqui com um significado mais especfic: para designar a moderniaco lingisiea do texo, que ger asim uma espe de pact Fue dele, ou sje, ums edicio modernized (cf explicacz0 ma p89). 112 « nvrnopucho A cnirica TEXTURE tradicionalmente o nome de 2é e que é identificada aqui por 2? (aos caracteres que sio realizacdes de um mesmo grafema, dé-se o nome de alégrafes). Os grafemas e, conseqiientemen- te, os caracteres podem ser alfabéticos, quando fazer parte de um conjunto fixo de unidades que geralmente representam fonemas, como no caso das letras, ou ndo-alfabéticos, quando tém fisngio distinta, como no caso dos néimeros, dos sinais de pontuagio, dos sinais abreviativos, etc. Os grafemas alfabéti- cos formam um conjunto coeso de formas numericamente restritas: 0 alfabeto. Esse conjunto nio é universal, pois algumas comunida- des lingiistcas adotam um dado conjunto; outras, um outro, gue se pode diferenciar, p.ex., em termos de forma dos grafe- mas, do seu niimero e/ou do fonema que cada graferna repre~ senta. Modernamente existem alfabetos como o latino (utli- zado para representar quase todas as linguas do ocidente), 0 greg (restrito atualmente & lingua grega), 0 drabe (restrito 3 lin- gua drabe), o hebraico (empregado para a lingua hebraica, para © iidiche e para o judeu-espanhol), dentre outros. Vejam-se a seguir caracteres de cada um desses quatro alfabetos citados: abedetghijkimnopgrstuvwxye ‘Gregos apySelnoieanveonpotvexvo ‘Krabes G32 OVA GSE CBE Buse CEGaG! Hebraicos NYY IPH VOIDIDD UATIATaaaR NORMAS D5 FDIGAO # 113 Raros so 0s casos em que textos em lingua portugue- sa foram registrados em alfabetos distintos do latino ~ apa~ rentemente s6 0 foram no arabe ¢ no hebraico, e durante a Idade Média: em caracteres arabes, ha os textos ji estu- dados pelo arabista portugués David Lopes (1867-1942) publicados no seu Textos em Aljansia Portuguesa (1897); em caracteres hebraicos, hé a obra De Magia, preservada no ms. quatrocentista Laud. Or. 282, da Bodleian Library de Ox- ford, e estudada por Llubera (1953). Em casos como estes, pode-se transcrever-o texto segundo 0 alfabeto do mode- Jo (Grabe ou hebraico) ou ainda converté-lo para outro al- fabeto (como do dtabe para o latino), processo a que se chama de transliteragio, Os grafemas de um mesmo alfabeto, no entanto, podem realizar-se materialmente em formas distintas: podem variar em termos de tipo e de médulo. Os tips sio os estilos gréficos em que os grafemas se con- cretizan em caracteres (manuscritos, impressos ou digitais): hd, -€x, 08 tipos romanos redondos, romanos itilicos, gaticos, etc, Romanos redondos abcdefghijklmnopqrstuvwxy2 ‘Romanos itilicos abedefghijklmnopqrstuvwxy2 Géticos abcbetghijklmuopgestubwxps Os médulos sio fruto de relacdo entre o caractere ¢ sua pauta subjacente': sio mintisculos os caracteres que se esten- dem conjuntamente por uma pauta tetralinear; ¢ maitsculos, 4. Embora via de reg, caraceres maiiseulossejam mores que of miniscuas, nfo E esencialmente esta earctritien que os diferencia, C ‘ CECE AM» nernoDuede A eRinICA TEXTUAL 05 que se limitem conjuntamente a uma pauta trilinear’, di- ferenga esta que se pode perceber claramente pela figura a seguir: Vejam-se abaixo caracteres latinos romanos redondos nos dois médulos possiveis: Mindsculos abedefghijkimnopqretuvwxye Maitisculos ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ Em alguns poucos casos, um mesmo grafema pode reali- zar-se como duas diferentes formas (dois caracteres distintos) de um mesmo alfabeto, de um mesmo tipo ¢ de um mesmo médulo: trata-se, nesse caso, dos alégrafos contextuais. No pas sado era muito comum o grafema s realizar-se em médulo mintisculo como uma forma de dupla curva, 0 < 5 >, ou como uma forma longa, o < J >: a primeira ocorria geral- mente em posigio final de uma seqiiéncia gréfica (equivalen- te a uma palavra); enquanto a segunda, em posicio inicial ou medial: p. ex., < Jeftas >. Como se vé, 0s caracteres alfabéticos apresentam uma sé- rie de distingdes que podem ou nio ser reproduzidas em uma transcrigio. Para melhor perceber essa diferenca de procedi- mentos, convém analisar um exemplo: consultem-se a seguir a reprodugio fac-similar de uma estrofe (12 do canto I) da 2 difrenga de médulo pa oposigso entre am deve-sereconbecer que,n0 cata dst maissul os ds leuas lew em conta também ima pate interme’ faotere < B >, cus arcos exo dvidides pels paves intermedi ORMAS DE EDIGAO = 115 cedigao princeps (1572), com 0 pelicado da portada virado para 2 esquerda, d’ Os Lulsadas de Luis de Cambes (1524-1580) ¢ as respectivas transcrigdes conservadora ¢ uniformizadora Figura 15 - Fac-simile Os Lastades Fonts: Cates, 1982:38) [®or eff vos darey ume Nw a ue fex a0 Rei,ez a0 Reino tal eruico, Bee eee Diidom Fas, de Foner] “A («arapaellesocobige: Pos polosdoze paresdarvas qtero, Os doze de nglarerra,ex- Jeu Magrgo. Dowuostombem aqueleilaltre Gama, Que pars fide Eneastoma afama, Figura 16 ~‘Transerigéo conservadora d'Or Lusieder Por eftes vos darey hum Nuno fero, Que fez ao Rei, & ao Reino tal Jeruigo, Hlura Eqas, & hit dom Fucs, { de Homero ‘A Citara parelles fo cobigo: Pois poles doze pares danues quero, Os doze de Inglaterra, & 0 Jew Magrigo. Douuos tambem aquelleilustre Gama, Que para |i de Eneas toma a fama. Figura 17 - Tramscrigfo uniformizadora d°Os Por estes vos darei um Nuno fero, que fez. a0 Rei ¢ 20 Reino tal servico, uum Egas ¢ um Dom Fuss, que de Homero a chtara par'eles 86 cobigo, pois polos Doze Pares dar-vos quero 08 Doze de Inglaterra e 0 seu Magrico. ‘Dou-vos também aquele ilustre Gama, que para si de Enéas toma 2 fama 116 « nernopugio A cnivica rexrUAL Comparando as duas transcrigdes é possivel perceber como 0 tipo itélico foi mantido na primeira, mas substituido por redondo na segunda; como os aldgrafos contextuais e <5> foram mantidos na primeira, mas uniformizados em <5 > na segunda; como os alégrafos e < v > foram mantidos como no modelo na primeira, mas uniformizados em , para representagio de fonema vocilico ¢ semivo- cilico, e em < v >, para representagio de fonema consonan- tal na segunda; dentre outras diferencas’ A transctigio dos caracteres alfabéticos é uma das fontes ‘ais importantes de erzos em edigdes:cf.0 que jé se disse aqui sobre os chamados ens paleogrifices (nas pp. 82. ‘Um aspecto especialmente complexo & 0 das diferensas de mbdulo, seja quanto a0 seu reconhecimento seja quanto & sua uniformizagio. No que se tefere ao reconhecimento, a dificuldade existe quando a diferenga entre maitiscula e mintiscula se baseia pra- ticamente na dimensio: para grafemas como o g,a diferenga de médulo baseia-se na dimensio e no tragado (cf. x ), mas, em casos como 0 do 0,2 diferenga reduz-se quase total- mente & dimensio (cf. x ). Em casos como este dl no, o problema esti no fato de existir, em textos manus- critos, uma escala gradiente de formas, sendo as formas inter- medisrias ambiguas: nio 6 possivel saber claramente quando se trata de maidiscula ou de miméscula. Naturalmente esse pro bblema tem conseqiiéncias: como a pontuagdo de textos mui- to antigos era restrita em termos de formas (endo a principal, © ponto), um dos critérios para se determina o limite de um ‘arcterities da modelo nfo teri sido repre- sigue de com <> em
, NORMAS DE EDICKO © 117 periodo é justamente a presenca ou auséncia de maitisculas; rio sendo possivel estabelecer essa diferenca, nio se pode, em muitos casos, reconhecer o limite de periodos, ‘Jé quanto a uniformizagio da diferenga de médulo, o pro blema esti em saber quando ela seria significativa em termos textuais: se, em textos medievais, essa diferenga parece reger principalmente os limites de periodos, jé em textos de épocas posteriores outros valores parecem ter sido agregados, pois & muito comum, em textos do séc. XVIII, escreverem-se subs~ tantivos abstratos iniciados por maiiisculas, nfo importando sta posigao no periodo — tal uso patece revelar uma concep- io estética em que os conceitos expressos pelo substantive sofiessem uma espécie de animizacio, tornando-se entidades independentes do ser humano. Levando em conta essa questio, Rosiello (1966:72) pro~ és 0 estabelecimento da diferena entre aldgrafos denotativos & conotativos: os primeiros sio aqueles cvjo elemento de varia~ gio relativo 4 unidade (0 grafema) no acrescenta nenhum valor atribuivel de relevincia cultural ou estilistica 20 signifi- cado da propria unidade, enquanto os segundos sio aqu: em que hi a atribuigio de relevincia cultura, estilistca, de gos to literdrio ou de caracterizagio regional. Segundo essa con- cepgio, dever-se-ia, em uma edicio interpretativa ou critica de um texto literdrio, p.ex., do séc. XVII, manter as diferengas de médulo originais, pois tinham um significado especial na época. Tal critério também poderia ser levado em conta a0 se editar texto com as grafias latinizantes do séc. XVI (com abundincia de th, ch, y, etc.) pois tinham um valor cultural es- pecifico dentro do contexto do Renascimento. ) Abreviaturas No passado era muito comum o emprego de abreviaturas, 1.6, de formas reduzidas de se escrever uma palavra, as quais re te eon’ IODE a9 YOQAAA y 118 w iwTRovUGHO A cniTica TEXTUAL se poderiam compor de grafemas alfabéticos (as letras) © nlo- alfabéticos (os sinais abreviativos). Tomando como ponto de partida a proposta de Cruz (1987: 81-101), podem-se classifi- caras abreviaturas, segundo a natureza do sinal abreviativo, 4) abreviatura por sinal geal, composta por um trago sobre- posto que apenas indica tratar-se de abreviatura, sem se assi- nalar quantas € quais letras foram suprimidas: p. ex., ale = aquele. Esta pode ainda ser subdividida em (i) abreviatura por suspensdo, caracterizada pela manutengio de apenas a primei~ ra letra da palavra (caso de sigld) ou pela supressio de parce final da palavra (caso de apScope):p.ex.,A.= Autor e &h = ende; (ii) abreviatura por contragio, definida pela supressio de uma seqiiéncia no interior da palavra: p.ex., dF = deus;e (ji) abre~ viatura mista, quando em uma mesma palavra se verificam contragio apdcope: p. ex., soni? = somente ii) abreviatura por sinal especial, caracterizada pela pre- senga de um sinal que indica quas seriam as ets elimina 10 = certo (o sinal 'é normalmente utilizado paca abreviar seqtiéncias com ¢ e r, como er e re). Esta pode ser ainda subd abreviatura com significado préprio ¢ absoluto, al abreviativo sempie refere-se a uma mes- ma seqiién * = pore (i) abreviatura com significa. do relativo, ou seja, 0 sinal abreviativo refere-se a diferentes seqiiéncias, dependendo da posi¢o em que ocorre: p. €x., tra = contra, mas cuj9 = cjos. ) abreviatura por letra sobreposta, constituida da sobrepo- sigo de uma ou duas das letras que fazem parte da seqiiéncia suprimida: p. ex., out = outro. ‘Um tipo especial de abreviaturas sio os chamados nomi- nna sacra, Sua forma em textos em lingua portuguesa, com- posta efetivamente de caracteres latinos, s6 se entende em sua historia: tendo sido transmitidos de textos gregos cristios para tradugSes latinas, mantém ainda marcas de sua origem, NORMAS DE EDICAO w 118 pois, em casos como xfo (= christo) e ihu (= iesu), tem-se reflexo da abreviatura original em caracteres gregos: x lati- no = x grego e p latino = p grego, no primeiro caso; h la~ tino = 7) grego, no segundo. No passado um dos problemas de transcti¢io de abrevia~ turas estava na dificuldade de se reproduzirem tipografica~ mente os sinais abreviativos em transcrig6es conservadoras; hoje, porém, com os recursos da informitica (mais especifica~ mente, dos editores de fontes para computador), pode-se re- produzir qualquer forma de sinal abreviativo, algo necessirio em uma-edigéo diplomitica. Em transcrigdes uniformizadoras, o problema esti em como desenvolver as abreviaturas, ou seja, como substituir os sinais abreviativos por catacteres alfabéticos. Como em qual- quer um dos tipos fundamentais de edigio jé citados ha sem- pre o respeito 4 lingua do texto, costuma-se adotar certos cri- térios no desenvolvimento de abreviaturas. Para se evitarem projegdes anacrOnicas da lingua do editor (do presente) sobre a lingua do texto (geralmente do passado), costuma-se de- senvolver uma abreviatura de acordo com as formas por ex- tenso da palavra em questio presentes no modelo: assim, a abreviatura p’gunta, que a rigor poderia ser desenvolvida como pregunta ou pergunta, é desenvolvida de acordo com aquela dessas duas formas que estiver registrada por extenso em alguma passagem do modelo. Na existéncia das duas no modelo, clege-se a mais freqiiente; em havendo a mesina feegtiéncia para ambas, escolhe-se a mais comum em textos do mesmo autor (quando conhecido), da mesma regio ou ainda da mesma época. ¢) Separagdo vocabular {intra- e interlinear) Nos primérdios da escrita, utilizava-se a chamada saripia continua, em que nio se inseria espago em branco na cadeia 120 iwrRODUGAO A CRITICA TEXTURE de caracteres. Com o passar dos tempos, esse recurso come- ou a ser utilizado, certamente para facilitar a leitura. Em tex- tos portugueses medievais, o espago ocortia entre seqiténcias que geralmente cozrespondiam a um vocibulo fonolégico, ou seja,a uma unidade acentual organizada em torno de uma silaba t6nica, que se pode compor de um ou mais vocébu- los morfolégicos:p.ex., artigo + substantivo, preposigio mo- nossilébica + substantivo, etc. Posteriormente comegou-se a separar as seqiiéncias levando em conta basicamente 0 voat- bulo morfolégico (artigo, substantivo, adjetivo, verbo, etc.) Em se tratando dessa questo, os problemas aparecem se- ja quando se reproduz fielmente a separago do modelo seja quando se adota o sistema atual (baseado no vocébulo mor foldgico).. Quando se mantém a separa¢io vocabular do modelo, a dificuldade esté em determinar com precisio e seguranga 0 que esté junto ¢ 0 que esta separado: isto dé-se porque, em fingio da manualidade de escrita de testemunhos manusc tos, a extensio do espaco em branco varia consideravelmente, sobretudo na segunda metade de cada linha, quando a mar- gem direita comeca a se aproximar e 0 copista tende-a com- primir 0 texto para respeitar a margem ~ em textos impressos, essa dificuldade, existente, costuma ser menos fieqiiente. Por outro lado, quando se adota o sistema atual de separagio, nem sempre é ficil reconhecer se uma seqiiéncia representa ape- nas uma palavra ou mais de uma. Assim, em uma seqiiéncia como devealevantar, poder-se-ia estar representando uma ca- deia composta de dois verbos deve + alevantar (variante proté- a do verbo) ou de verbo deve + preposigio ou pronome obliquo a + verbo levantar. Por volta do séc. XVI, a necessi- dade de se escrever mais rapidamente tornou a escrita cada vez mais cursiva e, paralelament encadeada: assim textos manuscritos (geralmente de cunho juridico) posterio~ NORMAS DE EDICAO « 121 res a essa época é comum encontrar quase linhas inteiras de caracteres ligados uns 20s outros, mesmo representando vo- cibulos morfologicos. Nesses casos, 0 reconhecimento de fionteira de palavra (necessério para uma edicdo interpreta~ tiva ou critica, p. ex.) também é igualmente problemtico. 