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© KARL MARX ~ KARL MARX A MISERIA DA FILOSOFIA 3 bases (ao) 246 TEORIA S CoP J0€5)/9 fe, Karl Marx Capa: Marco A. A. Giannella Revisde: José dos Anjos César Oados ve Catalogagao na Publicagao (CIP) Internacional (C4mara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Marx, Karl, 1515-1883. “355n A miséria da filosofie / Karl Marx j tradugéo de José Paulo Netto. -- S20 Paulo : Global, 1985 Inclui cartas de Proudhon a Marx, de Marx a Proudhon e outros, prefacios e notas de Engels. ISBR &5~260-C035-7 1, Economia - Filosofie 2. Proudhon, Pierre Josepl., 1809-1865, Sisteria das contradigdes cco- nonicas, ou, Filosofia da miséria 3. Socialism I, Engels, Friedrich, 1820-1895. Ii, Proudhon, Pierre Joseph, 1809-1865. III, Titulo. CDD-330.02 85-2794 -335 Indices para catdlogo sisternatico: 1. Economia : Filosofia 330.02 2. Socialiemo ; Economia 335 3. Teoria economica 330.01 Direitos reservadoy Global editorae distribuidora Itda, Rua Franga Pinto, 836 - Cep 04016 Fone.: $72-8473 red Cate Postal 43329 - 01000 -V. Mariana OT ® Sic Paulo - SP Iwsit u +1-USOFIR FILIAL: € CIENLIAS SOociets Rua Mariz e Barros. 39 - Conj. 26,36 Fone : (O21) 973-5944 mee CA wes, \ Cep 20270 - Bairro Tyuca £44 / Bt Ruo de Janeiro - RJ 7 : No de catalogo: 1651 > SUMARIO Adverténciado Tradutor 1.6... cecec cece eect cece ee ceee Introdugdo ............... MISERIA DA FILOSOFIA . Prélogo .. 62... eee cere eee 1. Uma Descoberta Cientifica .... § 1. Oposi¢ao entre o valor de utilidade eo valor de troca § 2. Ovalor constituido ou ovalorsintético ....... § 3. Aplicacao da lei das proporcionalidades do valor a) Amoeda b) Oexcedente do trabalho 2. A Metafisicada Economia Politica . § 1. Ométodo Primeira observagao Segunda observacao Terceira observacao Quarta observacao Quinta observagao . Sexta observagao Sétima e ultima observagao | seeeee . A diviso do trabalho eas mAquinas . Aconcorrénciaeomonopélio ... . Apropriedadeouarenda .. As greves e as coalizdes de operarios ANEXOS oo... eee cecee ee Prefacio aPrimeira Edigdo Alema Prefacio a Segunda Edigao Alema . John Gray eos Vales de Trabalho . . Discurso sobre 0 Problema do Livre- ‘Cambio Cartade Marx aProudhon .. Carta de Proudhon a Marx .. Carta de Marx aP. V. Annenkov Carta de Marx aJ. B. Schweitzer nun unin ALUN me — 101 101 : 102 ADVERTENCIA DO TRADUTOR Esta versio da Miséria da Filosofia foi realizada & base do texto que, sobre a edicdo original de 1847, M. Rubel estabeleceu para as Oeuvres/Economie de Marx (Bibliothéque de la Pléiade, éd. Gallimard, Paris, I, 1965, p. 7/136). Como fontes secundérias, foram utilizadas as edicdes italiana (Miseria della Filosofia, Newton Compton Ed., Roma, 1976) e espanhola (Miseria de la Filosofia, ed. Progreso, Moscu, 1979). Foram feitos esforcos para conservar o estilo do texto original, o primeiro que Marx escreveu em francés — e € preciso recordar que o proprio Marx considerava o seu francés de 1847 como algo “bar- baro’’. O tradutor evitou ler a escritura do original francés com a lente da prosa germanica verdadeiramente classica de Marx. Por outro lado, esta traduc&o (ao contrfrio da grande maioria das versdes desta obra) recusou-se a qualquer ‘‘modernizagao"' ou ‘“‘uni- formizac4o" da nomenclatura marxiana, optando por resguardar as oscilagdes terminoldgicas existentes no original. Em notas, consignaram-se as diminutas modificagdes que Marx inseriu no exemplar que ofertou a Natalia Utina (1876), bem como as intervengdes que Engels efetuou nas primeiras versdes alemas (1885 e 1892), e que aparecem na segunda edicdo francesa (1896). Todas as notas que nao s4o originalmente de Marx vém entre colchetes; na sua maioria foram adaptadas das edicdes refe- ridas — umas poucas sdo do tradutor e nio mereceram men¢&o especial. E de ressaltar que aquelas que registram as reacdes de Proudhon a obra de Marx, manuscritas no seu exemplar da Miséria da Filosofia, foram todas extraidas da edic&o preparada por Rubel. As referéncias nao originais de Marx a Proudhon remetem ou A edigao de 1923 (Oeuvres Complétes de P.-J. Proudhon, Marcel Riviére, Paris, 1923) ou a de 1964 (Proudhon/Marx, Philosophie de 7 col. 10/18. Paris, 1964); m as remissdes UGE, elas acompanhar anhola mencionada. ize i foram traduzidos & partir oe nine Os Fn 0 PE ge rca ene MBP edici cpa a de Rubel. excel, as car tas ertinentes. Ton na edigho iF". sao indicadas sginais. Proudho™ cules ote olas entre colchetes no sAo originals KOS, pém nestes ane Ia Philosophie. jisére de Gata, INTRODUCAO José Paulo Netto A hist6ria do movimento operdrio, desde o século XIX, €um processo que se articula por uma unidade que, garantida pelo desenvolvimento da teoria social moderna (fundada por Marx), resolve-se e se consolida nas fraturas parciais que os enfrentamentos te6ricos, politicos e ideoldgicos, a direita e a esquerda, lhe impdem. O mais significativo dos primeiros destes enfrentamentos foi protagonizado por Proudhon e Marx, em 1846/1847. Ele assinala tanto a diferencia¢4o politico-ideoldgica, crucial e qualitativa, entre duas perspectivas socialistas — a reformista e a revoluciondria —, quanto, simultaneamente, 0 embasamento da teoria social mo- derna. Porque é na Miséria da Filosofia que, além da liquidacao tedrica do socialismo reformista (ut6pico-reformista) de cariz pe- queno-burgués', esto sendo explicitados e oferecidos ao publico, pela primeira vez, os fundamentos e os elementos constitutivos da teoria do ser social engendrado pelo modo de produgio capitalista. Nao € objetivo desta introdugdo propiciar ao leitor brasileiro uma analise do confronto em tela ou das relacdes entre Proudhon e (1) E preciso insistir neste aspecto: a Miséria da Filosofia opera a liquidacdo tedrica do socialismo utopico-reformista, mas n&o alcanga uma incidéncia decisiva no plano da pritica politica do movimento operario. O proprio Mehring reconheceu-o, ao afirmar que, apesar da critica marxiana de 1847, “longe de diminuir, a influéncia de Proudhon, sobre o proletariado francés e dos paises latinos em geral, aumentou™ (Mehring, F.: Karl Marx, Lisboa, 1974, I, p. 147). Esta influéncia. até hoje, a tal ponto consider&vel que 0s comunistas franceses, numa recente reedigio da obra, sentiram a necessidade de precedé-la de uma nétula de H. Mougin, que avalia polémica e negativamente a presenga do fantasma proudhoniano no seio do movi- mento operdrio(cfr. Misére de la Philosophie, Paris, 1972. p. 7/23). Marx’, O que se pretende, de modo sucinto e didAtico, é indicar as linhas mais importantes para 0 enquadramento do confronto entre os dois pensadores e sugerir a relevancia da Miséria da Filosofia no evolver da obra de Marx, 20 mesmo tempo em que se faz alusio a um elenco pluralista de fontes bibliogr4ficas pertinentes para um estudo mais profundo das questdes que se levantam na investigacao daquele confronto. Os Anos Quarenta... Proudhon e Marx se confrontam na segunda metade dos anos quarenta do século XIX. Na Europa Ocidental, estes anos marcam o derradeiro estgio da etapa inicial da revolucao industrial (ou, como querem alguns, o ocaso da primeira revolucdo industrial), que emergira na Inglaterra nos meados da centiria anterior. Nos anos quarenta, com o esgotar do essencial das possibilidades do indus- trialismo no seu primeiro est4gio, os paises-p6los europeus ja apre- sentam os tracos bAsicos da fisionomia que os caracterizara en- quanto formagdes econdmico-sociais organizadas sobre a produg&o capitalista. Isto é: nestes anos, o ser social posto pelo capitalismo evidencia ja os seus vincos decisivos — o ordenamento da producao, a definicdo das instancias politicas, a estruturac4o de uma cultura e de um ethos proprios, etc., aparecem como constelagdes histéricas de um modo de vida novo. Trata-se do momento em que 0 mundo burgués se consolida, resultante de um processo multifacético — intersecc4o da economia, da hist6ria e da cultura. E possivel sugerir as condicdes gerais desta consolidag4o evocando, mesmo que alea- toriamente, alguns dados que conformam o panorama dos anos quarenta’. A Inglaterra se oferece como o referencial das modificagdes que melhor explicitam aquele processo. Entre 1800 e 1850, a sua (2) Objeto de uma vasta bibliografia, onde cabe destacar a contribuicao dos bidgrafos de ambos os tedricos (sobre Marx, cfr. os estudos de Mehring, Cornu e Rubel; sobre Proudhon, os de Dolléans, Halevy e Bancal). Uma fonte de referéncia obrigatoria é Haubtmann, P.: Marx et Proudhon, Paris, 1947. Ao leitor brasileiro, os textos mais acessiveis so: Jackson, J. H.: Marx, Proudhon e o Socialismo Europeu, Rio de Janeiro, 1963; Menezes, D.: Proudhon, Hegel e a Dialética, Rio de Janeiro, 1966; Gurvitch, G.: Proudhon e Marx, Lisboa, s/d. (3) Fontes: Huberman, L.: Histéria da Riqueza do Homem, Rio de Janeiro, 1976; Hobsbawn, E. J.: A Era das Revolucdes, 1789/1848, Rio de Janeiro, 1977 e Da Revolucéo Industrial Inglesa ao Imperialismo, Rio de Janeiro, 1978; Abendroth, W.: A Histéria Social do Movimento Trabathista Europeu, Rio de Janeiro, 1977; Botti- gelli, E.: A Génese do Socialismo Cientifico, Lisboa, 1971; Passos Guimaraes. A.: A Crise Agréria, Rio de Janeiro, 1979. 10 populago, praticamente, duplicou, com 0 movimento demogrifico acompanhando-se por uma redistribuig4o espacial condicionada pe- la industrializacao — se, em 1770, 40% da sua populagao vivia nos campos, em 1841 esta taxa cai para 26%. A urbanizacao acelerada e desenfreada encontra em Manchester 0 seu exemplo cabal: em 40 anos (1801/1841), a populago da cidade aumentou em 13 vezes. O crescimento industrial responde por estas alteragdes. Um de seus indices € a producdo de ferro fundido, que saltou de 193000 t, em 1800, para 1400000 t, em 1840. Os nimeros mais representativos, porém, nesta etapa da industrializagado, referem-se 4 produgio téx- til: somente as exportacdes para a América Espanhola registraram, entre 1820 e 1840, um aumento de S00% (1820: 56 milhdes de jardas; 1840: 279 milhdes de jardas). Explica-se: se os teares meca- nicos, em 1813, n&o passavam de 2400, em 1850 eram mais de 224 000. Por outro lado, a mecanizagao incide sobre a estrutura da forga de trabalho: dos 240000 teceldes manuais de 1820, em 1844 <5 restavam 60000; no mesmo periodo, os que operavam teares meca- nicos variam de 10000 para 150000. Nao nos alonguemos desneces- sariamente; mencionemos apenas que, na Inglaterra, os anos quaren- ta apresentam a maior taxa (relativa a aumento percentual por déca- da) de crescimento industrial em todo o século XIX: 39,3%. Entre 1820 e 1845, o produto liquido industrial (em valor corrente) cresceu em cerca de 40% — mas sua folha de pagamentos nao aumentou em mais de 5%. E a contrapartida necess4ria deste padrao de industria- lizagio: os salarios reais comegam a baixar a partir de 1815 e, entre 1811 e 1840, as taxas de mortalidade ascendem e a miséria das massas conhece uma progressdo assustadora*. Quanto a revolucao agricola, de que fala Passos Guimaraes, ela precede esta fase: forneceu os bragos para a arrancada industrial — em 1750, os yeomen j& nao existiam como classe e, entre 1750 e 1830, cerca de 2000000 de hectares de terras, por decretos parlamentares, foram expropriados pelos landlords. No continente, o processo ocorre muito assimetricamente. Enquanto as manufaturas vegetam na Peninsula Ibérica e na Penin- sula Italica as modificagdes praticamente se restringem ao norte, a Bélgica da década de quarenta 6 um pais industrializado: entre 1830 e 1838, a poténcia das suas mAquinas a vapor é triplicada e, entre 1830 e 1850, também se triplica a sua produgdo de carvao. A Franca, embora em proporcdes mais modestas, experi- menta modificacdes similares. E no ultimo quartel do século XVIII (4) Uma classica descrigto das condigdes em que se operou este proceso & oferecida por Engels, F.: A Situagdo da Classe Trabalhadora na Inglaterra, a ser lan- cado por esta editora. 1 que. nela, se realizam as duas caracteristicas da revolu¢ao agricola: & concentracdo fundifria e a alta dos precos da terra. E a defa- Sagem, em relac&o A Inglaterra, verifica-se também nas relagdes comerciais e industriais; de qualquer modo, o capitalismo avanga: as irris6rias 65 m4quinas a vapor que existiam em 1820 j& séo mais de 5000 em 1847. Os capitais investidos no comércio e na industria passam de 30 bilhdes de francos, em 1830, para 45 bilhdes, em 1848. A urbanizacao também se intensifica — entre 1800 e 1850, a popu- lag&o de Paris duplicou. Mesmo na atrasada e dividida Alemanha, 0 novo mundo permeia a feudalidade. A concentracdo fundiaria pode ser inferida da seguinte indicag4o: se, em 1773, os assalariados rurais eram numericamente insignificantes, em 1849 somavam 2 000000 de pes- soas. A ‘‘miséria alema’’ €, naturalmente, relativa: a produgao mineira foi duplicada entre 1830 e 1842, a metalirgica triplicada entre 1800 e 1830 ¢ a produgao de bens de consumo, em 1830/1840, cresceu 8 vezes em comparacdo a de 1800/1810. Ai, igualmente, os efeitos da industrializac4o capitalista, na sua primeira etapa, sio onerosos para os trabalhadores: na Prissia, em 1848, a jornada média de trabalho varia entre 14 e 16 horas e os salarios industriais, tomando-se 100 como indice para 1800, caem progressivamente: 86 em 1800/1829, 74 em 1800/1848. ...€0 protesto operdrio Mas a consolidacao do mundo burgués é, ao mesmo tempo, a articulagdo de sua negagdo. As modificagées assinaladas n4o s4o as unicas a enformar o novo modo de vida; elas se acompanharam, sempre e inevitavelmente e em todos os lugares, do protesto operério — jA no século XVIII espolcam rebelides cegas, centradas na dés- truigdo das mAquinas (1758, Inglaterra; 1792 e 1794, Silésia). O protesto operario descreve uma curva ascendente até os anos quarenta. Conquistada a legalidade da organizagio sindical na Inglaterra (1824), manifesta-se na ilha a tendéncia operdria a asso- ciac4o: multiplicam-se as unides, federacdes, etc., que serdo catali- sadas, entre 1838 (data da publicag&io da Carta do Povo) e meados da década seguinte, pelo movimento cartista, cuja experiéncia cons- titui o primeiro legado para os futuros partidos politicos operdrios. No continente, em troca, respira-se, desde 0 Congresso de Viena (1815), a era de Metternich: repress4o e censura. E isto 0 que, acres- cido 4 defasagem dos ritmos de crescimento industrial na ilha e no continente, explica 0 baixo nivel de organizac&o do protesto ope- rario. A unica excec’o € a Franca, especialmente Paris, onde eram 12 mais ou menos amplos, comparativamente, os cspacos para a tema- tizagao politica’. Mas o controle rigoroso da movimentacao ope- r4ria®, somado a tradicdo jacobina, dao ao protesto operério francés — cuja combatividade demonstrara-se tanto em julho de 1830 quan- to, especialmente, nas revoltas lionesas de 1831 e 1834 —, contudo, a configuracao conspirativa: o veio carbondrio permanece, as “sociedades secretas’’ se generalizam e tenta-se o golpismo (1839). Na Alemanha, a repressdo mais brutal reduz o protesto operario a niveis minimos (a sua organizagdo se efetivara, realmente, no exi- lio), mas n&o consegue impedir a eclos’o de choques violentos (Silésia, 1844). A ambiéncia ideo-politica destes anos expressa com fidelidade a evolucdo do protesto operdrio na sua curva ascendente — basta evocar a larguissima bibliografia que acompanha es formulacdes tipicas do que ulteriormente se denominou ‘‘socialismo ut6pico”’. Na década de quarenta, todavia, o protesto oper4rio, sobretudo no continente, sofreu profunda inflexao. A consolidac4o do novo modo de vida do mundo burgués poe a luz do dia a dilaceragao medular deste mundo: inseparavel ac6lito da burguesia, o proletariado, ao fim da primeira etapa da revolug&o industrial, jA n&o se opde sim- plesmente a ela, mas articula um projeto societario que implica a sua supressio. Numa palavra: consolidado o mundo burgués, o proletariado converte-se em classe para si. Esta & a profunda infle- xao testemunhada pelos anos quarenta: esgotado o padrao indus- trialista da primeira fase da revolucdo industrial e definida a domi- nag’o de classe da burguesia, o proletariado se insere na prdtica politica como um agente aut6nomo — eis 0 que, a nivel hist6rico- universal, se verifica em 1848 (e que, documental e programati- camente, se registra no Manifesto Comunista). O confronto entre Proudhon e Marx ocorre, exatamente, no estagio conclusivo deste processo de qualitativa transformacao do protesto operf4rio. Em si mesmo, ele antecipa o problema que a histéria real colocar4 em 1848: reforma ou revolugdo — proletariado como classe que participa do processo social ou proletariado que direciona © processo social. Esta irredutivel oposig¢4o nao se mani- festa, porém, somente nos termos da polémica Proudhon/Marx: manifesta-se, principalmente, no fato de os dois teéricos terem cruzado os seus caminhos, desenvolvidos muito diferencialmente, no (5) Nos anes quarenta, Paris € 0 exflio privilegiado para os perseguidos Politicos de todo o continente. Um dado: em 1843, 7% dos habitamtes da capital francesa eram emigrados alemaes. (6) Controle cuja substancia se encontra no Cédigo Napolednico, cujo carater de classe ¢ inequivoco: dedica ao trabalho oito pardgrafos e, 4 propriedade, varias centenas. 13 preciso instante em que formulavam propostas s6cio-politicas dia- metralmente opostas, excludentes mesmo. Aevolucdo de Proudhon (1838/1846) Entre 1838 e 1846 decorre a primeira fase da reflexac de Proudhon ", que compreende a evolucdo que leva das Jnvestigacdes sobre as Categorias Gramaticais (ensaio de gramatica comparada que lhe propiciou, com o prémio Suard, da Academia de Besangon, uma bolsa de estudos em Paris, em 1838) a publicacao, em 15 de outubro de 1846, do Sistema das Contradicées EconGmicas ou Filo- sofia da Miséria*. Trata-se de uma evolucdo que, em resumidas contas, traga a trajet6ria que conduz de um ponto de vista aberta- mente revolucion4rio a um termo anemicamente reformista (ut6- pico-reformista). A primeira obra de Proudhon destinada ao grande puiblico é Sobre a Celebragao do Domingo, redigida e publicada em 1839°. O argumento proudhoniano, discorrendo sobre a significac&o dos rit- mos de trabalho e repouso na vida, visa a critica da espoliagao do trabalho pelo capital. O seu objetivo é ‘‘provar a todos os monopoli- zadores do trabalho, exploradores do proletariado, autocratas ou feudatarios da industria, ricagos e proprietarios a tripla poténcia, que 0 direito de trabalhar e de viver, devolvido a uma massa de homens que... ndo gozam dele, nao seria da parte dos beneficifrios uma gratificagio, mas uma restituigdo’’'° Antevendo o que Marx, ulteriormente, chamaria de pauperizac¢do, Proudhon, contra o capi- tal, conclui: ‘“Apelamos para a forca. Proprietarios, defendei-vos! Haveré combates e massacres”"' . Mas é 0 opiisculo de 1840, O que 6 a Propriedade? — que contém a célebre frase ‘‘a propriedade € um roubo” e que lhe acarretou a perda da bolsa de estudos —, que tornaré famoso 0 nome de Proudhon. Refutando a noc&o (encravada na ideologia liberal desde Locke) de que o fundamento da propriedade & o (7) Sobre Proudhon, refer€ncias biograficas podem ser localizadas nas fontes citadas na nota 2 ¢ ainda em: Cuvillier, A.: Proudhon, Paris, 1937; Dolléans, E.: Proudhon, Paris, 1948; Halevy, D.: La Vie de Proudhon, Paris, 1948. E de notar que, ‘nO seu conjunto, a obra proudhoniana é vasta: 38 livros (12 péstumos), 14 volumes de correspondéncia, 3 volumes de artigos ¢ 6 volumes de anotacdes Pessoais (os Carnets). (8) Gurvitch periodiza a evolugho de Proudhon em trés fases: interior & revolugio de 1848; 2*) entre a revolugho de 1848 ¢ a sua libertag&o (1852); 38) a final, entre 1852 ¢ 1865 (cfr. op. cit., 1, p. 31). (9) Uma edigio em tiragem comercial maior saiu em 1841, (10) ApudGurviteh, op. cit., 1, p. 35. (11) Ibidem, p. %. 14 trabalho, Proudhon assinala que ‘‘o propriet4rio ndo produz nem por si nem por seus instrumentos e, recebendo os produtos em troca de nada, é um parasita ou um ladrao’’?. Movendo-se no ambito de uma problematica de raiz iluminista (afinal, para mostrar a impos- silidade da propriedade, ele recorre a Justica, ao Direito, A Cons- ciéncia), Proudhon postula a “‘reabilitag&o do proletariado” me- diante a defesa da tese que, malgrado posteriores alteracbes, sera sempre a sua favorita: a igualdade de condi¢ées. E, um ano depois, na Segunda Meméria sobre a Propriedade, ele determina o modus para alcangar esta igualdade de condi¢ées: “‘Concito a revolugao por todos os meios ao meu alcance”” Em 1843 — em duras condiges de vida: transferira-se para Lyon, trabalhando numa empresa de transportes —, Proudhon publica A Criagao da Ordem na Humanidade. Esta obra pretensiosa (dividida em cinco partes: a Religiio, a Filosofia, a Metafisica, a Economia e a Historia) contém uma espécie de simula das idéias que Proudhon tematizaria ao longo de sua vida. Propondo-se a critica da concepgio de ordem, ele passa em revista uma longa série de filésofos (Plataéo, Bossuet, Malebranche, de Maistre, Leibniz, Kant, Hegel), polemiza com contemporaneos (Comte) e explicita a sua dialética serial que, como se sabe, pouco ou nada tem a ver com a metodologia hegeliana'*. Ainda aqui, Proudhon reafirma a sua (12) Ibidem, p. 52. (13) Apud Lowy, M.: La Teorfa de la Revolucién en el Joven Marx, México, 1978, p. 199. (14) Segundo Bancal (cfr. a sua introdug&o a Proudhon, P.-J.: Oeuvres Choi- sies, Paris, 1967), a dialética serial de Proudhon se funda numa tripla legalidade: a lei motriz — o antagonismo antindmico; a lei reguladora — a justica-equilforio; a lei realizadora — o processo serial. Para Gurvitch, a dialética de Proudhon “desemboca num pluralismo t&o bem ordenado, tho bem integrado, t8o bem equilibrado, que suspeitamos terem sido esta integracdo e este equilfbrio arranjados previamente e preconcebidos” (Dialética e Sociologia, Lisboa, 1971, p. 143); alids, ‘‘a orientacdo geral do pensamento de Proudhon vai exatamente na direc&o oposta a de Hegel”: desde Sobre a Celebragdo do Domingo, “'Proudhon proclama que o seu métodoé o da procura dos equilfbrios na diversidade"’ (ibidem, p. 139 e 143). Na verdade, Prou- dhon nao teve contatos diretos com textos hegelianos (n&o lia alemao ¢, no seu tempo, nao existiam tradugdes): 0 mesmo Gurvitch informa que o seu conhecimento de Hegel vinha do que Ahrens, emigrado alemao que lecionara no Collége de France, veiculara no seu Curso de Psicologia, publicado em 1836/1838. Entre 1844/1845, Marx forneceu-Ihe sugestdes hegelianas, posteriormente deformadas por Gron (cfr. a carta de Marx a Schweitzer, nos Anexos deste volume). Analistas das mais distintas correntes coincidem na constatagio da fragilidade metodolégica do pensamento de Proudhon: se Buber afirma que ele “‘ndo era um pensador hist6rico” (O Socialismo Ut6pico. Sao Paulo, 1971, p. 39), Peter diz que ‘“o pensamento de Proudhon é uma meciinica reguladora” (cfr. a sua introduc&o a Proudhon, P.-J./Marx, K.: Philo- sophie de la Misére/Misére de la Philosophie, Paris, 1964, p. 8); ¢ Menezes escre “E verdade que Proudhon, em muitos trechos de seus escritos, falou da triade da tese, 15 Posi¢ao revolucion&ria: o determinismo econémico — ele n&o duvida que o movimento da sociedade tem por base a vida econémica, nem que as leis da economia politica sejam as leis da histéria — nao impede, exclui ou invalida a ‘‘forca criadora revolucionéria’’'’. Na sua obra subseqiente, porém, esta ‘‘forca criadora” j4 nao encontra espaco: 0 Sisterna das Contradigées Econdémicas ou Filo- sofia da Miséria atesta a viragem decisiva de Proudhon no sentido do reformismo ou, mais exatamente, do utopismo reformista. Nao € que Proudhon tenha sofrido qualquer processo de venalizac&o ou corrupedo ideolégica. Na verdade, os dois volumes que publica em 1846 pdem em relevo, mais que as limitagdes derivadas do horizonte politico de classe que o aprisiona, as constrangedoras restricdes que 0 seu desengoncado conhecimento da dinamica social faz penetrar nas suas propostas politicas. E purque erra na andlise que Proudhon erra na proposta politica; ele nao € capaz de formular um projeto tevolucionério justamente porque nao é capaz de compreender a efetiva legalidade histérico-social. Se, nas suas obras anteriores, a precaria andlise econémico-social ndo comprometia a concluséo revolucionaria, a raz4o esta em que esta ndo se engrenava realmente naquela — era uma peticdo ética; agora, quando pretende formular um projeto de intervencao social a partir de uma investigacao siste- mitica, a solucdo que apresenta aparece inteiramente hipotecada a sua inépcia teérica. A politica que se articula no Sistema das Con- tradigées Econémicas ou Filosofia da Miséria € ut6pico-reformista porque a analise hist6rico-social que a funda é fragil e porque a teoria econdmica que a sustenta é falsa. O livro, complicado ', intenta, de forma detalhada e sistem4- tica, ‘‘uma sintese entre o capitalismo e 0 socialismo, defendendo, com os economistas burgueses, 0 principio da propriedade privada contra os socialistas e criticando, com estes, as taras do capita- lismo’’!”. Ou, como resume um analista simpAtico a Proudhon: ‘‘Os seus dois volumes tratam sucessivamente dos valores econdmicos, da divisto do trabalho, das mAquinas, da concorréncia, do monopilio, do imposto, da balanca de comércio, do crédito, da propriedade antitese € sintese; ¢ muitos comentadores, com certa leviandade, discutem a sua tournure dialectique. A terminologia é superficial — e mascara, sob aparéncia dialética, a mais banal intuigAo mecanicista acerca do encadeamento dos fendmenos. Daj no passou o grande lutador™ (op. cit., p. 29) (1S) Apud Gurviteh, Proudhon e Marx, ed. cit., I, p. 68. (16) Para Bottigelli, esta “nto &, decerto, a melhor obra que Proudhon escreveu" (up. cit., p. 222). (17) Cornu, A.: Karl Marx et Friedrich Engels, (M1: Marx é Paris, Paris, 1962, p. 53. 16 individual, da propriedade coletiva, da comunidade de bens. da populacao, do trabalho. Proudhon procura mostrar que, relativa- mente uns aos outros, estes termos sao antindmicos... [e] conduzem a resultados opostos aos que uma sociedade poderia esperar. Para sair do impasse, é preciso renunciar aos preconceitos da economia politica classica e as ‘utopias comunistas’ do tempo, que pregam a ‘comunidade de bens’, utopias que Proudhon identifica, muitas vezes sem razAo, com 0 coletivismo socialista’"*. Arrancando de uma “hipétese de Deus", j4 nas suas pri- meiras pAginas, retoricas e bombasticas”™, a obra evidencia a carac- teristica maior que permeia todos os desenvolvimentos nela con- tidos: uma hipostasia de eventos, dados e instituigdes que, retirados do processo sécio-hist6rico, s4o convertidos em antinomias que nao se resolvem por conflitos imanentes, mas, antes, so combinadas por uma razAo interveniente que é exterior a eles. Proudhon parte da idéia de que duas doutrinas disputam o mundo: a economia politica (a rotina) e 0 socialismo (a utopia). A verdade da disputa se encontra na sua conciliac&o: a combinagdo entre a conservacdo e 0 movi- mento, a tnica solu¢o para formular os fundamentos da ordem social e a “‘lei organica da humanidade Pesquisando esta supra-histérica “lei organica”, Proudhon organiza os seus materiais arbitraria e dogmaticamente. A ingenui- dade epistemolégica senta praca nos seus raciocinios: “Para nés, os fatos no s4o matéria... mas, ao contrario, manifestacdes sensiveis de idéias invisiveis’’”". A mitificagio da hist6ria é patente: “Para nés, a hist6ria das sociedades nao € mais que uma longa determi- nagao da idéia de Deus, uma revelacdo progressiva do destino do homem'’??. A sociedade é reduzida ao esquema de uma pessoa, simbolizada por Prometeu. E 0 seu dinamismo é convertido no jogo de dois principios abstratos: ‘‘A vida social se manifesta dupla- mente: conservac4o e movimento’’™. A concepcdo geral do movi- mento hist6rico-social, assim erguida, resvala, num discurso in- flado, para o banalismo mais francamente desistoricizado: “A hu- manidade, na sua marcha oscilat6ria, retorna inconscientemente 19 (18) Gurviteh, op. cit. . 1, p. 70. (19) “...Tenho necessidade da hipétese de Deus pata fundar a autoridade da ciéncia social” (Proudhon/Marx, Philosophie de la Misére/Misére de la Philosophie. ed. cit., p. 36) (20) “Direi como, portanto, estudando, no siléncio do meu coragdoe longe de toda consideragdo humana, 0 mistério das revolugdes sociais..."" (ibidem, p. 25) e por ai afora, (21) Zbidem, p. 103. (22) Ibidem, p. 37. (23) Ibidem, p. 137. sobre si mesma... A verdade, no movimento da civilizacdo, perma- nece sempre idéntica e nova... E isto, precisamente, constitui a Providéncia e a infalibilidade da razio humana; assegura, no inte- rior mesmo do progresso, a imutabilidade do nosso ser; torna a sociedade, ao mesmo tempo. inalter&vel em sua esséncia e irtesis- tivelem suas revolugdes. As remissdes 4 Providéncia ou a infalibilidade da razao hu- mana apenas dissimulam a real incompreens&o tanto das categorias econdmicas quanto dos processos que elas denotam*. Com a redu- gao da complexidade do ser social posto pelo capitalismo a um somat6rio de antinomias excludentes (monop6lio/imposto, respon- sabilidade de Deus/responsabilidade do homem, etc., etc.), Prou- dhon, todavia, nao retrocede somente em relag&o ao nivel j& alcan- cado pela economia politica em sua versdo classica. Faz mais e pior: 0 seu fracasso tebrico incide sobre o seu proprio percurso politico e ideolégico — agora, j4 nao coloca como alternativa libertadora a supressdo do capitalismo pela abolic¢ao da propriedade, através da via revolucionéria. Ao contrfrio: a antinomia propriedade/comu- nidade resolve-se na sua conciliagdo — e eis que Proudhon pro- pugna pela mutualidade. Este novo fundamento para a sociedade futura, como é compreensivel, j4 ndo repousa mais na anteriormente glorificada “forca criadora revoluciondria”: a emergéncia da nova sociedade “‘ocorreré néo como novidade imprevista, inesperada, repentino efeito das paixdes do povo ou da habilidade de alguns homens, mas pelo retorno espontaneo da sociedade a uma pratica imemorial, momentaneamente abandonada..."’”*. A evolugao de Marx (1841/1846) Este é 0 perfil tebrico-ideologico do homem com o qual Marx polemiza em 1847: n&o mais o pensador que concitava a revolugao e sim 0 doutrinério que a rechaca por considera-la um apelo a for- ga”... Ora, quase no mesmo decurso temporal, Marx cumprira um itinerdrio inteiramente diverso: no dizer de Cornu, ele realizara 0 transito do liberalismo democratico ao comunismo. Assim, pois, 0 (24) Ibidem, p. 306/307. (25) Esta incompreensio — um dos objetos centrais da critica de Marx — & constante no texto de Proudhon. Veja-se um s6 dentre abundantes exemplos: “O monopblio existe em funcio da natureza e do homem: sua fonte reside, simultanea- mente no mais profundo de nossa consciéncia ¢ no fato exterior da nossa individua- lidade" (ibidem, p. 140). (26) Ibidem, p. 306. (27) Cfr. a carta de Proudhon a Marx, incluida nos Anexos deste volume. confronto era inevitével. Antes de mencion4-lo, contudo, devemos sugerir as grandes linhas da evolugao de Marx entre 1841 € 1846”; de fato, esta 6 a etapa em que se constr6i, nele, 0 tedrico e o revolucionério. Em sintese, ¢ a fase em que as suas experiéncias intelectuais, sociais ¢ politicas permitem-Ihe articular as bases do que, a partir de 1847/1848, constituira a moderna teoria social — desvelamento do modo de produc4o capitalista e proposta da sua ultrapassagem, com o proletariado urbano como agente da tran- sigdo socialista. Em 15 de abril de 1841, Marx doutora-se em filosofia. com a dissertagdo Diferenca entre as Filosofias da Natureza em Demécrito e Epicuro”. A tese, relevante na discussao académica que . a €poca, na Alemanha, travava-se no tocante 4 avaliacao do pensamento antigo, arranca dos lineamentos hegelianos sobre a hist6ria da filo- sofia e adquire uma ponderacao especifica quando conjugada a posterior evolucdo do autor: ja ento, com uma énfase positiva na significagao das idéias de Epicuro, a reflexio de Marx aponta para desenvolvimentos inéditos e originais » No entanto, 0 movimento de Marx, diferenciando-se da es- querda hegeliana, s6 comeca mesmo a se esbogar em 1842: assu- mindo a diregao da Gazeta Renana, Orgao liberal, ele tende a “rejeitar definitivamente a filosofia critica dos Jovens Hegelianos e a se separar deles'’! . Com efeito, é neste periodo que, pela primeira vez, Marx enfrenta questdes politicas” ¢ justamente estas questdes (28) O leitor compreende que ndo cabe aqui mais que um brevissimo excurso sobre 0 roteiro marxiano entre 1841 e 1846. Sobre esta polémica questo. a biblio- grafia é vastissima; registramos, como sugestAo: Léwy, M.: op. cit.; Lukécs, G.: 17 Giovane Marx, Roma, 1978; Vranicki, P.: Storia del Marxismo, Roma. I, 1973: Cornu, A.: Karl Marx et Friedrich Engels, Paris, 1, 1955; 11, 1988; III, 1962; Lefebvre, H.: La Pensée de Karl Marx, Paris, 1966; Althusser, L.: Andlise Critica da Teoria Marxista, Rio de Janeiro, 1967; Bottigelli, E.: op. cit.; Gianotti, J. A.: Origens da Dialética do Trabatho, So Paulo, 1966; Mész4ros, I.: Marx's Theory of Alienation, Londres, 1970; Markus, G.: A Teoria do Conhecimento do Jovem Marx, Rio de Janeiro, 1974; Mandel, E.: A Formagdo do Pensamento Econémico de Karl Marx, Rio de Janeiro, 1968; Rubel, M.: Karl Marx. Essai de Biographie Intellec- tuelle, Paris, 1957; McLelland, D.: Marx y los Jovenes Hegelianos, Barcelona, 1971; Vasquez, A. S.: “Economia y Humanismo', in Marx, C.: Cuadernos de Paris, México, 1974. (29) Edigao brasileira: Sao Paulo, s/d. (30) Comentando a evolugdo de Marx entre 1840 ¢ 1841, Lukacs ndo hesita em dizer que ‘'j4 estava presente em Marx o micleo da posterior superagdo critica da filosofia hegeliana” e chega até a afirmar que, na dissertac4o, existem embrides das Teses sobre Feuerbach (op. cit., p. 31 ¢ 35) (31) Cornu, op. cit., II, p. 1. Da produgae jernalistica de Marx, desta época, s6 hé algum material publicado no Brasil na antologia Marx, K.: 4 Liberdade de Imprensa, Porto Alegre, 1980. (32) Um bom resumo deste perfodo encontra-se em Léwy, op. cit., p. 38 € 35, 19 levam-no a atentar para as idéias socialistas — lé Dézamy e Prou- dhon Em 1843, Marx € conduzido a um enfrentamento decisivo com a heranca hegeliana: a partir da influéncia de Feuerbach, estuda os pardgrafos 261 a 313 dos Princfpios da Filosofia do Direito de Hegel, nos inconclusos manuscritos de 1843*°. O problema que Marx se coloca nao é diferente do de Hegel ou do da tradicdo classica da teoria politica — é 0 problema das relagdes entre o Estado e a sociedade civil. Mas, se a formulagao € hegeliana, 0 programa polltico implicito em Marx é antipoda ao de Hegel, marcado, inclu- sive, pelas sugestdes de Moses Hess. Ao contr4rio de Hegel, que vé no Estado o fundamento da sociedade civil, posto que torne ‘‘os predicados independentes e deixa-os transformarem-se, de forma m{stica, em seus sujeitos”*, Marx parte da idéia de que . efetiva- familia e a sociedade civil constituem os pressupostos do *. Por isto, a superacao da universalidade alienada do Estado € possivel pela supressio da separacdo entre o social e 0 politico, o universal e o particular — € possivel na ‘“verdadeira democracia”. E neste contexto que Marx elabora a sua primeira critica da burocracia, da representacao, da constituicdo politica, ete. A ultrapassagem do lastro hegeliano, na reflexio de Marx, nao é, entretanto, algo que se opere de um s6 golpe — antes, 6 um processo que, j4 perceptivel, inequivocamente, nos manuscritos de 1843, prolongar-se-4, sinuoso, pelos préximos dois ou trés anos. Nesta direc4o, dois passos importantes serao dados na primeira estada de Marx em Paris (outubro de 1843/fevereiro de 1845), na consecug4o do projeto, em associagdo com Ruge, dos Anais Franco- Alemdes. No Gnico nimero editado deste periédico, Marx publica os dois textos em que, avancando no sentido da ultrapassagem do seu hegelianismo, também supera uma programAtica liberal democré- tica: A Questao Judaica e Critica da Filosofia do Direito de Hegel. Introducao *. N'A Questdo Judaica, polemizando com B. Bauer, Marx — continuando nitidamente influenciado por Feuerbach e Hess — patenteia o seu divorcio com a esquerda hegeliana: a prdtica politica (33) Ao leitor brasileiro, 0 texto (s6 publicado em 1927) é acessivel na edicao portuguesa: Critica da Filosofia do Direito de Hegel, Lisboa, s/d. (34) Cfr. ed. cit., p. 36. (35) Idem, p. 11 (36) Edicto brasileira: Rio de Janeiro, 1969. (37) Edig&o brasileira inserida no volume 2 de Temas de Ciéncias Humanas, Sito Paulo, 1977. 2 é introduzida no seu horizonte intelectual e referida como tal — “A questo da relagdo entre a emancipugay politica e a religido torna- se, para nos, a quest4o da rela¢gdo entre a emancipagao politica ea emancipacado humana"™. £ no outro texto, todavia, que o seu pensamento se inflexiona na direcdo do comunismo: pela primeira vez, explicitamente, Marx perspectiva a solugao dos problemas con- tidos na filosofia como extrapolando da critica filos6fica — a solu- cdo é ndo-filos6fica (mais exatamente: metafiloséfica), dependendo da interveng&o prética de um agente privilegiado, a classe operaria, que, para tanto, recupera e incorpora a filosofia; da vinculacao entre filosofia e proletariado resulta a superac4o do mundo bur- gués””. De qualquer forma, a intervengéo do proletariado, aqui, ainda é claramente abstrata e postulada — ‘‘Marx sO alcanca a pas- sagem a definitiva concep¢do cientifica do socialismo proletario no decorrer de 1844’. Para esta passagem, concorrem, fundamental- mente, dois elementos. Em primeiro lugar, o estudo da economia politica, que j4 se impunha a Marx desde que, contra Hegel, insistira em que é 0 conhecimento da estrutura da sociedade civil que asse- gura o conhecimento da estrutura do Estado“!; precisamente deste estudo, que entao inicia, resultara a sua ruptura com todo 0 quadro te6rico-ideol6gico do seu tempo™, possibilitando-Ihe a fundacao da moderna teoria social. Em segundo lugar, o seu contato diretocom a classe operéria revolucionéria: Marx freqdentou circulos operérios e, por volta de abril/maio de 1844, travou relagdes com a Liga dos Justos; ao mesmo tempo, ele se interessa pela andlise da tradicio revolucion4ria francesa“?. Os indices mais claros do transito teérico- (38) Marx, K.: La Questione Ebraica e Altri Scritti Giovan Roma, 1969, p. SS. (39) “Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, 0 proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais"; “A filosofia nao pode realizar.se sem a superago do proletariado, e o proletariado no pode superar-se sem a realizacAo da filosofia” (ed. cit., p. 13/14). (40) Lukécs, op. cit., p. 85. (41) O interesse de Marx por este estudo foi estimulado pela leitura que fez do ensaio de Engels, publicado nos Anais Franco Alemdes, “Esbogo de uma Critica da Economia Politica” (edi¢do brasileira inserida no volume $ de Temas de Ciéncias Humanas, So Paulo, 1979). (42) Aqui utilizamos o termoruptura nilo como expressto de um rompimento absoluto, mas come indice de uma superag&o que conserva. Para a desmistificaglo da concepsao idealista ¢ falsificadora da nog&o de ruptura, que um certo marxismo mecanicista recuperou recentemente, o leitor deve recorrer as idéias que Mésziros. estudando a obra de Lukées, desenvolve com lucidez (cfr. 0 seu ensaio “El Concepto de Dialéctica en Luk4cs”, in Parkinson, G. H. R. (org.): Georg Lukécs. El Hombre, su Obra, sus Ideas, Barcelona -México, 1973, p. 47¢5s). (43) Entao, faz numerosas leituras sobre esta tradig&o (inclusive Buonarrotti). 21 ideolégico que Marx realiza nesta etapa aparecem em trés textos do Periodo. O primeiro deles so os famosos Manuscritos de 1844, publi- cados em 1932“ e que, como Althusser observou, ‘sao o produto do primeiro encontro de Marx com a economia politica’ *®. Operando com uma antropologia de base feuerbachiana, Marx enfoca o fend- meno da alienagao e constata que a economia politica’ nao pode compreendé-lo e criticd-lo, uma vez que nao ultrapassa as leis do trabalho alienado: a economia politica nao exprime mais que uma realidade fundada na alicnacdo. Ora, Marx pde em causa justa- mente aquilo que a economia politica nao questiona: a propriedade privada — e nela localiza a raiz da alienagao. Suprimir a proprie- dade privada para suprimir a alienagdo € instaurar 0 cornunismo, garantia do humanismo real. Nao se trata do comunismo vulgar, que subsume o individuo no género; trata-se de uma revolugdo radical, do comunismo como “‘aboligao positiva da propriedade privada (ela mesma aliena¢do humana em si) e, conseqiientemente, apropriacao real da esséncia humana pelo homem e para o ho- mem... Este comunismo... € a verdadeira solugao do antagonismo entre o homem e a natureza, 0 homem e o homem, a verdadeira solucdo da luta entre existéncia e esséncia, objetivagao e afirmagao de si, liberdade e necessidade, individuo e género"’“’. Este comu- nismo, no entanto, ndo deriva de uma tensdo ética que levaria ao termo da histéria: “& o momento rea/ da emancipag&o e da reto- mada de si do homem”’; nao é a meta da sociedade humana, mas “asuaforma”’ *. O segundo texto € A Sagrada Familia ou Critica da Critica Critica. Contra Bruno Bauer e Consortes, primeiro trabalho con- junto de Marx e Engels, publicado em fevereiro de 1845. Polemi- zando contra a “‘critica’’ da esquerda hegeliana, que via na ‘‘massa”’ a verdadeira negaco do “espirito’’, Marx defende precisamente o (44) Deles circulou, sob 0 titulo Manuscritos Econémicos e Filoséficos, uma edic&o brasileira (Rio de Janeiro, 1963). Em lingua latina, a melhor edicgo é a preparada por Bottigelli: Manuscrits de 1844, Paris, 1962. (45) Althusser, op. cit., p. 136 (46) Que ele estuda detidamente enquanto trabalha nos Manuseritos...; cfr. 0s materiais que acumulou nos Cuadernos de Paris, ed. cit., p. 103 ss. (47) Manuscrits de 1844, ¢4. cit., p. 87. (48) idem, p. 9. (49) Hé edigho portuguesa: A Sagrada Familia, Lisboa, s/d. E de observar que, analisando este periodo da evolucao de Marx, Lowy destaca a importancia de um artigo marziano, publicado no jornal Vorwarts (Paris, agosto de 1844): “Glosas Marginais a0 Texto O Rei da Prissiu ea Reforma Social” (cfr. op. cit., p. 143 € ss). Dadas as limitacdes impostas pelos objetivos desta introducdo, apenas registramos a preciota indicacdo. 22 comunismo de massas. H& uma evidente continuidade, nesta dis- cussao, com a polémica veiculada n’A Questdo Judaica; agora, porém, os conhecimentos de economia politica entremostrados nos Manuscritos de 1844, mais a observagao da experiéncia recente da classe operaria®, conduzem explicita e conscientemente a questao da pratica politica revoluciondria: s6 as massas poderdo transformar radical e eficientemente ostatus quo. O terceiro texto procura clarificar, exatamente, 0 complexo de problemas da prAtica social, da praxis: s4o as Teses sobre Feuer- bach, escritas na primavera de 1845 e publicadas por Engels em 1888 *'. Estas teses, “‘primeiro documento em que se contém o embriado da nova concepcao de mundo”’ (Engels), atestam a ultra- passagem da antropologia feuerbachiana no pensamento de Marx. Realmente, avancando sobre os Manuscritos de 1844, Marx langa os fundamentos de uma antropologia original: 0 homem é com- preendido como ser pratico e social, com todas as conseqiéncias que esta concep¢a4o acarreta nos niveis tedrico, politico e ético, E a determinacao do carter estruturalmente histérico deste ser pratico e social emerge, privilegiadamente, na prAtica politica, focada como pratica revoluciondria (transformadora). Entre setembro de 1845 e maio de 1846, Marx (em nova colaboragao com Engels), redige A Ideologia Alemd, cuja primeira publicagao é péstuma (1932) e que comprova o transito de Marx ao comunismo, concluindo a sua definic&o basica como tedrico e reyolucionario. O yolumoso manuscrito — com um longo subtitulo: “Critica da filosofia alema mais recente, na pessoa dos seus repre- sentantes Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner, e do socialismo alemao na dos seus diferentes profetas’’ — tinha por objetivo, como Marx escreveu em 1859, “um ajuste de contas com a nossa [dele e de Engels — JPN| consciéncia filos6fica anterior”, ‘sob a forma de uma critica da filosofia p6s-hegeliana” . Ou seja: 0 texto representa o esforgo para determinar, em oposigao a “ideologia alema”’, o est4gio das pesquisas marxianas. E, por isto mesmo, é extrema- mente importante: nele se encontra a clara formulagao de algumas das teses fundamentais quer da teoria social que Marx desenyolveria ao longo de sua obra posterior, quer do projeto revolucionario que decorre organicamente desta teoria. E estes dois componentes sio (SO) Nao se pode esquecer que o livro foi escrito logo apés 0 levantamento dos tecelaes da Silésia (S1) Edig&o brasileira in Marx, K./Engels, F.: A Ideologia Alemd (Feuer- back), So Paulo, 1977. (52) Hi edigdo portuguesa: A Ideologia Alem, Lisboa, Te II, 1975 (83) Cir. 0 prefacio A Contribuiséo @ Critica da Economia Politica, Lisboa, 1973. p. 30. 23 resolvides a partir da reposigéo das problemAticas anteriormente discutidas por Marx, reposi¢&o no novo plano te6rico-cientifico alcancado por ele no curso da evolucdo intelectual e politica que agora ascende a um patamar diverso. “Sao os homens que produzem as suas representagdes, as suas idéias, etc., mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forgas produtivas e do modo de relacdes que lhe corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciéncia nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens € 0 seu processo da vida real’; “‘Esta concepcao da histéria tem portanto como base 0 processo real da produ¢do, concretamente a producao material da vida imediata; concebe a forma das relagdes humanas ligadas a este modo de producao e por cle engendrada, isto é, a sociedade civil nos seus diferentes estagios, como sendo o funda- mento de toda a historia"; ““E tao verdade serem as circunstancias a fazerem os homens como a afirmacAo contr4ria’’; “Todos os con- flitos da histéria tm a sua origem na contradig&o entre as forcas produtivas e 0 modo de trocas”“ — destas cruciais determinagoes, Marx desdobraré desenvolvimentos complexos (hist6ricos e econ6- micos), buscando a compreens&o das modalidades de reprodugao do ser social no quadro do capitalismo, O termo destes desenvolvi- mentos concretiza e retifica as anteriores conquistas da pesquisa marxiana: a liquidacdo da alienacdo pela pr&tica revolucionéria exercitada pelo proletariado constitui o comunismo, que “no é um estado..., um ideal... Chamamos comunismo ao movimento real que acaba com 0 atual estado de coisas"’SS. O que se conceptualiza, pois, € uma teoria da revolucdo e seu sujeito: a revolucéo nao & apenas a jiquidagdo da classe dominante, mas a condigao que “permitira A classe que derruba a outra aniquilar toda a podridao do velho sistema e tornar-se apta a fundar a sociedade sobre bases novas"; a revoluc4o, movimento prdtico, “acaba com a dominagao de todas as classes, pois é efetuada pela classe que, no Ambito da atual sociedade... constitui a expressdo da dissolugao de todas as classes..."". Como se constata, cinco meses antes de Proudhon publicar a obra em que, concluindo a primeira etapa da sua evolucdo, recusa a transformagao revolucion4ria da sociedade capitalista, Marx tam- bém atingia uma etapa nodular da sua evolucdo, concluindo preci- samente em favor daquela transformagao revolucionaria. (SA) A Ideologia Alemd, €d. cit.,1, p. 25, 48, 49 € 76. (85) Adem, p. 42. (56) Idem. p. 48. 4 As relagées Proudhon/Marx Proudhon e Marx conheceram-se pessoalmente em Paris, e suas relagdes foram estreitadas no outono/inverno de 1844/1845. As discussdes que mantiveram, fundamentalmente, a se crerem Marx, centraram-se sobre a obra de Hegel. Nao 6 de estranhar a pouca importancia que Proudhon atri- buiu a estes contatos™, Afinal, era j4 um pensador maduro e célebre, e seu interlocutor, que ainda nao completara trinta anos, n&o passava, a €poca, de um obscuro emigrado alemao. Marx, ao contrério, valoriza tais contatos. Conhecia a obra de Proudhon (especialmente O Que ¢ a Propriedade?) e, desde 1842, refere-se a ele: ao tempo da Gazeta Renana, cita-o freqien- temente como ‘‘o mais penetrante” e ‘‘o mais conseqiente’’ dos escritores socialistas. E, até 1846, manteve para com ele uma atitude extremamente simpaticae receptiva *. As provas desta atitude sao varias. Numa carta a Feuerbach, de agosto de 1844, defende o caréter empenhado do pensamento de Proudhon contra a critica “pura” dos Livres de Berlim (Bauer e consortes)® . E, em seus estudos de economia politica deste periodo, Proudhon é uma referéncia explicita®'. No entanto, “na medida em que progride em seus estudos econdmicos, Marx vai-se dando conta da fragilidade te6rica de Proudhon’®?. N'A Sagrada Familia, como observou Molitor, ‘‘em muitos pontos, Marx est4 longe de concordar com Proudhon™; porém, defende-o contra as adulteragdes que os Livres de Berlim fazem das suas idéias, considerando-o ‘‘o mais ousado pensador do socialismo francés”. Nesta obra, Marx es- creve: ‘Proudhon submete a base da economia politica, a proprie- dade privada, ao primeiro exame sérioz.. e cientifico... O grande Progresso cientifico que realizou... coloca, pela primeira vez, a possibilidade de uma verdadeira ciéncia da economia politica. A sua (57) Cfr. a carta de Marx a Schweitzer, incluida nos Anexos deste volume. (58) De acordo com Cornu, Proudhon jamais registrou por escrito os seus contatos com Marx (cfr. op. cit., II], p. $1). (59) A conclusiva e serena avaliagdo de Proudhon por Marx encontra-se 00 texto citado na nota $7. (60) Cfr. Cuadernos de Paris, ed. cit., p. 181. (61) Veja-se uma observacdo que o comprova: “Ricardo desenvolve a idéia de que o trabalho implica a totalidade do prego, pois o capital também € trabalho... Proudhon conclui com razdo que, onde existe a propriedade privada, uma coisa custa mais do que vale: exatamente 0 tributo pago ao proprietirio privado” (Cuadernos de Paris, ed. cit., p. 109). (62) Gianotti, op. cit., p. 92. (63) Cfr. a nota de Molitor a p. 37 de La Sagrada Familia, Buenos Aires, 1973. 25 obra O Que é a Propriedade? tem, para a economia politica, a mesma importancia que, para a politica moderna, possui a obra de Siéyes, O Que é o Terceiro Estado?”™. Mas, em seguida, Marx acrescenta: Proudhon “fez tudo o que a critica da economia podia fazer do ponto de vista econdmico”™. E, n'A Ideologia Alema, se as reservas a Proudhon crescem”, também é verdade que Marx faz a sua defesa frente as deformagtes de Grin’’. Mais ainda: 0 apreco de Marx por Proudhon vai além do perfodo em que mantiveram contatos pessoais: prova-o a carta que lhe envia de Bruxelas, convidando-o a associar-se ao comité de correspondéncia que, juntamente com Engels e Gigot, acabava de criar, E no 6 a resposta de Proudhon® que pte fim aquele aprego: €a publicacao do Sistema das Contradigées Econémicas ou Filosofia da Miséria que obriga Marx a uma clara tomada de posicao, que encerra as suas relacdes pessoais e s6 arranca de Proudhon, nos seus apontamentos, manifestacdes de azedume e irritacio *. ‘A tomada de posi¢ao de Marx”, expressa na Miséria da Filosofia”, marca uma nova etapa na sua evolug&o, reconhecida por todos os analistas mais qualificados”. E nela se conjugam, numa (64) La Sagrada Familia. ed. cit.. p. 45. O tradutor argentino nfo usa a expresso economia politica, mas economia nacional — certamente porque o texto alemio, que nfo temos A vista, registra Nationalokonomie (sobre a acepcao deste ter- mo, cfr. a indicacho de Schumpeter, J. A.: History of Economic Analisis, Londres, 1955, p. $35, nota). (65) Idem, p. 47. (66) L&-se af, por exemplo: “Todas as demonstragdes [sobre economia poll- tica — JPN ]de Proudhon sho falsas" (cfr. ed. cit., II, p. 440) (67) Cir. A Ideologia Alemé, ed. cit., I1, p. 439/441. (68) Cfr. ambas as cartas nos Anexos deste volume. (69) Manifestacdes que reproduzimos nas notas que acompanham esta tra- dugllo da obra de Marx. E assombroso como um homem da estatura moral ¢ politica de Proudhon, com 8 vaidade ferida e movido pela ira, chega, nestas manifestagdes, a exprimir um execrivel anti-semitismo. (70) Evidenciada imediatamente apos a leitura da obra de Proudhon — observe-se que a carta Annenkoy (incluida nos Anexos deste volume) contém muito da argumentaco desenvolvida na Miséria da Filosofia. (71) Escrita em Bruxelas durante o inverno de 1847 (Marx decidira replicar a Proudhon, na forma de um livro, em janeiro), a obra foi publicada em junho do mesmo ano, por A. Franck (Paris) e C. G. Vogler (Bruxelas). O trabalho tipogréfico foi realizado nas oficinas Delevigne/Callewaert e 0 volume, in 8°, continha 8 p + 178 p + 1 p de erratas. (72) Eis alguns jutzos sobre a obra: ““¢ a pedra angular da vida do seu autor. [Nela) aparecem pela primeira vez, desenvolvidos cientificamente, os pontos de vista do materialismo histérico” (Mehring, op. cit., 1, P. 147); € “a primeira exposi¢ao correta ¢ global da concepgko materialista da historia, que s6 fora, até entao, Gesenvolvida de mancira esporddica, alusiva”” (Ruble, O.: Karl Marx, Leben und Werk, Dresden, 1928, p. 131/132); representa ‘a primeira obra ccondmica que Marx sempre considerou como parte integrante da sua obra cientifica da maturidade” 26 integragao plena, os elementos constitutivos da evolugdo marzian. © teérico-cientifico e o polftico-ideolégico. De um lado, o texto mostra 0 desenvolvimento das pesquisas de Marx no ambito da economia politica’: a critica marxiana ao conteddo das formu- lagdes pretensamente cientfificas de Proudhon é€ 0 eixo central do livro e as avaliagdes nele explicitadas serio reafirmadas inumeras vezes na obra ulterior de Marx”. De outro, revela 0 estagio politico alcancgado por Marx: agora com seu projeto comunista revolucio- (Naville, P.: De l'Aliénation la Jouissance, Paris, 1957, p. 291): "do ponto de vista da evolugio das idéias econémicas de Marx, trata-se da primeira obra que dé uma visto de conjunto das origens, do desenvolvimento, das contradicdes + da queda futura do regime capitalista” (Mandel, op. cit., p. 5S); “a Miséria da Filosofia ¢ 0 Manifesto Comunista iniciam uma nova fase na obra de Marx, fase qualitativamente diversa da que culminou n'A [deologia Alema” (Lowy. op. cit... 214) (73) “A Miséria da Filosofia mostra que Marx ja possuia uma imensa docu- mentagao da histéria do capitalismo, sobre a passagem do capitalismo concorrencial manufatureiro... ac capitalismo industriel, sobre a concentracdo de capitais. Tam- ‘bém possufa uma enorme documentacao sobre a historia do protetariado” (Lefebvre. op. cit., p. 159). (74) Nos Grundrisse, Proudhon € mencionado em varias passagens. Por exemplo: comentando a sua critica a Bastiat, Marx nota que a sua ética implica em “perder de vista as diferencas que, precisamente, expressam a rela¢do social (rela&o da sociedade burguesa)"" e que, na polémica, “*Proudhon acaba por querer reduzir 0 intercdmbio entre o capital e 0 trabalho ao intercambio simples de mercadorias como valores de troca, aos elementos da circulagao simples” (Marx, K.: Elementos Funda- mentales para la Critica de la Economia Politica. Borrador. 1857/1858, Buenos Aires, 1, 1971, p. 204/205); em nota, tematizando o problema do valor, Marx assi- nala “‘inépcias de Proudhon" (ibidem, p. 208); sobre a superproduglo, comenta: “Proudhon ouviu o sino tocar, mas n&o sabe onde” (ibidem, p. 378); € mais: Proudhon “‘ndio compreende nada nem da determinagao do valor, nem da do prego" (ibidem, p. 390); “‘Proudhon transforma em qualidade mistica do trabalho 0 fato de se trabalhar além do trabalho necessério” (idem, 2, 1972, p. 156); ha, ainda, a seguinte nota: ““A ignorancia de Proudhon...”’(ibidem). Na Contribuicdo para a Critica da Economia Politica, de 1859, Marx pros- segue na sua apreciacto critica, remetendo A Miséria da Filosofia (ed. cit., p. 74) € indicando que “Proudhon ¢ sua escola reduziram “o socialismo a um desconheci- mento elementer da necessdria conexAo entre a mercadoriae o dinheiro” (ctr. ed. cit. p. 93). N'O Capital, logo no primeiro capitulo, refere-se A Miséria da Filosofia (El Capital, México, I, 1974, p. 46), depois de denominar o socialismo proudhoniano de “utopia de filisteu" (idem, p. 34) ¢, mais adiante, considera “absurdas" formulagtes de Proudhon(p. ex., idem, cap. IIT, p. 333). Também nas Teorias sobre a Mais-Valia Proudhon & criticado em inimeros pasos; por exemplo: o seu socialismo nem sequer merece o rétulo de “superficial” (cfr. Teorfas de la Plusvalia, Madri, II, 1974, p. 399). Tudo isto apenas comprove que os esforgos daqueles que Lowy chama de “proudhonianos modernos” (entre os quais devemos incluir Gurvitch). na tentativa de mostrar que Marx e Proudhon podem “complementar-se”, nto passam de equi- vovos e/ou piedosos votos para uma concilis¢&o imposstvel. 27 nério claramente formulado, ele ¢ levado a combater firmemente quaisquer contrafagdes ideolégicas que possam desviar o proleta- riado das tarefas pratico-hist6ricas que o processo social real confere aele. Relevancia da Miséria da Filosofia Ao decidir pela réplica a Proudhon, Marx decide-se pela explicitacao sistematizada dos resultados dos seus estudos econd- micos que, como indicamos, iniciara em 1843/1844". A Miséria da Filosofia 6, portanto. um balanco do ponto a que Marx chega no primeiro semestre de 1847. Numa 6tica estritamente econdmica, a Miséria da Filosofia, relacionada a ulterior evolucao cientifica de Marx, nao se apresenta como invulner4vel; ao contrario, h& nela proposicdes equivocadas ¢/ou insuficientes. O nédulo destes equivocos e/ou insuficiéncias refere-se 4 compreensao da natureza do valor, Desde os seus primeiros estudos econdmicos, Marx colocara 0 problema do valor no centro das suas preocupagdes — € nisto ele é, de fato, um herdeiro direto da tradigao classica da economia politica. Em 1843/1844, ele analisa sobretudo a teoria do valor-trabalho tal como aparece em Ricardo” e n4o a aceita, fundamentalmente porque ela abstrai a concorréncia. A conseqiéncia € cristalina: entao, “‘o valor das mercadorias € ainda concebido como idéntico aos precos” Na Miséria da Filosofia, entretanto, a perspectiva desenvol- vida por Marx € bem outra: as suas idéias, refeitas tanto no exilio belga quanto na rApida viagem de estudos que faz a Inglaterra em julho-agosto de 1845, passam a apreender a dimensa&o revolucio- n4ria da teoria do valor-trabalho”, Mas ele ndo se pde como um ticardiano; no mesmo processo cientifico em que comega a consi- derar o trabalho como fonte prim4ria do valor, rompe com a carac- teristica saliente e determinante da economia politica classica, consis- (15) Nos Cuardenos de Paris (ed. cit.), deste perfodo, h& o registro de apon- tamentos sobre 21 textos; varios dos autores al examinados serAo utilizados, de uma forma ou de outra, na Miséria da Filosofia. (76) Vasquez observa que, neste periodo, Marx tem uma “relag&o ambiva- lente” pare com Ricardo. (77) Mandel, op. cit., p. 43. (78) Embora, j& ent&o, ele recusasse 2 ingénua inferéncia politica dos socia- listas que arrancavam das formulacdes do ultimo Ricardo, como Bray et allii, que sustentavam, justamente em fungao da teoria do valor-trabalho, que caberia ao operdrio a totalidade do seu produto. 