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DOMINGO, 21 DE MARÇO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO

ARREMATE Uma gota A catarinense Maria Gonçalves, moradora de


de cólera Guabiruba, cidade próxima a Brusque, decide ir à

} SEXTA, 12 DE MARÇO
Justiça pedir indenização por ter sido erradamente
diagnosticada como portadora do vírus da aids, em
2003. Em seis anos e meio, e duas gestações, os
médicos jamais repetiram o teste anti-HIV.

CHRISTIAN CARVALHO CRUZ/AE


Pancada. Sérgio
supôs traição e
passou a bater
em Maria. ‘Hoje
vejo que ele tinha
razão’, ela diz

FOTOS REPRODUÇÃO

AIDS viral e glóbulos brancos jamais pioraram; o


marido não usava preservativo e nunca con-
traiu o vírus; Maria não fez o anti-HIV na
segunda-gravidez. Freitas suspeitou de um

Morrer de novo falso positivo para HIV, que pode ocorrer


em gestantes por conta de variações hormo-
nais e outras possíveis infecções. Ele então
solicitouumnovotesteemsetembro:negati-
De como um HIV que nunca lhe percorreu as veias, mas atazanou vo. E mais um em outubro: negativo tam-
bém.Emnovembrocontouaboanovaemos-
suas ideias, liquidou aos poucos e para sempre a vida de Maria trou os resultados libertadores a Maria, mas
notou que ela não vibrou.
“Aquele pedaço de papel não foi capaz de
tirar o HIV dela, ficou impregnado”, ele diz,
bater nela. “Eu me ajoelhava aos pés dele e sentadoemuma cafeteria no centro deBrus-
CHRISTIAN CARVALHO CRUZ ele me chutava: ‘Sai daqui’. Fui espancada Positivo. O resultado que a condenou que. Ouvindo a conversa atrás do balcão, o
com barriga. Dei parte, ele ficou preso. Hoje jovem barista comenta: “E o tanto de remé-
BRUSQUE / SC vejoqueeletinhaumpouco derazão”, relem- dio que ela tomou... Deve estar podre por
bra Maria, sem se importar com a escadinha dentro, né doutor?”. Freitas explica que, ho-

