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editora brasiliense rr WALTER BENJAMIN MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ENSAIOS SOBRE LITERATURA EHISTORIA DA CULTURA OBRAS ESCOLHIDAS VOLUME 1 Sarge Pe Rai fees eee editora brasiliense Copwright © by Subrkamp Vera. ‘al riginal Auch ret Bn rr Seeding SA ‘Ettore [Nenhuma part desta publica pode se gra, srrmcenata em sistemas eltonicn, fotocopiata, N gant on ae pee aoe ISBN. 85-11-12030-0 Primeiraedicio, 1985 10% rine, 196 ‘Revlsto: Marcia Copola « Evia da Recha Capa: Ettore Bottini os neni de Catala me Pubs (2) = (CAmara Brasileira do Livro, sr, Brasil) here tani tee pom: nis sb eratura © stoi de catars 7 Water Benjamin aa Sergio Pe Rowan! prelacio Jeane Marte Cashin Se Pou Bees 980 (Obras eels 1) ISBN 85-1-120500 1 Ate Flostia 2, Coltura- Hite 3. Fesofia sens Hist" Foci 5. Lteratura Hite eliea 1. Tio. Te sene. 4-074 ep. Toes para cailogo sand J. Benjamin Fiesta sent 193 COMP Ra. [ir ceuraa oe samara watonse 3 a a Benjamin, walter . Magia e tecnica, arte e politi | ca ensaios sobre literatura ¢ historia da cultura 82. 09/8468m/7. ed. (156362799) £sar A crise do romance. Sobre Alexanderplatz, de Diblin ‘Teorias do fascismo alemao. Sobre a coletiinea Guerra Guerreiros, editada por Ernst Jinger - 61 Melancolia de esquerda. A propésito do novo fivro de Poemas de Erich Kistner . A 2B Que €0 teatro épico? Um estudo sobre Brecht --...0... 78 Pequena hist6ria da fotografia . : 1 ‘A doutrina das semethangas . + 108 Enperiénciae pobreza ....... 0... 3 : 14 (© autor como produtor. Conferéncia pronuncia tituto para o Estudo do Fascism, em 27 de abril de 1934. 120 Franz Kafka. A propésito morte . 137 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica... 165 (© narrador. Consideragdes sobre a obra de Nikolai Les- OG as 51 : sees 197 Sobre o conceito da Historia 22 APENDICE Livros infantis antigos ¢ esquecidos .. Histéria cultural do brinquedo .......+. Bringuedo brincadeira. Observages sobre wna obra ‘monumental (1928) . - 249 PREFACIO Walter Benjamin ou a historia aberta A qui esto, finatmente editadas em portugués, as fa- ‘mosas teses “Sobre o conceito de histéria"," iltimo escrito de Walter Benjamin, publicadas apés sua morte, em 1940. Nao pretendo, no dmbito desta breve introducao, fazer delas wma interpretacao exaustiva. Prefiro escolher um aspecto essencial ‘mas pouco estudado da filosofia de Benjamin, sua teoria da narragéo. Se nos lembrarmos queo termo “Geschichte”, como “histéria’”, designa tanto 0 processo de desenvolvimento da realidade no tempo comoo estudo desse processo ou um relato ‘qualquer, compreenderemos que as teses “Sobre o conceito de histéria"’ nao sao apenas uma especulapzo sobre o devir histé- rico “enquanto tal”, mas uma reflexio erttica sobre nosso dis- curso a respeito da histéria (das histérias). discurso esse inse- parével de uma certa pritica. Assim, a questao da escrita da histéria remete ds questoes mais amplas da pritica politica e da atividade da narracao. E esta iltima que eu gostaria de ‘analisar: 0 que é contar uma histéria, hist6rias, a Histéria? ‘Questao que Benjamin estuda nas teses e em diversos de seus ‘ensaios literérios, muito oportunamente publicados neste mes- ‘mo volume. Benjamin, que, conforme sabemos através do depoimento de seu amigo G. Scholem, escreveu as teses sob 0 impacto do (1) Neste volume, of. pp. 222-232. Cita a partir de agora como “tees” 5 (WALTER BENIAMIN acordo de agosto de 1939 entre Stalin e Hitler, critica duas ‘maneiras aparentemente opostas de escrever a histéria que, nna realidade, tém sua origem em uma estrutura epistemol6- ‘ica comum: a historiografia “progressista”, mais especifica- ‘mente a concepedo de histbria em vigor na social-democracia ‘lemi de Weimar, a idéia de um progresso inevitivele cienti- Ficamente previstvel (Kautsky), concepeao que, conforme de- ‘monstra Benjamin, ‘uma avaliacao equivocada do {fascismo ea incapacidade de desenvolver uma luta eficaz con: ‘ra sua ascensdo: mas também a historiografia “burguesa’” contemporinea, ou seja, 0 historicismo, oriundo da grande tradigdo académica de Ranke a Dilthey, que pretenderia revi- ver o passado através de uma espécie de identificagao afetiva do historiador com seu objeto. Sem me deter na aniilise critica ‘de Benjamin, jé amplamente comentada,} eu gostaria de des- tacar, agui, duas conclusges. Em primeiro lugar, segundo Benjamin, a historiografia “burguesa” ea historiografia “pro ‘gressista” se apéiam na mesma concepgio de um tempo “ho~ ‘mogéneo ¢ vazio” (teses 13 ¢ 14), um tempo cronolégico ¢ linear. Trata-se, para o historiador “materialista” — ou seja, de acordo com Benjamin, para o historiador capaz de identi- ficar no passado os germes de uma outra hist6ria, eapaz de Tevar em consideragio os sofrimentos acumulados e de dar uma nove face ds esperancas frustradas —, de fundar um ou- troconceito de tempo, “tempo de agora” (“letztzeit"), carac- terizado por sua intensidade e sua brevidade, cujo modelo foi ‘explicitamente caleado na tradigao messinica e mistica ju- daica. ‘Em lugar de apontar para uma “imagem eterna do pas- sado", como 0 historicismo, ou, dentro de uma teoria do ‘progress, para a de futuros que cantam, o historiador de- ve constituir uma “experiéncia” (“Erfahrung”) com 0 pas sado (tese 16). Estranha definigao de um método materi lista! Permitani-me, entao, analisar brevemente esse conceito ‘central da filosofia benjaminiana. Com efeito, ele atravessa toda a sua obra: desde um texto de juventude intitulado “Er- Ck ntadamente Materialism Beira "Tenn ‘User den Beri der 6. ante ee Bla, Susan, 1S, Fankar/aln te sre aera “Cnn conacetente os saad” Habermas, Se SRE SMa, Sto uo, 0cory BarbraPretageS-P Roane MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ° fuhrung’” mais tarde um ensaio sobre conceito de experién- cia em Kant ("Ueber das Programm der kommenden Philo- sophie") diversos textos dos anos 30 ("“Experiéncia e Pobre- 22", "O Narrador”, os trabalhos sobre Baudelaire)® e, fina- mente, as teses de 1940, Benjamin exige a cada vez a amp! {0 desse conceito, contra seu uso redutor. Assim, no texto de 1913, tipico do espirito da “Sugendbewegung”, contesta a ba- nnalizagdo dos entusiasmos juvenis em nome da experiéncia Pretensamente superior dos adultos; no texto sobre Kant, cri- tica “um conceito de conhecimento de orientagéo unilateral, ‘matemdtica e mecénica’” e gostaria de pensar um conheci- ‘mento que tornasse passive! “nao Deus, € claro, mas a expe- riéncia ea doutrina de Deus". Nos textos fundamentais dos ‘anos 30, que eu gostaria de citar mais longamente, Benjamin retoma a questao da “Experiéneia”, agora dentro de sma nova problemiitica: de um lado, demonstra o enfraquecimen- to da “Erfahrung’ no mundo capitalista moderno em detri- mento de um outro conceito, a "Erlebnis”, experiéncia vivide, ccaracteristica do individuo soitério; eshoga, ao mesrno tempo, uma reflexio sobre a necessidade de sua reconstrucdo para arantir uma meméria e uma palavra comuns, malgrado @ desagregapdo eo esfacelamento do social. O que nos interessa aqui, em primeiro lugar, & 0 laco que Benjamin estabelece ‘entre fracasso da “Erfahrung” eo fim da arte de contar, ou, dito de maneira inversa (mas nio explicitada em Benjamin), a idéia de que uma reconstrugdo da "Erfahrung” deveria ser ‘acompanhada de uma nova forma de narratividade. A uma experitncia e uma narratividade espontineas, oriundas de uma organizagio social comunitdria centrada no artesanato, (9) “Expetitcia", 193, adn W. Benjamin, A Oriana, Bringueda, Pace Sumas So F184, GW Maa Sobre @ Programs da Filsfia avi", in W. Beniamin, Gest Werke Ut, pe 187 ess, Suktkamp,Frenkfort/Mai, 1977 (5) "Esxpericia e Pobre, neste volume. 