2B tente na eternizagio das categorias econdmicas. Na verdade, ele reformula a concepg¢ao coniida em Ricardo, ‘‘de uma maneira toda particular: o trabalho (abstrato) € a esséncia do valor de troca porque, numa sociedade fundada sobre a divisto do trabalho, ele constitui 0 tinico tecido conjuntivo que permite comparar mutua- mente e tornar comensur4veis os produtos do trabalho de individuos separados uns dos outros’’”’. Esta reformulacao, todavia, encontra- se balizada — e ai a ruptura com a concepg4o classica — pela determinagado das categorias econdmicas como ‘‘expressdes tedricas, abstragdes das relacdes sociais de producao... Estas categorias sao t&o pouco eternas como as relagdes que expressam. S40 produtos histéricos e transitérios’®. Contra Ricardo e contra a tradicdo classica, cuja tematizagao do valor retoma, Marx afirma perempto- riamente a historicidade das categorias econémicas. O fato de Marx, na Miséria da Filosofia, assumir a teoria do valor-trabalho, no entanto, ndo significa que, desde entio, estivesse capacitado a desvelar o segredo da producdo capitalista — empresa s6 realizada cabalmente n'O Capital. Na Miséria da Filosofia, ele ainda est4 distante do ulterior tratamento a que vai submeter esta teoria. E isto no apenas porque, como quer Vranicki, deixa de examinar as varias formas do valor; a insuficiéncia da impostagao marxiana, na Miséria da Filosofia, deve-se, antes de mais, ao fato de ela n&o alcangar a precisa concretizagGo do valor, através do com- plexo de mediacdes sécio-econdmicas que a viabiliza. A falta desta determinacio — cuja elaboracéo Marx comecaré a efetivar na se- gunda metade dos anos cinqiienta —, a instrumentalizagdo da teoria do valor-trabalho defronta-se com problemas insoliveis, obs- taculos teéricos da natureza daqueles que pululam na Miséira da Fi- losofia, onde, em conseqiéncia do que mencionamos, Marx nao dis- tingue, por exemplo, forga de trabalho de trabalho, trabalho social- mente necessério de trabalho necessério, etc. Inimeras so as implicacdes diretas desta imediaticidade ainda n4o superada na considerag4o do processo de producao capi- talista. Uma delas: torna-se impossivel avangar na distin¢éo entre valor de troca, prego de producao e prego de mercado — e o valor de troca, no fundo, continua identificado ao prego. Mais ainda: sem a distingao forga de trabalho/trabalho, mesmo que este seja caracte- rizado como uma mercadoria, estA interditada a possibilidade da apreensdo concreta da especificidade da mercadoria forga de tra- balho face ao capital. Resultado decisivo: a reoria da mais-valia ndo (79) Mandel, op. cit., p. 50. (80) Cfr. a segunda observa¢ao do primeiro pardgrafo do capitulo segundo da Miséria da Filosofia. 29 Pode sequer ser vislumbrada. Outras conseqiiéncias: uma equivo- cada teoria do salfrio, influenciada também por Ricardo“! e uma precéria compreensio da distribuigao da taxa de lucro ®. Os limites de uma introdugao como esta tornam impertinente uma anflise minuciosa do conteido do pensamento econdmico de Marx no primeiro semestre de 1847" que, certamente, localizaria outras lacunas e incorrecdes™ que s6 0 ulterior desenvolvimento da pesquisa marxiana completaria e retificaria inteiramente. Importa ressaltar aqui, todavia, que tais lacunas e incorrecdes ndo compro- metem, em qualquer escala, a relevancia teérica da Mis¢ria da Filosofia como primeira explicitacao sistematizada dos fundamentos da moderna teoria social. Realmente, o que surge na Miséria da Filosofia é 0 primeiro desenho do projeto teérico a que Marx dedi- car& o essencial da sua vida: a andlise de conjunto do modo de pro- du¢gao capitalista. A critica a Proudhon permite a Marx capturar a historia da constituicdo das novas relacdes econdmico-sociais e dos novos tipos sociais. Os quatro Ultimos parégrafos do capitulo segundo consis- tem, exatamente, na apreens&o da historicidade concreta do modo de produg&o capitalista, na captagdo da sua dialética interna. A ruptura dos padrées da industria pré-capitalista, o surgimento da manufatura e da maquinofatura, 0 mecanismo das crises, a emer- géncia das classes sociais fundamentais, suas articulagdes e transfor- magdes, os liames que as vinculam e opdem através das suas lutas e contradigdes, etc. — ai esti o diagrama do movimento do mundo capitalista. E as preliminares metodolégicas antepostas no primeiro paragrafo do mesmo capitulo nao convertem a questao do método em questo de principio™: ao contr4rio, uma leitura mais cuidadosa (81) E preciso clarificar que, mesmo neste periodo, Marx no toma sem mais a teoria dos salbrios de Ricardo (quem o faz, depois, é Lassalle, enunciando a sua conhecida — ¢ combatida por Marx — “lei de bronze dos salérios"). Mas, na Mfiséria de Filosofia, Marx admite, tacita-nente, a longo prazo, uma lei geral determinante de queda dos saldrios, 0 que, evider-temente, desemboca numa concepg&o da pauperi zag ho simultaneamente absoluta e relativa. (82) Tratando da compreensio que Marx j& possula do fendmeno das crises, Mandel escreve: “Deve-se notar que as conseqQéncias da concorréncia capitelista no que concere & distribuigho equitativa da taxa de lucro no sAo indicadas sento de Passagem" (op. cit., p. 64) (83) Que o leitor encontra na bela obra de Mandel, citada repetidas vezes (84) Dentre elas, mencione-se, a0 azar: as relagBes entre preco, valor € con corréncia; as mediagbes entre a concentrag&o do capital e a sua composic&io; o ciclo de Teprodugio ¢ circulag&o do capital; as diferenciagdes internas da manufatura ¢ suas implicagtes; a teoria monethria; ete. (85) Tema fecundo de investigagio € 0 que buscar as conexdes entre este Primeiro pardgrafo como vinculo entre as eriticas inicisis a Hegel e a explicitac&o metodolégica de 1857. 0 revela que as indicagdes de Marx resultam do tratamento que a propria natureza do objeto impde — ¢ & por isto. também. que 0 logicismo hegeliano recebe a sua cota-parte. Nao é casual que a critica da economia politica, enquanto critica epistemol6gica, ve- nha, na exposig&o, antecedendo as anilises hist6rico-sociais concre- tas: 0 mesmo Marx, mais tarde, haveria de constatar que 0 método da exposicAo apresenta invertida a ordem da investigacao. E que. ja aqui — como em toda a obra madura de Marx —. a critica da economia politica aparece como um dos resultados da investigagao hist6rico-social concreta: j4 aqui, para Marx, “nao se trata de criar uma ciéncia, mas de produzir uma critica da economia politica, seja enquanto apologia da realidade vigente, seja enquanto expressao do sistema econdmico-social” *. E sabido que as investigacdes marxianas se alcario a novo patamar nos anos cingiienta; na segunda metade desta década, Marx efetuard as suas mais decisivas descobertas*. Ora, sobre que fundamento se efetivam estas descobertas? Sobre o fundamento da mais central das determinagdes de Marx, aquela que ja se apresenta na Miséria da Filosofia: a determinacao de que as instancias consti- tutivas da sociedade se articulam numa totalidade concreta e séo postas geneticamente pelo primado ontolégico das relagées econd- micas. N&o se trata, como sempre quis o marxismo vulgar. de reduzir a teoria social de Marx a uma teoria fatorialisia, com 0 primado do “econémico"'; nada disto: o primado ontolégico da economia, que funda a teoria social moderna, descoberto por Marx, opera no interior de uma estrutura teérica que produz um objeto (teérico) para reproduzir o objeto real na perspectiva da rotali- dade™. Eis por que a teoria social moderna (indissoluvelmente ligada as formacdes econdmico-sociais engendradas pelo modo de producao capitalista, quer pela propria possibilidade da sua consti- (86) Vranicki, op. cit... p. 139. (87) Todas as indicagdes sugerem que as mais geniais elaboragdes tedricas de Marx datam de novembrode 1857/junho de 1858, Trata-se daquele intensivo processo de pesquisa que os Grundrisse nos apresentam in statu nascendi (sobre os Grundrisse. uma excelente obra de referéncia é Rosdolsky, R.: Genesis y Estructura de El Capital de Marz, México, 1978). Ai, Marx repensa todos os problemas da economia polftica € formula, retificando muitas das suas colocagdes anteriores, 0 seu equacionamento. Hé estudiosos, porém, que argumentam que algumas observagdes capitais de Marx so ulteriores a este periodo (é, por exemplo, 0 caso de Naville: ele sustenta que. mesmo ento, Marx nao distingue forga de trabatho de trabalho; cft. op. cit., p. 432). (88) E o que Marx patenteia na Introdugéo Geral a Critica da Economia Politica, de 1857, ¢ que Luks ressalta em 1923: ""O que distingue, decisivamente, o marxismo da ciéncia burguesa nfo € a tese de um predominio dos motivos econdmicos na explicagao da hist6ria; & o ponto de vista da totalidade" (Historia y Consciencia de Clase, México, 1969, p. 29). 3 tuic&o. quer pelos seus objetivos cientificos) ndo se instaura como somaté6rio enciclopédico de saberes auténomos (hist6ria, economia, politica, etc.). Contrariamente, é uma estrutura teérica unitaria- mente articulada sobre a perspectiva da categoria fundamental da realidade social, a totalidade. E a exigéncia da totalidade nao € posta como um simples imperative metodolégico: resulta, precisa- mente, das investigagdes histérico-concretas que Marx realizon, focando as formagdes econdmico-sociais capitalistas. A teoria social que a obra de Marx inaugura, por isto mesmo, implementa investigagdes e pesquisas sobre niveis distintos e especi- ficos (econdmico, politico, social. etc.) da totalidade social — inves- tigagdes e pesquisas elas mesmas levadas a cabo segundo 0 ponto de vista da totalidade —, mas se organiza a partir da elaboracao destas pesquisas e investigacdes de acordo com a determinagao macrosco- pica posta pela concepcao da totalidade™. S6 assim Ihe € possivel desvelar a ontologia do ser social, isto &: os modos de ser e repro- duzir-se de uma sociedade determinada. Visto o primado ontolégico da economia, a critica da economia politica aparece, pois, como o componente nuclear da teoria social de Marx. Justamente esta ¢ a concepcdo que orienta a arquitetura da Miséria da Filosofia: no conjunto da obra marxiana, este texto 60 primeiro em que a teoria social tem por necessidade e condigao a critica da economia politica. O fato de, nele, esta critica ndo se realizar na inteireza que O Capital apresenta, nao retira ao histo- riador das idéias marxianas 0 direito — e o dever — de reconhecer que, j4 na Miséria da Filosofia, Marx se coloca como 0 pensador que operou a mais radical e decisiva revolugAo teérico-social dos tempos modernos. Sao Paulo, junho de 1980 (89) Na teoria social de Marx. a totalidade, como categoria fundante da realidade, significa, “em primeiro lugar. a unidade concreta de contradi¢des intera- tuantes; em segundo lugar, a relatividade sistemética de toda totalidade, tanto para cimo quanto para baixo(o que quer dizer que tods totalidade & constituida por forali- dades subordinadas a elae também que, ao mesmo tempo, ela é sobredeterminada or totalidades de maior complexidade. em terceiro lugar, a relatividade histérica de toda totalidade, ou seja. que 0 car&ter-de-totalidade de toda totalidade & dinamico, mutavel, sendo limitado a um periodo histérico concreto, determinado” (Lukdcs, intervengo no Congresso de Filésofos Marxistas de Milo, 1949, apud Mészhros. art. e loc. cit., p. 79/80). A discussto destes problemas reaparece. na tematizagto da ontologia do ser social. em Lukdes, G.: Ontologia do Ser Social: Os Princlpios Ontolégicos Fundamentais de Marx, Sio Paulo, 1979. 32 MISERIA DA FILOSOFIA Resposta a Filosofia da Misériq do Sr. Proudhon PROLOGO O Sr. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desco- nhecido na Europa. Na Franca, tem o direito de ser um mau economista, porque passa por ser um bom filésofo alemao. Na Alemanha, tem o direito de ser um mau filésofo, porque passa por ser um dos mais vigorosos economistas franceses, Nés, na qualidade de alemdo e economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro. O leitor compreender4 que, nesta ingrata tarefa, freqiente- mente fomos obrigados a abandonar a critica ao Sr. Proudhon para fazé-la A filosofia alema e, simultaneamente, para tecer algumas breves consideragdes sobre a economia politica. Karl Marx Bruxelas, 15 de junho de 1847 A obra do Sr. Proudhon nao é simplesmente um tratado de economia politica, um livro comum: é uma Bfblia — nada lhe falta: “Mistérios’”, ‘‘Segredos arrancados ao seio de Deus’’, “Revelacdes’’. No entanto, como, em nossos dias, os profetas so discutidos mais conscientemente que os autores profanos, 0 leitor deve resignar-se a percorrer conosco a erudicao Arida e tenebrosa do “Génesis" para se alcar, mais tarde, com o Sr. Proudhon, as etéreas e fecundas regides do supra-socialismo (cfr. Proudhon, Philosophie de la Mi- sére, ‘‘prélogo”, p. III, linha 20).* (*) [Marx cita sempre a primeira edigho da obra de Proudhon, Systéme des Contradictions Economiques ou Philosophie de la Misére (Sistema das Contradigses Econémicas ou Filosofia da Miséria), volumes Ie I, Paris, 1846.] 37 1 UMA DESCOBERTA CIENTIFICA § 1. Oposigdo entre o valor de utilidade e 0 valor de troca “A capacidade de todos os produtos, naturais ou industriais, de servir a subsisténcia do homem recebe a denominag&o particular de valor de uso; a sua capacidade de se permutarem uns pelos outros designa-se como valor de troca... Como 0 valor de uso se transforma em valor de troca?... A origem da idéia do valor [ de troca] nado foi tratada pelos economistas de forma cuidadosa; € importante que nos detenhamos sobre ela. Como muitos dos objetos de que necessito s6 existam na natureza em quantidade limitada, ou, até, nao existam, sou obrigado a colaborar na produgao do que me falta; e, como nado posso produzir tantas coisas, proporei a outros homens, meus colaboradores em fungées diversas, que me cedam uma parte dos seus produtos, em rroca do meu"! O Sr. Proudhon propde-se explicar-nos, antes de tudo, a dupla natureza do valor, a “‘disting@o no interior do valor’’, 0 movi- mento que faz do valor de uso 0 valor de troca. Devemos nos deter com o Sr. Proudhon neste ato de transubstanciacao. E eis como ele se realiza, segundo © nosso autor: um grande nimero de produtos nao se encontra na natureza, mas existe gracas 4 industria. Su- pondo-se que as necessidades ultrapassam a producdo espontinea da natureza, o homem & obrigado a recorrer a produc4o industrial. Mas, na suposicado do Sr. Proudhon, o que € esta industria? O que estA na sua origem? Um homem sozinho, necessitando de um gran- (1) Proudhon, Systéme des Contradictions..., 1846, t. I, cap. II. | Esta citagao se compde de trés passagens de Proudhon. Os grifos so de Marx. } 39 de numero de objetos, “ndo pode produzir tantas coisas”. Tantas necessidades a satisfazer supdem tantas coisas a produzir — nao hé Produtos sem producdo —; e tantas coisas a produzir nfo supdem mais apenas a mao de um s6 homem colaborando para produzi-las. Ora, a partir do momento em que se supde mais de um homem na produgiio, supde-se j4 toda uma produc&o fundada na divisao do trabalho, Suposta a divisio do trabalho, esté admitida a troca e, conseqientemente, o valor de troca. Com o mesmo fundamento, poder-se-ia supor, desde 0 inicio, o valor de troca. Mas 0 Sr. Proudhon preferiu dar voltas. Vamos segui-lo em todos os seus rodeios, para sempre retornar ao seu ponto de partida. Para sair do estado de coisas onde cada um produz sozinho e chegar a troca, ‘‘dirijo-me", diz o Sr. Proudhon, ‘‘a meus colabora- dores em fungdes diversas". Logo, tenho colaboradores, que exercem fungdes diversas, embora, apesar disto e sempre segundo a supo- sic¢do do Sr. Proudhon, todos nés estejamos na posi¢ao solitaria e pou- co social dos Robinson. Os colaboradores e as fungdes diversas, a di- visdo do trabalho ea troca que ela implica, tudo isto foi descoberto de Tepente, Resumamos; tenho necessidades que se fundam na divisao do trabalho e na troca. Supondo estas necessidades, o Sr. Proudhon ja supds a troca, o valor de troca, precisamente este valor cuja ‘“‘ori- gem” ele se propde “tratar mais cuidadosamente que os outros economistas’’. O Sr. Proudhon poderia muito bem inverter a ordem das coisas, sem, com isto, alterar a correg4o das suas conclusdes. Para explicar o valor de troca, € necessAria a troca. Para explicar a troca, € necessdria a divis4o do trabalho. Para explicar a divisdo do tra- balho, sdo precisas necessidades que a exijam. Para explicar estas necessidades, 6 preciso “‘supd-las”, 0 que n&o equivale a negé-las, contrariamente ao primeiro axioma do prélogo do Sr. Proudhon: “Supor Deus ¢ nega-lo"”? Como o Sr. Proudhon, para quem a divisdéo do trabalho é supostamente conhecida, avanga sobre ela para explicar o valor de troca, que, para ele, € sempre desconhecido? “Um homem” vai “‘propor a outros homens, seus colabora- dores em func®es diversas’, que se estabeleca a troca e uma distin- go entre o valor usual e o valor de permuta. Aceitando a distinc4o proposta, os colaboradores nao deixaram ao Sr. Proudhon outro “cuidado” que o de reconhecer 0 fato, assinala-lo, ‘‘apontando”’ em seu tratado de economia politica a ‘‘origem da idéia de valor’. Mas ele sempre nos deve, a n6s, uma explicacio da “origem’ desta (2) Proudhon, loc. cit.,“'prélogo”, p. I proposta, uma explicac&o de como este homem solit4rio, este Robin- son, teve de repente a idéia de fazer '‘a seus colaboradores” uma proposta semelhante e de como esses colaboradores a aceitaram sem qualquer protesto. O Sr. Proudhon nao trata destes detalhes genealogicos. Ao fato da troca, ele simplesmente imprime uma espécie de selo hist6- rico, apresentando-o sob a forma de uma mogio, proposta por um terceiro, tendente a estabelecer a troca. Eis uma amostra do ‘'método histérico e descritivo” do Sr. Proudhon, que professa um orgulhoso desdém pelo ‘“‘método hist6- rico e descritivo"’ dos Adam Smith e dos Ricardo. A troca tem a sua prépria hist6ria, que percorreu diferentes fases. Houve um tempo, como na Idade Média, por exemplo, em que s6 0 supérfluo, o excedente da produc&o sobre 0 consumo, era trocado. Houve, também, um outro tempo em que nao apenas o supér- fluo, mas ainda todos os produtos, toda a existéncia industrial passaram pelo comércio, um tempo em que toda a produgao passou a depender da troca. Como explicar esta segunda fase da troca — 0 valor venal elevado A sua segunda poténcia? O Sr. Proudhon teria uma resposta j4 pronta: basta supor que um homem haja “‘proposto a outros homens, seus colaboradores em funcdes diversas", a elevacdo do valor venal a sua segunda poténcia. Veio, enfim, um tempo em que tudo aquilo que, outrora, os homens consideravam inalien4vel tornou-se objeto de troca, de tra- fico, podendo alienar-se. Trata-se do tempo em que as préprias coisas que, até entdo, eram transmitidas, mas jamais trocadas, ofere- cidas, mas jamais vendidas, conquistadas, mas jamais compradas — virtude, amor, opiniao, ciéncia, consciéncia, etc. —, trata-se do tempo em que tudo, finalmente, passa pelo comércio. O tempo da corrup¢ado geral, da venalidade universal ou, para express4-lo em termos de economia politica, o tempo em que todas as coisas, morais ou fisicas, tornando-se valores venais, devem ser levadas ao mercado para que se aprecie o seu mais justo valor?. Como explicar, ainda, esta nova e ultima fase da troca — 0 valor venal elevado a sua terceira poténcia? O Sr. Proudhon teria uma resposta j4 pronta: basta supor que uma pessoa haja ‘‘proposto a outras pessoas, suas colaboradoras em fungdes diversas", fazer da virtude, do amor, etc., um valor yenal e elevar o valor de troca a sua terceira e ultima poténcia. (3) [Esta temética marxiana — a corrupgio generalizada pela dominfincia do valor de troca e do dinheiro — existe desde A Quesido Judaica ¢, presente sobretudo nos Manuscritos de 1844, projetar-se-4 na andlise tebrica d'O Capital.) 4l Como se vé, 0 “‘método hist6rico ¢ descritivo’’ do Sr. Proudhon serve para tudo, responde tudo, explica tudo. Especialmente quan- do se trata de explicar, em termos de hist6ria, a ‘‘origem de uma idéia econdmica”. ele supde um homem que propde a outros ho- mens, seus colaboradores em fungdes diversas, a realizag&o deste ato criador e nfo hA mais a dizer. A partir daqui, aceitamos a “‘origem” do valor de troca como um ato consumado; resta, entéo, expor a relacio entre ele e o valor de uso. Escutemos 0 Sr. Proudhon: “Qs economistas ressaltaram bem o duplo car&ter do valor; mas nao evidenciaram com a mesma nitidez a sua natureza contraditéria, aqui comega a nossa critica... N&o € suficiente assinalar este surpreendente contraste entre 0 valor itil e o valor permutdvel, no qual os economistas se habituaram a ver um fato muito simples; é preciso mostrar que esta pretensa simplicidade oculta um profundo mistério, que devemos escla- recer... Em termos técnicos, 0 valor util e o valor permutavel estio em razao inversa entre si” *. Se compreendemos bem o pensamento do Sr. Proudhon, ele se propde estabelecer os quatro pontos seguintes: 19 o valor Gtil ¢ o valor permut4yvel constituem um “surpreendente contraste’’, opdem-se entre si; 2° ovalor itil e o valor permut&vel estao em razAo inversa entre si, esto em contradic4o; 3© os economistas ndo viram nem conheceram quer a oposigAo, quer a contradicao; 4° acritica do Sr. Proudhon comeca pelo fim. Também comecaremos pelo fim e, para desculpar os econo- mistas das acusagdes do Sr. Proudhon, daremos a palavra a dois deles, muito importantes. Sismondi: “O comércio reduziu todas as coisas a oposi¢ao entre o valor usual e o valor permutével”, etc.°. Lauderdale: ‘Em geral, a riqueza nacional [o valor util] dimi- nui a proporcio que as fortunas individuais crescem pelo (4) [Proudhon, lor. cit., 1, p.93€95, ed. de 1923. | (S) Sismondi, Etudes sur (Economie Politique [Estudos sobre Economia Polftica), Bruxelas, I1, p. 162. [A obra citada por Marx foi editada em dois volumes, em 1837 € 1838.] 42 aumento do valor venal; e, 4 medida que estas se reduzem, pela diminuicdo deste valor, aquela geraimente aumenta”” Sismondi fundamentou a sua principal doutrina, segundo a qual a reducao da renda & proporcional ao crescimento da pro- duc4o, na oposicdo entre o valor usual e o valor permutavel. Lauderdale fundamentou o seu sistema na raz4o inversa das duas espécies de valor, e a sua doutrina era t4o popular nos tempos de Ricardo que este péde referir-se a ela como geralmente conhe- cida: “Confundindo as idéias do valor venal ¢ da riqueza [ valor util | pretendeu-se que, diminuindo a quantidade das coisas neces- sdrias, Uteis ou agrad4veis a vida, poder-se-ia aumentar a riqueza’’? Como vemos, os economistas, antes do Sr. Proudhon, “‘assi- nalaram” o profundo mistério de oposicao e de contradic&o. Obser- vemos, agora, como 0 Sr. Proudhon, depois dos economistas e a seu modo, explica este mistério. O valor de troca de um produto cai 4 medida que, permane- cendo inalterada a demanda, a oferta cresce; noutros termos: quan- to mais abundante é um produto em relagdo A demanda, menor é 0 seu valor de troca ou seu prego. Vice-versa: quanto menor é a oferta face A demanda, mais o valor de troca ou o preco do produto aumenta; noutros termos: quanto maior for a escassez do produto face A demanda, mais caro ser ele. O valor de troca de um produto depende da sua abundfncia ou da sua escassez, mas sempre em relacio A demanda. Suponha-se um produto mais que raro, unico em seu género, se for possivel: este produto unico, ndo sendo procu- rado, ser4 mais que abundante — ser supérfluo. Em troca, supo- nha-se um produto multiplicado por milhées: se é muito procurado, sc nao é suficiente para a demanda, cle serA sempre escasso. Sao estas verdades, diriamos quase banais, que é necessdrio reproduzir aqui para tornar compreensiveis os mistérios do Sr. Proudhon. (6) Lauderdale, Recherches sur la Nature et !'Origine de la Richesse Publique | Pesquisas sobre a Natureza ¢ a Origem da Riqueza Publica), trad. de Lagentie de Lavaisse, 1808, p. 33.{ Esta tradugo foi publicada em Paris.} (7) Ricardo, Des Principes de |'Economie Politique et de I'Impét | Principios de Economia Politica e Tributagaol, trad. de Constancio, notas de J.-B. Say, Paris. 1835, II, cap. “Sobre o Valor ¢ a Riqueza™. [A citag&o, da 2! edigdo, foi extraida da Pagina 6S. ] B “Seguindo assim o principio até as Ultimas conseqiéncias, chegar-se-ia a conclusdo, inteiramente logica, de que as coisas cujo uso é necess4rio e cuja quantidade é infinita nao deveriam valer nada, ao passo que aquelas cuja utilidade é nenhuma e que s&o muito escassas deveriam ter um preco inestimAével. Para culminar a confusao, a pratica nao admite tais extremos: de um lado, nenhum produto humano poderia ser infinita- mente abundante; de outro, as coisas mais escassas tém que ser titeis em alguma medida, pois, do contrério, nao possui- riam nenhum valor. O valor util e o valor permutavel perma- necemi, pois, necessariamente conectados entre si, embora tendam. pela sua natureza, a se excluir continuamente"’®. O que conduz o Sr. Proudhon ao cimulo da confus&o? O fato de ele, simplesmente, esquecer-se da demanda, o fato de algo s6 ser escasso ou abundante na medida em que for procurado. Deixando de lado a demanda, ele identifica o valor de troca com a escassez e 0 valor util com a abundancia. Com efeito, ao dizer que as coisas “cuja utilidade € nenhuma e€ que so muito escassas"’ tém “um pre¢o inestimdvel”, ele afirma simplesmente que 0 valor de troca € a escassez. ‘‘Extrema escassez e utilidade nula’’ — eis a pura escassez. “Prego inestim4vel’’ — eis o mAximo do valor de troca, o puro valor de troca. Ele estabelece uma equacdo com estes dois termos. Logo, valor de troca e escassez sao termos equivalentes. Chegando a estas pretensas “‘conseqiéncias extremas’’, o Sr. Proudhon, de fato, levou ao extremo ndo as coisas, mas os termos que as exprimem — 0 que expressa bem mais retérica do que Iégica. Acreditando encontrar novas conseqiéncias, ele efetivamente, reencontra, em toda a sua nudez. as suas primeiras hip6teses. Mercé do mesmo procedimento, consegue identificar o valor util com a abundncia pura. Apés equalizar valor de troca e escassez, valor Util e abundan- cia, o Sr. Proudhon fica assombrado por nao encontrar nem 0 valor Util na escassez e no valor de troca, nem o valor de troca na abundancia e no valor util; e, constatando que a prAtica jamais admite estes extremos, ele sb pode acreditar no mistério. Segundo ele, hA prego inestimAvel porque nao hé compradores; nunca os encontrara, enquanto abstrair a demanda. Por outro lado, a abund4ncia do Sr. Proudhon parece ser algo de espontaneo. Ele se esquece totalmente de que h& pessoas que a produzem, pessoas cujo interesse exige levar a demanda em consi- deragdo. Se nao fosse assim, como o Sr. Proudhon poderia dizer que as coisas mais titeis devem ser mais baratas, ou mesmo nAo custar (8) Proudhon, loc. cit., 1, p. 39. nada? Pelo contr&rio, ele deveria concluir que ¢ preciso limitar a abundancia, a produgdo das coisas mais iteis. se se quer elevar 0 seu prego, o seu valor de troca. Os antigos vinhateiros da Franca, reclamando uma lei que proibisse a piantac4o de novas vinhas e os holandeses, queimando as especiarias da Asia e erradicando as mudas de cravo das Molucas, queriam, muito simplesmente, reduzir a abundancia para elevar 0 valor de troca. Toda a Idade Média, limitando legalmente o numero de companheiros que cada mestre poderia empregar restringindo o numero dos seus instrumentos, agia conforme o mesmo principio (cfr. Anderson, Histoire du Commerce |Hist6ria do Comércio])’. Depois de apresentar a abundanciacomo o valor utile a escassez como o valor permutavel — e nada é mais facil de demonstrar que a abund4ncia e a escassez estao em razao inversa —, 0 Sr. Proudhon identifica o valor Gtil com a oferta e o valor permutdvel com a demanda. Para tornar a antitese ainda mais nitida, ele substitui os termos, colocando, no lugar de valor permutével, ‘valor de opi- nido"’. O conflito mudou de terreno: de um lado, temos a utilidade (0 valor de uso, a oferta) e, de outro, a opinido (0 valor permutayel, a demanda). Estas duas tendéncias opostas uma A outra, quem as conci- liar&? Como harmoniz4-las? Poder-se-& estabelecer entre elas, pelo menos, um ponto de comparagao? Claro que existe este ponto, exclama o Sr. Proudhon — trata-se do livre arbitrio. O prego resultante desta luta entre a oferta e a demanda, a utilidade e a opinido, ndo ser4 a expressio da justica eterna. O Sr. Proudhon continua a desenvolver esta antitese: “Em minha qualidade de comprador livre, sou o juiz da minha necessidade, 4rbitro da conveniéncia do objeto, do prego que lhe queira colocar. De outra parte, na sua qualidade de produtor livre, vocé & 0 dono dos meios de execucdo ¢, (9) | Esta referéncia de Marx ndo é inequivoca. Os organizadores da edico MEGA (Marx-Engels Ausgewahlte Werke, da Dietz Verlag, de Berlim) fazem a remisso a Adam Anderson, An Historical and Chronological Deduction of the Origin of Commerce from the Eurliest Accounts to the Present Time (Ensaio Histé- rico e Cronolégico da Origem do Comércio, dos Primeiros Testemunhos ao Presente), €ditado em Londres, em 1764; este mesmo autor é citado por Marx n'O Capital e nas Teorias sobre a Mais-Valia, sem maicres informagdes bibliograficas. Todavia, a referéncia pode ser a James Anderson, que Marx cita nas Teorias... € cuja obra A Calm Investigation of the Circunstances that Have Led to the Present Scarcity of Grain in Britain (Investigagao sobre as Circunstancias que Originam a Atual Escas- sez de Cereais na Inglaterra), Londres, 1801, Marx conheceu durante a sua breve Passagem por Manchester, em 1845. | 4s conseqdentemente, voc tem a faculdade de reduzir Os seus custos"""”. E como a procura ou o valor de troca se identifica com a opiniao, o Sr. Proudhon é levado a afirmar: “Esta provado que € 0 livre-arbitrio do homem que possibilita a oposi¢ao entre o valor util e o valor de troca. Como resolver esta oposigdo enquanto subsistir o livre-arbitrio? E como sacrificar a este sem sacrificar o homem?"'"! Portanto, nao ha nenhum resultado posstivel. Existe uma luta entre duas poténcias, por assim dizer incomensuraveis, entre 0 utile a opiniao, entre o comprador livre e o produtor livre. Vejamos as coisas mais de perto Nem a oferta representa exclusivamente a utilidade, nem a demanda representa exclusivamente a opiniao. Aquele que procura no oferece também um produto qualquer, ou 0 signo representativo de todos os produtos, o dinheiro? E, ao oferecé-lo, nao representa, segundo o Sr. Proudhon, a utilidade ou 0 valor de uso? Por outro lado, aquele que oferece nAo procura também um produto qualquer, ou 0 signo representativo de todos os produtos, 0 dinheiro? E, assim, ele nao se torna o representante da opiniao, do valor de opiniao ou do valor de troca? A demanda é, simultaneamente, uma oferta; a oferta, simul- taneamente, € uma demanda. Assim, a antitese do Sr. Proudhon, identificando simplesmente a oferta com a utilidade e a demanda com a opinido, funda-se numa abstraco futil. O que o Sr. Proudhon chama valor Util, outros economistas, com o mesmo direito, denominam valor de opinido. Aqui, citaremos somente Storch ?. Segundo este economista, chamam-se necessidades as coisas de que necessitamos e valores aquelas a que atribu{mos valor. A maio- ria das coisas s6 tem valor porque satisfaz as necessidades engen- dradas pela opiniao. A opinido sobre as nossas necessidades pode mudar; logo, a utilidade das coisas, que exprime a relacao delas com as nossas necessidades, também pode mudar. As prOprias necessi- (10) Proudhon, Joc. cit., I, p. 41. (11) Pbidem. (12) H, Storch, Cours d'Economie Politique |Curso de Economia Polftical, Paris, 1623, p. 88 ¢ 89. [Marz refere-se ao primeiro dos quatro volumes desta obra, cujo subtitulo ¢ Exposition des Principes qui Déterminent la Prospérité des Nations (Exposigdo dos Principios que Determinam a Prosperidade das Nagées).| 46 dades naturais mudam continuamente — com efeito, ndo sao muito yariados os produtos que constituem o principa! alimento dos dife- rentes povos? O conflito nao se estabelece entre a utilidade e a opiniao. mas entre o valor venal que quem oferece procura e 0 valor venal ofere- cido por quem procura. O valor de troca do produto é. em cada caso, a resultante destas apreciacdes contraditérias. Em dltima andlise, a oferta e a demanda colocam em presenga a produgao e o consumo, mas a produco ¢ o consumo fundados em trocas individuais. O produto oferecido nao é, em si mesmo, util. E 0 consumidor que constata a sua utilidade. E mesmo quando a sua qualidade util é reconhecida, 0 produto ndo é apenas utilidade. No decurso da produgao, ele foi trocado por todos os custos de produg&o, tais como as matérias-primas, os salarios dos operdrios, etc., coisas que so valores venais. Portanto, aos olhos do produtor, o produto repre- senta uma soma de valores venais; 0 que ele oferece ndo 6 apenas um objeto util, mas também, e principalmente, um valor venal. Quanto a demanda, ela s6 seré efetiva se tiver meios de troca a sua disposi¢’o, meios que, também eles, sao produtos, valores ve- nais. Na oferta e na demanda encontramos, pois. de um lado, um produto que custou valores venais e a necessidade de vender e. de outro, meios que custaram valores venais € 0 desejo de comprar. O Sr. Proudhon opde 0 comprador livre ao produtor livre. Atribui a ambos qualidades puramente metatisicas. o que lhe permite afirmar: “Est& provado que é 0 livre-arbitrio do homem que possi- bilita a oposig’o entre o valor itil eo valor de troca”’. O produtor, a partir do momento em que produziu no interior de uma sociedade fundada na divisao do trabalho e nas trocas, e esta éa hipétese do Sr. Proudhon, é obrigado a vender. O Sr. Proudhon faz dele o dono dos meios de produg&o; mas conviré conosco em que seus meios nao dependem do divre-arbitrio. Mais: estes meios so, na sua maioria, produtos que the chegam de fora e, na producao moderna, ele sequer & livre para determinar a quantidade do seu produto. O nivel atual do desenvolvimento das forcas produtivas o obriga a produzir em tal ou qual escala. O consumidor nao é mais livre que o produtor. A sua opiniao assenta sobre seus meios e suas necessidades. Uns e outros sao determinados pela sua situacao social que, por sua vez, depende de toda a organizacdo social. E verdade que o oper4rio que compra batatas e a concubina que compra rendas seguem suas respectivas opinides. Mas a diversidade delas se explica pela diferenca da posi- G40 que ocupam no mundo, que resulta da organizagao social. 47 Todo o sistema de necessidades funda-se na opinido ou na organizacfo global da producdo? Freqgilentemente, as necessidades nascem diretamente da produc&o, ou de um estado de coisas emba- sado na producaéo. O comércio universal gira quase inteiramente em torno das necessidades nfo do consumo individual, mas da producao. Tomando um outro exemplo: a necessidade de tabe- lides nao supde um direito civil determinado, que € uma expresso de um dado desenvolvimento da propriedade, isto é, da producao? O Sr. Proudhon nao se limitou a eliminar da relagao entre a oferta e a demanda os elementos que mencionamos. Ele conduz a abstrac4o aos ultimos extremos. fundindo todos os produtores num tinico produtor e todos os consumidores num tinico consumidor e instaurando a luta entre estes dois quiméricos personagens. No mundo real, porém, as coisas sao diferentes. A concorréncia entre aqueles que oferecem e a concorréncia entre aqueles que procuram constituem um elemento necess4rio da luta entre os compradores e os vendedores, de que resulta o valor venal. Depois de eliminar os custos de produ¢ao e a concorréncia, 0 Sr. Proudhon pode reduzir, a seu modo, a formula da oferta e da demanda ao absurdo: “A oferta e a demanda sao duas formas cerimoniais que servem para colocar frente a frente o valor de utilidade e 0 valor de troca e para promover a sua conciliagdo. Sao dois pdlos elétricos cuja relagdo deve produzir o fendmeno de afini- dade denominado troca"’"*. Isto significa 0 mesmo que dizer que a troca é uma ‘‘forma cerimonial” destinada a colocar frente a frente 0 consumidor e 0 objeto do consumo. Significa 0 mesmo que dizer que todas as relacdes econdmicas sao “formas cerimoniais’’ através das quais se realiza 0 consumo imediato. A oferta e a demanda sAo relacdes de uma producdo determinada, tanto como as trocas individuais. Enta4o, em que consiste toda a dialética do Sr. Proudhon? Consiste na substituicdo do valor util e do valor permutavel. da oferta e da demanda por nogdes absurdas e contradit6rias, tais como a escassez e a abundancia, 0 util e a opiniao, um produtor e um consumidor — ambos cavaleiros do livre arbitrio. A que resultado ele pretende chegar? A introdugao ulterior de um dos elementos que afastara, os custos de producgdo, como a sintese entre o valor util e o valor permutavel. E assim que, aos olhos do Sr. Proudhon, os custos de producao constituem 0 valor sintético ou valor constituido. (13) Proudhon, loc. cit., I, p. 49/50. § 2. Ovalor constitufdo ou valor sintético “O valor venal €a pedra angular do edificio econdmico™'* O valor "‘constituido" € a pedra angular do sistema de conta: dicgdes econdmicas. E 0 que é, entio, este “valor constituido"’ que representa toda a descoberta do Sr. Proudhon em economia politica? Uma vez admitida a utilidade, 0 trabalho € a fonte do valor. A medida do trabalho é 0 tempo. O valor relativo dos produtos é determinado pelo tempo de trabalho que foi preciso empregar para produzi-los. O prego é a expressdo monetaria do valor relativo de um produto. Enfim, 0 valor constituido de um produto é, simplesmente, o valor que se constitui pelo tempo de trabalho nele cristalizado. Assim como Adam Smith descobriu a divisdo do trabalho, 0 Sr. Proudhon pretende ter descoberto 0 “valor constituido”’. N&o se trata exatamente de ‘‘algo inaudito”, mas também é preciso convir que nao ha nada de inaudito em qualquer descoberta da ciéncia econémica. Todavia, o Sr. Proudhon, que sente toda a importancia da sua invengdo, procura atenuar o seu mérito, ‘‘a fim de tranqii- lizar o leitor acerca das suas pretensdes a originalidade e de se reconciliar com 0s espiritos cuja timidez os torna pouco favoraveis as idéias novas”. Noentanto, 4 medida que aprecia o que cada um dos seus precursores fez para determinar o valor, vé-se constrangido a proclamar em alto e bom som que a parte que lhe cabe é a maior, é a parte do ledo. “A idéia sintética do valor... foi vagamente percebida por Adam Smith... Mas, nele, esta idéia era pura intuicdo...: ora, a sociedade nao altera os seus costumes A base da fé em intuigdes — ela se decide sob a autoridade dos fatos. Era necess4rio que a antinomia se expressasse de uma forma mais sensivel e mais nitida: J.-B. Say foi o seu principal intér- prete’, Eis a hist6ria completa da descoberta do valor sintético: coube a Adam Smith a vaga intuig&o, a J.-B. Say a antinomia e ao Sr. Proudhon a verdade constituinte e “‘constituida’’. E que ninguém se equivoque: todos os outros economistas, de Say a Proudhon, apenas se arrastaram na trilha da antinomia. (14) [Proudhon, doc. cit., I, p. 90, ed. de 1923.] (1S) [Proudhon, loc. cit., p. 116/117, ed. de 1923.) 49 “E incrivel que, ha quaremia aus, cautus Nomens inteligentes se debatam com uma idéia tao simples. Mas nao: a compa- rayao entre valores se realiza sem que haja entre eles qualquer ponto de compara¢do e sem unidade de medida — eis 0 que os economistas do século XIX resolveram sustentar diante de todos e contra todos, em vez de abracar a teoria revolucionaria da igualdade. O que dird a posteridade?""°. A posteridade, apostrofada tao de repente, comegar4 por se confundir com a cronologia. Ela se perguntar& obrigatoriamente: Ricardo e sua escola nao sao economistas do século XIX? O sistema de Ricardo, fundado no principio segundo o qual “‘o valor relativo das mercadorias depende exclusivamente da quantidade de trabalho requerido para a sua producdo’’, remonta a 1817. Ricardo lidera uma escola que, desde a Restaurac4o'’, predomina na Inglaterra. A doutrina ricardiana resume rigorosamente, impiedosamente, 0 pon- to de vista de toda a burguesia inglesa, que 6, em si mesma. a tipica burguesia moderna. “O que dirdé a posteridade?"’. Nao dir& que o Sr. Proudhon ignorou Ricardo, j4 que se refere, e muito, a ele, con- cluindo que suas idéias sAo uma “‘mistura incoerente”. Se a poste- ridade algum dia intervier nisto, talvez diga que o Sr. Proudhon, temendo chocar a anglofobia dos seus leitores, preferiu fazer-se 0 editor responsAvel das idéias de Ricardo. De qualquer maneira, 4 posteridade parecer4 muito ingénuo que o Sr. Proudhon exiba como “teoria revoluciondria do futuro’ o que Ricardo expds cientifica- mente como a teoria da sociedade atual, da sociedade burguesa, bem como o fato de o Sr. Proudhon considerar como a solucdo da antinomia entre a utilidade e 0 valor de troca aquilo que Ricardo e sua escola, h& muito, apresentaram como a f6rmula cientifica de um nico termo da antinomia, do valor de troca. Mas deixemos, para sempre, a posteridade de lado e confrontemos o Sr. Proudhon com 0 seu predecessor Ricardo. Eis algumas passagens deste autor, que resumem a sua doutrina sobre o valor: “Nao é... a utilidade que é a medida do valor de troca, embora the seja absolutamente necess4ria”’™ . “As coisas, uma vez reconhecidas como titeis por si mesmas, extraem seu valor de troca de duas fontes: da sua escassez e da quantidade de trabalho necess4rio para adquiri-las. HA coisas (16) Proudhon, loc. cit., I, p. 68. (17) |Marx se refere ao periodo posterior as guerras napolednicas (1815) € & restauraclo da dinastia dos Bourbons na Franca. | (18) Ricardo, loc. cit., 1, p. 3. sO cujo valor depende apenas da escassez. Ja que nenhum tra- balho pode aumentar a sua quantidade, o seu valor nao se reduz por uma abundancia maior. E 0 caso das estatuas, dos quadros de grande valor, etc. Este valor depende apenas das faculdades, dos gostos e do capricho daqueles que desejam possuir tais objetos”"’ . “Tais objetos, no entanto, sto pequeninissima quantidade dentre as mercadorias que se trocam no dia-a-dia. Dado que o maior niimero dos objetos que se deseja possuir é produto da industria, eles podem ser multiplicados, nao apenas em um pais, mas em varios, numa proporcao tal que & quase impos- sivel assinalar limites, sempre que se queira empregar a indus- tria necess4ria para produzi-los”™ . “Portanto, quando falamos de mercadorias, do seu valor de troca e dos principios que regulam o seu preco relativo, refe- rimo-nos Aquelas cuja quantidade pode ser acrescida pela industria do homem, cuja produgao é estimulada pela concor- réncia e que nao é obstaculizada por nenhum entrave"™ . Ricardo cita Adam Smith que, no seu entender, ‘‘definiu com muita precisdo a fonte primitiva de todo valor de troca” (Smith, I, cap. V2) e acrescenta: “Qualquer que seja, na realidade, a base do valor de troca de todas as coisas [a saber, 0 tempo de trabalho], exceto o daquelas que a industria dos homens nao pode multiplicar a vontade, este ponto doutrinario é da mais alta importancia em economia politica — porque ndo existe outra fonte de que tenham brotado tantos erros e que tenha originado tantas divergéncias nesta ciéncia como o sentido vago e impreciso que se confere a palayra valor» “Se 6 a quantidade de trabalho fixado numa coisa que regula o seu valor de troca, segue-se que todo acréscimo da quanti- dade de trabalho deve acrescer o valor do objeto no qual é (19) Idem, p. 45. (20) Idem, p.5. (21) Ibidem. (22) [A indicagao se refere A obra fundamental de Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealih of Nations (Investigagdo sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nagées), Londres, 1776. (23) Ricardo, loc. cit., 1, p. 8. Sl empregada e, igualmente, toda reducdo de trabalho deve re- duzir 0 seu prego’. Em seguida, Ricardo censura a Smith: 1° “oconferir ao valor uma medida diferente do trabalho, ora o valor do trigo, ora a quantidade de trabalho que uma coisa pode comprar, etc.""*5; 2° “o admitir sem reservas o principio e, no entanto, limitar a sua aplicagdéo ao estado primitivo e grosseiro da sociedade, anterior A acumulac&o de capitais e A propriedade da terra’. Ricardo procura demonstrar que a propriedade das terras, isto 6, a renda, ndo poderia alterar o valor relativo”” dos produtos agricolas e que a acumulac&o de capitais exerce apenas uma acao Passageira e perturbadora sobre os valores relativos determinados pela quantidade comparativa de trabalho empregado na sua pro- dugao. Para sustentar esta tese, Ricardo formula a sua famosa teoria da renda fundidria, decompde o capital e, em ultima andlise, s6 encontra nele trabalho acumulado. Em seguida, desenvolve toda uma teoria do salfrioe do lucro, demonstrando que ambos tém seus movimentos de alta e de baixa, em razdo inversa um do outro e sem influir sobre o valor relativo do produto. Ele n&o omite a influéncia que a acumulagao dos capitais e a diferenga da sua natureza (capi- tais fixos e capitais circulantes), assim como a taxa dos saldrios, podem exercer sobre o valor proporcional dos produtos. De fato, estes sdo os problemas principais com que Ricardo se ocupa. “Toda economia no trabalho nao deixa, jamais, de reduzir o valor relativo de uma mercadoria, quer incida sobre o trabalho necessario a fabricacéo do préprio objeto, quer sobre o tra- balho necessfrio 4 formagao do capital utilizado nesta pro- dugao"*. (24) Ibidem. (25) Idem, 1, p.9/10. (26) Idem, I, p. 21. (27) [Na relacdo de “Notas ¢ Modificagdes" que prepatava para uma nova edigho francesa desta obra, Engels destinava a este ponto a seguinte frase, que no figura na edicdo de 1896: “Em Ricardo, o valor relativo € valor expresso em numerério”’.) (28) Ricardo, loc. cit., I, p. 28. [Na edigdo alema de 1885, Engels introduziu aqui a seguinte nota: “Sabe-se que, para Ricardo, o valor de uma mercadoria € determinado pele ‘quantidade de trabalho necesshrio para obté-la’. Ora, o modo de troca que predumina em toda forma de produg&o fundada na mercadoria — logo, $2 “Conseqientemente, enquanto uma jornada de trabalho con- tinuar fornecendo a um idéntica quantidade de peixe ¢ a outro idéntica quantidade de caca, a taxa natural dos respectivos precos de troca permanecer4 sempre a mesma, independen- temente da variagao dos salarios e do lucro € dos varios efeitos da acumulacao de capital”. “Consideramos o trabalho como o fundamento do valor das coisas, € a quantidade de trabalho necessério 4 sua producao como o padrao que determina as quantidades respectivas das mercadorias que devem ser trocadas por outras; mas nao negamos que possam ocorrer, no preco corrente das merca- dorias, desvios acidentais e passageiros deste prego primitivo e natural” ». “SAo os custos de produg&o que regulam, em ultima anilise, os pregos das coisas, e ndo, como freqientemente se preten- deu, a proporc4o entre a ofertae a demanda””’. Lord Lauderdale explicara as variagdes do valor de troca se- gundo a lei da oferta e da demanda, ou da escassez e da abundancia em relac4o 4 demanda. No seu entender, o valor de uma coisa pode aumentar quando ela escasseia ou quando a demanda cresce, e pode diminuir quando ela abunda ou quando a demanda se reduz. As- sim, o valor de uma coisa pode variar pela aco de oito causas diferentes, quatro referentes A prépria coisa ¢ quatro referentes ao dinheiro ou a qualquer outra coisa que sirva de medida de seu valor. Eis a refutacAo de Ricardo: “Os produtos monopolizados por um particular ou por uma companhia variam de valor segundo a lei formulada por Lord Lauderdale: diminuem a proporgado em que sao oferecidos em maior quantidade, aumentam com 0 desejo dos compradores de adquiri-los; o seu preco ndo tem uma relacdo necessaria com o seu valor natural. Contudo, no que se refere as coisas su- jeitas A concorréncia entre os vendedores e cuja quantidade pos- também, no sistema capitalista — tem, contudo, como conseqdéncia que este valor no se exprima diretamente em quantidades de trabalho, mas em quantidades de uma outra mercadoria. Ao valor de uma mercadoria expresso em um quantum de outra mercadoria (dinheiro ou nao), Ricardo denomina o seu valor relativo".] (29) Idem, p. 32. (30) Idem, p. 105. (31) Idem, II, p. 253. $3 sa ser aumentada dentro de limites moderados, 0 seu prego de: pende, em definitivo, nao do estado da demanda e do aprovi- sionamento, mas do aumento ou da reducao dos custos de produgao”. Deixaremos ao leitor a comparacdo entre a linguagem tdo precisa, clara e simples de Ricardo e os ret6ricos esforcos do Sr. Proudhon para alcancar a determinagao do valor relativo pelo tem- po de trabalho. Ricardo nos apresenta o movimento real da produg&o bur- guesa, que constitui o valor. Abstraindo este movimento real, o Sr, Proudhon ‘‘se debate’’ na invencdo de novos procedimentos, a fim de ordenar o mundo segundo uma férmula pretensamente original, que, na verdade, é apenas a expressdo tedrica do movimento real existente, tio bem exposta jA por Ricardo. Este arranca da sociedade atual, para nos demonstrar como ela constitui o valor; o Sr. Prou- dhon arranca do valor constituido para, através dele, constituir um novo mundo social. Para o Sr. Proudhon, o valor constituido deve descrever uma curva € retornar, constituinte, a um mundo ja consti- tuido de acordo com este modo de avaliacéo. A determinacao do valor pelo tempo de trabalho é, para Ricardo, a lei do valor de troca; para o Sr. Proudhon, ela éa sintese do valor util e do valor de troca. A teoria dos valores de Ricardo é a interpretacdo cientifica da vida econémica atual; a teoria dos valores do Sr. Proudhon é a interpre- taco utépica da teoria de Ricardo. Ricardo verifica a verdade da sua formula derivando-a de todas as relagdes econdmicas, e assim explica todos os fendmenos, inclusive aqueles que, a primeira vista, parecem contradizé-la, como a renda, a acumulacdo de capitais e a relagAo entre salarios e lucros; e é isto, precisamente, que faz da sua doutrina um sistema cientifico. O Sr. Proudhon, que redescobriu esta formula de Ricardo através de hipdteses inteiramente arbi- trdrias, vé-se compelido, ulteriormente, a procurar fatos econdmicos isolados, que violenta e falsifica, para fazé-los passar por exemplos, aplicagdes j4 existentes, realizacdes iniciais da sua idéia regene- radora™’. Vejamos agora as conclusdes que o Sr. Proudhon extrai do valor constituido (pelo tempo de trabalho): — uma certa quantidade de trabalho equivale ao produto criado por esta mesma quantidade de trabalho; — qualquer jornada de trabalho equivale a outra jornada de tra- balho; ou seja: dada igual quantidade de trabalho, o trabalho de (32) Idem, p. 259. (33) Cfr., adiante, 0 § 3. um homem equivale ao de outro — nao ha diferencas qualita- tivas. Dada igual quantidade de trabalho, 0 produto de um se troca pelo produto de outro. Todos os homens sao trabalhadores assalariados, e assalariados igualmente pagos por um tempo igual de trabalho. A igualdade perfeita preside as trocas Tais conclusdes sdo as conseqiiéncias naturais, rigorosas, do valor “‘constituido” ou determinado pelo tempo de trabalho? Se o valor relativo de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho requerido para produzi-la, segue-se natural- mente que o valor relativo do trabalho, ou o salario. é igualmente determinado pela quantidade de trabalho necess4rio para produzir osalario. O salario, isto é: o valor relativo ou o prego do trabalho, é, pois, determinado pelo tempo de trabalho requerido para produzir tudo o que é necess4rio 4 manutengao do operario. “Reduzam-se os custos de fabricagaéo dos chapéus e 0 seu preco acabara por se reduzir ao seu novo prego natural, em- bora a demanda possa dobrar, triplicar ou quadruplicar. Re- duzam-se os custos de manutencdo dos homens, reduzindo o prego natural da alimentagao e das roupas que garantem a vida, e os salarios acabar4o por se reduzirem, embora a de- manda de bracos possa crescer consideravelmente’™ E evidente que a linguagem de Ricardo nao poderia ser mais cinica. Colocar no mesmo plano os custos de fabricagdo dos chapéus € os custos de manutengao do homem € transformar o homem em chapéu. Mas nao protestemos tanto contra o cinismo. O cinismo esta nas coisas, nao nas palavras que as exprimem. Escritores fran- ceses como os Srs. Droz, Blanqui e Rossi, entre outros, procuram a inocente satisfacdo de provar a sua superioridade sobre os econo- mistas ingleses observando a etiqueta de uma linguagem “humani- taria’’; censuram a Ricardo e a sua escola a linguagem cinica porque se sentem vexados com a exposic¢ado das relacdes econdmicas em toda a sua crueza, com a traic4o dos mistérios da burguesia. Resumamos. O trabalho, sendo ele mesmo mercadoria, mede- -se como tal pelo tempo de trabalho que é necessario para produzir 0 trabalho-mercadoria. E o que é preciso para tanto? Exatamente o tempo de trabalho necess4rio para produzir os objetos indispen- s4veis A manutengao continua do trabalho, ou seja, para permitir que o trabalhador viva e propague a sua espécie. O pre¢o natural do (34) Ricardo, loc. cit., II, p. 253. trabalho é 0 minimo do salério". Se o prego corrente do salario se eleva acima do preco natural € precisamente porque a lei do valor, estabelecida como principio pelo Sr. Proudhon, vé-se contrabalan- ada pelas conseqQéncias das variagdes da relacdo entre a oferta c a demanda, Mas o minimo de sal4rio nao deixa de ser o centro em torno do qual gravitam os pregos correntes do salirio. Assim, o valor relativo, medido pelo tempo de trabalho, é, fatalmente, a formula da escravidéo moderna do operdrio, e nao, como o pretende o Sr. Proudhon, a ‘“‘teoria revolucionéria” da emancipacao do proletariado. Vejamos, agora, em que casos a aplicagao do tempo de tra- balho como medida do valor € incompativel com o antagonismo existente entre as classes e com a desigual distribuicdo do produto entre o trabalhador imediato e 0 possuidor de trabalho acumulado. Suponhamos um produto qualquer; por exemplo, o tecido de linho *. Este produto, como tal, encerra uma quantidade determi- nada de trabalho. Esta ser& sempre a mesma, qualquer que seja a situacao reciproca daqueles que concorreram para criar 0 produto, (35) [A edigao alema de 1885, Engels aduziu a seguinte nota: “A tese de que 0 preco ‘natural’, ou seja: normal, da forga de trabalho coincide com o m{nimo de salario, isto €: com o valor de troca dos meios de subsisténcia absolutamente neces- s&rios A vida e A reproducAo do oper&rio, esta tese eu 8 formulei pela primeira vez em “Umrisse zu einer Kritik der Nationalékonomie’ (Deutsch -franzésische Jahrbucher ['Esbogo de uma Critica da Economia Polftica', Anais Franco-Alemdes), Paris, 1844) ¢ em Die Lage der arbeitenden Klasse in England |A Situagdo da Classe Trabalhadora na Inglaterra|, Leipzig, 1845. Como se vé, Marx entao a adotou e, posteriormente, Lassalle tomou-a de nés. Mas, mesmo que, na realidade, o salério tenda a se aproximar constantemente do seu minimo, esta tese n&o é exata. E verdade que, em geral e em média, a forca de trabalho é paga abaixo do seu valor; no entanto, este fato no altera o seu valor. N'O Capital, Marx corrigiu esta tese (cir. a secko ‘Compra ¢ Venda da Fora de Trabalho’), analisando as condi¢des que permitem a produgio capitalista reduzir progressivamente o prego da forya de trabalho, pa- gando-a abaixo do seu valor (cfr. XXIII, ‘A Lei Geral da Acumulagio Capita- lista’)"", O ensaio de Engels, aqui mencionado, foi publicado no volume 5 de Temas de Ciéncias Humanas, Livraria Editora Ciéncias Humanas, SAo Paulo, 1979; 0 seu livro sobre a classe operdria inglesa também serd publicado pela mesma editora; as referéncias a Marx, na edicdo brasileira d'O Capital (Ed. Civilizagio Brasileira, Rio de Janeiro) encontram-se, respectivamente, nas paginas 187/197 (livro 1, volume 1, 1968) e 712/827 (livro 1, volume 2, 1968). Ao tomar “emprestada”” esta lei, Lassalle, em 1863, apresenta-a como “a lei de bronze dos salarios” e, como tal, ela serf incorporada pelo partido operfrio alem&o unificado no Congreso de Gotha (1875); Marx criticou duramente o programa oriundo deste congresso: cfr. Critica ao Pro grama de Gotha, in Marx-Engels, Obras Escothidas, Ed. Vitoria, Rio de Janeiro, vol. 2, 1961, p. 205/236. ] (36) | Aqui, no original, Marx emprega a palavra toile, tecido de linho ov algodao; no pardgrafo seguinte, exemplifica com drap, tecido A base de li. A distingho se fari traduzindo toile como tecido de linko drap como pano de 1a.| 56 Tomemos um outro produto: um pano de 14, que teria exigido a mesma quantidade de trabalho que 0 tecido de linho. Trocados estes dois produtos, ocorreu uma troca de quanti- dades iguais de trabalho. Trocadas estas quantidades iguais de tempo de trabalho, nada se altera na situagao reciproca dos produ- tores, assim como permanece inalterada a situacdo dos operarios ¢ dos fabricantes entre si. Afirmar que esta troca de produtos medidos pelo tempo de trabalho resulta na retribuigao igualitaria de todos os produtores é supor que, antes da troca. existia a igualdade de parti- cipagao no produto”. Quando se realizar a troca do pano de 14 pelo tecido de linho, os produtores daquele participarao neste na mesma proporc4o em que, antes, participaram no pano de 14. A ilusio do Sr. Proudhon deriva de ele tomar como conse- qiiéncia o que, no maximo, nao seria mais que uma suposicao gratuita. Prossigamos. O tempo de trabalho como medida de valor supde, pelo me- nos, que as jornadas s&o equivalentes e que a jornada de um homem vale tanto como a de outro? Nao. Admitamos, por um momento, que a jornada de um joalheiro equivale a trés jornadas de um tecelio: sempre que ocorrer uma alteragao do valor das jOias em relac&o aos tecidos, a menos que se trate de um resultado passageiro das oscilacdes da oferta e da de- manda, a causa dever4 ser uma redugdo ou um aumento do tempo de trabalho empregado por uma ou outra parte na producao. Se trés jornadas de trabalho de diferentes trabalhadores est4o entre si como 1, 2, 3, qualquer alteragao no valor relativo de seus produtos modi- ficar4 esta relagao 1, 2, 3. Assim, € possivel medir os valores pelo tempo de trabalho, apesar da desigualdade do valor das diferentes jornadas de trabalho; mas, para aplicar uma semelhante medida, é necessario uma escala comparativa de diferentes jornadas de tra- balho — eéa cconcorréncia que estabelece esta escala. A sua hora de trabalho vale como a minha? Esta é uma ques- t4o que se decide pela concorréncia. A concorréncia, segundo um economista americano, deter- mina quantas jornadas de trabalho simples est&o contidas numa jornada de trabalho complexo. Esta redug&o de jornadas de tra- balho complexo a jornadas de trabalho simples nado supde que o trabalho simples é tomado como medida do valor? Por outro lado, tomar apenas a quantidade de trabalho como medida de valor, sem levar em conta a qualidade, supde que o trabalho simples se tornou (37) [A concretizacAo desta possibilidade constituiré aquilo que Marx deno- minou de “primeira fase’’ da sociedade comunista.