4) Diacriticos Aos caracteres alfabéticos era comum acrescentarem-se sinais para lhes conferir valores especificos: sio os diacriticos. Modernamente compreendem sinais gréficos como cedilha <>, acento agudo <' >, ponto < - >, acento grave <*>, acento ciraunflexo <*> e trema<” >. Em textos medie- ‘vais portugueses, j4 se constata a presenca de, pelo menos, os quatro primeiros (of, Cambraia, 2003), embora seus usos fos- sem distintos do sistema atual. Para sua transcrigo fiel, topa-se principalmente com 0 problema da detecgdo de sua presenga: por serem sinais bas- tante discretos graficamente, sua presenca pode ser ofuscada pelo desaparecimento da tinta (o que, no caso de caracteres alfabéticos, fica evidente, no entanto, pela lacuna na cadeia gri- fica); além disso, pontos ¢ tracos finos podem ser confindidos com manchas deixadas no processo de registro com tinta. ‘Mas hé certamente um problema ainda mais complexo em relag&o aos diacriticos: quando se opta por substitui-los pelas formas ¢ usos atuais, é necessirio primeiramente deter- minar seu valor no modelo, tarefa nem sempre possivel de se fazer com seguranca, Como exemplo, podem-se citar os ca~ sos do acento agudo e do til analisados por Cambraia (2003) G COC yA YS ’ 122 w inTRoDUGHO A cRITICA TEXTUAL no testemunho do Livro de Isaac presente no c6d. ale. 461 (da Biblioteca Nacional de Lisboa). O acento agudo (ou simplesmente o trazo oblique) podia ocorrer duplicado sobre caracteres contiguos em textos anti- gos: quando representavam vogais etimol6gicas, 0 acento mar- caria hiato entre vogais orais decorrente de sincope de con- soante intervocilica nio-nasal (cf. iil, do lat. NUDU-) ou hiato entre vogal nasal e oral decorrente de sincope de con- soante intervocilica nasal (cf. vffde, do lat. VENITE); quando re- presentavam vogais nfo-etimolégicas, o acento marcaria hiato entre a vogal representada pelos dois grafemas contiguos € a ‘vogal seguinte (ambas orais) decorrente de sincope de con- soante intervocilica nao-nasal (cf principAdes, do lat, PRINCT- PALES); ou abertura da vogal (cf. 04, interjei¢3o de vocativo). Em certos casos, porém, seu valor nio é claro, pois em dados como vfr o trago obliquo duplicado poderia estar marcan- do vogais geminadas etimolgicas nasais ou orais, ambas op- «es possiveis nfo apenas de acordo com o que se sabe da evo- Jugio fonética dessa palavra: wbiine > vBir > vir > vir (Williams, 1991: 248) mas também pelo fato de ocorrerem no mesmo testemunho as formas vijnr (com marca evidente de nasali- dade) e vijr (sem marca evidente de nasalidade). Isto signifi- ca que, se em uma edigio interpretativa se converter a for- ma original vijr em viinr ou vir, em qualquer um dos dois ca~ 308 a op¢io ser sempre subjetiva, pois ambas sio igualmen- ’inda que muito distintas. Caso ainda mais complicado é o do til (ou simplesmente © trago horizontal). Originalmente, esse trago consistia em um, sinal abreviativo utilizado em abreviatura por sinal geral (ou seja, que substituia qualquer tipo de seqiiéncia suprimida em uma abreviatura), Em fungio de um fendmeno fonolégico muito proprio da lingua portuguesa ~ a sincope de consoan- te nasal alveolar intervocilica, ocorrida por volta do séc. XI HOAMAE DE EDIGAO = 123 (Teyssies, 1993: 15-6) ~, esse sinal abreviativo adquiriu um novo significado: em ver. de marcar suptessio grifica de um ou mais grafemnas, passou a marcar a nasalidade adquirida pela vogal que precedia a referida consoante nasal antes desta so- fier sincope mantida, em certos casos, apés a sincope. As- sim a seqiiéncia grifica lia representaria foneticamente algo como [luna] em textos latinos, mas provavelmente [‘Ii9] em textos portugueses. Um dos problemas esté no fato de que esse diacritico, em textos manuscritos, costuma apresen- tar oscilagao em sua extensfo, o que suscita diividas sobre de quais vogais estaria marcando nasalidade, As diferentes inter- pretagdes para esse problema tém gerado diferentes atitudes de editores: assim, para a forma portuguesa medieval derivada do lat. UNU- & possivel achar transcrigdes como as seguintes: hit, hii, hit e/ou huil (no caso de edigdes interpretativas criticas, € comum suprimir-se 0 h, ndo-etimoldgico). Ainda em relagio ao artigo indefinido, costuma haver problemas em relagio 3 forma hija: como em certa época se desenvolve uma consoante bilabial no meio do hiato, nem sempre é claro se 6 til esti como marca de nasalidade ou como sinal abrevia~ tivo de m, Segundo Bechara (1985: 68), € apenas a partir do séc. XVIII que se fixa a grafia uma (prova irrefutével da con- solidagdo da epéntese) — mas deve-se levar em conta que o re~ gistro sistemitico de um dado fato na escrita € geralmente precedido por um considerivel periodo desde seu apareci- mento na fala, 0 que significa que muito provavelmente a epéntese jé teria comecado a ocorrer antes do séc. XVII, s0~ bretudo porque um caso similar, a epéntese na passagem de iia para minha, jé € registrado desde o séc. XIII (cf.a forma inna, em que 0 digrafo nn representa o fonema / p./, pre~ sente na Cantiga de Santa Maria 135 (Mettmann, 1972: 196). Melo (1988: 18), no entanto, considera errénea a pratica de se substituir a forma iia por uma em textos do séc. XVI (Os 124 « inTRopugho A caltica TEXTUAL Lusiadas, de CamBes) ¢ do XVII (Vida do Venerdvel Padre José de Anchieta, de Simo Vasconcelos, 1597-1671). @) Pontuacso Além dos sinais abreviativos e dos diacriticos, outra clas- se de caracteres nio-alfabéticos sio os sinais de pontuagio. “Também estes elementos passaram por mudangas 20 lon- g0 da historia: em termos nZo apenas de inventério mas tam- bém de uso. Em textos medievais portugueses, os sinais mais comuns so 0 ponto e a barra inclinada, mas acham-se tam- bém, em certos testemunhos, sinais como o ponto-e-virgula invertido, 0 ponto-de-interrogacio eo hifen, além de dife- rentes combinagGes entre sinais. No séc. XVI, Joao de Barros aptesenta como sinais, em sua Gramética da Lingua Portuguesa (de 1540), a coma <:>,0 clon <. >,a virgula <, >, 0s pa- venteses < () > © a interrogagao < ? > (cf, Barros, 1971:154); no séc. XVII, Duarte Nunes Leo, em sua Ortagnfia da Lingua Portuguesa (de 1604), refere-se inicialmente 3 vigula < , >,3 coma <: > € 20 cblon < . > ~mas depois amplia a lista com 0 interogativo , 0 admirativo <1 >, 0 pardgrafo <7 —>, 0s parinteses <() >, 0 meio-ciulo <) >, 0s dpices < .. >,o hifen <->, 0 asterisco <* >, 0 obelisco <— >, a brachia <~>,a divisio <-> © 0 angulo < V > (cf. Leio, 1983: 177 € 180) A transcri¢io fiel dos sinais de pontuagio, independente- mente da época, 6 hoje em dia perfeitamente vivel, pois os editores de fontes permite a criagdo de caracteres com qualquer forma. O problema da pontuagio no processo de edigio manifesta-se quando se propée a uniformizi-la segun- do 0s sinais e os usos atuais.Talvez o exemplo mais significa tivo deste problema seja a oposigio entre oragdes adjetivas restritivas e explicativas: como poderiam, ambas, no passado vir separadas por algumn sinal (p. ex., 0 ponto),a opcio por NORMAS BE EDICAO 125 substituir o sinal do testemunho em edigio por virgula (para a explicativa) ou por espago branco (pars a restritiva) tem im- pacto dircto sobre o sentido do texto, ou seja, repontuar um texto, mesmo adotando um sistema parcimonioso e forte- mente baseado nas ocorréncias originais, significa necessaria- mente fixar-lhe uma interpretagio. Justamente por isso & necessério ao critico textual familiz~ zizar-se com os sistemas antigos de pontuago em lingua por- tuguesa, 0 que pode ser feito através dos estudos atualmente dispontveis a esse respeito, tais como Ferreira (1986), Martins (1986), Rosa (1994), Machado Filho (1999, 2002) e Santos (2002); para visio parondmica da pontuagio no Ocidente, 0 trabalho mais completo é o de Parkes (1993). f Peragratacéo Assim como nio se separavam na escrita os vocibulos por espago branco, também nio costumavam ser marcadas as uni dades textuais intermedisrias entre 0 periodo ¢ o capitulo, ‘ou seja, os parégrafos. Em textos medievais portugueses, os limites de tais unidades eram eventualmente matcados atra~ vvés do caldeirio (forma que se assemelha ao sinal aual < >), freqiientemente escrito com tinta vermelha, ou ainda atra~ vvés da palavea Item (ou de sua forma abreviada: If). Outra for- ma de marcar unidades textuais eram as letras iniciais, que po- deriam assumir dimensio bem superior 4 da média e vir ri- camente ornadas (as capitulares iJuminadas) ou apenas vir na dimensio de uma maiiscula regular, mas em cor distinta da do texto. Com os livros impressos, tal sistema comegou pau- latinamente a se modificar, embora nos primeitos tempos 0 uso de caldeirio e capitulares ornadas fosse predominante (CE. esse respeito a figura 5, na p.74,€ a figura 8, na p.79). Caso se opte por introduzir paragrafos ao se realizarem ediges mais uniformizadoras, é preciso avaliar de que for 126 w iwTRODUGHO A cRETICA TEXTUAL ma tal agio poder modificar o sentido do texto, através de fragmentagio de unidades harménicas ou de fusio de uni- dades independentes, 9) Sinais especiais Com o objetivo de informar ao consulente sobre certos procedimentos adotados, costuma-se utilizar um conjunto de simbolos, tais como parénteses redondos, parénteses uncina- dos, colchetes, chaves, etc Infelizmente o patriménio ecdético em lingua portugue- sa apresenta uma grande diversidade de priticas quanto a esse aspecto. Essa diversidade parece decorrer no apenas do de- senvolvimento das técnicas de edi¢i0, que acaba impondo a necessidade de mudangas nos sistemas tradicionais, mas tam- bém do fato de textos de épocas distintas apresentarem parti- cularidades que inviabilizam sistemas universais. Como exem- plo, pode-se citar 0 fato de que é comum utilizarem-se os colchetes para se assinalarem acréscimos a um texto realizados pelo editor: se tal pratica & perfeitamente viavel em relagio a textos medievais, nfo o é em relacZo a textos modernos, pois nestes o emprego de colchetes pode ficar ambiguo, jé que 0 proprio autor do texto os pode ter utilizado (na escrita me~ dieval nao ha 0 uso de colchetes) 5.3. PROPOSTAS DE NORMAS GERAIS ‘Vaaias propostas para se uniformizar 0 conjunto de nor~ mas empregadas na edigio de textos antigos (em especial, me- dievais) em lingua portuguesa jé foram realizadas'. Dentre mente proposta para expanhalyela- formes, 1944), ¢ pars © galego, de MonMAS DE EDICKO «127 essas, podem-se citar a do Centro de Estudos Filolégicos de Lisboa (Castro et al., 1973) e a do Instituto de Paleografia de Coimbra (Costa, 1977). A essas podem-se ajuntar ainda a pro- posta estabelecida durante o II Encontro Nacional de Nor- matizagio Paleogrifica de Ensino de Paleografia realizado em Sio Paulo no ano de 1993 (reproduzida em Berwanger & Leal, 1995:67-70), € a proposta elaborada durante o II Se~ minério para a Histéria do Portugués do Brasil, realizado na cidade de Campos do Jordio em 1997 (publicada em Mattos e Silva, 2001, vol. If, t. Il: 553-5), estas duas visando princi palmente'a manuscritos brasileiros. Apesar dessas tentativas de uniformizacio, as normas de edigao de textos em lingua portuguesa continuam padecen- do de grande diversidade’, o que, nesse caso, nao constitui ne- nhum beneficio. Nio parece haver uma causa “inica para a dificuldade de se uniformizarem as normas para a edigio de textos em por tugués: o exercicio da critica textual no mundo luséfono historicamente bastante timido, o que certamente tem tor- nado o avango das técnicas mais lento; 0 progresso nos ¢s- tudos lingiifsticos e literdrios tem imposto a necessidade de revisio e modificagio de priticas passadas; a concentragio do exercicio de edicio, no mundo académico, sobre textos medievais em detrimento de textos de periodos posteriores (p.ex., renascentistas ou barrocos) impede a busca de nor- s mais abrangentes, transtemporais; a falta de didlogo sis- temitico entre profissionais de diferentes especialidades que atuam efetivamente na execugio de edicio de textos — cri- ‘icos textuais, paledgrafos, historiadores, lingitistas, criticos 128 « wwrnovucko A CRITICA TEXTUAL literérios — dificulta a cizculagZo do saber continuamente cons tituido a cada experiéncia, 0 que propicia a adocio de pré- ticas cujas insuficiéncias ja haviam sido percebidas em traba- Ihos de uma dada especialidade — enfim, hé a concorréncia de varias condigdes determinando a dificuldade de se alcan- carem priticas convergentes. Para servir de referéncia aqueles que se propuserem a fa- ver edigdes (sobretado de textos medievais), apresenta-se a seguir um conjunto bisico de normas para cada tipo de edi- io: excetuam-se aqui a jac-similar, cujos problemas sio mais propriamente de ordem tecnologica, ¢ a genética, por se tra- tar de uma abordagem ainda recente, o que dificulta a iden tificago das questdes técnicas mais centrais © recorrentes, Além disso, as normas para uma edigo critica serio apresen- tadas apenas na sego 6.2., pois sua compreensio depende do entendimento de como se realiza esse tipo de edigio. 5.3.1. Edig&o diplomética a) Caracteres alfabéticos: transcrever como caracteres roma- nos redondos, reproduzindo-se as diferencas de médulo ¢ dos alégrafos contextuais como no modelo. Quando houver mais de um tipo de caractere no modelo (como, 4) Sinais de pontuagio: transctever fielmente. ©) Caracteres de leitura duvidosa: transcrever entre parénteses redondos si £) Caracteres de ranscrever como pontos dentro de colchetes precedidos pela cruz f (0 mimero de pontos é 0 de caracteres nio legiveis) NORMAS DE EDICKO = 129 2) Caracteresriseados: transcrever com tachado. h) Caracteres apagados, modificadas, nas entrelinhas ou nas mar- gens: informar em nota. i) Separagio vocabular (intra- e interlinear): reptoduzic fiel- mente, 4) Paragrafagdo: xeprodusir fielmente 1) Insengdes conjectures: nfo realizar nenbuma. m) Supress6es conjecturais: no realizar nenhuma. 1) Mudanga de fio face e coluna: informar na margem de ca~ beca, em itilico’e entre colchetes simples: [ ]. 0) Mudanges de punho: informar em nota. 1p) Mudangas de tinta: informar em nota. 4) Qualquer outra particularidade: informar em nota. 1) Numeragéo de linka: inserix na margem externa, contando de 5 em 5, de forma continua em todo o texto. 5.3.2, Edigdo paleografica® a) Caractere alfabéticos: transcrever como caracteres roma- nos redondos, reproduzindo-se as diferengas de médu- Jo, Uniformizar os alégrafos contextuais segundo a for- ma mais moderne. Quando houver mais de um tipo de caractere no modelo (como, p. ex., capitulares), informar em nota. ) Sinais abreviativos: desenvolver todos (inclusive a nota tiro- niana < 2 >, que representa 2 conjungio aditiva e) com. base nas formas por extenso presentes no modelo, trans~ crevendo em itilico os caracteres acrescentados em subs- tituigdo ao sinal abreviativo. ‘al 200) e Cambraia& Alkimin (2004). GOCE ¢ sf 130 # wwTRODUCAO A ERICA THETUAL ©) Diaoticos: anscrever uniformizando os sinais segundo sua forma atual (mas mantendo seu uso tal qual no modelo). 4d) Sinais de pontuagao: transcrever fielmente segundo as for- mas presentes no modelo. ©) Caracteres de leitura duvidosa: transcrever entre parénteses redondos simples (). £) Caracteres de teitura imposstvel: transcrever como pontos dentro de colchetes precedidos pela cruz t (0 niimero de pontos é 0 de caracteres nao legiveis estimado). g) Caracteres riscados: transcrever entre chaves duplas {{ }}. 1) Coaracteres apagados: informar em nota quais seria, 4) Caracteres modifcados: informar em nota a forma primitiva J) Caracteres nas entrelinhas: tanscrever, jé no ponto do tex- to pertinente, entre parénteses uncinados duplos << >>. 1) Caracteres nas margens: transcrever, no ponto do texto per tinente, entre parénteses uncinados simples seguidos de chave simples <{ }>;quando nio fizer parte do texto, in- formar em nota. 1m) Separagio vocabula (intra e interne): reproduzie fielmente. 