114 x. "O Nard”, neste ‘ue p 197 ss. tambon "Os Pensadore", ed. Abr Calta 1980, tad de Modasto Caron, p57 85, "Sobe suns Temas cm Baus”, mesmo wd (6) “Biasitgmatbomatsch mechankshorintetenErkenntnisbegif" ("Ue er das Programe "sop 18) (©) “Dari sol urcheus wich gents sin dacs die Erkanatn Gott, wot ser drchaus dase iar nd Late von fm allerest emis" em, 0 WALTER BENIAMIN ‘opor-se-iam, assim, formas “sintéticas” de experiéncia ¢ de jarratividade, como diz Benjamin referindo-se a Proust.” fru- tos de um trabalho de construcao empreendido justamente ‘por agueles que reconheceram a impossibilidade da exper via tradicional na sociedade moderna ¢ que se recusam a $e Contentar com a privaticidade da experiéncia vivida individual CErlebnis"). Este aspecto “construtivista”, essencial nas “te- 'ses" (“A historiografia marxista tem em sua base um principio construtive,’” Tese 17), deve ser destacado, para eviter que a teoria benjaminiana sobre a experiéncia seja reduzida sua. dimensio nostélgica e roméntica, dimensao essapresente, sem Givida, no grande ensaio sobre “O Narrador", mas niio exclu ‘Siva. Com efeito, se consideramos os diversos textos dessa épo- ta, e, mais particularmente, dois textos fregitentemente para~ Telos como “Experiéncia e Pobreza” e “O Narrador”, observa- mos que odiagnéstico de Benjamin sobre a perda da experién- tia ndo se altera, embora sua apreciagao varie. Idéntico diag- Indstico: a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque tle parte, fundamentalmente, da transmissio de uma expe- riéncia no sentido pleno, cujas condigdes de realizardo jé nao tristem na sociedade capitalista moderna. Quais sao essas con- digdes? Benjamin distingue, entre elas, trés principais: ‘a) a experiéncia transmitida pelo relato deve ser commun a0 narrador e ao ouvinte. Pressupde, portanto, wma communi Gade de vida e de discurso que o ripido desenvolvi imento do ‘capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A distancia en- tre os grupos humanos, particularmente entre as geragies, transformou-se hoje em abismo porque as condicées de vida mmudam em um ritmo demasiado rapido para a capacidade Jumana de assimilagao, Enquanto no passado 0 ancidio que se ‘aproximava da morte era o depositério privilegiado de wma caperiéncia que transmitia aos mais jovens, hoje ele no passa ‘de um velho cujo discurso & iniitil. 'B) Exse caréter de comunidade entre vida e palavra aptia~ se ele proprio na organizagao pré-capitalista do trabalho, em ‘special na atividade artesanal. O artesanato permite, devido ‘a seus ritmos lentos e organicos, em oposicio & rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu cariter totali- (8) “Sobre sigunstemasem Baudlale”, op. it. . 30(a radu ds “att Sciameste") MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA = zante, em oposigdo 00 carkter fragmentério do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentagao progressiva das di- versas experiéncias ¢ uma palavra unificadora. O rit ‘abet ecsmal os ncrecemsin tro mi plobal torr poonde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. Final- ‘mente, de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesto, que respeita a matéria que transforma, tém uma rela (0 profunda com a atividade narradora: jé que esta também & de certo modo, uma maneira de dar forma imensa maté- ria narrével, participando assim da ligagao secular entre a doe a voz, entre o gesto ea palavra. ©) Acomunidade da experiéncia funda a dimenso pri- tica da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiéncia, que seus ouvintes podem receber com roveito. Sapiéncia pritica, que muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma adverténcia, de um conselho, coisas com due, hae, no sabemos o que fener, de tao ioladas que xt ‘mos, cada um em seu mundo particular e privado. i scion rat aria por ‘ie de olrem, como interpretamos maltas vers, mas em fazer uma sugestao sobre a continuacao de uma histéria que aren sere ores ido narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum € vivo, jd que a histéria continua, que esté aberta a novas pro estas ao fazer unto. Quando esse fluo se esgota porque a ‘meméria e @ tradigao comuns jé ni existem, o individuo iso- ee ee ce meen alemio: “ratlos”), reencontra entao 0 seu duplo no her6i sol trio do romance, forma diferente de narragiio que Benjamin, ‘apés @ "Teoria do romance”, de Lukécs, analisa como forma ‘eracteristeadasoiedae birguesa moderna lepauperamento da arte de contar parte, dleclinio de uma trade © de una meméra eens igen rrantiam a existéncia de uma experiéncia coletiva, ligada a um trabalho e um tempo partihados, em um mesmo universo de pritica e de linguagem. A degradacao da “Erfahrung’” des creve 0 mesmo processo de fragmentagao e de secularizacéo que Benjamin, na mesma época, analisa como a “perda da ‘aura’ em seu ¢élebre ensaio sobre “A obra de arte na época de () "ONaerador,p- 200, a (WALTER BENIAMIN Completamente ausente em “A obra de arte...", malgrado a Gmbicdo “materialisia” deste titimo escrito: mas ele é, ‘mesmo tempo, reconhecido como um fato ineludivel que seria Jase querer negar, salvaguardando ideais estéticos que jd ‘nao tm qualquer raz historia real. Mais: 0 reconhecimento Mdeido da perda leva a que se lancem as bases de uma out aie cdiice: Benjamin cita © Bauhaus, 0 Cubismo, alte Patura de Dablin, 08 filmes de Chaplin, enumeragao — discu- cujo ponto comum éa busca de wma nova “Sachlichkeit"), em oposigio ao sentimenta- liane burgués que desejaria preservar a aparéncia de uma in~ mente condenadas su coe tm rebrane 2 pat Peper na a on a Saeco s de Benjamin, "6a da abertura. O leitor atento descobriré ‘teoria antecipada da obra aberta. ‘Na arrativa tradicional essa abertura se apéia na plenitude do sentido — e, portanto, em sua profusio ilimitada; em Um- berto Eco e, parece-me, também na doutrina aa da alegoria, a profusao do sentido, ou, antes, dos sentidos, eer drs de seu ndo-acabamentoexsncial. O Que me 1,28 ta nan en Raabe i, se amin Ctamate Scheer 1, p 127. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA » importa aqui é identificar esse movimento de abertura na pré- ‘Reia estrutura da narrativa tradicional. Movimento interno, representado na figura de Scheherazade, movimento infinito da meméria, notadamente popular. Memsria infinita cuja figura moderna e individual seré a imensa tentativa prous- tiana, tao decisiva para Benjamin. Cada hist6ria éo ensejo de uma nova histéria, que desencadeia uma outra, que traz uma ‘quarta, etc.; essa dindmica ilimitada da meméria é a da cons- tituicdo do relato; com cada texto chamando e suscitando ou- tros textos.” Mas também um segundo movimento, que, se esté inscrito na narracéo, aponta para mais além do texto, para.a atividade da leitura e da interpretado. Aqui Benjamin ita Herédoto," “pai da histbria” e pai de insimeras hist6rias, referéncia importante para nosso objetivo, jé que na figura de Herédoto enquanto protétipo do narrador tradicional, vemos também como a escritura da histbria esté enraizada na arte (eno prazer) de contar, como Paul Veyne, bem mais tarde, destacaria.* Ora, a forca do relato em Herbdoto é que ele sabe contar sem dar explicagbes definitivas, que ele deixa que ‘historia admita diversas interpretagdes diferentes, que, POr- tanto, ela permanece aberta, disponivel para usa continua- (edo de vida que dada leitura futura renova: “Herédoto nao explica nada." Seu relato & dés mais secos. Por isso essa hist6ria do antigo Egito ainda é eapaz, depois de ‘milénios, de suscitar espanto ereflexdo. Ela se assemelha a es- sss sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fe- ‘chadas hermeticamente nas cémaras das pirdmides e que con- servam até hoje suas forcas germinativas’ Notemos, aqui, que justamente aquilo que foi criticado muitas vezes em », a saber a auséncia de um esque- 12) Cl. Todoror, “Les hommensits, in Polio de ls Prove, Sell Pars 197. (13)'“ONarradr”,p.197 (1) Paul Vey, Comment on deri Risnre, Sei Pai, 17. AS) Trata-s a histia de Psammenites (er6dto, Enquée, TI, 14). Bes- Jamin contows a dvereos amigos © anotou us dress InterpetagSe, No com ‘letamente verdadero que "Herédoo no expllen mada" Relerese& propria exp fa de Peammenites sobre sue aitude. E verdade que Herédoto nko lores ne ‘hums explicasto por conte propia ‘0) “ONarruder"p. 204 “ WALTER BENJAMIN, ‘ma global de interpretagao ede explicaga0, como teremos, ‘or exemplo, em Tucidides,é. para Benjamin, ndo uma Je e fadados ao esquecimento. Testemunha-o esta defesa do cro- ‘nista contra o historiador cldssico: rons que narra os acontecimentos, em dtingur entre soon cquanos ovsem conta averdade de que nada Sees a neantecen pode ser considerado perdide Pare 8 tstoia™ Tese 3) Jamin, que, aqui, seque Lukécs,« questo, do sentido 26 pode emvolocar, paradoxalmente, a partir do momento em aie esse ‘sentido deixa de ser dado implicitamente ¢ imediatamente ‘pelo contexto social. Aquiles nao se questiona sobre o sentido Tia vida porque sua existéncia segue certas regras determin Gas, aceitas e reconhecidas por todos os seus companheiros ‘por ele proprio em primeiro lugar (em compensagao, ele se ‘Colocardé outras questBes, que, haje, no : por cxemplo a da morte gloriosa). O romance coloca em cena um therdi desorientado ("‘ratlos”), ¢ toda a acao se constitui como 1. O leitor do romance ‘sca asiduamente na letwra 9 id mao encontra na sociedade moderna: um sentido explt- ee re Checida. Por tso ele espera com impaciéncia pela MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA 15 do sentido traz a necessidade de concluir, de p6r um fim histéria. Enquanto a narrativa antiga se caracterizava por ua abertura, 0 romance eléssico, em sua necessidade de re- olver u questao do significado da existéncia, visa a conelusao. Essa oposieao, desenvolvida em “O Narrador”, é, entretanto, ‘recolocada em causa no romance contemporiineo, como 0 pré- prio Benjamin vai demonstrar em seus ensaios literdrios. Sele cionarei aqui dois exemplos privilegiados desse nao-acaba- ‘mento essencial, os de Proust e Kafka. ‘A influéncia de Proust sobre seu tradutor Benjamin é de tal ordem que este se vé obrigado, durante algum tempo, a renunciar @ sua leitura para nao cair em “uma dependéncia de drogado que impediria... sua prépria produgdo”."" Proust Trealiza, com feito, a proeza de reintroduzir 0 infinito nas li- mitacées da existéncia individual burguesa. Esse infinito, que ‘© comprimento da obra e da frase proustianas configura, in- terna-se na vida desse parisiense elegante pelos caminhos con- vergentes da meméria e da semethanca. A experiéncia vivida de Proust ("Erlebnis"), particular e privada, jé néo tem nada @ ver com a grande experiéncia coletiva (“Erfahrung”) que fundava a narrativa antiga. Mas 6 caréter desesperadamente Uinico da “Erlebnis” transforma-se dialeticamente em uma busca universal: 0 aprofundamento abissal na lembranga des- ‘poja-o de seu carter contingente e limitado que, em ui pri- ‘meiro momento, tornara-o possivel. “Pois um acontecimento vivido & finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ‘a0 passo que 0 acontecimento lembrado é sem limites, porque apenas uma chave para tudo 0 que veio antes e depois.”"” A grandeza das lembrangas proustianas nao vem de seu con- tetido, pois a bem da verdade a vida burguesa nunca é assim tao interessante. O golpe de génio de Proust esté em ndo ter escrito “memérias”, mas, justamente, uma “busca”, uma busca das analogias ¢ das semelhancas entre 0 passado e 0 presente, Proust ndo reencontra o passado em si — que talvez ‘fosse bastante insosso —, mas a presenca do passado no pre~ ‘sente e 0 presente que jd ésté 16, prefigurado no passado, ou ‘seja, uma semelhanca profunda, mais forte do que 0 tempo (17 Gita por Peter Scand, Sats and Gegersei, Sobrkamp, Franklut/ aie, 1976,p. 60. (GA Imagem de Prous”, nest lume p. 37. 6 WALTER BENUAMIN, rae: se esvai sern que possamos seguré-lo. A tarefa seem eel con ie le tecimentos, mas. "subtral-los ds contingéncias do tempo em 1a metéfora”.” ah. a “Sobre ceito de histéria” a luz aie» cms dein destas poucas observagies, poderemos observar senag mt ee Casco toe ide ae aemapeonoisecare ie ia ae eee pe See = pecan ‘assume uma forma nova, que poileria ter dep rerio Se ot ee ane eae ‘como sendo a realizagdo possivel dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, poelibeaa node a= perder ce el oe eer teeta conceito de semelhanca na filosofia de Benjamin oh. von Acknlichen”, “Doutrina do Semethante”). , ‘Se Proust personifica a forca salvadora da meine Ee errata gece: ee Kel fare i es tee ete camara aires en ee eee na auséncia de meméria e na deficiéneia do sentido. E dai que ‘vem, segundo Benjamin, sua extraordinéria ‘modernidade, ao ” 1. Em uma carta a Gershom Scho- lem, em que critica a interpretagéo que Max Brod faz de Kaf- aoe a ai. poe ots oe “foes tances toad pat Ae ‘Com isso a verdade é designada como um patriménio da tr ix (edo; éa verdade em sua consisténcia hagédica. . Esa comstncn da verdade que se pede. Kafe a sore en eeiea A dia, efervandovse a verdade, ou aquild que Somme fer oat co Se (19) Mare Proust le Rechorche du Tomps Per, ef. iad, vo HL, 8. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 0 dade. A verdadeira genialidade de Kafka foi ter experimen- ‘ado algo inteiramente novo: ele sacrifcou a verdade para ape- arsed sua transmissibilidade, ao seu elemento hagadico. (Os escritos de Kafka sao por sua propria natureza pars ‘bolas. Mas sua miséria e sua beleza 6 0 fato de terem precisado tornar-se mais do que pardbolas. Eles nao se colocam singela- ‘mente aos pls da doutrina, como a Hagada em relacdo d Hala cha. Depois de terem se deitado, erguem uma poderosa pata ‘contra ela.””” (Trad. manuserita de M. Carone com algumas ‘modificagées.) Nao é por acaso que Benjamin utiliza aqui categorias teoldgicas, justamente para criticar a interpretagio trivial- ‘mente teologizante de Max Brod. Na religido judaica a Ha- lacha é 0 texto sagrado da lei divina, palavra origindria e fun- damental, lembrada e reatualizada nos comentérios da Ha- sada. Ora, mesmo no discurso teoldgico que remete @ verdade primeira e essencial, oriunda do verbo divino, nesse paradig- ‘ma do discurso verdadeiro ocidental fundado em um sentido ‘49 mesmo tempo originério e iltimo, surge uma diivida: sob 0 ‘amontoado de comentérios, notas e glosas detaparece a pala- vra priméria. Nao que ela se tenha apagado, mas poder-se-ia dizer que ndo somos mais capazes de distingui-la das outras iniimeras palavras legadas pela tradiedo—como no contexto di- verso de “A obra de artena época de sua reprodutibilidade téc- ‘mica”'jé ndo sabemos distinguir 0 manuscrito originério /origi- nal da(s) c6pia(s). Ou ainda, como diz Benjamin, a “consistén- ia" da verdade foi submergida por sua transmissao: arrastada ‘or seu préprio movimeno, a tradig@o torna-se auténoma em relacio ao sentido inicial no qual, originalmente, tinka suas rraizes. Esse movimento é, profundamente, o da metéfora, que parte do sentido “literal” mas acaba abandonando-o e até, de transposicdo em transposicao, prescindindo dele. Assim, na bela imagem de Benjamin, as “pardbolas” (“Gleichnis") de Kafka, que no inicio esto deitadas docilmente, como peque- ‘nas feras mansas, aos pés da doutrina, acabam nao apenas tor~ nando-se independentes como derrubando.a Halacha com tun violento coice. Em lugar de se atrelarem a uma verdade pri- (20) W. Benjamin, rife, Subrkamp, raskfort/Malo, 1965, yl th. 763. 18 WALTER BENJAMIN meira, cada vez mais distante e fugaz, Kafka se concentra em tum comentério perpétuo, criando uma figura de discurso ris fico cujo niieleo de iluminagao esté ausente. Discurso infini- jamente aberto sobre outros comentérios, sobre outros textos (que jd no remetem a um texto sagrado. Poderiamos arriscar humor, ouseja, com uma dose de jov (que nao temos nenhuma mensagem definitiva para transmi fin, que néo existe mais uma totalidade de sentidos, mas $0- monte trechos de historias e de sonhos. Fragmentos esparsos (que falam do firn da identidade do sujeito e da univocidade da palavra, indubitavelmente uma ameaca de destruigao, mas vambém —-e ao mesmo tempo — esperanca e possibilidade de ‘novas significacées. A imagem do pai em seu leito de morte, crocada por Benjamin no inicio de seu ensaio “Experiéncia Pobreza” que lega aos filhos uma experiéncia certa ¢ imuté- vel, corresponde 0 ‘moribundo de “A muralha da China”, um conto de Kafka de que Benjamin gostava espe Gialmente.”” Se lembramos que 0 signo do imperador, 0 sol Gesenhado sobre 0 peito do mensageiro, é, desde Platio, 0 Simbolo do Absoluto, temos de reconhecer como ¢ irreversivel b deslocamento que nos distancia dessa imagem de verdade e “ie palavra, deslocamento que o romance de Kafka, em uma ‘espécie de vertigem controlada, conta-nos suavemente: “0 imperador — assim dizem — enviow a ti, sido solitirio ¢ eaesel sombra infima ante o sol imperial, refugiada na vrais remota distancia, justamente a tio imperador enviow, do Tavras. E-diante da turba reunida para assistir @ sua morte — ‘Navlum derrubado todas as paredes impeditivas, enaescadaria (20) ers, p-T64. ae ai cele, “Franz Kath, Baim Bau der Chinesichen Maver” Gen Sen Hip 6b oe Enann ge, nflizente, no const dete vlan [MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA » Io tir ca ete oe ga Pe ee Fearn ee ee ome ees fncansivel. Estendendo ora um brago, ora outro, abre passa- eee eo ae ae on Se eee "Mas @ multidao € enorme: suas moradas nao tém fim. ‘Fosse livre 0 terreno, como voaria, breve ouvirias na porta 0 pais meal, de seu punho. Mas, ao contrério, esforca-se ener erie eee eee ile spiecrasee Smale nae Rca ieee eae dos rin 0 undo plc ceendat: «noumeni ee eee ee fe aS ee een eles ee enero lemma mpegs ‘muito menos com @ mensagem bn cere eran eeme manera) anoite cai."® (Trad. de Lucia Nagib.) se = Jeanne Marie Gagnebin iy wile cde acreeetene en on oem “hn a ee a ran es ne as ee O surrealismo O iltimo instantineo da inteligéncia européia (© crttico pore instatar as ‘corrontis eopirtaly uit fespécie de usina geradora quando elas atingem um declive su- sntemente ingreme. No caso do surrealismo, esse declive ‘eorresponde a diferenga de nivel entre a Franga e a Alemanha. ‘© movimento que brotou na Franca, em 1919, entre alguns intelectuais (citemos de imediato os mais importantes: André Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault, Robert Desnos, Paul Eluard), pode ter sido um estreito riacho, alimentado, elo timido tédio da Europa de apés-guerra e pelos iiltimos regatos da decadéncia francesa. Mas os eruditos que ainda hoje sto incapazes de determinar “‘as origens auténticas” do ‘movimento e limitam-se a dizer que a respeitével opinido pti- blica esta sendo mais uma vez mistificada por uma clique de literaios, parecem-se um pouco com uma junta de téenicos ‘que, depois de muito observarem uma fonte, chegam con- viegtio de que © cérrego nio poderé jamais impulsionar tur- binas. © observador alemio nao esta situado na fonte. E sua ‘oporlunidade. Ele esta situado no vale. E capaz de avaliar as ‘energias do movimento. Para ele, que como alemiao est fami- liarizado com a crise de inteligéncia, ov melhor, do conceito humanista de liberdade, que sabe ter essa crise despertado uma vontade frenética de ultrapassar o estigio das eternas ddiscussies ¢ chegar a todo prego a uma decisfo, e que experi- ‘mentou na prépria carne sua perigosa vulnerabilidade a fron- di anarquista e & disciplina revolucionaria, nao haveria ne- 2 Wate RENAMIS nhuma desculpa se considerasse esse movimento como “arts- aaa epoetico”. E possiel que tena sido assim no 6 so Bap entanto, desde o info Breton declarou sua von- {ade de romper com uma prética que entrega ao piblico os ta tc adon iterdros de urna certa forma de existéncia, sem ‘revelar essa forma. Numa formulag4o mais concisa ¢ ms ie eat Stumiaio da Hteratura fo explodido de dentro, 24 me- (ids cinque um grupo homogéneo de homens levou a “vida sits cate os limites extremos do possivel Podemos tomé- fos 20 pé da letra, quando afirmam que a Saison en enfer, {de Rimbaud, nao term mais segredos para eles. Pois esse livro é de falo o texto original do movimento, pelo menos no que diz: respeito ao periodo recente, j4 que ‘hf precursores mais se TeaPsgue sero mencionados a Seguir. Para exprimiro ue et fem jogo, nfo hé comentirio mais cortante e mais definits cto por Rimbaud a margem do seu proprio exemplar da Saison, ra WALTER BENIAMIE quando niio havia mais verdadeiros inimigos. Foram