M
aria Gonçal- de filhos (10, 8, 6 e 4 anos) rondando a varan- je, o coquetel não faz mal a quem não precisa
ves tem 37 da do casebre simples, de madeira e três cô- dele. Como metáfora, porém, a observação
anos,masnas- modos em 48 m². Sentado na cadeira de plás- do barista vale um macchiato bem tirado:
ceu pratica- tico ao lado e cutucando a unha do dedão do sim, Maria apodreceu por dentro. Agora, de
mente ontem. pé esquerdo, Sérgio explica melhor: “Não advogado,querserindenizada.“Vamosacio-
Foiemnovem- era bem agressão. Eu xingava ela de aidética nar judicialmente a prefeitura de Brusque
bro passado, e outras coisas porque tinha me traído. En- por negligência e o Lacen, pelo diagnóstico
numa sexta- tão ela vinha me dar um tapa – vê como ela é errado”,adianta o causídico Luís Gustavo de
feira 13 de céu forte – e eu lhe dava uma porrada”. Santana, único ser humano visto de terno e
limpoesolbo- A temporada seguinte, a da espera pela gravata por aquele entre-morros de Santa
bo demais para afugentar o frio da primave- morte,foide resignação.Sóque avida,tinho- Catarina. Valores? Não sabe ainda, mas dei-
ra. Nasceu sentada, num posto de saúde em sa, teimava em levar a realidade pro outro xa escapar um “300 salários mínimos”.
Brusque (SC), com o marido Sérgio Baum- lado.NemMarianemosprofissionaisdesaú- OdiretordoLacen,João DanielFilho,afir-
gartner do lado e o infectologista Ricardo deque a acompanhavam se davam conta dis- Negativo. Liberdade, seis anos depois ma que o laboratório não errou e é pratica-
Freitas na frente. Foi o dr. Freitas que trouxe so. A filha nasceu, não foi amamentada no menteimpossível quetenha havidouma tro-
Maria à luz, quando disse para ela: “Dona peito e tomou antirretroviral. Quando com- quando o dólar subiu de R$ 1 para R$ 1,90. Aí cadeamostras.OproctologistaPauloCoppi-
Maria, a senhora não tem o vírus. Nunca te- pletouumano,fezum testeanti-HIV:negati- vem a notícia de que minha mulher está com ni, que acompanhou Maria no SAE até mar-
ve”. Na hora ela não soube direito se retoma- vo. Maria virava e mexia ia ao posto “pedir aids... Se põe no meu lugar.” Até uma heran- ço de 2007, não quis dar entrevista. Por
va a vida ou se morria mais um pouco. “Fi- remédio pra tristeza” e, de seis em seis me- ça de R$ 300 mil em terrasque recebeu coma e-mail, seu advogado, Erial Haro, afirmou
quei feliz, mas não fiquei.” A sensação, que ses, para verificar sua carga viral. Foram 11 morte do pai ele diz que cheirou. Sobrou só que a paciente apresentou “queda da imuni-
perdura, era de estar vivinha da silva, mas de exames. Todos apontaram que havia pouco para comprar um chão e nele erguer duas dade em um período, o que seria um indício
pés juntos a sete palmos defundura, soterra- ou nenhum HIV nadando no seu sangue – o casinhas de madeira. Numa ele mora com de que poderia estar ficando imunodeprimi-
da pelo sofrimento de acreditar, por seis resultado caía sempre no “abaixo do limite Maria e as crianças. Da outra tira R$ 1.000 da”. Nem uma palavra sobre o fato de Coppi-
anos e meio, que tinha o HIV comendo-lhe mínimodetectável”.Emoutroexameimpor- em aluguel para sustentar a família. ni não ter repetido o anti-HIV pelo menos
as veias. E não tinha. Nunca teve. tante, o CD4, que conta os glóbulos brancos, Maria procurou emprego duas vezes, em quando Maria engravidou pela segunda vez.
Em 2003, grávida do quinto filho aos 30 Maria também sempre ficou fora dos pa- malharia e restaurante. Mas desistiu quando O busílis para a justiça vai ser descobrir se
anos, exames pré-natais de praxe, Maria foi drões dos soropositivos. Nível abaixo de 350 lhe pediram exames médicos de admissão. os dois exames que deram positivo foram
informadapelaenfermeiraVeraCivinski,en- células por mililitro indica geralmente que o Também se pôs a imaginar o que seria se feitos a partir de uma única amostra de san-
tão coordenadora do Serviço de Assistência HIV está fazendo seu estrago, aniquilando cortassea mãocomumatesoura ouuma faca gue de Maria, ou com duas, colhidas em mo-
Especializada (SAE), da prefeitura de Brus- as defesas do corpo. Maria nem triscava. Ba- e achou melhor se isolar em casa, sem ofere- mentos diferentes, como manda o Ministé-