1) Paragrafaséo: reproduait fielmente, ©) Insergées conjecturais: inserir elementos por forga do con- texto entre parénteses uncinados simples < > e por des- gaste do suporte entre colchetes simples { ] p) Supressbes conjecturais: transcrever erros por repetigdo en tre colchetes duplos [{ Jj; transcrever erros de outra na~ tureza entre chaves simples { }. ) Mudanga de fli, face e coluna: informar na margem de ca~ be¢a, em itdlico e entre colchetes simple 1) Mudangas de punko: informar em nota. 8) Mudangas de tinte: informar em nota. 1) Qualquer outta particularidade: informar em nota u) Numerasao de linka: inserir na margem externa, contando de 5 em 5, de forma continua em todo o texto. NORMAS BE EDICAO # 13 5.3.3. Edigdo interpretativa 4) Caractere alfabétcos: wranscrever como caracteres romanos redondos. Uniformizar as diferencas de médulo segundo o sistema atual de uso de maiéscula e minésculas. Unifor- mizar os alografos contextuais segundo sua forma atual. ‘Uniformizar a representacio grifica segundo o sistema atual, com especial atengao aos seguintes casos: ~ simplificar caracteres de valor vocdlico duplos, quando nao-etimoldgicos; ~ simplficar caracteres de valor consonantal duplos, eti~ moldgicos ou no (exceto re 59); — uniformizar a representagio de nasalidade; = uniformizat a representagao de consoantes palatais com Ihe nk; ~ uniformizar 0 uso de ce ¢ para representacio de con- soantes sibilantes; — uniformizar 0 uso de ce qu para representa¢io de con- soantes velares; = uniformizar 0 uso deg ¢ j para a representagio de con- soantes palatais ou velares; ~ uniformizar o uso de h, segundo a etimologia. ») Sinais abreviatives: desenvolver todos (inclusive a nota ti- roniana) com base nas formas por extenso presentes no modelo, transcrevendo em tipos redondos os caracteres, acrescentados em substituigo ao sinal abreviativo. ©) Diaerticos: uniformizar as formas e as fungdes de acordo com o sistema atual, respeitando as oscilagées do origi- nal quanto 4 marca de nasalidade. 4) Sinais de pontuagéo: uniformizar as formas ¢ as fungdes de acordo com o sistema atual (baseado fandamentalmente em critérios sintéticos), suprimindo ¢ inserindo quando necessirio. 132 # intRoDUGHo A eRITICA TEXTUAL ©) Caracteres de leitura duvidosa: informar em nota. £) Cavacteres de leitura impossivel:informar em nota o niime- 10 estimado. g) Caracteres rscados: no transcrever, hh) Caracteres apagados: nfo, transcrever. i) Caracteres modificados: tanscrever segundo a forma final. J) Caracteres nas entrelinhas e/ou nas margens: transcrever, no onto pertinente do texto; quando nio fizer parte do tex- to, nio transcrever. 1) Separagao vocabular(inta- e interlinear): uniformizar segundo © sistema atual, baseado no vocibulo morfoldgico. Marcar lisdes com apéstrofo; ¢ meséclises e énclises, com hifen, 1m) Paragrafagdo: estabelecer segundo o sentido do texto, 1) Insergdesconjecturis:inserir elementos por fora do contex- to e por desgaste do suporte, informando ambos 0s casos em nota. 0) Supressies conjecturais: suprimix qualquer tipo de erro, in formando em nota. ) Mudanga de foto, face e coluna: informar, na margem exter- na (colocando uma barra inclinada no ponto de transi- Gio no proprio texto), em caracteres itdlicos e entze col- chetes simples [ 4) Mudangas de punho: informar em nota. 1) Mudangas de tinta: nao informar em nota, 8) Qualquer outra particularidade: informar em nota sempre que pertinente ao texto. ) Numeragio de linha: inserir na margem externa, contando de 5 em 5, de forma continua em todo o texto. CAPITULO 6 EDIGAO CRITICA Como ja se esclareceu na seo 4.2.2.1, a edigio critica caracteriza-se fimdamentalmente pelo contraste de dois ou ‘mais testemunhos (geralmente apégrafos). Pode-se dizer que a edigio critica & objeto por exceléncia da critica textual, pois é em sua elaboragio que a técnica de estabelecimento do texto exige maior sofisticagio. O processo de realizago de uma edigo critica pode ser dividido em duas grandes etapast a do estabelecimento do tex- to critico e a de sua apresentacio (a primeira constitui domi- nio da critica textual propriamente dita, enquanto a segunda se encaixa na parte especifica da ecdética). 6.1, ESTABELECIMENTO DO TEXTO CRITICO O processo de estabelecimento do texto pode, porsua vez, ser dividido em duas fases: a recensdo € a reconstituigio do texto. 6.1.1, Recensao A recenséio (lat, recensio) constitui-se basicamente do estudo das fontes, com 0 objetivo de se compreender a tradicio de um dado texto. ¢ eooc« 134 « 1wTRODUGAG A CRITICA TEXTUAL © conjunto das fontes de um texto constitui sua tradigéo, que se divide em direta e indireta.A tadigio direta compreende todos os testemunhos de um dado texto, de forma geral com- posta basicarente de testemunhos manuscritos (tadigio ma~ nuscrita) e impressos (tradi¢o impressa)'. Jé a tradigéo indireta compée-se de todos aqueles testemunhos que no sio propria- mente registro literal de um dado texto, mas estio intimamen- te ligados a ele, tais como traducSes, pardfrases, citagées, etc, 6.1.1.1, Localizagao e coleta das fontes Uma vez escolhido o texto que seré objeto de estudo, deve o critico textual identificar e coletar todos os testemu- hos da sua tradigdo direta ¢ indireta No passado, o principal instrumento para localizacéo de testemunhos eram os catdlogos impressos, que foram organi- zados segundo critérios diversos, Hé catdlogos que tratam de colegies: 0 fundo alcobacense, p. ex., aparece inventariado em Ataide e Melo (1930-1932) e Amos (1988-1990). Existem ca~ talogos que se organizam segundo a época dos textos: textos medievais foram inventariados por Cintra (1951), Silva Neto (19566), Cepeda (1995) e Askins, Faulhaber & Sharrer (2004) ‘Acham-se ainda catilogos que se baseiam na época de impres- sio: Haebler (1903) ¢ Norton (1978).De especial interesse si0 6s diversos catdlogos das bibliotecas nacionais, nfo apenas de Portugal ¢ do Brasil mas também de paises com que tinham relagSes mais préximas: Espanha, Inglaterra, Franga, Itlia, etc. Outra fonte ainda importante para localizagio de teste munhos sio os manuais de histéria da literatura (no caso de textos literérios) e os ensaios criticos, pois nfo raramente um 1do de testos mais modernas, devem-se lorr em conta ands trace ine digital, EDICKO ERITICA « 135 dado pesquisador menciona fontes a que teve acesso mas que no constam nos referidos catélogos. ‘Apés se ter identificado quais io os testernunhos existen- ted de um dado texto, deve-se obter uma cépia de cada tes- temunho, Em se tratando de manuscritos, geralmente enco- menda-se & institui¢io que os possui cépia microfilmada, em papel ou, como é possivel atualmente, em formato digital (nestes dois dtimos casos, a reprodugio costuma ser feta, via de regra, a partir de copia microfilmads). Quando se trata de testemunho impresso, pode-se obter c6pia da maneira aci- ma descrita ow ainda através de aquisigéo de um exemplar de cada edigio, no caso de ainda existir disponivel no mercado. 6.1.1.2, Colago ‘Terminadas a localizagio e a coleta das fontes, pode-se pasar a uma subfase bastante érdua: a da colagdo (lat. collatio), etapa em. que se comparam os diversos testemunhos de um texto para se localizarem lugares-criticos. Um lugar-rftico (lat. locus critcus) constitui um ponto do texto em que os testemu- nhos divergem. As diferencas podem estar em diversos ele- mentos do texto: capitulos, periodos, palavras, morfemas ¢ fo nemas (representados por diferentes grafemas). Hsses elemen- tos podem diferir pela sua auséncia em um testemunho € presenga em outro; pela sua ordena¢io diferenciada entre os testemunhos; pela sua equivaléncia a outro elemento em ou- tos testemunhos, etc. A cada palavra ou grupo de palavras de um testemunho costuma-se chamar de ligio (lat, lctio); en- do a ligéo de um testemunho distinta da de outro(s), podem elas entio ser rotuladas de variantes. Para a realizagio dessa subfase, costuma-se eleger, dentre os componentes da tradigio direta, um festenaunho de colagio, Esse testemunho serd utilizado para se efetuar a comparagio com os demais componentes da tradi¢Zo direta. Entretanto, 136 « nerRoUGHO A CRITI TEXTUAL caso as informagdes obtidas nessa primeira comparagio nio sejam suficientes, faz-se naturalmence a compatagio de ou- tos testemunhos entre si, segundo a necessidade. A escolha do testemunho de colagio geralmente baseia-se na sua qualida- de: escolhe-se o mais completo ¢ em melhores condigées. A selecio de um néimero significativo de lugares-criticos constitui tarefa fundamental para a realizacio da subfase se- guinte: a estemética. 6.1:1.3. Estematica A estemética constitai a subfase era que se determina a re~ lagio genealégica entre os testemurihos de um texto. Na visio tradicional, que se bascia no método sistemati- zado por Maas (1927), 0 elemento bisico do processo sfio os ens signifiativas (lat. errores significatui). Para que o método seja aplicado com seguranca é necessitio, primeiramente, que se tena certeza sobre qual das variantes existentes em cada lugar-critico é um erro, ou seja, uma forma nio-genuina. Em segundo lugar, é preciso que esse erro seja to particular € ‘diossineritico que no possa ter sido cometido simultinea e independentemente por dois copistas;além disso, sua condi- gio de erro nio pode ser ébvia, pos, em sendo, os copistas poderiam intervir conjecturalmente s, dependendo da obvie- dade do erro, poderiam acabar por fazer modificagdes que resultassem no restabelecimento da propria forma genufna, sem a terem visto, Como assinala Prieto (1997: 58), hé indi cios que apontam para a possibilidade de-uma ligo consti tuir erro: p. ex., palavras ¢/ou express6es sem sentido. ou es- 2, Besar que #6 podem ter sido cometides por um copits so chamados de meu _enbear 08 que podem te sido gerdosindependontemente por diferentes copie- "as slo nomeados polgenttes, EDIGAO CRITICA w 1ST tranhas, jd que um autor néo escreveria passagens ilégicas ou contririas 20 sentido do texto; ¢ palavras e/ou estruturas gra- ‘maticais que transgridam os padres lingiisticos ou estilisticos do autor (tais como formas dialetais ou modernas estranhas & lingua do autor). ‘Os exros podem ser conjuntivos (lat. coniuncti#) ow separa tivos (lat. separatiu).Um erro & conjuntive quando sua presen ga em dois ou mais cestemunhos indica haver uma relaggo de dependéncia entre eles; é separative quando sua presenga em um testemunho assinala haver uma relagio de indepen- déncia deste em relagio a outro(s). Antes de se tentar tornar mais claros esses conceitos através de uma situacio hipotética, convém explicitar certas conven- ¢6es utilizadas no estabelecimento de um estema (lat. sterama), ou seja, da drvore genealdgica que se constréi graficamente para representar a rela¢o entre os testemunhos de um dado texto: letras latinas maidsculas* representam testemunhos exis- tentes; letras gregas mindisculas representam testemunhos néo ‘mais existentes mas que se supe terem existido;¢ 0 O, quan- do colocado na parte mais alta da arvore, representa o teste~ maunho autégrafo (0 original). Consulte-se 0 quadro que se segue, onde LC = lugar- exitico;e X = forma nio-genufna (ou seja, erro) /¥ ma genuina: . Quadro t A I B [tea x x 1G. ¥ x ‘3. Dentee os eritxios paca escolha da letra latina que identifica cad teremunbo ‘existent, hi, em especial, 0 aouligie (A = 0 1mis antigo, B= segundo mai n= igo. etc) € 6 ropa (L = Lisboa, P= Pari, M = Mace, et) CoCo 138 » ivTRoDUGHO A cRITICA TEXTUAL / Nese quadro percede-se um caso em que ha dois teste- munhos (A e B), sendo que, em LC-I, A apresenta um ero le B apresenta a forma genuina e,em LC-II, 0 inverso ~ por lapresentarem erros, supde-se que nenhum deles seja o origi- Inal. Antes mesmo de se avaliar © que dizem os erros identifi- Icados, é possivel aventar trés tipos de relacio entre A e B, su- lpondo que no é possivel saber a data de cada testemunho: ‘Estema 1 ‘Estema 2 Estema 3 ° ° ° | { A A B AB | i B A ” Os dados do quadre acima, no entanto, mostram que hi ‘um erro separativo de A contra B (cf. LC-I), 0 que significa que A nio pode ter sido o modelo para B: como B poderia ter a forma genuina se tivesse tido como modelo A, um tes- temunho com a forma nio-genuina? Assim sendo, os dados de LC-I permitem eliminar o estema 1. Os dados de LC-II também apresentam um erro separativo, mas agora de B con- tsa A: isto quer dizer que B no pode ter sido modelo para |A, pois como A poderia ter a forma genuina se tivesse tido omo modelo B, um testemunho com a forma nio-genui- ? Pode-se, portanto, eliminar também o estema 2 com base m LC-II. A tinica op¢io possivel, baseando-se nos dados presentados, é 0 estema 3: A e B foram copiados de um lmesmo modelo (teoricamente, 0 original), mas cada copista Icometeu um erro em um lugar diferente; justamente porque sses er10s estio restritos a cada um dos testemunhos, perce- e-se serem independentes. Se, no entanto, se acrescentasse 10 quadro acima o seguinte dado: A B LC-Ill x l x fo esterna 3 deixaria de ser adequado, pois no explica como Ae B tém exatamente 0 mesmo erro, Diante do referido exro conjuntivo de A e B, necessirio admitir que ambos provém 4 lde um mesmo modelo, que no é o original (testemunho au- ItGgrafo ou ididgrafo): isto significa que entre o original e as cépias subsistentes terd existido uma copia (que ja tinha o ex10 [presente em LC-IIl) ~ ao testemunho apégrafo perdido que se interpde entre o original e os testernunhos subsistentes cha- ma-se de interposto (lat. intempsitus). Quando esse testemunho interposto consticai a copia que deu origem a todos os tes temunhos subsistentes, é chamado especificamente de arguéti- po, geralmente representado no estema pelo @ (6mega mintis- culo). © esvema adequado para dar conta dos dados de LC-I, \{C-Il ¢ LC-I deve, portant, tra seguinte forma: Estema 4 | ° | ® ‘\ AB A anilise de uma outra situagio hipotética certamente contribuird para esclarecer melhor como funciona 0 méto- do.Veja-se um novo quadro abaixo,com dados de tr8s teste- munhas que sio cépias: Quadro 2 A B c LOT x ¥ ¥ LCi ¥ ¥ x LC-II x x ¥ 140 w inTRopUGAO A cRITICA TEXTOAL Se dois testemunhos permitem, a priori ts possibilidades de estema, trés testemunhos permitem muito mais possibili- dades: a) os trés podem estar em uma linha tinica de tansmissio: Estema 1 ‘Estema 2 Estema 3 ° ° ° | | [ A A B I | | B c A I | I c B c Estema 4 Estema 5 Estema 6 ° ° ° | I | B | c c | | 1 c A B I | | A B A b).um pode ser o modelo para os outros dois: Estema7 | _Estema 8 Estema 9 ° | ° ° ! | | | A | B c A i A A BC \ AC AB sDIGhO CRITICA « 141 ©) dois podem estar em uma linha de transmissio e 0 ter- ceiro em outra linha: Estema 10 Estema 11 ° ° 3 A A A Ac AB BC | I I B ste A Estema 13 Estema 14 Estema 15 ° ° ° A A A BA cB cA | ! | c A B 4) 0s teés podem estar em linhas distintas de transmissio: Estema 16 ° ZIN ABC Retomando os dados do segundo quacro (na p. 139), per- cebe-se que, em LC-I, ha um erro separativo de.A contra B © C,o que quer dizer que A nio pode ter sido modelo para B ou C: climinam-se, assim, os estemas 1,2,3,7, 10 e 11.Jé ‘em LC-II, verifica-se a presenga de um erro separativo de C contra A ¢ B, ou seja, C nio pode ter sido modelo para A ou B: deixam de ser vélidos, portanto, os estemas 2, 4, 5, 6, 9, 14 e 15. Continuam possiveis, até este ponto, os estemas 8, 12, 13 € 16. Por fim, nota-se, em LC-III, a existéncia de onan 142 w iwTnopUGHO A enitica TEXTUAL / um erro conjuntivo de A ¢ B, ausente em C: isto significa que A ¢ B no podem ter sido modelo para C, fato que eli~ mina os estemas 8 e 13, em que B é modelo para C, Restam, portanto, os estemas 12 ¢ 16, mas justamente a existéncia de um erro conjuntivo ente A e B elimina a possibilidade de 16 set 0 correto, pois como é possivel existir © mesmo erro no mesmo ponto do texte em dois testemunhos distintos re~ gistrados por copistas distintos? O erro existe em A B por- que B foi modelo para A. Em sintese, 0 estema adequado para explicitar a relagio genética entre os testemunhos 4, B € C do segundo quadrc é 0 estema 12. Se, no entanto, se acrescentassem ao segundo quadro, na LP. 138, os seguintes das: [tev ("tev PA 4 [pd] p<] © estema 12 deixaria de dar conta dos dados, pois em LC- IV percebe-se que ha um erro separativo de B contra Ae C, ou seja, B nao poderia ser modelo para A ou C (no es- tema 12, B é modelo para A); além disso, em LC-V, hé um erro conjuntivo entre todos os testemunhos Para dar conta conjuntamente dos erros de LC-I, LC-II, LC-II, LC-IV e LC-V, é necessirio, em primeiro lugar, postular 2 existéncia de um testemunho interposto (a ser representado por @), do qual derivariam A e C~ apenas assim se