déceis aos apetites da burguesia, que desejava ansiosamente a “des- truigdo do Ocidente” como um colegial que apaga com um borrdo de tinta uma questiio mal respondida, ¢ difundiam a destruicao, pregavam a destruigéo, da qual haviam escapado. Nao thes foi dado em nenhum momento olhar de frente o que fora perdido, e limitaram-se a seguré-lo com todas as forcas, convalsivamente. Do prinefpio ao fim, lutaram amargamente ‘contra a razao. Deixaram passar a grande oportunidade dos vencidos, a de transpor a luta para uma outra esfera, como 0s russos, até que © momento j4 houvesse passado e 0s povos fivessem novamente se transformado em parceiros de tratados comerciais. “A guerra hoje em dia nao € mais condusida, © sim administrada”, diz. um dos autores, queixosamente, Esse certo seria corrigido no apés-guerra alemfo. Esse apés-guerra foi ao mesmo tempo um protesto contra tudo 0 que acontecera antes ¢ contra os civis, cujo selo era visto em toda parte. Antes de mais nada, a guerra tinha que ser privada do seu odioso elemento racional. E, de fato, esses homens se banhavam nos ‘vapores que emanavam das mandibulas do Lobo Fenris. Mas ndo puderam suportar a comparaciio entre esses vapores © 05 das granadas de mostarda. Sobre o pano de fundo do servico militar nas casernas e das familias empobrecidas nos bairros populares, o faseinio protogermanico pelo destino recebeu um clardo de coisas putrefatas. E, mesmo sem analisar materialis- ticamente esse fascinio, a intuiglo nfio-contaminada de um espirito livre, culto e verdadeiramente dialético, como 0 de Florens Christian Rang, cuja vida contém mais “germani- dade" que todo esse exército de desesperadas, conseguiu en- frenté-lo com frases definitivas. “Os deménios da crenca no destino, para a qual a virtude humana é va. — A noite escura de um desafio, que consome num ineéndio divino, universal, o ‘que foi conquistado pelos poderes da luz... a aparente vontade senhorial contida nessa idealizaco da morte nos campos de batalha, que destréi friamente a vida, trocando-a pela idéia — ‘essa noite grivida de nuvens, que hi milénios nos recobrem e ‘que para iluminar nosso caminho acende, em vez de estrelas, relampagos ensurdecedores, confusos, depois dos quais a noite fica mais escura ¢ asfixiante: essa cruel concepcao do mundo, da morte universal, ¢ nfo da vida universal, que no idealismo alemdo alivia o horror com a idéia de que atrés das, MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA o nuvens existe um eu estrelado — essa orientagio fundamen- tal do espfrito alemfo é profundamente desprovida de von- tade, diz coisas que nflo pensa, 6 um rastejar, um acovardar- se, um desejo de no saber, de no viver e de nfo morrer Pois é essa a dibia atitude alema com relagao a vida: poder jogi-la fora, quando ela nao custa nada, num momento de ‘embriaguez, num gesto que ao mesmo tempo assegura o sus- tento dos que fiearam ¢ aureola a vitima com uma gloria ilu- séria."" Porém, quando se Ié no mesmo contexto: “Duzentos oficiais, dispostos a sacrificar sua vida, teriam bastado para reprimir a Revoluco, em Berlim e outras cidades — mas nto aparece nenhum. Em teoria, muitos deles gostariam de ter salvo algumas vidas, mas na realidade nenhum 0 desejou a ponto de dar o exemplo, de transformar-se em lider, ou de agir sozinho. Preferiram deixar que thes arrancassem as dra gonas, na rua”, nlionos pode passar despercebida a afinidade entre essas palavras e as dos discipulos de Jiinger. O que & certo é que quem escreveu esse texto conhecia por sua propria experiéncia as atitudes e tradigdes desses autores. E talvez partithasse sua hostilidade contra o materialismo até 0 ponto ‘em que ela criou a linguagem da batatha de material. ‘Quando no inicio da guerra o idealismo foi entregue pelo Estado e pelo governo como uma mereadoria, as tropas ti veram cada vez mais necessidade de requisitar esse material. Seu heroismo se tornou cada vez mais sinistro, mortal, cin- zento como. ago, e cada vez, mais longinqua e nebulosa ficava ‘aesfera da qual acenavam a gloria e 0 ideal, ao mesmo tempo ‘que se tornava cada vez. mais rigida a conduta dos que se sen- tiam menos como tropas da guerra mundial que como execu- tores do apés-guerra. “Conduta” — em tudo 0 que dizem, esse termo aparece de trés em trés palavras. Ninguém negaria «que os soldados também tém uma conduta, Mas a linguagem 6 uma pedra de toque para a conduta de cada um de nés, ¢ ‘no somente, como muitas vezes Se supe, para a conduta de ‘quem esereve. A conduta dos que se juntaram nesse livro nlio passa esta prova. Imitando os diletantes aristocréticas do sé- culo XVI, Jnger pode dizer que a lifiguagem alema € uma inguagem primordial — a maneira como essa idéia é expressa contém um acréscimo implicito, 0 de que, como tal, ela com- Porta uma invenefvel desconfianca com relacdo a eivilizago € a0 mundo moral. Mas como pode essa desconfianga com- « WALTER BENIAMIN parar-se com a dos seus compatriotas, quando # guerra thes & apresentada como uma “‘poderosa revisora”, que “sente (© pulso do tempo”, quando eles so proibides de “rejeitar uma conclustio comprovada’, ou obrigados a agucar seu olhar ‘para que possam ver as ‘‘ruinas”” atrés do “verniz incandes- cente'"? No entanto 0 que é mais vexatério que todos esses insultos @ inteligéncia, nesse edificio intelectual supostamente ciclépico, éa fécil loquacidade da forma, “‘ornando” cada um dos artigos, e mais penosa ainda, a mediocridade do con- teGdo. "Os mortos de guerra”, dizem-nos os autores, ‘a0 tombarem passaram de uma realidade imperfeita a uma reali dade perfeita, da Alemanha temporal 4 Alemanha eterné Conhecemos @ Alemanha temporal, mas a eterna estaria em ‘aus lengéis se tivéssemos que retrati-la a partir dos depoi- ‘mentos agui prestados com tanta volubilidade. Com que faci lidade os autores adquiriram “o firme sentimento de imortali dade”, obtiveram a certeza de que “as abominagies da dltima ‘guerra foram transformadas em algo de grandioso e terrivel”, perceberam o simbolismo do “'sangue fervendo para dentro"! No méximo, eles lutaram na guerra, que agora celebram. Mas no podemes aceitar que alguém fale da guerra sem conhecer foutra coisa que a guerra. Temos 0 direito de perguntar, ra- dicais & nossa moda: De onde vém vooés? E 0 que sabem da paz? Alguma vez encontraram a pax numa crianga, numa Srvore, num animal, como encontraram um posto avangado ‘num campo de batalha? E sem esperar a resposta, dirfamos: Nao! Nao que voces nio fossem capazes, nesse caso, de ce- lebrar a guerra, e mesmo mais apaixonadamente do que hoje. Porém niio seriam capazes de celebrar a guerra como o fazem agora. Como teria sido o depoimento de Fortinbras sobre a guerra? Podemos deduzir seu testemunho a partir da técnica de Shakespeare. Assim como ele revela 0 amor de Romeu por Julieta, em todo o fulgor da sua paixio, através do artificio de ‘mostrar um Romeu ja anteriormente apaixonado, apaixonado por Rosalinda, assim também Fortinbras teria.comegado com ‘um louyor da paz, uma apologia tito sedutora, tio melodiosa- mente suave, que