Sie sind auf Seite 1von 116
) PASsES MAGICOos A sabedonia prdatica dos xamas do antigo México CARLOS CASTANEDA Nova ‘a)_ [= SUMARIO Introdugao 11 Passes magicos 19 Tensegrity (Tensegridade) 31 As seis séries da Tensegridade 39 A primeira série: A série para preparar 0 intento 47 O primeiro grupo: preparando a energia para o intento 50 O segundo grupo: despertando a energia para 0 intento 59 O terceiro grupo: reunindo energia para 0 intento 68 O quarto grupo: inalando a energia do intento 76 A segunda série: A série para o Gtero 81 © primeiro grupo: passes magicos pertencentes a Taisha Abelar 85 O segundo grupo: um passe magico diretamente relacionado a Florinda Donner-Grau 89 O terceiro grupo: passes magicos que tém relagao exclusiva com Carol Tiggs 91 © quarto grupo: passes magicos que pertencem a Blue Scout 94 A terceira série: A série das cinco preocupagées: A série Westwood 99 O primeiro grupo: 0 centro para decisées 100 O segundo grupo: a recapitulagéo 112 O terceiro grupo: sonhando 125 O quarto grupo: siléncio interior 137 8 @ Passns MAaicos A quarta série: A separagio do corpo esquerdo ¢ do corpo direito: A série do aquecimento 149 O primeiro grupo: despertando a energia no corpo esquerdo ¢ no corpo direito 153 O segundo grupo: combinando a energia do corpo esquerdo com a do corpo direito 164 O terceiro grupo: movimentando a energia do corpo esquerdo e do corpo direito com a respiragao 175 © quarto grupo: a predilegao do corpo esquerdo edo corpo direito 182 Os cinco passes magicos para o corpo esquerdo 183 Os trés passes magicos para 0 corpo direito 197 ‘A quinta série: A série da masculinidade 204 O primeiro grupo: passes mgicos nos quais as maos sao movidas ao mesmo tempo, mas mantidas separadas 207 © segundo grupo: os passes magicos para concentrar a energia do tendao 214 O terceiro grupo: os passes mAgicos para formar resisténcia 220 A sexta série: Artefatos utilizados em conjunto com passes magicos especificos 227 ‘A primeira categoria 229 . ‘A segunda categoria 234 INTRODUGAO Dom Juan Matus, um mestre-feiticeiro — um nagual, como sao chi mados os mestres-feiticeiros quando lideram um grupo de outros fe’ ticeiros —, introduziu-me ao mundo cognitivo dos xamas que vive- ram no,México em tempos antigos. Dom Juan era um {ndio nascido em Yuma, Arizona. Seu pai era um indio yaqui de Sonora, México, e sua mae presumivelmente uma india yuma do Arizona. Dom Juan vi- yeu no Arizona até os dez anos de idade. Seguiu depois com o pai para Sonora, onde foram capturados em meio as endémicas guerras yaquis contra os mexicanos. Seu pai foi morto e, como uma crianga de dez anos, Dom Juan acabou indo para o sul do México, onde passou a ser criado por parentes. : Aos vinte anos de idade ele entrou em contato com um mestre- feiticeiro, Julian Osorio. Este apresentou a Dom Juan uma linhagem de feiticeiros que diziam existir havia 25 geragées. Ele nao era indio, mas filho de imigrantes europeus no México. Dom Juan me contou que o nagual Julian tinha sido ator e que era uma pessoa arrojada — um contador de hist6rias, um mimico, adorado por todas as pessoas, influente e dominador. Em uma de suas excursées teatrais 4s provin- cias, 0 ator Julian Osorio caiu sob a influéncia de um outro nagual, Elias Ulloa, que Ihe transmitiu o conhecimento da sua linhagem de fei~ ticeiros. Seguindo a tradigao da sua linhagem de xamas, Dom Juan ensinou alguns movimentos corporais, que ele chamava de passes mdgicos, aos seus quatro discipulos: Taisha Abelar, Florinda Donner-Grau, Carol Tiggs e eu. Ele nos ensinou os movimentos no mesmo espirito em que 12 @ Passis MAGicos tinham sido ensinados durante geragdes, com uma notivel modifice cAo: eliminou o ritual excessivo que sempre acompanhara 0 ensi- namento e a realizacio daqueles passes magicos. Dom Juan achava que 0 ritual tinha perdido o seu impeto, quando as novas geracées de pra- ticantes se tornaram mais interessadas na eficiéncia e na utilidade. Entretanto recomendou-me que sob nenhuma circunstancia eu deve- ria falar sobre os passes mAgicos com qualquer um