} 57 0 fulcro da industria. Supde que os trabalhos sAo equalizados pela subordinagdo do homem a mfquina ou pela divisio extrema do trabalho; supde que os homens se apagam diante do trabalho; supde que o movimento do péndulo tornou-se a exata medida da atividade relativa de dois operdrios, da mesma maneira que 0 é da velocidade de duas locomotivas. Entao, nao ha por que dizer que uma hora de um homem equivale a uma hora de outro homem; deve-se dizer que um homem de uma hora vale tanto como outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem n&o é nada — quando muito, éa carcaca do tempo. Nao se discute a qualidade. A quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jornada. Mas esta equalizacao do trabalho nao resulta da justiga eterna do Sr. Proudhon; muito simplesmente, é um fato da industria moderna. Na fbrica, 0 trabalho de um operario quase nao se distingue do trabalho de outro operfrio: os operdrios s6 se distinguem entre si pela quantidade de tempo que despendem. No entanto, esta dife- renga quantitativa torna-se, sob certo ponto de vista, qualitativa, j& que o tempo de dedica¢ao ao trabalho depende, parcialmente, de causas puramente materiais (como a constituicao fisica, a idade, 0 sexo) e, parcialmente, de causas morais puramente negativas (como a paciéncia, a impassibilidade, a assiduidade). Enfim, se h4 uma diferenga de qualidade entre o trabalho dos operdrios, trata-se, no mA&ximo, de uma qualidade da pior qualidade — 0 que dista muito de ser uma especialidade distintiva. Em ultima anflise, é este o estado de coisas da industria moderna. E é sobre esta igualdade, j& realizada, do trabalho mecanizado que o Sr. Proudhon exibe a sua plaina da ‘‘equalizagio”, a cumprir-se universalmente no ‘‘futu- ro”, Todas as conseqiiéncias ‘‘igualitarias’’ que o Sr. Proudhon extrai da doutrina de Ricardo se baseiam num erro fundamental. Ele confunde o valor das mercadorias medido pela quantidade de trabalho nelas fixado com o valor das mercadorias medido pelo “valor do trabatho"’. Se estas duas maneiras de medir 0 valor se redu- zissem a uma $6, poder-se-ia dizer indiferentemente: o valor relativo de uma mercadoria qualquer é medido pela quantidade de trabalho nela fixado; ou: mede-se pela quantidade de trabalho que pode comprar; ou ainda: mede-se pela quantidade de trabalho que é capaz de compraé-la. Mas as coisas nao sdo assim. O valor do trabalho, como o valor de qualquer outra coisa, ndo serve para medir o valor. Alguns exemplos ser4o suficientes para esclarecer melhor 0 que acabamos de dizer. (38) [Marx, neste trecho, aflorou a intrincada relacAo entre o trabalho sim plese o trabalho complexo, que solucionar& n'O Capital.) 58 Se o moio™ de trigo custasse duas jornadas de trabalho, ao invés de uma, o seu valor primitivo duplicaria; mas ele nao propi- ciaria o movimento duplicado da quantidade de trabalho, porque 0 seu conteiido de matéria nutritiva permaneceria inalterado. Assim, o valor do trigo, medido pela quantidade de trabalho empregado para produzi-lo, teria duplicado, mas, medido pela quantidade de trabalho que pode comprar ou pela quantidade de trabalho que o pode comprar, distaria muito de ter duplicado. Por outro lado, seo mesmo trabalho produzisse o dobro de roupas que antes, o valor relativo delas seria reduzido a metade; todavia, esta quantidade duplicada de roupas nem por isto teria que exigir apenas a metade da quantidade de trabalho, ou o mesmo trabalho nao teria que exigir a quantidade duplicada de roupas, porque a metade delas continuaria, ainda, a servir ao operdrio da mesma forma que antes. Portanto, determinar o valor relativo das mercadorias pelo valor do trabalho € contradizer os fatos econdmicos. E mover-se num circulo vicioso: 6 determinar o valor relativo por um valor relativo que, por sua vez, precisa ser determinado. E indubit4vel que o Sr. Proudhon confunde as duas medidas. a medida pelo tempo de trabalho necessdrio 4 produgdo de uma mercadoria e a medida pelo valor do trabalho. “O trabalho de todo homem — afirma — pode comprar o valor que ele encerra."’ Assim, para o Sr. Proudhon, uma certa quantidade de trabalho cristalizado num produto equivale a retribuicao do trabalhador, ou seja: ao valor do trabalho, A mesma argumentagao autoriza-o a confundir os custos de produgdo com os salarios. “O que é 0 salfrio? E 0 prego de custo do trigo, etc., 6 0 prego integral de todas as coisas."’ E, mais adiante: ‘‘O salario é a propor- cionalidade dos elementos que compdem a riqueza’’. O que é 0 salario? E 0 valor do trabalho. Adam Smith toma como medida do valor ora o tempo de trabalho necess4rio a producao de uma mercadoria, ora o valor do trabalho. Ricardo desvelou este erro, mostrando claramente a dispa- ridade destas duas formas de mensuracdo. O Sr. Proudhon potencia oerro de Adam Smith: neste, as duas formas se justapdem; naquele, elas sdo identificadas. O Sr. Proudhon procura uma medida do valor relativo das mercadorias para encontrar a justa proporgdo em que os oper&rios devem participar dos produtos ou, em outros termos, para deter- minar o valor relativo do trabalho. Para determinar a medida do valor relativo das mercadorias, ele imagina que o melhor é consi- (39) [No original, muid: antiga medida francesa, equivalente, para grivs ¢ secos, a cerca de 18 hectolitros. | 89 derar como equivalente de uma certa quantidade de trabalho a soma de produtos que ele cria — o que significa supor que toda a socie- dade se compde apenas de trabalhadores imediatos, cujo salfrio é 0 seu proprio produto. Em segundo lugar, ele estabelece, de fato, a equivaléncia entre as jornadas dos diversos trabalhadores. Em suma, ele procura a medida do valor relativo das mercadorias para encon- trar a retribuicdo igual dos trabalhadores ¢ toma a igualdade dos salarios como um dado, do qual parte para procurar o valor relativo das mercadorias. Que admirAvel dialética! “Say e os economistas que 0 seguiram observaram que, es- tando o proprio trabalho sujeito 4 avaliac&o, sendo uma mer- cadoria como qualquer outra, tom4-lo como principio e causa eficiente do valor é cair num circulo vicioso. [...] Estes econo- mistas, permitam-me dizé-lo, demonstraram uma prodigiosa falta de atenc4o. Diz-se que o trabalho vale nao enquanto mercadoria, mas em funcdo dos valores que se supde poten- cialmente contidos nele. O valor do trabalho € uma expressao figurada, uma antecipacdo da causa sobre o efeito. E uma ficgdo, do mesmo género que a produtividade do capital. O trabalho produz, o capital vale... Por uma espécie de elipse, diz-se o valor do trabalho... O trabalho, como liberdade... € coisa vaga e indeterminada por sua natureza, mas que se define qualitativamente pelo seu objeto, ou seja, torna-se uma realidade pelo produto”. “Mas, ser preciso insistir? Desde que 0 economista“’ troca o nome das coisas, vera rerum vocabula“’, ele confessa, implici- 943 tamente, a sua impoténcia e elude a questao'’*’. Vimos que o Sr. Proudhon faz do valor do trabalho a “‘causa eficiente"’ do valor dos produtos, a ponto de, para ele, o saldrio, nome oficial do “valor do trabalho"’, constituir o prego integral de todas as coisas. E por isto que a objecéo de Say o perturba. No trabalho-mercadoria, que é de uma realidade espantosa, ele vé apenas uma elipse gramatical. Logo, toda a sociedade atual, fun- dada no trabalho-mercadoria, passa a se embasar numa licenga poética, numa expres4o figurada. A sociedade pretende “eliminar (40) Proudhon, loc. cit., 1, p. 61. (41) Leia-se: oSr. Proudhon.|M. Rubel assinala, aqui, um erro de transcrigdo de Marx: no texto de Proudhon, aparece comunista no lugar de economista.| (42) (As verdadeiras denominagdes das coisas. | (43) Proudhon, loc. cit., I, p. 188. todos os inconvenientes’’ que a atormentam? Muito bem: basta-lhe eliminar os termos inconvenientes, alterar a linguagem e dirigir-se A Academia, encomendando-lhe uma nova edi¢&o do seu dicion4rio! Depois disto tudo, é facil compreender por que o Sr. Proudhon, numa obra de economia politica, sentiu-se obrigado a dissertar longamente sobre etimologia e outras partes da gramAtica. Por isto, ndo superou a fase da sAbia polémica contra a velha derivacdo de servare aservus“. Estas dissertacdes filolégicas tém um sentido profundo, um sentido esotérico, constituindo uma parte essencial da argumentacao do Sr. Proudhon. O trabalho**, enquanto vendido e comprado, 6 uma merca- doria como qualquer outra e, conseqientemente, tem um valor de troca. Mas o valor do trabalho, ou o trabalho, enquanto merca- doria, é tao pouco produtivo como é pouco nutritivo o valor do trigo, ou 0 trigo, enquanto mercadoria. O trabalho “vale” mais ou menos conforme os géneros alimen- ticios sejam mais ou menos caros, segundo o nivel dado da oferta e da demanda de bracos, etc., etc. O trabalho nunca é uma “coisa vaga”: € sempre um trabalho determinado; jamais se compra ou se vende trabalho em geral. E n&o é somente o trabalho que se define qualitativamente pelo objeto: também o objeto é determinado pela quantidade especifica do tra- balho, O trabalho, enquanto é vendido e comprado, constitui, ele mesmo, uma mercadoria. Por que é comprado? ‘Em fung&o dos valores que se supde potencialmente contidos nele.’” Mas quando se diz que uma coisa é mercadoria, j4 nao se trata da finalidade para a qual 6 comprada, ou seja, da utilidade que se pretende extrair dela, da utilizagdo a que se a destina. Ela é mercadoria como objeto de trafico. Todos os raciocinios do Sr. Proudhon se resumem nisto: 0 trabalho nao é comprado como objeto imediato de consumo. Claro que n&o: compra-se-o como instrumento de produg&o, como se compraria uma mAquina. Enquanto mercadoria, 0 trabalho vale, mas nao produz. O Sr. Proudhon poderia dizer igualmente que nao existe mercadoria, jA4 que toda mercadoria 6 comprada com uma finalidade de utilidade qualquer e nunca enquanto mercadoria. (44) [Servare: conservar; servus: servo. A discussdo esth em Proudhon, loc. cit., Lp. 200, ed. de 1923.] (45) | O exemplar da primeira edicAo francesa que Marx ofereceu a N. Utina em 1876, registra, depois da palavra trabalho, em aut6grafo, a expressdo forra de trabalho. A segunda edigho francesa, de 1896, acatou esta adigAo, que é um evidente anacronismo, comoo atesta, inclusive, o proprio Engels, no preficio que redigiu para + primeira edicAo alema.| 61 Mcdindo © valor das mercadorias pelo trabalho, o Sr. Prou- dhon vislumbra, vagamente, a impossibilidade de subtrair a esta mesma medida o trabalho, enquanto encerra um valor, enquanto trabalho-mercadoria. Ele pressente que isto equivale a fazer do mfnimo de sal4rio o prego natural e normal do trabalho imediato, o que significa aceitar o estado atual da sociedade. Assim, para esca- par a esta conseqiéncia fatal; faz meia-volta e pretende que o trabalho nado seja uma mercadoria, pretende que ele n&o possua um valor. Esquece-se que ele mesmo tomou como medida 0 valor do trabalho; esquece-se que todo o seu sistema se funda no trabalho- mercadoria, no trabalho que se troca, se vende € se compra, se permuta por produtos, etc. — enfim, no trabalho que é uma fonte imediata de rendimentos para o trabalhador. Ele se esquece de tudo. Para salvar o seu sistema, admite 0 sacrificio da sua base. Ft propter vivendi perdere causas Chegamos, agora, a uma nova determinagao do “valor cons- titufdo": “O valor & a relagdo de proporcionalidade dos produtos que compodem a riqueza’”’. Observemos, antes de mais, que as simples palavras “valor relativo ou permut&vel” implicam a idéia de uma relagao qualquer, na qual os produtos se trocam reciprocamente. Designando-a por “telag&o de proporcionalidade", na&o se modifica o valor relativo, mas apenas a sua expressdo. Nem a depreciacdo nem a elevacdo do valor de um produto eliminam a sua propriedade de entrar em uma “relacdo de proporcionalidade” qualquer com outros produtos que constituem a riqueza. Por que, entdo, esta nova designagio, que nio introduz uma nova idéia? A “relac&o de proporcionalidade” sugere muitas outras rela- des econémicas, como a proporcionalidade da producao, a justa proporcdo entre a oferta e a demanda, etc., eo Sr. Proudhon pensou em tudo isto ao formular esta parAfrase diddtica do valor venal. Em primeiro lugar, j4 que o valor relativo dos produtos ¢ determinado pela quantidade comparativa de trabalho empregado na sua producao, a relagdo de proporcionalidade, aplicada a este caso especial, significa a quantidade respectiva de produtos que podem ser fabricados em um tempo dado e que, conseqientemente, se trocam. Vejamos 0 que o Sr. Proudhon extrai desta relac&o de propor- cionalidade. (46) (A passagem transcrita € de Juvenal: "E, para viver, sacrificar as suas razbes de viver" 62 Todo mundo sabe que, quando a oferta ¢ a demanda sx equilibram, o valor relativo de um produto qualquer € exatamente determinado pela quantidade de trabalho nele contido, ou seja: o yalor relativo exprime a relagao de proporcionalidade precisamente no sentido que acabamos de esclarecer. O Sr. Proudhon inverte a ordem das coisas. Comece-se, diz ele, por medir o valor relativo de um produto pela quantidade de trabalho nele contido e, ent&o, a oferta e a demanda infalivelmente se equilibrarao. A produgio correspondera ao consumo, e 0 produto sera sempre permutavel. Seu preco corrente expressara com exatidao o seu justo valor. Ao invés de dizer como todo mundo — quando faz bom tempo, vemos muita gente passeando —, o Sr. Proudhon manda a sua gente passear para lhe garantir bom tempo. Aquilo que o Sr. Proudhon apresenta como a conseqiéncia do valor venal determinado a priori pelo tempo de trabalho so podena ser justificado por uma lei expressa mais ou menos assim: os pro- dutos, de agora em diante, ser4o trocados na razdo exata do tempo de trabalho que exigiram; qualquer que seja a rela¢do entre a oferta e a demanda, a troca de mercadorias far-se-4 sempre como se elas fossem produzidas proporcionalmente 4 demanda. Se o Sr. Prou- dhon formular e fizer aprovar uma lei semelhante, nds o dispensa- remos das provas. Mas se, ao contrario, ele insistir em justificar a sua teoria, ndo como legislador, mas como economista, entdo teré que provar que 0 tempo necessdrio para criar uma mercadoria indica exatamente o seu grau de utilidade e expressa a Sua relagao de proporcionalidade 4 demanda e, por conseqiiéncia, ao conjunto das riquezas. Neste caso, se um produto é vendido por um preco igual aos seus custos de produgdo, a oferta e a demanda se equili- brardo sempre, porque se considera que os custos de produgao exprimem a verdadeira relacdo entre a oferta e a demanda. Efetivamente, o Sr. Proudhon se esforca para provar que 0 tempo de trabalho requerido para criar um produto expressa a sua justa proporgado as necessidades, de tal forma que as coisas cuja producio exige menos tempo sdo as mais imediatamente Uteis, e assim por diante, gradualmente. A simples producdo de um objeto de luxo comprova, de acordo com esta doutrina, que a sociedade dispde de um tempo excedente que lhe permite satisfazer a uma necessidade de luxo. A demonstracdo da sua tese, o Sr. Proudhon encontra-a na observagao que as coisas mais dteis custam menos tempo de pro- duc4o, que a sociedade comeca sempre pelas industrias mais faceis e que, sucessivamente, ela “se dedica 4 producdo de objetos que exigem mais tempo de trabalho e que correspondem a necessidades de uma ordem elevada”. 63 O Sr. Proudhon toma do Sr. Dunoyer o exemplo da industria extrativa — coleta, pastoreio, caga. pesca, etc. —, que € a mais simples, a menos onerosa e pela qual o homem comecou ‘‘o primeiro dia da sua segunda criagdo""* . O primeiro dia da sua criagdo est& consignado no Génesis, que nos apresenta Deus como o primeiro industrial do mundo. As coisas se passam muito diferentemente do que pensa o Sr. Proudhon. Na propria emergéncia da civilizag4o. a producao co- mega a se fundar no antagonismo entre as ordens, os estamentos, as classes e, enfim, no antagonismo entre o trabalho acumulado e 0 trabalho imediato. Sem antagonismo nao hé progresso. Esta é a lei a que se submeteu, até hoje, a civilizagao. Até o presente, as forgas produtivas se desenvolveram gracas ao regime antagonico das clas- ses. Afirmar, agora, que, estando satisfeitas todas as necessidades de todos os trabalhadores, os homens puderam dedicar-se a criagao de produtos de uma ordem superior, a industrias mais complexas — é abstrair o antagonismo entre as classes e subverter todo o desen- volvimento histérico. E como se se quisesse afirmar que, como se criavam moréias em aquérios, sob os imperadores romanos, a popu- lagao de Roma estava fartamente alimentada; ao contrario, en- quanto o povo romano nao tinha como comprar pao, aos aris- tocratas sobravam escravos que ofereciam como pasto as moréias. O prego dos viveres aumentou quase continuamente, en- quanto o preco dos objetos manufaturados e de luxo baixou conti- nuamente. Observe-se a propria industria agricola: os produtos mais indispensaveis, como o trigo, a carne, etc., aumentaram de preco, enquanto 0 algodao, 0 aciicar, o café, etc., tém seus precos continuamente reduzidos, numa proporcdo surpreendente. E mes- mo entre os comestiveis propriamente ditos, os de luxo, como as alcachofras, os aspargos, etc., sao hoje relativamente mais baratos que os de primeira necessidade. Atualmente, € mais facil produzir 0 supérfluo que o necessfrio. Finalmente, nas diversas épocas hist6- Ticas, as relacdes reciprocas dos precos n4o sao apenas diferentes, mas opostas. Durante toda a Idade Média, os produtos agricolas eram relativamente mais baratos que os produtos manufaturados; modernamente, eles esto em raz4o inversa. E de se concluir que, desde a Idade Média, a utilidade dos produtos agricolas esté dimi- nuindo? O uso dos produtos € determinado pelas condi¢des sociais em que se encontram os consumidores, e estas condi¢des se fundam no antagonismo entre as classes. (47) |Proudhon, loc. cit., 1, p. 126, ed. de 1923. ] O algodao, a batata e a aguardente s4o produtos de uso muito corrente. As batatas provocaram as escréfulas”; 0 algodao. em larga medida, substituiu 0 linho e a 1a, embora estes Ultimos fossem de uma maior utilidade em muitos casos, ainda que somente do ponto de vista da higiene; enfim, a aguardente impés-se 4 cerveja e ao vinho, mesmo que seu uso como alimento seja geralmente reco- nhecido como venenoso. Durante um século, os governos lutaram inutilmente contra o épio europeu; a economia prevaleceu e ditou suas ordens ao consumo. Por que, ent&o, o algoddo, a batata e a aguardente sao as pedras-angulares da sociedade burguesa? Porque, para produzi-los, é necessério menos trabalho e, conseqiientemente, eles séo mais baratos. Por que o minimo de preco determina o maximo de con- sumo? Seria, por acaso, em fungdo da utilidade absoluta desses produtos, da sua utilidade intrinseca, da sua utilidade enquanto melhor correspondéncia as necessidades do operario como homem, e nao do homem como operario? Nao: é porque, numa sociedade fundada na miséria, os produtos mais miserdveis tém a prerrogativa fatal de servir ao uso da grande maioria. Dizer, pois, que, pelo fato de as coisas mais baratas serem as mais usadas, elas devam ser da maior utilidade significa dizer que 0 uso tao generalizado da aguardente, em fungao dos poucos custos da sua produgao, é a prova mais concludente da sua utilidade; significa dizer ao proletério que a batata é mais sauddvel que a carne: significa aceitar 0 estado de coisas vigente — significa, enfim, fazer, como o Sr. Proudhon, a apologia de uma sociedade sem com- preendé-la. Numa sociedade futura, onde desapareca o antagonismo entre as classes, onde nao existam mais classes, 0 uso nao sera mais determinado pelo minimo do tempo de produc&o: o tempo de pro- dugdo consagrado aos diferentes produtos sera determinado pelo seu grau de utilidade social *. Retornando 4 tese do Sr. Proudhon: se o tempo de trabalho necessario A producdo de um objeto nao expressa o seu grau de (48) { Durante o século XIX, acreditava-se que a escrofulose fosse provocada pela batata; entre 1875 e 1876, Engels ainda escrevia: “Os propagadores da batata, na Europa, nao sabiam que, por meio deste tubérculo, estavam difundindo a escr6- fula” (cfr. Dialética da Natureza, Ed. Leitura, Rio de Janeiro, s/d, p. 224). Poste- riormente, constatou-se que a escrofulose nao resultava do consumo de batata, mas de uma dieta extremamente pobre, A que a batata, pelo seu baixo custo, estava sempre associada. | (49) [No exemplar oferecido por Marx a N. Utina, o adjetivo social aparece riscado, Sobre a fungito do tempo de trabalho numa sociedade de homens livres. cfr. O Capital, ed. cit., livro 1, volume 1, p. 87/88. ] 6S utilidade, o seu valor de troca, determinado previamente pelo tempo de trabalho nele fixade, nao poderia nunca regular a justa relagao entre a oferta e a demanda — ou seja: a relacio de proporciona- lidade no sentido que, agora, o Sr. Proudhon lhe atribui. Nao é€ a venda de um produto qualquer ao pre¢o dos seus custos de produgao que constitui a “‘relacdo de proporcionalidade” entre a oferta ¢ a demanda ou a parte proporcional deste produto face ao conjunto da produc¢ao; sao as variagées da demanda e da oferta que indicam ao produtor em que quantidade é preciso pro- duzir uma certa mercadoria para receber, em troca, pelo menos os custos de produgao. E como estas variacées sao continuas, ha tam- bém um continuo movimento de fluxo e refluxo de capitais nos diferentes ramos da industria. “Somente gracas a estas variagdes € que os capitais s4o apli- cados precisamente na proporgdo requerida, e nao além dela, para a producdo de diferentes mercadorias para as quais existe demanda. Com a alta ou a queda dos pregos, os lucros se elevam ou caem em relacgdo ao seu nivel geral e, em conse- qiiéncia, os capitais sAo atraidos ou desviados do emprego particular que experimenta uma ou outra dessas variacdes. Se observarmos os mercados das grandes cidades, veremos a regu- laridade com que sao abastecides com todos os tipos de merca- dorias, nacionais e estrangeiras, na quantidade requerida, sejam quais forem as alteragdes da demanda por acio do capricho, do gosto ou da variagao da populagao, e sem que ocorra, freqilentemente, abarrotamento por um fornecimento super-abundante ou excessivo encarecimento ocasionado por um fornecimento diminuto em relagao a demanda — deve-se reconhecer que 0 principio que distribui o capital em cada ramo da industria, nas propor¢ées exatamente convenientes, & mais vigoroso do que se supde em geral” *. Se o Sr. Proudhon aceita o valor dos produtos como determi- nados pelo tempo de trabalho, deve aceitar, igualmente, 0 movi- mento oscilatério que, somente ele, faz do trabalho a medida do valor®', Nao ha “‘relac4o de proporcionalidade” ja constituida; ha um movimento constituinte. ($0) Ricardo, loc. cit., 1, p. 105 e 108, (51) [Segundo Engels, Marx modificou a redag&io desta passagem: “...0 movi- mento oscilatério que, somente ele, nas sociedades fundadas nas trocas indivi duais...".} 66 Acabamos de ver em que sentido € correto faler-se da “‘propor- cionalidade’”’ como de uma conseqiiéncia do valor determinado pelo tempo de trabalho. Veremos agora como esta medida pelo tempo, denominada “‘lei da proporcionalidade” pelo Sr. Proudhon, trans- forma-se em lei de desproporcionalidade. Toda inveng&o nova que permite produzir em uma hora o qui antes se produzia em duas deprecia todos os produtos similares que se encontram no mercado. A concorréncia forga 0 produtor a vender 0 produto de duas horas tio barato como o de uma hora. A concorréncia realiza a lei segundo a qual o valor relativo de um produto é determinado pelo tempo de trabalho necessario para produzi-lo. O tempo de trabalho que serve como medida do valor venal transforma-se, assim, em lei de uma depreciagdo continua do trabalho. Diremos mais: haverd depreciag4o nao sé para as merca- dorias langadas no mercado, mas também para os instrumentos de Producdo e para toda a fabrica. Este fato foi assinalado ja por Ricardo: “Aumentando constantemente a facilidade de producdo, di- minuimos constantemente o valor de algumas das coisas pro- duzidas anteriormente”. Sismondi vai mais longe: neste ‘‘valor constituido"’ pelo tempo de trabalho, ele vé a fonte de todas as contradigdes da industria e do comércio modernos: “O valor mercantil € sempre fixado, em ultima anilise, pela quantidade de trabalho necessario para se obter a coisa ava- liada: n&o a quantidade que exige atualmente, mas a quanti- dade que exigiria de hoje em diante, talvez com meios mais aperfeicoados; e esta quantidade, mesmo dificil de ser calcu- lada, € sempre estabelecida com fidelidade pela concorrén- cia... E sobre esta base que se calcula quer a demanda do vendedor, quer a oferta do comprador. O primeiro afirmaré, talvez, que a coisa custou-lhe dez jornadas de trabalho; mas se 0 outro reconhece que, de entéo em diante, ela pode ser obtida com oito jornadas e se a concorréncia demonstra este fato aos dois contratantes, ent&o o valor reduzir-se-A a oito jornadas apenas € o prego do mercado estabelecer-se-4 sobre esta base. E certo que ambos os contratantes tém a nogdo de que a coisa (52) [No original de 1847, homogénes. Mas a tradugAo alema corrige para gleichartige.| (53) Ricardo, loc. cit. II. p. $9. 67 e sem este desejo nao haveria venda; Gti ejada e qui é til, que € dese} ' ao mantém nenhuma relagao com a mas a fixagao do prego Ni utilidade” “*. ante insistir sobre este ponto: 0 que determina o valor Ao de uma coisa, mas 0 minimo de tempo no qual cla pode ser produzida, e este minimo é constatado pela concorréncia. Suponha-se, por um instante, que a concorréncia no exista e que, conseqientemente, nao haja como verificar o minimo de trabalho necessario para a producdo de uma mercadoria. O que acontecera? Bastard aplicar na produgo de um objeto seis horas de trabalho para se ter 0 direito, segundo o Sr. Proudhon, de exigir em troca seis vezes mais do que aquele que, na produ¢ao do mesmo objeto, s6 aplicou uma hora. an Em vez de uma “relagio de proporcionalidade”’, temos uma relacdo de desproporcionalidade — se insistimos em ficar nas rela- gdes, boas ou mas. A depreciagao continua do trabalho é apenas um aspecto, uma conseqiéncia da avaliacao dos artigos pelo tempo de trabalho. O excessivo aumento dos precos, a superprodugao e muitos outros fendmenos de anarquia industrial s4o interpretéveis por este mesmo modo de avaliagao. Mas 0 tempo de trabalho como medida do valor da origem, pelo menos, A variedade proporcional dos produtos, que tanto fas- cina o Sr, Proudhon? Muito ao contrario: 0 monopdlio, com toda a sua monotonia, vem, seguindo-se a ela, invadir o mundo dos produtos, do mesmo modo como, a vista de todos, invadiu o mundo dos instrumentos de produgao. Apenas alguns ramos industriais, como a industria algo- doeira, podem fazer progressos muito rpidos. A conseqiiéncia na- tural destes progressos é que os produtos da manufatura algodoeira, por exemplo, tém os seus precos rapidamente reduzidos; mas, 4 medida que o prego do algodao cai, o do linho, comparativamente, deve elevar-se. O que resultar4 disto? O linho serA substituido pelo algodio. Deste modo, o linho foi abandonado em quase toda a América do Norte. E aleangamos, em lugar da variedade propor- cional dos produtos, o império do algodao. que cute ne Ga "relagao de proporcionalidade? Nada mais doriay se produzisse iomem honesto, que gostaria que as merca- didas a um prego hone: Prsporetes tais que pudessem ser ven- filantropos emre esto. Os bons burgueses e os economistas " » gostaram de formular este desejo inocente. E import: nao é 0 tempo de produg: (54) Sismondi, loc. cit., I, p. 267, Deixemos falar 0 velho Boisguillebert: “O prego dos artigos deve ser sempre proporcionado, uma ver que s6 este acordo pode permitir-lhes existir em conjunto, para se trocarem entre si a todo momento leis a permutabili- dade continua do Sr. Proudhon] e se reproduzirem Tecipro- camente... J@ que a riqueza € apenas este continuo intercam- bio entre homem e homem, entre profiss4o e profissdo, etc., constitui uma espantosa cegueira procurar a causa da miséria fora do fim de um comércio semelhante, ocasionada pela desordem das propor¢des nos pregos’’ Ss. Oucamos também um economista moderno: “Uma grande lei que se deve aplicar 4 produgo ¢ a lei da proporcionalidade (the law of proportion), que € a unica que pode preservar a continuidade do valor... O equivalente deve ser garantido... Todas as nagdes tentaram, em diversas épo- cas, através de numerosos regulamentos e restricdes comer- ciais, realizar até um certo ponto esta lei da proporciona- lidade; mas 0 egoismo, inerente a natureza do homem, levou-o a subverter todo este regime regulamentar, Uma produgao proporcionada (proporcionate production) constitui a reali- zacio da verdade plena da ciéncia da economia social” *. Fuit Troja!*’. Esta justa propor¢ao entre a oferta e a demanda, que volta a ser objeto de tantos votos, ha muito que deixou de existir, tornou-se uma velharia. Ela s6 foi possivel em épocas nas quais os meios de produgao eram restritos, nas quais a troca se operava em limites extremamente pequenos. Com o aparecimento da grande industria, esta justa proporgao teve de acabar, € a pro- dugiio é fatalmente obrigada a passar, numa sucessio perpétua. pelas vicissitudes de prosperidade, depressdo, crise, estagnagio, nova prosperidade e assim por diante. (55) Dissertation sur la Nature des Rishesses...| Dissertagio sobre a Naturesa das Riquezas...}, &4. Daire, p. 405 e 408. {Marx cite segundo a antologis Eeono- tmistes-Financiers du XVII Sigele. Précedés de Notices Historiques sur Cheque Aw, feur. et Accompagnés de Commentaires et de Notes Explicatives par Eugene ait (Economistas-Financistas do Século XVII. Com Noticias Hisiéricas sobre Ce Autor e Comentérios ¢ Notas Explicativas de Eugene Daire), Paris, 143.) (56) W. Atkinson, Principles of Political Economy... | Princlpios de Econom Politica...|, Londres, 1840, p. 170¢ 195. (87) [Tréia j& no existe!] 69 Aqueles que. como Sismondi, querem retornar a justa propor- cionalidade da produgdo conservando as bases atuais da sociedade sio reacionérios porque, para serem conseqiientes, deveriam tam- bém pretender o restabelecimento de todas as outras condi¢gdes da industria dos tempos passados. O que mantinha a produgdo em proporgdes justas ou quase justas? Era a demanda, que determinava a oferta ¢ a precedia. A producao, passo a passo, acompanhava 0 consumo. A grande indus- tria, forgada, pelos préprios instrumentos de que dispde, a produzir sempre numa escala cada vez maior, nao pode mais esperar pela demanda. A produgio precede o consumo, a oferta pressiona a demanda. Na sociedade atual, na industria fundada nas trocas indivi- duais, a anarquia da producao, que € a fonte de tantas misérias, é, ao mesmo tempo, a fonte de todo progresso. Assim, das duas, uma: — ou se deseja a justa proporcao dos séculos passados com os meios de produg&o da nossa época, e se é simultaneamente reaciondrio ¢ utopista, — ou se deseja 0 progresso sem anarquia e, neste caso, para con- servar as forcas produtivas, se é obrigado a abandonar as trocas individuais. As trocas individuais s6 so compativeis com a pequena indus- tria dos séculos passados, com o seu corolario da “‘justa propor¢ao", ou com a grande industria atual, mas com todo o seu cortejo de miséria e anarquia De tudo 0 que dissemos, constata-se que a determinagao do valor pelo tempo de trabalho — ou seja: a formula que o Sr. Proudhon nos oferece como a formula regeneradora do futuro — ndo 6 mais que a expresso cientifica das relagdes econdmicas da sociedade atual, como, bem antes do Sr. Proudhon, Ricardo de- monstrou-o clara e nitidamente. Mas, pelo menos, nao cabe ao Sr. Proudhon a aplicagao “igualitdria’’ desta formula? N&o é cle o primeiro a imaginar a reforma da sociedade transformando todos os homens em traba- Thadores imediatos, trocando iguais quantidades de trabalho? Nao tem o direito de censurar aos comunistas — essa gente desprovida de qualquer conhecimento de economia politica, esses ‘‘homens obsti- nadamente idjotas”, esses “‘sonhadores paradisiacos’’ — o n@o te- rem encontrado, antes dele, esta ‘‘solu¢ao do problema do prole- tariado’’? Qualquer pessoa minimamente familiarizada com o movi- mento da economia politica na Inglaterra n&o ignora que quase todos os socialistas deste pais, em épocas diferentes, propuseram 4 70 aplicag4o igualitaria da teoria ricardiana. Poderiamos citar ao Sr. Proudhon: a Economia Polttica de Hodgskin, 1827%; William Thompson: An Inquiry into the Principles to the Distribution of Wealth, most Conducive to Human Happiness Investigagdo sobre os Princtpios de DistribuicGo da Riqueza, Melhor Conducentes a Felicidade Humana}, 1824; T. R. Edmonds: Practical, Moral and Political Economy (Economia Prética, Moral e Politica], 1828; etc., etc. — e quatro paginas de erc. Contentar-nos-emos em dar a palavra a um comunista inglés, o Sr. Bray. Citaremos as passagens decisivas da sua notAvel obra: Labour's Wrongs and Labour's Re- medy | Sofrimentos da Classe Operaria e sua Solugao], Leeds, 1839; vamos nos deter bastante sobre este livro porque, primeiramente, o Sr. Bray é ainda pouco conhecido na Franca e, depois, porque acreditamos encontrar nele a chave das obras passadas, presentes e futuras do Sr. Proudhon. “O Gnico meio para chegar a verdade consiste em abordar frontalmente os primeiros principios. [...] Retornemos dire tamente A fonte de que derivam os préprios governos. [...] Indo assim a origem da coisa, verificaremos que toda forma de governo, toda injustica social e governamental provém do sistema social hoje vigente — da institui¢do da propriedade tal como existe atualmente (the institution of property as it at present exists) ¢ que, portanto, para acabar definitivamente com as injusticas e misérias atuais, é necessario subverter inteiramente 0 estado contempordaneo da sociedade... Ata- cando os economistas em seu préprio terreno e com as suas préprias armas, evitaremos a absurda tagarelice sobre os visio- nérios ¢ 0s tedricos, a que sempre estdo dispostos a se entre- gar. [...] Exceto negando ou desaprovando as verdades e os Pprincipios reconhecidos, sobre os quais fundam os seus pré- prios argumentos, os economistas n4o poderao rejeitar as conclusées a que chegamos por este método...°. Somente o trabalho cria valor (It is labour alone wich bestows value)... Cada homem tem um direito indubit4vel a tudo o que seu trabalho honesto pode lhe proporcionar. Apropriando-se assim dos frutos do scu trabalho, ele nio comete nenhuma injustiga para com os outros homens, porque nado usurpa de ninguém o direito de fazer 0 mesmo... Todas as idéias de (S8) [Na edigio de 1847, aparece Hopkins: o erro foi aproveitado por Menger em 1885, até que Engels 0 corrige — cfr. 0 seu preficio a edigdo de 1892. Contudo, & preciso assinalar a existéncia de um Thomas Hopkins, cuja obra Marx conhecia, | (89) Bray. Labour's Wrongs and Labour's Remedy, Leeds, 1839, p. 17 ¢ 41. 71 2 superioridade, de patrao ¢ assalariado, originam-se da negli- géncia destes primeiros principios e porque, conseqiente- mente, a desigualdade se introduziu na posse (and to the consequent rise of inequality of possessions). Enquanto se mantiver esta desigualdade, sera impossivel erradicar tais idéias ou subverter as instituicgdes nela fundadas. Até hoje, sempre se teve a initil esperanca de remediar um estado de coisas contrario A natureza, tal como o que nos domina agora, destruindo a desigualdade existente e deixando subsistir a causa da desigualdade: porém, nés logo demonstraremos que © governo nao é uma causa, mas um efeito, que ele nao cria, mas é criado — que, numa palavra, ele € 0 resultado da desigualdade na posse (the offspring of inequality of posses- sions), e que esta se vincula, inseparavelmente, ao sistema social atual. O sistema da igualdade tem a seu favor ndo apenas grandes vantagens, mas ainda a estrita justica... Cada homem 6 um elo, e um elo indispensdvel, na cadeia de efeitos que parte de uma idéia para conduzir, talvez, 4 produc4o de uma peca de tecido. Por isto, dado que os nossos gostos pelas diferentes profissdes nao séo idénticos, no se pode concluir que o tra- balho de um deva ser melhor retribuido que o de outro. O inventor receberé sempre, além da sua justa recompensa em dinheiro, 0 tributo da nossa admiracao, que somente o génio pode merecer de nés...°". Pela natureza mesma do trabalho e da troca, a estrita justica exige que todos aqueles que trocam obtenham beneficios nao apenas muruos, mas iguais (all exchangers should be not only mutually but they should likewise be equally benefitted). S6 existem duas coisas que os homens podem trocar entre si: 0 trabalho e o produto do trabalho. Se as trocas se operassem segundo um sistema equitativo, 9 valor de todos os artigos seria determinado pelos seus custos de produgao completos e valores iguais sempre se trocariam por valores iguais (If a just system of exchanges were acted upon, the value of all articles would be determined by the entire cost of production, and equal values should always exchange for equal values). Se, por exemplo, um chapeleiro investe uma jornada para fazer (60) Idem. p. 33 € 36/37. (61) Idem, p. 48. um chapéu e um sapateiro o mesmo tempo para fabricar um par de sapatos (supondo que a matéria-prima que empregam tenha igual valor) e se trocam estes artigos entre si, o beneficio que obtém é, simultaneamente, mituo e igual. A vantagem alcancada por cada uma das partes nao pode constituir uma desvantagem para a outra, j que cada qual forneceu a mesma quantidade de trabalho e que os materiais de que se serviram eram de igual valor. Mas se o chapeleiro, mantidas as con- digdes acima expostas, obtivesse dois pares de sapatos contra um chapéu, é evidente que a troca seria injusta. O chapeleiro usurparia ao sapateiro uma jornada de trabalho; e se agisse assim em todas as suas trocas, receberia pelo trabalho de meio ano © produto de um ano inteiro de outra pessoa. [...} Até aqui, continuamos sempre com este sistema de troca sobera- namente injusto: 0s operdrios forneceram ao capitalista o trabalho de um ano inteiro em troca do valor de meio ano (the workmen have given the capitalist the labour of a whole year, in exchange for the value of only half a year) — disto, e n4o de uma suposta desigualdade entre as forgas fisicas e intelectuais dos individuos, € que provém a desigualdade de riqueza e poder. A desigualdade nas trocas, a diferenca de precos nas compras e vendas s6 podem existir enquanto os capitalistas continuam capitalistas e os operarios permanecem oper4rios — uns, uma classe de tiranos; outros, uma classe de escra- vos... Esta transagdo prova claramente, portanto, que os capi- talistas e os proprietarios apenas oferecem ao operdrio, pelo seu trabalho de uma semana, uma parte da riqueza que obtiveram dele na semana anterior; isto or alguma coisa, nao lhe dao nada (nothing for something)... A transac&o entre o trabalhador e o capitalista € uma verdadeira farsa: de fato, em muitas circunstancias, ela no passa de um roubo vergo- nhoso, embora legal (The whole transaction between the pro- ducer and the capitalist is a mere farce: it is, in fact, in thousands of instances, no other than a barefaced though legal robbery). O lucro do empres4rio jamais deixara de ser uma perda para 0 operdrio — até que as trocas entre as partes sejam iguais. E as trocas ndo podem ser iguais enquanto a sociedade estiver dividida em capitalistas e produtores, estes vivendo do seu trabalho e aqueles se enchendo com o lucro deste trabalho. (62) Idem, p. 45, 48, 49 ¢ SO. 73 74 E claro que, estabelecendo tal ou qual forma de governo, pregando a moral e 0 amor fraterno... a reciprocidade conti- nuaré incompativel com a desigualdade nas trocas: esta, fonte da desigualdade das posses, é 0 inimigo secreto que nos devora (No reciprocity can exist where there are unequal exchanges. Inequality of exchanges, as being the cause of inequality of Possessions, is the secret enerny that devours us)®. A consideragao do objetivo ¢ da finalidade da sociedade auto- riza-me a concluir que nao s6 todos os homens devem tra- balhar e, assim, poder trocar como, também, que valores iguais devem trocar-se por valores iguais. Ademais, como o lucro de um nao deve ser a perda para 0 outro, o valor deve se determinar pelos custos de producdo. Entretanto, vimos que, sob o regime social atual, [...] 0 lucro do capitalista e do homem rico é sempre perda para o operario — e que este resultado é uma conseqiéncia inevitavel, com o pobre perma- necendo inteiramente abandonado, a mercé do rico, sob qual- quer forma de governo, enquanto subsistir a desigualdade nas trocas — e que a igualdade nas trocas s6 pode ser assegurada por um regime social que reconheca a universalidade do tra- balho... A igualdade nas trocas transferiria gradualmente a Tiqueza das maos dos capitalistas atuais para as das classes operarias™. Enquanto se mantiver em vigor este sistema de desigualdade nas trocas, os produtores serdo sempre t&o pobres, tdo igno- Tantes, tao sobrecarregados de trabalho como o sido hoje, mesmo que sejam abolidas todas as taxas, todos os impostos governamentais... Somente uma transformacao total de sis- tema, a introdug&o da igualdade no trabalho ¢ nas trocas, pode melhorar este estado de coisas e assegurar aos homens a verdadeira igualdade de direitos... Os produtores s6 tém a fazer um esforgo — e os esforcos para a sua salvag4o devem ser realizados por eles mesmos — e as suas cadeias serao rom- pidas para sempre... Como objetivo, a igualdade politica é um erro; mesmo como meio, também € um erro (As an end, the political equality is there a failure; as a means, also, it is there a failure)®. (63) Idem, p. 51/52. (64) Idem, p. 53 € SS. (65) Idem, p. 67, 88/89 ¢ 94 Com a igualdade nas trocas, 0 lucro de um nao pode ser a perda de outro: porque toda troca n&o é mais que uma simples transferéncia de trabalho e de riqueza, nao exige nenhum sacrificio. Assim, sob um sistema social fundado na igualdade nas trocas, 0 produtor poderé também alcancar a riqueza através das suaseconomias” ; mas a sua riqueza sera apenas 0 produto acumulado do seu préprio trabalho. Ele podera tro- car a sua riqueza ou dof-la a outrem, mas ser-lhe-4 impossivel continuar rico, por um periodo mais longo, depois de aban- donar o trabalho. Dada a igualdade nas trocas, a riqueza perde o seu poder atual de renovar-se e reproduzir-se. por assim dizer, gracas a si mesma; ela ndo poderd mais suprir 0 vazio gerado pelo consumo porque, exceto quando reprodu- zida pelo trabalho, a riqueza consumida se perde definitiva- mente. O que hoje denominamos Iucros e juros no poder& existir sob o regime da igualdade na troca. Entao, o produtor c o distribuidor serao igualmente recompensados e a soma total do seu trabalho é que servira para determinar o valor de todo artigo criado e posto a disposigao do consumidor... O principio da igualdade nas trocas deve, portanto, pela sua propria natureza, conduzir ao trabalho universal””® . Depois de refutar as objegdes dos economistas contra 0 comu- nismo, 0 Sr. Bray prossegue: “Se uma transformacdo de carater é indispensAvel para fazer triunfar um sistema social de comunidade na sua forma perfei- ta; e se, ademais, o regime social atual nado apresenta nem as circunstancias nem as facilidades para a consecucao daquela transformag4o e para preparar os homens para o estado me- Ihor que todos desejamos, é evidente que as coisas devem, necessariamente, permanecer como est4o, a menos que se descubra e aplique um termo social preparat6rio — um movi- mento que tanto participe do sistema atual como do sistema futuro (o sistema da comunidade) —, um estagio intermédio a que a sociedade possa chegar, com todos os seus excessos ¢ loucuras, e do qual possa sair em seguida, rica de qualidades e (66) [A partir deste trecho, ¢ até o pardgrafo sobre a concorréncia ¢ 0 mono- Pélio, encontram-se, no exemplar da Miséria da Filosofia que pertenceu a Proudhon, vérias anotagdes marginais. Ao lado desta citagdo de Bray, ele escreveu: “Sim”. | (67) Bray, loc. cit., p. 109/110, 75, atributos que sAo as condigtes vitais do sistema da comu- nidade. Todo este movimento exigiria apenas a cooperacdo na sua forma mais simples... Os custos de produg&o determinariam, em todas as circunstancias, 0 valor do produto, e valores iguais sempre se trocariam por valores iguais. Se, de duas pessoas, uma houvesse trabalhado uma semana inteira e a outra meia semana, a primeira receberia o dobro da remune- ragao da segunda; mas este excedente de pagamento nao seria feito a uma as expensas da outra: a perda de uma nao redun- daria em ganho para a outra. Cada pessoa trocaria 0 saldrio que recebeu individualmente por objetos de valor idéntico ao seu salario e, em nenhum caso, 0 lucro realizado por um homem ou por uma industria constituiria um prejuizo para outro homem ou para outro ramo industrial. O trabalho de cada individuo seria a unica medida dos seus lucros e dos seus prejuizos”. Através de escrit6rios (boards of trade), centrais e locais, determinar-se-ia a quantidade dos diferentes objetos exigidos pelo consumoe 0 valor relativo de cada objeto em comparacao com os outros (o nimero de operérios a empregar nos dife- rentes ramos de trabalho) — em suma: tudo o que se relaciona a producao e 2 distribuigao social. Estas operagdes seriam realizadas, num pais, com a mesma rapidez e facilidade com que. hoje, se fazem numa empresa particular. Os individuos se agrupariam em familias, as familias em comunas, como no regime atual... Sequer se aboliria a distribuigao da popu- lagdo entre a cidade e 0 campo, por pior que ela seja... Nesta associa¢4o, cada individuo continuaria a desfrutar da liber- dade, que possui hoje, de acumular como melhor lhe parecer e de utilizar como quiser esta acumulacd4o... Nossa sociedade sera, por assim dizer, uma grande sociedade por acdes, com- posta por um mimero infinito de menores sociedades por agdes que trabalham, produzem e€ trocam seus produtos a base da mais perfeita igualdade... Nosso novo sistema de sociedade por acdes, que nao passa de uma concess4o a sociedade atual para chegar ao comunismo™ e que se estabelece de forma a permitir a coexisténcia da propriedade individual dos pro- 16 (68) Idem, p. 134. (69) Idem, p. 188 € 160. (70) [No original inglés: community of possessions.| dutos com a propriedade em comum das forcas produtivas, subordina a sorte de cada individuo a sua propria atividade e Ihe concede uma parte igual em todas as vantagens propi- ciadas pela natureza ¢ pelo progresso das artes. Por isto, este sistema pode aplicar-se a sociedade tal como existe e prepara- la para ulteriores transformacdes'"”'. Poucas palavras nos serdo suficientes para responder ao Sr. Bray, que, independentemente da nossa vontade. suplantou o Sr. Proudhon — com a seguinte diferenga: longe de pretender proferir a Ultima palavra da humanidade, o Sr. Bray apenas propde as me- didas que lhe parecem boas para uma época de transicAo, entre a sociedade atual e o regime da comunidade. Uma hora de trabalho de Pedro se troca por uma hora de trabalho de Paulo. Este € o axioma fundamental do Sr. Bray. Suponhamos que Pedro tenha a seu favor doze horas de tra- balho ¢ Paulo apenas seis: neste caso, Pedro sé poderd fazer com Paulo uma troca de seis por seis. Conseqientemente, restam a Pedro seis horas de trabalho. O que ha de fazer com elas? Ou nao far4 nada (0 que significa que ter trabalhado inutil- mente), ou deixaré de trabalhar outras scis horas para restabelecer 0 equilibrio ou, entao — e esta é a sua Ultima alternativa —, daraa Paulo estas seis horas, como acréscimo, j4 que nada pode fazer com elas. Assim, no final das contas, o que Pedro ganharé comparati- vamente a Paulo? Nao se trata de horas de trabalho, mas de lazer: ganhou horas de écio — seis horas em que ndo trabalhar4. Mas, para que este novo direito ao écio ndo seja apenas utilizado, mas também apreciado, na nova sociedade, ¢ preciso que esta encontre a sua mais alta felicidade na preguica, € preciso que o trabalho se lhe apareca como um castigo do qual ela deva livrar-se a qualquer prego. E, voltando ao nosso exemplo: se, ao menos, as seis horas de lazer que Pedro teve a mais sobre Paulo fossem um ganho real! Mas nao: Paulo, comegando por trabalhar seis horas, alcanga, através de um trabalho regular e regrado, o mesmo resultado que Pedro sé obtém comegando com um excesso de trabalho. Todos desejar4o ser Paulo: haver& concorréncia para conquistar o lugar de Paulo — concor- réncia pela preguica. Pois bem — o que nos ofereceu a troca de quantidades iguais de trabalho? SuperproducAo, ‘depreciagao, excesso de trabalho seguido de inatividade, enfim: as relagdes econémicas tais como as (71) Bray, loc. cit.. p. 162, 163, 168, 170 € 194. 77 vemos constitufdas na sociedade atual, exceto a concorréncia pelo trabalho. Mas nAo: nbs nos enganamos. Haverd ainda um expediente que poderd salvar a sociedade nova, a sociedade dos Pedro e dos Paulo. Pedro consumir4 sozinho 0 produto das seis horas de tra- balho que lhe restam. E a partir do momento em que ndo precisa trocar por ter produzido, ele j4 nao precisa produzir para trocar: toda a suposic&o de uma sociedade fundada na troca e na divis&o do trabalho cai por terra. Salva-se a igualdade das trocas porque as trocas deixam de existir: Pedro e Paulo alcangam a condig&o de Robinson. Portanto, se se supde todos os membros da sociedade como trabalhadores imediatos, a troca de quantidades iguais de horas de trabalho s6 é possivel se se convenciona, previamente, o numero de horas que serA necessArio empregar na producao material. Mas uma semelhante convengao nega a troca individual’. Chegamos também & mesma conseqiéncia se partirmos n&o mais da distribuicao dos produtos criados, mas do ato da producao. Na grande industria, Pedro nao tem liberdade para fixar por sua conta o tempo do seu trabalho, j4 que este ndo € nada sem o concurso de todos os Pedro e Paulo que formam a fAbrica. FE isto que esclarece muito bem a tenaz resist€ncia que os fabricantes ingleses opuseram a /ei das dez horas: eles sabiam perfeitamente que uma reducao de duas horas na jornada de trabalho das mulheres e das criangas” implicaria logo uma redug4o do tempo de trabalho dos homens adultos. A natureza mesma da grande industria exige que 0 tempo de trabalho seja igual para todos. O que hoje é 0 resultado do capital e da concorréncia mitua dos oper4rios, seré amanh& — se se abolir a relagdo entre o trabalho e o capital — a conseqiéncia de uma convenc4o baseada na relacao entre a soma das forcas produ- tivas ¢ a soma das necessidades existentes “. Semelhante convencao, porém, é a condenacdo da troca indi- vidual — e assim chegamos ao nosso primeiro resultado. (72) (Marx retoma esta questho na sua Critica a0 Programa de Gotha, ‘quando menciona a primeira fase da sociedade comunista.] (73) 1A lei da jornada de trabalho das dez horas, que incidia apenas sobre as mulheres ¢ as criancas, foi promulgada pelo Parlamento inglés em 8 de junho de 1847. Muitos fabricantes, porém, ndo a cumpriam. | (74) (Mars retoma, aqui, a argumentagho desenvolvida por Engels em 1843/ 1844; ‘Numa situacdo digna da humanidade... a comunidade teré de calcular aquilo que pode fabricar com os meios de que dispde ¢, segundo a relacdo desta forgs produtiva com # massa dos consumidores, ter que determinar em que medida deve aumenur ou reduzir @ produgio..." (ctr. “Esbogo de uma Critica da Economia Polltica”, loc. eed. cit., p. 20). 78 A principio, nio h& troca de produtos: h& troca de trabalhos que concorrem para a producao. £ do modo de troca das forgas produtivas que depende o modo de troca dos produtos. Em geral, a forma de troca dos produtos corresponde a forma da producin. Se se modifica esta Ultima, a primeira, em conseqGéncia, seri modi- ficada. Por isto, vemes, na historia da sociedade, o modo de troca dos produtos ser regulado pelo modo da sua producio. A troca individual corresponde, ela também, a um modo de produgao deter- minado que, por sua vez, responde ao antagonismo entre as clas- ses. Nao h& troca individual, pois, sem o antagonismo entre clas- ses. As consciéncias honestas, todavia, recusam esta evidéncia. O ponto de vista burgués sé pode perceber neste antagonismo uma relagdo de harmonia e de justiga eterna, que impede as pessoas afirmarem seus interesses prejudicando outras. Para o burgués, a troca individual pode subsistir sem o antagonismo entre classes — para ele, trata-se de coisas totalmente desvinculadas. A troca indi- vidual, tal como a representa o burgués, nao se parece em nada com a troca individual tal como é praticada. O Sr. Bray faz da ilusdo do honesto burgués o ideal que pretenderia realizar. Depurando a troca individual, expurgando-a de todos os seus componentes antagénicos, ele acredita encontrar uma relac&o “igualitéria” que desejaria introduzir na sociedade. O Sr. Bray nao compreende que esta relacao igualitaria, este ideal corretivo que gostaria de aplicar a0 mundo, é, em si mesmo, um reflexo do mundo atual e que, conseqiientemente, € impossivel reconstituir a sociedade sobre uma base que nao passa deumasombra embelezada de si mesma. A medida que a sombra torna-se corpo, percebe-se que este, longe de ser a transfigurac4o sonhada, é o corpo atual da sociedade ”*. (75) Como qualquer teoria, a do Sr. Bray encontrou os seus partidhrios, que se deixaram enganar pelas aparéncias. Em Londres, Sheffield, Leeds ¢ muitas outras cidades inglesas criaram-se equitable-labour-exchange-bazars |/ojas para a justa troca de produtos do trabalho}: depois de absorverem enormes capitais, esses lojas faliram escandalosamente. As pessoas decepcionaram-se definitivamente com elas — este € um aviso ao Sr. Proudhon! (Para a edic&o alems de 1885, Engels redigiu a seguinte nota: “Sabe-se que Proudhon no tomou a sério esta advertéacia. Em 1849, ele mesmo tentou a experiéncia de um novo banco de trocas em Paris, que faliu antes mesmo de iniciar suas operacdes. As perseguicdes judicifrias a Proudhon encobriram esta faléncia’’. A instituicao em tela foi fundada em Saint-Dennis. em janeiro de 1849; as perseguigdes a Proudhon, que Ihe custaram trés anos de prisho. deveram-se aos seus artigos, através de O Povo, contra o Principe Presidente. O primeiro banco de trocas foi criado em Londres, em 1830, inspirado nas idéias de Robert Owen. | n § 3. Aplicagao da lei das proporcionalidades dos valores a) A moeda “O ouro e a prata sAo as primeiras mercadorias cujo valor chegou a sua constitui¢ao” ° Assim, 0 ouro e a prata sao as primeiras aplicacdes do ‘‘valor constituido’’... pelo Sr. Proudhon. E como o Sr. Proudhon constitui os valores dos produtos determinando-os pela quantidade compa- rativa de trabalho neles fixado, a unica coisa que tinha a fazer era demonstrar que as variapdes ocorridas no valor do ouro e da prata explicam-se sempre pelas variagdes do tempo de trabalho requerido para produzi-los. Mas o Sr. Proudhon nao se preocupa com isto: nao fala do ouro e da prata com mercadoria, fala deles como moeda. Toda a sua logica, se € que ha alguma légica, consiste em escamotear a qualidade que 0 ouro e a prata possuem de servir como moeda, em beneficio de todas as mercadorias que tém a qualidade de serem avaliadas pelo tempo de trabalho. Nesta prestidigitacao, definitivamente, ha mais ingenuidade que malicia. Um produto util, sendo avaliado pelo tempo de trabalho necess4rio 4 sua producdo, é sempre aceitavel em troca. Exclama o Sr. Proudhon: provam-no 0 ouro e a prata, que se encontram nas minhas condigées exigidas de “‘permutabilidade’’. O ouro e a prata, pois, sao o valor chegado ao estado de constituigao, s4o a encar- nag&o da idéia do Sr. Proudhon. Ele n4o poderia ser mais feliz na escolha do seu exemplo. O ouroe a prata, além da sua qualidade de mercadoria, avaliada, como qualquer outra, pelo tempo de trabalho, possuem a qualidade de agente universal da troca — so moeda. Tomando agora o ouro e a prata como uma aplicacao do ‘‘valor constitutdo" pelo tempo de trabalho, nada é mais fAcil de provar que toda mercadoria cujo valor se constitui pelo tempo de trabalho sera sempre permutavel, sera sempre moeda. Uma questao muito simples se apresenta ao espirito do Sr. Proudhon: por que o ouro e a prata tém o privilégio de serem o tipo do “valor constituido’"'? “A funcao particular que 0 uso conferiu aos metais preciosos de servirem de agente ao comércio € puramente convencional e qualquer outra mercadoria poderia, talvez menos comoda- mente, mas de um modo igualmente auténtico, desempenhar este papel — os economistas 0 reconhecem e cita-se mais de um exemplo. EntAo, qual a raz4o desta preferéncia geral- (76) |Proudhon, loc. cit., 1, p- 69-] mente dada aos metais para servirem de moeda e como se explica esta especialidade das fungdes do dinheiro, sem ana- loga na economia politica?... Ora, & possivel restabelecer a série da qual a moeda parece ter sido destacada e, conseqien- temente, reconduzi-la ao seu verdadeiro principio?” ~ Colocando a questdo nestes termos, o Sr. Proudhon ja supos a moeda. A primeira questdo que ele deveria colocar-se é saber por que, nas trocas, tais como elas se constituem atualmente, foi preciso individualizar, por assim dizer, o valor permutavel, criando um agente especial de troca. A moeda nao é uma coisa, é uma relacao social. Por que a relagao da moeda é uma relagdo de producao, como qualquer outra relacdo econédmica, como a divisdo do tra- balho, etc.? Se o Sr. Proudhon compreendesse bem esta rela¢4o, nao teria visto na moeda uma excegdo, um elemento destacado de uma série desconhecida ou a ser reencontrada. Ao contr4rio, ele teria reconhecido que esta relagdo é um elo e, como tal, intimamente ligada a todo o encadeamento das outras relacdes econdmicas, e que ela corresponde a um modo de producio determinado, tanto quanto a troca individual. Mas o que faz ele? Comega por destacar a moeda do conjunto do modo de produ¢4o atual para, mais tarde, torna-la 0 primeiro elemento de uma série imagindria, de uma série a ser reencontrada. Uma vez reconhecida a necessidade de um agente particular de troca, ou seja: a necessidade da moeda, sé resta, entdo, explicar por que esta fungdo particular é conferida ao ouro e a prata, de preferéncia a qualquer outra mercadoria. Esta é uma quest4o secun- daria, que se explica no pelo encadeamento das relagdes de produ- g40, mas pelas qualidades especificas inerentes ao ouro e a prata enquanto matérias. Se. depois de tudo isto, os economistas. neste caso, “‘colocaram-se fora do dominio da ciéncia, se se voltaram para a fisica, a mecanica, a histéria, etc.”, como os censura o Sr. Proudhon, eles apenas fizeram o que deviam fazer. A questo jA nao pertence ao dominio da economia politica. “O que nenhum dos economistas viu ou compreendeu é a razdo econdmica que determinou, em favor dos metais pre- ciosos, o privilégio de que gozam’””*. A razao econdmica que, certamente, ninguém viu ou com- preendeu, o Sr. Proudhon viu, compreendeu e legou 4 posteridade. (77) | Idem, I, p. 68/69.) (78) | Jdem, I, p. 09.1 81 “Ora, o que ninguém observou € que, de todas as merca- dorias, o ouro e a prata sdo as primeiras cujo valor chegou a constituig&o. No periodo patriarcal, o ouro e a prata ainda se negociavam e se trocavam em lingotes, mas ja com uma visivel tendéncia a dominacaéo e uma marcada preferéncia. Pouco a pouco. os soberanos se apoderaram desses metais e lhes apu- seram a sua chancela; e desta consagrac4o soberana nasceu a moeda, ou seja: a mercadoria por exceléncia, aquela que, apesar de todas as perturbacdes do comércio, conserva um valor proporcional determinado e se faz aceitar em todos os pagamentos... O traco distintivo do ouro ¢ da prata decorre, Trepito-o, de que, gracas as suas propriedades metélicas, as dificuldades da sua producdo e, sobretudo, a intervenc4o da autoridade publica, eles conquistaram logo, como mercado- Tias, a solidez e a autenticidade”” . Afirmar que, de todas as mercadorias, 0 ouro e a prata sdo as. primeiras cujo valor chegou a constituigao, € afirmar, como se depreende de todo o precedente, que 0 ouro e a prata sao as Primeiras mercadorias que chegaram ao estado de moeda. Esta é a grande revelacdo do Sr. Proudhon, a grande verdade que escapou a todos os que o antecederam. Se, com estas palavras, o Sr. Proudhon quis dizer que 0 ouro e a prata so as mercadorias para cuja producdo primeiro se conheceu o tempo necess4rio, tratar-se-ia de uma dessas suposi¢des com que sempre esta pronto a gratificar os seus leitores. Se quiséssemos nos ater a esta erudic&o patriarcal, diriamos ao Sr. Proudhon que o tempo requerido para produzir os objetos de primeira necessidade, como o ferro, etc., foi conhecido antes. Dispens&-lo-emos do arco classico de Adam Smith®. Mas, depois de tudo isto, como o Sr. Proudhon pode ainda falar da constituigao de um valor, j4 que este jamais se constitui por si s6? Ele n&o se constitui pelo tempo requerido para produzi-lo isoladamente, constitui-se pela relagao com a quota de todos os outros produtos que podem ser criados no mesmo tempo. Assim, a (79) (Idem, I, p. 119/120, ed. de 1923.] (80) |Aqui, Marx alude a seguinte passagem da obra de Smith, A Riqueza das Napées: "Numa tribo de cagadores ou de pastores, um individuo faz arcos ¢ flechas com mais rapidez ¢ agilidade que um outro. Trocaré, freqdentemente, estes objetos com seus companheiros, contra caga ou gado, ¢ logo perceber& que, por este meio, poder& obter mais caga ou gado do que se dedicando a cagar. Assim, calculando seu lucro, ele torna a fabricacho de arcos e fechas & sua principal ocupaco, transfor- mando-se numa esptcie de armeiro.