cada um dos seus ouvintes se perguntaria, assim que ele elevasse sua voz para defender a guerra: que foreas poderosas © desconhecidas so essas que levam esse homem to completamente impregnado pelas alegrias da paz 4 propor a guerra? Nio ha nada disso no livro. A palavra foi [MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ° dada a bucaneiros profissionais. Seu horizonte é flamejante, mas estreito. ‘Que véem eles nessas chamas? Eles véem — e nisso po- demos confiar em E. G. Kinger — uma metamorfose. “Linhas de decisio psiquica atravessam a guerra; & transformacao da guerra corresponde uma transformagao do combatente. Ela se torna visivel quando comparamos os rostos leves, impetuosos, entusidsticos dos soldados de agosto de 1914 com as fisio- nomias mortalmente cansadas, implacavelmente tensas, es- ‘quilidas, dos participantes da guerra de material, de 1918. Levadas ‘is tiltimas conseqiiéncias, essa guerra finalmente chegou a seu termo, ¢ dela emergem esses rostos inesquecivei formados e movides por poderosas convulsdes espirituais, percorrida uma via erucis das quais cada etapa e cada batalha € como se fosse 0 hierdglifo de um violento ¢ infindével tra- batho de destruigao. Aqui aparece aquele tipo de soldado constituido pelas duras, sombrias, sangrentas e incessantes batalhas de material. Esse tipo se caracteriza pela dureza nervosa do combatente nato, pela expresso da responsabili- dade solitiria, pelo isolamento das suas almas. Nessa Iuta, ‘que prosseguia em camadas cada vez mais profundas, sua autoridade se preservou. O caminho percorrido era estreito © perigoso, mas era um caminho que conduzia ao futuro.” Quando encontramos nessas paginas formulacdes exatas acentos genuinos, explicagdes plausiveis, € porque se deu enfim algum contato com a realidade, essa mesma realidade ‘que, segundo Ernst Jinger, € a da mobilizacio total ¢, se- gundo Ernst von Salomon, corresponde a paisagem do front. ‘Um publicista liberal, que ha pouco tempo tentou caracterizar esse novo nacionalismo com a formula “herofsmo por tédio", niio foi, visivelmente, ao fundo da questio. O tipo de soldado acima descrito € real, 6 uma testemunha que sobreviveu & grande guerra, e foi de fato a paisagem do front, sua verda- deira pfitria, que ele defendeu no apés-guerra. Essa paisagem merece um exame mais prolongado. Precisamos dizé-lo, com toda a amargura: com a mobil zagdo total da paisagem, o sentimento alemAo pela natureza experimentou uma intensificagio inesperada. Os génios da paz, que a habitavam tio sensoriamente, foram evacuados, e Ho longe quanto nosso olhar podia ir além dos cemitérios, toda a regio circundante tinha se transformado em terreno = 7 (WALTER BENIAMINE do idealismo alemio, cada cratera produzida pela explosio de ‘uma granada se convertera num problema, cada emaranhado de arame construido para deter a progressio do inimigo se convertera numa antinomia, cada farpa de ferro se convertera numa definicio, cada explosio se convertera numa tese, com © céu, durante o dia, representando o forro cbsmico do capa- ete de aco e, de noite, a lei moral sobre nés. Com lanca- chamase trincheiras, a técnica tentou realgar os tragas herdicos. zo rosto do idealismo alemfo. Foi um equivoco. Porque 0s ‘rages que ela julgava serem herdicos eram na verdade tragos hipoeriticos, os tragos da morte. Por isso, profundamente impregnada por sua propria perversidade, a técnica modelou © rosto apocalfptico da natureza e reduziu-a ao siléncio, em- bora pudesse ter sido a forga capaz de dar-the uma vor. A guerra como abstrago metafisica, professada pelo novo na- cionalismo, € unicamente a tentativa de dissolver na técnica, de modo mistico e imediato, o segredo de uma natureza con- cebida em termos idealistas, em vez de utilizar e explicar esse segredo, por um desvio, através da construgao de coisas hu- manas. Na cabeca desses homens, 0 “destino” ¢ 0 “heroismo”” se relacionam como Gog ¢ Magog, ¢ suas vitimas no sto apenas os filhos dos homens, mas os filhos das idéias. Tudo o ‘que foi pensado de puro, de sobrio e de ingénuo sobre o me- thoramento da convivéncia humana entra nas goclas desses {dolos canibais, que reagem a esse festim com 0s arrotos dos seus morteiros de 42.cm. Algumas vezes os autores encontram, uma certa dificuldade em conciliar o herofsmo com a guerra de material. Mas nem todos sentem essa dificuldade, e nada é mais comprometedor que as digressdes lamuriantes com que ‘exprimem sua decepgio sobre a “forma da guerra”, a “guerra de material, cegamente mecdnica”, da qual os espiritos mais, nobres estavam “visivelmente cansados". Os poucos que ten- tam ver as coisas como elas stio mostram claramente como o conceito do hersico se transformou imperceptivelmente, ¢ até ‘que ponto as virtudes da dureza, da taciturnidade, da impla- cabilidade, por cles celebradas, no sfo tanto as virtudes da guerra, como as da luta de classes. O que se forjou aqui, a Principio sob a mascara do voluntério, na guerra mundial, e depois sob a do mercenirio, no apés-guerra, foi na verdade ‘um competente militante fascista na luta de classes, e 0 que os ‘autores entendem por nagdo, uma classe senhorial apoiada [MAGIA B TECNICA, AICTE E POLITICA a nesses individuos, que nfo é responsével perante ninguém € ‘muito menos perante si mesma, ¢ instalada num trono excel 0, tem em sua fisionomia os tragos de esfinge do produtor, que corre o risco de ser o tinico consumidor das suas merca- dorias. A naco dos fascistas, com seu rosto de esfinge, cons- titui-se num novo mistério da natureza, de carter econémico, a0 lado do antigo, que, longe de se iluminar com a luz da técnica, revela agora os Seus tragos fisiondmicos mais ameaca- dores. No paralelogramo de forgas constituido pela natureza € pela naclo, a diagonal éa guerra. E compreensfvel que para os melhores e mais refletides desses autores se coloque a questio do “controle da guerra pelo Estado”. Pois, nessa teoria mistica da guerra, o Estado desempenha naturalmente um papel importante. A palavra “controle” niio € concebida, é claro, num sentido pacifista. AO contrario, exige-se do Estado que desde ja ele se adapte, em sua propria estrutura e em seu comportamento, ¢ delas se mostre digno, Aquelas forcas mfgicas que ele precisa mobi- lizar durante a guerra. De outro modo, ele no conseguiria colocar a guerra a servigo dos seus fins. © pensamento autd- homo desses autores comeca com a verificagdo do fracasso do Estado no que diz respeito a guetra. As formagées surgidas no apés-guerra, hibridas entre confrarias religiosas e agéncias regulares do poder pablico, consolidaram-se rapidamente em ‘bandos independentes e devinculados do Estado, ¢ os mag- natas financeiros da inflaglio, comeyando a por em divida a competéncia do Estado eomo protetor dos seus bens, sou- beram apreciar a sett devido valor as ofertas desses bandos, sempre dispontveis, como arroz e nabos, gragas & intermedia~ ‘go de instncias privadas ou do exército. O livro aqui exami- nado assemelha-se ao prospecto de propaganda, ideologica- mente formulado, de um novo tipo de