dos seus discipulos ou com as pessoas em geral. Alegava que os passes m4gicos perten- ciam exclusivamente a cada pessoa € que os seus efeitos podiam ser tao destruidores que era melhor apenas praticd-los sem discuti-los. Dom Juan ensinou-me tudo que sabia sobre os feiticeiros de sua linhagem. Declarou, assegurou, afirmou e explicou-me todas as nuangas do seu conhecimento. Por isso, tudo que digo a respeito dos passes magicos é um resultado direto da sua instrugdo. Os passes m4- gicos nao foram inventados. Foram descobertos pelos xamas da linha- gem de Dom Juan que viveram no México em tempos antigos, em estados xamanisticos de consciéncia intensificada. Sua descoberta foi inteiramente acidental. Comegou como dtvidas muito simples, relati- vas 4 natureza de uma incrfvel sensagao de bem-estar que os xamas experimentayam nesses estados de consciéncia intensificada, quando eles mantinham determinadas posig6es corporais ou quando movimen- tavam os membros de alguma maneira especifica. Essa sensagao de bem- estar tinha sido tao intensa que a vontade de repetir tais movimentos em sua consciéncia normal passou a constituir 0 motivo de todos os seus esforgos. ‘Ao que parece, eles foram bem-sucedidos na tarefa e descobriram que eram possuidores de uma série muito complexa de movimentos que, quando praticada, rendia-lhes tremendos resultados em termos de destreza mental e fisica. De fato, os resultados obtidos com esses movimentos foram to draméticos que eles os chamaram de passes mdgicos. Durante geragées, eles os ensinaram somente a xamis ini ciados, em bases pessoais, seguindo rituais elaborados ¢ ceriménias se- cretas. ‘Ao ensinar os passes magicos, Dom Juan desviou-se radicalmente da tradigao, forgando-se a reformular o objetivo pragmatico deles. Ele me apresentou esse objetivo nao tanto como a intensificagao do equi- Iibrio mental e fisico, como tinha sido no passado, mas como a possi- bilidade pratica de redistribuir energia, ¢ atribuiu esse novo modo de ver as coisas a influéncia de dois naguals que o tinham precedido. Os feiticeiros da linhagem de Dom Juan acreditavam que existe uma quantidade inerente de energia em cada um de nds, uma quanti- dade que no esta sujeita ao assédio violento de forgas exteriores para aumentd-la ou diminuf-la, Acreditavam que essa quantidade de ener- gia era suficiente para satisfazer, segundo eles, a obsessio de cada homem na terra: romper os parametros da percepgdo normal. Dom Juan estava convencido de que a nossa incapacidade para romper es- hes pardimetros era induzida pela cultura e 0 meio ambiente social. Sustentava que ambos os fatores transferiam cada partfcula de nossa energia inerente para o cumprimento de padrées comportamentais estabelecidos, que nao nos permitiam romper os parametros da pet- cepgao normal. — Por que deverfamos querer romper esses parametros? — per- guntei uma vez a Dom Juan. — Romper esses parametros é a questao inevitdvel da humanida- de — respondeu ele. — Rompé-los significa a entrada em mundos inconcebiveis de um valor pragmatico de modo algum diferente do valor do nosso mundo da vida cotidiana. Independentemente de acei- tarmos ou nao essa premissa, somos obcecados por romper esses pardmetros, mas temos fracassado miseravelmente. Dai a profusao de drogas, estimulantes, rituais e cerimOnias religiosas entre os homens modernos. — Por que acha que temos fracassado tao miseravelmente, Dom Juan? — perguntei. — Fracassamos em satisfazer nosso desejo subliminar — disse ele — porque atacamos o problema atabalhoadamente. Nossas ferramentas sio grosseiras. Agimos como se quiséssemos derrubar uma parede batendo com a cabeca. O homem nunca considera esse rompimento em termos de energia. Para os feiticeiros, 0 sucesso € determinado unicamente pela acessibilidade ou inacessibilidade da energia. “Uma vez que € impossivel aumentar a nossa energia inerente, a inica avenida aberta para os feiticeiros do antigo México era a redistribuigdo dessa energia. Para eles, 0 processo de redistribuigdo comecava com os passes mdgicos e a maneira como