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CColagto Debates Dirigida por J. Guinsburg Eaitorial: Anite Novinsky, Augusto de Campos, Bris ia K. Guin so ~ Revet: Geraldo Gert de Sours; Produc: Pinto sealant anatol rosenfeld TEXTO/CONTEXTO Wy, 40 anos de 2 EDITORA PERSPECTIVA Mi Ny \\\ sat sh it oh REFLEXOES SOBRE © ROMANCE MODERNO 1 Estas consideragdes sobre 0 romance moderno nfo visam a uma apresentagio sistemética ou histori- mais rudimentar que seja, de um vasto sctor atura atval, O que propomos, nestas paginas, & um jogo de reflexdes, especie de didlogo Iadico com 6 leitor, baseado numa série de hipéteses .possivelmen- te fecundas. ‘A hipétese bisica em que nos apoiamos ¢ a supo- sigdo de que em cada fase hist6rica exista certo Zeitgeist, um esplrito vnificador_que_se comunica_a todas as menifestacées de culturas em contato, natu- ralmente com variagdes nacionais. Falamos nestas 15 do tomando em con- ‘Supomos, pois, que mesmo numa cultura muito complexa como a nossa, com alta especializago e autonomia das vérias esfé — tais como cigncias, artes, filosofia — ndo s6 ta as diversificagées nacior pes, timento de vide, que impregna, em certa medida, todas estas atividades. 'A segunda hipétese sugere que se deva conside- rar, no campo das artes, como de excepeional impor- tincia o fendmeno da nna pintura ¢ que, hi ra deixou de ser mimética, recusando a funcio de re- produzir ou copiar a realidade empirica, sensivel, Isso, 10. tocante @ pintura abstrata ou nio- -figurativa, inclui também correntes figurativas como ‘© cubismo, expressionismo ou surrealismo. ° Mesmo estas correntes deixaram de visar a reprodugio mais dda-fealidade empirica Esta, no expres- sionismo, & apenas “usada” para facilitar a expresso de emogdes € visdes subjetivas que Ihe deformam a aparéncia; no surrealismo, fornece apenas elementos isolados, em contexto insélito, para apresentar a ima- gem onirica de um mundo dissociado ¢ absurdo; no cubismo, é apenas ponto de partida de uma reducdo 4 suas configuragSes geométricas subjacentes. Em todos esses _casos podemos falar de uma negagio do realis- mo, se usarmos este termo no sentido mais lato, de- signando a tendéncia de reproduzir, de uma forma es- tilizada ov nfo, idealizada ou no, a realidade apreen- pelos noss0s sentidos. Ha interpretagbes diame- ‘ralmente opostas deste: fendmeno. Marcel Brion, por exemplo, baseado nas teorias de Worringer, considera ‘a abstrago (¢ 0 anti-realismo) como manifestacéo cor- 76 riqueira, freqiente na hist6ria, de um sentimento de ioso ou pelo menos espiritualizado. “Sé a abstrata pode dar expressio a0 que Ps propria esséncia é ndo-figurativo: a um estado psi co.” Jé 0 catélico Hans Sedimayr considera @ arte abstrata (e moderna em geral) um fendmeno tice historia, uma revolugio “como antes nunca exist” E além disso julga esta arte profundamente irreligio~ sa por nela no se vislumbrerem outros valores que os puramente estéticos € por tomar-se assim @ propria arte em {dolo. ‘Abstendo-nos de tais interpretagées extremas, ve- tificamos apenas o fato da abstrago, atribuindo-the grande importancia, Desse fato seguem, ou a ele se ligam, vérios momentos de igual importincia: 0 ser hhumano, na pintura moderna, é dissotiado ou “redu- zido” (no cubismo), deformad expressionismo) ‘ou.climinado (no ndo-figur 0 retrato de- ‘sapareceu. Ademais, a perspectiva foi abolida on SO- freu, no surrealismo, distorcdes “falsiticagdes". Sobre este fato ha muitas especulagées fascinantes. A peti: pectiva central, climinada pela pintura moderaa, surgit ho Renascimento; a perspeciiva grega, diversa da re- ascentista, foi introduzida na época dos sofistas, no século V aC, Como se sabe, a pintura egipcia ou a pintura européia medieval — para dar s6 estes exem- plos — no conheciam ou néo empregavam @ pers: pectiva. As hipéteses sobre esse curioso fendmeno ten~ dem a considerar provi fe perspectiva seja um recurso para a conquista artistica do mundo terreno, isto é, da sealidade sensivel, & caracteristica tépica de épocas em que se acentua a emancipacic do in- dividuo, fendmeno fundamental da época sofista e re- nascentista, 'A. perspective ctia.a ilusdc do espago tridimen- sional, projetando o mundo a partir de uma conscién- cia individual, © mundo é relativizado, visto em rela~ ” edo a esta consciéncia, ¢ constituido a partir dela; mas, esta relatividade. reveste-se da ilusio do absoluto. Um mundo relativo € apresentado como se fosse absoluto. £ uma’ visio antropocéntrica do mundo, referida & todas as coisas” (Protégoras). A visio perspectivica ressurge depois na filosofia pés-renascentista com Des- cartes que pelo menos parte do cogito, supondo como Unica certeza inabalével