} 82 constituigao do valor do ouro e da prata supde a consttuido j& alcancada do valor de um grande nimero de outros produtos. Portanto, nao é a mercadoria que chegou, no ouro ¢ na prats, ao estado de “valor constituido"; € 0 “valor constituido” do Sr. Proudhon que, no ouro e na prata, chegou ao estado de moeda. Examinemos agora, mais de perto, essas razdes econémicas que, de acordo com o Sr. Proudhon, conferiram ao ouro e A pratao privilégio de serem erigidos em mocda mais cedo do que todos ov outros produtos, passando pelo estado constitutivo do valor. Estas razdes econdmicas sdo: a ‘‘visivel tendéncia a domi- nagdo", a ‘‘marcada preferéncia™ j4 no “periodo patriarcal” ¢ ou- tros circunléquios sobre o mesmo fato, que aumentam a dificul- dade. pois que multiplicam o fato multiplicando os incidentes que 0 Sr. Proudhon aduz para explic4-lo. Mas o Sr. Proudhon ainda nao esgotou todas as suas razdes pretensamente econdmicas. Eis uma, de uma forga soberana, irresistivel: “E da consagracdo soberana que nasce a moeda: os soberanos se apoderam do ouro e da prata e lhes apdem a sua chan- cela’, Assim. 0 arbitrio dos soberanos 6, para o Sr. Proudhon. a razdo suprema em economia politica! De fato, € preciso estar desprovido de todo conhecimento historico para ignorar que os soberanos, em todos os tempos, sub- meteram-se As condigdes econémicas, sem jamais thes impor a sua lei. A legislagao, tanto politica como civil, apenas enuncia, verbaliza as exigéncias das relagdes econémicas. Foi o soberano que se apoderou do ouro e da prata, para torn4-los agentes universais da troca, imprimindo-lhes a sua chan- cela, ou foram estes agentes universais da troca, ao contrario, que se apoderaram do soberano, obrigando-o a lhes imprimir a sua chan- celae a dar-lhes uma consagracio politica? A marca que se imprimiu e se imprime a moeda nio é a do seu valor, mas a do seu peso. A solidez ¢ a autenticidade de que fala o Sr. Proudhon aplicam-se apenas ao teor da moeda, e ele indica a quantidade de matéria met4lica que existe numa por¢do de prata monetizada. “O tinico valor intrinseco de um marco de prata — diz Vol- taire, com o seu conhecido bom-senso — é um marco de prata, meia-libra pesando 8 oncas. Unicamente 0 peso e o teor cons- tituem este valor intrinseco'"’®*. Mas subsiste a questo: quanto vale uma onga de ouro e de prata? Se um tecido da loja Grand Colbert trouxesse a marca de fabrica: pura /4, esta marca ainda n&o diria nada do valor do tecido — restaria saber quanto vale a 1a. “Felipe I, rei da Franca, mistura a libra tornesa® de Carlos Magno um terco de liga, imaginando que, possuindo o mono- polio da fabricacAo das moedas, pode fazer 0 que faz todo comerciante que tem o monop6lio de um produto. De fato, em que consistiu esta alteragdo da moeda, tao censurada a Felipe e seus sucessores? Num raciocinio muito correto do ponto de vista da rotina comercial, mas muito errado do ponto de vista da ciéncia econdmica, a saber: j4 que os valores se regulam pela oferta e pela demanda, pode-se. quer produzindo uma escassez artificial, quer agambarcando a produga4o, elevar a apreciacao e, pois, 0 valor das coisas — e isto é verdade tanto para 0 ouro e a prata como para 0 trigo. 0 vinho, o azeite, o tabaco. Entretanto, logo que se suspeitou da fraude de Felipe, a sua moeda foi reduzida ao seu justo valor e, ao mesmo tempo, ele perdeu o que acreditara ganhar 4 custa dos seus suditos. O mesmo ocorreu depois com todas as tentativas semelhantes"™. Em primeiro lugar, j4 se demonstrou vdrias vezes que, se 0 soberano decide alterar a moeda, € ele quem sai perdendo. O que ganhou uma tnica vez, quando da primeira emissdo, perde-o todas as vezes que as moedas falsificadas lhe retornam sob a forma de impostos, etc. No entanto, Felipe e seus sucessores souberam res- guardar-se parcialmente destas perdas porque, logo que a moeda alterada era posta em circulacdo, eles se apressavam em ordenar uma refundicdo geral das moedas segundo o antigo escalao. E, ademais, se Felipe I de fato raciocinasse como o Sr. Prou- dhon, nao teria raciocinado bem “do ponto de vista comercial”’. Nem Felipe I nem o Sr. Proudhon demonstram genialidade mer- (82) Voltaire, Systeme de Law |trata-se da obra Histoire du Parlement de Paris (Histéria do Parlamento de Paris), a citagdo é extraida do capitulo LX, “Finances et Systéme de Law pendant la Régence” (‘‘Finangas ¢ Sistema de Law durante a Regéncia")|. (83) | Libra tornesa: moeda de Tours, que valia 20 sous, 4 diferenca da libra parisiense, que valia 25.) (84) |Proudhon, Joc. cit., 1, p- 70/71.) &4 cantil quando imaginam que se pode alterar o valor do ouro como 0 de qualquer outra mercadoria, pela tnica raz&o de o seu valor ser determinado pela relacdo entre a oferta e a demanda. Se o rei Felipe ordenasse que um moio de trigo passasse. a partir de ent&o, a se chamar dois moios de trigo, teria sido um escroque. Teria burlado todos os rentistas, todos os que tinham a teceber cem moios de trigo — estes, com isto, receberiam apenas cingiienta. Suponha-se que o rei devesse cem moios de trigo; entao, ele pagaria somente cingiienta. Mas, no comércio, os cem moios nunca valeriam mais de cingiienta. Mudando-se 0 nome nao se muda a coisa. A quantidade de trigo oferecida ou procurada nao diminuiré nem aumentara pela simples mudancga de nome. Por- tanto, a relac&o entre a oferta e a demanda sendo a mesma, apesar da alteragao nominal, o prego do trigo nao sofrera nenhuma modifi- cacao real. Falando da oferta e da demanda das coisas, nao se fala da oferta e da demanda do nome das coisas. Felipe I nao fazia 0 ouro € a prata, como diz o Sr. Proudhon; fazia o nome das moedas. Fazendo passar a caxemira® francesa pela asiatica, é possivel enga- nar a um ou dois compradores; mas, descoberta a fraude, as falsas caxemiras asidticas voltardo ao preco das francesas. Atribuindo um rétulo falso ao ouro e a prata, o rei Felipe I so podia burlar enquanto a fraude no fosse conhecida. Como qualquer negociante, enganava seus fregueses qualificando falsamente a mercadoria — mas isto tinha uma duracdo limitada. Mais cedo ou mais tarde, sofreria o rigor das leis comerciais. O Sr. Proudhon queria provar isto? Nao. No seu entender, o dinheiro recebe o valor do soberano, ¢ nao do comércio. E 0 que, de fato, provou? Que o comércio é mais soberano que o soberano. Se o soberano decidir que um marco passe a ser dois marcos, o comércio diré sempre que estes dois marcos yalem tanto quanto o marco de antes. Mas nem por isto se avanga um sé passo na questo do valor determinado pela quantidade de trabalho. Resta ainda decidir se estes dois marcos, reconvertidos ao marco anterior, sdo determi- nados pelos custos de produgio ou pela lei da oferta e da demanda. O Sr. Proudhon continua: “E de observar ainda que se, em vez de alterar as moedas, 0 rei pudesse duplicar a sua massa, 0 valor permutavel do ouro e (85) [No original, cachemire; 0 Grande Dicionério Francés-Portugués. de Domingos de Azevedo (revisto por Duthoy e Rousé, Liv. Bertrand, Lisboa, 1975), esclarece: “Caxemira, tecido finfssimo feito com a pelo das cabras ¢ carneiros do vale de Caxemira (Indostao)". O Novo Dicionério da Lingua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Ed. Nova Fronteira, 1 ed., 4% impressdo), nao registra o verbete.| 85 da prata teria logo baixado a metade, ainda por esta razdo de proporcionalidade e equilibrio”® . Se esta opiniao, que o Sr, Proudhon compartilha com outros economistas, € correta, ela constitui uma prova em favor da dou- trina que estes economistas sustentam sobre a oferta e a demanda, mas nada diz em favor da proporcionalidade do Sr. Proudhon. Porque, qualquer que fosse a quantidade de trabalho fixado na massa duplicada do ouro e da prata, o seu valor seria reduzido pela metade, com a demanda permanecendo igual e a oferta sendo dobrada. Ou ser4 que, desta vez, casualmente, “a let da proporcio- nalidade"’ confundir-se-ia com a lei tao desprezada da oferta e da demanda? Esta justa proporcionalidade do Sr. Proudhon é tao elAs- tica, de fato presta-se a tantas variacdes, combinacdes e permu- tagdes que poderia muito bem coincidir uma vez com a relag&o entre a oferta e a demanda. Tornar “toda mercadoria aceitével na troca, se nao de fato, pelo menos de direito”, fundando-se no papel desempenhado pelo ouroe pela prata, significa ignorar este papel. O ouro e a prata sO sdo aceitaveis de direito porque 0 s4o de fato, e 0 so de fato porque a organizacdo atual da indistria necessita de um agente universal de troca. O direito nado € mais que o reconhecimento oficial do fato, Como vimos, o exemplo do dinheiro enquanto aplicagao do valor que passa ao estado de constituigao s6 foi escolhido pelo Sr. Proudhon para contrabandear toda a sua doutrina da permutabi- lidade, isto 6: para demonstrar que toda mercadoria avaliada pelos seus custos de producao deve chegar ao estado de moeda. Tudo isto seria perfeito, ndo fora o inconveniente de precisamente 0 ouro e a prata, enquanto moeda, serem, de todas as mercadorias, as Gnicas nao determinadas pelos seus custos de produca4o — e tanto isto é verdade que, na circulagao, podem ser substituidas pelo papel. Em- bora haja uma certa propor¢ao observada entre as necessidades de circulagao e quantidade de moeda emitida (seja em papel, ouro, platina ou cobre), nado se poder colocar a quest4ao de uma pro- por¢ao a observar entre o valor intrinseco (os custos de produgao) e 0 valor nominal da moeda. Sem diivida, no comércio internacional, a moeda é determinada, como qualquer mercadoria, pelo tempo de trabalho. Mas é porque o ouroe a prata, no comércio internacional, s4o meios de troca como produto e nao como moeda, isto é, per- dendo este carter de ‘‘solidez e autenticidade’’, de ‘‘consagra¢4o soberana’’ que, segundo o Sr. Proudhon, constituem a sua natureza (86) |Proudhon, loc. cit., 1, p. 71.1 especifica. Ricardo compreendeu tao hem esta verdade que. apés basear todo o seu sistema no valor determinado pelo tempo de trabalho e ap6s dizer que ‘‘o ouro e a prata, como todas as outras mercadorias, s6 tém valor na proporc4o da quantidade de trabalho necess4rio para produzi-los e fazé-los chegar ao mercado’, acres- centa, todavia, que o valor da moeda nao é determinado pelo tempo de trabalho fixado na sua matéria, mas, unicamente, pela lei da oferta e da demanda. “Embora o papel nao tenha nenhum valor intrinseco, con- tudo, se se limita a sua quantidade, o seu valor permutavel pode igualar o valor de uma moeda metdlica da mesma deno- minag&o ou de lingotes avaliados em espécie. Gragas ainda ao mesmo principio, ou seja: limitando a quantidade de moeda, € que pegas de baixo teor podem circular com o mesmo valor que teriam se os seus peso e teor fossem aqueles fixados pela lei, e nao segundo o valor intrinseco do metal puro que conte- riam. E por isto que, na hist6ria das moedas inglesas, vemos que © nosso numerario nunca foi depreciado na mesma pro- porgao em que foi alterado. A raz4o est4 em que ele nunca foi multiplicado na proporg&o da sua depreciagao"™. J.-B. Say, sobre esta passagem de Ricardo, observa: “Este exemplo deveria bastar, creio eu, para convencer 0 autor de que a base de todo valor nao é a quantidade de trabalho necessd4rio para produzir uma mercadoria, mas a necessidade que se tem dela, comparada A sua escassez”™. Assim, a moeda, que, para Ricardo, j& nao é um valor deter- minado pelo tempo de trabalho e de que J.-B. Say se aproveita para convencé-lo de que também os outros valores nao poderiam ser determinados pelo tempo de trabalho, a moeda, repito, considerada por J.-B. Say como exemplo de um valor exclusivamente determi- nado pela oferta e pela demanda, torna-se, para o Sr. Proudhon, o exemplo por exceléncia da aplicagao do valor constituido... pelo tempo de trabalho. Para concluir: se a moeda nao é um “‘valor constituido” pelo tempo de trabalho, menos ainda poderia ter qualquer coisa em comum com a justa “proporcionalidade”’ do Sr. Proudhon. O ouro e (87) Ricardo, loc. cit., |II, p. 206/207}. | (88) (Trata-se da nota de Say A edicdo francesa da obra de Ricardo, loc. cit., IL, p. 206; efr. nota 7.) 87 a prata sAo sempre permutveis porque tém a funcdo particular de servirem como agente universal da troca e nao porque existam em uma quantidade proporcional ao conjunto das riquezas; melhor ainda: eles s4o sempre proporcionais porque, dentre todas as merca- dorias, sio as Ginicas a servirem de moeda, de agente universal de troca, qualquer que seja a sua quantidade em relag4o ao conjunto das riquezas. “A moeda em circulac4o nunca poderia ser abundante a ponto de se tornar excessiva porque, se se reduz o seu valor, au- menta-se, na mesma propor¢aéo, a sua quantidade, e, aumen- an tando-se o seu valor, diminui-se a sua quantidade”’™ . O Sr. Proudhon se assombra: “Que imbréglio é a economia politica!”™. “Maldito ouro! — exclama graciosamente um comunista (pela boca do Sr. Proudhon). — Seria 0 mesmo que dizer: maldito trigo, malditas vinhas, malditas ovelhas! Porque, como 0 ouro e a prata, todo valor comercial deve alcancar a sua exata e rigorosa determinacdo” A idéia de fazer ovelhas e vinhas chegarem ao estado de moeda nao é nova. Na Franga, ela pertence ao século de Luis XIV. Nesta época, com o dinheiro comegando a estabelecer a sua onipoténcia, lamentava-se a depreciagdo de todas as outras mercadorias, e todos desejavam ansiosamente 0 momento em que “todo valor comercial’’ pudesse alcancar a sua exata e rigorosa determinagdo, o estado de moeda. Eis 0 que encontramos j4 em Boisguillebert, um dos mais antigos economistas da Franga: “O dinheiro, ent&o, gracas a este aparecimento de inume- raveis concorrentes, representados pelas préprias mercadorias restabelecidas nos seus justos valores, sera colocado nos seus limites naturais”* . (89) Ricardo [loc. cit.. 11, p. 205. (90) {Proudhon, loc. cit.. 1, p. 72.1 (91) [Jdem, I, p. 73. (92) Boisguillebert, Economistes-Financiers... | Economistas-Financeiros...|. €4. Daire, p. 442. 8B Como se vé. as primeiras ilustes da burguesia sao também as Ultimas”’. b) Oexcedente do trabalho “Lé-se nas obras de economia politica esta hipbtese absurda: ‘Se o preco de todas as coisas duplicasse...'. Como se 0 preco de todas as coisas nao fosse a proporcdo das coisas e se se pudesse duplicar uma proporc&o, uma relacdo, uma le Os economistas incorreram neste erro porque ndo souberam aplicar a “lei da proporcionalidade"” e a do ‘‘valor constituido”’. Infelizmente, Ié-se na propria obra do Sr. Proudhon, a pagina 110 do primeiro volume, esta hipotese absurda: "’Se 0 salario subisse de modo geral, o preco de todas as coisas aumentaria”. Além disto, se se encontra a frase em questdo nas obras de economia politica, ai também se encontra a sua explicacao. “Se se diz que 0 prego de todas as mercadorias aumenta ou diminui, exclui-se sempre uma ou outra mercadoria; a merca- doria excluida 6, em geral, o dinheiro ou 0 trabalho” ®, Passemos agora A segunda aplicagao do ‘‘valor constituido” de outras proporcionalidades, cujo tinico defeito é serem pouco proporcionadas, e vejamos se, entao, o Sr. Proudhon é mais feliz do que na monerarizagao das ovelhas. “Um axioma geralmente admitido pelos economistas é 0 de que todo trabalho deve deixar um excedente. Esta proposic30 é, para mim, de uma verdade universal e absoluta: é 0 coro- lario da lei da proporcionalidade, que se pode considerar como a sintese de toda a ciéncia econdmica. Mas, me perdoem (93) [Marx retomaré estudos sisteméticos sobre a moeda a partir de 1880, como 0 atestam os seus primeiros cadernos de notas do periode londrino.} (94) Proudhon, loc. cit., 1, p. 81. (9S) Encyclopaedia Metropolitana or Universal Dictionary of Knowledge lEnciclopédia Metropolitana ou Dicionério Universal do Conhecimento}, [Londres}. 1836, IV, verbete “Political Economy” {“Economia Politica”). de Senior. Sobre esta expressio, ver também J. St. Mill, Essays on Some Unsetled Questions of Political Economy |Ensaios sobre Algumas Questdes Nao-Resolvidas de Economia Politica), (Londres,] 1844 e [Th.] Tooke, A History of Prices... A History of Prices and of the State of the Circulation, from 1793 to 1837 (Histéria dos Precos ¢ 0 Estado da Circulagdo, de 1793 a 1837)|, |Londres,| 1838. 89 os economistas, 0 principio de que todo trabalho deve deixar um excedente n&o tem sentido na sua teoria e ndo é susceptivel de nenhuma demonstracao""™ . Para provar que todo trabalho deve deixar um excedente, o Sr. Proudhon personifica a sociedade; faz dela uma sociedade-pessoa, que nao é a sociedade das pessoas, j4 que possui leis 4 parte, nao tendo nada em comum com as pessoas de que se compée a socie- dade, e possui também a sua “‘prépria inteligéncia’’, que nao é a inteligéncia do comum dos homens, mas uma inteligéncia despro- vida de senso comum. O Sr. Proudhon censura aos economistas 0 nao haverem compreendido a personalidade deste ser coletivo. Gos- tariamos de Ihe opor a passagem seguinte, de um economista ameri- cano, que reprova aos outros economistas exatamente o contrario: “A entidade moral (the moral entity), 0 ser gramatical (the grammatical being) denominado sociedade foi revestido de atribuigdes que s6 existem realmente na imaginagdo daqueles que, com uma palavra, fazem uma coisa... Foi isto que deu origem a tantas dificuldades e a deplor4veis equivocos na economia politica”. Continua o Sr. Proudhon: “Este principio do excedente do trabalho sé é verdadeiro para os individuos porque emana da sociedade que, assim, confere- lhes o beneficio das suas proprias leis” *. Com isto, quer o Sr. Proudhon dizer, simplesmente, que a produgio do individuo social ultrapassa a do individuo isolado? E sobre este excedente da produgao de individuos associados, em relacdo a producg&o de individuos nado associados, que o Sr. Prou- dhon pretende falar? Se é este 0 caso, poderemos indicar-lhe cem economistas que, isentos do misticismo de que se envolve o Sr. Prou- dhon, exprimiram esta simples verdade. Eis 0 que diz, por exemplo, oSr. Sadler: (96) Proudhon, foc. cit. {I, p. 73]. (97) Th. Cooper, Lectures on the Elements of Political Economy (Confe- réncias sobre Elementos de Economia Polftical, 1826. |O livro citado foi publicado pela primeira vez em Columbia; uma segunda edic&o, ampliada, apareceu em Lon- dres, em 1831. (98) {Proudhon, loc. cit., 1, p. 75.] 90 “OQ trabalho combinado propicia resultados que o trabalho individual jamais produziria. Assim, 4 medida que a humani- dade cresga numericamente, os produtos da inddstria reunida excederao largamente a soma de uma simples adicao calcu- lada sobre este crescimento... Nas artes mecanicas e nos tra- balhos cientfficos,'um homem, hoje, pode fazer mais num dia do que um individuo isolado durante toda a sua vida. O axioma dos matematicos, segundo o qual o todo é igual as partes, aplicado ao nosso objeto, nao é verdadeiro. Quanto ao trabalho, este grande pilar da existéncia humana (the great pillar of human existence), pode-se dizer que 0 resultado dos esforgos acumulados supera em muito tudo o que os esforcos individuais e separados podem produzir algum dia”. Retornemos ao Sr. Proudhon. O excedente do trabalho, diz ele, explica-se pela sociedade-pessoa. A vida desta pessoa segue leis opostas Aquelas que dirigem a atuac4o do homem como individuo, e o Sr. Proudhon quer prova-lo com “‘fatos”’. “A descoberta de um novo procedimento econdmico jamais pode proporcionar ao inventor um lucro igual ao que oferece a sociedade... J& se observou que as empresas ferroviarias so bem menos uma fonte de riquezas para os seus proprietarios do que para o Estado... O prego médio do transporte de mercadorias por estradas € de 18 céntimos por tonelada ¢ por quilémetro, incluidos os gastos de carga e descarga em arma- zéns. Calculou-se que, por este preco, uma empresa ferro- vidria comum nao obteria 10% de lucro liquido, resultado semelhante ao de uma empresa de transporte. Mas admitamos que a velocidade do transporte ferrovidrio seja 4 vezes maior que a do transporte por estrada: como, na sociedade, o tempo €0 proprio valor, dada uma igualdade de precos, a ferrovia ofereceré, comparada ao transporte por estrada, uma van- tagem de 400%. Entretanto, esta enorme vantagem, muito real para a sociedade, est4 bem longe de se realizar na mesma proporgao para o transportador: proporcionando a sociedade um lucro de 400%, nao consegue mais que 10%. Suponha- mos, de fato, para evidenciar ainda mais a coisa, que a fer- rovia eleve sua tarifa para 25 céntimos, permanecendo a do transporte por estrada em 18: imediatamente, a empresa per- (99) T. Sadler, The Law of Population... (A Lei da Populagéo...], 1830 [o trecho transcrito, desta obra publicada em Londres, foi extra{do das paginas 83 ¢ 64 do volume I]. 91 der& todos os seus clientes. Expedidores, destinatarios — todos retornarao a malbrouke™™ e, se preciso, A carro¢a. A locomo- tiva sera abandonada: uma vantagem social de 400% sera sacrificada a perda privada de 35%. A razao é facilmente compreensivel: a vantagem que resulta da rapidez da ferrovia é inteiramente social, cada individuo participando dela numa proporcao minima (n&o esquecamos que, neste momento, trata-se apenas do transporte de mercadorias), ao passo que a perda toca direta e pessoalmente ao consumidor. Um bene- ficio social igual a 400 representa para o individuo, numa sociedade de um milhdo de pessoas, quatro décimos de milé- simo, enquanto uma perda de 33% para o consumidor redun- daria num déficit social de 33 milhdes"’'”' . Admite-se que o Sr. Proudhon exprima uma velocidade ele- yada ao quadruplo por 400% da velocidade original; mas que rela- cione o percentual da velocidade com o percentual do lucro e estabe- leca uma proporcao entre duas relag¢des que, podendo ser aferidas separadamente em porcentagem, sao, todavia, incomensurAveis en- tre si — isto equivale a estabelecer uma propor¢ao entre os percen- tuais e a deixar de lado as denominacdes'™ . Percentuais sao sempre percentuais; 10% e 400% sao comen- suraveis: um est4 para o outro como 10 est& para 400. Portanto, conclui o Sr. Proudhon, um lucro de 10% vale 40 vezes menos uma velocidade quadruplicada. Para salvar as aparéncias, ele diz que, para a sociedade, 0 tempo é 0 valor (time is money). Este erro provém de que ele se recorda, confusamente, da existéncia de uma relacao entre o valor e 0 tempo de trabalho, apressando-se a assi- milar o tempo de trabalho ao tempo de transporte, ou seja: identi- fica alguns maquinistas, guardas de trem e semelhantes, cujo tempo de trabalho é o tempo de transporte, com a sociedade inteira. Com este golpe, a velocidade se transforma em capital e, neste caso, ele tem toda a razdo de dizer: ‘Um beneficio de 400% sera sacrificado a uma perda de 35%"’. Depois de, como matemiatico, estabelecer esta estranha proposicdo, da-nos a sua explicacéo como economista. “Um beneficio social igual a 400 representa para o individuo, se a sociedade é de apenas um milh4o de homens, quatro décimos de milésimo’’. De acordo; mas nio se trata de 400, trata-se de 400%, e um beneficio de 400% representa, para o individuo, 400% — nem mais, nem menos. Qualquer que seja o capital, os dividendos se (100) | Espécie de furgao tirado por animais.} (101) Proudhon, foc. cit. {I, p. 75/76] (102) {Isto é: as proprias coisas a que os percentuais se referem. | 92 determinarao sempre na relagao de 400%. O que o Sr. Proudhon faz? Toma a porcentagem como sendo 0 capital e, receando que a sua confusdo nao seja bastante manifesta, bastante ‘‘sensivel’”, pros- segue: “Uma perda de 33% para 0 consumidor suporia um deficit social de 33 milhdes". 33% de perda para um consumidor conti- nuam a ser 33% de perda para um milhao de consumidores. Como pode o Sr. Proudhon dizer, em seguida e impertinentemente, que 0 deficit social, no caso de uma perda de 33%, se eleva a 33 milhdes, se desconhece tanto o capital social quanto o capital de apenas um dos interessados? Portanto, n4o bastou ao Sr. Proudhon confundir 0 capital e os percentuais: ele se supera a si mesmo, identificando 0 capital investido numa empresa com 0 ntimero dos interessados. “Suponhamos, de fato, para tornar a coisa mais evidente”’, um capital determinado. Um lucro social de 400%, repartido por um milhdo de participantes, investindo cada um 1 franco, oferece 4 francos de lucro a cada individuo, e nao 0,0004, como o pretende o Sr. Proudhon. Igualmente, uma perda de 33% para cada um dos participantes representa um deficit social de 330000 francos, e nao de 33 milhdes (100:33 = 1000000:330 000). O Sr. Proudhon, preocupado com a sua teoria da sociedade- pessoa, esquece-se de fazer a divisiéo por 100, obtendo, assim, 330 000 francos de perda; mas 4 francos de lucro por individuo dao, para a sociedade, 4 milhGes de francos de lucro. Para a sociedade, resta um lucro liquido de 3670 000 francos. Este cAlculo exato prova exatamente o contrario do que o Sr. Proudhon queria demonstrar, isto 6: que os beneficios e as perdas da sociedade nao estao, de modo algum, em razdo inversa aos beneficios e perdas dos individuos. Depois de corrigir estes simples erros de puro calculo, vejamos brevemente as conseqiiéncias a que se chegaria se se quisesse admi- tir, para as ferrovias, esta relagdo entre velocidade e capital, como 0 Sr. Proudhon a estabelece — abstraidos os seus erros de cAlculo. Suponhamos que um transporte quatro vezes mais rapido custa quatro vezes mais; ele nao propiciaria um lucro menor que o trans- porte por estrada, que é quatro vezes mais lento e custa a quarta parte dos gastos com o outro. Assim, se o transporte por estrada custa 18 céntimos, o por ferrovia custaria 72 céntimos. Esta seria, segundo o “rigor matemAtico’’, a conseqiiéncia das suposigdes do Sr. Proudhon (abstraidos, sempre, os seus erros de cAlculo). Mas, repentinamente, ele nos diz que se a ferrovia cobrasse 25 céntimos, em vez de 72, perderia imediatamente todos os seus clientes. Decidi- damente, é preciso voltar 4 malbrouke e mesmo a carroga. O tnico conselho que oferecemos ao Sr. Proudhon é, no seu “Programa de Associagao Progressiva’, no esquecer a divisao por 100. Mas nao temos esperangas de que ele ou¢a o nosso conselho, porque esta tao 93 fascinado com o seu calculo “‘progressivo”, correspondente a “asso- ciagdo progressiva’’, que exclama enfaticamente: “J& demonstrei, no capitulo II, pela solugao da antinomia do valor, que a vantagem de qualquer descoberta util 6 incompa- ravelmente menor para 0 inventor, faca ele o que fizer, do que para a sociedade; a minha demonstra¢4o, conduzi-a com rigor matematico"'® . Retornemos a ficc&o da sociedade-pessoa, ficgAio cujo unico objetivo era provar esta simples verdade: uma nova inven¢4o, permi- tindo produzir com a mesma quantidade de trabalho uma maior quantidade de mercadorias, reduz o valor venal do produto. A sociedade, pois, lucra: obtém mais nao valores permutaveis, e sim mais mercadorias pelo mesmo valor. Quanto ao inventor, a concor- réncia reduz, em seguida, o seu lucro ao nivel geral dos lucros. O Sr. Proudhon demonstrou esta proposi¢ao como queria? N&ao. Mas isto nfo o impede de censurar aos economistas a auséncia desta demonstracao. Para lhe provar o contrario, citaremos somente Ri- cardo e Lauderdale; Ricardo, mestre da escola que determina o valor pelo tempo de trabalho, e Lauderdale, um dos mais acérrimos defensores da determinacao do valor pela oferta e pela demanda. Ambos desenvolveram a mesma tese. “Aumentando constantemente a facilidade de producio, di- minuimos constantemente 0 valor de algumas das coisas produ- zidas anteriormente, embora, por este meio, n&o apenas au- mentemos a riqueza nacional, mas, ainda, a faculdade de produzir para o futuro... Quando, através de mAquinas ou de nossos conhecimentos em fisica, for¢amos os agentes natu- Tais a fazer 0 que antes era executado pelos homens, o valor permut&vel desta obra, conseqiientemente, reduzido. Se fos- sem precisos dez homens para mover um moinho de trigo e se se descobrisse que, por meio do vento ou da Agua, poder-se-ia poupar 0 trabalho desses dez homens, a farinha, produto do moinho, a partir dai teria seu valor reduzido na propor¢ao da soma de trabalho economizado; e a sociedade seria enrique- cida com todo o valor das coisas que 0 trabalho daqueles dez homens produziria, os fundos destinados 4 manutengao dos trabalhadores nao sofrendo, com isto, a menor reducéo”'™™ . (103) { Proudhon, foc. cit., 1, p. 252/253, ed. de 1923. ] (104) Ricardo, loc. cit. (II, p. 59 ¢ 98]. Lauderdale, por sua vez, afirma: “O lucro dos capitais provém sempre do fato de eles substi- tuirem uma porgao de trabalho que o homem deveria realizar manualmente ou de executarem uma porcado de trabalho supe- rior aos esforcos pessoais do homem e que ele nao conseguinia efetivar por si mesmo. O diminuto lucro que, em geral, obtém os proprietérios das maquinas, em comparagdo com 0 preco do trabalho que elas realizam, poderia talvez colocar em da- vida a corregdo desta assertiva. Uma bomba a vapor, por exemplo, extrai, em um dia, mais 4gua de uma mina de carvao do que 9 conseguiriam trezentos homens, transpor- tando o liquido as costas, mesmo com o uso de tinas; e € indiscutivel que a bomba substitui este trabalho com menos custos. Este € o caso de todas as maquinas. O trabalho manual do homem, elas o substituem e o realizam a um prego infe- rior... Suponha-se que se atribua uma patente ao inventor de uma maquina que realiza o trabalho de quatro homens; como o privilégio exclusivo interdita toda concorréncia, exceto a que resulta do trabalho dos operarios, € claro que o saldrio destes sera, enquanto durar o privilégio, a medida do preco que 0 inventor deve conferir aos seus produtos. Isto significa que, para garantir o seu emprego, o inventor exigiraé um pouco menos que 0 sal4rio do trabalho que a sua maquina substitui. Mas, expirado o privilégio, surgem outras m4quinas seme- lhantes, que rivalizam com a sua. Entao, regular4 o seu prego pelo principio geral, fazendo-o depender da abundancia de mAquinas. O lucro dos capitais investidos..., embora resulte de um trabalho substituido, regula-se, enfim, nao pelo valor deste trabalho, mas, como em todos os outros casos, pela concorréncia entre os proprietérios dos capitais; e o grau desta concorréncia é sempre fixado pela propor¢ao entre a quanti- dade dos capitais oferecidos para esta func4o e a demanda que se manifesta”! . Finalmente, pois, enquanto o lucro for maior que noutras industrias, haver capitais que se lancardo na nova industria, até que a taxa de lucro se reduza ao nivel comum'™ . (10S) { Lauderdale, loc. cit., p. 119, 123, 124, 125 € 134.] (106) [O problema da “taxa de lucro médio”, levantado por Ricardo no sexto capitulo dos seus Princfpios.... ser minuciosamente analisado por Marx na segunda sec&o do livro terceiro d'O Capital. | 95 Acabamos de ver que 0 exemplo da ferrovia nao era apro- priado para esclarecer minimamente a fico da sociedade-pessoa. Apesar disto, o Sr. Proudhon retoma o seu discurso com audaci “Clarificados estes pontos, nada mais facil do que explicar como o trabalho deve deixar a cada produtor um exce- dente”. O que agora se segue pertence a antiguidade classica. Trata-se de um conto poético, escrito para amenizar ao leitor as fadigas que lhe causou o rigor das demonstracdes matemAticas precedentes. O Sr. Proudhon batiza a sua sociedade-pessoa: chama-lhe Prometeu e glorifica seus feitos nestes termos: “Inicialmente, saindo do seio da natureza, Prometeu desperta para a vida numa inércia cheia de encantos... Prometeu mete mi§aos a obra e, desde o seu primeiro dia, primeiro dia da se- gunda criagdo, 0 seu produto, ou seja: a sua riqueza, 0 seu bem-estar, é igual a dez. No segundo dia, Prometeu divide o seu trabalho, e o seu produto torna-se igual a cem. No terceiro dia, e em cada um dos seguintes, Prometeu inventa mAquinas, descobre novas utilidades nos corpos e novas forcas na natu- reza... A cada avanco da sua industria, a soma da sua pro- ducdo se eleva e lhe anuncia um acréscimo de felicidade. E, enfim, j4 que, para ele, consumir é produzir, é claro que cada dia de consumo, fazendo desaparecer apenas o produto da véspera, deixa para o dia seguinte um excedente de pro- duto” Este Prometeu do Sr. Proudhon é um personagem cémico, tao fragil em logica como em economia politica. Enquanto Prometeu que se limita a nos ensinar a divisio do trabalho, o emprego das maquinas, a exploragao das forgas naturais e do poder cientifico, multiplicando as forcas produtivas dos homens e fornecendo um excedente em comparacdo ao que produz o trabalho isolado, esse novo Prometeu tem apenas a infelicidade de chegar muito atrasado. Mas, enquanto Prometeu que se pode a misturar producdo e con- sumo, ele se torna realmente grotesco. Consumir, para ele, é pro- duzir; consome no dia seguinte 0 que produziu na véspera e, por isto, conta sempre com um dia de reserva, que é o seu “‘excedente de trabalho". Mas, consumindo no dia seguinte o que produzira na (107) | Proudhon, foc. cit., 1, p. 77.) (108) [Idem, I, p. 77/78.) yéspera, no primeiro dia, que nao teve véspera, ele teve que tra- balhar dois dias, a fim de, depois, ter um dia de reserva. Como € que Prometeu conseguiu este excedente no primeiro dia, quando nao havia nem divisao do trabalho, nem mAquinas, nem mesmo outros conhecimentos de forgas fisicas além da do fogo? A questao, re- cuada ‘‘ao primeiro dia da segunda criacdo”, n&o avancou um sé passo. Esta maneira de explicar as coisas liga-se simultaneamente aos gregos e aos hebreus, é simultaneamente mistica e alegorica ¢ concede ao Sr. Proudhon o pleno direito de afirmar: “Demonstrei, com a teoria e com os fatos, o principio de que todo trabalho deve deixar um excedente”’'”. Os fatos so o famoso cdlculo progressivo; a teoria é o mito de Prometeu. Continua o Sr. Proudhon: “Mas este principio, tio certo quanto uma proposigao de aritmética, est4 ainda longe de se realizar para todos. En- quanto, pelo progresso da industria coletiva, cada jornada de trabalho individual obtém um produto cada vez maior, e, por uma conseqiléncia necessdria, enquanto o trabalhador, com 0 mesmo salario, deveria tornar-se mais rico a cada dia, existem na sociedade Estados' que prosperam e outros que decli- nam""', Em 1770, a populagao do Reino Unido da Gra-Bretanha era de 15 milhdes e a populacado produtiva de 3 milhdes. O poder cientifico da produg4o equivalia a uma populagao adicional de 12 milhdes de individuos; em suma, pois, havia 15 milhdes de forgas produtivas. Assim, o poder produtivo estava para a populacdo na relacdo de 1 a 1, enquanto o poder cientifico estava para o poder manual na relac4o de 4 a 1. Em 1840, a populacdo nao ultrapassava 30 milhdes; a popu- lac4o produtiva era de 6 milhdes, enquanto o poder cientifico che- gava a 650 milhdes, ou seja: estava para a populacao total na relagao de 21a 1e para o poder manual nade108 a 1'”. Na sociedade inglesa, portanto, a jornada de trabalho ganhou, em setenta anos, um excedente de produtividade de 2700% — isto é: em 1840, ela produziu 27 vezes mais que em 1770. Segundo o Sr. (109) [Idem, p. 81, ed. de 1964. ] (110) [ Ou seja: camadas sociais. | (111) [Proudhon, loc. cit., 1, p. 79/80. ] (112) [Esta observacto de Marx foi feita, originalmente, por Robert Owen. | 97 Proudhon, dever-se-ia colocar a seguinte quest&o: por que o ope- rhrio inglés de 1840 nao era 27 vezes mais rico que 0 de 1770? Colocar semelhante questdo supde, naturalmente, que os ingleses poderiam produzir estas riquezas sem que existissem as condigdes historicas nas quais elas foram produzidas, tais como a acumulacdo privada de capitais, a divisio moderna do trabalho, a fabrica mecanizada, a concorréncia anarquica, o salariato, enfim, tudo o que se baseia no antagonismo entre as classes. Ora, para o desenvolvimento das forcas produtivas e do excedente do trabalho, estas eram precisa- mente as condi¢des de existéncia. Portanto, para obter este desen- volvimento das forcas produtivas e do excedente do trabalho, eram necessArias classes que prosperam e outras que declinam. O que é, no final das contas, este Prometeu ressuscitado pelo Sr. Proudhon? E a sociedade, sto as relagdes sociais fundadas no antagonismo entre as classes. Elas nao sao relagdes entre individuos, mas relacdes entre o operério e o capitalista, o arrendatario e o propriet4rio fundidrio, etc. Suprimidas estas relagdes, estara supri- mida a sociedade, ¢ o Prometeu nao ser4 mais que um fantasma sem bracos ou pernas, ou seja, sem f4brica, sem diviséo de trabalho, sem, numa palavra, tudo aquilo que a principio lhe foi atribuido para obter esse excedente de trabalho. Se, pois, na teoria bastasse, como o faz o Sr. Proudhon, interpretar a formula do excedente de trabalho no sentido da igual- dade, desprezando as condicdes atuais da producdo, na pratica deveria bastar uma reparticdo igualitaria, entre os operdrios, de todas as riquezas hoje obtidas, sem nada alterar nas condigdes atuais da producdo. E claro que essa repartic¢4o no garantiria um nivel muito grande de conforto a cada um dos participantes. Mas o Sr. Proudhon nao € tao pessimista quanto se podena acreditar. Como a proporcionalidade é tudo para ele, n&o deixaria de ver no Prometeu, tal como no-lo apresenta, ou seja: na sociedade atual, um inicio de realizacao da sua idéia favorita. “Mas em todos os lugares, também, o progresso da riqueza, isto 6, a proporcionalidade dos valores, & a lei dominante; e quando os economistas opdem as queixas do partido social 0 acréscimo progressivo da fortuna publica e as melhorias intro- duzidas na condicdo das classes, mesmo as mais desfavore- cidas, eles proclamam, sem 0 perceber, uma verdade que 6 a condenacao das suas teorias""'"* . De fato, 0 que é a riqueza coletiva, a fortuna publica? E a riqueza da burguesia, nado a de cada burgués em particular. Pois (113) | Proudhon, loc. cit., 1, p. 80. } at bem: os economistas nao fazem outra coisa que demonstrar como, nas relacdes de producdo tal como existem, a riqueza da burguesia se desenvolveu e deve aumentar ainda mais. Quanto As classes operarias, ainda € questao muito discutida saber se a sua situagio melhorou em conseqiéncia do aumento da riqueza pretensamente publica. Quando os economistas, para apoiar 0 seu otimismo, nos citam o exemplo dos operdrios ingleses ocupados na inddstria algo- doeira, eles s6 tomam a sua situag4o em raros momentos de prospe- ridade do comércio. Tais momentos estao em relacao as épocas de crise e estagnacdo na “justa proporcdo” de 3 a 10. Mas pode ser que, falando de melhorias, os economistas pretendessem mencionar os milhdes de operarios que tiveram de perecer, nas Indias Orien- tais, para propiciar aos 1,5 milhdes de operarios ocupados. na Inglaterra, na mesma indastria, 3 anos de prosperidade em cada 10. Quanto a participagdo temporaria no acréscimo da riqueza publica, trata-se de outra questao. O fato da participacao tempo- raria é explicado pela teoria dos economistas, confirmando-a e nao. como diz o Sr. Proudhon, ‘‘condenando-a”. Se houvesse algo a condenar, seria certamente o sistema do Sr. Proudhon, que redu- ziria, como demonstramos, o operério ao minimo de salario, apesar do crescimento das riquezas. Somente reduzindo-o ao minimo de salario ele aplicaria a justa proporcionalidade dos valores, do ‘‘valor constituido” — pelo tempo de trabalhe. E porque o saldrio, em raz4o da concorréncia, oscila para além e para aquém do prego dos viveres necessdrios ao sustento do operdrio, que este pode participar. por pouco que seja, do desenvolvimento da riqueza coletiva. po- dendo, também, morrer de miséria. Nisto consiste toda a teoria dos economistas que nao se deixam iludir. Depois destas longas divagacées sobre ferrovias, Prometeu e a nova sociedade a reconstituir 4 base do ‘‘valor constituido'’, o Sr. Proudhon se recolhe; a emo¢do o domina e ele exclama patemnal- mente: “Conclamo os economistas a se interrogarem por um mo- mento, no siléncio do seu cora¢ao, longe dos preconceitos que os perturbam e sem pensar nos empregos que tém ou esperam ter, nos interesses a que servem, nos sufrdgios que ambi- cionam, nas distingdes que embalam a sua vaidade: que se interroguem e digam se, até hoje, o principio de que todo trabalho deve deixar um excedente se Ihes apareceu com esta cadeia de preliminares e conseqiéncias que nos ressalta- mos" "4, (114) [dbidem.| 2 A METAFISICA DA ECONOMIA POLITICA § 1. Ométodo Eis-nos em plena Alemanha! Teremos de falar a linguagem da metafisica, sem abandonar a da economia politica. E, ainda aqui, apenas seguimos as “contradigées” do Sr. Proudhon. Até ha pouco, ele nos obrigava a falar inglés, a nos tornar sofrivelmente ingleses. Agora, a cena muda: o Sr. Proudhon nos conduz a nossa querida p4- tria e nos forga a recuperar, apesar de nés, a nossa qualidade de ale- mao". Se o inglés transforma os homens em chapéus, o alemao transforma os chapéus em idéias. O inglés é Ricardo, banqueiro rico e distinto economista; 0 alemao é Hegel, simples professor de filo- sofia na Universidade de Berlim. Luis XV, ultimo rei absoluto, tinha a seu servico um médico, que era o primeiro economista da Franga. Este médico, este econo- mista, representava o triunfo iminente e seguro da burguesia fran- cesa. O Dr. Quesnay fez da economia politica uma ciéncia; resumiu- a no seu famoso Quadro Econémico. Além dos mil e um comen- tarios aparecidos sobre este quadro, temos um, do proprio autor: é a “andlise do quadro econdmico", seguida de “sete observacdes importantes” "°, O Sr. Proudhon é um outro Dr. Quesnay. E o Quesnay da metafisica da economia politica. (115) [Como se sabe, a 19 de dezembro de 1845, em Bruxelas, Marx foi obrigado a renunciar a cidadania prussiana. | (116) | Trata-se das duas principais obras econdmicas de Quesnay: Tableau Economique (Quadro Econémico), 1758, ¢ Analyse du Tableau Economique (Anélise do Quadro Econdmico), 1766. | 101 Ora, a metafisica, a filosofia inteira se resume, segundo He- gel, no método. E necesshrio, pois, que procuremos esclarecer 0 método do Sr. Proudhon, pelo menos tao tenebroso quanto 0 Qua- dro Econémico. Para isto, apresentaremos sete observacées mais ou menos importantes. Se o Sr. Proudhon no se contentar com elas, que se transforme em um abade Baudeau e fornega pessoalmente a “explicacdo do método econdmico-metafisico”"” . Primeira observacao “Nao fazemos uma histéria segundo a ordem temporal, mas segundo a sucessdo das idéias. As fases ou categorias econd- micas so, em sua manifestagdo, ora contempordaneas, ora invertidas... As teorias econdmicas nem por isto deixam de ter a sua sucessdo légica e a sua série no entendimento: € esta ordem que nos orgulhamos de ter descoberto’’"® . Decididamente, o Sr. Proudhon quis amedrontar os franceses, langando-lhes ao rosto frases quase hegelianas. Temos, pois, que nos haver com dois homens, primeiro o Sr. Proudhon. depois com Hegel. Como o Sr. Proudhon se distingue dos outros economistas? E Hegel, que papel desempenha na economia politica do Sr. Prou- dhon? Os economistas exprimem as relagdes da produg&o burguesa, a divisao do trabalho, o crédito, a moeda, etc., como categorias fixas, imut4veis, eternas. O Sr. Proudhon, que tem 4 sua frente estas categorias j4 formadas, quer nos explicar o ato de formagdo, a geracdo destas categorias, principios, leis, idéias, pensamentos. Os economistas nos explicam como se produz nestas relacdes dadas, mas ndo nos explicam como se produzem estas relagdes, isto &, 0 movimento histérico que as engendra. O Sr. Proudhon, to- mando estas relagdes como principios, categorias, pensamentos abs- tratos, tem apenas que ordenar esses pensamentos, que, alfabeti- camente dispostos, encontram-se no final de qualquer tratado de economia politica. Os materiais dos economistas s&o a vida ativa e atuante dos homens; os materiais do Sr. Proudhon s4o os dogmas dos economistas. Mas, a partir do momento em que nao se persegue 0 movimento histérico das relagdes de produgdo, de que as categorias s&o apenas a expressdo teérica, a partir do momento em que se quer (117) [ Referéncia s0 abade N. Baudeau, contemporineo de Quesnay, que publicou, em 1770, a Explication du Tableau Economique (Explicacdo do Quadro Econémico), que Marx conheceu na sua edig&o por Daire. } (118) Proudhon, loc. cit., 1, p- 146. 102 ver nestas categorias somente idéias, pensamentos espontaneos, independentes das relacdes reais, a partir de entdo se & forcado a considerar o movimento da raz4o pura como a origem desses pensa- mentos'?. Como a razdo pura, eterna, impessoal, engendra esses pensamentos? Como ela procede para produzi-los? Se tivéssemos a intrepidez do Sr. Proudhon em matéria de hegelianismo, diriamos: em si mesma, ela se distingue de si mesma. O que significa isto? A raz4o impessoal, nao tendo fora de si nem terreno sobre o qual possa pér-se, nem objeto ao qual possa opor-se, vé-se foreada a uma cambalhota, pondo-se, opondo-se e compondo- se — posigdo, oposigdo, composi¢ao. Para falar grego, temos a tese, a antitese e a sintese. Quanto aos que desconhecem a linguagem hegeliana, dir-Ihes-emos a formula sacramental: afirmacdo, nega- ¢4o e negacdo da negacdo. Eis o que significa isso. Claro, nio se trata de hebraico, nado se ofenda o Sr. Proudhon'™; trata-se da linguagem desta razdo téo pura, separada do individuo. Em lugar do individuo comum, com a sua maneira comum de falar e pensar, 0 que temos é esta maneira comum inteiramente pura, sem o indi- viduo. Ha raz&o para se espantar se todas as coisas, em Ultima abstracio — porque aqui ha abstrag4o e n4o andlise —, se apre- sentam no estado de categoria logica? Ha razdo para se espantar se, abandonando aos poucos tudo o que constitui a individualidade de uma casa, abstraindo os materiais de que ela se compée e a forma que a distingue, chega-se a ter apenas um corpo; ¢ se, abstraindo os limites deste corpo, obtém-se somente um espaco; e se, enfim, abstraindo as dimensdes deste espaco, acaba-se por ter apenas a pura quantidade, a categoria légica? A forga de abstrair assim de todo objeto todos os pretensos acidentes, animados ou inanimados, homens ou coisas, temos razio de dizer que, em Ultimo grau de abstrac4o, chegamos as categorias légicas como substancia. Assim, os metafisicos que, fazendo estas abstragdes, acreditam fazer andlise e que, 4 medida que se afastam progressivamente dos objetos, imaginam aproximar-se deles para penetr4-los, estes metafisicos tém, por sua vez, razdo de dizer que as coisas aqui da terra so (119) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “'Certamente que se € forgado. porque, na sociedade, tudo é, nllo importa 0 que se diga, contemporaneo; como, na natureza, todos os Atomos so eternos”. Rubel considera esta “observagio bem obscura”, ¢ aventa a hipdtese de que ela tenha qualquer relagdo com as reflexdes epistemol6gicas que, sobre 0 atomismo, esto no "'prélogo” da obra de Proudhon. | (120) | Alusio irdnica as explicagdes etimolégicas que so freqdentes aa obra de Proudhon, conhecedor da lingua hebraica. Proudhon aprenden este idioma na Epoca (por volta de 1836) em que, em Besancon, revisou as provas tipogrificas de uma Vulgara.| 103 bordados, cujo pano-de-fundo é constituido pelas categorias légicas. Eis 0 que distingue 0 filésofo do cristao: este, a despeito da légica, sd conhece uma encarnacao do Logos; 0 filésofo conhece-as infinitas. Que tudo o que existe, tudo o que vive sobre a terra e sob a 4gua, possa ser reduzido, a forga de abstracao, a uma categoria légic: que. deste modo, todo o mundo real possa submergir no mundo das abstragdes, no mundo das categorias logicas — quem se espantara com isto”? Tudo 0 que existe, tudo 0 que vive sobre a terra e sob a Agua. existe e vive gragas a um movimento qualquer. Assim, 0 movimento da historia produz as relacdes sociais, o movimento industrial nos proporciona os produtos industriais, etc. Da mesma forma como, a forca da abstracdo, transformamos todas as coisas em categorias légicas, basta-nos somente abstrair todo carter distintivo dos diferentes movimentos para chegar ao movimento em estado abstrato, ao movimento puramente formal, a formula puramente légica do movimento. Se se encontra nas cate- gorias logicas a substancia de todas as coisas, imagina-se encontrar na formula légica do movimento 0 método absoluto, que tanto explica todas as coisas como implica, ainda, o movimento delas. E deste método absoluto que Hegel fala, nestes termos: “O método é a forga absoluta, unica, suprema, infinita, a que nenhum objeto poderia resistir; € a tendéncia da raz4o a reencontrar-se e reconhecer-se em todas as coisas’"!”” . Reduzidas todas as coisas a uma categoria légica e todo movi- mento, todo ato de produ¢4o ao método, a conseqiiéncia natural é a reduc&o de qualquer conjunto de produtos e de produgao, de objetos e de movimento a uma metafisica aplicada. O que Hegel fez em relacdo a religiao, ao direito, etc., o Sr. Proudhon procura fazer em relacao a economia politica 2°. Mas o que é este método absoluto? A abstragao do movi- mento. E o que € a abstragdo do movimento? O movimento em (121) [Nesta passagem, Marx retomou o argumento que desenvolvera n’A Sograda Familia (capitulo V, § 2, “O Mistério da Construgao Especulativa™).] (122) Hegel, Logik | Logica}, 111 [trata-se, na verdade, de um resumo de um trecho da seco III, capitulo III, intitulado “Die absolute Idee” ("A Idéia Abso- luta"), da obra Wissenschaft der Logik (Ciéncia da Légica) | (123) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “Muito bem; e isto € to estu- pido?”, Realmente, a ambic&o declarada de Proudhon é, como escreveu a Acker- mann, em 4 de outubro de 1844, “popularizar a metafisica”. E dele, ainda, a afirmac&o, reproduzida por Sainte-Beuve: “Vou demonstrar que a economia politica é4 metafisica em acdo”.} 104 estado abstrato. O que é 0 movimento em estado abstrato? A férmula puramente légica do movimento ou o movimento da razdo pura. Em que consiste o movimento da raz4o pura? Consiste em se por, se opor, se compor, formular-se como tese, antitese, sintese ou, ainda, afirmar-se, negar-se, negar sua negagao. Como opera a razao para se afirmar, para se por como cate- goria determinada? Isto é tarefa da propria razao e de seus apolo- getas Mas uma vez que a razdo conseguiu pdr-se como tese, esta tese, este pensamento, oposto a si mesmo, desdobra-se em dois pensamentos contraditorios, 0 positivo e o negativo, o sime o nao. A luta entre estes dois elementos antag6nicos, compreendidos na anti- tese, constitui o movimento dialético. O sim tornando-se nao, o nao tornando-se sim, o sim tornando-se simultaneamente sim e nado, 0 nao tornando-se simultaneamente no e sim, os contrarios se equili- bram, neutralizam, paralisam. A fusdo destes dois elementos con- traditérios constitui um pensamento novo, que é a sua sintese. Este novo pensamento se desdobra ainda em dois pensamentos contra- ditérios que, por seu turno, se fundem em uma nova sintese. Deste trabalho de processo de criag’o nasce um grupo de pensamentos. Este grupo de pensamentos segue 0 mesmo movimento dialético de uma categoria simples, e tem por antitese um grupo contraditorio. Destes dois grupos de pensamento nasce um novo, que é sua sintese. Assim como do movimento dialético das categorias simples nasce 0 grupo, do movimento dialético dos grupos nasce a série e do movimento dialético das séries nasce todo o sistema. Aplique-se este método a economia politica e ter-se-A a légica e a metafisica da economia politica ou, em outros termos, as categorias econdmicas que todos conhecem traduzidas numa lin- guagem pouco conhecida, o que lhes da a aparéncia de recém- desabrochadas de uma cabeca da razdo pura — porque estas cate- gorias parecem engendrar-se umas As outras, encadear-se e entre- lagar-se umas ds outras gragas ao exclusivo trabalho do movimento dialético. O leitor que nao se espante com essa metafisica e todos os seus andaimes de categorias, grupos, séries e sistemas. O Sr. Prou- dhon, apesar de todo o seu grande esforgo para escalar o cimo do sistema das contradi¢ées, jamais conseguiu passar dos dois primeiros degraus da tese e da antitese simples e, ademais, s6 os alcangou duas vezes — numa delas, caiu de costas. Até agora, expusemos apenas a dialética de Hegel. Mais tarde, veremos como o Sr. Proudhon conseguiu reduzi-la As mais mesqui- nhas proporcdes. Para Hegel, portanto, tudo o que ocorreu e que ainda ocorre é precisamente 0 que ocorre em seu préprio raciocinio. Assim, a filosofia da histéria no € mais que a histéria da filosofia, 105 da sua propria filosofia. JA nio h& a “‘histéria segundo a ordem temporal": h&, apenas, a “sucessdo das idéias no entendimento”. Ele acredita construir 0 mundo pelo movimento do pensamento, enquanto somente reconstré6i, de forma sistemAtica e ordenando segundo o método absoluto, as idéias que estAo na cabeca de todo mundo. Segunda observagao As categorias econédmicas sio expressdes tedricas, abstracdes das relagdes sociais da producao. O Sr. Proudhon, qual um filésofo auténtico, tomando as coisas ao inverso, vé nas relacdes reais as encarnagdes destes principios, destas categorias que, como nos diz ainda o filésofo Sr. Proudhon, estariam adormecidas no seio da “razio impessoal da humanidade”’. O Sr. Proudhon, economista, compreendeu muito bem que os homens fazem os tecidos de 14, algodao e seda em relacdes determi- nadas de produg’o. Mas o que ele nao compreendeu é que estas relagdes sociais determinadas sAo também produzidas pelos ho- mens, como os tecidos de algodao, linho, etc.'*. As relagdes sociais est4o intimamente ligadas as forcas produtivas. Adquirindo novas forcas produtivas, os homens transformam o seu modo de produ¢Ao e, ao transformé-lo, alterando a maneira de ganhar a sua vida, eles transformam todas as suas relagdes sociais. O moinho movido pelo braco humano nos d4 a sociedade com o suserano; 0 moinho a vapor d&-nos a sociedade com o capitalista industrial. Os mesmos homens que estabeleceram as relag3es sociais de acordo com a sua produtividade material produzem, também, os principios, as idéias, as categorias de acordo com as suas relagdes sociais. Assim, estas idéias, estas categorias sAo tao pouco eternas quanto as relagdes que exprimem. Elas sao produtos histéricos e transit6rios. H&um movimento continuo de crescimento nas forgas produti- vas, de destruigao nas relagdes sociais, de formac4o nas idéias; de imut&yel, s6 existe a abstragéo do movimento — mors immortalis'**. (124) [No seu exemplar, Proudhon enotou: “Foi o que pretendi fazer; ¢ creio que jé € alguma coisa. A sua primeira observacho nao observa nada”. | (125) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “Mentira. Eu digo exatamente isto. A sociedade produz leis e os materiais da sua experiéncia’ (126) {Marx retoma aqui um verso de Lucrécio, extraido de De Rerum Natura (Da Natureza das Coisas), livro III, verso 869: “‘mortalem vitam mors immortalis ademit" (‘a morte imortal ceifou a vida mortal"). No seu exemplar, Proudhon anotou: "Sim, eternas como & humanidade, nem mais, nem menos; ¢ todas contem- porfiness. A sua segunda observacio nio conduz a nada”. | 106 Tercetra observacgao As relaces de produc4o de qualquer sociedade constituem um todo. O Sr. Proudhon considera as relag?es econdmicas como umas tantas fases sociais que se cngendram umas as outras, que resultam umas das outras assim como a antftese resulta da tese, € que realizam, na sua sucesso logica, a raz4o impessoal da humanidade. O finico inconveniente deste método é que. ao abordar o exame de apenas uma dessas fases, 0 Sr. Proudhon s6 possa explic4- la recorrendo a todas az outras relagdes da sociedade que, no en- tanto, ele ainda ndo engendrou pelo seu movimento dialético. Quando, em seguida, o Sr. Proudhon, através da razdo pura, passa a engendrar outras fases, f4-lo como se fossem recém-nascidas, esquecendo-se que t¢m a mesma idade da primeira’” . Assim, para chegar & constituicdo do valor que, para ele, ¢ a base de todas as evolucées econdmicas, nio podia prescindir da divisio do trabalho, da concorréncia, etc. Entretanto, na série, no entendimento do Sr. Proudhon, na sucessdo ldégica, estas relagdes ainda nao existiam. Construindo-se com as categorias da economia politica 0 edi- ficio de um sistema ideolégico, deslocam-se os componentes do sistema social. Transformam-se os diferentes componentes da socie- dade em varias sociedades, que se sucedem umas 4s outras. De fato, como é que a formula logica do movimento, da sucessao, do tempo, poderia explicar, sozinha, 0 corpo social, no qual todas as relacdes coexistem simultaneamente, sustentando-se umas 4s outras'™? Quarta observacao Vejamos agora que modificagdes o Sr. Proudhon impve a dialética de Hegel ao aplica-la A economia politica. Para o Sr. Proudhon, toda categoria econdmica tem dois lados — um bom, outro mau. Ele considera as categorias como o pe- queno-burgués considera os grandes homens da hist6ria: Napoledo é um grande homem; fez muita coisa boa mas, também, fez muita coisa ma. O lado bom e 0 lado mau, a vantagem e 0 inconveniente, tomados em conjunto, constituem, para o Sr. Proudhon, a contra- i¢do em cada categoria econdmica. (127) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “Digo exatamente tudo isto. Entdo, explique-me como vocé parte dai para falar sucessivamente dos objetos da economia politica?”