eles afetavam 0 corpo fisico. Enquanto ensinava, Dom Juan fazia questao de acentuar que a enorme énfase que os xamis de sua linhagem davam a destreza fisica e ao bem-estar mental tinha permanecido até os dias de hoje. Obser- vando-o e aos 15 feiticeiros que o seguiam, fui capaz de confirmar a verdade de suas declaracées. O excelente fisico e 0 equilibrio mental eram suas caracteristicas mais Obvias. InTRODUGAD @ 13 ttt euwawaTa ew 14 @ Passus MAaicos IntRODUGAO @ 15 Quando lhe perguntei uma vez por que 0s feiticeiros davam tanta énfase ao lado fisico do homem, a resposta de Dom Juan foi uma total surpresa pata mim, Eu sempre havia pensado que ele préprio fo um homem espiritual. — Os xamis nao sio espirituais — disse ele. — Sao seres muito praticos. Mas é verdade que em geral so considerados excéntricos e até mesmo insanos. Talvez seja por isso que vocé pense que eles sao espirituais. Parecem insanos porque estao sempre tentando explicar coisas que nao podem ser explicadas. Na va tentativa de dar explica- 6es satisfatérias, que nao podem ser satisfeitas sob qualquer circuns- tncia, perdem toda a coeréncia e dizem insanidades. “Se vocé quer destreza fisica e sensatez, precisa de um corpo flexi- vel. Esses so os dois aspectos mais importantes na vida dos xamis, porque trazem sobriedade e pragmatismo: os (inicos requisitos indis- pensaveis para entrar em outros dominios de percepgao. Navegar de uma maneira genuina no desconhecido, requer uma atitude de ousa- dia, mas nao de imprudéncia. Para estabelecer um equilibrio entre a audacia e a imprudéncia, um feiticeiro precisa ser extremamente s6- brio, cauteloso, habilidoso e estar em excelente condigio fisica. — Mas por que em excelente condicao fisica, Dom Juan? — per- guntei. — O desejo ou a vontade de viajar no desconhecido nao é su- ficiente? — Nao na sua vida mediocre! — respondeu ele de modo bastante brusco. — $6 a idéia de enfrentar 0 desconhecido, que dird entrar nele, requer visceras de ago e um corpo capaz de abrigar essas visceras. Que adiantaria ser dotado dessas visceras se vocé nao tiver agilidade men- tal, destreza fisica e muisculos adequados? A excelente condi¢io fisica, conceito firmemente defendido por Dom Juan desde o primeiro dia da nossa associagio — produto da rigorosa execucao dos passes magicos —, era ao que tudo indicava 0 primeiro passo para a redistribuicdo da nossa energia inerente. Se- gundo Dom Juan, essa redistribuicdo de energia era 0 aspecto mais importante na vida dos xamas, bem como na vida de qualquer indivi- duo. A redistribuicao de energia € um processo que consiste em trans- portar, de um lugar para outro, a energia que ja existe dentro de nds. Essa energia foi deslocada dos centros de vitalidade no corpo, que dela precisam para produzit um equilibrio entre a agilidade mental e a des- treza fisica. Os xamas da linhagem de Dom Juan estavam profundamente en- volvidos com a redistribuicdo da sua energia inerente. Esse envol- Vimento nio era um esforgo intelectual nem o produto de indugao, dedugio ou conclusdes légicas. Era o resultado da capacidade deles dle perceberem a energia da maneira como ela flufa no universo. Tais feiticeiros chamavam a capacidade de perceber essa ener- jin de visto — explicou-me Dom Juan. — Descreviam a visio como Wn estaclo de consciéncia intensificada no qual o corpo humano € capaz de perceber a energia como um fluxo, uma corrente, uma vibragio. Ver a energia como ela flui no universo é o produto de uma pausa iomentanea do sistema de interpretagio peculiar aos seres humanos. = Que sistema de interpretagao é esse? — perguntei. = Os xamis do antigo México descobriram — respondeu ele — que cada parte do corpo humano esté envolvida, de uma ou outra Mmaneira, em transformar esse fluxo vibratério ou essa corrente de vi- bragiio em alguma forma de estimulo sensorial. Todo esse bombardeio de estimulos sensoriais é transformado, através da utilizagao, no siste- ina de interpretagéo que torna os seres humanos capazes de percebe- tem o mundo da maneira como o fazem. “Suspender por instantes