a do eu existente (6 a partir dele que Descartes reconstr6i o mundo desfei- to pela divida). E encontrou sua expressio maxima em Kant que projeta o mundo dos “fenémenos” — isto é, 0 mundo como nos aparece, tinico a que terfa- ‘mos acesso — a partir da consciéncia (no importa, neste contexto, que ndo se trata de uma consciéncia individual). E evidente que a visio perspectiviea seria impos- sivel na Idade Média, Como a Terra é imével, fixa no centro do mundo, assim o homem tem uma posi- do fixa no mundo ¢ nfo uma posigiio em face dele. ‘A ordem depende da mente divina ¢ no da humana. No cabe ao homem projetar a partir de si um mundo de cuja ordem divina ele faz parte integral, que ele ape- nas apreende (em parte) ¢ cuja constituigo no de- pende das formas subjetivas da sua consciéncia. No momento em que a Terra comeya a rhover-se, essa ‘ordem parece fadada & dissolugéo. A reviravolt pemniciana € seguida de outra, no dizer de Kant: jé no € 0 mundo que prescreve as cis nossa, cons- cidncia, 6 esta que. prescreve as leis ao-mundo, Antes de tudo, prescreve-the ax perspéctivas de espago ¢ tem ‘po, formas subjetivas da nossa consciéncia, mercé das quais projeta a realidade senstvel dos jendmenos. 78 deformando 0 ser humano, a pers ea realidade dos fendmenos projetados por ela — & ‘expressfio.de_um_ sentimento.de.vida ou.de.umaatitu- renegam.ou. pelo. menos.péem em. dU- 10. mundo. que. se desenvolveu a partir do Renascimento, Merece, aliés, ser salientado que # negagio do ilusionismo ¢ particularmente bem caracte- dos ini cios do nosso sé co 2 italiana, a imitagéo ; tal como visada pelos naturalistas, comesaa_se.con- fessar teatro, mascara, disfarce, jogo. cénico,.da_mes- ma forma como a pintura moderna. se confessa plano de tela coberta de cores, em vez de simular 0 espago tridimensional, volumes. figuras, © critico teatral 8 Melchinger ressalta com preciso que, da mesma for- ma como 0 desenvolvimento da pintura levou do fe- némeno individual “rvore” a linha ov cor paras ou & organizagao abstrata da superficie, assim o desen- volvimento do teatro conduz & reconstituisio dos seus fendmenos especificos: do ludus (j6go) que precisamente nao é a realidade, da pesa, que ndo é 2 vida, da cena, que no é 0 mundo. © palco 2 italiana era tipicamente um paleo pers: pectivico. A cena moderna, “espacial”, sem caixa de palco, cena que faz parte da sala de espetécules, sem separar-se dela pela moldura que a “enquadra” ¢ cons- ji como mundo distinto, & nitidamente aperspecti- . Hé uma interpenetragio.entte, 0.espago cénico ¢ ‘© espaco. empirico..da_sala.que, borsa a. perspectiva Resultado semelhante decorre dos teatros de arena, Recorrendo & nossa primeira hipétese da unida- de espiritual das fases histéricas, chegamos & nossa ter- ceira hipétese: tais alteragées profundas, verificadas nna pintura (e também nas outtas artes), devem, de 79 | tum ou outro modo, manifestar-se também ne roman- ‘ce, embora neste campo seja bem menor 0 niimero de ‘conta de modificagdes semelhan- provocaram verdadeiros es- feragées ocorridas no roman- a vista” como as de uma arte vi- sual. Além disso, o mercado de romances € abastecido ‘em escala muito maior por obras de tipo tradicional. (© valor das nossas hipéteses mede-se pela fertili- dade da sua aplicagéo, esclarecimentos que clas porventura sio capazes de oferecer no campo da lite- ratura e pela iluminaglo que certas interpretagdes, co- Ihidas destarte no romance, poderéo por sua vez Jan- car sobre a pintura, Os; Nota-se no romance do nosso século uma modi- ficacfo andloga & da pintura moderna, modificagio que parece ser essencial A estrutura do modernismo. A eliminagao do espaco, ou da ilusio do espago, pa- das, “os. rel6gios foram destrufdos”. romance mo- demo nasceu_no momento.em.que Proust, Joyce, Gide, Faulkner_comeam a des ordem..cronolégica, fundindo passado, presente ¢ futuro, Fenémeno semelhante ocorre no teatro com a Peca de Sonho, de Strindberg. De um modo geral € com o grande sueco € com Pirandello que se inicia no teatro a destruigo do espago cénico fechado, pro- eesso que acompanha a superaglo da mecénice cae da matemética euclidiana, Com a latividade cénica", espago © tempo ficticios comegam a oscilar e pelas paredes rotas do palco penetra o mito, a mistica, o irreal, enquanto @ psicologia profunda 80 t faz estremecer os planos da conscitncia, impregnando a realidade de elementos oniricos. Com isso, espago-e tempo, formas relatives da lidade vercadeira. A blico, encontra em adaptar-se ‘ou romance decorre da circuns- rece corresponder dade que boa parte di a este tipo de tancia de a arte moderna negar 0 compromisso com ‘este mundo empirico das “aparéncias”, iste_é-com.o