explicaria 0 fito de ambos terem o mesmo erro, Em segundo lugar, imp3e-se postular a existéncia de outro testemunho interposto, de que se originariam todos os testemunhos subsistentes, pois todos apresentam um mesmo stro (cf. LC-V) — neste aso, trata-se do chamado arquétipo, a ser representado por ©. Em sinte- \ se estema adequado para ese sepundo caso disctido & 4 rucho cainca #18 4 q i ‘Quanto maior o niimero de testemunhos, tanto mais com- plexa se torna a operagZo de se determina a relagio entre eles. Hii, porém, dados que contribuem para limitar as possibilida- des, como, p.ex., 0 conhecimento da data exata ou aproxima- da dos testemunhos. ‘No segundo caso hipotético discutido, trabalhou-se com, ° pressuposto de que cada testemunho derivou apenas de um. modelo (situagio a que se chama de transmissdo vertical). En= tretanto, sabe-se que um copista podia consultar mais de um modelo na execugio de set trabalho, sobretudo nos grandes seriptoria, onde mais de um modelo estariam dispontveis: nes- se caso, diz-se que houve contaminagio (lat. contaminatio) 0 tipo de transmisso passa a ser chamado de horizontal; repre- senta-se essa relago no esteria com uma linha pontilhada li- gando o segundo modelo 20 testemunho contaminado. Se, no segundo caso discutido, o erro conjuntivo de A ¢ B (cf. LC-IIl) fosse, na verdade, uma ocorréncia de contamina¢io (B teria @ como principal modelo, mas teria também con- sultado A), 0 estema ficaria da seguinte maneira: ” \ para concluir ests sego, certamente seri de grande-pro- veito apresentar um exemplo real ce estema: o da tradigao da lirica profana galego-portuguesa. Consultando os dados for- necidos por Tavani (1988: 53-178), Oliveira (1994; 15-30) e Gongalves (1995: 36-51), percebe-se existirem atualmente dez testemunhos pertencentes 3 tradi¢zo manuscrita desse patri- ménio lirico, mas os conjuntos mais extensos estio registra- dos essencialmente em apenas trés: 14 « wwTRODUCKO A CRITICA TEXTUAL = Ai Cancioneiro da Biblioteca da Ajuda, datavel de fins do sée. XIII ou de principios do XIV; — B: Cancioneiro da Biblioteca Nacional também chamado Coloc- «i-Brancut, por ter sido lavrado « mando do italiano Angelo Colocci) ou céd. 10991 da Biblioteca Nacional de Lisboa, dativel de fins do séc, XV ou psincipios do XVI; ¢ = Vi Cancioneiro da Biblioteca Vaticana ou c6d. Vat. Lat. 4803, dativel de fins do séc. XV ou principios do XVI. Consultando a proposta de Goncalves (1995: 42), perce- be-se que esses trés testemunhos apresentariam a seguinte relagio': Estema da lirica profana galego-portuguesa © A AG A BV wn (198: 2) apres por su vez uo exema ss complexe, compa de lversostetemuntos inerpests ens, wprimindone ete, «rie te propbe par, Be Vases de Goole (195: 2). No etna ape fenado aqui nose ine @ Oma pate mula pogu, endo o& enone Compagnie devem rents 50 ld cont, win origina ce, DIGAO GRITICA # 145, ‘A justificativa para esse estema pode ser sintetizada da se~ guinte maneira: 2) B nfo deriva de V porque este possui lacunas em rela cio aquele (cf. cantigas 446-450, 454-477, 611, 1294, 1501- 1561 ¢ 1572-1578 de BY); b) V nio deriva de B porque este também apresenta la- cunas em relagio Aguele (ef. cantigas 1000-1040 de V); ©) Be V devem derivar de um mesmo testemunho, iden tificado no estema por @,, porque tém Jacunas comuns em comparacio a A (cf. cantigas 281, 284, 299, 302-303 e varias outras de A) e,além disso, possuem os mesmos textos (descon- tadas as Jacunas privativas de cada um), a mesma ordem, atri- bbuidos, exceto em poucos casos, 208 mesmos poetas; & 4) A nfo pode ter sido modelo para 0. porque A tem la- ccunas ausentes em Be V (cf., p.ex., cantigas 391, 394, 397- 400, 403-417 de B correspondentes is de n. 1, 4, 7-10, 13- 28 de V; dentre varias outras). io se pode encerrar esta sego sem se salientar que método aqui descrito & apenas um dos jé propostos para 0 es tabelecimento de estemas. Além deste, baseado fandamental- ‘mente na nogio de erro, ha ainda outros, que se fundamentam em aspectos estatisticos, tal como os propostos por Quentin (1926) e por Greg (1927). / Kescolha do método depende certamente da tridigio com «que se esté trabalhando ~ Reynolds & Wilson (1995: 205-7) chamam a atengio para trés circunstincias em que 0 método sistematizado por Maas teria sérias limitagdes: quando houve a chamada contaminagio no processo de transmissio; quando 6s testemunhos subsistentes de uma dada tradigo remontam a dois ramos independentes, no derivando, portanto, de um nico arquétipo; e quando um texto original circulou em di- 5. A numeragio das candgas uta aqui segue a proposta por Tava’ (1988:68-71) a sus lua since com 3 cantigascomuns privates de-A, Be V. 46 w inrRoDUGAO A cRITICA TexTUAL ferentes versbes, todas e'as genuinas (aa medida em que as al- teragdes foram introduzidas pelo proprio autor). 6.1.1.4, Eliminagao de testemunhos descritos Uma vez estabelecido 0 estema de uma dada tradicio, pode-se efetuar a eliminagio de testemunhos descritos (lat. elimi nuatio codicums descriptorun). 1 Um testemunho é considerado descrito (at. deseiptus) quan do deriva de um modelo que ainda subsiste. Veja-se abaixo © seguinte estema hiporético: // rode-se considers que os testemunhos E ¢ F sio des- critos, pois E deriva de A, ainda existente (por isso, est em letra latina maidscula no estema), ¢ F deriva de D, com con taminagio de C, ambos subsistentes. E e F sio, do ponto de vista tradicional, desnecessirios para a reconstitui¢io da for- ma genuina do texto cuja tradigZo esté representada no este~ ma acima porque qualquer elemento qué constar deles e nio estiver em A (no caso de E) e em D e/ou C (no caso de F) 36 pode ser interpolagio dos copistas, formas nio-genuinas portanto. Em situagio ciferente encontram-se, p. ex., 05 ou tros quatro testemunhos (4, B, Ce D),pois o que houver de diferente em um diante dos outzos trés pode ser uma forma oicho cninica « 147 ‘genuiina nio preservada nos outros: assim, uma forma genui- na pode ter sido preservada em A (transmitida corretamente pelo copista de 0 ¢ A), mas adulterada diferentemente pe- los copistas de B, C e D (estando o erro de forma igual nes~ tes dois dltimos, certamente tera sido ce responsabilidade do copista de B) - sendo assim, o testemunho A é de capital importincia para o restabelecimento da forma genuina, > ‘Diz-se acima que esse procedimento & 0 que se faz tradi- cionalmente porque novas concepgées do que deve ser uma edigio critica tém-se constituido nos tltimos tempos. Por mais rigoroso gue seja 0 método de se realizar uma edicio critica, Ho se pode pensar que tal atividade produza resultados irre fitaveis: sio, no melhor dos cas0s, aproximativos, rigorosos, nas ainda assim aproximativos. Justamente por isso, mesmo depois de se ter, por diversos mecanismos, escolhido uma va~ riante por se considerar que é a forma genuina mais provavel, registram-se ainda assim as outras no chamado [iparao artco O registro de variantes no aparato critico serve a rigor par que leitor saiba quais eram as op¢des em termos de varian- tes € qual foi a decisio tomada pelo editor: de qualquer ma- neira, tradicionalmente s6 se levam em conta as variantes que efetivamente poderiam ser genufnas. ‘Modernamente, porém, tem-se avaliado que em uma edi- gfo critica se deveriam registrar nfo apenas as variantes que poderiam ser genuinas mas também aquelas que, mesmo sa~ bidamente nao podendo ser genuinas,circularam entre 0 pit- blico-leitor. Retomando-se o estema acima, em uma edi¢io ctitica ortodoxa s6 entrariam no aparato critico as variantes de A, B, C ou D; enquanto em uma perspectiva menos o:~ todoxa se levariam em conta também as variantes de Ee F (que, por serem particulares a esses testemunhos descritos, nao podem ser genuinas, como jé se explicou anteriormente). b [Naturalmente a questio que surge de imediato € por que s .e registtarem variantes que sabidamente no podem ser ge~ Be © Lond Kagios as A us INTRODUGAG A CRITICA TEXTUAL ‘nufnas? A resposta & simples: porque elas circularam entie 0 piiblico-leitor. Nessa perspectiva, edigio critica no tem ape- nas a fungio de informar ao leitor quais slo as variantes possi- velmente genuinas, mas também aquelas que, mesmo sabi- damente nio-genuinas, foram lidas ¢ tiveram impacto sobre a cultura, Nio se trata mais apenas de restituir a forma ge- nujina de um texto, mas também de historiar sua tradigo. Um, exemplo de edigio que permite 2 anslise dessa fortuna é a do poema“Tragédia no mat” (O Navio Negreio), de Castro Alves (1847-1871), realizada por Anténio José Chediak (cf. Alves, 2000). O referido editor analisou no apenas © manuscrito autégrafo com o poema (atualmente no Instituto Histérico e Geogrifico da Bahia) e as edi¢des em vida do autor, mas tam- bém as subseqiientes, cujas modificagSes certamente no po- deriam ser atribuidas 20 antor: tal abordagem, segundo es- clarece (cf.Alves,2000: 11), deve-te a0 fato de ter tido em vis~ ta expor como o poema foi trataio desde a primeira edigio, em 1869, até a de 1997. Para cumprir seu propésito, cotejou nada menos que 63 textos integrais e 5 parciais, no total de 15.998 versos. O frato de seu trabalho é de grande valia, pois oferece material para diversos tipos de investigago: interessa aos criticos literarios, porque tém agora a oportunidade de consultar 0 poema em sua forma genufna, além de poderem estudar como foi recebido pelo piblico-leitor nas diversas formas em que circulou (ora mais ora menos préximas da ge- ‘ousna); mas interessa também aos criticos textuais, pois ha la rico material para a reflexio sobre processo de transmissio de textos em lingua portuguesa. 6.1.2. Reconstituiggo ‘Tradicionalmente chama-se a esta fase de emendatio, mas, como jé assinalou Blecua (1990: 123), sua forma reflete uma Epigho eRiTICA «149 /antiga abordagem de critica textual baseada no textus receptus, ‘que era “corrigido” através de outros testemunhos. Em uma abordagem mais moderna, convém chamar a esta fase de re constituigao, pois © processo de estabelecimento do texto nio sais se pauta simplesmente pela “emenda” de um testemu- ho, mas sim pela anilise de toda a tradigio. (© processo de reconstituigao propriamente dita de um, texto realiza-se através de dois procedimentos*: por meio dos testemunhos subsistentes e/ou por meio de conjectura, 6.1.2. - Reconstituigéo por testemunhos Na reconstitwigdo por testemunhos,seleciona-se uma das variantes necessatiamente presentes em um ou mais dos tes~ temunhos subsistentes, Com o progresso dos estudes de critica textual, sobretudo dos que trataram da transmissio de textos da Antiguidade Classica e do Novo Testamtento, estabeleceram— se prindipios (também chamados de regras ou cdnones) que tem servido de referéncia para a selegZo (lat. select) de variants. Vejam-se a seguir alguns dos mais importantes: CAyone + A ligio do maior nlimero de testemunhos é prefe- rrivel (lat lectio plurium codicum potior) Este princfpio, que pode ser considerado 0 mais objetivo de todos’, é também chamado de lei da maioria.A idéia que 6. Traicionalmente caamadss, em latin, de emendato ape colicun e omendai ope ge respectvarente +7. Bor nig se basea em uma excathasubjetiva, ete principio eneate-se na cham a sero mecinee, por opasigao a todos outos, que dependent fundamenralmen- te do juizo (nt ini) do ect sobre um dado fo, responsive, portant, pela sel -mecinise de variants. PIINANVO? yey 180 » uvrnoDUCAO A catTicA TEXTUAL subjaz a ele é a de que uma variante dnica (lat. lecto singus laris) deriva de erro de copista, pois ¢ pouco plausivel que Copistas distintos, em lugares distintos, em épocas distintas, tenham errado justamente no mesmo ponto de um texto, substituindo a ligéo geaufna pela outra, nio-genuina, idén- tica em cada uma dessas novas cépias. Enfim, é mais prov vel que um tenha errado e vérios outros tenham mantido a forma genuina do que um tenha mantido a forma genufna e varios outros tenham errado exatamente da mesma manei- ra eno mesmo ponto, independentemente.A aplicagio ade- guada desse critério, porém, pressupée necessariamente 0 €5- tabelecimento do estema que representa a tradigdo do texto em questio:jsto dé-se porque essa lei no leva em conta sim- plesmente o ntimero de testemunhos que apresentam uma dada variante (como se fazia no passado), mas sobretudo de que forma os testemunhos que veiculam as variantes se rela~ cionam genealogicamente. Para esclarecer essa questo, con- vém analisar alguns estemas. Vejam-se os estemas abaixo: Se, na tradigio expressa pelo estema 1 acima, se encon- trasse a variante W em A e B, mas a variante Z em C,a va- riante que deveria ser considerada genufna 6, segundo a lei da maioria, W:nesse caso, supde-se que apenas 0 copista de C te- nha cometido um erro, jé que as vatiantes de A ¢ de B devern ser iguais porque os seus copistas simplesmente mantiveram 0 que viram no seu mode’o (teoricamente, a forma genuina). sIgdo eninica « 15t Se, por outro lado, na tradigio representada pelo estema 2, houvesse a variante W em A e E,mas a variante Z em B, Ce D,a variante que deveria ser considerada genuina é, segundo a lei da maioria, ainda assim W. A primeira vista, pode-se pensar que a relagio numérica seria de dois (A e E) contra trés (B, C ¢ D),0 que exigiria que se considerasse ge~ nuina a variante Z; entretanto, a relagio numérica é de dois (4. B) contra um (a): uma vez que B, C e D apresentam a mesma variante, ela s6 pode derivar da mesma fonte, ou seja, ot (caso contrario seria necessério admitir que B, C e D erraram no mésmo ponto do texto e da mesma maneira, algo implausivel). Neste caso, oposi¢ao esti na atuagio de um co- pista (0 de 0) contra a de dois (de Ae B), sendo mais pro- vavel que apenas aquele tenha errado. Este principio, porém, nio é aplicivel em duas circunstin- cias especiais: quando ha empate em termos numéticos en- tre as variantes ou quando as variantes sio distintas em cada tum dos testemunhos (neste dltimo caso, poder-se-ia tratar do que Contini [1992: 29] chamou de difraio, fonémeno de cria- Glo de variantes que podia ocorrer pela existéncia, no mo- delo, de uma ligio dificil de ser entendida pelos copistas). + A liso mais antiga & preferivel (ht. leo antguior potion) Hii, na verdade, duas maneiras de se entender este prin- cipio: pode-se referir 4 antiguidade do testemunho que veicula uma dada variante, mas pode ainda se referir 8 va~ riante em si No primeiro caso (relativo 20 testemunho), a sua vali- dade justifica-se pela idéia de que um testemunho mais an- tigo tem mais probabilidades de apresentar a variante ge- auina, pois teoricamente distancia-se menos do arquétipo 132 « INTRODUCAO A cAITICA TeXTUAL que um testemunho mais recente, ou seja, em teoria have- ria menos cépias intermediérias entre um testemunho mais antigo € 0 arquétipo do que etre este ¢ um testemunho muais recente. Este principio, no entanto, deve ser interpre- tado sempre com as devidas reservas porque, como jf assi- rnalou Pasquali (1988: 46), 0 preparo do copista determina- ria a qualidade do seu trabalho, de forma tal que, p. ex., uma cépia direta do séc. XVIII pode conservar melhor a ligio genuina do que um do séc. XIII ou XY, razio pela qual o referido estudioso defendeu o principio ponderador recen- tiores, non deteriores (os testemunhos mais recentes nio estio necessariamente mais corrompicos). ‘Jano segundo caso (relativo 4 variante em si), pertinén- cia do principio findamenta-se no fato de que os escribas tendiam a atualizar lingitisticamente os textos, substicuindo, portanto, formas antigas por contempordneas. Para exemplifi- car esse fato, basta citar um caso relacionado 4 vogal temitica do participio passado de verbos da 2* conjugagio: segundo informa Mattos e Silva (1971, vol I: 99-100), no testemunho A dos Didlogos de Sao Gregério, dativel de antes de 1375, ocor- re apenas a vogal temitica / u /, enquanto, no testemunho C desse mesmo texto, datado de 