esse sistema de interpretacao era o resul- tudo de uma tremenda disciplina da parte dos feiticeiros do antigo México. Chamaram a isso visdo e fizeram dela a pedra angular do seu conhecimento. Para eles, ver a energia como ela flufa no universo era uma ferramenta essencial que empregavam para organizar os seus es- quemas classificatérios. Por exemplo, devido a essa capacidade, eles conceberam o universo total disponivel 4 percepgdo dos seres huma- Nos como uma coisa parecida com a cebola, consistindo de milhares de camadas. Acreditavam que o mundo cotidiano dos seres humanos no é mais do que uma tinica de tais camadas. Conseqiientemente, aereditavam que outras camadas nao sé sao acessfveis 4 percepgao humana, como também fazem parte da heranca natural do homem. Outra questdo de tremendo valor no conhecimento desses feiti- ceiros, uma quest’io que também era uma conseqiiéncia da sua capaci- dade de ver a energia como ela flufa no universo, foi a descoberta da configuragao energética humana, segundo eles um conglomerado de campos de energia aglutinados por uma forga vibratéria numa bola luminosa de energia. Para os feiticeiros da linhagem de Dom Juan, um ser humano tinha uma forma oblonga como um ovo ou uma forma redonda como uma bola. Sendo assim, eles os chamavam de ovos /u- minosos ou de bolas luminosas. Essa esfera de luminosidade era con- lerada por eles como sendo o nosso verdadeiro ser — verdadeiro no sentido de que é irredutivel em termos de energia. E irredutfvel i nnn“ _“_«-- 16 @ PAssts MAaicos porque a totalidade dos recursos humanos est envolvida na agio de percebé-la diretamente como energia. Os xamis descobriram que na parte posterior da bola luminosa existe um ponto de maior brilho. Através de processos de observagao direta da energia, eles perceberam que esse ponto é fundamental para transformar a energia em dados sensoriais e, depois, interpreta-los. Por isso, chamaram-no de ponto de aglutinagao e consideraram que a per- cepgio estd, de fato, aglutinada ali. Descreviam 0 poto de aglutinagao como localizado atrés das omoplatas, a um brago de distancia delas. Descobriram igualmente que para toda a raga humana o ponto de aglutinagao esta localizado no mesmo lugar, conferindo portanto a todos os seres humanos uma visio de mundo totalmente semelhante. Uma descoberta de tremendo valor para eles e para os xamas das geracdes seguintes foi a de que a localizacio do ponto de aglutinagao naquele lugar € 0 resultado da utilizacao € da socializagao. Por isso consideraram-na como uma posigao arbitraria que simplesmente dé a ilusdo de ser final e irredutivel. Um produto dessa ilusao é a convicgio aparentemente inflexivel dos seres humanos de que o mundo cotidia- no € 0 tinico mundo que existe e que a sua finalidade é incontestavel. — Acredite em mim — disse-me certa vez Dom Juan —, esse sen- so de finalidade com relago ao mundo é uma mera ilusio. Como nunca foi desafiado, continua sendo o tinico ponto de vista possivel. Ver a energia tal como ela flui no universo é a ferramenta para desafié-la. Através do seu uso, 0s feiticeiros da minha linhagem chegaram A con- clusdo que existe de fato uma quantidade desconcertante de mundos disponivel a percepgao humana, Eles os descreviam como dominios que tudo inclufam, dominios onde uma pessoa pode agir ¢ lutar. Em outras palavras, mundos onde uma pessoa pode viver ¢ morrer, como acontece em nossa vida cotidiana. Durante os 13 anos de minha associago com ele, Dom Juan me ensinou os passos basicos para realizar a proeza da visdo. Discuti o assunto em todos os meus escritos anteriores, mas nunca toquei no ponto-chave desse proceso: os passes magicos. Ele me ensinou um grande ntimero deles, mas, juntamente com aquela riqueza de conhe- cimento, Dom Juan também me deixou com a certeza de que eu era 0 Giltimo elo da sua linhagem. Para mim, aceitar isso implicava automa- ticamente a tarefa de descobrir novos meios para divulgar o conheci mento da sua linhagem, uma vez que a sua continuidade nao era mais um problema. Cabe aqui um esclarecimento