. } (128) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “Quem Ihe fala disto? A sua observagao é uma calinia”. | 107 Problema a resolver: conservar o lado bom, eliminando o mau. A escravidao uma categoria econémica como qualquer ou- tra. Portanto, possui também seus dois lados. Deixemos o lado mau e falemos do lado bom da escravidao, esclarecendo que se trata da escravidao direta, a dos negros no Surinam, no Brasil, nas regides meridionais da América do Norte. A escravidio direta € o eixo da inddstria burguesa, assim como as mAquinas, 0 crédito, etc. Sem escravidao, nao teriamos o algodao; sem 0 algod4o, nao teriamos a industria moderna. A escraviddo valorizou as colénias, as colénias criaram o comércio universal, o comércio que é a condi¢do da grande industria. Por isto, aescraviddo é uma categoria econdmica da mais alta importancia. Sem a escravidio, a América do Norte, o pais mais progres- sista, transformar-se-ia num pafs patriarcal. Tire-se a América do Norte do mapa do mundo e ter-se-4 a anarquia, a completa deca- déncia do comércio e da civilizagao modernos. Suprima-se a escra- vidao e ter-se-4 apagado a América do Norte do mapa das nacdes Aeescravidao, por ser uma categoria econdmica, sempre exis- tiu nas instituigdes dos povos. Os povos modernos conseguiram apenas disfargar a escravidio em seus proprios paises, impondo-a sem véus no novo mundo. Como far o Sr. Proudhon para salvar a escravidao? Colocara 0 problema: conservar o lado bom desta categoria econdmica e eliminar o lado mau. Hegel nao tem problemas a colocar. Ele possui apenas a dialética. Da dialética de Hegel, 0 Sr. Proudhon sé tem a lin- guagem. O movimento dialético, para ele, ¢ a distingao dogmatica entre o bom eo mau. Tomemos, por um instante, o proprio Sr. Proudhon como categoria. Examinemos seu lado bom e seu lado mau, suas vanta- gens € seus inconvenientes. Se, em relac’o a Hegel, ele tem a vantagem de colocar pro- blemas, reservando-se 0 resolvé-los para o bem maior da humani- (129) [Na edigao alem& de 1885, Engels introduziu, aqui, a seguinte nota: “Em 1847, istoera perfeitamente exato. Ent&o, 0 comércio dos Estados Unidos com 0 mundo se limitava, principalmente, a importa;4o de emigrantes ¢ de artigos indus- triais e & exportaco de algodio € de tabaco, ou seja, produtos do trabalho dos escravos do sul. O norte produzia, sobretudo, trigo e came para as regides escrava- gistas. A abolico da escravatura s6 foi possivel quando 0 norte comesou a produzir irigo € carne para exportag4o ao mesmo tempo em que se industrializava ¢ quando o monop6lio algodoeiro norte-americano comegou a sofrer a forte concorréncia da India, doEgito, do Brasil, etc. A conseqiéncia da abolig&o foi a rufna do sul, que nao conseguiu substituir a escravidao aberia dos negros pela escraviddo camuflada do> coolies hindus e chineses". | 108 dade, tem 0 inconveniente de ser atacado de esterilidade quando se trata de engendrar, através do trabalho da elaboragao dialética, uma categoria nova. O que constitui 0 movimento dialético é a coexisténcia de dois lados contraditorios, sua luta ¢ sua fusao numa categoria nova. E suficiente colocar 0 problema da eliminac4o do lado mau para liquidar o movimento dialético. Nao é a categoria que se pde e se opde a si mesma pela sua natureza contraditéria: € 0 Sr. Proudhon, que se move, se debate ¢ se agita entre os dois lados da categoria. Situado assim num impasse, do qual é dificil escapar pelos meios legais, o Sr. Proudhon realiza um verdadeiro malabarismo, que o transporta a uma categoria nova. E entdo que se revela, a seus olhos assombrados, a série no entendimento Ele toma a primeira categoria que aparece e lhe atribui, arbitrariamente, a qualidade de veicular a corregao dos inconve- nientes da categoria que é necessario depurar. Assim, os impostos corrigem, a crer-se no Sr. Proudhon, os inconvenientes do mono- polio; a balanga comercial, os dos impostos; a propriedade fun- diaria, os do crédito. Tomando, desta maneira, as categorias econdmicas sucessi- vamente uma a uma e fazendo desta 0 antidoto daquela, o Sr. Proudhon consegue construir, com esta mistura de contradigées e antidotos de contradicdes, dois volumes de contradicdes, a que da, com justa razio, o titulo de Sistema das Contradigées Econé- micas ™, Quinta observagéio “Na razao absoluta, todas estas idéias... sio igualmente sim- ples e gerais... De fato, sé chegamos a ciéncia através de uma espécie de andaimes, erguidos com as nossas idéias, Mas a verdade em si € independente destas figuras dialéticas e livre das combinagoes do nosso espirito” "!. Repentinamente, gracas a uma espécie de reviravolta cujo segredo ja conhecemos, eis que a metafisica da economia politica tornou-se uma ilusdo! Jamais 0 Sr. Proudhon disse algo tao correto. (130) | Ao longo desta quarta observado de Marx, Proudhon, no seu exem- plar, fez seis anotagdes. Fle considera “absurda” a interpretacho que Marx oferece da sua dialética, nega qualquer intencdo de suprimir 0 “lado mau” e afirma que esta observacdo € apenas “‘caldnia” e “mentira". No tltimo pardgrafo desta quarta observacdo, Marx nao apenas ironiza o titulo da obra de Proudhon como, ainda, as suas disquisigdes sobre o problema da balanga comercial. | (131) Proudhon, foc. cit., II, p. 97. 109 i E claro que, a partir do momento em que o processo do movimento dialético se reduz ao simples procedimento de opor 0 bem ao mal, de colocar problemas destinados a eliminagao do mal e de apresentar uma categoria como antidoto da outra, a partir deste momento as categorias perdem sua espontaneidade: a idé¢ia “j4 nao funciona”, j& nao tem vida em si mesma. Ela nao se pde nem se decompde mais em categorias. A sucessio destas tornou-se uma espécie de andai- mes. A dialética nio é mais 0 movimento da razdo absoluta. Nao h& mais dialética; h4, no maximo, a moral pura. Quando o Sr. Proudhon falava da série no entendimento, da sucessdo ldgica das categorias, declarava positivamente que nao pretendia expor a histéria segundo a ordem temporal, ou seja, de acordo com o Sr. Proudhon, a sucessao historica na qual as cate- gorias se manifestaram. Tudo se passava, ent4o, para ele, no éter puro da razao. Tudo devia derivar deste éter gracas a dialética. Agora, quando se trata de colocar em prftica esta dialética, a razdo 9 abandona. A dialética do Sr. Proudhon renega a de Hegel, € ei-lo compelido a dizer que a ordem em que apresenta as categorias econémicas n&o é aquela pela qual elas se engendram umas As outras. Asevolugdes econdmicas j4 ndo s&o mais as evolugdes da pro- priarazao. O que, entao, o St. Proudhon nos apresenta? A hist6ria real, isto é, segundo o seu entendimento, a sucesso pela qual as cate- gorias se manifestaram na ordem temporal? Nao. A historia tal como se desenvolve na propria idéia? Menos ainda. Portanto, nem a historia profana nem a histéria sagrada das categorias. Enfim, que historia nos oferece? A histéria das suas préprias contradicdes. Vejamos como elas se desenvolvem e como arrastam atras de si o Sr. Proudhon. Antes de abordar 0 exame desta questo, que constituira a nossa sexta observagao importante, temos, ainda, que fazer uma outra observac4o, menos importante. Admitamos, com o Sr. Proudhon, que a histéria real, a hist6- ria segundo a ordem temporal, € a sucessdo histérica na qual as idéias, as categorias, os principios se manifestaram. Cada principio teve o seu século para nele se manifestar: o principio da autoridade, por exemplo, teve o século XI, como o do individualismo teve o XVIII. De conseqiiéncia em conseqiiéncia, era o século que pertencia ao principio, ¢ nao o principio ao século. Noutros termos: era o principio que fazia hist6ria, n4o a histéria ao principio. Quando, em seguida, tanto para salvar os principios como a historia, indaga-se por que tal principio se manifestou nos séculos XI ou XVII] e nao em outros, é-se obrigatoriamente forcado a examinar com mindcia quais eram os homens dos séculos XI e¢ 110 XVIII, quais cram as suas respectivs necessidades, suas forgas produtivas, seu modo de produgao, as matérias-primas da sua pro- ducdo — enfim, quais eram as relacdes entre os homens que resul- tavam de todas estas condicdes de existéncia. Aprofundar todas estas questées ndo é fazer a histéria real, profana, dos homens em cada século, representar estes homens simultaneamente como os autores e os atores do seu proprio drama? Mas, a partir do momento em que os homens sdo representados como atores e autores da sua prépria historia, chega-se, por um atalho, ao verdadeiro ponto de partida, uma vez que sao abandonados os principios eternos de que inicialmente se arrancava. O Sr. Proudhon nao avangou o suficiente nem mesmo nestes atalhos que o idedlogo percorre para alcangar a grande estrada da histéria 7. Sexta observagdo Tomemoso atalho, como Sr. Proudhon. Admitamos que as relagées econdmicas, consideradas como leis imutdveis, princtpios eternos, categorias ideais, sejam anteriores aos homens, aos homens ativos e atuantes'”; admitamos, ainda, que estas leis, estes principios, estas categorias, desde a origem dos tempos, tenham estado adormecidas ‘'no seio da raz4o impessoal da humanidade’’, J4 vimos que, com todas estas eternidades imutaveis e iméveis, ndo h4 histéria; h4, no maximo, a historia na idéia, ou seja, a historia que se reflete no movimento dialético da raz4o pura O Sr. Proudhon, afirmando que, no movimento dialético, as idéias j& nao se ‘“‘diferenciam”, liquidou quer a sombra do movimento quer 0 movimento das sombras, através das quais, pelo menos, poder-se-ia criar um simulacro de histéria. Ao invés, ele imputa a hist6ria a sua propria impoténcia ¢ reclama de tudo, até da lingua francesa. Diz o Sr. Proudhon filésofo: “Nao € exato, portanto, dizer que qualquer coisa acontece, que qualquer coisa se produz: na civilizagao, como no uni- verso, tudo existe, tudo atua desde sempre. |...] O mesmo acontece com toda a economia social" , (132) {Em seu exemplar, Proudhon anotou: “Quando é que preiendi que os principios sejam mais que representac&o intelectual, causa geradora de fatos?... O verdadeiro sentido da obra de Marx est4 no lamentar que, em tudo, eu tenha pensado como ele ¢ que o tenha dito antes dele. S6 resta ao leitor crer que € Marv quem, depois de me ler, lamenta pensar como eu. Que homem!". | (133) [ No seu exemplar, Proudhon anotou: “Nao tenho necessidade desta sua admissdo". | (134) Proudhon, Joe. cit., 1, p. 102. Wt Tamanha é a forca produtora das contradigées que funcionam e que fazem funcionar o Sr. Proudhon que, pretendendo explicar o aparecimento sucessivo das relacdes sociais, ele nega que qualquer coisa possa acontecer, que. pretendendo explicar a produg’o com todas as suas fases, ele contesta que qualquer coisa possa produzir- se. Portanto, para o Sr. Proudhon, j4 nao hé histéria, j4 nao hé sucessao de idéias e, entretanto, o seu livro ainda subsiste — e este livro é, precisamente, de acordo com a sua propria expressdo, a historia segundo a sucessdo das idéias. Como encontrar uma fér- mula, porque o Sr. Proudhon € o homem das formulas, que o ajude a ultrapassar, com um unico salto, todas as suas contradi¢des? Para isto, ele inventou uma razdo nova, que ndo é nem a razdo absoluta, pura e virgem, nem a raz4o comum dos homens ativos e atuantes nos diferentes tempos, mas uma razdo inteiramente a parte: a razAo da sociedade-pessoa, do sujeito humanidade, que, através da pena do Sr. Proudhon, surge as vezes como “‘génio social”, “‘razdo geral”’ e, por ultimo, como “razdo humana”. Esta raz4o, travestida com tantos nomes, da-se, todavia, a conhecer, a cada instante, como a razao individual do Sr. Proudhon, com seus lados bom e mau, seus antidotos e seus problemas. ‘A razao humana nao cria a verdade"’, oculta nas profundezas da razao absoluta, eterna; pode apenas desvel4-la. Mas as verdades que, até hoje, ela desvelou s4o incompletas, insuficientes e, por isto mesmo, contraditorias. Portanto, as categorias econémicas, sendo elas mesmas verdades descobertas, reveladas pela razao humana, pelo génio social, s4o, igualmente, incompletas, contendo o germe da contradic4o. Antes do Sr. Proudhon, o génio social viu somente os elementos antagénicos, € nao a formula sintética, ambos ocultos, simultaneamente, na razdo absoluta. Apenas realizando sobre a terra estas verdades insuficientes, estas categorias incompletas, es- tas nogdes contraditérias, as relagdes econémicas so, pois, em si mesmas, contraditérias e apresentam os dois lados, um bom, outro mau. Encontrar a verdade completa, a nog4o em toda a sua pleni- tude, a formula sintética que liquide a antinomia — eis o problema do génio social. Eis também por que, na ilusdo do Sr. Proudhon, 0 mesmo génio social foi conduzido de uma categoria a outra, sem ter conseguido ainda, com toda a sua bateria categorial, arrancar a Deus, a razdo absoluta, uma formula sintética. “Inicialmente, a sociedade (o génio social) postula um pri- meiro fato, formula uma hipétese... verdadeira antinomia, 112 cujos resultados antagénicos se desenrolam na economia so- cial da mesma forma como as conseqiiéncias poderiam ser deduzidas no espirito; de modo que o movimento industrial, seguindo em tudo a deducdo das idéias, divide-se em dois fluxos: um, dos efeitos titeis, e outro. dos resultados subver- sivos... Para constituir harmonicamente este principio duplice e resolver esta antinomia, a sociedade cria uma segunda anti- nomia, que logo sera seguida de uma terceira, e esta sera a marcha do génio social até que esgote todas as suas contra- digdes — suponho, embora isto ndo esteja provado, que a contradigao na humanidade tera fim —, regressando, com um salto, a todas as suas posicdes anteriores e resolvendo, numa sé formula, todos os seus problemas". Do mesmo modo como, antes, a antitese era transformada em antidoto, agora a tese se torna hipotese. Esta alteragdo de termos nao tem por que nos surpreender, em se tratando do Sr. Proudhon. A razio humana, que é tudo, exceto pura, sendo capaz apenas de visdes incompletas, encontra, a cada passo, novos problemas a resolver. Cada nova tese que descobre na razdo absoluta e que € a negacdo da primeira tese torna-se, para ela, uma sintese, que aceita ingenuamente como a solugao do problema em causa. Eis por que esta razao se debate em contradicdes sempre novas até que, nao mais as encontrando, se apercebe que todas as suas teses e sinteses s4o apenas hipéteses contraditérias. Na sua perplexidade, ‘‘a razio humana, o génio social, regressa, com um Salto, a todas as suas posigdes anteriores e resolve, numa sO férmula, todos os seus pro- blemas". Esta formula tnica, diga-se de passagem, constitui a verdadeira descoberta do Sr. Proudhon. E 0 valor constituido. Sempre se formulam hipéteses com vistas a um fim qualquer. O fim visado primeiramente pelo génio social que fala pela boca do Sr. Proudhon era eliminar o que havia de mau em cada categoria econémica, para resguardar nela apenas o lado bom. Para ele, 0 bom, o bem supremo, o verdadeiro fim prAtico, é a igualdade. E por que o génio social se propunha mais a igualdade que a desigualdade, a fraternidade, 0 catolicismo ou qualquer outro principio? Porque ‘‘a humanidade s6 realizou sucessivamente tantas hipdteses parti- culares tendo em vista uma hipétese superior’’, que, precisamente, é a igualdade. Noutras palavras: porque a igualdade é 0 ideal do Sr. Proudhon. Ele imagina que a divisao do trabalho, o crédito, a fabrica, todas as relagdes econémicas foram inventadas apenas em (135) Proudhon, loc. cit., 1, p. 133. 113 proveito da igualdade e, no entanto, sempre acabaram se voltando contra ela. Jé que a hist6ria e a ficga0 do Sr, Proudhon conflitam a cada passo, ele deduz que neste fato existe contradicdo. Se existe contradigao, € apenas entre a sua idéia fixa e o movimento real. Daqui em diante, o lado bom de uma relagao econémica é 0 que afirma a igualdade; o mau € 0 que a nega e afirma a desigual- dade. Toda nova categoria 6 uma hipétese do génio social para eliminar a desigualdade engendrada pela hipétese precedente. Em resumo, a igualdade € a inten¢ao primitiva, a tendéncia mistica, 0 objetivo providencial que 0 génio social tem sempre em vista, gi- rando no circulo das contradi¢ées econémicas. Por isto, toda a bagagem econémica do Sr. Proudhon € melhor transportada pela locomotiva da Providéncia que pela sua razdo pura e etérea. A Providéncia ele consagra todo um capitulo, o que se segue ao sobre os impostos'* . Providéncia, fim providencial — eis as grandes palavras que se utilizam hoje para explicar a marcha da histéria. Na realidade, estas palavras nada explicam: sao, no mAximo, formas declamatérias, maneiras, como quaisquer outras, de parafrasear os fatos?’. E verdade que, na Escécia, as propriedades fundifrias adqui- riram um valor novo pelo desenvolvimento da industria inglesa, que abriu novos mercados para a la. Para produzir 14 em grande escala, era preciso transformar os campos de lavoura em pastagens. Para realizar esta transformac4o, era preciso concentrar a propriedade: era preciso erradicar as pequenas fazendas de arrendatérios, expul- ser milhares deles da sua terra natal e substituj-los por uns quantos pastores encarregados de cuidar de milhdes de ovelhas. Assim, através de sucessivas transformagoes, a propriedade fundiéria resul- tou, na Escécia, na expuls&o dos homens pelas ovelhas. Diga-se, pois, que o fim providencial da instituigao da propriedade fundi4ria na Esc6cia objetivava expulsar os homens, substituindo-os pelas ove- lhas — e ter-se-4 feito hist6ria providencial. E indiscutivel que a tendéncia a igualdade pertence ao nosso século. Dizer, todavia, que todos os séculos anteriores — com neces- sidades, meios de producao, etc., totalmente diferentes — operaram providencialmente para a realizacAo da igualdade, é, antes de tudo, substituir pelos meios e homens do nossc século os meios e homens de séculos anteriores e desconhecer o movimento hist6rico através do (136) [Marx se refere ao capitulo VIII do livro de Proudhon, intitulado “Da responsabilidade do homem e de Deus sob a lei da contradic¢&o, on solucRo do problema da Providéncia”. | (137) [No seu exemplar, Proudhon, indignado, fez varias anotacdes, concluf- das pela frase: “Eis-me também culpado de adorar a Providéncia!"’.} 114 qual as geracdes sucessivas transformam os resultados adquiridos pelas que as precederam. Os economistas sabem muito bem que a mesma coisa que, num caso, é matéria trabalhada, noutro é ma- téria-prima de uma nova producao. Suponha-se, como o faz o Sr. Proudhon, que o génio social tenha produzido, ou, sobretudo, improvisado, os senhores feudais com o fim providencial de transformar os colonos em trabalhadores respons4veis e igualitérios. Ter-se-4, assim, uma substituigao de fins € pessoas digna desta Providéncia que, na Escocia, instituia a pro- priedade fundiaria para se dar ao maligno prazer de contemplar a expulsdo dos homens pelas ovelhas'™ . Mas, posto que o Sr. Proudhon tenha um interesse t4o terno pela Providéncia, remetemo-lo a Histéria da Economia Politica, do Sr. Villeneuve-Bargemont*’, que, também ele, corre atras de um fim providencial. Este fim jA ndo é a igualdade, é o catolicismo. Sétima e ultima observagao Os economistas tm procedimentos singulares. Para eles, s6 existem duas espécies de instituicdes, as artificiais e as naturais. As instituigdes da feudalidade sdo artificiais, as da burguesia s4o natu- rais. Nisto, eles se parecem aos tedlogos, que também estabelecem dois tipos de religido: a sua € a emanacao de Deus, as outras sio invencdes do homem. Dizendo que as relacdes atuais — as relagdes da produgdo burguesa — sdo naturais, os economistas dio a entender que é nestas relagdes que a riqueza se cria e as for¢as produtivas se desenvolvem segundo as leis da natureza. Portanto, estas relagdes sao, elas mesmas, leis naturais independentes da influéncia do tempo. Sao leis eternas que devem, sempre, reger a sociedade. Assim, houve histéria, mas j4 nao ha mais. Houve histéria porque (138) [A expulsio dos arrendathrios escoceses (clearing of estates) ser objeto de um artigo de Marx, publicado no New York Tribune (09/02/1853), ¢ tema do capitulo XXVII do livro primeiro d’O Capital. Ao longo de toda esta passagem, Prou- dhon, no seu exemplar, fez varias anotegdes; um de seus comenthrios foi: “Pasqui- nadal", Face as observagdes de Marx sobre a sua filosofia da igualdade, escreveu: “O que significa esta chicana? — As geragoes transformam! — Digo que o mesmo principio une, governa todas as manifestagdes; s6 sei de transformardo. A Franca de 89 transformou seu monarca absoluto em monarca constitucional. Muito bem. Eis o seu estilo. De minha parte, digo que o Estado, em 89, regularizou & divisdo de poderes politicos existentes antes de 89. O leitor julgard. A sexta observagAo incide sobre Hegel e nada expde". No final, quando Marx ironiza a sua ternura face 3 Providéncia, Proudhon se irrita novamente: “Quanta asneira sobre o que escrevi!”. | (139) | Marx se refere a Histoire de l'Economie Politique, de A. de Villeneuve- Bargemont, publicada em Bruxelas, em 1839.| 11S existiram instituicdes da feudalidade e porque, nelas, encontram-se relagdes de produgao inteiramente diferentes das da sociedade bur- guesa, que os economistas querem fazer passar por naturais e, logo, eternas. A feudalidade também possuia o seu proletariado — os servos —. que continha todos os germes da burguesia. A producio feudal também possufa dois elementos antagénicos, designados igualmente como 0 lado bom e 0 lado mau da feudalidade, sem se considerar que sempre o lado mau sobrepés-se ao bom. E 0 lado mau que produz 0 movimento que faz a histéria, constituindo a luta. Se, na época da dominagdo da feudalidade, os economistas, entusiasmados com as virtudes cavalheirescas, com a bela harmonia entre deveres e direitos, com a vida patriarcal das cidades, com o estado de prospe- ridade da industria doméstica nos campos, com 0 desenvolvimento da indistria organizada pelas corporacées, confrarias e grémios — entusiasmados, enfim, com tudo o que constitui o lado bom da feudalidade, resolvessem eliminar tudo 0 que tornava sombrio este quadro — servidao, privilégios, anarquia —, 0 que aconteceria? Ter-se-ia eliminado todos os elementos constitutivos da luta e sufo- cado, no seu embrido, o desenvolvimento da burguesia. Ter-se-ia colocado 0 absurdo problema de liquidar a histéria. Quando a burguesia se impés, nao se colocou a quest4o do lado bom e do lado mau da feudalidade. Ela incorporou as for¢as produtivas que desenvolvera sob a feudalidade. Foram destruidas todas as antigas formas econdmicas, as relacdes civis que lhes cor- respondiam, o estado politico que era a expresso oficial da antiga sociedade civil. Assim, para avaliar corretamente a produc&o feudal, € preciso considera-la como um modo de produg4o fundado no antagonismo. E preciso mostrar como a riqueza se produzia no interior deste antagonismo, como as forcas produtivas se desenvolviam ao mesmo tempo que o antagonismo entre classes, como uma dessas classes, 0 lado mau, o inconveniente da sociedade, ia sempre crescendo, até que as condicdes materiais da sua emancipacdo alcancassem o ponto de maturidade. Nao é 0 mesmo que dizer que o modo de produ¢io, as relagdes nas quais as forcas produtivas se desenvolvem, n&o sao leis eternas, mas correspondem a um desenvolvimento determinado dos homens e das suas forcas produtivas e que uma transformacao nas forgas produtivas dos homens conduz necessariamente a uma transformag4o nas suas relagdes de produgao? Como o que imgorta principalmente é n&o se privar dos frutos da civilizagdo, das forcas produtivas adquiridas, é preciso liquidar as formas tradicionais em que elas se produziram. A partir de entao, a classe revoluciondria torna-se conservadora. 116 A burguesia comega com um proletariado que. por seu turno, &um resto do proletariado™ dos tempos feudais. No curso do seu desenvolvimento hist6rico, a burguesia desenvolve necessariamente o seu carAter antagOnico que, inicialmente, aparece mais ou menos disfargado, existindo apenas em estado latente. A medida que a burguesia se desenvolve, desenvolve-se no seu interior um novo proletariado, um proletariado moderno: desenvolve-se uma luta entre a classe proletaria e a classe burguesa, luta que. antes de ser sentida por ambos os lados, percebida, avaliada, compreendida, confessada e proclamada abertamente, manifesta-se previamente apenas por conflitos parciais e momentaneos, por episddios subver- sivos. Por outro lado, se todos os membros da burguesia moderna tém o mesmo interesse, enquanto formam uma classe frente a outra classe, eles tém interesses opostos, antag6nicos, enquanto se defron- tam entre si. Esta oposic’o de interesses decorre das condicdes econémicas da sua vida burguesa. Dia apés dia, torna-se assim mais claro que as relagdes de producao nas quais a burguesia se move nao tém um carAter uno, simples, mas um carater duplice; que, nas mesmas relagdes em que se produz a riqueza, também se produz a miséria; que, nas mesmas relacdes onde ha desenvolvimento das forcas produtivas, ha uma forca produtora de repressdo; que estas relagdes sé produzem a riqueza burguesa, ou seja: a riqueza da classe burguesa, destruindo continuamente a riqueza dos membros integrantes desta classe e produzindo um proletariado sempre cres- cente. Mais se evidencia este carater antagénico, mais os econo- mistas, os representantes cientificos da producdo burguesa, se em- baragam com a sua prépria teoria e se formam diferentes escolas. Temos os economistas fatalistas, que, na sua teoria, sdo tao indiferentes ao que chamam inconvenientes da produgdo burguesa quanto os préprios burgueses, na prAtica, s4o-no face aos sofri- mentos dos proletarios que os auxiliam a adquirir riquezas. Nesta escola fatalista, h4 classicos e romanticos. Os classicos, como Adam Smith e Ricardo, representam uma burguesia que, lutando ainda contra os restos da sociedade feudal, trabalha apenas para depurar as relagdes econdmicas das marcas feudais, para aumentar as forgas produtivas e para dar um novo impulso a industria e ao comércio. Participando desta luta, o proletariado, absorvido neste trabalho febril, tem apenas sofrimentos passageiros, acidentais, e ele mesmo os vé deste modo. Os economistas como Adam Smith e Ricardo, que sdo os historiadores desta época, ndo tém outra missdo que a de “da classe (140) [No exemplar oferecido a N. Utina, figura esta anotagl trabalhadora”. | 17 demonstrar como a riqueza se adquire nas relagdes de produgio burguesa, de formular estas relacdes em categorias, em leis e de demonstrar como estas leis, estas categorias s4o, para a produgao de riquezas, superiores as leis ¢ As categorias da sociedade feudal. A miséria, a seus olhos, € apenas a dor gue acompanha toda gestacao, tanto na natureza como na industria ''. Os rom&nticos pertencem a nossa época, na qual a burguesia se encontra em oposi¢ao direta ao proletariado, na qual a miséria se engendra tao abundantemente como a riqueza. Ent&o, os econo- mistas se apresentam como fatalistas enfastiados que, do alto da sua posicdo, lancam um olhar de soberbo desprezo sobre os homens- mAquina que fabricam as riquezas. Plagiam todos os desenvolvi- mentos feitos pelos seus antecessores, e a indiferen¢a que, naqueles, era ingenuidade, neles se converte em afetacdo. A seguir, vem a escola hurnanitdria, que toma a peito o lado mau das relacdes de producao atuais. Ela procura, para desencargo de consciéncia, amenizar, ainda que minimamente, os contrastes reais; deplora sinceramente a infelicidade do proletariado, a concor- réncia desenfreada dos burgueses entre si; aconselha aos operarios a sobriedade, o trabalho consciencioso e a limitac&o dos filhos; reco- menda aos burgueses dedicarem-se 4 produgao com entusiasmo refletido. Toda a teoria desta escola assenta sobre as distincdes interminéveis entre a teoria e a prdtica, os princfpios e os resultados, aidéia e a aplicagdo, o contetido e a forma, a esséncia e a realidade, o direito e 0 fato, os lados bom e mau. Aescola filantrépica € a escola humanit&ria aperfeicoada. Ela nega a necessidade do antagonismo; quer tornar burgueses todos os homens e quer realizar a teoria na medida em que esta se distingue da pratica e nao contém nenhum antagonismo. E supérfluo dizer que, na teoria, é facil abstrair as contradigdes que, na realidade, se encontram a cada instante. Esta teoria, pois, corresponderia a reali- dade idealizada. Assim, os filantropos querem conservar as cate- gorias que exprimem as relacdes burguesas sem o antagonismo que as constitui e que é inseparavel delas. Imaginam combater seria- mente a prAtica burguesa e s4o mais burgueses que os outros’*’. Assim como os economistas so os representantes cientificos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas s&o os tedricos da classe proletéria. Enquanto o proletariado ainda nao est4 bastante (141) [No seu exemplar, Proudhon fez varias anotagdes: “Marx tem a pre- tensho de apresentar, em oposigio ao que eu teria escrito, tudo isto como sendo seu?”’; “Tudo istoé da minha lavral"; “Eu disse tudo isto”. } (142) [No seu exemplar, Proudhon anotou: ‘Marx faz como Vidal"’. Nos seus Carnets, Proudhon acusa Vidal dos mesmos “crimes” que Marx: incompreensao € Plbgio. | 118 desenvolvido para se constituir como classe e, conseqiientemente, a sua propria luta com a burguesia nao tem ainda um carater politic enquanto as forcgas produtivas ainda nao estado bastante desenvol- vidas, no seio mesmo da burguesia, para possibilitar uma antevisdo das condigdes materiais necess4rias a libertac4o do proletariado e 4 formacao de uma sociedade nova, estes tedricos s4o apenas utopistas que, para amenizar os sofrimentos das classes oprimidas, impro- visam sistemas e correm atras de uma ciéncia regeneradora. Mas, 4 medida que a histéria avanca e, com ela, a luta do proletariado se desenha mais claramente, eles nado precisam mais procurar a ciéncia em seu espirito: basta-lhes dar conta do que se passa ante seus olhos e se tornarem porta-vozes disto. Enquanto procuram a ciéncia e apenas formulam sistemas, enquanto se situam nos inicios da luta, eles véem na miséria somente a miséria, sem observarem nela o lado revolucion4rio, subversivo, que derrubar4 a velha sociedade. A par- tir desta observacdo, a ciéncia produzida pelo movimento histérico, e que se vincula a ele com pleno conhecimento de causa, deixa de ser doutrin4ria e se torna revolucionaria. Voltemos ao Sr. Proudhon'® . Cada relagdo econémica tem um lado bom e um lado mau — este é 0 tinico ponto em que o Sr. Proudhon nao se desmente. O lado bom, ele o vé exposto pelos economistas; o mau, denunciado pelos socialistas. Dos economistas, ele toma a necessidade de relagdes eternas; dos socialistas, a ilusio de ver na miséria apenas a miséria. Ele concorda com uns e outros na referéncia 4 autoridade da cién- cia. Esta, para ele, reduz-se As magras proporcdes de uma formula cientifica — é um homem 4 caca de formulas. E assim que o Sr. Proudhon se jacta de ter feito a critica da economia politica e do comunismo — esté aquém de ambos. Aquém dos economistas por- que, como filésofo que tem na manga uma formula magica, acre- ditou poder dispensar-se de entrar em pormenores puramente eco- némicos; aquém dos socialistas porque carece da coragem e lucidez necess4-ias para se elevar, ainda que especulativamente, acima do horizonte burgués. Ele pretende ser a sintese, e 6 um erro composto. Pretende, como homem de ciéncia, pairar acima de burgueses e prolet&rios, mas ndo passa do pequeno-burgués que oscila, cons- tantemente, entre o capital € o trabalho, entre a economia politica € o comunismo. (143) [No seu exemplar, junto das observacdes de Marx acerca dos utopistas, Proudhon anotou: "Plégio do meu primeiro capitulo’. F, quanto a frase “Voltemos ao Sr. Proudhon", escreveu: “Mas como? Voliemos! Se as paginas precedentes so uma c6pia do que eu redigi"’. 119 § 2. A divisdo do trabalho e as méquinas A divisio do trabalho abre, de acordo com o Sr. Proudhon, a série das evolugdes econdmicas. ,. \“Considerada em sua esséncia, a divis4o do tra- Lado bom da di- , po ao) balho € 0 modo pelo qual se realiza a igual- yisdo do t * ‘ Paneer visdo do trabalho dade das condicodes e das inteligéncias’’'*. “A diviséo do trabalho tornou-se, para nés, um instrumento de miséria"'*. Lado mau da di- variante visao do trabalho \ “‘O trabalho, dividindo-se segundo a lei que lhe é prépria, e que € a condicao primeira da sua fecundidade, chega a negac¢ao dos seus fins e se destr6i a simesmo"™. Probl {acontar “a recomposi¢ao que suprima os in- ro ‘ver convenientes da divisio, conservando, simulta- a resolver ( neamente, os seus efeitos uteis™™”. A divisio do trabalho, de acordo com o Sr. Proudhon, € uma lei eterna, uma categoria simples e abstrata. Portanto, é tam- bém preciso que a abstrag4o, a idéia, a palavra lhe bastem para (144) |Proudhon, loc. cit., 1, p. 93.) (145) (dem, 1, p. 94.] $146) [biden 147) Udem, +p.97.] explicar a divisdo do trabalho nas diferentes épocas da historia. As castas, as corporagées, 0 regime manufatureiro, a grande industria devem explicar-se por uma Unica palayra — dividir, Estudando-se bem, logo de inicio, o sentido de dividir, sera desnecess4rio estudar as numerosas influéncias que conferem a divisdo do trabalho, em cada época, um carAter determinado. E claro que reduzir as coisas As categorias do Sr. Proudhon é torndé-las demasiado simples. A hist6ria nunca procede t&o categori- camente'“. Na Alemanha, foram necessdrios trés séculos inteiros para estabelecer a primeira grande divisdo do trabalho, a separacdo entre as cidades e os campos. A medida que esta nica relag4o da cidade ao campo se modificava, modificava-se a sociedade inteira. Mesmo tomando somente este aspecto da divis&o do trabalho, ter- se-4 as republicas antigas ou a feudalidade crista, a antiga Ingla- terra, com os seus barées, ou a Inglaterra moderna, com os seus senhores do algodao (cotton-lords). Nos séculos XIV e XV, quando ainda nao existiam colénias, quando a América nio existia para a Europa, quando a Asia existia apenas por intermédio de Constanti- nopla e quando o centro da atividade comercial era o Mediterraneo, a divisto do trabalho tinha uma forma e um aspecto inteiramente diversos dos do século XVII, quando os espanhdis, portugueses, ingleses e franceses possuiam colénias estabelecidas em todas as partes do mundo. A extensac do mercado e a sua fisionomia dao a divisto do trabalho, em épocas ‘iferentes, uma fisionomia e um carter dificilmente dedutiveis da simples palavra dividir, da idéia, da categoria. Afirma o Sr. Proudhon: “Todos os economistas, desde A. Smith, assinalaram as van- tagens e Os inconvenientes da lei da divisdo, mas insistindo muito mais sobre as primeiras que sobre os segundos, porque isto servia melhor ao seu otimismo, e sem que, jamais, alguns deles se perguntassem o que poderiam ser os inconvenientes de uma lei... Como o mesmo principio, levado rigorosamente as suas conseqiiéncias, conduz a efeitos diametralmente opostos? Nenhum economista, nem antes nem depois de A, Smith, percebeu sequer que existe ai um problema a esclarecer. Say chega ao ponto de reconhecer que, na divisdo do trabalho, a mesma causa que produz o bem engendra o mal", (148) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “O que tudo isto prova? Que a humanidade progride lentamente™. | (149) [Proudhon, loc. cit., 1, p. 95/96.] Adam Smith viu bem mais longe do que imagina o Sr. Prou- dhon, Observou justamente que, “na realidade, a diferenca dos talentos naturais entre os indi- viduos € bem menor do que se acredita. Estas disposicdes tao diferentes, que parecem distinguir os homens das diversas profissdes quando chegamn A maturidade, s4o menos a causa que 0 efeito da divisdo do trabalho”™ . No principio, um carregador difere menos de um filosofo que um mastim de um galgo"'. A divisio do trabalho é que introduziu um abismo entre ambos. Mas isto nao impede que o Sr. Proudhon afirme, em outra passagem, que Adam Smith sequer suspeitou dos inconvenientes produzidos pela divisdo do trabalho'?. E isto, tam- bém, leva-o a dizer que J.-B. Say foi o primeiro a reconhecer que, “na divisdo do trabalho, a mesma causa que produz o bem engendra omal". Mas escutemos Lemontey (Suum cuique “O Sr. J.-B. Say deu-me a honra de adotar, no seu excelente tratado de economia politica, 0 principio que enunciei neste fragmento sobre a influéncia moral da divisdo do trabalho. O titulo um pouco frivolo do meu livro'™, sem duvida, nao lhe permitiu citar-me. S6 a este motivo posso atribuir o siléncio de um escritor tao rico em pensamentos proprios para negar um empréstimo to modesto’! Facamos justica a Lemontey: ele expés, espirituosamente, as conseqiiéncias dolorosas da divisio do trabalho, tal como ela se apresenta em nossos dias, e o Sr. Proudhon nao encontrou o que agregar a essa exposicao. Mas, j4 que, por culpa do Sr. Proudhon, estamos envolvidos nesta questao de prioridade, digamos ainda, de passagem, que muito antes do Sr. Lemontey e dezessete anos antes (150) | Marx retira a passagem da traducao francesa de A. Smith, Recherches sur la Nature et les Causes de la Richesse des Nations (Investigacao sobre a Natureza € as Causas da Riqueza das Nacées), Paris, 1802, I, p. 33/34. ] (151) | Esta frase 6 uma citagdo quase literal de A. Smith. | (182) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “Certo. Mas Smith esclareceu 0 problema? Nio”.] (153) [ A cada um o que lhe pertence. | (154) [ Lemontey refere-se a seu livro Raison, Folie, Chacun son Mot: Petit Cours de Morale Mis a la Portée des Vieux Enfants (Razdo, Loucura, a Cada Uma sua Palavra: Pequeno Curso de Moral ao Alcance dos Velhos Meninos), Paris, 1801.] (155) [P. E. Lemontey, Oeuvres Complétes (Obras Completas), Paris, 1829, 1, p. 194.] 122 que Adam Smith, A. Ferguson (de quem Adam Smith fora aluno) expusera o problema com clareza, num capitulo que trata especial- mente da divisdo do trabalho: “Poder-se-ia duvidar que a capacidade geral de uma nacgéo cresce proporcionalmente ao progresso das artes. Muitas artes mecAnicas... triunfam perfeitamente quando prescindem to- talmente do auxilio da raza4o e do sentimento; a ignorancia € tanto a mae da industria quanto da supersticao. A reflexdoe a imaginago so passiveis de erros; mas c movimento habitual do pé ou da mao independem de ambas. Portanto, poder-se-ia afirmar que a perfeic4o, em relacdo as manufaturas, consiste na possibilidade de prescindir do espirito, de forma que, sem esforco intelectual, a oficina possa ser considerada como uma maquina cujas partes sio os homens... O general pode ser muito habil na arte da guerra, mas todo o mérito do soldado limita-se 4 execugdo de alguns movimentos com 0 pé ou com a mao. Um pode ganhar o que 0 outro perde... Num periodo onde tudo est separado, a arte de pensar pode, ela mesma, constituir uma profissao a parte’’** . Para terminar esta resenha literaria, negamos formalmente que “todos os economistas tenham insistido mais sobre as vantagens que sobre os inconvenientes da divisio do trabalho". Basta citar Sismondi. Assim, no que concerne as vantagens da divis4o do trabalho, sO restava ao Sr. Proudhon a parafrase mais ou menos pomposa de expressdes gerais que todo mundo conhecia. Vejamos, agora, como ele deriva da divisio do trabalho to- mada como lei geral, como categoria, como pensamento, os incon- venientes que the sao proprios. Como esta lei, esta categoria, im- plica, em detrimento do sistema igualitario do Sr. Proudhon, uma reparti¢4o desigual do trabalho? “Nesta hora solene da divisio do trabalho, ventos tempes- tuosos comecam a soprar sobre a humanidade. O progresso nAo se realiza igual e uniformemente para todos; ... comega por abranger um pequeno numero de privilegiados... E esta parcialidade do progresso em relag4o a determinadas pessoas que originou a crenca, vigente durante tanto tempo, na desi- (156) A. Fergusson, Essai sur I'Histoire de la Société Civile | Ensaio sobre a Histéria da Sociedade Civil], Paris, 1783 (11, p. 108, 109 e 110]. 123 gualdade natural e providencial das condigdes, engendrou as castas e constituiu hierarquicamente todas as sociedades” '” . A divisao do trabalho criou as castas. Ora, as castas sdo os inconvenientes da divisao do trabalho; logo, fui a divisao do trabalho que engendrou os incorivenientes. Quod erat demonstrandum '®, Alguém pode querer ir mais longe, perguntando o que fez a divisao do trabalho criar as castas, os regimes hier&rquicos e os privile- giados. O Sr. Proudhon respondera: 0 progresso. E 0 que engendrou © progresso? A limitagao. Para o Sr. Proudhon, a limitacao é a parcialidade do progresso em relagdo a determinadas pessoas. Depois da filosofia, vem a historia. J4 nao é histéria descritiva nem hist6ria dialética: trata-se da histéria comparada. O Sr. Prou- dhon estabelece um paralelo entre o oper4rio impressor atual e 0 oper4rio impressor medieval, entre o operdrio do Creusot e o ferreiro alde4o, entre o homem de letras contemporneo e o da Idade Média e faz a balanga pender para o lado daqueles que representam, mais ou menos, a divis&o do trabalho tal como a Idade Média a constituiu ou transmitiu. Ele opde a divisdo do trabalho de uma época histérica A de outra época historica. Era isto o que o Sr. Proudhon tinha a demonstrar? Nao. Deveria mostrar os inconvenientes da divisdo do trabalho em geral, da divisio do trabalho como categoria. No en- tanto, por que insistir sobre esta parte da obra do Sr. Proudhon, se, mais adiante, vé-lo-emos retratar-se formalmente de todos estes pretensos desenvolvimentos'* ? O Sr. Proudhon continua: “O primeiro efeito do trabalho parcelar, depois da deprava¢do da alma, é 0 prolongamento das jornadas de trabalho que crescem na razdo inversa da soma de inteligéncia dispen- dida... Mas como a durac&o das jornadas n4o pode exceder dezesseis-dezoito horas, a partir do momento em que a com- pensac4o nao se possa fazer sobre 0 tempo, far-se-4 sobre 0 prego, e o sal4rio cair4... O que é certo, e tinica coisa que nos interessa frisar, € que a consciéncia universal nao avalia igual- mente o trabalho de um contra-mestre e a atividade de um servente. Portanto, é necessArio reduzir 0 preco da jornada, de forma que 0 trabalhador, depois de ter a sua alma afetada por (157) Proudhon, Joc. cit., I, p. 97. (158) [O que era necessério demonstrar. | (159) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “O problema nao esté escla- recido”.| 124 uma funcdo degradante, seja também afetado em seu corpo pela penuria da recompensa"™ , Deixaremos de lado 0 valor légico destes silogismos, que Kant chamaria de paralogismos que manquitolam ™. Eis a sua substancia: a divisdo do trabalho reduz o operario a uma funcdo degradante; a esta corresponde uma alma depravada, a que convém uma redug&o sempre crescente do salario. E, para provar que esta redugdo do salario convém a uma alma depravada, o Sr. Proudhon, para alivio de consciéncia, diz que ela é requerida pela consciéncia universal. A alma do Sr Proudhon estara incluida na consciéncia universal "? ? As mdquinas, para o Sr. Proudhon, sao a ‘‘antitese logica da divisto do trabalho” e, gracas a sua dialética, comeca por transfor- mé-las em fébrica. Depois de supor a fabrica moderna, para derivar a miséria da divis&io do trabalho, o Sr. Proudhon supée a miséria engendrada pela divis&o do trabalho para chegar a fAbrica e para poder repre- senta-la como a negacao dialética daquela miséria. Depois de atingir moralmente o trabalhador com uma funcdo degradante e fisica- mente com a pentria do salario, depois de colocar o operario na dependéncia do contra-mestre e rebaixar 0 seu trabalho ao nivel da atividade de um servente, ele recorre novamente a fabrica e as maquinas para degradar o trabalhador ‘‘dando-lhe um patrao" e conclui o seu envilecimento fazendo-o ‘‘decair da condigao de arti- fice 4 de servente’’. Que bela dialética! Se, ao menos, parasse por ai... Mas nao: ele precisa de uma nova histéria da divisio do trabalho, n&o mais para derivar dela as contradigdes, mas para reconstruir, 4 sua maneira, a fabrica. Para chegar a este fim, necessita esquecer tudo quanto, pouco antes, dissera sobre a divi- so. O trabalho se organiza e se divide diferentemente conforme os instrumentos de que dispde. O moinho manual supde uma divisao distinta daquela requerida pelo moinho a vapor. Portanto, & chocar- se contra a histéria querer comegar pela divisio do trabalho em geral para, depois, chegar a um instrumento especifico de producao, as maquinas. As m&quinas, assim como o boi que puxa 0 arado, ndo sdo uma categoria econdmica. Elas s4o apenas uma forca produtiva. A (160) | Proudhon, loc. cit., 1, p.97/98.] (161) | Paralogismo: raciocinio falso. Kant analisou o paralogismo no segundo livro da Critica da Razao Pura. | (162) [No scu exemplar, Proudhon anotou: “Vamos, caro Marx, vocé tem ma {é¢, enfim, ndo sabe nada”. | 125 {abrica moderna, fundada na utilizagio de mAquinas, é uma relacdo social de predugAo, uma categoria econdmica™”. Agora, vejamos como as coisas se passam na brilhante imagi- nacdo do Sr. Proudhon: “Na sociedade, o aparecimento incessante das m&quinas é a antitese, a formula inversa do trabalho: € 0 protesto do génio industrial contra o trabalho parcelar e homicida. De fato, 0 que € uma maquina? Uma maneira de reunir diversas particulas de trabalho, que a divisio separata. Toda mAquina pode ser definida como um resumo de v4rias operagdes... Logo, pela maquina, haver restauracao do trabalhador... As mAquinas, colocando-se na economia politica em contradig&o com a divi- sao do trabalho, representam a sintese que, no espirito hu- mano, opde-se a andlise... A divisio apenas separava as diver- sas partes do trabalho, permitindo a cada um dedicar-se 4 especialidade que mais lhe agradasse; a fAbrica retine os tra- balhadores conforme a relactio de cada parte ao todo... intro- duz o principio de autoridade do trabalho... Mas nao é tudo: a mdquina ou a fébrica, depois de degradar o trabalhador dando-Ihe um patrdo, conclui o seu envilecimento fazendo-o decair da condicAo de artifice A de servente... O periodo que agora percorremos, o das m4quinas, distingue-se por um caré- ter particular — osalariato. O salariato é posterior a divisao do trabalho e a troca’’”'™, Uma simples observagao ao Sr. Proudhon: a separacao das diversas partes do trabalho, permitindo a cada um dedicar-se a especialidade que mais lhe agrada — separacfo que o Sr. Proudhon data do come¢o do mundo —, sé existe na industria moderna sob 0 regime da concorréncia. Em seguida, o Sr. Proudhon nos apresenta uma ‘‘genealogia” extraordinariamente ‘‘interessante’', para demonstrar como a {A- brica nasceu da divisdo do trabalho e o salariato da fabrica. 19) Ele supde um homem que ‘‘obseryou que, dividindo a produc&o em suas diversas partes e fazendo executar cada uma delas por um operério”, multiplicou as forgas de produgao. 2°) Este homem, ‘‘seguindo o fio daquela idéia, diz-se a si mesmo que, formando um grupo permanente de trabalhadores esco- lhidos para 0 objetivo especial que se propde, obter4 uma producdo mais elevada, etc. . (163) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “Quem diz isto é um filésofo".| (164) [Proudhon, foc. cit., I, p. 135, 136 e 161.] (165) (Idem, I, p. 161.] 126 3°) Este homem faz uma proposta a outros homens, para que aczitem a sua idéia 2 sigam o seu fio. 4°) Este homem, no inicio da industria, trata de igual para igual os seus companheiros, que mais tarde se tornam seus ope- rarios. 5°) “E compreensivel, com efeito, que esta igualdade primi- tiva deveria desaparecer rapidamente gracas a posic4o vantajosa do patr4o e A dependéncia do assalariado""™ . Esta € outra amostra do método histérico e descritivo do Sr. Proudhon. Examinemos, agora, a partir do ponto de vista histérico e econémico, se, na verdade, a fabrzica ou a maquina introduziram o principio de autoridade na sociedade, posteriormente a divisdo do trabalho; se isto, de um lado, reabilitou o operario, submetendo-o, de outro, 4 autoridade; se a maquina é a recomposicao do trabalho dividido, a sfntese do trabalho oposta a sua andlise. A sociedade inteira tem em comum com o interior de uma fAbrica 0 fato de possuir também a sua divisao do trabalho. Se se tomasse como modelo a divisdo do trabalho numa fabrica moderna para aplic4-lo a uma sociedade, a sociedade melhor organizada para a produgdo de riquezas seria, incontestavelmente, aquela que sé tivesse um empresario-chefe, distribuindo entre os membros da comunidade tarefas previamente determinadas. Mas nao é isto o que se verifica. Enquanto, no interior da fabrica moderna, a divisao do trabalho é minuciosamente regulada pela autoridade do empre- sario, a sociedade moderna, para distribuir o trabalho, nao tem outra regra ou autoridade que a da livre concorréncia. Sob o regime patriarcal, sob o regime de castas, sob o regime feudal e corporativo, havia divisdo do trabalho na sociedade inteira segundo regras fixas. Tais regras eram estabelecidas por um legis- lador? Nao. Nascidas primitivamente das condigdes de produgao material, elas s6 foram redigidas em leis muito mais tarde. Foi assim que estas diversas formas da divisdo do trabalho tornaram-se as bases de diversas organizagdes sociais. Quanto a divisdo do trabalho na oficina, ela era muito pouco desenvolvida em todas estas formas de sociedade. Pode-se mesmo estabelecer como regra geral que, quanto menos autoridade preside a divisdo do trabalho no interior da socie- dade, mais a divis&o do trabalho se desenvolve no interior da oficina e mais ela estA ai submetida a autoridade de uma s6 pessoa. Por- tanto, em relacd4o a divisao do trabalho, a autoridade na oficina e a autoridade na sociedade est4o reciprocamente em razao inversa. (166) | Jdem, I, p. 163.) 127 Convém observar, agora, o que é a fabrica, na qual as ocu- paces estao separadas, onde a tarefa de cada trabalhador se reduz auma operacdo muito simples. e onde a autoridade, o capital, reine ¢ dirige os trabalhos. Como nasceu esta fabrica? Para responder a esta pergunta, teriamos que examinar como a indidstria manufatu- reira propriamente dita se desenvolveu. Quero referir-me a esta industria que ainda nao é a moderna, com as suas mAquinas, mas que também no é mais a industria dos artesios da Idade Média, nem a industria doméstica. Nao entraremos em pormenores: expo- remos alguns pontos sum4rios, para mostrar que nao é possivel fazer ahistéria com formulas. Uma condig&o das mais indispensaveis para a formagao da indistria manufatureira era a acumulacdo de capitais, facilitada pela descoberta da América e pela introducdo de seus metais pre- ciosos. Esta suficientemente provado que o aumento dos meios de troca teve por conseqiiéncia, de um lado, a depreciacao dos salarios e das rendas fundiarias e, de outro, o crescimento dos lucros indus- triais. Em outros termos: enquanto a classe dos proprietarios e a clas- se dos trabalhadores, os senhores feudais e 0 povo, decaiam, ascendia a classe dos capitalistas, a burguesia. Outras circunstancias concorreram, simultaneamente, para 0 desenvolvimento da inddstria manufatureira: 0 acréscimo de merca- dorias postas em circulag4o desde que o comércio penetra nas Indias Orientais pela via do Cabo da Boa Esperanga, o regime colonial, o desenvolvimento do comércio maritimo. Um outro ponto que ainda nao foi devidamente apreciado na histéria da industria manufatureira foi a liberagao de numerosos s€quitos dos senhores feudais, cujos membros subalternos se torna- ram vagabundos antes de entrar nas fabricas. A criagao da fabrica foi precedida, nos séculos XV e XVI, por uma vagabundagem quase universal. A fabrica encontrou, ainda, um forte apoio entre os numerosos camponeses que, expulsos continuamente dos campos pela sua transformagdo em pastagens e pelos progressos agricolas que requeriam menos bragos para a cultura das terras, afluiram as cidades durante séculos inteiros '". A ampliag&o do mercado, a acumulagao de capitais, as modi- ficagdes verificadas na posigdo social das classes, uma multidao de pessoas privadas das suas fontes de renda — eis as varias condicdes historicas para a formagdo da manufatura. Nao foram, como diz 0 (167) [Esta questo ser& retomada e desenvolvida por Marx n'O Capital; cfr. especialmente o capitulo XXIV, "A Chamada Acumulagio Primitiva’, item 2. “Exproprieg&o dos Camponeses” (ed. cit., livro 1, volume 1, p. 831 e5s.).] 128 eo ee ee Sr. Proudhon, negociacdes amistosas entre iguais que reuniram os homens na f4brica. A manufatura nado nasceu sequer no seio das antigas corporagdes. Foi o comerciante quem se tornou 0 chele da oficina moderna, no o antigo mestre das corporactes. Em quase todos os lugares, houve uma luta encarnigada entre a manufatura ¢ os oficios artes4os. A acumulagao e a concentracdo de instrumentos e de traba- lhadores precedeu o desenvolvimento da divisao do trabalho no interior da oficina. Uma manufatura consistia muito mais na reu- nido de varios trabalhadores e oficios num Unico local, numa insta- lagao as ordens de um capital, do que na fragmentagao dos tra- balhos e na adaptacdo de um operario especial a uma tarefa bem simples A utilidade de uma oficina consistia menos na divisto do trabalho do que no fato de se executar o trabalho em uma escala maior, reduzindo-se os custos inuteis, etc. Nos finais do século XVI e inicios do século XVII, a manufatura holandesa conhecia pouco a divisao do trabalho. O desenvolvimento da divis&o do trabalho supde a reuniao dos trabalhadores em uma oficina. Nao ha um tnico exemplo, tanto no século XVI quanto no XVII, de que os diversos ramos de um mesmo oficio tenham sido téo explorados separadamente a ponto de ser suficiente reun{-los num s6 local para se obter uma oficina com- pleta. No entanto, reunidos os homens € os instrumentos, a divisao do trabalho, tal como existia sob a forma das corporagdes, repro- duzia-se e se refletia no interior das oficinas. Para o Sr. Proudhon, que vé as coisas ao inverso — quando as vé —, a divisao do trabalho, tal como a entende Adam Smith, precede a fabrica, que é uma condicdo da sua existéncia. As méquinas propriamente ditas datam do fim do século XVIII. Nada é mais absurdo do que ver nelas a antitese da divisao do trabalho, a sintese que restabelece a unidade no trabalho frag- mentado. A maquina ¢ uma reuniao de instrumentos de trabalho, ¢ nunca uma combinacdo de trabalhos para 0 proprio operario. “Quando, pela divisdo do trabalho, cada operacdo particular é reduzida ao emprego de um instrumento simples, a reuniao de todos estes instrumentos, acionados por um unico motor, constitui uma maquina’ . (168) Babbage, Traité sur !'Economie des Machines... Paris, 1833 [a citagdo de Marx foi extraida da pAgina 230 deste livro, cujo titulo completo é: Traité sur T'Economie des Machines et des Manufactures (Tratado sobre a Economia das Mé- quinas e das Manufaturas) | 1299 Instrumentos simples, acumulacao de instrumentos, instru- mentos complexos, acionamento de um instrumento complexo por um tnico motor manual: o homem, acionamento destes instru- mentos pelas forgas naturais, m4quina, sistema de mAquinas com um s6 motor, sistema de méquinas com um motor automatico — eis ocaminho percorrido pelas m&quinas’” . A concentracao dos instrumentos de produ¢4o e a divisio do trabalho s&o tao inseparaveis uma da outra quanto, no regime politico, sfo-no a concentracéo dos poderes puiblicos e a diviséo dos interesses privados. Na Inglaterra, com a concentracdo de terras, estes instrumentos do trabalho agricola, h&é também a divisio do trabalho agricola e a mecanica aplicada a exploragao da terra. Na Franga, onde hé dispers&o dos instrumentos agricolas, com o regime parcelar, nao existe, em geral, nem diviséo do trabalho nem apli- cacao das maquinas a terra. Para o Sr. Proudhon, a concentrac4o dos instrumentos de trabalho é a negac&o da divisdo do trabalho. Na realidade, verifi- camos 0 oposto. A medida que se desenvolve a concentragao dos instrumentos, desenvolve-se também a divisao e vice-versa. E isto o que faz com que toda grande invencao na mecfnica seja seguida de uma maior divisdo do trabalho e que cada acréscimo na divisao do trabalho por sua vez, conduza a novas invengdes mecfnicas '”. Nao temos necessidade de lembrar que os grandes progressos da divisao do trabalho comegaram na Inglaterra apés a inven¢gao das mAquinas. Assim, os teceldes e os fiandeiros eram, na sua maioria, camponeses, como ainda o s&o nos paises atrasados. A inven¢do das mé&quinas acabou por separar a industria manufatureira da indus- tria agricola. O teceldo e o fiandeiro, outrora reunidos numa sé familia, foram separados pela mAquina. Gragas a esta, o fiandeiro pode morar na Inglaterra enquanto o tecelao vive nas Indias Orien- tais. Antes da invenco das m4quinas, a industria de um pais operava principalmente com as matérias-primas nele produzidas: a 14, na Inglaterra, o linho, na Alemanha, as sedas e o linho, na Franga, o algodao, nas Indias e no Levante, etc. Com as mAquinas e ovapor, a diviséo do trabalho adquiriu dimensdes tais que a grande (169) (No seu exemplar, Proudhon fez varias anotacdes: sentido de A. Smith, mas a grande divisKo natural das profissdes escrevi"; “Logo, a miquina vem depois da diviso”; “Logo, a oficina que reine as Partes do trabalho vem depois da divisao". | (170) [No seu exemplar, Proudhon fez as seguintes anotactes, referentes aos dois Gitimos parkgrafos: “Sem diivida, trata-se de uma sucesso apenas logica”’; “Sim”; “Sim, tudoisto ¢ verdadeiro, ao mesmo tempo"; “Muito bem: isto se explica Perfeitamente na sua teoria, como o desenvolvimento paralelo da riqueza e da miséria”.) 130 inddstria, desvinculada do solo nacional, depende apenas do mer- cado universal, das trocas internacionais, de uma divis&o do tra- balho internacional. Enfim, a m4quina exerce uma tal influéncia sobre a divisdo do trabalho que, no fabrico de qualquer coisa, se se conseque introduzir parcialmente a mec4nica, a fabricacio divide-se logo em duas exploragdes independentes entre si. E necessério falar do fim providencial e filantr6pico que o Sr. Proudhon descobre na invencao e na aplicacdo primitiva das méa- quinas? Quando, na Inglaterra, 0 mercado alcangou um desenvol- vimento tal que o trabalho manual ja nao lhe era suficiente, experi- mentou-se a necessidade das mAquinas. Comegou-se, entdo, a pen- sar na aplicagio da ciéncia mecfnica, constituida j4 no século XVIII. A fAbrica assinala 0 seu aparecimento com atos que sao tudo, exceto filantrépicos. As criangas foram mantidas no trabalho a golpes de chicote; tornaram-se objeto de trafico e fizeram-se con- tratos com orfanatos. Aboliram-se todas as leis sobre a aprendi- zagem dos operfrios porque, para nos servirmos das frases do Sr. Proudhon, j& nao eram necessérios operérios sintéticos. Enfim, des- de 1825, quase todas as novas invencdes resultaram das colisoes entre o operArio e o patrio, que, a qualquer preco, procura depre- ciar a especialidade do oper&rio. Depois de cada nova greve de alguma importancia, surgia uma nova maquina. O operario via tao pouco no emprego de m&quinas uma espécie de reabilitacdo, de restauragao — como diz o Sr. Proudhon —, que, durante muito tempo, no século XVIII, resistiu ao nascente império do auto- matismo"”. “Wyatt — diz o doutor Ure — descobrira ‘os dedos de fiar' [a série de rolos canelados) muito antes que Arkwright... A principal dificuldade nao consistia tanto na invengao de um mecanismo automatico... Consistia, sobretudo, na disciplina necess4ria para fazer os homens renunciarem aos seus hAbitos irregulares no trabalho e para identificé-los com a regula- ridade invaridvel de um grande autdmato. A invengdo e a imposigAo de um cédigo de disciplina manufatureira, conve- niente As exigéncias ¢ a celeridade do sistema automatico — eis (171) [No seu exemplar, Proudhon anotou: “Absurdo, como a opinifo que supde desacreditar a balanca comercial pelos vexames alfandegérios". Aqui, hd uma alus&o ao nono capitulo do seu livro, consagrado A “sexta época”, 1825, data da primeira crise de superprodugao. | 131 uma empresa digna de Hércules, eis a not4vel obra de Ark- wright", Em suma: com a introdugao das maquinas, a divisto do trabalho no interior da sociedade cresceu, a tarefa do operario no interior da oficina foi simplificada, 0 capital foi concentrado, o homem foi dividido ainda mais. Quando o Sr. Proudon pretende ser economista e abandonar, por um instante, “a evolugdo na série do entendimento’’, vai buscar sua erudicao em Adam Smith, ao tempo em que a fAbrica mal nascia. De fato, ha uma enorme diferenga entre a divisdo do tra- balho do tempo de Adam Smith e a que constatamos na fAbrica. Para torna-la bem compreensivel, basta citar algumas passagens da Filosofia das Manufaturas, do doutor Ure! : “Quando A. Smith escreveu a sua obra imortal sobre os elementos da economia politica, 0 sistema automAtico da in- distria era quase desconhecido. A divisio do trabalho, com razdo, aparece-Ihe como o grande principio do aperfeicoa- mento manufatureiro; ele demonstrou, no caso de uma fabrica de alfinetes, que um operario, aperfeigoando-se pela pratica em um s6 e mesmo ponto, torna-se mais expedito e menos oneroso. Em cada ramo da manufatura, observou que, se- gundo este principio. algumas operacdes, como o corte dos fios de lato em comprimentos iguais, tornam-se de facil execugdo ¢ que outras, como 0 fabrico e a fixac&o das cabecas dos alfinetes, sdo relativamente mais dificeis — assim, ele concluiu que se pode, naturalmente, adequar a cada uma destas operacdes um operario, cujo salério corresponde a sua habilidade. Esta adequacdo € a esséncia da divisao dos traba- Thos. No entanto, o que no tempo do doutor Smith podia servir como exemplo util, atualmente s6 induziria 0 ptblico, em relacao ao principio real da industria manufatureira, ao erro. De fato, a distribuic4o, ou sobretudo a adaptacao dos traba- lhos as diferentes capacidades individuais, quase nado entra no plano de operagao das fAbricas: ao contrario, sempre que um procedimento qualquer exige muita destreza ou m&o segura, retiram-no do braco do operério habil e freqiientemente incli- nado a irregularidades de varios tipos, entregando-o a um mecanismo particular, cuja operacdo automAtica ¢ tao bem (172) [A. Ure, Philosophie des Manufactures ou Economie Industrielle (Filo: sofia das Manufaturas ou Economia Industrial), Bruxelas, 1836, I, p. 21, 22 ¢ 23. | (173) (No seu exemplar, Proudhon anotou: “A divisdo, para mim, é anterior a A. Smithy; ela € tomada, também, num sentido mais largo™.] 