1416, predomina o emprego da vvogal temitica / i /,a qual, como’se sabe, substituiu aquela no contexto em questio (no test. A ocorre, p.ex.,a forma conho- sudo, mas sua correspondente no testemunho C é conhocido (Mattos e Silva, 1971, vol. I: 12, e vol. I1l:8):a forma genui- na, nesse caso, seria, portanto, a com a vogal temética /'u /. + A ligo do melhor testemunho é preferivel (lat. lectio melioris codicis potior) Este principio baseia-se na idéia de que o testemunho de melhor qualidade (lat. codex optim), do ponto de vista tanto EDIGAO CRITICA « 153, ‘material quanto de execucio, tem mais probabilidade de apre~ sentar lipdes genuinas que outros de qualidade inferior, pois esmero na elaboragio daquele deveria estender-se ao proprio ato de cépia. Em sua primeira edigio das Cantigas de Santa Maria, as quais foram conjuntamente preservadas em quatro testemu- nthos (céds. To, da Bibl. da Igreja de Toledo; E, da Bibl. do Escorial; T, também da Bibl. do Escorial; e F, da Bibl. Na- cional de Florenga), Mettmann (1959-1972) slegeu como texto-base justamente o cédice E, pois é o mais completo e mais bem elaborado (razo pela qual este & chamado tam- bém de cédice ric). Novamente, no entanto, convém alertar para o fato de que esté critério no é absoluto, pois qualquer cépia apresenta falhas: 0 proprio abdice rico aqui mencionado possui lacunas e, além disso, seu peso na escola das varian~ tes foi reavaliado na segunda edicio das referidas Cantigas ~ Mettmann (1986: 47) esclarece, na nota prévia a essa nova edigio, que nio se ateve com a mesma fidelidade de antes a0 texto-base E. Este prinefpio, porém, tem sido reinterpretado moder- namente: segundo Reynolds & Wilson (1995: 208), 0 me- Ihor testemunho seria aquele que oferece o maior niimero de ligdes corretas nas passagens em que hé motivos racio- nais (i 6, lingtifsticos, literérios, histricos, ete) para as re~ conhecer como tal, Trata-se, portanto, de uma questio de probabilidade: se um dado testemunho possui o maior néi- meto de ligdes corretas (i, ¢, consideradas gemuinas) dentre 6s testemunhos existentes, é aceit4vel que, diarte de impas- se (ou seja, da auséncia de motivos evidentes para a escolha de uma variante dentre diversas), outras ligdes suas sejam igualmente acolhidas. COCa: PINE oT a NID INIAAYN yO YAQ9INA YON +) a) 154 « uerRoDugho A eRtrica TEXTUAL + A ligdo mais dificil é preferivel (lat. ectio diffcilio potior) De acordo com este principio, deve-se eleger a variante ‘mais dificil (.é, mais rara, mais obscura, de compreensio mais custosa). Isto se justifica pelo fato de ser mais provavel que uum copista trivialize o que tem dificuldade de compreender do que o contrério. Este principio, embora seja tradicionalmente tido como essencial, esti sujeito naturalmente & interpretagio do proprio editor. Cunha (1985: 424) contesta a ligio do quinto verso da sétima das cantigas de Martim Codax proposta por Spageiari (1980), argumentando que a invocagio de uma lectio difii- lior, feita pela estudiosa italiana, nfo se justificaria ali, Assim, © quinto verso deveria ficar como “Ay ondas, que eu vin mi- rar”,em que o verbo final, cuja forma esté presente no jé men cionado Pergaminho Vindel, se relacionaria semanticamente com 0 do primeiro verso “Ay ondas, que eu vin veer”, rela¢ao esta normal em cantigas paralelisticas: a referida editora havia Proposto, no entanto, a forma “virar” para o final do quinto ‘verso, depreendida do Cancioneiro da Vaticana, + A ligo mais breve & preferivel (Jat. lectio brevior potior) Este prinefpio consttui, de certa forma, um complemen- to 20 precedente: como estratégia para tornar compreensivel aquilo cujo significado ‘he escapa, o copista poderia ampliar um dado trecho, acrescentando-lhe os elementos (natural- mente, ndo-genuinos) que julgasse necessirios. + A ligo que explica a origem de outra é preferivel (at. lectio quae alterius sriginem explicat potion) Segundo este principio, deve-se escolher, dentre duas va- riantes, aquela que permite explicar a origem da outra, EDIGAO ERITICA «155 Cunha (1985: 425-6) ilustra a aplicago deste principio com base em um trecho do Auto das Barcas, de GilVicente. Comparem-se a seguir dois registros de um mesmo trecho (versos 567-571) da referida obra: Fotha volante (1518): Compitasam (1562) ex aqui quatro testodes Eis aqui quatro tostbes © mais se os pagara mais se vos pagaraa por vida de semifara por via de se me faraa que me passeys ho cabram que mie passeis 0 cabrio, quezeis mais outro tostio, __quereis mais outro tostam. Ley (1946) e Révah (1951: 28) consideraram como ge- nuina a variante do terceiro verso presente no testemunho de 1518 (“cemifara”), a qual constituiria um nome proprio que o editor da Compilasam, filho de Gil Vicente, nfo teria compreendido e a teria decomposto em unidades menores que pudessem, segundo seu julgamento, fazer sentido. + Métrica (lat. res metrca) Em se tratando de texto em verso, pode-se ainda contar, na selego de variantes, com um principio de natureza for- mal:a métrica (e, naturalmente, também a rima e o ritmo). A aplicagio desse principio pode ser exemplificada com. dados da edigio da segunda das cantigas de Joam Nunez Ca ‘manez, realizada por Tavani (1988: 250-4). Vejam-se abaixo ‘0s quatro primeiros versos da ‘iltima estrofe da segunda can- tiga do referido trovador: Fazede-mi, e gracir-vo-l'-ei, bem mentr’ando vivo; ca nom mi-o faredes, eu bem o sei, pois eu morter, por tal razom: (Tavani, 1988: 251) 156 « ueTRoDUGAO A CR THA TEXTUAL Dentre a variante do primeiro verso presente no Cant- dioneiro da Ajuda (“Fazede mi é gracir uolei | ben mentran- do”) © a do Cancioneiro da Biblioteca Nacional (“Fazedemj bene gragir uolei | mentrando”),a escolha da primeira é le gitimada pela propria métrica da cantiga, j6 que apenas aque- ha variante € compativel com o sistema octossilabo empre- gado a0 longo de todo o poema: vé-se, a propésito, que 0 erro ma variante do Cancioneito da Biblioteca Nacional decorre do deslocamento da palavra “ben” do segundo para 0 pri- meiro verso. + Estilo (lat. usus seribend) ‘Outro principio que pode ser invocado na escolha de va- riantes € o estilo, ou seja, os padrdes lingiiisticos e estéticos proprios a obra, ao autor e & época, Como exemplo da aplicagio desse principio, pode-se ci- tar a discussio das variantes no texto d’Os Lusiadas nas duzs edigdes de 1572 ~ a que tem o pelicano da portada virado pata a esquerda (A) e a que o tem virado para a diteita (B) — realizada por Elia (1973: 53-67). Comparando o verso 6 da estrofe 103 do canto Il nas duas edigdes (dados transcritos da ed. fac-similar: of, Camées, 1982): A:O menos que 0s de Luso merecerio: B:O menos que de Luso mereceram: Elia (1973: 55) argumenta em favor da variante em A por ser justamente a expresso “os de Luso” a utilizada a0 longo do poema para designar os lusitanos, como se po- de ver por estes outros versos do mesmo texto (extraidos de A): BDIGO CRITICA « 157 cll,e. 17, «6: Que os de Luso de todo destruissem cll, e. 95, v. 8:Na terra que 20s de Luso coubs em sorte CVI, €.26, ¥.7: So por dat aos de Luso triste morte A aplicacéo deste principio exige bastante cautela, pois pode induzir o critico a tentar uniformizar a linguagem de ‘uma obra, apagando, assim, variagSes genuinas, ou seja, atri- buiveis 20 préprio autor. Um caso bastante polémico é 0 da lirica camoniana, quase que inteiramente preservada em tes temunhos péstumos e apégrafos: segundo esclarece Azeve- do Filho (1998: 191-204), dada a referida circunstincia, a solugio possivel para tentar eliminar formas teoricamente aio atribuiveis ao autor é a de comparar sua linguagem com a presente no texto d’Os Lusiadas, vindo a lume estando Ca- mies vivo ¢ presente no local de publicagio. Tal postura ressup6e, no entanto, que o autor teria utilizado a mesma linguagem na poesia épica e na lirica, pressuposto esse para © qual nio parece haver argumento irrefutivel seja para 0 confirmar seja para o negar. + Contexto (lat. conformatio textus) Certamente no se pode ignorar que as variantes se en- contram inseridas em um contexto, razo pela qual este tam- béma constitui um principio a ser considerado na opcao por ‘uma das variantes existentes. Novamente retomando a discussio de Elia (1973), pode se exemplificar esse principio através das variantes do verso 7 da estrofe 58 do cantoV ’Os Lusiadas: A: Comecey a sentir do fado imigo B: Comecey a sentir do fado amigo 188 « nrnopucdo A caltica TEXTUAL Nesse caso, a diferenga baseia-se em nada menos que anténimos: imigo [forma antiga de inimigo] x amigo! Segun- do Blia (1973: 60), seria genuina também a primeira delas, pois assim o pede o contexto: trata-se do episédio em que © gigante Adamastor lamenta seu destino a0 se desiludir quanto as suas pretensdes ao amor de Tétis, lamento este claro através do grupo de versos (5-8, ed. A) em que est inserida a variante: E como contra o Ceo nfo vale mios, Eu que chorando andaua meus desgostos, Comecey a sentir do fado imigo Por meus atreuimentos 0 castigo. Se, em teoria, os diferentes prinefpios arrolados aq} dem parecer bastante evidentes e resolutivos, veifica-se na pritica, porém, que sua aplicago esté longe de ser simples ou incontroversa. Como exemplificagio das dificuldades ope- raciomais, pode-se citar 0 fato de que nem sempre os prin- cipios se sobrepdem na escolha de uma variante, ou seja, a aplicagio de um pode apontar para uma-dada variante, mas a de outro para uma variante distinta. Além disso, certos principios dependem diretamente da interpretagio que o eri- tico textual dé as variantes e a0 contexto em que estio in seridas, 0 que torna o processo suscetivel & subjetividade de quem 0 executa. ‘Maas (1927 (1950: 14)) considerava como antiquados os métodos de selegio de variantes baseados no textus receptus, na variante mais freqiiente (= lectio plurium codicum), no tes- temunho mais antigo (= lecio antiguior), no mais completo ou no melhor (= lectio melioris codicis). Se, por um lado, a rejeigio do texetus receptus 6, de fato, um dos passos mais im- portantes no desenvolvimento da critica textual; por outro epicko eninica « 159 Jado, os demais métodos, embora devam ser considerados sempre com a5 devidas xeservas, nao podem ser ignorados completamente — sobretudo quando se leva em conta que a tradi¢go de textos em lingua portuguesa geralmente se compée de um nimero bastante limitado de testemunhos (quanto mais antigo o texto, mais reduzida costuma ser 2 tradiggo), o que torna praticamente impossivel baseat-se ape- nas na selegéo mecéinica. ‘Un dos casos em que nio parece haver principio capaz de determinar a selegdo de variantes € quando se esté diante de sariantes adifforas, ou seja, ligdes equivalentes: sua equivaléncia deriva do fato de apresentarem caracteristicas iguais, tal como mesmo nimero de silabas (equivaléncia métrica), mesma or- dem de silabas tonicas (equivaléncia ritmica), mesma termi- nago (equivaléncia rimica), mesmo sentido (equivaléncia se- mintica), ete, Justamente porque casos como este no sio raros (¢ especialmente freqiientes em textos em prosa, onde nem sequer se pode contar com as questdes forma pde-se a necessidade de se eleger um dos testemunhos de ‘uma dada tradigo como texto-base. Assim, sempre que nio for possivel eleger uma das variantes dos testemunhos através de aplicagio dos principios jé arrolados em funcio da equiva~ Iencia dessas variantes, adota-se a ligio do texto-base, Em se tratando de textos medievais, € comum eleger-se como tex- to-base © testemunho mais antigo; no caso de textos mais modernos, a escolha costuma recait sobre a iiltima edigo revista pelo autor ou, em caso de auséncia de informagéo nesse sentido, a tiltima edigo com 0 autor em vida ~ Greg (1950-1951: 29), no entanto, defendeu que, para textos im= pressos, se deveria eleger a edico mais antige (ingl. caries), |j4 que estaria mais proxima dos originais do autor. De qual- {quer maneira, nio se trata de normas absolutas, necessitio ~ sempre — examinar a tradi¢io de cada texto. 160 « uTRoDUCAO A CRITICA TEXTUAL 6.1.2.2. Reconstituigao por conjectura Na reconstituigio por conjectura,o editor vé-se obrigado 4 contar cont o seu conhecimento e com a sus intuigio para restituir 0 que teria sido a forma genuina da passagem de um texto, Essa situagio verifica-se essencialmente em dois casos: quando os testemmnhos subsistentes de um dado texto apre- sentam, todos, algum tipo de lacuna na passagem em questo owainda quando nenhuma das variantes presentes nos referi- dos testemunhos parece ser genuina. Nos testemunhos da lirica trovadoresca galego-portu- guesa € muito comum haver lacunas nos refiios, j& que, por ser consabida a estrutura das cantigas, qualquer leitor inferi- ria que, apesar da lacuna no testemunho, haveria ali e forma completa do refrio. Assim, quando um critico moderno es- tabelece o texto de uma dessas cantigas com todos os reftdos plenamente registrados, esté, na verdade, reconstituindo-os por conjectura (baseada no conhecimento da estrutura poé- tica das cantigas) ja que o registro pleno de todas os reftdos de uma cantiga costuma no estar nos testeriunhos, Como exemplo, pode-se retomar a jé mencionada cantigy de Joam Nunez Camanez (cf. segdo sobre métrica) — 0 registro do liltimo refido aparece da seguinte forma nos dois testemu- nhos em.que esti registrada (Cancioneiro da Ajuda [A] e da Biblioteca Nacional (B}): A: ca nd uj. ex. (Cancioneito, 1994 B: ca n6 uj eu (Cancioneiro, 1982: Em sua edigio dessa cantiga, Tavani (1988: 252) apresenta como forma do refrio final: canom vi eu quem ferese raunca bem, se nom podesse. EpIGAO cRitica « 161 Tal reconstituigo foi possivel, no pela escolha de uma das variantes dos dois testemunhos (as duas estio incomple- ‘as), mas sim pelo conhecimento da estrutura das cantigas ¢ pela existéncia desse reftio em forma plena” apés a primei- ra estrofe do poema, em cada testemunho: A: a non uj | eu quen fezesse nunca ben se non podesse. (Cancioneito, 1994: £61. 29). B: Canon uj eu quen fezesse | nunca ben se non podesse Cancioneiro, 1982: fl. 601). 