muito importante: Dom Juan nunca Pa at: InTRODUGAO WHeVe Interessado em transmitir o seu conhecimento, mas em perpe- {ar a sua linhagem. Suas trés outras discipulas e eu éramos os meios = excolhidos, dizia ele, pelo prdprio espfrito, porque ele nao tivera Henhuma participagao ativa nisso — que iriam garantir essa perpetua- lo, Por isso ele obrigou-se a um esforgo titanico para me ensinar tudo que sabia sobre feitigaria ou xamanismo e sobre o desenvolvimento i sua linhagem. Durante o meu treinamento, ele percebeu que minha configura- who energética era de tal modo diferente da sua que isso s6 poderia jignificar o fim da sua linhagem. Disse-lhe que lamentava muito essa Ain interpretagio sobre qualquer que fosse a diferenga invisfvel exis- tente entre nds. Nao estava gostando do fardo de ser 0 tiltimo da sua linhagem nem compreendia o seu raciocinio. = Os xamis do antigo México — disse-me um dia — acredita- yam que a escolha, como os seres humanos a compreendem, € a con- dligho prévia do mundo cognitivo do homem, mas isso é apenas uma \nterpretagao benevolente de algo que é encontrado quando a cons- eléneia se arrisca além do conforto do nosso mundo, uma interpreta- glo benevolente da aquiescéncia. Os seres humanos estao mergulha- dos no torvelinho de forgas que os arrastam daqui para ali de todas as Muneiras possfveis. A arte dos feiticeiros nao é realmente escolher, mas ter suficiente sutileza para aquiescer. Embora paregam nao fazer outra coisa senao tomar decisées, a rigor os feiticeiros nao tomam decis6es. Nao resolvi escolher vocé nem que vocé seria do jeito que é, JA que eu nao podia escolher quem com- partilharia o meu conhecimento, precisava aceitar quem quer que o espirito estivesse me oferecendo. E essa pessoa foi vocé, e vocé s6 é @hergeticamente capaz de terminar, nao de continuar. Assegurou-me que o fim da sua lihagem nao tinha nada a ver com ele, com os seus esforgos ou com o seu sucesso ou fracasso como um. {eiticeiro buscando a liberdade total. Entendia isso como algo que ti- nha a ver com uma escolha exercida além do nivel humano, nao por seres ou entidades, mas pelas forcas impessoais do universo. Finalmente aceitei o que Dom Juan chamava de meu destino. Isso me pds cara a cara com uma outra questdo a que ele se referia como trancar a porta quando partir. Isto é, eu assumia a responsabilidade de decidir exatamente 0 que fazer com tudo que ele tinha me ensinado e de por em pratica essa decisio de um modo impecavel. Em primeiro lugar fiz a mim mesmo a pergunta crucial sobre 0 que fazer com os passes magicos, 0 aspecto do conhecimento de Dom Juan mais im- i 18 @ Passns MAGicos pregnado de pragmatismo ¢ fungio. Decidl usar os passes magicos ¢ ensind-los a quem quisesse aprendé-los, Minha decisiio em quebrar o sigilo que os tinha cercado por tanto tempo foi naturalmente o corolario de minha total convicgao de que eu era de fato o tiltimo da linhagem de Dom Juan. Para mim, tornara-se inconcebivel que eu devesse carregar segredos que nem eram meus. Manter os passes ma- gicos em sigilo nao tinha sido uma deciséo minha. Minha decisao era acabar com tal condicdo. Dai por diante esforcei-me para chegar a uma forma mais genéri- ca de cada passe magico, uma forma adequada a todas as pessoas. Isso resultou numa configuragio de formas ligeiramente modificadas de cada um dos passes magicos. Chamei essa nova configuragio de mo- vimentos de Tensegrity (Tensegridade), um termo de arquitetura que significa “a propriedade das estruturas reduzidas que empregam ele- mentos de tensdo continua e elementos dé compressao descontinua de uma tal maneira que cada elemento opera com o maximo de efi- ciéncia e economia”. Para explicar 0 que sao os passes mdgicos dos feiticeiros que vive- ram no México nos tempos antigos, eu gostaria de fazer um esclareci- mento: para Dom Juan, “tempos antigos” significava algo em torno de dez mil anos atrds, um niimero que pode parecer incongruente para os esquemas classificat6rios dos académicos modernos. Quando men- cionei a Dom Juan a discrepancia entre sua