mundo temporal e espacial posto como real ¢ absola- to pelo realismo tradicional ¢ pelo senso comum, Tra- tase, antes de tudo, de um process de desmascara- mento do mundo epidérmico.do-senso comum. Reve- Jando espago e tempo —- ¢ com isso o mundo emy to cognoscer © fundamentalmente novo é que a arte moderna do o reconhece apenas tematicamente, através de uma alegoria pictérica ou a afirmaséo tedrica de uma per- sonagem de romance, mas-através.da_assimilagio. des- ta relatividade & propria estrutura da obra-de-arte, A visdo de uma realidade mais profunda, mais real, do a do senso comum ada a forma total da obra. B 86 a a visio se tora realmente valida em termos E absurdo negar tradicional 0 de vvida, j& que vastos setores do pUblico Ihe dao franca cia, No entanto, tem-se ciante dessas manifes- 81 tagées a impressio de que nao fazem, por inteiro, pat te do nosso tempo. E apenas na sua temética que to- mam conhecimento das transformagées da nossa épo- ca, Estas nfo atingiram a0 amago, as formas de ex- pressdo, Com os avides de Santos Dumont ou dos irméos Wright nfo se pode empreender o voo césmico. 3. 414 no século passado, Goethe reconheceu @ extre- dade ¢ relatividade do tempo (e Santo Age ce Afinidades Eletivas que a vivencia s po nada tem que ver com o tempo dos rel6gios. porém, € afirmado apenas em termds de uma geral, OQ fato nao ¢ transformado em. experiéncia. Sabemos que © homem nio vive apenas “no” tem- po, mas que ¢ tempo, tempo ndo-cronolégico, A nossa consciéncia no passa por uma sucessio de momen- tos neutros, como © ponteiro de um relégio, mas cada momento contém todos os momentos anteriores. Nao poderfamos ouvir uma sinfonia ou melodia como uma totalidade coerente e significativa se os sons anterio- res no se integrassem, continuamente, num padrio total, que por sua vez nos impée certas expectativas fe tensdes ditigidas para 0 futuro musical. Em cada instante, a nossa consciéncia é uma totalidade que en- globa, como atualidade presente, 0 passa \ém isso, 0 futuro, como um horizonte de possibilidades e expectativas. Muitos dos romances mais famosos do nosso século procuram assinalar nfo s6 ten na propria estrutura essa “discrepanci no relégio ¢ © tempo na mente” (Vi Mesmo um romance como Ai Ramos, que ndo adota processos muito radicais, s¢ nota intensamente essa preocupagio: 0 passado © 0 82. futuro se inserem — através da repetiglo incessente que dé ao romance um movimento giratério — no ‘mondlogo interior da personagem que se debate na sua desesperada angistia, vivendo 0 tempo do pesa- delo. A irrupgo,-no.momento. atual,-do-passado_re~ ‘moto-e das. imagens. obsessivas.do futuro niio. pode ser apenas afirmada como num tratado.de psicclogia.. Ela tem de processar-se no proprio contexto narrativo em caja estrutura os niveis temporais passam a confundir~ | -se sem demarcagdo nitida entre passado, presente © futuro. Desta forma, o leitor — que nfo teme esse esforgo — tem de participar da propria experiéncia da personagem. Nio conta com as facilidades que, quase sempre, marcam no filme 0 retrocesso do flash back: este recurso di 0 passado como pasado, como coisa morta, apenas lembrada. Para fazt-lo ressurgir fem toda a sua pujanga, como presenga atual, no se pode narri-lo como passado. © processo dessa atuali- zagio (que foi adotado no filme Hirashima, mew ‘Amor e, de outro modo, em Ano passado em Ma- rienbad), nfo s6 modifica a estrutura do romance, mas até a da frase que, a0 acolher o denso tecido das associag6es com sua carga de emogdes, se estende, de~ compée ¢ amorfiza ao extremo, confundinéo © mistu- rando, como no proprio fluxo da consciéncia, frag- mentos atuais de objetos ou pessoas presentes ¢ agora percebidos com desejos ¢ angistias abarcando o futuro fou ainda experiéncias vividas ha muito tempo e se im- pondo talvez com forga ¢ realidade maiores do que as percepgdes “reais”. A narragdo torna-se assim pa- dro plano em cujas linhas se funde, como simultanei- dade, a distensio temporal. ‘A-tentativa. de-ceproduzir este. fluxo da.conscién- cia. — com sua fusio dos niveis.temporais — leva & radicalizagio extrema do, mondlogo interior. rece ou se omite o intermedifrio, isto. ¢, 0. que nos apresenta a personagem no distanciamento 83 gramatical do pronome “ele” e da voz do pretérte Reconseiéncia da personagem passa 2 manifestar-se 02 sua_atualidade-imediata, em. pleno, ato presente, como ‘um Eu que ocupa totalmente a tela imaginéria do ro- mance. Ao desaparecer. 