6.2, APRESENTACAO DO TEXTO CRITICO Depois de cumpridas todas as etapas para a fixagio do texto ctitico chega-se a fase em que se deve organizar! todo © material pesquisado para ser apresentado a0 pGblico-lei- tor: esta fase diz respeito mais propriamente & parte especi- fica da ecdética. Embora no haja consenso? sobre os componentes que devem constar de um livro que veicula uma edigio critica nem tampouco sobre sua ordem, hi naturalmente certas partes que podem ser consideradas imprescindtveis. Veja-se a seguir uma proposta de modelo bisico de apresentagio do texto eritico (lat. dspositio textus) baseado nessas partes im- prescindiveis, seguida de alguns comentirios: 8, Paa apectos mais tenicos ¢ spectfcos, sugere-se a consulta a Hows (1967) € ‘Arai (1986), 9. Para modelos de apeesen do texto critica em I tho ( poreuguess, podem-se 7:58) e Spina (1994: 242-4), Azevedo sy 162 « WwtRODUGAO A CRixten TENTUAL Modelo Basico de Apresentago do Texto Critico Sumério Apresentacio 1. Introdugio Tradigio da obra 3.1, Petcurso histérico 3.2, Testemunhos 3.3. Estema 3.4, Fortuna editorial HL, Texto ILA. Sigla dos testemunhos 1.2. Normas de edigio 11.3, Texto e aparato exitico . Glossério IV. Referéncias bibliogrificas + Sumario O sumiio é simplesmente uma lista com o titulo de cada uma das partes de que se compe o livzo em que se publica um texto critico, acompanhado naturalmente do némero da pégi- na inicial de cada parte. Embora, na pritica, apareca ne 1 firn do livro, sua colocacao no inicio & preferivel, pois 2s- sim & mais ficil de ser manuseado e ainda preserva fisicamente © exemplar (jf que diminui a extensio do folheamento e do peso sobre a encadernacio no momento da consulta), + Apresentagio Pode-se considerar que a apresentagio de um livro é uma espécie de “cartio de visita”, pois nela fornecem-se, de for- ma bastante objetiva, dados basicos como titulo da obra edi- EDIGAO ERITICA w 163 tada, autor, data de redagio e/ou primeira publicagio, teste- munhos em que a edicio critica se baseia, editor responsi- vel pelo estabelecimento do texto, ete ‘Além disso, também ¢ lugar apropriado para uma breve justificativa para a ediglo, valorizando-a portanto. Salientar explicitamente a importincia de cada obra contribui para es- timular os leitores potenciais a diversificarem e aprofundarem sua leitura: trta-se nfo apenas de uma questio de publicida- de, mas sobretudo de estimulo a um permanente didlogo cul- tural entre texto ¢ leitor. + Introdugio ‘Aos leitores interessam certamente dados que contex- tualizem s6cio-historicamente 0 autor ea obra, pois infor mages dessa natureza constituem elementos de grande im- portincia para uma Jeitura aprofundada @ Autor Sobre um autor, costuma-se apresentar dados tanto bio- gréficos quanto bibliogrificos (apresenta-se portanto nesta se- G20 uma biobibliografia do autor). Os dados biogréficos de um autor devem ser escolhidos com atengio para que nio se apresente um lista de informa ‘ges pouco relevances: devem-se privilegiar aqueles dados que contribuam para a compreensio de como foi a formasio intelectual do autor, permitindo assim vislumbrar fontes e in ‘lugncias possiveis sobre a sua producdo escrita. Naturalmen- te dados outros relacionados 4 vida pessoal podem ser de grande interesse aos leitores mais atentos, mas deve ser selecionados de forma criteriosa para que constituam de fato um instrumento titil para investigacOes aprofundadas da obra editada, 164 » uvrRopucio A critica TExTUAL Além dos dados biogrificos, sio de interesse informa- Ges bibliogrificas: mais especificamente a bibliografia ativa ¢ passiva. A bibliggrafia ativa constitui-se do conjunto de textos produzidos pelo proprio autor: costuma-se apresenté-la em ordem cronologica, levando-se em conta a data de primei- 1a publicagio de cada texto. A bibliografia passiva compreen- de 0 conjunto de textos produzidos sobre o autor em ques- ‘o; esta pode ser apresentada cronologicamente, mas é pre- ferivel que siga antes uma classificagio por tema. Para as obras anénimas ou de autoria controversa, esta se- G40 seria dedicada & discussio sobre 0s possiveis autores © obre Nesta seco, apresentam-se dados bisicos sobre a obra, tais como data ¢ local de redagio, contexto sécio-histéri- co da época, resumo do contetido e impacto sobre 0 pi- blico-leitor. Convém esclarecer que se entende aqui por resuno do con- ‘elido uma breve parifrase contemplando os pontos mais im- ortantes da obra, seja ela narrativa, descritiva, argumentativa, etc, Nao raramente costuma-se seguir a esta se¢io um excur- so compreendendo ensaio de critica literdria (no caso de se tratar de edigio de texto literério): na proposta aqui apresen- ‘ada, considera-se que, no livro em que se veicula uma edigio ctitica, nfo se devem incluir ensaios de critica literéria, pois es- tando estes profundamente vinculados a corzentes ¢ tendén- cias da critica de cada época, nem sempre atendem aos inte~ tesses do pablico em geral (considerando-se sua diversidade), (©Mradigao da obra Constituem parte desta seco quatro tépicos em especial: percurso histérco,testemunhos, estema e fortuna editorial spicho eatricn « 165, A subsecio percurso histérico é a parte em que se apresen— ta uma descrigdo do destino que a obra editada seguin des- de quando se tornou piiblica”: compete tratar de questbes como o seu impacto sobre o piiblico-leitor, sua influéncia sobre a produgao cultural subseqiiente, sua traduco para ‘outras linguas, etc. Na subsegio testemunhos, apresenta-se uma lista, Go exaus- tiva quanto possivel, dos testemunhos da tradigo direta (ma- nuscrita e/ou impressa) subsistentes, acompanhada de uma breve descrigio fisica de cada um deles (conferir as suges- tes de descrigio codicol6gica e bibliogrifica nos itens 1.5.3 © 1.5.4 no inicio deste livro). Da referida lista devem também constar os testemunhos jé perdidos mas cujas referéncias fo- ram preservadas em alguma obra de cunho bibliogritico, como os catilogos de manuscritos e/ou de impressos. De~ vern-se ainda mencionar os testemunhos da tradi¢io indire~ ta (tais como tradugées, etc) Apresentam-se na subse¢io eslema no apenas o grafico em forma de arvore (invertida) representando a relagio ge~ nealégica entre os testemunhos da tradi¢o da obra mas tam- bém, em linhas gerais,a argumentacio que o justifica (exem- plos de lugares-criticos e suas variantes so certamente de interesse para 0 piiblico mais rigoroso) Por fim, hé ainda a subsego fortuna editorial, na qual se apresenta uma lista de todas as edges (parciais e integrais) existentes até entio da obra em estudo e ainda, quando pos- sivel, uma avaliagZo critica das edigdes de maior importincia em termos de avango no processo de fixagio do texto edits do, Naturalmente s6 deve constar desta subsegio a edigZo entendida em um sentido mais estrito, ou seja, “reprodugo 10, Como exemplo de estdo dealnado do percinsohisérico de um texto em ine 2 portuguesa, podese citar realizado por Mega (2001) em relagHo A De- mau do Sento Giza 166 « WWTRODUGAO A cRIFICA TEXTUAL fiel e consciente de um texto feita de molde a assegurar essa fidelidade, ou, pelo menos, deixar abertos todos os caminhos para que a ela se possa chegat” (Pereira Filho, 1958: 207). As edigdes que consistem em reprodugao pura ¢ simples de um ‘ou mais modelos, sem que se tenha seguido um método ri- goroso na fixacio do texto (que, a rigor, s6 comega a ser em- pregado em relagdo a textos em lingua portuguesa a partir de meados do séc. XIX), devem constar simplesmente da subse- ao testemunhos, jé mencionada, * Texto Nesta sego apresentam-se as siglas dos testernunhos uti- lizados na fixagio do texto critico, as normas de ediggo e 0 texto critico, acompanhado do seu aparato. 2) Sigla dos testemunhos A apresentagio da sigla dos testemmunhos da tradigio de um texto (lat. conspectussiglorum) j6 veri muito provavelmente sido feita inicialmente na subsecio testemunhos ow estema citadas anteriormente, pois, via de regra, as letras empregadas para 2 representagZo de testemunhos em um estema (cf. item 6.1.1.3 deste livro) constituem uma sigle relacionada a algum aspec~ to do testemunho, como, p. ex., cidade em que se encontra. Entretanto, uma nova listagem composta apenas da sigla e da cota do testemunho logo antes do texto critico facilita sua consulta, sobretudo quando se trabalha com um grande ni mero de testemunhos. b) Normas de edigio Nesta segio, essencial em uma edigio critica, sio apre- sentadas as normas de edicio adotadas no estabelecimento do texto critico, Podem vir istadas de forma bastante obje- aigho eninica « 167 tiva e sintética ou podem ainda vir acompanhadas de justifi- cativa para sua ado. Em qualquer um desses dois casos, no entanto, é essencial que todos os procedimentos adotados na fixacio do texto, sem exceydo, sejam explicitamente enunciados. ‘As normas para uma edi¢io critica abarcam nao apenas as questdes de transcrigo mas também de escolha de variantes. ‘No que se refere & transcri¢io, é posstvel adotar uma abor- dagem mais conservadora (similar & de uma edigio paleogri- fica, cf segio 5.3.2) ou mais uniformizadora (como a de uma edigio interpretativa, cf. seio 5.3.3). No primeiro caso, ¢ como se s@ tentasse reconstituir o testemunho que deu ori- ‘gem ds cépias subsistentes nos seus minimos detalhes graficos; Jno segundo, abdica-se desse detalhismo em prol de um re- sultado final mais uniforme do ponto de vista grafico e, por tanto, mais confortével 2 leitura. Considerando que os dife- rentes piblicos-alvo t#m cada um suas demandas, é perfeita- mente admissivel a realizagio de uma edi¢Zo critica segundo tuma ou outa abordagem. Do ponto de vista pritico, no en~ tanto,a abordagem mais conservadora apresenta sérias dificul- dades, pois o registro de cada variante grifica acaba por so- brecarregar 0 aparato critico o tornar praticamente invidvel (sobretado se forem muitos os testemunhos empregados no proceso de edigio). Para a abordagem mais uniformizadore, & sempre necessirio refletir sobre o que pode ser modificado sem que se esteja adulterando © texto propriamente dito, Considerando justamente que os elementos de um teste- munho nao sio todos de mesma natureza, Greg (1950-1951: 21) estabeleceu uma distingZo entre as licdes substantivas e os acidentais de umn texto: as primeiras sio as que afetam o senti- do dado pelo autor ou a esséncia de sua expresso; os segun- dos sio 0 que afeta principalmente a apresentacio formal do texto, tal como ortografia, pontuagio, separagio vocabular, etc. A reagio dos copistas ¢ dos compositores tipogrificos seria distinta em relagio a cada aspecto: tenderiam a reproduzir 168 « WTRODUGAO A CAITICA TRKTUAL como no modelo as ligdes substantivas, mas seguiriam seus ha- bitos (grificos) no que diz respeito aos acidentais. Marqui- Ihas (1991: 72), tendo comparado quatro manuscritos autd- grafos em lingua portuguesa que foram efetivamente utilizados como modelo para a 13 edicio imapressa das respectivas obras (de diferentes autores do séc. XVIII), verificou alterages de diversas ordens, a saber: capitaliza¢io de timologizacio gtifica; acentuagZo e hifenizacio; variagio gréfica dos ditongos nnasais, das semivogais, das fricativas coronais e da pontuacioVé- se, portanto, que transcrigdes muito conservadoras de textos muito antigos podem ser relevantes para ur lingiista (interes sado nas particularidades dos sistemas de representagéo grifi- ca), mas pouca relevancia terdo para o estudioso interessado no texto em si tal como um critico literdrio ou um historiador, que a representagio grifica teoricamente nao seria genuina, No que se refere & questio das variantes, é fundamental informar ao leitor qual testerhunho foi tomado como texto- base © por qué, Além disso € necessisio informar a natureza do aparato cxitico (pestive ou negative, cf. se¢io abaixo) e quais diferengas entre os testemunhos sio registradas: dos elemen- tos acidentais e substantivos na abordagem conservadora; € apenas dos substantivos, na uniformizadora ©) Texto e aparato critico A apresentacio do texto ¢ do aparato critico pode ser fei- ta de dias maneiras: paralelamente ou consecutivamente, No primeiro caso, na mesma pégina em que se encontra o texto 0, acha-se também © aparato, geralmente junto & mar gem inferior; no segundo caso, o aparato s6 é apresentado em uma seco que se segue ao texto critico. Embora alguns edi- tores adotem o segundo sistema, muito provavelmente para gue a pagina com 0 texto critico nio fique sobrecarregada visualmente, tal pritica torna a consulta ao aparato uma tare- eDIGAO CRINICA » 169, fa extremamente penosa e extenuante, jé que um leitor rigo- roso tetia que fazer o movimento de vai-e-vem entre texto € aparato a todo momento. ‘Ui aparato citico (lat. apparatus citicus) consiste na subse- cdo em que sio registradas as variantes textuais presentes nos testemunhos empregados na fixacio do texto critico. Ha ba- sicamente dois tipos de aparato: ou negativo, O apars- to pesitivo é aquele em que se registram as variantes de todos os testemunhos, incluindo a adotada ¢ as ndo-adotadas no texto critico; j 0 megativo & aquele em que se registram ape~ nas a()) variante(s) nio-adotada(s) no texto critico. Os aparatos negatives, mais comumente empregados, estrucaram.se basi- camente da seguinte maneira: cada unidade do aparato, cha~ mada lem, apresenta o mimero da linha do texto critico em que ocotre a variante a ser registrada; 0 titulo do lema, i. & a variante tal qual aparece no texto critico; um separador (normalmente colchete de fechamento); sigla do(s) testernu- nho(@) com a(9) variante(s) nio-adotada(s) no texto critico; tum separador (normalmente dois-pontos); a(6) variante(s) ndo- adotadas(s) — para separar um lema de outro, pode-se utilizar 0 ponto-e-virgula, Na pritica, essa estrutura basica € apresen- tada por diferentes editores com ligeiras modificagdes: pode- se eliminar © titulo, dificultando, porém, 2 compreensio’ da relagdo entre a variante e 0 texto critico por parte do leitor; pode-se colocar a sigla do(s) testermunho(s) apés a sua varian- te; podem-se acrescentar comentirios paleogrificos e/ou jus- tificativas de escolha em relagio 3s variantes; etc, * Glossério De grande utilidade em edigdes criticas, sobretudo de texto antigos, sio os glossrios, que podem ser seletives ou exaustives, Um glossério seletivo abarca geralmente apenas os vocébuilos pouco comuns (em termos de forma ou significa- 170 « wwEReDUGKO A CRIPICA TEXTUAL do), que poderiam dificultar a compreensio do texto pelo lei- tor, razio pela qual se costuma listé-Los com o seu significado no texto. Jé 0 glossério exaustive compreende todos os vocé- ulos do texto editado ¢, quando aplicado maior rigor, regis tra ainda todas as ocorzéncias de cada um dos vocébulos. Cada item de um glossirio & chamado de verbete. A sua estrutura bisica geralmente inclui titulo, classe gramatical, eti- mologia, significados ¢ abonagdes com passagem(ns) do tex- to, No caso de se tratar de glossirio exaustivo, informam-se também 0 niimero de ocorréncias dos vocibulos ¢ a localiza~ cdo de cada uma delas no texto" Como exemplo do aspecto de um verbete de glossirio exaustivo, apresenta-se a seguir transcrigo do verbete da pa~ Javra hora extraido do Vecabulério da Carta de Pero Vaz de Ca- ‘minha, preparado por Batista (1964). Como se poderd ver, di- fere do sistema aqui proposto apenas pela auséncia da etimo- Jogia da palavra e da quantificagZo das ocorréncias (apreen- sivel, porém, pelo niimero de localizagBes: no caso, seis). Figura 18 ~Verbete de hora na Carts de Caminha (Fonte: Batsa, 196: 61) (0.1.22; 6.19.16; 0, 2. Bipago de eempo em que s© faz 0 de quesies técnica: na elaboraczo de umn glossrio de eexto em line euguein pode ser consulta em Cunha eta. (1966: 2X0-x¥1) € Mateus 5: 289-28). EDIGAO CRITICA «17 + Referéncias bibliggéficas Considerando que toda edigio critica pressupde um tra~ balho de consulta a diversas obras, devem-se listar todas aque~ las citadas 20 longo do livro, organizadas em oxdem alfabéti- ca e segundo as normas da ABNT. Convém apenas lembrar que referéncias bibliogrdficas © bibliografia io coisas distintas: a primeira constitai uma lista de obras citadas em um trabalho; {ja segunda, de obras relacionadas a um tema, mesmo que niio tenham sido consultadas ow mencionadas no corpo do trabalho em-cujo final aparecem listadas. Nos parigrafos acima comentaram-se as segdes que se consideram bisicas e imprescindiveis em uma edigio criti- ca, Entretanto, podem-se ainda incluir nesse tipo de edigio outros elementos, tais como fac-similes de flios dos teste- munhos utilizados para a fixago do texto, breve andlise pa- leogréfica dos testemumhos, estudo da linguagem do texto editado, indice de citagdes (j& que estas eram particular- ‘mente comuns em. textos antigos, sobretudo em textos re~ ligiosos), etc. Enfim, tudo que possa contribuir para 2 reali- zagio de uma anilise aprofundada ¢ exaustiva do texto edi- tado, ou dito de outra forma, tudo que permita 0 estudo global do texto, ou seja, o exercicio pleno da filologia. Embora o modelo de apresentagio descrito aqui se desti- ne A veiculagio de uma edigio critica, pode certamente ser adaptado para outros tipos de edigo: em uma edicio interpre- tativa, p.ex, ficariam de fora as sees estema, sigla dos estemuunhos apanto cite, que se estaria editando apenas um testemunho, Para se ter uma idéia de como é a apresentagio de uma edicio critica, convém apresentar dois exemplos: um relative a textos medievais e outro a textos modernos. No primeiro caso, reproduz-se aqui uma pagina da edi- so da Crénica Geral de Espana de 134, preparada por Cin tra (1951-1990): 372 « nvtnoDUGiO A CAITICA TEXTUAL Figura 19 — Ea. ertica da Cednica Geral de Erpanha