mercenérios, ov antes, de condottieri. Um dos seus autores explica com grande can- dura: “O bravo soldado da guerra dos Trinta Anos vendia.. seu corpo e sua vida, o que é muito mais nobre do que vender talento e opinides". Mas, quando o autor prossegue, afir- mando que 0 novo mercenirio do apés-guerra nao se vende, ‘mas se df, essa afirmago deve ser compreendida, segundo & Iégica da frase anterior, no sentido de que seu soldo é relati- vamente mais compensador. Um soldo que deve ter seduzido cesses guerreiros tanto quanto a novidade técnica do trabalho: | ee n (WALTER HENIAMIN. cengenheiros da guerra, a servico da classe dominante, eles sio a contrapartida dos dirigentes da CUT. Sabe Deus que sua lideranca deve ser levada a sério, que sua ameaca nada tem de risivel. No piloto de um ‘inico avito carregado com bombas de ‘24s concentram-se todos os poderes — o de privar o cidadao da luz, do ar e da vida — que na paz. esto divididos entre milhares de chefes de escritério, O modesto lancador de bom= bas, na solidao das alturas, sozinho consigo e com seu Deus, tem uma procuragio do seu superior, o Estado, gravemente enfermo, € nenhuma vegetago volta a crescer onde ele poe a sua assinatura, Esse é 0 modelo do lider “imperial”, sonhado pelos autores. ‘A Alemanha no pode aspirar a nenhum futuro antes de destruir os tragos de medusa da figura que vem ao seu en- contro. Destrui-los? Talvez, apenas torni-los menos rigidos. Isso n&o significa agir pela exortacdo e pelo amor, que nao ‘cabem aqui, nem preparar o caminho para os argumentadores € para os especialistas da persuasfio. Signifiea, sim, dirigir Was as luzes da linguagem e da razsio para iluminar aquela ivéncia primordial”, de cuja surda escuridio a mistica da morte universal rasteja, com suas mil patas repugnantes, em direcao a luz do dia. A guerra que esse clarao ilumina nao é hem a “eterna”, que os novos alemdes invocam, nem a “l- tina’, com que se entusiasmam os pacifistas. Na realidade, & apenas isto: a Gnica, terrivel e derradeira oportunidade de corrigir a incapacidade dos povos para ordenar suas relagies miituas segundo o modelo das suas relagdes com a natureza, através da técnica. Se o corretivo falhar, milhoes de corpos humanos serao despedagados pelo gis e pelo ago — porque eles 0 sero, inevitavelmente — e nem mesmo os habitués dos assustadores poderes cténicos, que guardam seu Klages em mochilas de campanha, viverao um décimo do que € prome- tido pela natureza a seus filhos menos curiosos e mais sen- Ssatos, que niio manejam a técnica como um fetiche do holo- causto, mas como uma chave para a felicidade. Estes dario ‘uma prova de sua sensatez. quando se recusarem a ver na pro- xima guerra um episddio magico e quando descobrirem nela a imagem do cotidiano; e, com essa descoberta, estarao prontos a transformé-la em guerra civil: magica marxista, a nica A altura de desfazer esse sinistro feitigo da guerra, 1930 Melancolia de esquerda A propésito do novo livro de poemas de Erich Kiistner* OB poemas de Kastner esto reunidos hoje em ts im- rponentes volumes. Mas quem pretende investigar as earacte- Fsticas dessas estrofes deveria de preferéncia Ié-as em seu for- mato original. Em livros, elas parecem comprimidas © um poueo sufocadas, ao pass0 que nos jornas deslizam como pei- xes na igua. Se essa agua nem sempre é das mais puras € ‘muitos detritos nela flutuam, tanto melhor para o autor, cujos peixes poétices podem assim desenvolver-se mais © engordar com maior facilidade. A popularidade desses poemas esta ligada & ascensto de uma camada social que se apoderou sem qualquer disfarce de suas pesigdes de poder econémico © que, como nenhuma ‘outra, se orgulha do carster explicto © nio-dissimulado de sua fisionomia cconémica. Nio que essa camada, quesomente visave e reconhecia o sucesso, houvesse conquistado as posi- (bes mais fortes. Seu ideal era para isso excessivamente asms- fico. B a camada dos agentes sem filhos, que prosperam pariir de um comeco insignificante € que, 20 contrério dos Iagnatas das finaneas, que durante décadas trabalham para sua familia, trebatham apenas para si mesmes, © mesmo assim noma perspectiva a curto prazo. Quem no os conkece, ‘com seus altos de bebé atris dos Sculos.com aros de tarta- 10) Kester sich. Hin Mann gibt Aushunf Staten, Bevis, Deulsee Ver tage Anat, 1930-1129. ” WALTER BENIANIN ruga, suas bochechas grandes e esbranquicadas, sua voz ar- rastada, o fatalismo dos seus gestos e da sua maneira de pen- sar? E para essa camada, desde 0 principio, que 0 poeta tem algo a dizer, € ela que 0 autor lisonjeia, nao mostrando-lhe um espelho, mas correndo com.o espelho atras dela, desde seu despertar até a hora em que ela se recothe para dormir. Os intervalos entre suas estrofes correspondem as dobras no pes- coco desses individuos, as rimas correspondem a seus labios polpudos, as cesuras eorrespondem as covinhas do seu rosto, as chaves de ouro as pupilas dos seus othos. A tematica ¢ a eficicia de Kastner se limitam a essa camada, pois o autor é ‘a0 impotente para atingir, com seus acentos rebeldes, 0s des- possufdes, quanto, com sua ironia, os industriais. Isso por- gue, apesar das aparéncias, essa lirica zela sobretudo pelos interesses estamentais dos estratos médios — os agentes, 05 jornalistas, os diretores de pessoal. O proprio édio que ela proclama contra a pequena burguesia tem um aspecto pe- ‘queno-burgués de intimidade excessiva. Por outro lado, ela perde visivelmente seu poder de fogo quando dirige sua arti- Iharia contra a grande burguesia, e no final trai sua nostalgia do mecenas: “Oh, se existissem apenas doze homens sibios, com muito dinheiro!”. Nio admira que Kistner, a0 ajustar ‘contas com os banqueiros em um “Hino”, se revele tio fami- liar como econdmico, hipécrita num e noutro caso, quando descreve, sob o titulo “A male faz seu balanco”, os pensamen- tos noturnos de uma mulher proletéria. Em Gltima anilise, 0 lar ¢ 0 rendimento sio as rédeas com as quais o poeta relu- tante € mantido sob controle por uma classe mais abastada. Esse poeta 6 um insatisfeito um melancélico. Mas sua melancolia deriva da rotina. Pois estar sujeito rotina signi- fica sacrificar suas idiossincrasias ¢ abrir mio da capacidade de sentir nojo. Isso torna as pessoas melancélicas. E 0 que d& ‘aesse caso alguma semelhanca com 0 de Heine. Impregnadas de rotina sto as observagbes com que Kastner entalha os seus poemas, para dar as suas bolas infantis envernizadas 0 as- pecto de bolas de rigbi. E nada mais rotinizado que a sua ironia, semelhante a um fermento de confeiteiro que faz cres- ‘cer a massa das suas opinides particulares. O que é lamentavel & que sua impertinéncia seja to desproporcional as forcas ideolégicas e politicas de que ele dispde. A grotesca subesti- macho do adversirio, que esta na raiz das suas provocagies, MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ® ‘mostra até que ponto a posi¢io ocupada por essa inteligéncia radical de esquerda est de antemio perdida. Essa inteligén- cia tem pouco a ver com o movimento operiirio. Como sintoma