estimativa e a que eu con- siderava ser mais realista, ele permaneceu inflexivel em sua convic- 40. Acreditava piamente que as pessoas que viveram no Novo Mundo ha dez mil anos atrds estavam profundamente interessadas em ques- toes sobre o universo e a percepcao, nas quais o homem moderno nem sequer comegou a penetrar. Para mim, independentemente das nossas interpretagdes cronol6- gicas divergentes, a eficdcia dos passes mégicos é inegavel e sinto-me obrigado a elucidar o assunto seguindo estritamente a maneira como isso me foi apresentado. O efeito imediato dos passes m4gicos em mim teve uma profunda influéncia no modo como lido com eles. O que estou apresentando nesta obra é uma reflexao intima sobre essa in- fluéncia. Passes Magicos N, primeira vez que Dom Juan conversou comigo sobre os passes idgicos ele fez um comentario depreciativo em relagéo ao meu peso. — Vocé est ficando gorducho demais — disse ele olhando-me de alto a baixo ¢ balangando a cabeca em desaprovagao. — Jé esta prati- camente gordo. O desgaste est comegando a tomar conta de vocé. Como qualquer outro membro de sua raga, esté desenvolvendo um inchago de gordura no pescoco, como um touro. £ hora de vocé assu- mir com seriedade uma das maiores descobertas dos feiticeiros: os passes mdgicos. — De que passes mégicos esta falando, Dom Juan? — perguntei. — Vocé nunca me falou sobre isso. Ou, se 0 fez, deve ter sido tao li- yeiramente que nao consigo me lembrar de nada a esse respeito. — Nao somente ja lhe falei muita coisa sobre os passes magicos = disse ele —, como também vocé ja conhece um grande nimero de- les, Eu os tenho ensinado o tempo todo. Até onde eu sabia, nao era verdade que ele tivesse me ensinado quaisquer passes m4gicos. Protestei veementemente. — Nao seja tio apaixonado ao defender seu maravilhoso eu — brincou ele fazendo um ridiculo gesto de desculpas com as sobrance- Ihas. — O que eu queria dizer é que vocé imita tudo que fago, entao cu tenho tirado proveito da sua capacidade de imitaco. Tenho Ihe mostrado varios passes magicos, que vocé sempre interpreta como sendo um prazer meu em estalar as juntas. Gosto do modo como vocé 0s interpreta: estalar as juntas! Vamos continuar a chamé-los assim. 20 @ Passus MAaicos “Mostrei-lhe dez maneiras diferentes de estalar as juntas, Cada uma delas é um passe magico que se adapta com perfeigao ao meu corpo ¢ ao seu. Vocé poderia dizer que esses dez passes magicos esto na sua linhagem e na minha. Eles nos pertencem pessoal ¢ individualmente, assim como pertenceram aos outros feiticeiros que eram exatamente como nés dois nas vinte e cinco geragdes que nos precederam. Os passes magicos a que Dom Juan estava se referindo, como ele mesmo dissera, eram as maneiras particulares que ele tinha de estalar as juntas. Eu achava que cle costumava movimentar os bragos, as per- nas, 0 torso e os quadris de modos especificos para conseguir um estiramento maximo dos miisculos, ossos e ligamentos. Do meu pon- to de vista, o resultado desses movimentos de estiramento era uma sucesso de estalos que ele estaria produzindo para meu espanto e diversao. De fato, ele tinha me pedido repetidamente para imita-lo. De uma maneira provocadora, tinha até mesmo me desafiado a me- morizar os movimentos e a repeti-los em casa até conseguir que as minhas juntas produzissem estalos semelhantes. Nunca tive éxito em reproduzir os sons, embora tivesse definitiva ¢ inconscientemente aprendido todos os movimentos. Agora sei que nao conseguir aquele som de estalo era uma béngao disfarcada, por- que os misculos e os tenddes dos bragos e das costas nunca devem ser estirados até aquele ponto. Dom Juan tinha nascido com uma facili- dade de estalar as juntas dos bragos e das costas, assim como algumas pessoas tém a facilidade de estalar os nés dos dedos. — Como os antigos feiticeiros inventaram esses passes magicos, Dom Juan? — perguntei. — Ninguém os inventou — disse ele duramente. — Pensar que foram inventados implica admitir a intervengao da mente, ¢ este nao € © caso dos passes magicos. Ao contrario, eles