132 regulada que uma crianca pode control4-lo. O principio do sistema automAtico, portanto, consiste na substituicao da mao-de-obra pela arte mecdnica e na substituicdo da divisio do trabalho entre os operrios pela andlise de um procedi- mento em seus principios constituintes '*. No sistema de ope- ragdo manual, a m&o-de-obra era, normalmente, o elemento mais oneroso de um produto qualquer; mas, no sistema auto- matico, os talentos do arteséo sdo progressivamente substi- tufdos por simples controladores da mec@nica. A fraqueza da natureza humana & tal que, quanto mais hAbil 0 operario, mais ele se torna voluntarioso e intratavel e, conse- qientemente, menos apropriado a um sistema de mecanica a cujo conjunto suas saidas caprichosas podem causar um dano consider4vel. Por isto, o grande problema do manufatureiro atual 6, combinando a ciéncia com os seus capitais, reduzir a tarefa dos seus operrios a observacdo e a destreza, faculdades que se aperfeicoam na juventude quando concentradas num unico objeto. De acordo com o sistema de gradacdes do trabalho, é neces- s4rio um aprendizado de muitos anos antes que o olho e a mao se tornem suficientemente habeis para executar algumas ope- ragdes mecfnicas dificilimas; mas, no sistema que decompde um procedimento, pela redugao a seus principios contitutivos, € que submete todas as suas partes a operacao de uma mé- quina automatica, é possivel confiar estas partes elementares a uma pessoa dotada de capacidades comuns, depois de passar por uma breve prova; e € mesmo possivel, em caso de urgén- cia, transferi-la de uma m4quina a outra, segundo a vontade do diretor do estabelecimento. Estas transformagBes opdem-se abertamente 4 velha rotina, que divide o trabalho e assinala a um oper4rio a tarefa de fazer a cabega do alfinete e a outro a de afinar-lhe a ponta, trabalho cuja uniformidade irritante os enerva...”5 Todavia, sob o principio da equalizagdo ou 0 (174) (No seu exemplar, Proudhon anotou: “Um é 4 conseqiéncia do outro; € tudo o que se diz do primeiro cabe para o segundo". } (175) [No seu exemplar, Proudhon escreveu: “Muito bem: assinalei esta opo- sigho — a degradagio do operdrio € maior no que voct chama de sisterna automético que naquilo que A. Smith denomina divisto. Quanto a mim, indiquei estes dois graus pela divisdo ¢ pelas mdquinas... Eu disse: a divisAo do trabalho retalha, mutila, dispersa 0 homem; as mAquinas o escravizam — € exatamente o mesmo que o Dr. Ure afirma”. Aqui, Proudhon refere os capitulos II] (“A Divisto do Trabalho”) e IV ("As M&quinas") do seu livro. ] 133 sistema automA&tico, as faculdades do operdrio submetem-se apenas a um exercicio agradavel, etc... Ja que ele as emprega para controlar o trabalho de um mecanismo bem regulado, pode aprender em pouco tempo; e quando transfere seus servigos de uma m4quina a outra, varia a sua tarefa e desen- volve suas idéias, refletindo nas combinacdes gerais que resul- tam das suas tarefas e das dos seus companheiros. Assim, essa limitag&o das faculdades, essa atrofia das idéias, esse mal- estar do corpo, que, com razao, foram atribuidos a divistio do trabalho, nfo podem, em condigdes normais, existir sob o regime de uma distribuigdo igual das tarefas. O objetivo constante e a tendéncia de todo aperfeigoamento no mecanismo so, realmente, os de prescindir inteiramente do trabalho do homem ou de reduzir-lhe o prego, substituindo a dade do operrio adulto pela de mulheres e criangas ou as tarefas de habeis arteséos pelas de operdrios sem destreza... Esta tendéncia a sb empregar criancas de olhar vivo e dedos Ageis, em lugar de jornaleiros com longa experiéncia, demons- tra que o dogma escolAstico da divisdo do trabalho segundo os diferentes graus de habilidade foi, finalmente, rejeitado pelos nossos manufatureiros esclarecidos’’'”* . O que caracteriza a divisdo do trabalho no interior da socie- dade moderna € 0 fato de ela engendrar as especialidades, as espe- cializacdes e, com elas, 0 idiotismo do offcio. “Ficamos admirados — diz Lemontey — quando vemos, entre os antigos, que 0 mesmo personagem era, simultaneamente e em grau notavel, filésofo, poeta, orador, historiador, padre, administrador, general. Nossas almas se espantam diante de um dominio tdo vasto. Cada um planta os seus arbustos ¢ se fecha no seu cercado. Nao sei se, com esta separagdo, 0 campo se amplia, mas sei. muito bem que 0 homem se amesqui- nha”, O que caracteriza a diviséo do trabalho na fAbrica é 0 fato de o trabalho perder af todo carfter de especialidade. Mas, a partir do momento em que cessa todo desenvolvimento especial, a necessi- dade de universalidade, a tendéncia a um desenvolvimento integral (176) A. Ure, loc. cit., 1, cap. Ip. 34/35 «1 (177) [P. E. Lemontey, loc. cit., I, p. 213.1 134 EE _T—COC do individuo comega ase fazer sentir. A fabrica liquida as especiali- zacdes ¢ 0 idiotismo do offcio. O Sr. Proudhon, sem ter compreendido sequer este nico aspecto revoluciondrio da fabrica, retrocede e propde ao operério fazer nfo apenas a duodécima parte de um alfinete, mas, sucessiva- mente, as doze partes'”. O oper4rio chegaria, assim, 4 ciéncia e a consciéncia do alfinete. E isso o trabalho sintético do Sr. Proudhon. Ninguém contestarA que fazer um movimento para a frente e outro para trAs é, igualmente, fazer um movimento sintético. Em resumo, o Sr. Proudhon nio superou 0 ideal do pequeno- burgués. E, para realizar este ideal, ele nao imagina nada melhor do que nos fazer voltar ao companheiro ou, quando muito, ao mestre- artesao da Idade Média. Basta, diz ele numa passagem qualquer do seu livro, ter feito uma s6 vez na vida uma obra-prima, ter-se sentido homem uma sé vez. Nao é esta, tanto na forma quanto no fundo, a obra-prima exigida pela corporagao do oficio medieval? § 3. A concorréncia eo monopélio Lado bom da \- concorréncia € tao essencial ao trabalho concorréncia quanto a divisdo... Ela é necessaria ao advento | da igualdade”’"” . Lado mau da ( “0. Principio & a peeacto oe si mesmo O seu concorréncia ofei fo mais certo & 0 de perder aqueles que en- yolve"™. (178) (No seu exemplar, Proudhon anotou: “Muito bem: como vocé entende este desenvolvimento integral?”. E mais: “Sim, desde que se tratasse de resolver & antinomia da divisAo; mas eu nao resumi tudo a isto. 'E preciso que 0 operério, sempre sintetizando a habilidade antiga ¢ a moderna, saiba trabalhar, ao mesmo tempo, com as maos € com as maquini ‘orque € absurdo que ele posse prescindir da méquina, ele, que é substituido por cla... © sintetismo, chegado ac mais alto grau, exige do operdrio, simultaneamente, uma capacidade maior ¢ um menor desenvolvimento" (o que sc segue ¢ ilegivel; Rubel sugere: ‘“da sagacidade”). | (179) {Proudhon, loc. cit., 1, p. 186 ¢ 188.] (180) [Jdem, I, p. 185. 135 “Os inconvenientes que a sucedem, tanto como Reflexéogeral _) 0 bem que proporciona..., decorrem uns e ou- tro, logicamente, do principio”! . “Procurar o principio de acornoda¢ao que deve derivar de uma lei superior a propria liber- dade!” Problema variante a resolver “Portanto, aqui nao caberia a questdo de des- truir a concorréncia, coisa tao impossivel quanto destruir a liberdade; trata-se de encontrar o equilibrio — eu diria, de bom grado: a polf- cia", O Sr. Proudhon comega por defender a necessidade eterna da concorréncia contra aqueles que a querem substituir pela emu- lagao'* . Nao ha “‘emulacgao sem objetivo’ e como “o objeto de toda paixdo é necessariamente andlogo a propria paix4o: uma mulher para 0 amante, poder para 0 ambicioso, ouro para 0 avaro, coroa para 0 poeta — 0 objeto da emulacdo industrial 6 necessariamente o Jucro. [...] A emulagado nao é outra coisa que a propria concorréncia’’'® . A concorréncia 6 a emulacdo visando o lucro. A emulago industrial é necessariamente a emulacgdo visando o lucro, isto é, a concorréncia? O Sr. Proudhon prova-o afirmando-o. J& o vimos: para ele, afirmar é provar, tal como supor é negar. Se 0 objeto imediato do amante é a mulher, o objeto imediato da emulagdo industrial nao € o lucro, € 0 produto. (181) | Zdem, I, p. 185/186.] (182) [Jdem, I, p. 185. | (183) [ Jbidem. | (184) [Na edigdo alema, Engels introduziu o seguinte esclarecimento: “Os adeptos de Fourier”. | (185) {Proudhon, foc. cit., 1, p. 187.] 136 0 A concorréncia nao é a emulagao industrial: ¢ a emulag&o comercial ™. Atualmente, a emulagao industrial s6 existe em fun- gio do comércio. H4 mesmo fases na vida econdmica dos povos modernos em que todas as pessoas parecem tomadas por uma espécie de vertigem para obter lucro sem produzir. Esta vertigem de especulag4o, que retorna periodicamente, desnuda o verdadeiro carater da concorréncia, que procura escapar a necessidade da emulacao industrial. Se se dissesse a um artesdo do século XIV que se iriam abolir os privilégios ¢ toda a organizacio feudal da indastria, substituindo- os pela emulagao industrial, chamada concorréncia, ele replicaria que os privilégios das diversas corporagées, confrarias e grémios sao a concorréncia organizada. O Sr. Proudhon nao diz coisa melhor, afirmando que ‘‘a emulag&o nao é outra coisa que a propria concor- réncia’’. “Ordene-se que, a partir de 1° de janeiro de 1847, 0 trabalho e o salério sejam garantidos a todo mundo: logo relaxamento suceder4 a ardente tensdo da indistri Em lugar de uma suposig’o, de uma afirmagao ¢ de uma negacdo, temos agora uma ordem que o Sr. Proudhon dita expressa- mente para provar a necessidade da concorréncia, a sua eternidade como categoria, etc. Se se imagina que bastam ordens para escapar A concorréncia, jamais se saira dela. E se se levam as coisas ao ponto de propor a abolic&o da concorréncia conservando-se 0 sal4rio, 0 que se propde & um contra-senso por decreto real. Mas os povos nado atuam em fungao de decretos reais. Antes de recorrer a ordens deste género, eles devem, no minimo, alterar de alto a baixo as condigdes de existéncia industrial e politica e, conseqiientemente, toda a sua maneira de ser. O Sr. Proudhon, com a sua imperturb4vel seguranga, respon- deré que esta € a hip6tese ‘de uma transformagao da nossa natureza (186) [No seu exemplar, & margem destes trés iltimos pardgrafos, Proudhon i ‘Outros sindnimos”. Foram as suas iltimas observagdes. Nos seus Carnets, ele faz um tltimo jutzo de Marx: "Marx é a ténia do socialismo" (27/se- tembro/ 1847); dois meses depois (20/novembro), afirma que Marx, Molinari, Vidal e Cabet comentaram o seu livro “com uma suprema mé {é, inveja ou estupidez”. Mais tarde (24/dezembro), propde-se escrever um artigo contra os judeus, “esta raga que envenena tudo”; pretende exigir a expulsdo dos judeus da Franga, porque “o judeu é inimigo do género humano”. Conclui: “*E preciso recambiar esta raga para a Asia ou exterming-la". Aqui, Marx é relacionado a Heine, A. Weil, Rotschild, Crémieux ¢ Fould, “seres iniquos, biliosos, invejosos, Asperos, etc., ete., que nos odeiam”.) (187) [Proudhon, loc. cit., I, p. 212, ed. de 1923. ] 137 sem precedentes hist6ricos”’ e que teria 0 direito ‘de nos desviar da discuss&o'', em virtude de um decreto que nfo sabemos qual seja. O Sr. Proudhon ignora que toda a hist6ria nao € mais que uma transformacao continua da natureza humana. “Permanecamos nos fatos.[...] A Revoluc&o Francesa fez-se tanto pela liberdade industrial como pela polftica; e embora a Franca, em 1789, nao tenha percebido todas as conseqiléncias do princ{pio cuja realizagao exigia, digamo-lo em voz alta, ela no se enganou, nem nos seus desejos, nem na sua esperanga. Quem o negasse perderia, no meu entender, o direito a critica: eu n&o discutiria jamais com um adversfrio que colocasse como princfpio 0 erro espontaneo de vinte e cinco milhdes de homens... Se a concorréncia nfo era um principio da eco- nomia social, um decreto do destino, uma necessidade da alma humana, por que, ao invés de abolir corporacdes, con- frarias e grémios, nao se preferiu antes corrigir 0 todo?”’'®. Assim, j4 que os franceses do século XVIII aboliram corpo- ragdes, confrarias e grémios em vez de modific4-los, os franceses do século XIX devem modificar a concorréncia, em vez de aboli-la. J& que a concorréncia se estabeleceu na Franca, no século XVIII, como conseqiéncia de necessidades hist6ricas, ela nio deve ser destruida no século XIX, em funcdo de outras necessidades histéricas. Sem compreender que o estabelecimento da concorréncia se ligava ao desenvolvimento real dos homens do século XVIII, o Sr. Proudhon faz dela uma necessidade da alma humana, in partibus infide- lium™ . O que ele n&o faria do grande Colbert, no século XVII? Apés a Revolucdo, surge o estado de coisas atual. O Sr. Proudhon, também aqui, aduz fatos para mostrar a eternidade da concorréncia, provando que todas as industrias nas quais esta cate- goria ainda nao se desenvolveu bastante, como na agricultura, estio numa condi¢ao inferior, de decadéncia. Dizer que h& industrias que ainda nfo chegaram A concor- réncia e que outras permanecem ainda abaixo do nivel da produgao burguesa n&o passa de disparates que, em absoluto, provam a eternidade da concorréncia. Toda a légica do Sr. Proudhon se resume nisto: a concorréncia € uma relac&o social no interior da qual desenvolvemos atualmente as nossas forcas produtivas. Desta verdade, ele nao oferece desdo- (188) [Proudhon, loc. cit, 1, p. 191/192. ] (189) [Literalmente: nos pafses dos infi¢is: diz-se do bispo cat6lico cujo titulo é puramente honorffico. No texto, o sentido é: fora da realidade. | 138 bramentos ldégicos, mas férmulas freqientemente bem desenvol- vidas, dizendo que a concorréncia € a emula¢4o industrial, o modo atual de ser livre, a responsabilidade no trabalho, a constituicao do valor, uma condig4o para o advento da igualdade, um principio de economia social, uma necessidade da alma humana, uma inspiragao da justica eterna, a liberdade na divisdo, a divisto na liberdade, uma categoria econémica. “A concorréncia e a associagado apéiam-se uma sobre a outra. Longe de se excluirem, nao sao nem mesmo divergentes. Quem diz concorréncia, j4 supde um objetivo comum. A con- corréncia, pois, nio 6 0 egoismo, e o erro mais deploravel do socialismo consiste em té-la considerado como a destruicao da sociedade”'™ . Quem diz concorréncia, diz objetivo comum — e isto prova, de um lado, que a concorréncia é a associag4o e, de outro, que ela nao é o egoismo. E quem diz egoismo, nao diz objetivo comum? Todo egoismo se exerce na sociedade e gracas 4 sua existéncia. O egoismo supde, portanto, a sociedade, ou seja: objetivos comuns, meios de producdo comuns, etc., etc. Por isto, seria casual que a concorréncia e a associagdo de que falam os socialistas nao sejam sequer divergentes? Os socialistas sabem muito bem que a sociedade atual se funda na concorréncia. Como poderiam acusar a concorréncia por destruir a sociedade atual, que eles mesmos querem destruir? E como poderiam acusar a concorréncia por destruir a sociedade futura, na qual, ao contrario, eles véem a destruigao da concor- réncia? Mais adiante, 0 Sr. Proudhon diz que a concorréncia € o oposto do monopélio e que, conseqiientemente, ela nado poderia ser o oposto da associagao. O feudalismo, desde a sua origem, opunha-se a monarquia patriarcal; assim, ndo se opunha a concorréncia, ainda inexistente. Segue-se dai que a concorréncia nao se oponha ao feudalismo? De fato, sociedade, associagao sto denominagdes que se pode dar a todas as sociedades, 4 sociedade feudal como 4 sociedade burguesa, que € a associacdo fundada na concorréncia. Como, portanto, podem existir socialistas que, apenas com a palavra asso- ciagao, acreditem ser possivel refutar a concorréncia? E como 0 préprio Sr. Proudhon pode pretender defender a concorréncia con- tra o socialismo, designando-a pela simples palavra associagdo? (190) [Proudhon, /oc. cit., 1, p. 223.] 139 Tudo o que acabamos de dizer constitui o lado bom da concor- réncia, tal como o compreende o Sr. Proudhon. Passemos agora ao lado vildo, isto é, ao lado negativo da concorréncia, ao que ela possui de destrutivo, subversivo, de qualidades perniciosas. O quadro que o Sr. Proudhon nos apresenta tem qualquer coisa de ligubre. A concorréncia engendra a miséria, fomenta a guerra civil, “altera as regides naturais’’, confunde as nacionalidades, perturba as familias, corrompe a consciéncia ptiblica, ‘‘subverte as nodes da eqiidade, da justica", da morale, o que € pior, destr6i o comércio probo e livre e, em compensagao, nao oferece sequer 0 valor sinté- tico, 0 preco fixo e honesto. Ela decepciona a todos, inclusive os economistas. Ela leva as coisas ao ponto da sua auto-destruicao. Depois de todo o seu mal, que o Sr. Proudhon aponta, podera existir, para as relagdes da sociedade burguesa, seus principios e suas ilusdes, um elemento mais dissolvente, mais destrutivo que a concorréncia? Observemos que a concorréncia torna-se progressivamente mais destrutiva para as relag¢des burguesas A medida que estimula uma criagfo febril de novas forgas produtivas, isto &, das condicdes materiais de uma sociedade nova. Sob este aspecto, pelo menos, 0 lado mau da concorréncia possuiria algo de bom. “A concorréncia, como posi¢io ou fase econdmica conside- rada na sua origem, € 0 resultado necess4rio... da teoria da reducdo dos custos gerais’’”' . Para o Sr. Proudhon, a circula;ao do sangue deve ser uma conseqiéncia da teoria de Harvey. “O monopiélio 6 0 termo fatal da concorréncia, que o engendra por uma negacdo incessante de si mesma. Esta geragao do monopdlio é j4 a sua justificagdo... O monopdlio € o oposto natural da concorréncia... mas, desde que a concorréncia é necessdria, ela implica a idéia do monop6lio, uma vez que este € como a cadeira de cada individualidade concorrente"' . Alegramo-nos com o fato de o Sr. Proudhon poder aplicar bem, pelo menos uma vez, a sua formula de tese e antitese. Todo mundo sabe que 0 monopdlio moderno é engendrado pela prépria concorréncia. (191) Ldem. I, p. 235.1 (192) (Idem, 1, p. 236/237. ] 140 Quanto ao contetido, 0 Sr. Proudhon prende-se a imagens poéticas. A concorréncia fazia “de cada subdivisto do trabalho como que uma soberania, onde cada individuo se colocava em sua forcae sua independéncia”. O monopdlio € como que a “‘cadeira de cada individualidade concorrente”’. A soberania, a cadeira: eis duas coisas que se equivalem. O Sr. Proudhon fala apenas do moderno monopdlio engen- drado pela concorréncia. Mas todos sabemos que a concorréncia foi engendrada pelo monopdlio feudal. Assim, primitivamente, a con- corréncia foi o contrario do monopdlio, e n&o 0 monopédlio o con- trério da concorréncia. Portanto, 0 monopélio moderno nao é uma simples antitese; 6, inversamente, a verdadeira sintese. Tese: O monopdlio feudal, anterior 4 concorréncia. Antitese: A concorréncia. Sintese: O monopdlio moderno, que é a negacao do monopélio feudal enquanto supde o regime da concorréncia, e que € a negacao da concorréncia enquanto é monopélio. Assim, 0 monopélio moderno, 0 monopdlio burgués, € 0 mo- nopdlio sintético, a negacao da negacao, a unidade de contrarios. E © monopélio em estado puro, normal, racional. O Sr. Proudhon contradiz a sua prépria filosofia quando faz do monopélio burgués o monopolio em estado bruto, simplista, contraditério, espasmédico. O Sr. Rossi, que o Sr. Proudhon cita varias vezes a propésito do monopélio, parece ter apreendido melhor o carfter sintético do monopélio burgés. Em seu Curso de Economia Politica”, ele dis- tingue monopdlios artificiais e monopélios naturais. Os monopdlios feudais, diz, sao artificiais, isto é, arbitrarios; os monopélios bur- gueses sdo naturais, isto é, racionais. O monopdlio é uma boa coisa, raciocina o Sr. Proudhon, Porque € uma categoria econdmica, uma emanacao ‘da razao impessoal da humanidade’’. A concorréncia também é uma boa coisa, j4 que, também ela, é uma categoria econémica. O que nao é bom, contudo, é a realidade do monopOlio e a realidade da concor- réncia. E o que é pior: a concorréncia e 0 monopdélio se devoram mutuamente. O que fazer? Procurar a sintese destes dois pensa- mentos eternos, arrancd-la ao seio de Deus, onde ela se encontra desde tempos imemoriais. Na vida pratica, encontra-se ndo apenas a concorréncia, 0 monopdlio e o seu antagonismo, mas também a sua sintese. que nao é uma formula, e sim um movimento. O monopdlio produz a con- corréncia, a concorréncia produz o monopélio. Os monopolistas con- (193) [P. Rossi, Cours d'Economie Politique (Curso de Economia Politica), Paris, 1, 1840; IT, 1841. | 141 correm entre si, os concorrentes tornam-se monopolistas. Se os monopolistas restringem a concorréncia entre si através de associa- des parciais, a concorréncia cresce entre os operfrios; e quanto mais a massa de prolet&rios cresce face aos monopolistas de uma nag&o, mais a concorréncia entre monopolistas de nacgdes diferentes se torna desenfreada. A sintese é tal que 0 monopdlio s6 pode se manter passando continuamente pela luta da concorréncia. Para engendrar dialeticamente os impostos, que vém depois do monopélio, o Sr. Proudhon nos fala do génio social que, apés seguir intrepidamente o seu caminho em zigue zague, “ap6s marchar com passo seguro, sem se arrepender € sem se deter, chega ao Gngulo do monopdlio, olha melancolicamente para tras e, depois de uma reflexio profunda, sobrecarrega com impostos todos os objetos da produgdo e cria toda uma organizacao administrativa, a fim de que todos os empregos sejam concedidos ao proletariado e pagos pelos homens do monopélio" '*. O que dizer deste génio que, em jejum, passeia em zigue- zague? Eo que dizer deste passeio, que n&o teria outro objetivo que o de demolir os burgueses através dos impostos, quando estes ser- vem precisamente para dar aos burgueses os meios para se conser- varem como classe dominante? ‘Apenas para entremostrar 0 modo pelo qual o Sr. Proudhon trata os detalhes econdmicos, bastaré dizer que, de acordo com ele, 0 imposto sobre o consumo teria sido estabelecido visando a igual- dade e para auxiliar o proletariado. O imposto sobre o consumo s6 se desenvolveu verdadeira- mente ap6s o advento da burguesia. Nas mos do capital industrial — ou seja: da riqueza sObria e econdmica que se mantém, reproduz ecresce pela exploragao direta do trabalho —, o imposto sobre 0 consumo era um meio de explorar a riqueza frivola, feliz, prédiga, dos grandes senhores, que apenas consumiam. James Steuart expds muito bem este objetivo primitivo do imposto sobre o consumo, na sua obra Investigagao sobre os Principios da Economia Politica, publicada dez anos antes de Adam Smith: “Na monarquia pura, os principes parecem de algum modo invejosos do crescimento das riquezas e, por isto, langam impostos sobre aqueles que enriquecem [impostos sobre a producdo]. No regime constitucional, os impostos recaem (194) [Proudhon, loc. cit., p. 284/285. | 142 principalmente sobre aqueles que se tornam pobres |impostos sobre 0 consumol. Assim, os monarcas langam um imposto sobre a industria... Por exemplo: a capitacao e a derrama sao proporcionais a suposta opuléncia daqueles que estdo sujeitos aelas. A cada um se impée 0 tributo em fungo do lucro que se supde que aufira. Nos governos constitucionais, os impostos incidem normalmente sobre o consumo. [A cada um se impde 0 tributo em funco da despesa que realiza.]""*. Quanto a sucessdo Iégica dos impostos, da balanca comercial, do crédito — segundo o entendimento do Sr. Proudhon —, observa- remos apenas que a burguesia inglesa, que chegou 4 sua constitui- ¢4o politica com Guilherme de Orange, criou imediatamente um no- vo sistema de impostos, 0 crédito publico eo sistema de direitos prote- cionistas, logo que pdde desenvolver livremente as suas condigdes de existéncia. Este rapido apanhado bastara para dar ao leitor uma justa idéia das elocubragdes do Sr. Proudhon sobre a politica ou o im- posto, a balanga comercial, 0 crédito, 0 comunismo e a populagao. Desafiamos a critica mais indulgente a abordar com seriedade estes capitulos. § 4. A propriedade ou a renda Em cada época historica, a propriedade desenvolveu-se dife- Tentemente e numa série de relacdes sociais totalmente distintas. Por isto, definir a propriedade burguesa nao é mais que expor todas as relag&es sociais da produgdo burguesa. Pretender dar uma definigao da propriedade como uma rela- go independente, uma categoria 4 parte, uma idéia abstrata e universal — isto n4o pode ser mais que uma ilusdo de metafisica ou de jurisprudéncia. O Sr. Proudhon, com ares de quem fala da propriedade em geral, trata apenas da propriedade fundidria, da renda fundidria. “A origem da renda, como da propriedade, é, por assim dizer, extra-econdmica: reside em consideragdes de psicologia e de moral, que sé remotamente se relacionam com a produgao de riquezas”'®. (195) [J. Steuart, Recherches des Principes de U'Economie Politique (Investi- sa¢des sobre os Principios da Economia Politica), Paris, Il, 1789, p. 190/191. A Primeira edi¢ao inglesa deste livro foi publicada em Londres, em 1767. | (196) [Proudhon, loc, cit., II, p. 265. | Assim, o Sr. Proudhon se reconhece incapaz para compreen- der a origem econémica da renda e da propriedade. Admite que esta incapacidade obriga-o a recorrer a consideragées psicolégicas e morais que, de fato remotamente relacionadas 4 producao de rique- zas, vinculam-se, no entanto, muito intimamente A estreiteza da sua visao histérica. O Sr. Proudhon afirma que a origem da propriedade possui algo de méstico e misterioso. Ora, ver mistério na origem da propriedade, ou seja: transformar em mistério a relagao da prépria produg’o com a distribuicdo dos instrumentos de produgao, nao é — para falar a linguagem do Sr. Proudhon — renunciar a qualquer pretensdo a ciéncia econémica? O Sr. Proudhon se “limita a recordar que, na sétima época da evolugao econé- mica — ocrédito —, tendo a ficcdo esvanecido a realidade e a atividade humana ameacada de cair no vazio, tornara-se ne- cessario ligar mais fortemente 0 homem a natureza: ora, a renda foi o preco deste novo contrato"’!” . O homem dos quarenta escudos pressentiu um futuro Prou- dhon: ‘Senhor criador, faga o que bem Ihe parecer; cada qual é senhor no seu mundo; mas nunca me far4 acreditar que este em que estamos seja de vidro”’*, No seu mundo, onde o crédito era um meio para se perder no vazio, € bem possivel que a propriedade tenha se tornado necess4ria para ligar o homem 4 natureza. No mundo da produgao real, onde a propriedade fundiaria sempre precede 0 crédito, 0 horror vacui '® do Sr. Proudhon nao poderia existir. Admitida a existéncia da renda, qualquer que seja, alias, a sua origem, ela se disputa contraditoriamente entre o arrendatario e © proprietario fundidrio. Qual o Gltimo termo desta disputa, ou, noutras palavras, qual a taxa média da renda? Eis 0 que diz o Sr. Proudhon: “A teoria de Ricardo responde a esta questAo. No inicio da sociedade, quando o homem, novo sobre a terra, defrontava- se apenas com a imensiddo das florestas, com a vastid4o das (197) [bidem. | (198) [Marx extraiesta citago do conto de Voltaire, ‘‘O Homem dos Quarenta Escudos” (“L'Homme aux Quarante Ecus"), publicado em Amsterda, em 1768, Esta nossa versio valeu-se da traducio de Mario Quintana, Voltaire. Contos, col. “Os Imortais da Literatura Universal", n° 40, ed. Abril, Sao Paulo, 1972, p. 386.1 (199) [Horror ao vazio. ] 144 terras e a industria nascente, a renda tinha que ser nula. A terra, ainda nao cultivada pelo trabalho, era um objeto de utilidade, e nao um valor de troca; era comum, e nAo social. Pouco a pouco, a multiplicagdo das familias e o progresso da agricultura revelaram 0 prego da terra. O trabalho veio dar ao solo o seu valor — dai nasceu a renda. Mais um campo, com a mesma quantidade de servigos, podia dar frutos, mais ele era valorizado; assim, a tendéncia dos proprietarios foi sempre a de se atribuir a totalidade dos frutos da terra, exceto o salario do arrendatario, isto é, os custos de produc&o. Por isto, a propriedade segue de perto o trabalho para arrebatar-lhe tudo © que, no produto, ultrapassa os custos reais. Com o proprie- tario cumprindo um dever mistico e representando, face ao colono, a comunidade, o arrendatdrio nao passa, nas previsdes da Providéncia, de um trabalhador responsdvel, que deve prestar contas a sociedade de tudo o que colhe além do seu salario legitimo... Por esséncia e destinagao, a renda, pois, é um instrumento de justica distributiva, um dos milhares de meios que 0 génio econdmico utiliza para chegar a igualdade. Trata-se de um imenso cadastro, executado contraditoria- mente pelos propriet4rios e arrendatérios, sem colisdo pos- sivel, num interesse superior, € cujo resultado definitivo deve ser a equalizagao da posse da terra entre os exploradores do solo e os industriais... Era necess4ria esta magia da proprie- dade para extrair do colono 0 excedente do produto que ele nao pode deixar de considerar seu e do qual se cré o autor exclusivo. A renda, ou, melhor dizendo, a propriedade, liqui- dou o egoismo agricola ¢ criou uma solidariedade que ne- nhuma forga, nenhuma reparti¢ao de terras teria engendra- do... Atualmente, alcancado o efeito moral da propriedade, resta fazer a distribuigao da renda”’ ™. Toda esta verborragia se reduz, antes de mais, ao seguinte: Ricardo diz que 0 excedente do preco dos produtos agricolas sobre os seus custos de produgio, ai compreendidos o lucro e o juro ordinarios do capital, dé a medida da renda. O Sr. Proudhon faz melhor: faz o proprietario intervir, como um deus ex machina ™! que extrai do colono todo o excedente da sua produgdo sobre os custos da mesma. Ele se serve da interven¢4o do proprietario para (200) | Proudhon, loc. cit. . 11, p. 270/272. (201) [Literalmente: um deus (baixado) por meio de uma maquina. No teatro da Antiguidade, os atores que representavam os deuses eram baixados A cena por meio de uma mAquina. Em sentido figurado, a expresso designa a aparigho sibita de um personagem que salva uma situagao. | 145 explicar a propriedade, da do arrendat&rio para explicar a renda. Responde ao problema retomando-o de novo e acrescentando-lhe uma sflaba. Observemos, ainda, que, determinando a renda pela diferenca de fertilidade da terra, o Sr. Proudhon atribui-lhe uma nova origem, uma vez que a terra, antes de ser avaliada segundo os diferentes graus de fertilidade, nao era, no seu entender, ‘‘um valor de troca’’, “era comum”. Em que se transformou, portanto, essa ficgao da renda, surgida da necessidade de reintegrar a terra 0 homem que ia se perder no infinito do vazio? Desembaracemos agora a doutrina de Ricardo das frases pro- videnciais, alegéricas e misticas com que, zelosamente, o Sr. Prou- dhon a envolveu. A renda, no sentido de Ricardo, é a propriedade fundiaria no estado burgués, ou seja: a propriedade feudal submetida as condi- gdes da producdo burguesa. Vimos que, conforme a doutrina de Ricardo, 0 preco de todos os objetos é finalmente determinado pelos custos de producdo, compreendido ai o lucro industrial; em outros termos: pelo tempo de trabalho empregado. Na industria manufatureira, o preco do pro- duto obtido com o minimo de trabalho regula o prego de todas as outras mercadorias da mesma espécie, visto que se pode multiplicar ao infinito os instrumentos de produc&o menos caros e mais produ- tivos e que a livre concorréncia conduz, necessariamente, a um preco de mercado, ou seja, a um preco comum para todos os produtos da mesma espécie. Na agricultura, ao contrario, o que regula o prego de todos os produtos da mesma espécie é 0 prego do produto obtido com a maior quantidade de trabalho. Em primeiro lugar, nado se pode, como na industria, multiplicar 4 vontade os instrumentos de produgao igual- mente produtivos, isto €, os terrenos com 0 mesmo grau de fertili- dade. Depois, 4 medida que a populag4o cresce, sdo explorados terrenos de qualidade inferior ou sao feitos, no mesmo terreno, novos investimentos de capital, proporcionalmente menos produ- tivos que os primeiros. Num e noutro caso, emprega-se uma maior quantidade de trabalho para obter um produto proporcionalmente menor. J& que o crescimento da populagao tornou necessArio este acréscimo de trabalho, o produto do terreno de uma exploracgao mais onerosa tem um escoamento forgado, tanto como é escoado aquele do terreno de uma exploragdo mais produtiva. Como a concorréncia nivela 0 prego do mercado, o produto do melhor ter- reno serA pago ao mesmo pre¢o do produto do terreno inferior. O excedente do preco dos produtos do terreno melhor sobre os custos da sua produgdo constitui a renda. Se sempre fossem disponiveis terras com a mesma fertilidade; se se pudesse, como na industria 146 manufatureira, recorrer sempre a mAquinas mais baratas e produ- tivas ou se os novos investimentos de capital fossem t&o produtivos quanto os anteriores — ent4o o prego dos produtos agricolas seria determinado pelo custo dos artigos produzidos pelos melhores ins- trumentos de produgao, como vimos no caso dos pregos dos pro- dutos manufaturados. Mas também, entdo, a renda desapareceria. Para que a doutrina de Ricardo seja verdadeira de modo geral, € preciso”: que os capitais possam ser livremente aplicados nos diferentes ramos da industria; que uma concorréncia grandemente desenvolvida entre os capitalistas tenha situado os lucros numa taxa igual; que o arrendatdrio seja um capitalista industrial que procure, para o seu capital investido em terrenos de qualidade inferior ™, lucros iguais ao que obteria com ele, por exemplo, na industria algodoeira™ ; que a exploragao agricola esteja submetida ao re- gime da grande industria; e que, enfim, o proprietario fundiario mesmo s6 vise 4 renda monetéria. Na Irlanda, apesar do extremo desenvolvimento ai experi- mentado pelo arrendamento, a renda nao existe™*. Posto que a renda seja o excedente nao sé sobre o sal4rio, mas ainda sobre o lucro industrial, ela nao poderia existir onde as receitas do proprie- tario sio apenas uma antecipacao sobre 0 salario. A renda, pois, longe de fazer do explorador da terra, do arrendatario, um simples trabalhador e de ‘‘extrair do colono o excedente do produto que ele nao pode deixar de considerar seu’’, coloca, face ao proprietério fundiario, o capitalista industrial, em lugar do escravo, do servo, do tributario, do assalariado. A propriedade fundiaria, uma vez constituida em renda, sé dispde do excedente sobre os custos de produgdo, determinados nao somente pelo salario, mas também pelo lucro industrial. E, por- tanto, do proprietario fundidrio que a renda extrai uma parte das suas receitas”™ . (202) | No exemplar oferecido a N. Utina, esta frase foi modificada: “Para que a doutrina de Ricardo, aceitos os seus postulados, seja verdadeira de modo geral, ¢ preciso, ainda..."’. | (203) | No exemplar oferecido a N. Utina, e na edi¢&o francesa de 1896, em lugar de “em terrenos de qualidade inferior”, aparece ‘‘na terra”. | (204) [No exemplar oferecido a N. Utina, em lugar de “por exemplo, na industria algodoeira”’, aparece “em uma manufatura qualquer”. | (208) [No exemplar de N. Utina, lé-se: “E possfvel que a renda no exista ainda, mesmo em um pafs onde o arrendamento tenha se desenvolvido extrema- mente”. A ediglo francesa de 1896 registra: ““E possivel que a renda ndo exista ainda, como na Irlanda, apesar...”. A edig8o alema de 1885 consigna: Pode ocorrer, como na Irlanda, que a renda n&o exista ainda, apesar...”. | (206) | Na edicao alema de 1885, este pardgrafo foi suprimido, Adem pardgrafo anterior, logo depois de “‘o capitalista industrial", introduziu-se: “que 147 Por isto, decorreu um largo lapso de tempo antes que o arrendatario feudal fosse substituido pelo capitalista industrial. Na Alemanha. por exemplo, esta transformacao comecou apenas no iltimo tergo do século XVIII. Somente na Inglaterra esta relagao entre o capitalista industrial e 0 proprictario fundidrio se desen- volveu inteiramente. Enquanto existia apenas 0 colono do Sr. Proudhon, nao havia renda. Desde que ha renda, 0 colono nao é mais arrendatario, é 0 operario, 0 colono do arrendat&rio. O amesquinhamento do traba- lhador, reduzido ao papel de simples operdrio, jornaleiro, assala- riado que trabalha para o capitalista industrial; a intervengao do capitalista industrial, que explora a terra como uma fabrica qual- quer; a transformagio do proprietario fundiario, de pequeno sobe- rano em vulgar usurdrio — cis as diferentes relagdes expressas pela renda. A renda, no sentido de Ricardo, é a agricultura patriarcal transformada em indtstria comercial. o capital industrial aplicado a terra, a burguesia das cidades transplantada para os campos. A renda, em vez de ligar 0 homem 4 natureza, apenas liga a explo- tagao da terra a concorréncia. Uma vez constituida em renda, a propriedade fundiaria mesma é€ 0 resultado da concorréncia, j4 que. desde ent4o, ela depende do valor venal dos produtos agricolas. Como renda, a propriedade fundiaria € mobilizada e se torna um objeto de comércio. A renda so é possivel a partir do momento em que o desenvolvimento da industria das cidades e a organizacao social dele resultante forgam o proprietério fundiario a visar so- mente ao lucro venal, A relagao monetaria de seus produtos agricolas — aver, enfim, na sua propriedade fundiaria apenas uma maquina de cunhar moedas. A renda separou t4o perfeitamente o proprie- trio fundidrio do solo, da natureza, que ele nem sequer necessita conhecer as suas terras, como se vé na Inglaterra. Quanto ao arren- datario, ao capitalista industrial e ao operario agricola, eles nao est4o mais ligados a terra que exploram do que o empresario e 0 operario manufatureiro ao algod4o ou A lA que fabricam; 6 experi- mentam vinculag&o ao prego da sua explorag&o, ao produto mone- tario. Dai as jeremiadas dos partidos reacionarios, que apelam com todas as vozes pelo retorno da feudalidade, da boa vida patriarcal, dos costumes simples e das grandes virtudes dos nossos antepas- sados. A sujeigdo do solo As leis que regem todas as outras industrias é e sera sempre o tema de condoléncias interesseiras. Por isto, exploraa terra através de seus operdrios assalariados e que s6 paga ao proprietario do solo oexcedente que resta ap6s a deduc&o do custo de produgao, incluido neste 0 lucto do industrial”. | 148 pode-se dizer que a renda tornou-se a forga motriz que langou o idflio no movimento da hist6ria Ricardo, depois de supor a produg3o burguesa como neces- s4ria para determinar a renda, aplica-a, todavia, a propriedade fundidria de todas as épocas e de todos os paises. Trata-se. aqui, do erro de todos os economistas, que apresentam as relacées da produ- Ao burguesa como categorias eternas. Do objetivo providencial da renda, que, para ele, é a trans- formagao do colono em trabalhador responsdvel, o St. Proudhon passa a retribuicdo igualitaria da renda. A renda, como acabamos de ver, é constituida pelo prego igual de produtos de terrenos de fertilidade desigual. de forma que um hectolitro de trigo que custou 10 francos é vendido por 20, se os custos de produgao alcangam, em um terreno de qualidade inferior, 20 francos. Enquanto a necessidade obriga 4 compra de todos os produtos agricolas levados ao mercado, o preco de mercado é determinado pelos custos do produto mais caro. Portanto, é esta equalizag4o do preco, resultante da concorréncia e nao da fertilidade diferente dos terrenos, que proporciona ao proprietario do melhor terreno uma renda de 10 francos em cada hectolitro que o seu arrendatario vende. Suponhamos, por um momento, que o prego do trigo seja determinado pelo tempo de trabalho necessario para produzi-lo; logo, o hectolitro de trigo obtido no melhor terreno sera vendido a 10 francos, enquanto que o produzido no terreno de qualidade inferior serd pago por 20 francos. Admitida esta suposig’o, 0 prego médio do mercado sera de 15 francos, enquanto, conforme a lei da concor- réncia, € de 20 francos. Se o pre¢o médio fosse de 15 francos, nao haveria nenhuma distribuicdo, nem igualitaria nem desigual, por- que nao haveria renda. A renda sé existe porque o hectolitro de trigo, que custa ao produtor 10 francos, & vendido por 20. O Sr. Proudhon supde a igualdade do prego de mercado para custos de producdo desiguais para chegar a reparti¢do igualitaria do produto da desigualdade. Podemos conceber que os economistas, como Mill®”, Cher- buliez, Hilditch e outros, tenham reclamado a atribui¢do da renda ao Estado, para servir 2 quitagao dos impostos. Esta é a franca expressdo do 6dio que o capitalista industrial vota ao proprietario (207) | Aqui, Marx se refere « James Mill e no a seu filho John Stuart Mill, como ele mesmo esclarece na carta a Sorge, de 20 de junho de 1881, onde afirma que alude a Mill, “o velho, ¢ ndo 2 seu filho John Stuart, que retomou esta idéia modificando-a um pouco” (cfr. Marx/Engels, Correspondance, 64. Progrés, Mos- cou, 1976, p. 342). 149 tundisrio, que Ihe parece uma inutilidade, algo supérfluo no con- junto da producfo burguesa. No entanto, fazer primeiro que se pague o hectolitro de trigo a 20 francos para, em seguida, fazer uma distribuig&o geral dos 10 francos que se arrancou a mais dos consumidores — isto basta para que 0 génio social continue melancolicamente no seu caminho em rigue-zague e quebre a cabeca num dngulo qualquer. Na pena do Sr. Proudhon, a renda se converte em “um imenso cadastro, executado contraditoriamente pelos propriet&rios e arrendatérios... num interesse superior, e cujo resultado definitivo deve ser a equalizac&o da posse da terra entre os exploradores do solo e os industriais” *™. Para que um cadastro qualquer, constituido pela renda, tenha algum valor pritico, é preciso que sempre se permanega nas condi- bes da sociedade atual. Ora, j& demonstramos que o arrendamento pago pelo arren- dathrio ao proprictério exprime com maior ou menor exatidio a renda apenas nos paises mais avancados industrial e comercial- mente. E mesmo este arrendamento, com freqiéncia, exprime o juro pago ao propriethrio pelo capital incorporado A terra. A situa- gio dos terrenos, a proximidade As cidades e muitas outras circuns- tancias influem sobre o arrendamento e modificam a renda. Tais razbes, peremptérias, bastariam para provar a inexatidio de um cadastro baseado na renda. Por outro lado, a renda nao poderia ser o indice constante da fertilidade de um terreno, porque a aplicagao moderna da quimica, a cada instante, altera a natureza do solo, e os conhecimentos geolégicos comecgam, justamente nos dias atuais, a modificar por inteiro a antiga avaliacao da fertilidade relativa — foi apenas ha cerca de vinte anos que se araram vastas freas dos condados orien- tais da Inglaterra, até entdo incultas porque se apreciavam mal as relagdes entre o himus e a composicAo da camada inferior. Assim, portanto, a histéria, longe de apresentar, na renda, um cadastro conclufdo, nao faz outra coisa senao alterar, modificar inteiramente os cadastros j4 prontos. Finalmente, a fertilidade nao 6 uma qualidade tao natural como se poderia acreditar: ela se vincula intimamente As relagdes sociais atuais. Uma terra pode ser muito fértil para o cultivo do trigo ¢, no entanto, o preco do mercado poderé determinar que o culti- vador a transforme em pastagem artificial, tornando-a estéril. (208) |Proudhon, loc. cit., HI, p. 271. O Sr. Proudhon improvisou o seu cadastro, que sequer tem 0 valor do cadastro comum, apenas para dotar de um corpo 0 objetivo providencialmente igualitdrio da renda. Ele continua: “A renda € 0 juro pago por um capital que jamais perece: a terra. E como este capital nao € susceptivel de nenhum acréscimo quanto a matéria, mas somente de melhorias in- definidas quanto ao uso, ocorre que, enquanto o juro ou © lucro do empréstimo (mutuum) tende incessantemente a diminuir pela abundancia de capitais, a renda tende a aumen- tar sempre pelo aperfeigoamento da industria, de que resulta a melhoria no uso da terra... Eis, na sua esséncia, a renda"™. Desta vez, o Sr. Proudhon vé na renda todos os sintomas do juro, com a diferenca de que ela provém de um capital de natureza especffica. Este capital é a terra, capital eterno, que “nao é suscep- tivel de nenhum acréscimo quanto a matéria, mas somente de melhorias indefinidas quanto ao uso”’. Na marcha progressiva da civilizagdo, 0 juro possui uma ten- déncia continua para a baixa, enquanto a renda tende continua- mente a subir. O juro baixa por causa da abundancia de capitai: renda aumenta com os aperfeigoamentos introduzidos na industria, que tém por conseqiéncia um uso mais inteligente do solo. Eis, na sua esséncia, a opiniao do Sr. Proudhon. Examinemos, primeiro, até que ponto € correto dizer que a renda é 0 juro de um capital. Para o proprietario fundi4rio mesmo, a renda representa o juro do capital que a terra Ihe custou, ou que ele obteria se a vendesse. Mas, comprando ou vendendo a terra, ele s6 compra ou vende a renda. O prego que paga para adquirir a renda é regulado pela taxa de juro geral e nada tem a ver com a propria natureza da renda. O juro dos capitais investidos na terra é, geralmente, inferior ao daqueles investidos nas manufaturas ou no comércio. Assim, para aquele que nao distingue o juro que a terra representa para 0 propriet&rio da renda mesma, o juro da terra-capital diminui ainda mais que o dos outros capitais. Mas nao se trata do prego de compra ou venda da renda, do seu valor venal, da renda capitalizada — trata-se da prépria renda. O arrendamento pode implicar, ainda, além da renda propria- mente dita, o juro do capital incorporado A terra. Ent&o, o proprie- tario recebe esta parte do arrendamento nao como proprietario, mas (209) (Idem, U1, p. 268. ] 1S1 como capitalista; no entanto, esta ndo é a renda propriamente dita. sobre a qual devemos falar. A terra, enquanto nao é explorada como meio de produg&o, nao é um capital. As terras-capital podem ser acrescidas, como todos os outros meios de producao, Nada se acresce 4 matéria, para empregar a linguagem do Sr. Proudhon, mas se multiplicam as terras que servem de instrumentos de produc&o. Basta aplicar as terras, j4 transformadas em meios de producao, novos capitais para acrescer a terra-capital sem aumentar em nada a terra-matéria — ou seja, sem ampliar a sua extensdo. A terra-matéria do Sr. Prou- dhon é a terra como limite. Quanto a eternidade que ele atribui a terra, admitimos que esta virtude lhe seja propria enquanto matéria. A terra-capital é tao eterna como qualquer outro capital. O ouro e a prata, que propiciam o juro, sao tao duraveis e eternos como a terra. Se o prego do ouro e da prata diminui enquanto o da terra vai subindo, certamente isto nao decorre da sua natureza mais ou menos eterna. A terra-capital é um capital fixo, mas este se desgasta como os capitais circulantes. As melhorias introduzidas na terra necessitam de reprodug&o e manuteng’o; duram um certo tempo, e este € o seu ponto em comum com todas as outras melhorias usadas para trans- formar a matéria em meio de producdo. Se a terra-capital fosse eterna, certos terrenos, hoje, apresentariam um aspecto que nao tém: veriamos os campos de Roma, a Sicilia ¢ a Palestina em todo o esplendor da sua antiga prosperidade. HA mesmo casos em que a terra-capital poderia desaparecer, mesmo que as melhorias permanecam incorporadas A terra. Em primeiro lugar, isto ocorre todas as vezes em que a renda propria- mente dita é anulada pela concorréncia de novos terrenos, mais férteis. Depois, porque melhorias que poderiam ter um valor em certa época deixam de possui-lo a partir do momento em que se tornam universais pelo desenvolvimento da agronomia. O representante da terra-capital nao é o proprietario fun- di4rio, mas 0 arrendatério. A receita que a terra proporciona como capital € 0 juro e o lucro industrial, nao é a renda. Ha terras que oferecem estes juro e lucro e que nao propiciam renda. Em resumo, a terra, enquanto proporciona juros, é a terra- capital e, como tal, nao oferece renda, nao constitui a propriedade fundiaria. A renda resulta das relagdes sociais nas quais se realiza a explora¢ao. Ela nao poderia resultar da natureza mais ou menos sélida, mais ou menos duravel da terra. A renda nao provém do solo, mas da sociedade. De acordo com o Sr. Proudhon, as “melhorias no uso da terra" — conseqiiéncias do “‘aperfeigoamento da industria” — sao a 152 causa do aumento continuo da renda. Ao contrério, estas melhorias fazem-na baixar periodicamente Em geral, em que consiste toda melhoria, quer na agricultura. quer na manufatura? Consiste em produzir mais com o mesmo trabalho, em produzir tanto ou mesmo mais com menos trabalho. Gracas a estas melhorias, o arrendat4rio dispensa-se de empregar uma maior quantidade de trabalho para um produto proporcional- mente menor. Assim, ele nao tem necessidade de recorrer a terrenos inferiores, e parcelas do capital aplicadas sucessivamente ao mesmo terreno permanecem igualmente produtivas. Portanto, estas melho- rias, longe de elevar continuamente a renda, como 0 Sr. Proudhon o afirma, s4o, ao contrario, outros obst4culos tempordrios que se opdem a sua elevacdo. Os proprietérios ingleses do século XVII percebiam tao bem esta verdade que se opuseram aos progressos da agricultura, temendo a reducdo das suas receitas 7°. § 5. Asgreves e as coalizées de operérios “Todo movimento de alta nos salarios s6 pode ter como efeito uma alta do trigo, do vinho, etc., ou seja, o efeito de uma escassez. Pois 0 que é 0 salArio? F o prego de custo do trigo, ete.; 6 0 preco integral de todas as coisas. Vamos mais longe: 0 salério € a proporcionalidade dos elementos que compdem a riqueza e que s4o consumidos reprodutivamente, a cada dia, pela massa dos trabalhadores. Ora, duplicar os salarios... é atribuir a cada um dos produtores uma parte maior que o seu produto, o que é contraditério; ¢ se a alta incide apenas sobre um pequeno ntimero de industrias, provoca uma perturba¢ao geral nas trocas, numa palavra, uma escassez... E impossivel, afirmo-o, que as greves seguidas de uma elevacao de salarios ndo conduzam a um encarecimento geral: isto é t&o certo como dois ¢ dois sio quatro” 7! Negamos todas estas assertivas, exceto que dois e€ dois sao quatro. (210) Ver Petty, economista inglés do tempo de Carlos II [a referencia de Marx € ao texto “Political Arithmetick” (““Aritmética Politica"), inclufdo 0 Livro Several Essays in Political Arithmetic (Ensaios Diversos sobre a Aritmética Politica), Londres, 1699] (211) Proudhon, loc. cit.. 1, p. 10e 111. Em primeiro lugar, nao hf encarecimento geral. Se o prego de toda coisa dobra ao mesmo tempo que o saldrio, nAo h4 alterag&o Nos precos, mas apenas nos seus termos. De fato, uma elevacao geral dos salfrios jamais pode produzir um encarecimento mais ou menos geral das mercadorias: se todas as induistrias empregassem 0 mesmo ndmero de operdrios em relag&o ao capital fixo ou aos instrumentos de que se servem, uma elevac&o geral dos salfrios produziria uma reducAo geral dos lucros e o preco corrente das mercadorias nao sofreria nenhuma alteracio. Mas como a relagao entre o trabalho manual e o capital fixo nao é a mesma nas diferentes industrias, todas aquelas que empre- gam relativamente uma massa maior de capital fixo e menos oper4- Tios serio forgados, cedo ou tarde, a reduzir o prego de suas merca- dorias. Em caso contrério, nao se reduzindo o preco das merca- dorias, o seu lucro elevar-se-4 acima da taxa comum dos lucros. As mfquinas no s&o assalariados. Portanto, a elevac&o geral de sala- trios afetar& menos as indistrias que empregam, comparativamente as outras, mais mAquinas que operdrios. Mas, com a concorréncia tendendo sempre a nivelar os lucros, aqueles que se elevam acima da taxa comum s6 poderiam ser passageiros. Assim, a parte algumas oscilagdes, uma elevacio geral dos salfrios conduzir&, nao a um encarecimento geral, como diz o Sr. Proudhon, mas a uma baixa parcial, ou seja, a uma baixa no preco corrente das mercadorias fabricadas principalmente com a ajuda de mAquinas. A clevacao ¢ a baixa do lucro e dos sal4rios exprimem apenas a proporcdo na qual os capitalistas e os trabalhadores participam do produto de uma jornada de trabalho, sem influir, na maioria dos casos, no prego do produto. “‘As greves seguidas de uma elevac4o de sal4rios conduzem a um encarecimento geral’’ — eis uma dessas idéias que s6 podem desabrochar no cérebro de um poeta incom- preendido. Na Inglaterra, as greves regularmente deram lugar a invencao e a aplicacfo de algumas m4quinas novas. As mAquinas eram, pode-se dizé-lo, a arma que os capitalistas empregavam para abater 0 trabalho especial em revolta. A self-acting mule, a maior inven¢ao da industria moderna, colocou fora de combate os fiandeiros revol- tados?"”, Ainda que as coalizées e as greves tivessem como efeito voltar contra elas os esforcos do génio mecanico, sempre exerceram uma imensa influéncia sobre o desenvolvimento da industria. (212) [Recorde-se um pouco da cronologia das invengdes incidentes na indus- tria textil: 1735 — tear de John Wyatt; 1764 — mulejenny de James Hargreaves, ‘aperteigoada por Arkwright em 1769/1771; 1779 — mule, de Samucl Crompton; 1625 — sedf-acting mule, de Richard Robert. | 154 Prossegue o Sr. Proudhon: “Vejo, num artigo publicado pelo Sr. Léon Faucher... em setembro de 18457", que, desde algum tempo, os operdrios ingleses perderam o hébito das coalizées, 0 que, seguramente, éum progresso pelo qual eles merecem felicitagdes; mas esta melhora no moral dos operérios decorre, sobretudo, da sua instrug4o econdmica. ‘Os salarios ndo dependem dos manu- fatureiros’ — exclamou, no comicio de Bolton, um operd- rio fiandeiro. Nas épocas de depressdo, os patrdes sdo apenas, por assim dizer, o chicote de que se arma a necessidade e, querendo-o ou nao, 6 preciso que golpeiem. O princfpio regulador € a relacdo entre a oferta e a demanda; e os pa- trdes nao tém esse poder..." E o Sr. Proudhon exclama: até que enfim, eis ai oper4rios bem educados, oper4rios mode- lares, etc., etc.: “Esta miséria faltava a Ingleterra: ela nao cruzar4 o estreito’’?"* De todas as cidades da Inglaterra, Bolton € aquela onde o radicalismo est& mais desenvolvido. Os operarios de Bolton sao conhecidos por serem extremamente revoluciondrios. Quando da gtande agitac&o ocorrida na Inglaterra pela abolic&o das leis sobre os cereais*'*, os fabricantes ingleses nao acreditaram que poderiam enfrentar os proprietfrios fundiarios sem colocar a frente os ope- rérios. Mas como os interesses dos operfrios ndo eram menos opos- tos aos dos fabricantes que os destes aos dos proprietarios fundia- Tios, era natural que os fabricantes nao se saissem bem nos comfcios dos oper4rios. O que fizeram os fabricantes? Para salvar as aparén- cias, organizaram comicios compostos em grande parte por contra- mestres, pelo pequeno nimero de oper4rios que lhes eram dedicados € por amigos do comércio propriamente ditos. Quando, em seguida, os yerdadeiros operfrios tentaram, em Bolton e em Manchester, participar desses comicios para protestar contra essas falsas de- (213) [Trata-se do artigo “Les Coalitions Condamnées par les Ouvriers Anglais” (“As Coalizdes Condenadas pelos Operdrios Ingleses”’), publicado no volume I], agosto-novembro de 1845, p. 113/120, do Journal des Economistes (Jornal dos Economistas). | (214) Proudhon, loc. cit., 1, p. 261 ¢ 262. (215) [As leis relativas aos cereais, procurando limitar ou proibir a impor- taco de grios, foram implantadas na Inglaterra a partir de 1815, beneficiando os grandes propriet&rics fundidrios (landlords). A burguesia industrial lutou contra estas leis, sob a consigna da liberdade de comércio — a Anti-Com Law League (Liga Contra as Leis dos Cereais) {oi fundada em Manchester, em 1838, por Richard Cobden e John Bright —, ¢ conseguiu a sua abolichoem 1846. | 185 monstragdes, foi-Ihes proibida a entrada, sob o pretexto de que se tratava de ticket-meeting. Entende-se por esta expressao um comi- cio do qual s6 podem participar pessoas munidas de convites. No entanto, os cartazes, afixados nas paredes, tinham anunciado comi- cios pblicos. Todas as vezes em que havia comicios deste tipo, os jornais dos fabricantes noticiavam com pompa e detalhes os discur- sos proferidos. Nao é preciso dizer que eram feitos pelos contra- mestres. Os jornais de Londres reproduziam-nos literalmente. O Sr. Proudhon tem a infelicidade de tomar os contra-mestres por oper4- rios comuns e d4-lhes a ordem para nao cruzarem oestreito. Se, em 1844 e 1845, as greves saltavam menos a vista que antes, € porque estes foram os dois primeiros anos de prosperidade para a industria inglesa desde 1837. Contudo, nenhuma trade-union foi dissolvida. Oucamos, agora, os contra-mestres de Bolton. Segundo eles, os fabricantes nao s4o os donos dos saldrios porque nao sao os donos dos precos do produto, e n&o sdo os donos dos precos do produto porque nao so os donos do mercado do universo. Por esta razdo, dao a entender que nao é preciso fazer coalizdes para arrancar aos patrdes um aumento de sal4rios. O Sr. Proudhon, ao contrario, interdita-as, temendo que uma coaliz4o seja seguida por uma eleva- ¢do de saldrios que acarretaria uma escassez geral. Nao é preciso dizer que, num unico ponto, existe um entendimento cordial entre os contra-mestres e o Sr. Proudhon: uma elevag4o dos salarios equivale a uma alta nos precos dos produtos. Mas o temor de uma escassez € a verdadeira causa do rancor do Sr. Proudhon? Nao. Muito simplesmente, ele nao perdoa aos contra-mestres de Bolton o determinarem o valor pela oferta ¢ pela demanda e desprezarem 0 valor constitufdo, 0 valor que passou ao estado de constituicao, a constituigao do valor, ai incluidas a permu- tabilidade permanente e todas as outras proporcionalidades de rela- ¢6es e relagdes de proporcionalidade, sustentadas pela Providéncia: “A greve dos oper4rios é ilegal. E nao é somente o Cédigo Penal que o afirma, é 0 sistema econémico, € a necessidade da ordem estabelecida... Que cada oper4rio, individualmente, possa dispor livremente da sua pessoa e dos seus bragos, isto é tolerével; mas que os operarios empreendam, através de coali- zbes, violéncias contra 0 monopélio, eis 0 que a sociedade nao pode permitir"’?"