0 intermediri pela presenga direta do fluxo psiquico, ‘bém_a ordem l6gica da oragio¢ a tora que 0 narrador cléssico.imprimia & sequéncia dos acontecimentos, Com isso esgarga-se, além daé formas de tempo e espago, mais uma categoria fundamental dda realidade empitica ¢ do senso comum: a da causa lidade (ei de causa ¢ efeito), base do enredo nal, com seu encadeamento l6gico de motivos ges, com seu inicio, meio € fim. ‘ais modificagdes, que de um ou outro modo s° tigam 2 aboligo do tempo cronol6gico (corresponden- te & do espacorilusio na ), decorrem, pelo que ‘a méxima fidelidade a exper ‘uma retificacdo do enfoque: apreser “pealidade como tal” dade légiea e bem comportada do narrador procura superar a perspectiva tradicional, na propria corrente pafquica da personagem ou toman- o qualquer posigéo que Ihe parece menos fieticia que as tradicionais e “ilusionistas”, ‘Segundo Wolfgang Kayser, @ supressio da funcio mediadera do narrador € ruinosa para a ficcko. E {que tradicionalmente coube a0 narrador, como ¢ixo em fommo do qual revolve a narraco, garantir 2 ordem va da obra do mundo nerrado. No entan- dem é posta em divida, a auséncia do a supressio de uma ordem iluséria cer stificam. Bt no fundo, de uma radicalizagio do to- mance psicolégico ¢ realista do século passado; mas fete excesso levou a conseqléncias que invertem por 84 inteiro @ forma do romance tradicional. A enfocagio rmicroscépica aplicada & vida psiquica teve efeitos te- tnelhantes & visio de um inteto debaixo da lente do mmieroseépio. N&o.o reconhecemos.mais como tal, pois, tliminada a distAncia, focalizamos.apenas uma parcela dele, imensamente amplinda, Da mesma forma 1¢ « faz a personagem nitida, de contomos firmes.¢.clar tho tipica do romance.convencional. Devi za¢io ampliada de certos mecanismos psiqui re a nocio da personalidade total ¢ do seu “cardter” aque jé ndo pode ser elaborado de modo plistico, a0 lon go de um enredo em seqiiéncia causal, através de um tempo de cronologia coerente. Hf, portanto, plena in- | terdependéncia entre a dissolugdo ca cronclogis, da mo- tivagio. causal, do. enredo.¢ da, personalidade, Esta ima, ademais, nfo se esfarpa apenas nos contornos fexteriores, mas’ também nos limites internos: ela se transcende para o mundo infero das camadas infra pessoais do it, para 0 poso do inconsciente; mundo em que, segundo Freud, no existe tempo eronol6gico fem que se acumulariam, seguado Jung, nfo s6 ss fxperiéncias da vida individual ¢ sim es arquetipicas s da propria humanidade. Reconhecemos, no Processo logias com a pintura moderna. A silusdo corresponde a do tempo cronolégico. plica uma série de alteragdes que eliminam ou 20 me- ros borram a perspectiva nitida do romance realista, tempo e. causilidade. foram “deamascarados” como meras aparéacias.exteriores, como formas epidér- micas por meio das quais 0 senso comum procura im- por uma ordem ficticia ® realidade. Neste provesso de desmascaramento foi envolvide também 0 ser hu- mano, _Fliminado ou deformado_na_pintura, também se fragmenta e decompée.no.romance, Este, no po- dendo demiti-lo por inteiro, deixa de apresentar 0 re- trato de individuos integros. Ao fim, a pertonagem 85 cchega, p. ex. nos romances de Beckett dor abstrato — invalido ds mero suporte precério, "ni , da lingua. O individuo, a pessoa, 0 herdi so revelados como ilusio ‘ou convengio. Em seu lugar encontramos a visio mero porta: da palavea, a juagbes humanas arquetipicas. 4 Partimos, para forgar a analogia com a pintura, de alteragdes “téenicas” que acabaram por resulter nu- ma verdadeira desmontagem da pessoa humana ¢ do “retrato” individual. No entanto, chegados a este onto, é justo acentuar que 0 processo talvez tenha sido inverso ou interdependente. O que se ‘mo resultado de desenvolvimentos “formai nha sido em verdade ponto de partida ou parte ineren- te desses desenvolvimentos. Talvez fora bésica uma nova experigncia da pertonalidade humana, .da.pre- cariedade.da.sua situagio. num. mundo caético, em ré- ida transformagdo, abalado por cataclismos. guerrei- 10s, imensos movimentos coletivos, espantosos. progres- 50s técnicos que, desencadeados pela ago do. homem, passam a ameagar ¢ dominar o homem. Nio se re- fletiria esta experiéncia da situagdo precéria do indi- viduo em face do mundo, e da sua relacio alterada para com ele, no fato de o artista jé nio se sentir auto- rizado a projeté-lo a partir da propria consciéncia? Uma época com todos .os.valores..em transicio € por isso incoerentes, uma realidade que. deixou de ser “um ‘mundo. explicado”..exigem adaptagoes estéticas capa- zes de incorporar o estado de fluxo e inseguranca den- tro da prépria estrutura. da obra, De qualquer modo desapareceu a certeza ingémua da posigio divina do in- dividuo, a certeza do homem de poder constituir, a 86 artic de uma-conseiéneia que agora se Ihe afigura epi- ica e superficial, um mundo que timbra em de- monstrar-lhe, por