foram descobertos pelos antigos xamis. Disseram-me que tudo isso comegou com a extraordi- naria sensacdo de bem-estar que os xamas experimentavam quando em estados xamanisticos de consciéncia intensificada. Eles sentiam um vigor tao extraordinério e fascinante que lutavam para repeti-lo nas horas de vigilia. “A princfpio, os xamis acreditaram que isso era uma disposigio de bem-estar que a consciéncia intensificada criava. Logo descobriram que nem todos os estados xamanisticos de consciéncia intensificada produziam a mesma sensagao de bem-estar. Um exame mais cuidado- so revelou-lhes que, sempre que a sensacao de bem-estar ocorria, eles tinham estado envolvidos em algum tipo especifico de movimento Passus MAaicos lerceberam que, enquanto estavam em estados de conscién- va intensificada, seus corpos se movimentavam involuntariamente de determinadas maneiras € que isso era de fato a causa da sensagao incomum de plenitude fisica ¢ mental. Dom Juan especulava que sempre lhe parecera que os movimen- {08 que os corpos dos xamas executavam automaticamente em cons- léncla intensificada eram uma espécie de heranga oculta da humani- dade, algo que tinha sido profundamente armazenado para ser revelado apenas Aqueles que estivessem procurando por ele. Ele comparava esses antigos feiticeiros aos mergulhadores de Aguas profundas que, sem o saberem, recuperaram aquela heranga. Dom Juan dizia que os feiticeiros comecaram arduamente a reunir 64 movimentos de que se lembravam. Seus esforgos valeram a pena. Yoram capazes de recriar movimentos que lhes tinham parecido rea- es automaticas do corpo num estado de consciéncia intensificada. Neorajados pelo sucesso, foram capazes de recriar centenas de movi- Mentos sem no entanto aloja-los num esquema compreensivel. A idéia tleles era que, em consciéncia intensificada, os movimentos aconteciam pontaneamente e que havia uma forga que guiava o efeito dos movi- Mentos sem a intervengao da vontade deles. Segundo Dom Juan, a natureza dessas descobertas sempre o levou W Acreditar que os feiticeiros dos tempos antigos eram pessoas extra- ordindrias, porque os movimentos que eles descobriram nunca foram reyelados da mesma forma aos modernos xamas que também entra- yam em consciéncia intensificada. Talvez fosse assim porque os mo- dernos xamas, de uma maneira ou de outra, ja tinham aprendido an- tecipadamente os movimentos com os seus predecessores ou talvez porque os feiticeiros dos tempos antigos tinham mais massa energética. — Dom Juan, o que quer dizer com tinham mais massa energética? — perguntei. — Eles eram homens maiores? — Nio acho que fossem fisicamente maiores — disse ele —, mas @hergeticamente, aos olhos de um vidente, eles apareciam como uma forma oblonga. Chamavam a si prdprios de ovos luminosos. Nunca vi tum ovo luminoso em minha vida. Tudo que tenho visto sao bolas Iu- mminosas. Quem sabe se ao longo das geragées o homem nao veio per- dendo alguma massa energética. Dom Juan explicou-me que para um vidente o universo é com- posto por uma quantidade infinita de campos de energia. Estes apa- yecem como filamentos luminosos que se projetam em todas as dire- gGes possiveis. Os filamentos atravessavam em linhas cruzadas as bolas THO —-_------- 22 @ Passus MAaicos Passis MAGicos @ 23 luminosas que os seres humanos sao, ¢ era razodvel assegurar que, se ‘os seres humanos foram um dia formas oblongas como ovos, eles eram muito mais altos do que uma bola. Conseqiientemente, os campos de energia que tocavam os seres humanos no topo do ovo Iuminoso nao os estao tocando mais, agora que sao bolas luminosas. Para Dom Juan isso significava uma perda de massa energética, algo crucial quando se tratou de reivindicar esse tesouro escondido: os passes mgicos. — Por que os passes dos antigos xamas eram chamados de passes magicos? — perguntei-lhe uma vez. “— Eles no eram apenas chamados de passes magicos — disse ele —, eles eram mégicos! Produziam um efeito que ndo pode ser descri- to através de explicagdes comuns. Esses movimentos nao sao exerci- cios fisicos ou meras posturas