*. (216) Proudhon, foc. cit., 1, p. 334 € 335. [Até por volta de 1800. « legislacio inglesa declarava ilegais todas as coalizdes. Esta legislagBo foi abolida em 1824, ¢. & partir do ano seguinte, as trade-unions se expandem || 156 O Sr. Proudhon pretende fazer passar um artigo do Codigo Penal por um resultado necessario e geral das relagtes da producto burguesa. Na Inglaterra, as coaliztes sao autorizadas por um ato do Parlamento e foi o sistema econdmico que forgou 0 Parlamento a dar a esta autorizacio uma sancdo legal. Em 1825, quando. sob o ministro Huskisson, o Parlamento foi levado a modificar a legis- lagao, para melhor adequa-la a um estado de coisas resultante da livre concorréncia, ele teve, necessariamente, que aboiir todas as lets que interditavam as coalizdes dos oper4rios. Mais a industria mo- derna e a concorréncia se desenvolvem, mais existem elementos que provocam e favorecem as coalizdes € tao logo elas se tornam um fato econdmico, assumindo dia a dia mais consisténcia, nao podem tardar em se tornarem um fato legal. Portanto, 0 artigo do Cédigo Penal prova, quando muito, que a industria moderna e a concorréncia ainda ndo estavam bem desen- volvidas sob a Assembléia Constituinte e sob o Império* . Os economistas ¢ os socialistas*"* estio de acordo em relagdo a um tinico ponto: a condenacdo das coalizdes. Apenas apresentam motivos diferentes para a sua condenacao. Os economistas dizem aos operdrios: — Nao fagam coalizdes. Fazendo-as, vocés entravarao a marcha regular da industria, impe- dirao os fabricantes de atender Aas encomendas, perturbarao o comércio e precipitardo a introducao de mAquinas que. tornando o seu trabalho parcialmente inutil, forg4-los-4o a aceitar um salario ainda mais baixo. Ademais, seria vao: 0 salario de vocés sera sempre determinado pela relagdo entre os bracgos procurados e os bracos oferecidos e € um esforco tAo ridiculo quanto perigoso a sua revolta contra as leis eternas da economia politica. Os socialistas dizem aos operarios: — Nao fagam coalizdes porque, no fim das contas, 0 que ganharao? Uma elevacdo de salarios? Os economistas lhes provardo até a evidéncia que os pou- cos centavos que vocés poderiam conquistar, por alguns momentos, em caso de éxito, serao seguidos por uma baixa permanente. Calcu- listas hAbeis Ihes mostrar4o que vocés precisarao de anos para recuperar, apenas considerando 0 aumento dos salirios, 0 que gas- taram para organizar e manter as coalizdes. Nos, na nossa quali- (217) [As leis ent&o vigentes na Franca — a chamada “lei de le Capelier’’, adotada pela Assembléia Constituinte, em 1791, ¢ 0 Cédigo Penal, redigido 00 perfodo imperial de Napoledo — proibiam aos operdrios associagdes ¢ greves. Esta legislacAo s6 foi abolida em 1884. | (218) [Na edicdo alema de 1885, Engels introduziu a seguinte nota: “Ou sej os socialistas da época, adeptos de Fourier na Franca, de Owen na Inglaterra’. | 1S7 dade de socialistas, nés lhes diremos que, independentemente desta questao de dinheiro, antes e depois vocés nao serao menos oper4rios € os patrdes menos patrdes. Assim, nada de coalizdes, nada de politica — pois fazer coalizdes n&o é fazer politica? Os economistas querem que os operdrios permanegam na sociedade tal como ela esta formada e tal como eles a consignaram e sancionaram em seus manuais. Os socialistas querem que os ope- rhrios deixem de lado a sociedade antiga para que possam entrar melhor na sociedade nova que tao previdentemente preparam para eles. Apesar de uns e outros, apesar dos manuais e das utopias, as coalizdes ndo deixaram nunca de progredir e crescer com o desenvol- vimento e o crescimento da industria moderna. E isto a tal ponto que, hoje, o grau alcancado pela coalizio em um pais assinala nitidamente o grau que ele ocupa na hierarquia do mercado do universo. A Inglaterra, onde a industria atingiu o mais alto grau de desenvolvimento, possui as coalizdes mais amplas e melhor orga- nizadas. Na Inglaterra, ndo se ficou nas coalizdes parciais, que s6 objetivavam uma greve passageira e desapareciam com ela. For- maram-se coalizdes permanentes, trade-unions que servem de ba- luarte aos oper4rios em suas lutas contra os patrdes. E, atualmente, todas estas trade-unions locais encontram um ponto de unio na National Association of United Trades*” , cujo comité central est& em Londres e que jé conta com 80000 membros. A formagao dessas greves, coalizSes e trade-unions caminha simultaneamente Aas lutas polfticas dos trabalhadores, que hoje constituem um grande partido politico, sob a denominacdo de cartistas™ . Os primeiros ensaios dos trabalhadores para se associarem entre si sempre se verificaram sob a forma de coalizdes. A grande industria aglomera num mesmo local uma multidao de pessoas que nao se conhecem. A concorréncia divide os seus interesses. Mas a manutengo do salfrio, este interesse comum que tém contra o seu patrdo, os reine num mesmo pensamento de resisténcia — coalizdo. A coaliz4o, pois, tem sempre um duplo obje- tivo: fazer cessar entre elas a concorréncia, para poder fazer uma (219) (Esta Associagdo Nacional das Profissées Unidas toi criada em 1845 € desenvolveu grande mobilizaclo para defender melhorias na legislas&o fabril ¢ nas condigtes de venda da forca de trabalho. Existiu até infcios dos anos 60, mas desde 1851 n&o desempenhou mais qualquer papel importante no movimento sindical. ] (220) [Denomina-se cartismo (em funcho das suas reivindicacbes basices, contidas na Carta do Povo) ao movimento politico que empolgou os trabalhadores ingleses entre os anos 30 e SO do século XIX. No verlo de 1846, Marx estabeleceu relaces com Harvey O'Connor, Iideres cartistas. | 188 concorréncia geral ao capitalista. Se o primeiro objetivo da resis- téncia é apenas a manutencdo do salario, 4 medida que os capita- listas, por seu turno, se reinem em um mesmo pensamento de repressao, as coalizdes, inicialmente isoladas, agrupam-se e, em face do capital sempre reunido, a manutencdo da associac4o torna-se para elas mais importante que a manutengio do salério. Isto é tho yerdadeiro que os economistas ingleses assombram-se ao ver que os operérios sacrificam boa parte do salario em defesa das associacdes que, aos olhos desses economistas, s6 existem em defesa do salario. Nesta luta — verdadeira guerra civil —, retinem-se e se desenvolvem todos os elementos necessérios a uma batalha futura. Uma vez chegada a este ponto, a associagdo adquire um caréter politico. As condi¢des econémicas, inicialmente, transformaram a mas- sa do pais em trabalhadores. A dominacao do capital criou para esta massa uma situac4o comum, interesses comuns. Esta massa, pois, é j4, face ao capital, uma classe, mas ainda nao o é para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se retine, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta politica. Na histéria da burguesia, devemos distinguir duas fases: aquela durante a qual a burguesia se constituiu em classe, sob o regime da feudalidade e da monarquia absoluta, e aquela em que, ja constituida em classe, derrubou a feudalidade e a monarquia para fazer da sociedade uma sociedade burguesa. A primeira destas fases foi a mais longa ¢ exigiu os maiores esforgos. Ela também se iniciou com coalizdes parciais contra os senhores feudais. Fizeram-se muitas investigagdes para descrever as diferentes fases histéricas que a burguesia percorreu, desde a comuna até a sua constitui¢ao como classe. Mas quando se trata de apresentar um quadro exato das greves, coalizdes ¢ outras formas pelas quais, diante de nossos olhos, os proletdrios realizam a sua organizacio como classe, alguns sao tomados por um temor real e outros exibem um desprezo transcendental. Uma classe oprimida é a condi¢&o vital de toda sociedade fundada no antagonismo entre classes. A liberta¢ao da classe opri- mida implica, pois, necessariamente, a criac4o de uma sociedade nova. Para que a classe oprimida possa libertar-se, 6 preciso que os poderes produtivos j4 adquiridos ¢ as relagdes sociais existentes ndo possam mais existir uns ao lado de outras. De todos os instrumentos de produc4o, o maior poder produtivo é a classe revolucionaria mesma. A organizagao dos elementos revolucion4rios como classe supde a existéncia de todas as forgas produtivas que poderiam se engendrar no seio da sociedade antiga. 159 Isto significa que, apés a ruina da velha sociedade, haver& uma nova dominacao de classe, resumindo-se em um novo poder politico? Nao. A condigAo da libertacdo da classe laboriosa é a abolig4o de toda classe, assim como a condi¢ao da libertag4o do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a abolicao de todos os estados”*! e de todas as ordens. A classe laboriosa substituira, no curso do seu desenvolvi- mento, a antiga sociedade civil por uma asssociago que excluira as classes e seu antagonismo, e ndo havera mais poder politico propria- mente dito, j4 que o poder politico é o resumo oficial do antago- nismo na sociedade civil. Entretanto, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de uma classe contra outra, luta que, levada a sua expresso mais alta, é uma revolucao total. Ademais, é de provocar espanto que uma sociedade, fundada na oposi¢ao de classes, con- duza a contradi¢do brutal, a um choque corpo-a-corpo como derra- deira solucao? Nao se diga que o movimento social exclui o movimento poli- tico. Nao ha, jamais, movimento politico que ndo seja, ao mesmo tempo, social. Somente numa ordem de coisas em que nao existam mais classes e antagonismos entre classes as evolugdes sociais deixarao de ser revolugdes politicas. Até la, as vésperas de cada reorganizacao geral da sociedade, a Ultima palavra da ciéncia social sera sempre: “O combate ou a morte: a luta sanguin4ria ou o nada. E assim que a questdo est4 irresistivelmente posta’ (George Sand) ”?. (221) [Na edic&o alema de 1885, Engels introduziu a seguinte nota: “Estado tem aqui o sentido histérico das ordens do Estado feudal, desfrutando de privilégios bem delimitados. A revolug&o burguesa aboliu as ordens e, ao mesmo tempo, os seus privilégios. A sociedade burguesa s6 conhece classes. Portanto, contradiz totalmente ahist6ria a designacao do proletariado como quarto estado". ) (222) [A frase € extrafda do romance histérico Jean Ziska. Episode de la Guerre des Hussites (Jean Ziska. Episédio da Guerra dos Hussitas), publicedo pel primeira vez em 1843. | 160 ANEXOS PREFACIO A PRIMEIRA EDICAO ALEMA Esta obra foi escrita durante o inverno de 1846/1847, quando Marx elaborou definitivamente os principios fundamentais das suas novas concepgées histéricas e econédmicas. O livro de Proudhon, Systéme des Contradictions Economiques ou Philosophie de la Mi- sére [Sistema das Contradigées Econémicas ou Filosofia da Mi- séria]?, publicado pouco antes, propiciou-Ihe a oportunidade para desenvolver aqueles principios fFundamentais opondo-os aos pontos de vista do homem que, a partir de ent4o, ocuparia a posicéo mais proeminente entre os socialistas franceses daquela época. Desde o periodo em que, em Paris, ambos passaram noites discutindo ques- tdes econdmicas, seus caminhos divergiram cada vez mais; 0 livro de Proudhon mostrou que um abismo intransponivel, impossivel de ignorar, existia entre eles e, na sua resposta, Marx explicitou a ruptura definitiva. A avaliagdo global de Proudhon por Marx, 0 leitor pode enconir4é-la no texto’ que se publicou nos nimeros 16/17/18 do Sozial-Demokrat |Social-Democrata], de Berlim*. Esta foi a unica contribuigdéo de Marx a este periddico: as tentativas do Sr. von Schweitzer, logo descobertas, para encaminhar o jornal por vias (1) [Este prefécio foi publicado tanto na primeira edigho alemi do livro de Marx (Das Elend der Philosophie. Antwort auf Proudhons ‘Philosophie des Elends". Stuttgart, 1885) como na revista Neue Zeit (Novos Tempos), Orgao tebrico da social- democracia alemi, sob o titulo Marx e Rodbertus (edicho de janeiro de 1885).] (2) Editadoem Paris, 2 volumes, 1846, por Guillaumin. : (3) (Engels se refere a carta de Marx a Schweitzer, incluida nos Anexos deste volume. (4) [Este periddico, érglo da Unido Operiria Geral Alemd. associagho da tendéncia lassalleana, foi publicado em Berlim entre 1864 1871; Schweitzer foi o seu Tedator-chefe durante os dois primeiros anos da sua exist#ncia. | 163 convenientes ao governo e ao partido feudal obrigaram-nos, poucas semanas depois, a desistir publicamente de colaborar com ele’. Este livro, hoje, tem para a Alemanha uma significag&o que Marx jamais previra. Como ele poderia imaginar que, dirigindo a critica a Proudhon, atingiria Rodbertus, 0 idolo dos arrivistas mo- dernos, esse Rodbertus de que, naquela época, Marx nem conhecia onome?! Este nao € o lugar para o exame detalhado das relagoes entre Marxe Rodbertus; seguramente, terei a oportunidade de fazé-lo em breve®. Direi apenas, por agora, que, quando Rodbertus acusa Marx de "‘saquear” seus textos e de ‘‘utilizar profusamente e sem citagdes”, n’O Capital, o seu livro Zur Erkenntniss’, ele avanca até acalunia, explicfvel somente pela irritagdo de um génio desconhe- cido e pela sua assombrosa ignorancia acerca do que se produz mais além dos limites da Prissia, especialmente na literatura socialista e econdmica. Nem a citada obra, nem as acusacdes de Rodbertus jamais chegaram ao conhecimento de Marx; deste autor, Marx leu apenas as trés Sozialen Briefe’, e n&o antes de 1858 ou 1859. Ecom fundamento que, nestas cartas, Rodbertus assegura ter descoberto o “‘yalor constituido proudhoniano” antes do préprio Proudhon; mas, ainda aqui, vangloria-se inutilmente em ser 0 pri- meiro. De qualquer maneira, a critica deste livro 0 atinge, e sou obrigado a me deter, rapidamente, sobre o seu opusculo funda- mental, de 1842, Zur Erkenntniss unerer staatswirtschaftlichen Zustande porque, além do comunismo a Weitling nele contido (ainda que inconscientemente), a obra se antecipa ao proprio Prou- dhon. O socialismo moderno, qualquer que seja a sua tendéncia, na medida em que arranca da economia politica burguesa, subs- creve, quase sem excegdes, a teoria do valor de Ricardo. Dos dois postulados estabelecidos por Ricardo, em 1817, nas primeiras p4- ginas dos seus Principles? — 19) o valor de toda mercadoria é (5) [Marx e Engels romperam com o jornal através de uma declaragao publi- cada na imprensa alema em finais de fevereiro e principios de marco de 1865. | (6) [ Engels alude ao seu preficio, datado de S de maio de 1885, a primeira ediglo alemi do livro segundo 4°O Capital (cir. Marx, K.: O Capital. Critica da Economia Politica, Rio de Janeiro, livro 2, volume 3, 1970, p. 1/19).] (7) [Rodbertus-Jagetzow: Zur Erkenntniss unserer staatswirtschatlichen Zus- tande (Contribuic¢do ao Conhecimento do Nosso Regime Econémico), Neubranden- burg/Friedland, 1842.) (8) ( Engels se refere acs trés textos de Rodbertus, editados em 1850/1851, em Beatin. 46 o titulo Sorialen Briefe an von Kirchmann (Cartas Sociais a von Kirch- mann). (9) [Ricardo, D.: On the Principles of Political Economy and Taxation (Prin- elpios de Economia Polltica e Tributagao), Londres, 1817. } 164 determinado Gnica e exclusivamente pela quantidade de trabalho necess4rio para produzi-la e 2°) 0 produto de todo trabalho social € dividido entre trés classes: os proprietarios fundiarios (renda). os capitalistas (lucro) e os operarios (salario) —, destes dois postu- lados, a partir de 1821, na Inglaterra, extrairam-se dedugdes socia- listas'’® e com um vigor e decisao tais que esta literatura, hoje quase esquecida e em grande parte recuperada por Marx, nao foi superada até a publicagao d'O Capital. Sobre esta quest4o, havemos de voltar em outra oportunidade. O que importa, todavia, é que, quando Rodbertus, em 1842, extraiu conclusdes socialistas dos postulados teferidos, isto significou, naturalmente, dado o contexto alemao, um progresso; contudo, sé na Alemanha isto podia adquirir con- tornos de uma descoberta. Na sua critica a Proudhon, vitima da mesma presungao, Marx demonstrou a pouca originalidade consis- tente numa semelhante aplicacao da teoria de Ricardo: “Qualquer pessoa minimamente familiarizada com o movi- mento da economia politica na Inglaterra ndo ignora que quase todos os socialistas deste pais, em épocas diferentes, propuseram a aplicagdio igualitaria da teoria ricardiana. Pode- riamos citar ao Sr. Proudhon: a Economia Politica de Hodgs- kin, 1827; William Thompson: An Inquiry into the Principles of the Distribution of Wealth, most Conducive to Human Happiness Unvestigagao sobre os Principios de Distribuigéo da Riqueza, Melhor Conducentes @ Felicidade Humana], 1824; T. R. Edmonds: Practical, Moral and Political Eco- nomy [Economia Pratica, Moral e Politica}, 1828; etc., etc. — e quatro paginas de etc. Contentar-nos-emos em dar a palavra aum comunista inglés, o Sr. Bray. Citaremos as passagens decisivas da sua notavel obra Labour's Wrongs and Labour's Remedy [Sofrimentos da Classe Operdria e sua Solucao). Leeds, 1839". As citagdes que Marx faz de Bray sdo suficientes para anular boa parte das pretensdes que Rodbertus mantém acerca de seu pionei- Tismo. (10) [Data de 1821 0 opiisculo anénimo, publicado em Londres, sob 0 titulo The Source and Remedy of the National Difficulties, Deduced from Principles of Politi- cal Economy. A Letter to Lord John Russel (Fonte e Solusao das Dificuldades Nacio- nais, Deduzidas dos Princlpios da Economia Politica. Carta a Lord John Russel). No Preficio citado na nota 6, Engels estuda este optisculo, que caracteriza como “o Ponto mais avangado de toda uma literatura que, de 1820 a 1830, emprega a teoria ricardiana do valor € da mais-valia no interesse do proletariado..., combatendo a burguesia com suas proprias armas” (/oc. cit., p. 13).] (11) [Cfr., neste volume, p. 70/71.| Naquela época, Marx ainda nao conhecia as salas de leitura do Museu Britfinico. Além das bibliotecas de Paris e de Bruxelas e dos meus livros e extratos, consultara apenas as obras que encon- trara em Manchester, durante a viagem que, juntos, fizemos pela Inglaterra, em seis semanas do verao de 1845. Deduz-se, assim, que, nos anos 40, a literatura referida ndo era t&o inacessivel como o € hoje. E se, apesar disto, ela continuou ignorada por Rodbertus, a Tazo est&, exclusivamente, no seu estreito provincianismo de cariz prussiano. Ele é o verdadeiro fundador do socialismo especifica- mente prussianoe, enfim, hoje reconhecido como tal. Infelizmente, nem mesmo na sua idilica Prissia Rodbertus teve paz. Em 1859, em Berlim, publicou-se o livro de Marx Zur Kritik der politischen Oekonomie, Ersters Heft'?, onde, entre as objerdes levantadas contra Ricardo pelos economistas, Marx cita a seguinte, na pagina 40: “Se o valor de troca de um produto é igual ao tempo de trabalho que ele contém, o valor de troca de um dia de trabalho é igual ao produto de um dia de trabalho. Ou ainda: o saldrio deve ser igual ao produto do trabalho. Ora, acontece precisamente o contrario". E, em nota, ele observa: “Esta objecdo, feita a Ricardo pelos economistas burgueses, foi mais tarde retomada pelos socialistas. Admitindo a exa- tiddo te6rica da férmula, eles denunciavam que a pratica contradizia a teoria e instavam a sociedade burguesa que extraisse na prAtica a deducdo implicita do seu principio te6- rico. Foi assim que os socialistas ingleses voltaram contra a economia politica a formula do valor de troca de Ricardo”’'*. Nesta mesma nota, Marx faz referéncia ao seu livro Miséria da Filosofia que, aquela altura, ainda se encontrava 4 venda em todos os lugares. Rodbertus, portanto, tinha a inteira possibilidade de avaliar a novidade das suas descobertas de 1842. Ao invés de fazé-lo, nao deixa de proclam4-las a todo instante e as considera tao insuperaveis que sequer ocorre-lhe pensar que Marx, sozinho, pudesse extrair da (12) | Publicado por F. Duncker (Berlim). H& edigo em portugues: Contni- buigdo para a Critica da Economia Politica, Lisboa, 1971. | (13) [Cfr. a edig&o citada na nota anterior, p. 65.] (14) (Idem, p. 73/74. | 166 teoria de Ricardo as mesmas deducoes que ele proprio! Nunca! Marx “‘saqueou"’ suas obras — obras de um autor a quem Marx oferecia todas as possibilidades de se convencer que. bem antes de ambos, idénticas dedugées (pelo menos sob a forma tosca que ainda conservam em Rodbertus) foram enunciadas na Inglaterra! O que dissemos expressa exatamente a mais simples aplicacdo socialista da teoria de Ricardo. Esta aplicagdo conduziu Rodbertus, entre outros, a consideragdes sobre a origem ¢ a natureza da mais- yalia que, em muitos pontos, ultrapassam largamente as concepgoes de Ricardo. Deixando de lado o fato de as suas descobertas j4 serem conhecidas pelos seus predecessores, cabe notar que Rodbertus erra tanto como eles ao aceitar acriticamente as categorias econémicas — trabalho, capital, valor, etc. —, adotando-as sob a forma grosseira da tradicao econémica, uma forma que se detém na superficie dos fendmenos sem alcangar 0 seu contetido. Com este procedimento, Rodbertus nao s6 se priva da possibilidade de qualquer avango — ao contrario de Marx, que foi o primeiro a extrair conseqiéncias desses postulados que sao repetidos h4 64 anos — mas, ainda, como veremos, caminha diretamente para a utopia. A referida aplicagao da teoria de Ricardo — vale dizer: aos operdrios, unicos produtores efetivos, pertence a totalidade do pro- duto social, que & 0 seu produto — conduz claramente ao comu- nismo. Mas, como Marx assinala na passagem mencionada, ela ¢, em termos econémicos, formalmente falsa, uma vez que expressa uma simples extensdo da moral 4 economia politica. Segundo as leis da economia burguesa, a maior parte do produto n&o pertence aos operdrios que o criaram. Afirmar que este fendmeno nao & justo, que deve ser eliminado — isto nada tem a ver com a economia politica: significa apenas que este fenémeno colide com a nossa avaliagio moral. Precisamente por isto, Marx jamais fundou suas reivindicagdes comunistas sobre argumentos semelhantes, e sim so- bre a inevitavel ruina do modo de produgao capifalista, ruina que, a cada dia e ante nossos olhos, adquire proporgdes maiores. Marx se limita a dizer que a mais-valia se constitui de trabalho n&o pago; limita-se ao fato. Mas o que é formalmente falso em termos econé- micos pode ser verdadeiro em termos da hist6ria universal. Se a consciéncia moral das massas considera injusto um fendmeno eco- n6émico qualquer, como, outrora, a escravatura ou a servidio, isto mostra que o fendmeno em tela é algo anacrénico e que emergiram outros fendmenos econdmicos em fungao dos quais ele se torna j& intoler4vel e insustentAvel. Assim, numa inexatid&o econdmica for- mal pode ocultar-se um contetdo econdmico real. Aqui, porém, seria despropositado um exame mais profundo do significado e da hist6ria da teoria da mais-valia. 167 No entanto, a teoria do valor de Ricardo permite outras infe- réncias — e elas foram efetivadas. O valor das mercadorias é deter- minado pelo trabalho necessfrio 4 sua produgao. Entretanto, neste nosso mundo de pecados, as mercadorias se vendem ora acima do seu valor, ora abaixo dele, e este fato nao se deve apenas as osci- lagdes geradas pela concorréncia. A taxa de lucro tende a reduzir-se aum mesmo nivel para todos os capitalistas, igualmente como os precos das mercadorias tendem a reduzir-se, mediante a oferta e a procura, ao valor do trabalho cristalizado nelas. Mas a taxa de lucro é calculada em relag4o a todo o capital investido numa empresa industrial. E como, em dois ramos industriais diferentes, 0 produto anual pode cristalizar idénticas quantidades de trabalho e, por- tanto, representar valores iguais dado um mesmo nivel de sal4rios — levando-se em conta que os capitais investidos num ramo podem ser, e freqdentemente 0 sao, duas ou trés vezes maiores que no outro —, a lei do valor de Ricardo, neste caso, contradiz (como o préprio Ricardo 0 percebeu) a lei da equalizac&o da taxa de lucro. Se os produtos dos dois ramos industriais sAo vendidos pelo seu valor, as taxas de lucro ndo podem ser iguais; se sAo iguais, os produtos nao podem ser vendidos pelos seus valores. Temos, aqui, uma contra- dic&o, uma antinomia de duas leis econédmicas; na pratica, de acordo com Ricardo (capitulo I, segdes 4 e 5), a solucdo freqiente favorece a taxa de lucro as expensas do valor. A definig&o ricardiana do valor, porém, apesar das suas impli- cagdes negativas, possui um outro aspecto que a torna gratificante para o bom burgués. Esta definicao apela, com irresistivel vigor, ao seu sentimento de justiga. A justiga e a igualdade de direitos sdo os fundamentos sobre os quais o burgués dos séculos XVIII e XIX desejara construir o seu edificio social, ap6s liquidar as injusticas, desigualdades e privilégios feudais. Como Marx o demonstrou, a determinagao do valor das mercadorias pelo trabalho e a livre troca de produtos do trabalho que se realiza sobre a base desta medida do valor entre os donos das mercadorias, iguais em direitos, sdo os pilares reais sobre que se erguem toda a ideologia politica, juridica e filos6fica da burguesia moderna. Uma vez estabelecido que o tra- balho é a medida do valor da mercadoria, 0 bom burgués deve escandalizar-se até a medula dos seus melhores sentimentos com este mundo imoral, onde aquela lei prim4ria da justica é afirmada de direito e, de fato, negada vergonhosamente a cada instante. Justamente o pequeno-burgués, cujo honrado trabalho — ainda que seja apenas o dos seus empregados e aprendizes — é precisamente desvalorizado pela concorréncia da grande industria e das mé- quinas, justamente este pequeno produtor sonha com uma socie- dade em que a troca dos produtos segundo o valor do trabalho neles cristalizado seja, enfim, uma verdade plena e absoluta. Noutras 168 palavras: ele aspira a uma sociedade em que reine, sem exceco, € exclusivamente, uma lei da producdo mercantil, mas na qual este- jam suprimidas as condicdes que garantem a vigéncia desta lei, ou seja: as outras leis da produc4o mercantil e, mais tarde, capitalista. H4 v4rias provas da profunda ressonancia desta utopia na mentalidade do pequeno-burgués — por sua situa¢ao ou por suas idéias — contemporaneo: j4 em 1831, ela foi sistematicamente desenvolvida por John Gray!S; nos anos 30, na Inglaterra, fizeram- se tentativas para leva-la a pratica, ao mesmo tempo em que foi amplamente divulgada no terreno da teoria; em 1842, Rodbertus proclamou-a, na Alemanha, como novissima verdade e, em 1846, Proudhon fez o mesmo na Franga; em 1871, ela foi novamente preconizada por Rodbertus como soluc4o para o problema social e, simultaneamente, como 0 seu legado”; e, em 1884, encontra parti- drios entre a camarilha de arrivistas que, protegendo-se com o nome de Rodbertus, pretende utilizar 0 socialismo de Estado prus- siano"’. A critica de Marx a esta utopia, dirigida tanto contra Prou- dhon como contra Gray '® , é tao exaustiva que, agora, posso limitar- me a poucas observagdes sobre a forma especifica que Rodbertus adotou para fundamenté-la e exp6-la. Como se referiu, Rodbertus toma as definigdes correntes dos conceitos econémicos tal como as apresenta a tradic&o dos econo- nistas — nao faz qualquer tentativa analitica. Para ele, o valor é “ta avaliacdo, tomada como medida, do objeto em sua relacdo quantitativa com outros objetos””. Esta definigao que, para dizer com delicadeza, é extremamente vaga, oferece-nos, no melhor dos casos, uma idéia aproximada do valor, mas nao nos esclarece, em absoluto, o que ele é. E como isto € tudo o que Rodbertus nos pode afirmar sobre o valor, compreende- (15) [ Gray, J.: The Social System. A Treatise on the Principle of Exchange (O Sistema Social. Tratado sobre o Principio da Troca), Edinburg, 1831.| (16) [ Engels refere-se a um artigo de Rodbertus, Der Normal-Arbeitstag (A Jornada Normal de Trabalho), publicado em 16-23-30/IX/1871 na Berliner Revue (Revista Berlinense); no mesmo ano, foi editadoem livro. | (17) [ Engels se refere ao grupo de testamenteiros literhrios de Rodbertus (espe- cialmente Kozak e Wagner), responsiveis pela publicagio de Das Kapital. Vierter sozialer Brief an von Kischmann (O Capital. Quarta Carta Social a von Kischmann), Berlim, 1884. | (18) | Cfr. 0 texto de Marx, sobre Gray, inclufdos nos Anexos deste volume. } (19) [ Rodbertus, op. cit., p- 61.] 169 Se que procure a sua medida fora dele. Depois de confundir, na maior desordem, ao longo de trinta pAginas, o valor de uso com o valor de troca, evidenciando uma capacidade de raciocinio abstrato que causa infinito assombro a Adolph Wagner, Rodbertus conclui que n&o existe uma medida real do valor, devendo-se, por isto, conformar-se com um sucedaneo de medida. O trabalho serviria para tanto, exclusivamente quando se trocassem, sempre, produtos de iguais quantidades de trabalho, independentemente de que “isto ocorra de modo esponténeo ou em decorréncia de providéncias aplicadas”?'. Conseqiientemente, o valor e o trabalho continuam sem vinculagdes reais, embora o primeiro capitulo da obra tenha sido inteiramente consagrado a explicacao de como e por que as mercadorias ‘‘custam trabalho” e nada mais que trabalho. O conceito de trabalho também é tomado por Rodbertus sem critica, tal como se apresenta nos economistas. Mais: embora aluda rapidamente as diferencas na intensidade do trabalho, Rodbertus o concebe em seu aspecto genérico como algo que “‘possui valor’ e, Jogo, que mensura valor, seja ou nado empregue em condicdes sociais medidas e normais. O fato de os produtores investirem dez dias ou somente um na producao de um artigo que pode ser fabricado em um dia; a utilizacdo de instrumentos melhores ou piores; 0 aprovei- tamento do tempo de trabalho para a produg4o de artigos social- mente indispens&veis e na quantidade socialmente necess&ria, ou a producao de artigos para os quais nado hé demanda ou, ainda, a producao de artigos em quantidade superior ou inferior 4 demanda — nada disto interessa a Rodbertus; o que conta é: o trabalho é trabalho, produtos de igual quantidade de trabalho devem trocar-se entre si. Sobre esta questao, Rodbertus — que, quanto a outras est& sempre disposto, pertinente ou impertinentemente, a adotar o ponto de vista do conjunto nacional e a examinar as relagdes entre os produtores a partir das alturas da sociedade em geral — revela a sua pusilanimidade. H& uma razao para isto: desde a primeira linha do seu livro, ele salta na utopia dos vales do trabalho, e qualquer anflise da propriedade criadora de valor, que € inerente ao trabalho, impediria 0 curso das suas idéias. Aqui, os raciocinios abstratos de Rodbertus cedem o passo ao seu instinto, Aliés, para admirar a capacidade de raciocinio abstrato de Rodbertus € preciso estar dotado de um concreta indigéncia mental. O transito & utopia é imediato. As ‘‘providéncias’’ que asse- guram a troca de mercadorias pelo valor do trabalho nelas cristali- (20) [No preficio a obra citada na nota 17, Wagner escreveu: “‘Rodbertus revela aqui um vigor de raciocinio abstrato proprio dos génios” (p, VII/VIII). | (21) (Rodbertus, op. cit., p. 62. ] 170 zado, segundo uma regra sem excegdes, n&o oferecem qualquer dificuldade. Outros utopistas da mesma tendéncia, de Gray a Prov dhon, queimaram pestanas para idealizar instituicdes pdblicas ca- pazes de atingir este objetivo. Pelo menos, tentaram resolver econo- micamente as questdes econdmicas, apoiando-se na agio dos pré- prios donos das mercadorias que realizam a troca. A solugho de Rodbertus é muito mais simples: como prussiano auténtico. apela ao Estado — os poderes publicos decretam a reforma. Portanto, e felizmente, o valor se “constitui”, mas nao de modo pioneiro, como Rodbertus pretende. Ao contrario: muito antes que ele, Gray e Bray — como uma multidao de outros econo mistas — repetiram a saciedade esta mesma idéia: 0 piedoso voto de se adotarem medidas tendentes a garantir que a troca dos produtos, sempre ¢ em todas as circunstancias, se realize exclusivamente segundo o valor do trabalho materializado neles. Depois de ter constituido assim o valor de pelo menos uma parte dos produtos — Rodbertus é modesto —, o Estado emite seus vales de trabalho e os adianta aos capitalistas industriais, que pa- gam com eles aos operarios que, por sua vez, compram os produtos com tais vales, remetendo o papel-moeda ao seu ponto de partida. Devemos passar a palavra a Rodbertus, para ver como tudo isso funciona admiravelmente: “Quanto a esta segunda condicao, as medidas necessdrias Para assegurar que os valores consignados nos vales estejam realmente em circulagaio resumem-se em conceder vales, com a exata indicagdo da quantidade de trabalho empregado na produc&o de artigos, exclusivamente as pessoas que, de fato, fabricaram tais artigos. Quem entregar um produto de dois dias de trabalho, receberé um vale onde se 1é: ‘dois dias’. Observada rigorosamente esta norma na emiss&o dos vales, aquela segunda condigdo efetivar-se-4 necessariamente. Co- mo, de acordo com a nossa premissa, o valor dos artigos coincide sempre com a quantidade de trabalho empregado na sua producdo, sendo medida pelas fragdes naturais do tempo investido, a pessoa que entrega um produto no qual gastou dois dias de trabalho, ao receber um vale de dois dias, esté de posse de uma nota ou um certificado que ¢ equivalente ao de fato produzido. E como, ademais, somente recebe este vale quem, efetivamente, criou um produto para a circulaco, é também claro que o valor consignado no vale existe realmente Para a satisfac4o das necessidades da sociedade. Observada rigorosamente esta norma, por maior que seja a divisio do trabalho, a soma de valor existente deve ser exatamente igual 171 4 soma de valor registrada nos vales. E como esta €, por seu lado, a soma exata de todos os vales, dever& coincidir necessa- riamente com a quantidade de valor existente, e todas as exigéncias estardo satisfeitas e liquidadas de um modo justo” (p. 166/167). Se, até aqui, Rodbertus teve a infelicidade de sempre chegar atrasado com as suas descobertas, a ele se pode atribuir, agora, o mérito de uma certa originalidade: nenhum de seus rivais atrevera- se a expressar a insensatez da utopia dos vales de trabalho com tamanha e t4o nitida puerilidade, de forma — permita-se a expres- sao — tdo verdadeiramente pomeriana. Ja que cada vale corres- ponde a um objeto representativo de valor e, por outro lado, cada objeto de valor é entregue contra a apresentacAo do respectivo vale, a soma dos vales deve ser necessariamente coberta pela soma dos objetos de valor; as contas se resolvem sem qualquer excedente, até os segundos de trabalho coincidem e nenhum contador da tesouraria da Fazenda Publica, envelhecido por anos de servico, podera encon- trar o menor erro. £ possivel pedir mais? Na sociedade burguesa moderna, cada capitalista industrial, por sua conta e risco, produz o que quer, como e quanto quer. Ele ignora as necessidades sociais, a qualidade e a quantidade dos artigos que a demanda exige. O que hoje nao é produzido com a suficiente rapidez, amanha pode ser oferecido em quantidades muito superiores 4s requeridas. No entanto, de um modo ou de outro, bem ou mal, a producdo geralmente se dirige para os artigos que sao necessdrios. Como se resolve esta contradi¢4o? Pela concor- réncia. E como a concorréncia a resolve? Simplesmente, ela reduz os precos das mercadorias que, num momento dado, por seu género ou quantidade, ndo sao adequadas as necessidades da sociedade, depreciando o valor do trabalho materializado nelas; por esta via indireta, a concorréncia mostra aos produtores que seus artigos s40 desnecessdrios, ou que sdo indispens4veis, mas que a sua produgio est& exagerada. Deste fato duas deducées sao possiveis. Primeira: os desvios continuos dos precos das mercadorias em relacdo aos seus valores constituem a condigdo necessaria através da qual, e s6 mediante a qual, o valor proprio da mercadoria pode se manifestar. Exclusivamente através das oscilacdes da concorréncia (e, logo, dos pregos das mercadorias) se efetiva a lei do valor da producdo mercantile se realiza a determinagao do valor da merca- doria pelo tempo de trabalho socialmente necessario. E mesmo quando a forma de manifestagao do valor — o preco — nao se identifica, como é regra geral, com o valor que expressa, ainda aqui o valor compartilha a sorte da maioria das relagdes sociais. Na maioria dos casos, também o monarca nao se identifica com a 172 monarquia que representa. Por isto, numa sociedade de produtores que trocam as suas mercadorias, pretender 0 estabelecimento da determinacao do valor pelo tempo de trabalho empregado. impe- dindo que a concorréncia realize esta determinacao através da pres- sAo sobre os precos (que é a tinica via possivel para isto), evidencia apenas que, neste Ambito, se prolong o habitual desprezo dos uté- picos face as leis econdmicas. Segunda: numa sociedade de produtores que trocam as suas mercadorias, a concorréncia, ao acionar a lei do valor inerente a produc4o mercantil, funda uma organizagao e uma ordenagao da producdo social que. nas circunstancias dadas, s4o as unicas possi- veis. Os diferentes produtores sé percebem as necessidades sociais através da depreciagdo ou do excessivo encarecimento dos produtos. E € precisamente este unico instrumento regulador que a utopia representada também por Rodbertus quer suprimir. E se pergun- tarmos o que garante a producao adequada de cada artigo, qual a garantia de que nio nos faltardo trigo e carne enquanto sobram toneladas de acucar de beterraba e torrentes de aguardente de batata nos afogam, qual a garantia de que nao nos faltarao calcas em meio a superabundancia de botdes — Rodbertus, solene, nos mostraré o seu famoso registro de vales, onde, para cada quilo de acu- car em excesso, para cada barril de aguardente nao comprado, para cada botdo ndo utilizado em calcas, esta consignada a entrega de um vale exato, 0 que assegura a perfeita ‘‘coincidéncia” dos calculos. gragas a que “todas as exigéncias estardo satisfeitas ¢ liquidadas de um modo justo”. Aquele que duvidar pode se dirigir ao contador X, da tesouraria da Fazenda Publica da Pomer4nia. que verificou o registro de vales, comprovou a sua perfeigdo e merece a confianga que se deposita no funciondrio que nunca cometeu um erro de caixa. Observemos agora a ingenuidade com que Rodbertus, através da sua utopia, pensa suprimir as crises comerciais e industriais. Quando a produ¢4o mercantil assume as dimensdes do mercado mundial, o equilfbrio entre a producdo dos diferentes produtores, orientados pelos seus cAlculos individuais, e o mercado para o qual produzem, mercado que desconhecem, ignorando as quantidades e as qualidades que demanda, este equilibrio se estabelece por meio de uma tempestade no mercado mundial — por meio de uma crise comercial” . Impedir que a concorréncia mostre aos diferentes pro- (22) Pelo menos, foi assim até recentemente. Desde que o monopélio inglés no mercado mundial se vé ameacado pela participagdo da Franca, da Alemanha ¢, especialmente, da América do Norte no comércio internacional, parece emergir uma nova forma de equilibrio. O periodo de prosperidade geral anterior a crise ainda no retornou. Se ele ndo ressurgir, a estagnagdo cronica, embora com ligeiras oscilagtes, deverd constituir 0 estado normal da industria moderna. 173 dutores, através da alta e da queda dos precos, 0 estado do mercado mundial, significa deixs-los completamente As cegas. Organizar a produc&o mercantil de modo que os produtores n&o consigam co- nhecer a situac&o do mercado para o qual operam é oferecer para a doenca das crises uma panactia que até 0 doutor Eisenbart invejaria a Rodbertus. Compreende-se, ent’o, por que Rodbertus determina o valor da mercadoria simplesmente pelo ‘‘trabalho”, admitindo, no m&- ximo, diferentes graus da sua intensidade. Se investigasse por meio de que e como o trabalho cria e, portanto, determina e mensura o valor, ele chegaria ao trabalho socialmente necess4rio: necess4rio tanto para cada produto em relagdo a outros da mesma classe como em relacaéo A demanda de toda a sociedade. Ele seria conduzido ao exame da adequacio da producdo dos diferentes produtores de mercadorias a toda a demanda social — e a sua utopia seria impos- sivel. Mas Rodbertus preferiu, realmente, ‘‘abstrair’’: ‘‘abstraiu’’, simplesmente, a esséncia mesma do problema. Enfim, vejamos o ponto em que Rodbertus nos oferece algo efetivamente novo, algo que o distingue de todos os seus correligio- nérios, defensores da organizac&io da economia mercantil com o auxilio dos vales de trabalho. Todos eles preconizam esta organi- zaco da troca com o objetivo de abolir a explorac&o do trabalho assalariado pelo capital. Cada produtor deve receber integralmente o valor do trabalho materializado em. seu produto, Quanto a isto, todos est4o de acordo, de Gray a Proudhon. Rodbertus contrapde — de forma alguma: o trabalho assalariado e a sua exploracgao devem subsistir. Em primeiro lugar, qualquer que seja a sociedade que imagi- narmos, 0 operario nao pode receber para o consumo o valor inte- gral do seu produto; o que € produzido dever4 cobrir sempre os gastos de diversas fungdes que, embora improdutivas no sentido econémico, s4o necess4rias, e, conseqientemente, cobrir os gastos de manutenc&o das pessoas encarregadas destas funcdes. Isto s6 é valido nas condigdes da atual divisto do trabalho. Numa sociedade em que 0 trabalho produtivo seja obrigatério para todos — e uma sociedade assim também é “‘imaginavel”’ —, esta validez é derrogada. E claro que um fundo social de reserva e um fundo de acumulac4o continuardo necess4rios e, pois, todos os trabalhadores (ou seja: todos os membros da sociedade) possuirao e desfrutarao, com cer- teza, todo o seu produto, mas, separadamente, ninguém desfrutar& o “produto integral do seu trabalho’. Alguns ut6picos dos vales de trabalho levaram em conta os gastos das funcdes economicamente improdutivas que devem ser extraidos do produto do trabalho; eles, porém, concedem aos proprios oper4rios 0 direito de determinar os 174 descontos necessfrios a estes gastos, segundo os procedimentos democraticos habituais. Rodbertus, que projetou a sua reforma em 1842, adequando-se estritamente ao Estado prussiano da Epoca, inova: atribui esta tarefa A burocracia que, soberanamente, deter- mina e, benevolente, entrega ao oper4rio a parte que lhe corres- ponde do seu pr6prio préduto. Em segundo lugar, devem permanecer intoc4veis a renda fun- diaria e 0 lucro. De fato, os latifundiarios e os capitalistas indus- triais também exercem fungdes socialmente Uteis ¢ até necessrias, embora improdutivas do ponto de vista econdmico, e, sob a forma da renda fundifria e do lucro, recebem uma espécie de remune- ragdo. Sabe-se que, nem mesmo em 1842, isto constituia uma novi- dade. Para dizer a verdade, os latifundi&rios ¢ os capitalistas indus- triais recebem, hoje, muito pelo pouco que fazem (e que fazem mal); Rodbertus, no entanto, tem necessidade, pelo menos para os pré- ximos 500 anos, de uma classe privilegiada; por isto, a atual taxa de mais-valia — para falar com exatidao — n&o deve aumentar, mas se conservar. Rodbertus fixa esta taxa moderna de mais-valia em 200%, isto é: por um trabalho difrio de 12 horas, o operdrio receber4 um vale de 4 horas e o valor produzido nas 8 restantes sera repartido entre o proprietério fundiario e o capitalista. Numa pala- yra: os vales de trabalho de Rodbertus n&o passam de uma mentira. E € preciso ser dono de uma propriedade agr4ria senhorial na Pomer4nia para acreditar que, trabalhando 12 horas, a classe ope- rfria aceite vales de 4 horas. Traduzido nesta linguagem ingénua, o truque da producao capitalista aparece como um roubo descarado e se torna invidvel. Cada vale entregue ao operdrio seria uma aberta convocagao a insurreic&o e cairia sob a alcada do artigo 110 do Cédigo Penal do Império germanico. E preciso nunca ter visto outro proletariado que os jornaleiros semi-servos das propriedades agr4- rias da Pomerania, onde reinam o chicote e 0 cacete ¢ onde todas as belas aldeas fazem parte do harém do senhor, para imaginar que se possam fazer estas cinicas propostas a classe operfria. Mas os nossos conservadores s&o, de fato, os nossos maiores revolucio- nfrios. Contudo, se os nossos operfrios forem déceis a ponto de se convencerem que, em 12 horas de labor brutal, sé trabalharam 4, terdo como recompensa a garantia, pelos séculos afora, de que a sua parte no seu préprio produto nunca ser& inferior a um tergo. Isto nao passa de misica do futuro, tocada com instrumentos de brin- quedo — e nao vale a pena perder tempo com isto. Toda a novidade que Rodbertus trouxe a utopia da troca mediante os vales de tra- balho € mera puerilidade ¢ a sua significag&o n&o alcanc¢a o plano atingido pelos seus numerosos antecessores € sucessores. Vs No momento em que foi publicado, o livro de Rodbertus, Zur Erkenntniss..., constituiu certamente um trabalho importante. O seu desenvolvimento da teoria ricardiana do valor — embora s6 fosse novidade para o préprio Rodbertus e para a Alemanha — tem o nivel das obras dos seus melhores predecessores e representava um comego cheio de promessas. Mas era apenas um comego, a partir do qual uma efetiva contribuic&o te6rica implicaria um trabalho ulte- rior, fundamental e critico. Esta evolucao foi interditada por Rod- bertus mesmo, quando se pés a desenvolver a teoria de Ricardo em outra direcdo, no sentido da utopia. Com isto, ele perdeu a primeira condic&o da critica — a auséncia de um critério preconcebido. Antes, Rodbertus trabalhou sem os antolhos postos por objetivos aprioris- ticos; depois, converteu-se num economista tendencioso. Prisioneiro da sua utopia, privou-se de qualquer possibilidade de um progresso cientifico. De 1842 4 sua morte, Rodbertus no fez mais que girar em torno do mesmo ponto, repetindo incessantemente idéias formu- ladas ou esbocadas na sua primeira obra; sentiu-se ignorado, ima- ginou-se plagiado onde nada havia para plagiar e, enfim, conscien- temente, recusou-se a compreender que descobrira o que, na reali- dade, j4 era conhecido ha muito. Em algumas passagens, a traducao alema deste livro de Marx se diferencia do original publicado em francés. Tais diferengas se devem as emendas aut6grafas de Marx, que também serdo introdu- zidas na nova edig4o francesa” . Nao € preciso advertir aos leitores que a terminologia empre- gada nesta obra nem sempre coincide com a d'O Capital. Por exemplo: aqui ainda se fala de trabalho (Arbeit) como mercadoria, de compra e venda de trabalho, ao invés de forga de trabalho (Arbeitskraft). Complementamos esta edi¢’o com dois outros materiais: 19) um fragmento da obra de Marx, Contribuigao para a Crftica da Economia Politica (Berlim, 1859), a prop6sito da primeira utopia da troca mediante vales de trabalho, idealizada por John Gray; 29) 0 discurso de Marx sobre o livre-cambio, pronunciado em Bruxelas (1848), que pertence ao mesmo periodo de desenvolvimento do autor que a Miséria da Filosofia. Friedrich Engels Londres, 23 de outubro de 1884 (23) [Engels se refere & segunda edicto francesa, de que entBo se ocupava Laura Lafargue, filha de Marx. Esta cdi¢to s6 foi publicada em Paris em 1896.] 176 PREFACIO A SEGUNDA EDICAO ALEMA Com relac4o a esta segunda edi¢ao, limito-me a dizer que o nome de Hopkins, que aparece no texto francés, foi substituido pelo de Hodgskin, que é 0 certo, e que se corrigiu a data da obra de William Tompson, de 1824'. Esperamos que, assim, a consciéncia bibliografica do Sr. Prof. Anton Menger fique tranqiila’. Friedrich Engels Londres, 29 de marco de 1892 (1) (Cfr., neste volume, a p. 71. E preciso dizer, todavia, que é ineghvel a exisincia de um certo Thomas Hopkins, que, em 1822. publicou, em Londres, um livro de economia que foi estudado por Marx ¢ comentado nas Teorias sobre a Mais-Valia,| (2) [As pequenas incorregdes contidas na edig&o francesa de 1847, ¢ repetidas na versdo alema de 1885, foram atilizadas pelo socidlogo ¢ jurista austriaco A Menger para, no seu livro Das Recht auf den vollen Arbeitserirag in Geschichtlicher Darstellung (O Direito ds Rendas Integrais Procedentes do Trabalho na Interpre- tagdo Histérica), Stuttgart, 1886, criticar Marx e Engels. | 177 JOHN GRAY E OS VALES DE TRABALHO" Foi John Gray’ quem, pela primeira vez, desenvolveu sistema- ticamente a teoria do tempo de trabalho enquanto unidade de medida imediata da moeda. Um banco central nacional, com o apoio das suas sucursais, certifica o tempo de trabalho investido na producao das diversas mercadorias. Em troca da mercadoria, 0 produtor recebe um certificado oficial do seu valor, ou seja: um recibo que atesta a quantidade de trabalho contida na sua merca- doria’, e estes bilhetes bancdrios de 1 semana, 1 dia, 1 hora de trabalho, etc., funcionam simultaneamente como vales para um equivalente em todas as outras mercadorias armazenadas nos depd- sitos do banco‘. Este € 0 principio fundamental, desenvolvido deta- (1) [Como Engels informa na edicio alema, este fragmento foi extraido de Mar, K.: Zur Kritik des politischen Oekonomie, Berlim, 1859, p. 61/64 (cfr. nota 12 do prefacio de Engels a primeira edic&o alema). ] (2) John Gray, The Social System. A Treatise on the Principle of Exchange |O Sistema Social. Tratado sobre o Principio da Troca}, Edinburg, 1831. Cfr. também, do mesmo autor, Lectures on the Nature and Use of Money | Ensaios sobre a Natureza ¢ a Utilizagdo do Dinheiro|, Edinburg, 1848. Ap6s a Revolug&o de Fevereiro, Gray enviou ao governo provisorio francés um relat6rio onde afirmava que a Franca oo carecia de uma “organizacao do trabalho" (“organization of labour'’), mas de uma “organizac&o de troca"’ (“organization of exchange"), cujo plano estava inteiramente elaborado no sistema monet&rio que concebera. O valente John ndo poderia imaginar que, dezesseis anos depois da publicacto do seu The Social System, 0 muito inventivo Proudhon patentearia a mesma descoberta. (3) Gray, loc. cit., p. 63: “O dinheiro deve ser, apenas, um recibo, 0 certi- ficado de que o seu detentor contribuiu, com um valor determinado, para a riqueza nacional existente, ou de que ele adquiriu o direito deste valor de outro que jé fizera a mesma contribuicao”. (4) Gray, loc. cit., p. 67/68: “Quando um determinado valor estiver materia- lizado no produto, este pode ser depositado no banco e retirado logo que houver necessidade, simplesmente estipulando, por uma convencio geral, que quem depo- 179 lhadamente e sempre sustentado nas instituicdes existentes na Ingla- terra. Com este sistema, segundo Gray, ‘‘seria sempre t&o facil vender por dinheiro quanto, hoje, € facil comprar com dinheiro. A producao seria a fonte uniforme e jamais exaurida da demanda’’’. Os metais preciosos perderiam o seu ‘“‘privilégio’’ sobre as outras mercadorias e ‘‘tomariam, no mercado, 0 lugar que Ihes cabe, ao lado da manteiga e dos ovos, dos lencéis e dos tecidos de algodao, e seu valor nos interessaria tanto quanto o dos diamantes"*. ‘‘Deve- mos conservar a nossa ficticia medida dos valores, 0 ouro, entra- vando assim as forcas produtivas do pais, ou devemos recorrer a medida natural dos valores, 0 trabalho, liberando as for¢as produ- tivas do pafs?”"”. Se o tempo de trabalho é a medida imanente dos valores, por que lhe aduzir uma outra medida exterior? Por que o valor de troca se converte em preco? Por que todas as mercadorias se avaliam por uma unica mercadoria, que assim se transforma em modo de exis- téncia adequado do valor de troca, em dinheiro? Este era o pro- blema que Gray tinha de resolver. Em vez de soluciona-lo, ele imaginou que as mercadorias poderiam se relacionar entre si, dire- tamente, como produtos do trabalho social. Elas, porém, s6 podem se relacionar entre si por aquilo que s4o. E sao, imediatamente, produtos de trabalhos privados, independentes e isolados que, atra- vés da sua alienacao no processo da troca privada, devem ser reco- nhecidos como trabalho social geral. Noutros termos: sobre a base da produgao mercantil, o trabalho so se torna trabalho social pela alienac4o universal dos trabalhos individuais. Mas, ao colocar 0 tempo de trabalho contido nas mercadorias como imediatamente social, Gray 0 coloca como tempo de trabalho coletivo ou como tempo de trabalho de individuos diretamente associados. Neste caso, realmente, uma mercadoria especifica, como 0 ouro e a prata, nao poderia apresentar-se face 4s outras como a encarnagao do trabalho geral; 0 valor de troca nao se converteria em prego; mas, também, o valor de uso nao se transformaria em valor de troca e 0 produto nao se transformaria em mercadoria, de forma que a pro- pria base da produc4o burguesa seria suprimida. Mas este nao é, em absoluto, o pensamento de Gray. Os produtos devem ser fabricados como mercadorias, mas nao devem ser trocados como tats. Gray confia a um banco nacional a execug4o deste piedoso desejo. De um sitou um bem qualquer no banco nacional projetado pode retirar um valor igual de qualquer produto, sem estar obrigado a retirar 0 mesmo objeto que depositou”. (8) Idem, p.16. (6) Gray, Lectures..., p. 182/183. (7) Idem, p. 169. 180 lado, a sociedade, sob a forma do banco, independentiza os indivi- duos das condicdes da troca privada; de outro, deixa-os continuar produzindo sobre a base da troca privada. Entretanto, a logica interna compele Gray a negar, umas apos as outras, as condigdes da producao burguesa, embora ele queira, apenas, ‘‘reformar’’ a moe- da oriunda da troca mercantil. Assim, transforma o capital em capi- tal nacional’, a propriedade fundidria em propriedade nacional’ e, se se examina com cuidado o seu banco, verifica-se que ele nao se li- mita a receber as mercadorias e a entregar certificados do trabalho investido, mas que regula a propria producdo. Em sua ultima obra, Lectures... on Money, onde Gray procura ansiosamente apresen- tar a sua moeda-trabalho como uma reforma puramente burguesa, ele se confunde em contradi¢des ainda mais gritantes. Toda mercadoria, imediatamente, é moeda. Esta era a teoria de Gray, deduzida da sua anAlise incompleta e, por isto mesmo, falsa, da mercadoria. A construgdo “‘organica” de uma “moeda- trabalho”, de um ‘‘banco nacional” e de ‘‘depdsitos de merca- dorias"’ 6 uma quimera, na qual um dogma equivocado se apresenta como lei universal. O dogma que considera a mercadoria imedia- tamente como moeda, ou que identifica imediatamente o trabalho individual privado nela contido com o trabalho social, ndo se tor- nara uma verdade porque um banco acredite nele e opere de acordo com ele. Neste caso, a faléncia assumir4 o papel da critica pratica. O que em Gray permanece oculto e é, para ele mesmo, um segredo, é justamente o fato de a moeda-trabalho ser uma expressdo econd- mica vazia, manifestag&o do piedoso desejo de abolir o dinheiro, com o dinheiro abolir 0 valor de troca, com o valor de troca abolir a mercadoria, com mercadoria abolir a forma burguesa da produg¢ao. E precisamente isto foi dito, sem dissimulagao, por alguns socia- listas ingleses, que escreveram antes e depois de Gray '°. Todavia, apenas ao Sr. Proudhon e a sua escola estava reservado o preconizar seriamente a degradacao do dinhetro e a sacralizagao da mercadoria como a esséncia do socialismo, reduzindo, assim, o socialismo a uma candida incompreensdo da necess4ria relagdo entre a merca- doria e o dinheiro". (8) “Os negécios de cada pafs devem ser conduzidos por um capital nacio- nal” (Gray, The Social System... p. 171). (9) “A terra deve ser transformada em propriedade nacional” (idem, p. 298). (10) Ctr. por exemplo, W. Thompson, An Inquiry into the Distribution of Wealth... \Investigacao dos Principios da Distribui¢do da Riqueza...}, Londres, 1824, e Bray, Labour's Wrongs and Labour's Remedy] Sofrimentos da Classe Ope- rériae sua Solucao|, Leeds, 1839. (11) A quintesséncia desta melodramética teoria da moeda € 0 livro de Alfred Darimon, De la Réforme des Banques |Sobre a Reforma Bancéria|, Paris, 1856. 