de 1344 ‘Fonte: Cintea, 1984, vol 211) SINCHTLA 2 cia hia synaldespada; e apareceu per tents dyass alge stronomes que ‘sto wyron diseron que demasirava que os Afrcanes aryamm de cabrat borie em Esp ‘esteryz em este logar queaes foro os vencedores. # Em foron © ele setethapowey Johanne ¢ hii apostoliges, E, logo no VIIZ* anno, morreo > Cartrawo CXL Como morreo el rey Syacilla © das opynises ‘gor son da sus morte ‘Segundo o que conta 0 arcebispo dom Rodrigo em sua estoy vendo dez an ra ese rey Sinehila—qve foy na ‘da encarnapon de Nosto Senbor e sete —que elle ere muy boo piadoso ¢ era de tan grande eso morte © papa Severyno e lay posi em seu legar Fohanne, 0 quart, a « merreron muytas de hoa e da outre parte, pero nd aps cron em seu logar Teodio,o primero, « foron 6 elle setenta EDIGAO CRITICA « 173 Examinando 0 texto critico na figura 19, pode-se:veri- ficar que Cintra utilizou normas conservadoras em termos dos caracteres alfabéticos, mantendo variagdes grificas entre ie y (cf. seis e rey nal. 4), vogais duplas nio-etimolégicas (cf. quaaes na I, 9) € consoantes duplas etimolégicas (cf. elle na 1.11),além de no restaurar o h etimologico (cf. avyam na 1.2). Empregou ainda um sistema de aparato ctitico composto” na parte superior, registrou as corregdes feitas ao texto-base .L), listando as variantes nos testemunhos em portugués (anss. Le P) € em espanhol (mss. U, Qe V; além do texto da Primera Crénica de Espanha) consultados; na parte inferior, re- gistrou as variantes do outro manuscrito em portugués uti- Tizado (ms, P) e nio adotadas no texto critico. Na figura 20, a seguir, reproduz-se uma pagina da edigZo critica das Memérias Péstumas de Brés Cubas, de Machado de Assis (1839-1908), preparada pela Comisso Machado de Assis ~ os responsiveis pelo estabelecimento do texto critico foram Anténio Houaiss, Anténio José Chediak, Celso Ferreira da Cunha e José Galante de Sousa (cf. Assis, 197: 11). Consul- tando 0 aparato critico dessa pagina, é possivel verificar as, variantes presentes nos testemunhos A (ed. de 1880, em fo- Ihetim), B (ed. de 1881, primeira em livro), C (1896), D (1899, altima em vida do autor e tomada como texto-base para a edigio critica), F (1921), G (1924) e O (1955). sistema de aparao compost foi utllaado em vivise outa edi « € SOCK YOOD YIN y y i) my SAINI VV VQ y f nvTRoDUGhO A cRiTICA TEXTUAL 4 inventiva senfo depois de expetimentar a faltifcesio; ronccuse oa familia daquele meu fameso Bris ‘Cubas, que fundou « vila de Si0_Viceme, onde por esse motivo € que me de o nome de Bris. ‘porém, a feria do capitdomor, © foi entéo que ek Irerentas cubas moutisa ‘0 Pai, © Cotrim, um sueito que. .. ‘pemot oe successos; acabeaios de'uma vez com 0 nowo emplasto. 21 A MINHA idfs, depois de tan fixe. Devs te lve, letor, de uma tuma trave ao allo, VE © Cavour gue © meron. Verdade € que SSeenis que a asters se grande capichone et Notén or ctezng loureita. Por exemploy SuetOnio deu-aos win Cléudio, que era obivel histéria que d& para tudo: €, que é cla a que faz os varées fortes © oF ‘ou fortacar € 4 que faz ox Cltodios, capiTULo 7 CRITICA TEXTUAL & INFORMATICA ‘Tratar das relagdes entre critica textual e informiética é,a0 mesmo tempo, uma tarefa estimulante ¢ frustrante. £ estimu- Jante porque o desenvolvimento da informética nio parece ter limites, mas, por outro lado, ¢ frustrante porque sua velocidade & tal que consideragGes feitas agora inevitavelmente acabaro por se tornarem obsoletas em um breve espago de tempo. Entretanto, nfo se pode negar que a difusio da informé- tica — relativamente recente, se se considerar que sua popula~ rizagio através de computadores pessonis s6 se deu em prin- cipios dos anos noventa — tem tido impacto notivel sobre o processo de transmissio dos textos. Por isso, convém ao me- nos fazer algunas consideracdes gerais sobre sua influéncia até o presente — jé que, sobre 0 futuro, mesmo as especula- stas correm 0 risco de se mostrarem inade- quadas prontamente. 7.1, A TRANSMISSAO DOS TEXTOS NA ERA DIGITAL Como se viu no capitulo 3, j& houve, na hist6ria do pro- cesso de transmissio dos textos, acontecimentos que o influen- 176 « wermovucAo A CRITICA TEXTUAL Giaram sensivelmente: p. ex.,a invengio da imprensa possibili- tou a citculagdo de exemplares idénticos de um mesmo texto, algo praticamente impossivel no periodo da transmissio ape- nas manuscrita,em que cada registro constitu‘a um testemu- nho singular e distinto de qualquer outro do mesmo texto. ‘Também a informatica constitui um evento de grande im- acto sobre a transmiissio dos textos no presente. As mudangas manifestam-se em, pelo menos, dois momentos:na elaboracio e na reprodugio do texto. Na elaboragao do texto, a informética possibilitou uma grande flexibilidade, pois os programas de edigo de textos oferecem a0 usuario uma constelacio de recursos ad libitum para elaborar os textos: escreve-se, apaga-se,substitni-se, muda~ se a ordem, altera-se 2 formatagio (mancha, fonte, cor, ec.) ~ tudo com simples toques sobre um teclado ou sobre 0 mouse. ‘O emprego efetivo desses programas de forma ampla é re- lativamente recente, o que impede que se avalie, com sélida base empirica, quais sio suas conseqiiéncias para 0 trabalho do ctitico textual, sto 6, para a restituigao da forma genuina de textos originalmente compostos em computador. Uma conseqiiéncia para a critica genética é bastante evidente: pro- picia 0 desaparecimento de um de seus principais objetos de estudo ~ 08 rascunhos ~, pois na composi¢io eletrénica, via de regra, nfo ficam registradas todas as modificages efetua- das nas sucessivas etapas de elaboragio de um texto. Diz-se ‘via de regra”, porque hé recursos nos referidos progra- ‘mas para se tegistrarem todas as alteraces; além disso, um at- tor pode salvar cada nova etapa de elaboracio de um tex- to como um novo arquivo, resultando assim em uma série de arquivos que refletem cada etapa. Mesmo assim, a questio da auséncia de rascumhos persiste, pois quantos autores adotam uum desses dois procedimentos e, ainda, quantos tornam dis- pontvel esse material? CRFFICATEXTUAL 4 INFORMATICA «177 As condigSes de elaboragdo de um texto no computa~ dor merecem ser examinadas faturamente com mais detalhe, pois, assim como no passado um autor poderia cometer erx0 20 datilografar seu texto, também o pode fazer a0 digiti-lo através do teclado de um computador: como os teclados (e suas configuragdes) variam, distorcGes nesse tipo de testemu- ho autégrafo (0 digitoscrto) podem ocorrer, p. ex., cada vex que 0 autor utilizar diferentes computadores na elaboracio de seu texto. Certamente é na reprodugo de um texto que 0 impac- to da informatica tem maiores conseqtiéncias em termos de transmissio. Nesse caso, hd duas situagdes distintas: a reprodu- io com mudanga do sistema de registro (p.ex., de manuscrito ou impresso para digital) e sem mudanga do sistema de registro (p. ex., de digital para digital. No caso de reprodugao com mudanga do sistema de registo, ha duas modalidades: mediada por pessoa ou mediada por maquina (p.ex., 0 esciner). Nas reprodugaes com mudanga do sistema de registro mediada por pessoa, verificam-se praticamente os mesmos erros de uma cépia manuscrita, pois o processo € muito parecido. Em pri- ‘meiro lugar, hé igualmente um modelo que deve ser lido pelo copista modero (0 digitadox): mé leitura do modelo resulta em distorgio do texto. Em segundo lugar, embora as condi- Bes de vida de um copista moderno sejam distintas das de uum copista medieval, o trabalho continuado segue tendo como conseqiiéncia 0 cansaco, o que significa oscila¢o no grau de atengdo e, por conseguinte, na qualidade da cépia: na Idade ‘Média dizia-se que ts dedos escrevem, mas todo o corpo trabatha; para atualizar esse fpas basta substituir inés dedos escrevem por dez dedos digitam... Uma diferenga substancial, porém, esta na {jf aludida flexibilidade: a corregio dos erros no cria rasuras « confissio na c6pia (como acontecia nos textos manuscritos) 578 « INTRODUCAO A CRITICA TEXTUAL ainda conta-se com recursos como © corzetor ortogréfico (que, utilizado de forma desatenta, pode distorcer mais em vez de corrigir). J nas reprodusées com mudansa do sistema de registro media~ da por miquina percebem-se problemas de natureza distinta: derivam, em parte, da leitura que 2 maquina — isto 6, 0 ¢s- ciner — faz da imagem do modelo e, em parte, do programa de reconhecimento dptico de caracteres (0 chamado ocr, ap tical chavacer recognition) Assim, caso © modelo ~ p. ex., 0 exem- plar de um livro impresso ~ tenha uma qualidade de impres- sio baixa,a maquina no conseguiré registrar as diferencas t#- nnues entre um ee um ¢ entre um 4 e um 6, etc. Além disso, caso 0 ver no seja apropriado para a lingua do texto, certa~ mente substituird caracteres de uma lingua (p. ex., 0 portu- gués) pelos semelhantes formais na lingua que suporta (p. ex., © inglés): dessa maneira um ¢ toma-se cum @ passa a a, , 5 ou qualquer outra coisa parecida, Qualquer pessoa que se der a0 trabalho de analisar os textos em formato digital na intemet que derivam do uso de escdner verificard como sio comuns dis- torgGes relativas 3 incompatibilidade de lingua do ocr. Ainda gue possa haver o hibito de se revisarem textos escanerizados, tal pritica nfo tem impedido a proliferagio de erros nos tex- tos digitalizados. Um recurso que tem sido utilizado para su- perar essas dificuldades & o de se escanerizar um texto sem 0 converter para texto digital, salvando-o apenas como um ar quivo digital de imagem, ou seja,faz-se uma edig&o fac-simi- lar digital’ exhumn).J6 2 Biblioeca Nacional do Rio de Janeizo ) tem disponibilizado em formato digital de imagem CCRITICA TEKTUAL & INFORMATICA « 179, Nas reprodugdes sem mudanga do sistema de registro,a questo da transmissio também é complexa. Por um lado, 2 simples € pura reproducao de um arquivo digital sem que ele seja aber- to por programa de leitura de arquivos de textos (0s chamados editores de texto, como o Word, Wordpad, Notepad, etc.) no gera alteragdes; exceto, obviamente, em caso de falhas técnicas, em que um disco flexivel ou um leitor de disco flexivel com defeito gera um arquivo defeituoso: nesse caso, 0 leitor prova~ velmente nem sequer teri acesso ao texto, pois a perda cost ma ser total. Entretanto, se o arquivo for aberto em um dos mencionados editores de texto, ha sim a possibilidade de o texto softer alteragdes. Nesse caso, as modificagdes podem ser por incompatibilidade de programas, de versées ou de configurasdes. No primeiro caso, tem-se a geragio do arquivo de texto em um dado programa, mas sua leitura em um outro progra~ ‘ma: como cada arquivo é formatado segundo o padrio do pro~ grama em que foi gerado, a utilizagio de outro programa im- pede que a abertura do arquivo se dé de acordo com padrio original ~ assim, um arquivo gerado no Word nio seri lido com a formatagio original no Notepad, porque aquele tem mais recursos que este. . No segundo caso, 2 geragio a leitura do arquivo dio-se no mesmo programa, mas em verses diferentes: geralmente a geracio em uma versio mais antiga no costuma resultar em problemas para a Jeitura em versio mais recente, mas 0 con- trario no se verifica, pois tentar ler um arquivo gerado em versio mais recente a partir de uma versio mais antiga cos- tuma resultar em distorgées (as verses mais recentes costu- ‘mam ter mais recursos que as mais antigas). Pessoas que uti~ lizam computador ha muito tempo certamente ja experien- ciaram o problema de arquivos antigos nfo serem adequadamente em verses recentes dos programas utilizados: 180 « (sTRODUGHO A CRITICA TEXTUAL p.ex., arquivos gerados em Ward 2.0 for DOS costumam ser lidos com distorg5es no Word 9.0 for Windows. Por fim, ainda que a geragdo ea leitura de um arquivo de texto sejam feitas na mesma versio de um dado programa, modificagdes podem ocorrer se o programa instalado em um computador (que gerou o arquivo) nio estiver configurado exatamente da mesma forma que no outro (que é utilizado para a Jeitura): 0 exemplo mais comum e evidente desse tipo de modificacio esti telacionado as chamadas fontes (arquivos que determinam a forma dos caracteres, ou seja, 0s tipos). Se tum dado texto for gerado em certo computador com uma dada fonte (p.ex., times new romari ¢ for lido em outro com= putador sem a dada fonte, o arquivo nfo sera lido segundo a vontade do seu autor (que determinou, dentre outras coisas, a fonte a ser utilizada)*. Como se vé, 2 utilizagio de um novo sistema de registro no solucionou 0 problema das modificagdes na transmissio dos textos. Na verdade, a utilizagio dessa nova tecnologia tem conferido aos textos uma catacteristica impar: os textos em formato digital apresentam uma modifabilidade aparentemen- te sem precedentes. Se, no passado, alteragSes em uim dado testemunho deixavam, nele, marcas (faros, manchas, rasuras, rebarba de félio cortado, cadernos com composigio irregular, etc,), 0 mesmo nao acontece no presente: a alteragdo de um arquivo com texto em formato digital nao deixa rastro. Isto significa que, se alguém receber um arquivo, o modificar ¢ 0 passar adiante, ningaém saber’ que 0 axquivo foi modificado ~ ou seja,se alguém abrir um arquivo com um texto de Macha do de Assis, mudar vérias partes, voluntiria ou involuntaria~ 2. tno di-se amidde atu detatento 4 quastio da fr exquecendo-e do de fonte cextoscieniicos publicados em atas¢ ana: ‘tor do entio envia apena o arquivo de cexto, ‘ERITICA TEXTUAL & INFORMATICA «181 mente e o passar adiante, o leitor subsegiiente nfo encontrar nenhuma marca formal de que modificagdes foram feitas. 