uma verdadeira revolta das coisas, que no aceita ordens desta consciéncia. ‘Notamos uma espécie de pressentimento disso no auge do individualismo, em pleno séeulo XIX. Os pin- toes impressionistas, com sua arte alegre ¢ luminosa, certamente nao desejavam exprimit nenhuma cosmovi- so profunda, Desejavam,. precisamente,-reproduzir apenas. a aparéncia passageira da realidade,.a umpres- do fugaz do momento, De certa forma eram realistas » ‘a0 extremo, Mas precisamente por isso ja no alegam ceproduzir a realidade ¢ sim apenas a sua “impressio” ‘Tornaram:se.subjetivos. por quererem. ser.objetivos. E ‘no._mesmo.momento.a_perspectiva. comera.a-borrar-se opintor ja nfo pretende_projetar-a-realidade, reproduz apenas.a_sua prépria_impresséo, flutuante. vaga,_¢ assim renuncia & posigdc.dequem se.coloca.“em face” do mundo. Daf a Kandinsky hé s6 um passo: 0 da expresséo imediata do mundo psiquico, sem necessi- dade de recorrer & mediacdo de impresides figucativas. ‘A perspectiva desaparece porque.nio hd mais enum ‘mundo exterior a projetar, uma. vez que 0. proprio fluxo Jo o mundo, se espraia sobre o plano neste proceso — que corzespon- seguinte, posto em termos esqueméticos e simpli se-a-perspectiva é expresso de uma relagio entre dois polos, sendo.um.o homem e 0 outro 0 mundo, pro- agora uma ruptura completa. Um dos nado e com isso desapatece a perspectiva. resta s6 0 fluxo da vida psiquica que absor- Imente 0 mundo (seria 0 caso de Kandinsky © dos seus seguidores); noutro caso, resta s6 0 mundo, reduzido a estruturas geométricas em equilfbrio que, por sua vez, absorvem o homem (seria 0 caso de Mon a7 drian € dos seus seguidores). Em ambos os casos, suprime-se_-a.distincia-entre.o_homem...0.mundo..¢ ‘com_isso_a_perspectiva. O-abandono da perspectiva ‘mostra_ser expresso. do anseio.de superar a.dist entre individuo e mundo; va se tora a expresso decisiva no momento.em que © individuo jé nfo tem a fé renascentista na posigio consciéneia humana em face do mundo mais na possibilidade de, a partir dela, it uma realidade que no seja “ilusionista”. ‘Assim, a perspectiva, de inicio recurso para dominar o mundo terreno, torna-se. agora simbolo do abismo entre o homem ¢ o mundo, simbolo dessa i ‘0 poeta G. Benn chamou a “ca- ntagéo da unidade para- to dessa “consciéneia in- vel € essa procura, resultado © causa de lade cada vez maior, exprime-se no esta- do de pesquisa e experimentagio no romance, cujos retifiear as enfocagbes tradicior manifesta-se, principalmente, no desejo de fugir para um mundo ou uma época em que o homem, fundido com a vida universal, ainda néo conquistara os contor- ivos do ev, em que néo'se.dera ainda o jiduagio” € da projecéo pers- . Esse culto do arcaico, esta glorificagio do do clementar so tipicos justamente para as nguardas mais requintadas, © intelectual, o “esqui- neurbtico, dissociado entre os valores em trau- , enquanto revela essa fragmentacdo.nas suas per- sonagens desfeitas ¢_amorfas,exprime nesta-mesma, decomposigéo. do individuo.a sua esperanca. de, che- ‘gado A substincia anénima.do ente humano, poder vis- lumbrar a integrago no mundo.elementar do mito. 8 Dat a glorificagio dos deuses passados ¢ 0 mis- ticismo orientalizante de tantas “Beat Generations” © adeptos de Zen, arautos fervorosot de uma unidade aperspectivica em que no hé “pontos de fuga” ¢ em que os seres se confundem e apagam na “unio mystica” plana, que é apenas o reverso “dialético” dos imensos de pesadelo ¢ angistie, dos sur- realistas: perspectiva deformada que encontramos tam- bbém nos romances de Kafka. 5 Vimos que a radicalizagéo do romance psicolé- gico do século passado levou & sus autodissolugio — da mesma forma como a aprofundacao da pesquisa cientifica Jevou a hipdtese de o individuo consciente € racional ser apenas um ente fictcio, epidérmico. Esta consciéncia individual seria apenas uma ténue camada, luma onda fugaz no mar insondével do inconsciente anénimo. No fundo e em esséncia o homem repete Sempre as mesmas estruturas arquetfpicas — 2s de \Edipo ou de Electra (a propria psicologia recorreu ‘20 mito); as do pecado original, da individuagio; da partida da casa paterna, da volta do filho prédigo; de Prometeu, de Teseu no labirinto — ¢ assim em diante. ‘A propria emergéncia e emancipario do individuo rax ional ¢ consciente € apenas parte daquele “eterno re- toro”, é um padrio fixo que a humanidade repeto na sua caminhada circular através dos milénios. Compreendemos agora mais de perto porque a personalidade individual tinha de destazer-se e tornar- ‘se abstrata no processo técnico deserito: para que.se ‘evelem tanto melhor as.configurages arquetfpicas do ser_humano; estas. so intemporais. como. €.intermporal ‘tempo mitico” que, Jonge de ser linear © progressive (como é 0. tempo judaico-cristio), ¢.cireular,_voltando. sobre si mesmo. © tempo linear, eronol6gico, 2 @pa- 89) ga como mera aparéncia no etemo retorno das mes- ‘mas situages e estruturas coletivas. Na dimenso mf- tica, passado, presente ¢ futuro se identificam: as per- sonagens so, por assim dizer, abertas para 0 passado que € presente que ¢ futuro que é presente que é pas- sado — abertas néo s6 para o passado individual ¢ _ sim o da humanidade; confundem-se com seus prede- cessores remotos, sio apenas manifestagdes fugazes, mifscaras momentineas de um processo eterno que transcende nfo s6 0 individuo ¢ sim a propria huma- nidade: esta, reintegrada no Arqui-Ser, que a ultrapassa e abarca, é parte da luta eterna entre as forcas divinas ¢ demonfacas; é portadora de uma mensagem sobre- humana; ergue-se prometeicamente contra as divinda- des; é expulsa da unidade original; sofre a tortura de Sisifo num mundo absurdo; vive a frustrago do homem que almeja chegar ao Castelo dos poderes insondéveis ete, Assim, em Ulysses transparecem, através das méscaras de Bloom, Dedaluis e Molly, as personagens miticas de Ulisses, Telémaco e P i de um 86 dia, no mar urbano da “Polis” de Dublin, € celebrada, ainda que em termos de parédia, a inter- ‘mindvel viagem do heréi homérico. Renasce — numa visio saudosa ¢ irdnica — um mundo em que as es- feras divina e humana ainda se interpenetram numa tunidade sem fenda, Esta odisséia do século XX, prenhe de dissociagSes, montagens ai variagées de estilo, evoca a unidade mitica ¢ revela ao mesmo tempo, na sua propria estrutura, a razio dessa procufa saudosa. ( Boa parte da obra de Faulkner reencena como mito puritano a conspurcacdo da terra prometida pelo materialismo ¢ pelo dio racial, E uma repetigao da queda. Essa corrupcdo original atua incessantemente nos dias atuais, A técnica complexa de Faulkner, a inversio cronolégica dos acontecimentos, a construsio cireular, a irrupgdo do pasado no presente ¢, com Lop 90 isso, do inconsciente no consciente, sfio a expresso formal precisa de um mundo em que a continuidade do tempo empirico e © eu coerente © epidérmico jé ‘nfo tém sentido, No esfacelamento de Macunaima manifestam-se, através das preocupagdes nacionais ¢ pessoais de Mério de Andrade, que disse de si que “sou trezentos, sou trezentos-e-cingienta”, as estruturas arquetipicas dos deuses despedagados, mas de novo recompostos; o her6i de Grande Sertdo: Veredas, de Guimardes Rosa, revir ve 0 drama de Fausto em pleno sertdo brasileiro; Revel, ( her6i de L’Emploi du Temps, de Michel B pete no labirinto da grande cidade a aventura de Teseu, Jutando com 0 Minotauro do tempo; as angistias do her6i de Berlim Alexanderplatz (Alfred Doeblin), vi vidas na Babel moderna da grande cidade, sio sinero- nizadas com temas biblicos. [Em todas estas e em muites outras obras se nota, fem grau maior ou menor, esta desrealizagio, abstragio © desindividualizagao de que partimos, evidente tentati- va de superar a dimensio da realidade sensivel para cchegar, segundo as palavras do pintor expressionista Franz Marc, & “esséncia absoluta que vive por trés da aparéncia que vemos”. 6 No romance do século passado a perspectiva, a plasticidade das personagens ¢ a ilusio da realidade fo- ram criadas por uma espécie de truque: o romancista, ‘onisciente, adotando por assim dizer uma vis8o estereos- cépica ou tridimensional, enfocava as suas persomagens Jogo de dentro, logo de fora, conhecia-lhes o futuro ¢ 0 passado empiricos, biogréficos, situava-as num am- biente de cujo plano de fundo se destacavam com niti- dex, realgavaclhes a verossimilhanga (aparéneia da ver~ dade) conduzindo-as ao longo de um enredo cronolé- gico (retrovessos no tempo eram marcados como tais), 91 de encadeamento causal. O narrador, mesmo quando no se manifestava de um modo acentuado, desapare- cendo por trés da obra como se esta se narrasse sozi- nha, impunha-lhe uma ordem que se assemelhava & projego a partir de uma consciéncia situada fora ou acima do contexto narrative, Por mais ficticio que seja (© imperfeito da narrag&o, esta voz gr I revela distincia ¢ indica que 0 narrador no faz parte dos su- cessos, ainda que se apresente como Eu que alega nar- rar as préprias aventuras: 0 Eu que narra ja se distan- ciou o suficiente do Eu passado (narrado) para ter a visdo perspectivica. O Eu passado jé se tornou objeto para o Eu narrador. digno de nota a grande quanti- dade de romances modemos. narrados.na voz. do pre: sente, quer para eliminar a impressao de distancia entre (© narrador e 0 mundo narrado,. quer para apresentar a “geometria” de um mundo eterno, sem tempo. © primeiro