181 DISCURSO SOBRE O PROBLEMA DO LIVRE-CAMBIO' Senhores: A abolic&o das leis sobre os cereais, na Inglaterra. constitui 0 maior triunfo do livre-cambismo no século XIX?. Em todos os paises onde os fabricantes reclamam 0 livre-cambio, eles pensam sobre- tudo no livre-cambio dos cereais e das matérias-prima: em geral. “Tributar com taxas protecionistas os cereais estrangeirus é uma infamia, é especular com a fome dos povos’’. P&o barato, saldrios altos — cheap food, high wages —: este foi o unico objetivo em funcao do qual os free-traders’ ingleses gastaram milhdes e j4 contagiaram com o seu entusiasmo os seus confrades continentais. Geralmente, quando se deseja o livre-cam- bio, é para melhorar a condicAo da classe trabalhadora. Mas — coisa espantosa! — 0 povo, ao qual se quer propiciar, a todo custo, pao barato, 0 povo é muito ingrato. O pao barato (1) [Pronunciado por Marx na segfo publica de 9 de janeiro de 1848 da Associagdo Democrética de Bruxelas, criada em setembro do ano anterior ¢ da qual Marx era o vice-presidente. O texto foi publicado em Bruxelas, em fevereiro de 1848, em francés, pela propria Associagdo; no mesmo ano, foi traduzido (por Weydemeyer) eeditado na Alemanha. Deve-se recordar que, no mesmo més de setembro, Marx participara, sem direito & palavra, de um congresso de economistas livre-cambistas, realizado também em Bruxelas, ¢ a que serefere neste discurso. | (2) { Introduzida em 1815, para proteger o mercado interno do trigo, esta legislagdo foi abolida em 1846, pelo gabinete de Robert Peel. ] (3) | Partidérios do livre-comércio ¢ da n&c-intervengao do Estado na vida econdmica do pais. Os free-traders concentravam-se em Manchester, onde se consti- tuiu a escola manchesteriana, cujas propostas refletiam os interesses da burguesia industrial. Dela faziam parte Cobden e Bright — proprietarios de industrias téxteis —. que fundaram a Liga contra as Leis sobre os Cereais (cfr. nota 6). Nos anos 40 € 50, 0s free-traders constituiram um grupo politico especial que. mais tarde. integrou- se no Partido Liberal. | 183 desfruta hoje na Inglaterra da mesma mA reputagAo que o governo barato na Franca. Em homens devotados como Bowring, Bright e consortes, 0 povo vé os seus maiores inimigos e os hip6critas mais descarados. Todo o mundo sabe que a luta entre os liberais e os demo- cratas, na Inglaterra, designa-se como a luta entre os free-traders e os cartistas‘. Vejamos agora como os free-traders ingleses provaram ao povo a bondade dos sentimentos que estimulavam a sua aco. Eis o que diziam aos operarios fabris: — O imposto sobre os cereais € um imposto sobre os saldrios. que vocés pagam aos latifun- didrios, esses aristocratas de Idade Média. Se a situac&o de vocés & miser4vel, a causa esta no alto prego dos viveres de primeira neces- sidade. Por seu turno, os operfrios perguntavam aos fabricantes: — Comoé que nos ultimos trinta anos, quando a nossa indus- tria se desenvolveu mais, 0 nosso saldrio foi reduzido numa propor- ao bem maior que o aumento do prego dos cereais? Oimposto que, segundo vocés afirmam, pegamos aos latifun- diarios, corresponde aproximadamente a 3 pence semanais por ope- rario, No entanto, o salario do teceldo manual foi reduzido, entre 1815 e 1843, de 28 para S sh semanais; e 0 salfrio do teceldo que trabalha em tear mecdnico foi reduzido, no mesmo periodo, de 20 para 8 sh semanais. Contudo, durante todo este tempo, o imposto que pagamos nunca passou de 3 pence. E, em 1834, quando o pao estava barato e ocomércio ia bem, o que vocés nos diziam? Se sdo infelizes, é porque tém muitos filhos, porque as suas familias crescem mais que 0 seu trabalho! Era isto o que nos diziam a época, quando vocés promulgavam novas leis contra os pobres e construiam as work-houses, essas Bastilhas dos proletérios°. A isto, os patroes replicavam: — Os senhores operdrios tém razdo; o salario nao é determi- nado apenas pelos precos dos cereais, mas também pela concor- réncia entre os bracos que se oferecem no mercado de trabalho. (4) [0 auge do movimento cartista, iniciado em 1838, foi a greve geral de agosto de 1842. A partir de entdo, os cartistas passaram a combater a Liga conira as Leis sobre os Cereais. | (5) [A instituig&o das casas de trabalho (work-houses) remonta ao século XVII (1601); 0 sistema aludido no texto foi introduzido em 1834, por influéncia das id¢ias de Bentham. A legislag&o contra os pobres, mesmo sofrendo grandes alteragdes ‘0 longo dos anos, s6 foi completamente ultrapassada em 1944. | 184 Mas, observem: a nossa terra se compde de pedras ¢ areia. Vocés pensam, por acaso, que se pode cultivar trigo em vasos de flor? Assim, se em vez de consagrar nosso capital e nosso trabalho a uma terra estéril, abandonassemos a agricultura para nos dedicar exclusivamente a industria, a Europa inteira fecharia as suas manu- faturas e a Inglaterra se transformaria numa sO grande cidade fabril, cuja provincia agricola seria o resto da Europa. Mas este discurso do fabricante aos seus operarios é interrom- pido pelo pequeno comerciante, que intervém: — Se abolimos as leis sobre os cereais, de fato arruinamos a agricultura, mas nao obrigamos os outros paises a comprar das nossas fabricas, fechando as suas. Qual seria o resultado? Eu perderia os clientes que hoje tenho no campo e 0 comércio interno perderia os seus mercados. O fabricante, virando as costas aos operarios, responde ao merceeiro: — Quanto a isto, déem-nos liberdade de ac4o. Abolido o imposto sobre os cerais, teremos trigo estrangeiro a preco baixo. Entio, reduziremos os salarios, que, a0 mesmo tempo, subirdo nos paises de que importamos os graos. Assim, além das vantagens que temos hoje, contaremos ainda com um salario menor e, com tudo isto, obrigaremos 0 continente a adquirir as nossas mercadorias. E eis que o arrendatario e o operario agricola entram na discussao, perguntando: — E nos, o que sera de nds? Iriamos decretar a sentencga de morte da agricultura da qual vivemos? Permitiremos que nos arran- quem a terra que pisamos? A resposta da Liga contra as Leis sobre os Cereais® é simples ela limitou-se a oferecer prémios aos trés melhores trabalhos que mostrassem a influéncia salutar da aboligao das leis sobre os cereais na agricultura inglesa. Estes prémios foram concedidos aos Srs. Hope, Morse e Greg. cujos livros foram distribuidos nas zonas rurais em milhares de exemplares ’. (6) [A Liga contra as Leis sobre os Cereais (Anti-Corn Law League) foi fundada em 1838 pelos industriais Cobden e Bright, de Manchester. Defendendo a plena liberdade de comércio, a Liga pugnava pela sbolicdo das leis sobre os cereais com 0 objetivo de reduzir os salérios dos operdrios fabris e enfraquecer as posicbes politicas € econdmicas da aristocracia agréria. A Liga utilizou a consigna do livre- cambio para implementar uma demagégica unidade de interesses entre os industriais € 05 operdrios fabris. Em 1846, abolida a legislagdo sobre os cereais. a Liga dis- solveu-se. | (7) [Um volume contendo os textos destes trés autores foi publicado em 1842. ] 185 Um dos laureados procura demonstrar que, com a livre impor- tacHo de cereais, nao serao prejudicados nem o arrendatfrio nem o oper&rio agricola — as perdas s6 afetarao ao proprietario fundiario, O arrendatario inglés, escreve ele, nao deve temer a abolicdo das leis sobre os cereais, porque nenhum pais poderia produzir um trigo tio bom e tao barato como a Inglaterra. Por isto, mesmo com o prego dos cereais em baixa, 0 arrenda- trio nada perdera: a baixa s6 influenciaria a renda, que seria reduzida, mas ndo incidiria nem sobre o lucro industrial nem sobre o salfrio, que continuariam os mesmos. J& o segundo premiado, o Sr. Morse, sustenta, ao contrario, que o preco do trigo se elevaria em seguida A abolic&o das leis sobre os cereais. Ele faz infinitos esforcos para demonstrar que a legis- lacAo protecionista jamais garantiu um preco remunerador ao trigo. Para apoiar a sua assertiva, ele refere 0 fato de que, todas as vezes em que se importou trigo, seu preco subiu consideravelmente na Inglaterra e que, quando se importou pouco, o prego caiu muito. O laureado se esquece que a importacdo nao causava o preco ele- vado — o prego elevado é que era a causa da importagao. Em oposic¢4o total ao seu confrade premiado, ele afirma que todo aumento no prego dos cereais resulta em proveito do arrenda- thrio e do operdrio, e nado em beneficio do proprietario. O terceiro laureado, o Sr. Greg, grande fabricante e cujo livro dirige-se aos grandes arrendataérios, nao poderia se contentar com semelhantes bagatelas. A sua linguagem é mais cientifica. Ele reconhece que as leis sobre os cereais s6 favorecem a elevac’o das rendas enquanto elevam o pre¢o do trigo, e que sé elevam o preco do trigo impondo ao capital a necessidade de investir-se em terras de qualidade inferior, 0 que é facilmente expli- cAvel. A medida em que a populacdo cresce, estando proibida a importagdo de cereais, é necessdrio explorar terras menos férteis, cujo cultivo é mais oneroso e cujo produto, conseqientemente, ¢ mais caro. Uma vez qua a venda est4 assegurada, os pregos, obrigatoria- mente, s&o regulados pelos precos dos produtos obtidos nos terrenos que exigem mais gastos. A diferenga que existe entre estes precos e os custos de producd4o nos melhores terrenos constitui a renda. Portanto, se, abolidas as leis sobre os cereais, cai o prego do trigo ¢, logo, a renda, € porque os terrenos piores deixam de ser cultivados. Assim, a redugao da renda provocar4, inevitavelmente, a ruina de uma parte dos arrendat4rios. Estas observacdes eram necessfrias para esclarecer a lingua- gem do Sr. Greg. 186 Os pequenos arrendatarios, escreve ele, que n&o puderem continuar ligados a agricultura, encontrarao meios de subsisténcia na industria. Quanto aos grandes arrendat&rios, sairao ganhando com isto: ou os proprietarios fundiarios serao forgados a hes vender suas terras a preco baixo ou os contratos de arrendamento serko feitos a longo prazo. Isto permitira aos arrendatérios investir gran- des capitais na agricultura e empregar maquinas em larga escala, economizando o trabalho manual que, por seu turno, sera bara- teado em funcao da baixa geral dos salarios, conseqiéncia imediata da aboligao das leis sobre os cereais. O doutor Bowning conferiu a todos estes argumentos uma consagracao religiosa, exclamando numa reuniao publica: “Jesus Cristo é 0 free-trade; 0 free-trade é Jesus Cristo!"’ E compreensivel que toda esta hipocrisia nao seja capaz de tornar o pao barato menos amargo para os operarios. Por outro lado, como os operdrios poderiam acreditar na Tepentina filantropia dos fabricantes, a mesma gente que combatia alei das dez horas — através da qual se pretendia reduzir de doze para dez horas a jornada de trabalho do operario fabril® ? Para que os senhores possam ter uma idéia da filantropia dos fabricantes, evocarei os regulamentos vigentes em todas as fabricas. Cada fabricante possui, para seu uso proprio, um verdadeiro c6digo, que prescreve multas para todas as faltas voluntdrias ou invo- luntarias. Por exemplo: o operario pagar4 tanto se tem a infeli- cidade de se sentar numa cadeira, se sussurta algo, se conversa, se fi, se se atrasa por alguns minutos, se uma peca da maquina quebra, se ndo produz os artigos conforme a qualidade estipulada, etc. As multas sio sempre superiores aos danos reais causados pelo ope- rario. E, para tornar as faltas mais acessiveis, 0 relOgio da fabrica é adiantado e o oper4rio deve entregar artigos de qualidade rece- bendo, para tanto, matérias-primas muito ruins. O contra-mestre que nado for suficientemente habil para multiplicar os casos passiveis de multa é logo substituido. Como os senhores podem ver, esta legislagdo doméstica é preparada para provocar faltas, faltas que proporcionam dinheiro através das multas. O fabricante, pois, emprega todos os meios para reduzir o salario nominal e para explorar até mesmo os acidentes que escapam ao controle do operfrio. E estes fabricantes sao exatamente os filantropos que qui- seram fazer crer aos operfrios que eram capazes de enormes des- pesas apenas para melhorar a sua sorte. (8) | Cfr. anota 73 da Miséria da Filosofia. | 187 Assim, de um lado, eles reduzem o salario do operario da maneira mais mesquinha, através dos regulamentos das fAbricas ¢, de outro, sacrificam-se grandemente para eleva-lo, através da Liga contra as Leis sobre os Cereais. Com enormes gastos, constr6em palacios nos quais a Liga estabelece, de certo modo, a sua sede oficial; enviam um exército de mission4rios a todos os pontos da Inglaterra, para que preguem a religido do livre-cambio; publicam e distribuem, gratuitamente, milhares de folhetos, para que os oper4rios conhecam seus préprios interesses; despendem grandes somas para atrair a imprensa para a sua causa; organizam um grande aparelho administrativo para diri- gir os movimentos livre-cambistas e esbanjam eloqiéncia nas reu- nides piblicas. Em um desses comicios, um operdrio exclamou: — Se os proprietérios fundiarios vendessem nossos ossos, vo- cés, os fabricantes, seriam os primeiros a compra-los, para lanc4-los num moinho a vapor e fazer farinha com eles! Os operarios ingleses compreenderam muito bem a signifi- cac&o da luta entre os proprietérios fundiarios e os capitalistas industriais. Sabem muito bem que se pretendia reduzir 0 prego do pao para diminuir os saldrios e que 0 lucro industrial aumentaria na mesma propor¢ao em que diminufsse a renda. Ricardo, 0 apéstolo dos free-traders ingleses, 0 economista mais famoso do nosso século, concorda plenamente com os ope- rarios nesta questao. Em sua célebre obra sobre economia politica, diz: “Se, em vez de cultivar trigo em nosso pais..., descobrissemos um novo mercado no qual pudéssemos obté-lo a preco mais baixo, entdo os salarios baixariam e os lucros cresceriam... A baixa dos precos dos produtos agricolas... reduz os saldrios nao s6 dos operérios ocupados no cultivo da terra, mas tam- bém de todos os que trabalham na industria ou estao empre- gados no comércio"’. E os senhores nao devem acreditar que ao oper4rio seja total- mente indiferente receber apenas quatro francos, estando o trigo mais barato, quando antes recebia cinco. O seu salario, por acaso, n&o caiu sempre mais em relag4o ao lucro? Nao é claro que a sua posic¢do social foi piorando em compa- (9) {Nesta passagem, Marx reaine duas citagdes de Ricardo, segundo a versio francesa: Des Principes de L'Economie Politique et de l'Imp6t, Paris, 1819, tradugao de F.-S, Constancio, anotada por J.-B. Say. As duas frases foram extraidas das paginas 201 ¢ 340.) 188 ragio com a do capitalista? Além disto, ele sofre de fato uma perda direta’?. Enquanto o preco do trigo era mais alto, sendo-o igualmente o sal4rio, bastava ao oper4rio uma pequena economia feita no con- sumo do pao para poder satisfazer outras necessidades. Mas quando o preco do pao caie, em conseqiiéncia, cai o salario, o operario nao pode economizar apenas no pio para comprar outros artigos. Os oper4rios ingleses deram a entender aos free-traders que nao estado dispostos a ser vitimas de suas ilusdes € mentiras ¢ se, apesar disto, uniram-se a eles contra os proprietdrios fundiarios, foi para destruir os Ultimos restos de feudalismo e para enfrentar um s6 inimigo. Os operarios nao se enganaram nos seus cAlculos, porque os proprietirios fundi4rios, vingando-se dos fabricantes, aliaram-se aos operérios a fim de conseguir a aprovacao da lei das dez horas, que estes vinham reclamando hd trinta anos e que foi aprovada imediatamente apés a aboligao das leis sobre os cereais. No congresso dos economistas, o Sr. Bowring tirou do bolso uma longa lista para mostrar a quantidade de carne bovina, pre- sunto, toucinho, frangos, etc. etc., importada pela Inglaterra para satisfazer, segundo ele, as necessidades dos oper4rios; mas, lamen- tavelmente, esqueceu-se de acrescentar que, ao mesmo tempo, os operfrios de Manchester e de outras cidades fabris tinham sido postos na rua pela crise que comegava. Em principio, em economia politica, nunca se deve deduzir leis gerais 4 base de cifras referentes a um sé ano. Deve-se sempre tomar a média de seis a sete anos — lapso de tempo durante o qual a industria moderna passa pelas diferentes fases de prosperidade, de superproducdo, de estagnagao e de crise, no percurso do seu ciclo fatal. Sem divida, se o prego de todas as mercadorias se reduz — e esta baixa € a conseqiiéncia necessaria do livre-cimbio —, eu posso comprar por um franco muito mais coisas que antes. E 0 franco do oper4rio vale tanto como qualquer outro. Portanto, o livre-cambio sera muito vantajoso para o oper4rio. Aqui, ha somente um pequeno inconveniente: é que o operdrio, antes de trocar o seu franco por outras mercadorias, tem, primeiro, que trocar o seu trabalho contra 0 capital. Se, nesta troca, continuasse recebendo pelo mesmo trabalho o franco em questdo e os precos de todas as demais mercadorias (10) [Numa carta a Lassalle, de 23 de janciro de 1855, tratando da crise agricola inglesa, Marx faz referéncias a este discurso. Comentando a situago econd- mica entre 1849 ¢ 1852, escreve: “O queaumentou relativamente foi o lucto; 0 saldrio relativo, o sslario comparado go lucro, foi reduzido — fendmeno que eu caracterizei comonecessario desde 1847, numa publicagAo em francés”. | 189 caissem, sairia sempre ganhando numa transac&o como esta. A dificuldade n&o consiste em demonstrar que, caindo o prego de todas as mercadorias, pelo mesmo dinheiro eu poderia comprar mais. Os economistas examinam sempre o preco do trabalho no momento em que ele se troca por outras mercadorias. Mas deixam, sempre, completamente de lado 0 momento em que o trabalho efetua a sua troca contra o capital. Quando sao necess4rios menos gastos para movimentar a mAquina que produz as mercadorias, as coisas necessfrias para manter esta maquina chamada operdrio sio também mais baratas. Quando todas as mercadorias se tornam baratas, o trabalho, que também é mercadoria, cai igualmente de preco e, como veremos mais adiante, este trabalho-mercadoria, proporcionalmente, cus- tarf muito menos que as outras mercadorias. O trabalhador, sem- pre de acordo com a argumentag&o dos economistas, descobriré que o franco derreteu-se na sua algibeira e que dele restam apenas cinco céntimos. Os economistas replicario: — Bem, suponhamos que a con- corréncia entre os operérios, que, certamente, nao diminuir& sob o regime de livre-cambio, logo colocaré os salfrios em acordo com o baixo preco das mercadorias. Mas. por outra parte, a reduc&o do prego das mercadorias aumentaré o consumo; o maior consumo exigiré uma maior producao, que demandar& uma maior procura de bracos e a esta seguir-se-4 uma elevacdo dos salfrios. Toda esta argumentagao resume-se no seguinte: o livre-cim- bio aumenta as forcas produtivas. Se a industria cresce, se a ri- queza, se a capacidade produtiva, se, numa palavra, o capital produtivo aumenta a procura de trabalho, o preco do trabalho aumenta e, por conseguinte, o saldrio sobe. A melhor condic&io para 0 operario é 0 crescimento do capital — temos de reconhecé-lo. Se 0 capital permanece estacion4rio, a industria nfo apenas estacionar& mas entrar em declinio, e o operdrio serf, neste caso, a primeira vitima. E no caso em que o capital cresce, neste estado de coisas que consideramos o melhor para o operério, qual seré a sua sorte? Sucumbiré igualmente. O crescimento do capital produtivo implica a acumulacao e a concentracio de capitais. A concentrac&o de capitais conduz a uma maior divisio do trabalho e a um maior emprego de mAquinas. Uma maior diviséo do trabalho liquida a especialidade do trabalho e destr6i a especialidade do trabalhador, e, substituindo-a por um trabalho que todo mundo pode fazer, aumenta a concorréncia entre os oper&rios. Esta concorréncia € tanto mais forte quanto a divisio do trabalho permite ao operdrio realizar sozinho o trabalho de trés. As 190 mAquinas produzem o mesmo resultado em uma escala muito maior. O crescimento do capital produtivo, forcando os capitalistas indus- triais a desenvolver suas empresas com meios cada vez maiores, arruina os pequenos industriais ¢ os langa nas fileiras do proleta- fiado, Ademais, como a taxa de juros diminui a medida que se acumulam os capitais, os pequenos rentistas, que j4 nao conseguem viver das suas rendas, s&o obrigados a se lancar na inddstria, para em breve aumentar o numero de proletarios. Enfim, quanto mais aumenta o capital produtivo, tanto mais ele € obrigado a produzir para um mercado cujas necessidades desconhece. tanto mais a producdo precede 0 consumo, tanto mais a oferta tende a forgar a procura e, por conseqiléncia, as crises sdo cada vez mais intensas e freqientes. Mas toda crise, por sua vez, acelera a concentracao de capitais e engrossa as fileiras do prole- tariado. Assim, 4 medida que o capital produtivo cresce, a concor- réncia entre os oper4rios aumenta em propor¢ao muito maior. A remuneracio do trabalho diminui para todos e o seu peso aumenta para alguns. Em 1829, em Manchester, havia 1088 teceldes ocupados em 36 fabricas. Em 1841, restavam apenas 448 e estes oper4rios faziam funcionar 53 353 fusos a mais que os 1 088 trabalhadores de 1829. Se o trabalho manual empregado tivesse aumentado proporcional- mente ao desenvolvimento das forgas produtivas, o nimero de ope- rfrios deveria alcancar a cifra de 1848; por conseguinte, os aperfei- coamentos introduzidos na mec4nica deixaram 1400 operdrios sem trabalho. Conhecemos de antem4o a resposta dos economistas. Estes desempregados, dizem eles, encontrar&o outras ocupacgdes. O Sr. Bowring nao deixou de repetir este argumento no congresso dos economistas, assim como nao deixou de refutar-se a si mesmo. Em 1835, ele pronunciou um discurso na Camara dos Co- muns, a propésito dos 50000 teceldes de Londres que, h4 muito, morriam de fome sem encontrar essa nova ocupagdo que os free- traders lhes faziam entrever a distancia. Citemos as passagens mais marcantes deste discurso do Dr. Bowring: “A miséria dos teceldes manuais é 0 destino inevitavel de todo trabalho que se aprende facilmente e que pode ser substituido a cada instante por meios menos dispendiosos. Como, neste caso, a concorréncia entre os trabalhadores 6 extremamente grande, a mais infima redugdo da procura origina uma crise. 191 192 Os teceldes manuais se encontram, de qualquer moclo, situa- dos nos limites da existéncia humana. Um passo a mais e sua sobrevivéncia seré impossivel. O menor golpe basta para con- dena-los A morte. O progresso da mecfnica, ao suprimir cada vez mais o trabalho manual, acarreta, inevitavelmente, du- rante as épocas de transic¢4o, numerosos sofrimentos tempo- rérios. O bem-estar nacional sé pode ser alcangado A custa de determinado numero de calamidades individuais. Na indis- tria, s6 se progride as expensas dos fracassados; de todos os inventos, o tear a vapor € 0 que mais pesa sobre os teceldes manuais. Na producdo de muitos artigos, que outrora eram feitos A m4o, 0 teceldo j4 foi totalmente substituido, e pade- cera a mesma sorte na produgao de muitos outros que ainda se fabricam a base do trabalho manual.” Mais adiante, diz: “Tenho aqui uma correspondéncia do governador geral com a Companhia das Indias Orientais. Esta correspondéncia refere- se aos teceldes do distrito de Daca. Escreve 0 governador nas suas cartas: hé muitos anos, a Companhia das Indias Orien- tais comprava de seis a oito milhdes de pecas de algodao, fabricadas nos teares manuais do pais. A procura desceu de modo gradual, até ficar reduzida aproximadamente a um milhao de pecas. Na atualidade, a procura cessou quase por completo. Além disso, em 1800, a América do Norte obteve na India cerca de 800000 pecas de algodao. Em 1830, nao recebeu nem 4000. Finalmente, em 1800 foram embarcadas, para Portugal, 1000000 de pegas. Em 1830, Portugal nao recebeu mais que 20000. Os informes sobre as calamidades dos teceldes hindus sio terriveis. E qual é a origem dessas calamidades? A presenga de produtos ingleses no mercado, a produgdo do artigo por meio dos teares a vapor. Um grande numero de teceldes morreu de fome; 0 resto passou a outras ocupacdes e, sobretudo, aos trabalhos agricolas. Nao saber mudar de pro- fissAo equivale a condenar-se 4 morte. E, neste momento, 0 distrito de Daca vé-se invadido por tecidos e fios ingleses. A musselina de Daca, famosa em todo mundo por sua beleza e firme tessitura, foi também eclipsada pela concorréncia das mAquinas inglesas. Em toda a hist6ria do comércio seria difi- cil, talvez, encontrar sofrimentos semelhantes aos que tiveram de suportar, assim, classes inteiras, nas Indias Orientais’" . O discurso do Dr. Bowring é tanto mais significativo quanto os fatos nele citados s4o exatos, e quanto as frases com que trata de dissimul4-los levam impresso o selo da hipocrisia comum a todos os sermoes livre-cambistas. Ele apresenta os trabalhadores como meios de producdo que é preciso substituir por outros mais baratos. Finge ver no tipo de trabalho de que trata um tipo completamente excep- cional, e, na m&quina que massacrou os teceldes, uma maquina igualmente excepcional. Esquece que nao existe nem um s6 tipo de trabalho manual que ndo possa, de um dia para 0 outro, experi- mentar idéntica sorte a da tecelagem. “O fim constante ¢ a tendéncia de todo aperfeigoamento em mec4nica 6, com efeito, a substituic4o total do trabalho do homem ou a redugao do seu preco, substituindo o trabalho do operario adulto pelo das mulheres e criangas, ou o do habil artifice pelo do operario n4o qualificado. Na maior parte das fiagdes mecAnicas[em inglés: throstle-mills], 0 trabalho é exe- cutado por mocinhas de dezesseis anos e até mais jovens. Como resultado da substituigdo da mAquina ordindria de fiar pela mAquina automatica, a maior parte dos teceldes adultos foram despedidos, s6 restando meninos e adolescentes.”’ Estas palavras do Dr. Ure”, o livre-cambista mais apaixo- nado, servem de complemento as confissdes do Sr. Bowring. Este fala de algumas calamidades individuais e diz, ao mesmo tempo, que elas fazem sucumbir classes inteiras; fala de sofrimentos passa- geiros em €pocas de transigao e, ao mesmo tempo, nao oculta que tais sofrimentos passageiros significaram para a maioria a passagem da vida a morte e, para os restantes, da situac4o anterior para uma pior. Ao afirmar, mais adiante, que as desgracas dos oper4rios s4o inseparaveis do progresso da industria e necessfrias ao bem-estar nacional, reconhece simplesmente que a infelicidade da classe tra- balhadora é condicao necessaria ao bem-estar da classe burguesa. (11) [Esta passagem do discurso de Bowring, pronunciado em 28 de julho de 1835, foi extraida por Marx do livro de W. Atkinson, Principles of Political Economy (Princtpios de Economia Polftica), Londres, 1840. | (12) | Passagem extrafda de A. Ure. Philosophie des Manufactures ou Eco- nomie Industrielle (Filosofia das Manufaturas ou Economia Industrial), Bruxelas, 1836, I, p. 34. 193 Todo o consolo que o Sr. Bowring prodigaliza aos operfrios que sucumbem e, em geral, toda a doutrina de compensa¢io que os Sree-traders {ormulam reduzem-se ao seguinte: — Vocés, milhares de trabalhadores que sucumbem, nio devem desesperar. Podem morrer trangiilamente. A sua classe nao desaparecera. Seré sempre suficientemente numerosa para que o capital possa dizim4-la, sem temor de liquid4-la totalmente. Ade- mais, como podem acreditar que o capital encontre emprego Util, se nao se preocupar em garantir a matéria explor4vel, os oper4rios, para explor4-los de novo? Mas, ent&o, por que continuar falando, como de um pro- blema, da influéncia que a realizado do livre-cambio exercera sobre a situacdo da classe trabalhadora? Todas as leis expostas pelos economistas, de Quesnay a Ricardo, baseiam-se na suposi¢4o de que os entraves que ainda cerceiam o livre-cimbio deixaram de existir. Essas leis se confirmam a4 medida em que o livre-cambio se realiza. A primeira delas consiste em que a concorréncia reduz 0 prego de toda mercadoria até o minimo do seu custo de produgio. Portanto, o minimo do sal&rio € o prego natural do trabalho. E o que é o minimo do salario? E justamente aquilo de que se precisa para produzir os artigos indispensaveis ao sustento do operdrio, para que ele tenha condigdes de se alimentar bem ou mal e propagar, por pouco que Seja, a sua espécie, Nao tiremos dai a conclusdo de que o operario nao poderé receber mais que este minimo de sal4rio; nao vamos crer, tampouco, que sempre receberf apenas este minimo. Nao. Segundo esta lei, a classe trabalhadora conheceré, As vezes, momentos mais felizes. Havera ocasides em que receber4 mais do que o minimo; mas este excedente nao serA mais que o suple- mento do que tiver recebido — menos do que o minimo — durante os tempos de estagnacdo industrial. Isto quer dizer que, num deter- minado lapso de tempo, que ¢ sempre periédico, no ciclo que a inddstria percorre, passando pelas fases de prosperidade, de super- producio, de estagnacdo e de crise, a classe trabalhadora — se contarmos tudo o que recebe acima do necess4rio e tudo o que recebe de menos — n4o ter4, em suma, nem mais nem menos do que o minimo. Ou seja: a classe trabalhadora conservar-se-4 como classe, apesar de todas as calamidades e misérias, apesar de todos os caddveres deixados nos campos de batalha industrial. Mas, © que importa? A classe subsiste e, melhor ainda, cresceré em ndmero. Mas nao é tudo. O progresso da indistria produz meios de existéncia menos caros. Assim, a aguardente substituiu a cerveja, 0 algodao a 14 eo linhoe a batata o pao. 194 a Portanto, como se descobrem constantemente novos meios Para alimentar o trabalho com artigos mais baratos e piores, 0 minimo do salario diminui continuamente. Este salario, que a principio obrigava o homem a trabalhar para viver, terminou por fazer o homem viver uma vida de maquina. Sua existéncia nado tem mais valor que o de uma simples forca produtiva e o capitalista o trata como tal. Esta lei do trabalho-mercadoria, lei do minimo de salario, verificar-se-4 4 medida que a suposigao dos economistas, o livre- cambio, tornar-se um fato real e verdadeiro. Assim, pois, de duas, uma: ou devemos negar toda a economia politica, baseada no postu- lado do livre-cAmbio, ou teremos que convir que, sob este livre- cambio, os operarios experimentar4o todo o rigor das leis econd- micas. Resumindo: no estado atual da sociedade, 0 que é 0 livre- cambio? E a liberdade do capital. Quando vocés fizerem desaparecer os poucos entraves nacionais que ainda obstaculizam a marcha do capital, apenas lhe terao concedido plena liberdade de agao. Por favordveis que sejam as condicdes em que se faca a troca de uma mercadoria por outra, enquanto vocés deixarem subsistir as relagdes entre o trabalho assalariado e o capital, havera sempre uma classe que explora e uma classe que é explorada. Em verdade, € dificil compreender a pretensio dos livre-cambistas, que imaginam que um emprego mais vantajoso do capital fara desaparecer 0 antago- nismo entre os capitalistas industriais e os trabalhadores assala- riados. Pelo contr4rio, isto s6 pode provocar a expressdo, ainda mais clara, da oposigdo entre estas duas classes. Admitam, por um instante, que j4 nao existam nem leis sobre os cereais, nem alfandegas, nem barreiras municipais; numa pala- vra: que desaparecam por completo todas as circunstancias aciden- tais que 0 operrio possa tomar, ainda, como causas de sua situago miserdvel. Vocés terao rasgado todos os véus que nao lhes permitiam ver o seu verdadeiro inimigo. O operdrio comprovara, entdo, que o capital, livre de todos os entraves, ndo 0 torna menos escravo que o capital coagido pelos direitos alfandegérios. Senhores: nao se deixem enganar pela abstrata palavra liber- dade. Liberdade de quem? Nao é a liberdade de cada individuo em relagdo a outro individuo. E a liberdade do capital para massacrar 0 trabalhador. Como vocés podem sancionar a livre concorréncia pela idéia de liberdade, quando esta liberdade nao é mais que o produto de um estado de coisas baseado na livre concorréncia? Mostramos 0 género de fraternidade que o livre-cdmbio en- gendra entre as diferentes classes de uma s6 e mesma nagdo. A 195 fraternidade que o livre-cimbio estabeleceria entre as diferentes nagdes da terra ndo seria mais fraternal. Designar pelo nome de fraternidade universal a exploracAo em seu estagio cosmopolita é uma idéia que sé pode nascer no seio da burguesia. Todos os fenémenos destruidores suscitados pela livre concorréncia no inte- rior de um pafs reproduzem-se, em proporcdes mais gigantescas, no mercado mundial. Nao precisamos nos deter por mais tempo nos sofismas que, a este respeito, os livre-cambistas divulgam e que tém tanto valor quanto os argumentos dos nossos ilustres laureados, os Srs. Hope, Morse e Greg. Dizem-nos, por exemplo, que o livre-cambio engendraré uma divisdo internacional do trabalho determinando para cada pais o género de producao que corresponda as suas vantagens naturais. Talvez os senhores pensem que a producdo de café e de acticar € 0 destino natural das Indias Ocidentais. Ha dois séculos, a natu- reza, que tem muito poucoa ver com o comércio, nao plantara ali nem o arbusto do café nem a cana-de-aciicar. E nao passaré talvez meio século e j4 ndo encontrarao ali nem café nem acucar, posto que as Indias Orientais, gragas sua produg2o menos onerosa, j4 disputam com vantagem, as Indias Ocidentais, o seu pretenso destino natural. Estas Indias Ocidentais, com os seus dotes naturais, j& s4o para os ingleses uma carga téo pesada quanto os teceldes de Daca, que também estavam, desde tempos imemoriais, destinados a tecer a mio. H& outra circunstancia que nao deve ser perdida de vista: como tudo passou a ser monop6lio, existem atualmente alguns ramos industriais que dominam todos os demais e asseguram aos Povos que os controlam as rédeas do mercado mundial. Assim, por exemplo, no comércio internacional, o algodao tem mais valor co- mercial que todas as matérias-primas juntas, empregadas na confec- ¢4o de roupas. Com efeito, causa riso ver como os livre-cambistas escolhem alguns tipos especiais de produg&o em cada ramo indus- trial para colocd-los em relagao aos produtos de uso comum, que se fabricam a precos mais baratos nos pa{ses onde a indistria alcancou maior desenvolvimento. Na&o podemos nos espantar se os livre-cambistas s&o incapazes de compreender como um pais pode enriquecer a custa de outro, pois estes mesmos senhores tampouco querem compreender como, no interior de um pais, uma classe pode se enriquecer as expensas de outra. Nao acreditem, senhores, que, ao criticar a liberdade comer- cial, tenhamos 0 propésito de defender o sistema protecionista. E possivel ser inimigo do regime constitucional sem ser parti- d4rio do velho regime. 196 Ademais, o sistema protecionista ndo € mais que um meio de estabelecer em um pais a grande industria, ou seja: de fazé-lo depender do mercado mundial. Mas, desde 0 momento em que se depende do mercado mundial, j4 se depende, mais ou menos. do livre-cambio. Também o sistema protecionista contribui para desen- volver a livre concorréncia no interior do pais. Por isto, vemos que, nos paises em que a burguesia comega a se fazer valer como classe, na Alemanha, por exemplo, ela realiza grandes esforgos para obter tarifas protetoras. Para ela, estas tarifas sAo armas contra 0 feuda- lismo e contra o poder absoluto, s4o, para ela, um meio de concen- trar suas forcas ¢ de realizar o livee-cambio no interior do proprio pafs. Mas, em geral, o sistema protecionista é, em nossos dias, conservador, enquanto que o sistema de livre-cmbio é destruidor. Dissolve as velhas nacionalidades ¢ leva ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Numa palavra, o sistema da liberdade do comércio acelera a revoluco social. E s6 neste sentido revolucion4rio, eu voto, senhores, a favor do livre-cambio". (13) [Para © congresso dos economistas livre-cambistas, Marx preparou um discurso que nao proferiu (cfr. nota 1). Deste texto, Engels fez um resumo, publicado no jornal inglés The Northern Star (Estrela do Norte), em 9/X/1847. A ttulo de comparag&o com o final do pronunciamento feito na Associagéo Democrética de Bruxelas, tanscrevemos 4s iiltimas palayras do discurso que aio foi lido no citado congresso (segundo a versao de Engels): “Assim, € preciso escother: ou os senhores Tecusam, em bloco, a economia politica, tal como ela existe hoje, ou os senhores concordam que, sob o regime do livre comeércio, as leis da economia politica se realizam com toda a sua severidade sobre as classes trabalhadoras. Isto significa que somos contrrios ao livre-cambio? Em absoluto. Somos favoraveis ao livre-cambio porque ele permite a todas as leis econdmicas, com as suas mais profuidas contra- digdes, exercerem a sua agdo numa escala maior, sobre um territério cada vez mais vasto — sobre toda a terra; ele permite que todas aquelas contradigies, reunidas num so © mesmo conjunto, engendrem, num grande confronto, a luta de que resultaré a emancipagio do proletariado”.| 197 CARTA DE MARX A PROUDHON Bruxelas, 5 de maio de 1846 Meu caro Proudhon: Varias vezes, desde que deixei Paris, pretendi escrever-lhe; circunstancias alheias 4 minha vontade impediram-me de fazé-lo até hoje. Pego-lhe que acredite que um excesso de trabalho, os incé- modos de uma mudanga de domicilio, etc., sAo os unicos motivos do meu siléncio. E, agora, entremos in media res’. Juntamente com dois ami- gos, Frédéric Engels e Philippe Gigot (ambos em Bruxelas), organi- zei, com os comunistas e socialistas alemaes, uma correspondéncia regular que deveré ocupar-se da discuss4o de questdes cientificas, da vigilancia que se pode exercer sobre os escritos populares e da propaganda socialista que se pode fazer, na Alemanha, por este meio*. O objetivo principal da nossa correspondéncia sera, todavia, colocar os socialistas alemaes em contato com os socialistas ingleses e franceses, manter os estrangeiros ao corrente dos movimentos socialistas que se desenvolverao na Alemanha e informar aos ale- mies, no seu pais, os progressos do socialismo na Franga e oa Inglaterra. Desta forma, as diferencas de opinido poderao aparecer (1) [A wadugao desta carta, originalmente escrita em francés, foi realizada sobre o texto publicado em Marx, K./Engels, F.: Correspondance, éd. Progrés, Moscou, 1976, p. 18/19.} (2) Literalmente: no meio da coisa. | (3) [ Trata-se do Comité de Correspondéncia Comunista. criado, nos infcies de 1846, em Bruxelas, por Marx e Engels. O projeto supunha a criac&o de organismos similares em outros palses, de forma a unir os esforgos dos representantes do movimento revolucionirio. | 199 a luz do dia e se chegar& a uma troca de idéias e a uma critica imparcial. Seré um progresso do movimento social na sua expresso literfria, com o fim de ultrapassar os limites da nacionalidade. E, no momento da aco, certamente todos terao um grande interesse em conhecer a situaco, tanto no exterior quanto em seu proprio pais. Além dos comunistas na Alemanha, a nossa correspondéncia compreenderfé também os socialistas alemaes em Paris e Londres. Nossas relagdes com a Inglaterra jf est&o estabelecidas‘; quanto a Franga, todos acreditamos que nAo poderemos encontrar um corres- pondente melhor que vocé — vocé sabe que os ingleses e os alemaes © apreciaram, até hoje, melhor que os seus préprios compatriotas. Como vocé vé, pois, trata-se de criar uma correspondéncia regular, garantindo-Ihe as condicdes para acompanhar o movimento social nos diferentes paises, com um interesse rico e variado que jamais seria alcancado com o trabalho de uma s6 pessoa. Se vocé concordar com a nossa proposta, o pre¢o do porte das cartas, tanto enviadas como recebidas, seré pago aqui, jA que as coletas feitas na Alemanha cobrirAo os gastos da correspondéncia. O endereco para o qual vocé escrever4 ser o de Philippe Gigot (8, rua Bodenbroek, Bruxelas). Ele assinara, também, as cartas enviadas daqui. Nao preciso acrescentar que toda esta correspondéncia exige, da sua parte, o segredo mais absoluto; na Alemanha, nossos amigos devem agit com a maior discrigao, para evitar comprometimentos. Responda-nos bem depressa e creia na amizade muito sincera do seu devotado Charles Marx (4) {Em Londres, j& se constituira um comit@ de correspondéncia, agluti- nando dirigentes da esquerda cartista e membros da emigrac&o politica alema, com Schapper & frente. | 200 CARTA DE PROUDHON A MARX' Lyon, 17 de maio de 1846 Meu caro Senhor Marx: Aceito de boa vontade tornar-me um dos destinatérios da sua correspondéncia, cujo objetivo e organizac4o parecem-me dever ser muito titeis. No entanto, nao lhe prometo escrever: minhas ocupa- ges de toda natureza, mais uma lentiddo natural, ndo me permitem esses esforcos epistolares. Tomarei também a liberdade de formular algumas reservas que me foram sugeridas por varias passagens da sua carta. Em primeiro lugar, embora minhas idéias acerca de organi- zacgAo estejam constituidas, ao menos no que toca aos principios, creio que € meu dever, ¢ dever de todo socialista, conservar ainda por algum tempo a forma antiga ou dubitativa; numa palavra, faco profissAo publica de um anti-dogmatismo econémico quase abso- luto. Se o senhor quiser, investiguemos juntos as leis da sociedade, © modo como elas se realizam, o progresso segundo o qual chegamos a descobri-las. Mas, por Deus!, depois de demolir todos os dogma- tismos a priori, nado sonhemos, de nossa parte, com a doutrinacao do povo. Nao caiamos na contradicfo do seu compatriota Martin Lu- tero que, depois de liquidar a teologia catélica, pds-se logo, com grandes reforgos de excomunhdes ¢ andtemas, a fundar uma teo- logia protestante. H4 trés séculos, a Alemanha s6 se ocupa em (1) [A tradugo desta curtu de Proudhon se fez sobre o original publicado por D. Riacanov, na sua “introduyav hist6rica’" a0 Manifesto Comunista; « fonte (que foi gentilmente indi 0 tradutor pelo Professor Octhvio lanni) é Mara, K./Engels, F.; Manifeste du Parti Communiste, A. Costes éd., Paris, 1953, p. 31/33. destruir o estuque de Lutero; nao esbocemos para 0 género humano mais um sacrificio por novos rebocos. Aplaudo, de todo coragao, a sua idéia de confrontar todas as opinides; estabelegamos uma polé- mica boa e leal; oferegamos ao mundo o exemplo de uma tolerancia sfbia e previdente; mas, pelo fato de estarmos a frente do movi- mento, nao nos tornemos chefes de uma nova intolerAncia, n4o nos coloquemos como apéstolos de uma nova religido, ainda que da légica, da razao. Acolhamos, estimulemos todos os protestos, desen- coragemos todas as exclusdes, todos os misticismos. Nao conside- Temos, jamais, uma questao como esgotada. E, quando tivermos usado até o nosso ultimo argumento, se for preciso, recomecemos, com eloqiéncia e ironia. Com estas condigdes, entrarei com prazer Na sua associagao; sem elas, nao! Tenho, também, de fazer algumas observacdes sobre esta frase da sua carta — “no momento da agdo". Talvez o senhor ainda conserve a opinido de que nenhuma reforma é hoje possivel sem um golpe de mao, sem o que outrora se chamava uma revolugao e que 6 apenas uma agitagado, Esta opiniao, que compreendo, que escuso, que discutirei com prazer porque compartilhei dela por longo tem- po, confesso-lhe que meus ultimos estudos revisaram-na comple- tamente. Creio que nao precisamos disto para triunfar e que, por conseqiéncia, nao devemos colocar a ac4o revoluciondria como meio de reforma social, porque este pretenso meio seria, muito simplesmente, um apelo a forga, ao arbitrio — logo, uma contra- dig&o. Coloco-me assim o problema: reintroduzir na sociedade, por uma combinagéo econdmica, as riquezas que dela foram extratdas por uma outra combina¢ao econémica. Noutros termos: na eco- nomia politica, voltar a teoria da Propriedade contra a Proprie- dade, de modo a engendrar o que os senhores, socialistas alemaes, chamam comunidade e que, por agora, limitar-me-ei a denominar liberdade, igualdade. Ora, creio conhecer 0 meio para, a curto prazo, resolver este problema: prefiro, pois, queimar a Propriedade em fogo lento, ao invés de lhe dar uma nova forca, fazendo com os propriet4rios uma $40 Bartolomeu?. Minha préxima obra’, neste momento a meio de impressio, dir-lhe-4 melhor tudo isto. Eis, meu caro filésofo, onde me encontro por agora; posso enganar-me e, se isto ocorrer, espero receber a férula da sua critica, a que me submeto de boa vontade, reservando-me a resposta. (2) (Refer€ncia a noite de Sd0 Bartolomeu (23/24 de agosto de 1572), data de grandes massacres na guerra religiosa francesa (catélicos X calvinistas). | (3) | Proudhon se refere a Filosofia da Miséria.| 2 De passagem, devo dizer-Ihe que as mesmas disposigdes me parecem ser as da classe operaria na Franga. Nossos proletarios tém to grande sede de ciéncia que seria mal recebido aquele que sé lhes tivesse a oferecer sangue como bebida. Logo, no meu entender, seria ma politica nossa falar como exterminadores; os meios do rigor virao em breve: para isto, 0 povo nao necessita de nenhuma exortaco...*. (4) [A continuacdo da carta de Proudhon, que deixamos de reprodusir aqui, no se refere mais A missiva de Marx, mas A resposte que dé ao bilhete enviado por Engels ¢ Gigot, no qual estes faziam acusactes a Karl Gran, emigrado alemlo que estava em Paris, contatando com Proudhon. | 203 CARTA DE MARX AP. V. ANNENKOV' Bruxelas, 28 de dezembro de 1846 Meu caro Sr. Annenkov: Ja ha muito tempo o senhor teria recebido minha resposta a sua carta de 19 de novembro, se o meu livreiro me tivesse mandado antes da semana passada a obra do Sr. Proudhon, Filosofia da Miséria. Li-a em dois dias, a fim de comunicar-lhe, sem perda de tempo, a minha opiniao. Como a li muito rapidamente, ndo posso entrar em detalhes e me limito a falar-lhe da impressdo geral que me produziu. Se o senhor quiser, poderei estender-me a respeito em uma segunda carta. Confesso-lhe francamente que o livro me pareceu, de um modo geral, muito ruim mesmo. Em sua carta, o senhor ironiza, referindo-se a “‘parte insignificante de filosofia alema’? de que o Sr. Proudhon faz alarde nesta obra amorfa e presuncosa, mas o senhor supde que o veneno da filosofia néo afetou a sua argumentacdo econdmica. Também estou muito longe de imputar a filosofia do Sr. Proudhon os erros da sua argumentagao econémica. O Sr. Prou- dhon n&o nos oferece uma critica falsa da economia politica porque a sua filosofia seja ridicula; oferece-nos uma filosofia ridicula por- (1) { Nesta carta, publicada pela primeira vez em 1912, por M. K. Lenke, Marx comunica a Annenkov as suas primeiras impressdes sobre o livro de Proudhon, @ que replicaré com a Miséria da Filosofia. Annenkov travou conhecimento com Marx em Paris, entre 1843 ¢ 1844; ao que tudo indica, encontraram-se novamente em Bruxclas, em 1846. ] (2) | Na sua carta de 1° de novembro de 1846, Annenkov escrevera: “Confesso que o proprio plano do trabalho ndo me parece o resultado necessirio da elaboragdo de um tema determinado ¢ 0 seu desenvolvimento légico, mas, sobretudo, o fruto da fantasia de um homem que assimilou uma parte insignificante da filosofia alem&”. | 205 que n&o compreendeu o estado social contemporanco em sua engre- nagem, para usarmos desta palavra que, como muitas outras coisas, o Sr. Proudhon tomou de Fourier. Por que o Sr. Proudhon fala de deus, da razao universal, da razo impessoal da humanidade, razio que nunca falha, que & sempre igual a si mesma e da qual basta ter clara consciéncia para ser dono da verdade? Por que o Sr. Proudhon recorre a um hegelia- nismo superficial para dar-se ares de pensador profundo? Ele mesmo nos fornece a chave do enigma. Para o Sr. Prou- dhon, a histéria € uma determinada série de desenvolvimentos so- ciais; ele vé na hist6ria a realizagAo do progresso; enfim, acredita que os homens, enquanto individuos, nao sabiam o que faziam, que ima- ginavam erradamente 0 seu proprio movimento, isto é, que seu desen- volvimento social parece, 4 primeira vista, algo diferente, separado, independente do seu desenvolvimento individual. O Sr. Proudhon nao sabe explicar estes fatos e, entdo, recorre a sua hip6tese — verda- deiro achado — da razdo universal que se manifesta. Nada mais f4cil do que inventar causas misticas, isto 6, frases, quando se carece de senso comum }, Mas 0 Sr. Proudhon, reconhecendo que nao compreende nada do desenvolvimento histérico da humanidade — e o confessa ao empregar as bombAsticas palavras de raz4o universal, deus, etc. —, nao reconhece, também, implicita e necessariamente, que € incapaz de compreender desenvolvimentos econémicos? O que é a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O pro- duto da ag2o reciproca dos homens. Os homens podem escolher, livremente, esta ou aquela forma social? Nada disto. A um determi- nado est4gio de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens corresponde determinada forma de comércio e de consumo. A determinadas fases de desenvolvimento da produgao, do comér- cio e do consumo correspondem determinadas formas de consti- tuicdo social, determinada organizacao da familia, das ordens ou das classes; numa palavra, uma determinada sociedade civil. A uma determinada sociedade civil corresponde um determinado estado politico, que nao é mais que a expressdo oficial da sociedade civil. Isto €.0 que o Sr. Proudhon jamais compreender§, pois acredita que fez uma grande coisa remetendo-se do Estado 4 sociedade civil, isto é, do resumo oficial da sociedade 4 sociedade oficial. E supérfluo acrescentar que os homens nao sfo livres para escolher as suas for¢as produtivas — base de toda a sua histéria —, (3) (Marz ironiza, aqui, a “hipétese” que Pro expde € comenta longamente, considerando-a um shrio”. | on , no prélogo da sua obra, strumento dialético neces- 206 pois toda forga produtiva é uma forca adquirida, produto de uma atividade anterior. Portanto, as forgas produtivas sdo o resultado da energia pritica dos homens, mas esta mesma energia é circunscrita pelas condicdes em que os homens se acham colocados, pelas forgas produtivas j4 adquiridas, pela forma social anterior, que nao foi criada por cles e é produto da gerac4o precedente. O simples fato de cada geracAo posterior deparar-se com forcas produtivas adquiridas pelas geragées precedentes, que lhes servem de matéria-prima para novas produgdes, cria na histéria dos homens uma conexAo, cria uma hist6ria da humanidade, que é tanto mais a historia da huma- nidade quanto mais as forcas produtivas dos homens, e, por conse- guinte, as suas relagdes sociais, adquiriram maior desenvolvimento. Conseqiéncia necess4ria: a historia social dos homens é sempre a historia do seu desenvolvimento individual, tenham ou nao cons- ciéncia deste fato. As suas relacdes materiais formam a base de todas as suas relacées. Estas relagdes materiais nada mais sdo que as formas necessarias nas quais se realiza a sua atividade material e individual. O Sr. Proudhon confunde as idéias e as coisas. Os homens jamais renunciam aquilo que conquistaram, mas isto nao quer dizer que nao renunciem jamais 4 forma social sob a qual adquiriram determinadas forgas produtivas. Muito ao contrario. Para nao se yerem privados do resultado obtido, para n&o perder os frutos da civilizagao, os homens sao constrangidos, a partir do momento em que o modo do seu comércio nao corresponde ja as forcas produtivas adquiridas, a modificar todas as suas formas sociais tradicionais. (Emprego aqui a palavra comércio em seu sentido mais amplo, do mesmo modo que empregamos em alemAo 0 vocdbulo Verkehr.) Por exemplo: o privilégio, a instituicao de grémios e corporacées, 0 regime regulamentado da Idade Média, eram relagdes que sé corres- pondiam As for¢as produtivas adquiridas e ao estado social anterior. do qual aquelas instituigdes emergiram. Sob a tutela do regime corporativo e regulamentado, acumularam-se capitais, desenvolveu- se o comércio maritimo, fundaram-se colnias; e os homens teriam perdido estes frutos da sua atividade se se tivessem empenhado em conservar as formas 4 sombra das quais aqueles frutos amadurece- ram. Dai 0 ruido de dois trovdes: as revolugdes de 1640 1688. Na Inglaterra, foram destruidas todas as antigas formas econémicas, as relacdes sociais que lhes eram correspondentes e 0 estado politico que era a expresso oficial da velha sociedade civil. Portanto, as formas da economia sob as quais os homens produzem, consomem e fazem suas trocas sdo rransitérias e histéricas. Ao adquirir novas forcas produtivas, os homens transformam o seu modo de produc4o. e, com ele, modificam as relagdes econdmicas, relacdes necessdrias Aquele modo de produgao determinado. 207 Isto é 0 que o Sr. Proudhon nfo soube compreender e, menos ainda, demonstrar. Incapaz de seguir o movimento real da historia, o Sr. Proudhon nos oferece uma fantasmagoria com pretensdes a dialética. NAo sente a necessidade de falar dos séculos XVII, XVIII ¢ XIX porque a sua histéria decorre no reino nebuloso da imagi- nac&o e paira muito acima do tempo e do espaco. Numa palavra, isto ndo é hist6ria, mas velharia hegeliana: nao é a hist6ria profana — a historia dos homens —. é a histéria sagrada: a hist6ria das idéias. Em seu modo de ver, o homem nao é mais que um instru- mento do qual se vale a idéia ou a razdo eterna para se desenvolver. As evolucdes de que fala o Sr. Proudhon s&o concebidas como evolugdes que se operam no seio mistico da idéia absoluta. Se rasgarmos 0 véu que cobre esta linguagem mistica, veremos que o Sr. Proudhon nos oferece a ordem em que as categorias econdmicas se encontram alinhadas em sua cabeca. Nao seria preciso esforcar- me muito para provar-lhe que essa é a ordem de uma cabeca muito desordenada. O Sr. Proudhon inicia seu livro com uma dissertagao acerca do valor, que 60 seu tema predileto. Aqui, ndo entrarei na anAlise desta dissertagac. A série de evolucdes econdmicas da razao eterna comega com a divisdo do trabalho. Para o Sr. Proudhon, a divis&to do trabalho é uma coisa bem simples. Mas nao foi o regime de castas uma deter- minada divisao do trabalho? Nao foi o regime das corporacdes outra diviso do trabalho? E a divisao do trabalho do regime das manu- faturas, que comegou em meados do século XVII e terminou em fins do século XVIII, na Inglaterra, também nao difere total- mente da divisio do trabalho da grande industria, da industria moderna? O Sr. Proudhon se encontra t&o longe da verdade que omite o que nem sequer os economistas profanos deixam de levar em conta. Tratando da divisdo do trabalho, nao se sente na necessidade de falar do mercado mundial. Por acaso a divis’o do trabalho nos séculos XIV ¢ XV, quando ainda nado existiam colénias, quando a América ainda ndo existia para a Europae a Asia s6 se podia chegar através de Constantinopla, por acaso a divisAo do trabalho nao devia ser essencialmente diversa daquela do século XVII, quando as colé- nias j4 se achavam desenvolvidas? HA mais, porém. Toda a organizacao interna dos paises, todas as suas relagdes internacionais so outra coisa que a expressdo de uma certa divisio do trabalho? Nao se modificam com as transfor- magées da divisdo do trabalho? O Sr. Proudhon compreendeu to pouca coisa do problema da divisio do trabalho que nem mesmo menciona a separagio entre 208 cidade e campo, que, na Alemanha, se operou entre 0s séculos IX ¢ XII. Assim, para o Sr. Proudhon, esta separagdo deve ser uma lei eterna, j4 que nao conhece nem a sua origem nem o seu desenvolvi- mento. Em todo o seu livro, seu pensamento discorte como se esta criag&o de um modo determinado de produgio devesse existir até a consumacao dos séculos. Tudo o que o Sr. Proudhon diz, com referéncia a divis4o do trabalho, € tao somente um resumo — ademais, muito superficial e incompleto — do que afirmaram. anteriormente, Adam Smith e outros mil autores. A segunda evolucgado da razdo eterna sdo as mdquinas. Para 0 Sr. Proudhon, a conex4o entre a divisdo do trabalho e as m4quinas é inteiramente mistica. Cada um dos modos da divis4o do trabalho tinha seus instrumentos de produgao especificos. De meados do século XVII a meados do século XVIII, por exemplo, os homens nao produziam tudo a m4o. Possuiam instrumentos, e instrumentos muito complicados, como teares, alavancas, etc., etc. Assim, pois, nada mais ridiculo do que considerar as mAqui- nas como resultantes da divisdo do trabalho em geral. Assinalarei, também, de passagem, que, se o Sr. Proudhon nao chegou a compreender a origem historica das maquinas, compreen- deu menos ainda o seu desenvolvimento. Pode-se dizer que até 1825 — época da primeira crise universal — as necessidades do consumo, em geral, cresceram mais rapidamente que a produgcdo, ¢ o desen- volvimento das m4quinas foi uma conseqiéncia obrigatéria das necessidades do mercado. A partir de 1825, a invencaoe a utilizacao das mAquinas nao foi mais que um resultado da guerra entre patrdes e empregados. Mas isto s6 é valido com referéncia a Inglaterra. Quanto as nacdes européias, viram-se obrigadas a empregar as mAquinas em fung2o da concorréncia que lhes faziam os ingleses, tanto em seus préprios mercados quanto no mercado mundial. J4 na América do Norte, a introdug&o da maquinaria deveu-se tanto A concorréncia com outros paises como a escassez de mao- de-obra, isto 6, A desproporcdo entre a populacdo do pais e as suas necessidades industriais. Por tudo isto, o senhor pode ver quanta sagacidade exibe o Sr. Proudhon ao conjurar o fan- tasma da concorréncia como terceira evolugdo, como antitese das mA4quinas! Finalmente, é, em geral, um verdadeiro absurdo fazer das maquinas uma categoria econdmica, ao lado da divisdo do trabalho, da concorréncia, do crédito, etc. A méquina tem tanto de categoria econdmica quanto 0 boi que puxa o arado. A utilizagéo atual das m&quinas é uma das relag3es do nosso regime econdmico contemporaneo, mas o modo de exploracao das m&quinas € algo totalmente diverso das préprias 209 4 mbquinas. A pélvora continua a ser pblvora, quer se empregue para produzir feridas, quer para estancé-las. O Sr. Proudhon supera-se a si mesmo quando permite que a concorréncia, 0 monopélio, os impostas ou as apblices, a balanga comercial, o crédito ¢ propriedade se desenvolvam no interior da sua cabeca, precisamente na ordem da minha enumeracao. Quase todas as instituicdes de crédito j& se haviam desenvolvido na Inglaterra nos comegos do século XVIII, antes da invengao das m4quinas. O erédito publico era apenas uma nova maneira de elevar os impostos ¢ satisfazer as novas necessidades, originadas pela chegada da bur- guesia ao poder. Enfim, a propriedade constitui a ultima categoria no sistema do Sr. Proudhon. No mundo real, ao contrfrio, a divisao do trabalho e todas as demais categorias do Sr. Proudhon sao relacdes sociais que, em seu conjunto, formam aquilo que atual- mente se denomina propriedade. Fora destas relacdes, a proprie- dade burguesa nao passa de uma ilusdo metafisica ou juridica. A propriedade de outra época, a propriedade feudal, desenvolve-se em uma série de relacdes sociais completamente diversas. Quando esta- belece a propriedade como uma relacio independente, o Sr. Prou- dhon comete algo mais que um simples erro de método: demonstra, claramente, que nado apreendeu o vinculo que liga todas as formas da produgdo burguesa, que nao compreendeu o carter histdrico e transit6rio das formas da produgao em uma determinada época. O Sr. Proudhon s6 pode fazer uma critica dogmatica, pois nao concebe nossas instituigdes sociais como produtos hist6ricos e nao com- preende nem a sua origem nem o seu desenvolvimento. © Sr. Proudhon também se vé obrigado a recorrer a uma ficgdo para explicar o desenvolvimento. Ele imagina que a divisao do trabalho, 0 crédito, as mAquinas, etc., foram inventados para servir A sua idéia fixa, a idéia da igualdade. A sua explicagao é de uma ingenuidade sublime. Essas coisas foram inventadas para a igual- dade, mas, desgracadamente, voltaram-se contra ela. Este & todo 0 seu argumento. Noutras palavras: faz uma suposicdo gratuita e, como o desenvolvimento real e a sua ficgao se contradizem a cada Passo, coriclui que ha uma contradicdo. Ele dissimula o fato de que a contradicAo existe unicamente entre as suas idéias fixas e o movi- mento real. Assim, pois, 0 Sr. Proudhon, devido principalmente a sua falta de conhecimentos histéricos, nio viu que os homens, ao desen- volverem as suas faculdades produtivas, isto é: vivendo, desenvolvem certas relagdes entre si, e que o modo destas relacdes muda necessa- riamente com a modificag4o e o desenvolvimento destas faculdades produtivas. Nao percebeu que as cafegorias econémicas nao sao mais que abstracées destas relacdes reais e que somente sdo ver- 210 dades enquanto estas relacdes subsistem. Incorre. por conseguimte. no erro dos economistas burgucses, que véem nestas categorias econdmicas leis eternas ¢ nao leis historicas, validas excluswamente para certo desenvolvimento histérico, desenvolvimento determinado pelas forcas produtivas. Isto posto, ao invés de considerar as cate- gorias econdmico-politicas como abstragodes de relacdes sociais reais, transitérias, historicas, o Sr. Proudhon. através de uma inverwio mistica, vé nas relacdes reais encarnacdes dessas abstracdes. Estas, em si mesmas, sao formulas que estiveram adormecidas no seio de deus padre desde o principio do mundo. Mas, chegando a este ponto, o bondoso Sr. Proudhon é aco- metido de grandes convulsdes intelectuais. Se todas estas categorias s4o emanacdes do coracao de deus, se constituem a existéncia oculta e eterna dos homens — como pode acontecer. primeiro. que se tenham desenvolvido e, segundo, que o Sr. Proudhon nao seja conservador? O Sr. Proudhon explica todas estas contradigSes evi- dentes valendo-se de todo um sistema de antagonismos. Para esclarecer este sistema de antagonismos, tomemos um exemplo. O monopélio é bom porque é uma categoria econémica e, logo, uma emanagao de deus. A concorréncia é boa porque também é uma categoria econédmica. Mas 0 que nao é bom € a realidade do monopdlio e a realidade da concorréncia. E 0 que é pior ainda: monopélio e concorréncia se entredevoram. O que se deve fazer? Como estes dois pensamentos eternos de deus se contradizem, pa- rece evidente ao Sr. Proudhon que também no seio de deus ha uma sintese de ambos, na qual os males do monopdlio sao equilibrados pela concorréncia e vice-versa. Da luta entre estas duas idéias resul- tard que s6 0 seu lado bom pode se exteriorizar. E preciso arrancar a deus esta idéia secreta, aplic4-la em seguida e tudo sera um mar de rosas; é preciso revelar a formula sint

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