que: “Tu tens aids”. O resultado do exame teu no mínimo de 554 em maio de 2004 e cer perigo a ninguém. Passava o tempo na rioda Saúde. A enfermeira Vera sustentaque
feitoemFlorianópolispeloLaboratórioCen- depois só subiu, extravasando os 1.300 em frente da televisão ou lendo um livreto cha- fezo correto:duas amostrasemdias diferen-
tralde Saúde Pública(Lacen), ligadoàSecre- junho de 2008. Sérgio refazia o anti-HIV e mado Pequeno Manual de Instrução para a Vi- tes. “E tivemos dois resultados positivos.”
tariaEstadualde Saúde,informavalogoabai- nada. Sempre negativo, mesmo com os ma- da (vol. 2) – 529 Sugestões, Observações e Lem- Maria garante que só tirou sangue uma vez
xo do nome de Maria: “Amostra positiva pa- ços de camisinhas jogados lá em cima do bretes para se Levar uma Vida Boa e Gratifican- antes de ouvir o “tu tens aids”. No prontuá-
raHIV-1”.Mariaganhouosremédiosantirre- guarda-roupa do mesmo jeito que chega- te, da lavra de um tal H. Jackson Brown Jr. rio de Maria não há registro do primeiro exa-
trovirais, maços e maços de camisinhas e vam: fechados. “Eu amo essa mulher. Se é Um aperitivo: “Nunca compre a mesinha de me. “Está lá no SAE, podes procurar que tu
uma vida infernal para tocar. Ou tentar. pra morrer, morremos os dois”, justificava centro na qual você não possa pôr os pés”. achas”, sugere Vera, enquanto corre de um
“Não tinha muito que fazer, não. Era espe- para si mesmo. Em agosto de 2005, Maria Maria gostava de se distrair com isso. Nas lado a outro e fala grosso com as pessoas que
rar a morte vir me buscar. Voltei pra casa descobriu que estava grávida mais uma vez, poucas vezes que saiu à rua foi visitar a mãe, formam uma fila imensa à sua frente na Uni-
pensandono que seriados meusfilhos quan- a sexta em sua vida, a quarta com Sérgio. doente de câncer. No dia em que ela expirou, dade de Saúde Central de Brusque, seu novo
do eu me fosse.” Depois foi matutar como Precisouretomar otratamentocomocoque- segurou firme na mão de Maria e disse: “Tô emprego. “Já procuramos e não encontra-
teria se contaminado. “Ah, só pode ter sido tel, para evitar a transmissão do vírus ao be- morrendo, filha. Mas não fique triste, por- mos nada”, informou a psicóloga Giovana
no acidente de moto”, pensou. Um ano an- bê. “Ganhamos um esculacho da Vera e mais que você também está e logo a gente se en- Toazza,novacoordenadora doSAE. Oepisó-
tes, Maria e Sérgio caíram em Guabiruba, a uma porção de camisinhas”, conta Sérgio. contra”. A mãe e a filha mais velha de Maria, dio dona Maria criou um problemão para
cidadezinha pegada a Brusque onde moram. “Ela dizia ‘mas onde é que vocês estão com a do primeiro casamento, eram as únicas pes- ela. Agora, boa parte dos seus 380 pacientes
Quando ela acordou estava no hospital, com cabeça?!’”, completa Maria. soas, além de Sérgio, que sabiam que ela de aids querem refazer o teste anti-HIV. Vai
os arranhões sendo limpos com gaze e pinça. Com a cabeça na senhora da foice. Sérgio, “era” soropositiva. que o vírus sumiu. Ou nunca esteve lá, como
“Não limparam o material direito e foi ali que havia anos tentava afogar a falência nos Quemdescobriu oerro foio médico Ricar- em Maria. Ela, que ironicamente não se dava
que peguei.” Entãosuspeitou de uma traição negócios em um copo de pinga, diz que se do Freitas. Ele começou a trabalhar no SAE a essas esperanças, continua sem saber se
do marido. Sérgio fez o teste anti-HIV, deu achegou à cocaína e ao crack. “Fui bem de em 2008 e, estudando o prontuário de Ma- acordou ou continua no pesadelo. Ri quase
negativo. E o que deu também foi delegacia. vida, sabe? Tive cinco automóveis de uma ria,estranhoutrêscoisas:elasó tomouantir- nada,parececansadaenãoconseguerespon-
Desconfiando de que Maria passeara na hor- vez, uma fabriquinha de roupas e uma loja retroviral em períodos curtos, nas duas ges- der a um trivial “tudo bem?” com outro. Diz
ta do outro lado da cerca, Sérgio passou a em Ponta Grossa”, ele começa. “Perdi tudo tações, e mesmo assim seus exames de carga sempre: “É... vamos levando como dá”.

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