7.2, A EDIGAO DE TEXTOS NA ERA DIGITAL A informitica pode ser empregada em todas as etapas da elaboracio de uma edigio critica, com maior ou menor pro- veito, seja no estabelecimento do texto critica, seja na sua apresentacao. mento do texto 7.2.1, A informatica no estabel Na fase da recenso, ou seja, de estudo das fontes, a infor mitica tem tido especial importincia. Na subfase da localizaro e coleta das fontes & possivel perce ber que se t8m alcangado resultados cada vez mais ricos em decorréncia da acessibilidade da abrangéncia propiciadas pe~ Jos meios eletrénicos. A ccessibilidade manifesta-se através do fato de que, de qual- quer lugar no mundo onde haja acesso & internet, & possivel 1 buscas de testernunhos de um texto. No passado, os principais meios de localizago de testemunhos eram os cati- Jogos impressos de manuscritos e incunabulos, nem sempre disponiveis em qualquer biblioteca. No caso de sua inexis- téncia em bibliotecas proximas, impunham-se viagens pes- soais a arquivos ¢ bibliotecas ou ainda correspondéncia por correio regular: primeira opgio, cara; segunda, lenta. Atual- mente, é possivel realizar consulta a bases de dados informa- tizadas de grandes acervos (como o das bibliotecas nacionais uo de universidades) a partir da prOpria residéncia, no com- putador pessoal ligado 4 intemet, No caso em que 0 acervo de interesse ainda nio tem sua base de dados informatizada, res~ ta ainda o correio eletrénico, cuja rapidez no trinsito é ime- GOCO¢ yD 182 # 1WTRODUCKO A CRETICA TEXTUAL diata, mas a obtengio da informacio pretendida continua de- pendendo da disponibilidade de finciondrios da instituigo em consulta. A abrangéncia deriva da possibilidade de se consultar uma grande quantidade de bases de dados distribuidas pelas mais variadas partes do mundo, possibilidade esta existente justa- mente por causa da jf referida acessibilidade, Entretanto,a in- formitica permite que se v4 ainda mais longe: é possivel in- vestigar nio apenas as bases de dados tradicionais mas tam- bém um grande volume de textos disponiveis na intentet, caja cexisténcia geralmente se ignora até o momento em que um programa de busca de piginas eletr6nicas assinala a existéncia formaio pedida nesses textos. B preciso, porém, ter uma visio realista do que hi disponivel até 0 momento: os cati- Jogos de manuscritos nao foram ainda todos informatizados, © que torna 2 consulta &s suas verses impressas ainda neces- sitia (certamente nio por muito tempo); além disso, os resul- tados em programas de busca nfo costumam ser muito pre- isos, 0 que exige do consulente tempo para triar as infor- mages pertinentes; ¢, por fim, é preciso levar em conta que nao hé nenhum tipo de controle sobre a qualidade da in- formagio disponivel na internet, 0 que significa que dados, coletados em paginas eletrénicas devem ser rigorosamente checados, Ui segundo aspecio relacionado & abrangéncia ¢ 4 permanente atualizago das bases de dados eletrénicas, que tora ainda mais eficaz a investigacio, embora nio se deva achar que sio sempre exaustivas. ara a subfase da colago, momento em que se comparam os testemunhos para se identificarem os lugares-criticos, a informética propiciou a elaborago de instrumentos auxilia- res, mais especificamence programas que comparam auto- maticamente 0 contetido dos testemunhos, Segundo Marin (1994: 367), houve, da década de sessenta até a de noventa, (CRITICA TEXTUAL & INFORMATICA » 183, trés geracdes de programas para colacio: a primeira abrange os programas que se limitavam a comparar dois textos linha a linha (p. ex, COMPARE, escrito em VM-CMS; € DIFR escri- to em UNIX);a segunda compreende os que eram capazes de comparar textos em prosa (p. ex., OCCULT, escrito em SNO- BOL4);jA a terceira abarca programas que permitiam a separa- fo da tarefa de escrever um texto (0s editores) e de comparar textos (os processadore), p.ex., URICA (da Universidade da Ca- rolina do Sul, EUA) ¢ Case (da Universidade do Estado do ‘Mississipi, BUA). Posteriores a esses e representantes de uma nova fase sio os programas TuSTEP (da Universidade de Tiibingen, Alemanha), COLLATE (da Universidade de Ox- ford, Reino Unido) e untre® (da Universidade Auténoma de ‘Magri, Espanha), sendo este ditimo 0 utilizado pelo proprio Marin na sua edigao do texto medieval espanhol Libro de Ale- xandre (cf. Marin, 1987). Explica Marin (1994: 376) que 0 UNITE possbilita ainda a elaboragio de uma edigZo a que cha ma de unificada, realizada a partir da comparagdo de textos, do registro das variantes resultante dessa comparagio, do controle dessas vatiantes sobre 0 conjun- to da comparagio ¢ da aplicacio de dados globais para estabe- lecer 0 texto bisico, que nio pretende ser o arquétipo, mas sim a melhor cOpia mais antiga pos conservados, isto é, uma variante do préximo do original” (tradugi0 nossa). Para 2 subfase da estemética, sto &, da construgio da ér- vore genealégica dos testemunhos, houve jé tentativas de se utilizarem programas pata construir um estema seja segundo 13. Programs swalmeate disponivel, as verses para DOS ov Windows 95,10 ende- seo fp Rp wa ex/ pub/unie 184 w INTRODUGAO A CRITICA TEXTUAL ‘ométodo tradicional (baseado nos erros significatives), sea se~ gundo 0 método estatistico de Quentin: cf,,p.ex.,0s trabalhos publicados em Irigoin & Zarri (1979). Porém, como lembra Morrés (1999: 190), os programas utilizados até essa época (Gns dos anos setenta) no podiam ser empregados em com- putadores pessoais devido as suas limitagdes de meméria e de rapider — razo pela qual nfo sio muitas as experiéncias passadas Para a fase da reconstituigao, os programas disponiveis sio praticamente aqueles mesmos de diltima geracio, jé citados ao se falar da colagao. Esses programas, apos compararem 0 texto de diferentes testemunhos, possibilitam ainda a esco- Jha das variantes encontradas, gerando em seguida ndo apenas 0 texto final apurado mas também os dados (.é, as variantes nGo-adotadas) a serem incluidos no aparato critico. No dominio lus6fono, nio parece haver até 0 momento experiéncia de edi¢io em que se tenham utilizado programas especificos para colacionar testemunhos, os filiar (i. é, estabe- lecer o estema da tradigio) ou reconstituir seu texto elabo~ rando paralelamente o aparato critico. Esta parece ser uma das grandes lacunas em termos de experiéncias editoriais ém lin gua portuguesa, 7.2.2. A informatica na apresentacdo do texto ‘Terminadas as duas fases de estabelecimento do texto, chega-se entio 4 etapa de sua apresentagio, Nesse momento, © impacto da informitica verifica-se no Ambito do formato ¢ da organizagao do texto. No que se refere a0 formato do texto, o grande impacto est’ no fato de as ediges poderem atualmente ser veiculadas em formato digital sobre suporte eletrdnico, ¢ no mais ape nas em papel como antes. Hi diversas vantagens nesse aspec- CCRITICA TEXTUAL & INFORMATICA w 185, to: redugio de custos, redugio de espaco, transportabilidade, versatilidade e funcionalidade. ‘A redugio dos custos ¢ bastante Sbvia, jé que o valor gas- to pata a publicagZo de uma edigo em papel (que incluem o proprio papel, cinta, energia elétrica, pessoal qualificado para manuseio das méquinas, transporte, armazenamento, ete.) € infinitamente maior do que em formato digital, ndo s6 por- que 0 suporte ~ um CD-ROM, p. ex.~ tem um custo infi- ‘mo em relagio 20 papel gasto no primeiro caso (e saliente-se aqui que edigdes criticas costumam formar um volume bas- tante denso), mas também porque o editor pode responsabi- lizar-se por todas as fases de sua produgio, desde a formagio digital até a copia em CD-ROM ou DVD-ROM, dispensan- do, assim, mao-de-obra terceirizada, [A redugio de espaco decorre da dimensio do suporte cletrénico: enquanto uma colegio de edigdes in-4? pode che~ ‘gar a ocupar todas as prateleiras de uma estante, no supor- te eletrénico caberia pot inteizo em apenas um CD-ROM (que suporta geralmente 700 megabytes) oa DVD-ROM (ca- paz de armazenar 4.7 gigabytes) Justamente porque milhares de textos em formato digi- tal cabem em apenas um CD-ROM ou DVD-ROM, os tex- tos ganham assim grande transportabilidade, podendo ser deslocados pata qualquer lugar sem demandar mio-de-obra especifica (necessiria para o deslocamento de uma bibliote~ ca em papel) ‘A versatilidade de uma edicio digital esté no fato de um texto nesse formato poder ser impresso em papel a qualquer momento ¢ quantas vezes forem necessirias (desde que, natu- ralmente, haja impressora disponivel) — eventualmente corre- se 0 tisco, porém, de a impressio nio ficar como 0 texto exi- bido na tela, em fungio de problemas de configuragio. Ja no caso de edicio impressa, sua conversio para digital é bem mais > 186 « iwrnopucio A cnlica raxruat complexa: hé varios riscos de deturpacdo, como jé se expli- cou anteriormente, 20 se falar da reprodusio com mudanga do sistema de registro. ‘A fancionalidade deriva do fato de um texto em forma- to digital permitir usos especiais. Os programas para sua lei- tura (como o Word ou 0 Acrobat Reader) permitem, de forma apida e eficiente, buscas de palavras, sua contagem, marcagio no texto, extragio para outro arquivo ~ enfim, uma série de uusos que possbilitam o aproveitamento maximo do texto. Naturalmente 0 formato digital apresenta também suas Timitagées: ~ certamente a limitago mais notivel de uma edigdo di- gital é sua dependéncia absoluta de equipamento eletrénico ¢ de programas: sua auséncia em um dado local, a inexistén- cia de programa adequado para o formato do arquivo' ou sua configuragao inadequada sio suficientes para impedir 0 aces- 50 20 texto; ~ nio se pode negligenciar ainda o desconforto da leitu~ ma em tela de computador: se, para textos curtos, nio parece haver tanto problema, para textos longos a leitura continuada é bastante exaustiva (ha que se verificar ainda se nfo pode- ria causar danos aos othos, em fungio da exposico continua A luz emitida pela tela); — uma grave desvantagem de um texto em formato digi- tal € a jé referida modificabilidade: enquanto o papel da (re- lativa) estabilidade a0 texto, o formato digital nio dé nenhu- ‘ma, pois qualquer arquivo pode ser adulterado com grande facilidade ¢ sem deixar rastro; ~ igualmente grave é a insta cula o texto em formato dig de do suporte que vei discos flexiveis e rigidos, 4.4 questio dos programas & bastante sila jf que se tornam obsoletese sem do mereado com notivel ipides, CCRITICA TEXTUAL « INFORMATICA « 187 CD-ROM e DVD-ROM sio extremamente sensiveis €, por isso, picos de tensio na rede elétrica ou mesmo simples ar- ranhées na sua superficie sio suficientes para os destruir com- pleta ¢ irreversivelmente; — hf ainda a questio do direito autoral: as leis brasileiras (mais especificamente a Lei n. 9,610, de 19 de fevereiro de 1998) consideram como de dominio piiblico os textos de au- tores mortos h4 mais de setenta anos (cap. III, art. 41), 0 que significa que qualquer editor pode publicar um texto desses autores sem depender de autorizaco de terceiros; o proble~ ma esti no fato de que, como um texto em formato digital pode ser facilmente copiado, nao h4 nada que impega editores de reproduzirem — ¢ comercializarem — um texto estabeleci~ do por um dado critico textual (j4 que este tem direito au- toral sobre os complementos que acompanham a edigio de uma obra literaria, mas no 0 tem sobre o texto da obra em si), fato que gera prejuizo financeiro a quem passou anos a fio fixando a forma genuina do texto de uma dada obra. Esse tiltimo problema, aliés, j4 se constata atualmente: € possivel encontrar diversas péginas eletrOnicas na intemet onde se pode reproduzir o texto em formato digital de centenas de autores de lingua portuguesa. Essa situagio apresenta duas fa~ cetas a serem consideradas: por um lado, o fato de esses tex- tos em formato digital estarem disponiveis gratuitamente (na maioria absoluta dos casos) significa uma democratizagio da leitura sem precendentes, que qualquer interessado que pos- sua computador tem acesso praticamente sem custos a qua~ se toda obra literaria em dominio pablico; por outro lado, os textos disponibilizados sio profundamente omissos quanto 8 sua origem (nio se sabe de que testemunho foram reprodi zidos), fato que coloca em xeque sua fidedignidade ~ além disso apresentam niio apenas erros Sbvios (geralmente esses 188 « mvrRoDUGAO A cRITICA TEXTUAL textos sio fruto de escaneriza¢io de alguma edigio impressa, apés a qual nio se fez revisio adequada) mas também erros imperceptiveis 20 leitor comum.A razio de haver tanta omis- so sobte a origem dos textos disponiveis na internet certa- mente esté relacionada 4 questio dos direitos autorais: vei- cular 0 nome do responsivel pelo estabelecimento do texto pode gerar disputa sobre o direito de publicagio desse tex- to, Trata-se, portanto, de uma questo complexa, pois de que adianta existirem disponiveis na intemet milhares de textos de forma gratuita se nio hi informagio sobre sua fidedignidade? No que se refere 3 organizario do texto, certamente a van- tagem mais especifica da informatica esti na possibilidade de © apresentar como hipertexto, ou seja, como um texto cujas unidades remetem, através de ligagGes (ingl. links), a outros textos, permitindo assim um percurso nao-linear e, eventual mente, simultineo (através da abertura de diferentes janelas ~ ingl. windows ~ sobre a tela do computador), recursos estes gue conferem grande dinamicidade 20 ato de leitura. Uma edigéo critica em hipertexto — ou uma hiperedigéo, segundo Faulhaber (1991: 130) ~ permite que se explore quase-que in- definidamente o texto, pois,a partir do texto critico, pode-se passat, p. ex.,d edigio fac-similar e/ou paleogrifica dos tes- temunhos, 20 aparato critico com variantes, 3s notas criticas sobre-o texto, a concordancias exaustivas das palavras do tex- to,a verbetes de um glossirio com informagées de cunho eti- molégico ¢ semintico, a estudos lingiiisticos ¢ literirios ~ tudo através da simples pressio sobre a tecla do mouse. Uma ex- periéncia interessante nesse ambito em relagio a textos em lingua portuguesa foi a producto da Biblioteca Virtual de Auto- res Portugueses, pela Biblioteca Nacional de Lisboa em 1998: trata-se de uma base de dados de dois CD-ROM a qual inclu informages biogréficas (com texto e imagem) e uma obra de CCRITICA TEXTUAL & INFORMATICA = 189 cada um dos dezessete autores contemplados, do séc. XIII a0 XX; cada obra em formato digital him! vem acompanhada de fac-simile do testemumho utilizado como fonte, manuscrito ou impresso. Apesar de a informatica ter-se infiltrado definitivamente no processo de edicio de textos, nfo seria um exagero dizer que seus recursos nio tém sido efetivamente explorados em toda sua potencialidade no campo da ctitica textual aplicada a textos em lingua portuguesa. As razdes para a subutiliza~ ‘gio da informitica apresentadas por Morrés (1999: 189-210) verificam-se com certeza também no dominio lus6fono — sio clas: falta de capacitago especifica relativa 4 informatica no processo de formagio dos filélogos; publicagdes pertinen- tes restritas a revistas muito especializadas e de leitura pouco acessivel a consulentes de outras éreas; defasamento entre os projetos e suas realizagSes (muitos projetos anunciados no se concretizam); € escassez de resultados tangiveis. ( COC’ IONDINNAINID: VVV EY y CAPITULO 8 CRITICA TEXTUAL & ENSINO Embora ji se tenha explicitado aqui que a exitica textual & relevante para qualquer atividade findada sobre o texto escri- to, convém tratar mais detidamente de suas relaces com 0 en sino, pois raras tém sido atualmente as abordagens de ensino que levam em conta os problemas da transmissio dos textos. 8.1. LIVROS DIDATICOS Considerando que, no sistema de ensino de forma ge- zal, 0 livro didético — um texto escrito, portanto — é prin- cipal instrumento de trabalho, era de esperar que houvesse grande rigor em sua elaboracio, pois atinge milhdes de lei- tores.A realidade, no entanto, parece nio condizer com esse pressuposto ‘Mendes (1986: 163-74), tendo analisado diversos livros didéticos de comunicacio e expressio, verificou problemas dos mais variados tipos. Veja-se, a seguir, uma pequena sin- tese desses tipos 2) Nio-identificagio da natureza da transcrigo: nfo fica clazo se se trata do texto integral ou de fragmento. 192 « uwrRopugio A calrica TexTUAL bb) Destespeito a estrutura dos poemas, geralmente em fangio de problemas relativos 4 sua disposigio gréfica. En- caixam-se nesse caso as alteragdes da estrutura de versos e/ou de estrofes (fusio de dois em um, ou fragmentagio de um em dois), ¢ ainda o acréscimo e/ou a supressio de versos. 0) Alteragio ou substituigéo do titulo original da obra. 4) Adulteracio do texto original, através de acréscimos, supressGes e/ou substituigdes de trechos, palavras, estruturas gramaticais, ete ©) Austncia de referéncias bibliogrificas adequadas: nio se especificam de forma completa os dados das fontes; no se es clarece se 0 texto transcrito ¢ adaptacio; informam-se refe- réncias erradas. Se a lista acima, por si s6, jé seria suficiente para deixar bastante surpreso qualquer professor, uma breve anilise de exemplos coletados por Mendes (1986) por certo ha de 0 dei- xar ainda mais aténito. Um exemplo interessante de modificagio da estrutura de uma obra em verso é 0 que se fez em rela¢Zo 20 poema“A ina”, de Cecilia Meireles. Em um dos livros didéticos examinados, ts versos desse poema foram transctitos como apenas um: "Esta menina/ tio pequenina/ quer ser bailarina”. Tal modificago tem impacto claro sobre a avaliago dos re- cursos posticos empregados na criagio da obra, pois a repe- tigdo de -ina constitui, na forma original, rima, mas, tendo sido fundidos os versos, passa a ter valor de aliteragio. Mudou- se completamente a natureza do recurso poético: 0 que era ‘uma espécie de imposigio formal (rima) tornou-se um efei- to que, em principio, é opcional (aliteragio) Um outro caso que chama a atengio é o que diz respeito ao poema “Trem de ferro”, de Manuel Bandeira, Em outro livro didatico,a forma original vrge foi alterada para virgemt no quarto verso:"“Virge Maria que foi isto maquinista?”. Essa

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