grande romancista que rompe a tra- digho do século XIX, conquanto ainda de modo mo- derado, é Marcel Proust: para 0 narrador do seu gran de romance 0 mundo jé nfo € um dado obj mentam, visto que a cronologia se confunde no tempo ); a reminiscéncia transforma o passado em atua- lidade, Como 0 narrador j4 nfo se encontra fora da situagdo narrada e sim profundamente. envolvido nela fio hé a distancia que produz a visio perspectivica. ‘Quanto mais 0 narrador se envolve na situagao, >) através da visio microscépica ¢ da!voz-do prese mais 0s contornos nitidos se confundem; o mund ado se torna opaco ¢ caético. Vimos que esta , se de um lado é causa, de outro lado é rest to de que, conforme a expresso de Virginia fa vida atual é feita de trevas impenetrdveis nao permitem a visio circunspecta do romancista tradicional, do we 9 Em muitos romances de transigéo 0 proprio nar- rador comeca a ironizar a sua perspectiva ainda con- vencional. Chega mesmo a desculpar-se por saber tan- to a respeito de personagens de que nfo pode conhe- ‘cer as emogées e a biografia mais intimas. Surge entio a tentativa de superar tais divides através da autoridade do mito; o narrador, ente hu- ‘mano como suas figuras, participa das mesmas turas coletivas: néo as inventa, Os mecanismos psiq ‘cos sAo os mesmos em todos os seres humanos: ele mesmo os vive. Nio descreve a psicologia individual de Fulano ¢ Sicrano que, de fato, nfio pode conhecer; descreve_ processos. fundamentais. de dentro.da. perso- rnagem que se confunde com 0 narrador no monélogo interior. A romancista Nathalie Sarraute acentua que g leitor se encontra de chofre no fntimo, no mesmo lugar em que se encontra o auior, numa profundeza ‘em que nada mais permanece das marcas confortévels com cujo auxilio (o autor tradicional) constréi a pet- sonagem ficticia, le submerge, .. numa matéria to ‘andnima,como 0 sangue, num magma sem nome ov contornos” (L'Ere de Soupgon). Nos. seus préprios romances, vai tecnicamente muito #lém de Proust. 16 io existe um Eu narrador fixo face a um Eu narrado em transformacio; 0 proprio Eu narrador se transfor- mente, como se a autora quisesse demons- idade de tudo € a teoria de Einstein; pos- sivelmente a relatividade da prépria teoria da vidade. 7 Se neste tipo de romances o narrador objetivo se omite, Iangando-se, junto com ¢ mundo exterior, n0 fluxo da conscigncia castica da personagem, hd outros tipos de narrativas em que o natrador se omite — oa pelo menos supera 0 narrador tradicional — pela en- focagio rigida das personagens somente de fora: renun- 93 cia a conhec © comportamento ext cca thes penetra a alma. Em alguns contos admirdveis, Hemingway aplicou derivada da psicologia compor- ta ism" — psicologia que qualquer referéncia & vida psiquica). & uma focaliza- io a dar vida intensa a um jogia é subs- 1a ago. Mas.a perspectiva unilateral lo. seco e impessoal, isento. de-quaisquer_ex- sausais, tora as personagens estranhas © im- , num mundo igualmente estranho © inde- vassivel. Neste mundo, os seres humanos tendem a tornar-se_objetos sem alma entre objetos sem alma, entes “estrangeiros”, jos, sem comunicacio. & precisamente L’ Erranger que se chama o melhor romance de Camus. obra, curiosamente, é nar- rada na forma do Eu, mas com a técnica behaviorista f£ um Eu que nada tem a narrar sobre 2 sua vida ima porque nfo a tem ou nfo a conhece — é um iso Eu”, como foi ‘chamado. Nao tem dimensio planando na superficie das sensagoes. O proprio. assassinio que comete é conseqiiéncia de um feflexo e niio de édios ou emogées intimas. © tribunal {que o condena tenta restituir-Ihe a elma para poder condené-lo. Introjeta nele motivos que ndo tivera, mal- dades que néo conhecera, uma coeréncia de atitudes que ignorara. Faz déle personagem de romance tra icional para poder condené-lo, Esse tribunal absur- do é um grande sfmbolo da alienaco: entre o réu — cidadio de quem o Estado ¢ seu tribunal tiram 0 seu direito e forga — ¢ este mesmo tribunal criado pelo cidadio, jé ndo existe a minima relagio. Reconhece- mos, em certa medida, o tribunal de Kafka: este, po- rém, exprimiu a profunda divida em face da alienagio interposta entre 0 homem “1 © poder meta jor ¢ reproduz 0s didlogos. Nun- 94 fisico insondavel que 0 esmaga, Em Camus jé nio hé divida, apenas a afirmagdo do absurdo. ‘Notamos nesta obra de Camus algo da dptica “gurrealista” de Kafka, com suas “‘personagens em Pro- jeto" que nem nome tém e que vivem no tempo part- Tisado da espera (como as personagens da pega Espe~ rando Godot, de Beckett): perspectiva falsa © exage- rada dos surrealistas que corresponde com precisio a este mito da frustragio ¢ da impossibilidade de reen- contrar a unidade