do corpo; sao tentativas reais de alcan- car um estado mais favoravel de ser. “A magia dos movimentos é uma mudanga sutil que os praticantes experimentam ao executé-los. E uma qualidade efémera que 0 movi- mento traz para os seus estados fisico e mental, uma espécie de brilho, uma luz nos olhos, Essa mudanca sutil é um toque do espirito, como se através dos movimentos os praticantes restabelecessem uma liga- cdo nao utilizada com a forga vital que os sustenta. Explicou depois que outra raz4o para os movimentos serem cha- mados de passes mdgicos € que, praticando-os, os xamas so transpor- tados, em termos de percepgio, para outros estados em que podem sentir o mundo de uma maneira indescritivel. — Devido a essa qualidade, a essa magia — disse-me Dom Juan —, os passes devem ser praticados ndo como exercicios, mas como uma maneira de chamar 0 poder com um gesto. — Mas podem ser tomados como movimentos fisicos embora nunca o tenham sido? — perguntei. — Vocé pode praticé-los da maneira que desejar — respondeu Dom Juan, — Os passes magicos intensificam a consciéncia, indepen- dentemente da idéia que vocé faca deles. O mais inteligente seria ape- nas aceitar que a pratica dos passes mdgicos leva os praticantes a dei- xar cair a mascara da socializagao. — O que é a mascara da socializagao? — perguntei. — O verniz que todos nés defendemos e pelo qual morremos — respondeu. —O verniz que adquirimos no mundo. O que nos impede de alcancar todo 0 nosso potencial. O que nos faz acreditar que so- mos imortais. A intencdo de milhares de feiticeiros permeia esses Wovimentos, Executd-los, mesmo de uma maneira casual, faz a mente chegar a uma pausa, : Que significa chegar a uma pausa? — perguntei. ‘Tudo que fazemos no mundo — disse ele — reconhecemos e identificamos convertendo em linhas de semelhanga, linhas de coisas que estio associadas de propésito. Por exemplo, se eu lhe digo garfo, inno imediatamente traz A sua mente a idéia de colher, faca, toalha de ‘esa, guardanapo, prato, xicara e pires, copo de vinho, carne, ban- quiete, aniversario, festa. Vocé poderia continuar nomeando tais coi- sas indefinidamente. Tudo que fazemos est4 assim associado. Para os {eiticeiros, o estranho é que eles véem que todas essas linhas de afini- dade, todas estas linhas de coisas associadas de propésito, ligam-se 4 idéia do homem de que as coisas sao imutaveis e eternas, como a pa- layra de Deus. — Por que mencionou Deus, Dom Juan? O que a palavra de Deus fem a ver com o que vocé esta tentando explicar? — Tudo! — respondeu ele. — Parece que em nossas mentes todo © universo é como a palavra de Deus: absoluta e imutdvel. Essa é a Mmaneira como nos conduzimos. No mais profundo de nossas mentes existe um dispositivo restritivo que nado nos permite parar para exa- ininar que a palavra de Deus, como a aceitamos e acreditamos que ela seja, diz respeito a um mundo morto. Por outro lado, um mundo vivo ‘eat em constante fluxo. Ele se movimenta. Ele se altera completamente. “A razao mais abstrata pela qual os passes magicos dos feiticeiros da minha linhagem sdo magicos é que, praticando-os, os corpos dos praticantes compreendem que tudo, em vez de ser uma série continua de objetos que tém afinidade entre si, € uma corrente, um fluxo. E, se tudo no universo é um fluxo, uma corrente, aquela corrente pode ser detida, Pode-se represd-la e, assim, o seu fluxo pode ser detido ou desviado. Em uma ocasiéo Dom Juan me explicou 0 efeito global que a pra- tica dos passes magicos teve sobre os feiticeiros da sua linhagem e correlacionou esse efeito com o que poderia acontecer aos praticantes modernos. : — Os feiticeiros da minha linhagem — disse ele — ficaram cho- cados quase até a morte ao compreenderem que a pratica dos seus passes mAgicos ocasionava a parada do, de outra maneira, ininterrupto fluxo das coisas. Construiram uma série de metdforas para descrever essa parada e, no esforco para explicar isso ou para reconsideré-lo, fizeram uma confusao. Escorregaram para o ritual e a ceriménia. Co- "eo __

Das könnte Ihnen auch gefallen