perdida: 0 pecado € a propria indi- viduagdo. Kafka, com efeito, escreveu 0 mito da im- possibilidade do retorno 20 mundo mitico. ‘Também neste tipo de romances se verifica 0 abandono completo da psicologia “retratista” do ro- mance tradicional (psicologia e romance que, em L’Etranger, sao objetos de parédia). Ainda 0 mesmo ‘ocorre nas obras, cujo tema é a simultaneidade da vida coletiva de uma casa ou cidade ou de um amplo espa- go geogratico num segmento de tempo. O grande mo~ delo de tais romances ¢ USA, de Dos Passos, cuja técnica encontramos também em Berlim Alexanderplatz, Le Sursis (Sartre) ou, mais recentemente, embora mo- dificada, em Passage de Milan, de Michel Butor, bem como em muitos outros romances. A_téenica-simulti- nea joga com grandes espagos.c coletivos, Elimina, Gquase sempre, 0 centro pessoal ou a enfocagio coeren- te e sucessiva de uma personagem central. Os inci duos — quase totalmente desindividualizados — sio angados no turbilhdo de uma montagem caéstica de monélogos interiores, noticias de jornal, estatisticas, ‘artazes de propaganda, informacées politicas ¢ meteo- rologicas, itinerdrios de bonde — montagem.quere- produz, A maneica. de_rapidissimos_cortes cinematogré~ ficos, 0 redemoinho da vida metropolitana, © individuo dissolve-se na polifonia de vastos afrescos que tendem ‘a abandonar por inteiro a ilusio éptica da perspectiva, ja em si destruida pela simultaneidade dos acontect- 95 de um enfocagio telescépica, de grande feito 0 mesmo da microscépic do objeto — se 0 foco no se dissolvesse jt as personagens visadas, neste mundo imenso da reali dade social que sufoca o “elemento” humano. ‘Vemos, portanto, que a perspective tanto se des- faz nos romances em que o narrador submerge, por inteiro, na vida psiquica da sua personagem, como na- queles em que se lan¢a no rodopiar do mundo. Quer (© mundo se dissolva na consciéncia, quer a conscién- cia no mundo, tragada pela vaga da realidade coletiva, em ambos os casos 0 narrador se confessa incapaz ou desautorizado a mé posigéo distanciada ¢ su- tincia é precisamente exagerada ¢ acentuada 20 extre- mo na perspectiva deformada que, falando de Camus ¢ Kafka, chamamos de “surrealista”, Curiosamente, em todos os trés casos 0s resultados se assemelham: no no segundo caso, 0 mundo desfaz 0 in- dividuo que, também nesta enfocagio, deixa de ser pessoa integra. E no siltimo. caso abre-se um abismo ‘entre individuo ¢ mutdo ¢, ainda nesta Sptica, a pes- soa perde a sua integridade. Todas as trés perspecti- ‘vas, sendo sintomas de um grave desequilfbrio, so, ‘como sintomas, ao mesmo tempo expresso verdadeira das transformag6es ameagadoras que a perspectiva equilibrada do romance tradicional, quando usada em rnossos dias, timbra em ignorar. 8 Nestas paginas nfo foi tentado apresentar uma teoria e sim uma série de hipéteses que, como todas as analogias entre as diversas artes, devem ser encarn- 96 das com certa reserva, Muito menos foi tentado apre- sentar um quadro completo das novas enfocagées, Néo foi abordado 0 romance exisencialista, nem 0 r0- mance “geométrico” de A. Robbe-Grillet que, por exemplo, em Jalousie, tenta repreduzir o eterno ritmo “grafico”, por assim dizer o padrio geométrico, do cite como tal, eliminando por inteiro @ personagem que 6 portadora deste ciime. Entretanto, mesmo & base desta exposicéo rudi- rmentar é Sbvio que preacupagées semelhantes, decorren- do do mesmo Zeitgeist, se manifestam na pintura ¢ no romance (e, sem divida, nas outras artes). Nao che- gamos a concluses tio radicais como Marcel Brion ou Hans Sedimayr: de que a arte moderna seria essen- cialmente religiosa ou irreligiosa. Mas sem divide se exptime na arte modema uma nova visio do h cde realidade ou, melhor, a tentativa de redef situagio do homem ¢ do individuo, tentativa que se revela no proprio esforgo de assimilar, na estrutura da obra-de-arte (e nko apenas na temética), preca- riedade da posigo do individu no mundo moderno. ‘A {é renascentista. na posicio privilegiada do individuo desapareceu. © modo de abordar o problema foi, evidentemen- te, um pouco arbitrério. Nem todas a8 facetas pu- dderam ser visadas a partir dos momentos da abstracio, dda eliminagdo do retrato individual e da auséncia ov deformagio da perspective. Mas esta nossa enfoca- glo, sabendo-se unilateral embora flutuante como um mobile de Calder, tentou incorporar na propria estru- tura deste trabalho divida, através da constante re- tomada do fio do raciocinio © do cireulo — talver vi- cioso — das cogitagées. © que importa é a fertlidade desta perspectiva, ainda que ela seja precéria como sio hoje todas as perspectivas m7

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