de desagregagao burguesa, ela é a contrapartida da mimica feudal, que o Império admirou no tenente de reserva. Os pu- blicistas radicais de esquerda, do género de um Kastner, Mehring ou Tucholsky, so a mimica proletiria da burguesia decadente. Sua funcio politica é gerar cliques, ¢ néo partidos, sua fungao literaria 6 gerar modas, e nfio escolas, sua fungi0 econémica € gerar intermedisrios, e no produtores. Nos dilti- ‘mos quinze anos, essa inteligéncia de esquerda tem sido inin- terruptamente agente de todas as conjunturas intelectuais, do ‘tivismo ao expressionismo e 4 “Nova Objetividade”. Mas sua significago politica se esgotou na conversiio de reflexos revo- lucionitrios (na medida em que eles afloravam na burguesia) em objetos de distraglo, de divertimento, rapidamente canali- zados para o consumo. Foi assim que 0 ativismo conseguiu dar & didlética revo- luciondria « face indefinida, numa perspectiva de classe, do senso comum. Num certo sentido, foi uma liquidagao de esto- ‘ques na grande loja da inteligéncia. O expressionismo expos ‘em papier maché o gesto revoluciondtio, brago em riste, o pu nnho cerrado. Concluida essa campanha publicitéria, a ‘nova ‘objetividade™, da qual derivam os poemas de Kistner, proce- deu a0 inventério. O que encontra a “elite intelectual”, a0 confrontar-se com esse inventirio dos seus sentimentos? Esses mesmos sentimentos? Eles jé foram vendidos, a pregos de oca~ sitio. Ficaram apenas 0s lugares vazios, em empocirados cora- ‘e0es de veludo, em que outrora estiveram guardados tais sen- timentos — a natureza e 0 amor, o entusiasmo ¢ a humani- dade. Hoje as pessoas afagam essas formas ocas, com um ges- to distraido. Uma sapiente ironia acredita ser mais rica pos- suindo esses chavées que, possuindo as proprias coisas, faz despesas extravagantes com sua pobreza ¢ transforma numa festa essa vacuidade abissal. O “‘novo” nessa “objetividade” 6 que ela se orgulha tanto com os vestigios dos antigos bens espirituais quanto o bungués com os vestigios dos seus bens materiais. Nunca ninguém se acomodou tio confortavelmente uma situagdo to inconfortivel. Em suma, esse radicalismo de esquerda é uma atitude & qual nfio corresponde mais nenhuma ago politica. Ele no 16 WALTER BENJAMIN esté A esquerda de uma ou outra corrente, mas simplesmente Aesquerda do possivel. Porque desde o inicio nao tem outra ‘coisa em mente senvio sua autofruigdo, num estado de repouso negativista, Transformar a luta politica de vontade de decisio ‘em objeto de prazer, de meio de produgio em bem de con- sumo — 6 esteo artigo de maior sucesso vendido por essa litera~ tura. Kastner, que tem um grande talento nesse eampo, domi- nna magistralmente todos os seus recursos. Em primeiro plano vemos uma atitude, que se manifesta no titulo de muitos dos seus poemas. Encontramos uma “Elegia com ah!”, uma “Can- ‘cao de Natal quimicamente purificada”, um “Suicidio no ba- iho familiar”, um “Destino de um negro estilizado”. Por ‘que essas contorgdes léxicas? Porque acriticae o conhecimento esto & espreita de uma oportunidade para intervir; mas eles sio estraga-prazeres e nlio devem a nenhum prego tomar a Palavra. Por isso, © poeta os amordaca, ¢ suas convulsdes desesperadas so como as de um contorcionista, para alegria de um pablico numeroso e de gosto problemitico. Em Mor- ‘genstern, a idiotice era apenas 0 reverso de uma fuga em dire- ‘¢402 teosofia, O nifllismo de Kastner no oculta nada, do mes- mo modo «ue uma boca que nao se pode fechar, devido aos bocejos. ‘Desde muito cedo os poetas travaram conhecimento com ‘essa Singular variedade do desespero: a estupidez torturada. Em sua maioria, a literatura verdadeiramente politica das dl- timas décadas se antecipou as coisas, como um arauto precur- sor. Foi em 1912 e 1913 que os poemas de Georg Heym ante- ciparam, em espantosas, descrigées de grupos nunca antes mostrados — 0s suicidas, os prisioneiros, os doentes, os mari- tnheiros e os Ioucos —, as condigdes entao inconcebiveis das massas, que s6 se tornaram pablicas em agosto de 1914. Em seus versos, a terra se preparava para ser inundada pelo di- vio vermetho. E, muito antes que 0 marco-ouro emergisse ‘como o monte Ararat, tinica clevagzio na superficie das dguas, cocupada até 0 tiltimo milimetro pelos sibaritas e aproveitado- res, j4 Alfred Lichtenstein, morto nos primeiros dias de guer- tra, mostrara aquelas figuras tristes e intumescidas que Kast- ner transformou em estere6tipos. O que distingue o burgués, nessa versio primitiva e pré-expressionista, do posterior, pés- ‘expressionista, 6 sua excentricidade. Nao foi por acaso que Lichtenstein dedicou um dos seus poemas a um palhaco. O histrionismo do desespero ainda adere aos ossos desses bur- gueses. Eles ainda néo extrairam de si mesmos o elemento MAGIA E TECNICA, ARTE POLITICA ” excéntrico para converté-lo em objeto de diversao urbana. Nao estio ainda inteiramente saturades, nao se transformaram to Tadicalmente em intermediérios a ponto de perderem toda so- lidariedade, por difusa que fosse, com uma mercadoria para a qual uma crise de mercados j4 se desenhava no horizonte. Nes- se momento, veioa paz — crise de mereados da mercadoria hu- mana, que conhecemos sob o nome de desemprego. O suicidio, como Lichtenstein o divulga em seus poomas, € uma forma de ‘dumping, decolocagao dessa mercadoria na praga a precos vis. ‘As estrofes de Kistner esqueceram tudo isso. Seu ritmo obe- dece rigorosamente as partituras usadas pelos pobres milions- rios para trombetear sua afligao. Elas se dirigem a tristeza dos saturados, que no podem aplicar inteiramente o seu dinheiro Dara alimentar seu estdmago. Estupidez torturada: € a sltima metantorfose da melancolia, em sua historia de dois mil anos. Os poemas de Kastner pertencem As pessoas de alta renda, esses fantoches tristes e canhestros, cujo caminho passa pelo meio dos cadaveres. Com a solidez de sua blindagem, a lenti- dao de seus movimentos, a cegueira de suas acdes, esses indivi- diuos sto o ponto de encontro que otanave e o percevejo marca- Tam no homem, Esses poemas fervitham com tais individuos, comoum caféna city, depois do fechamento da bolsa. Nao ad- mira que sua fungdo seja a de reconciliar esse tipo consigo mes- mo, produzindo a identidade entre vida profissional e vida pri- vada que essas pessoas chamam de humanidade, mas que € de {ato bestia, pordue, nas condigoes atuais, a verdadeira huma- nidade s6 pode consistir na tensfo entre os dois pélos. Nessa Polaridade se locaizam a reflexao e a aglo. Produzila é a ta- refa que qualquer lirica politica, e sua realizag&o mais rigo- rosa se encontra, hoje, na poesia de Brecht. Em Kastner, ela Cede Iigar & arrogance ao fatalismo. E 0 iatalismo dos que esto mais longe do processo produtivo, ¢ cuja furtiva atitude de cortejar a conjuntura é comparvel & atitude do homem que se dedica inteiramente a investigar os misteriosos capri- chos da sua digestao. E certo que os movimentos viscerais hnessesversos tém mais de gasoso que de s6lido. A melancolia a obstrugao intestinal sempre estiveram associadas. Mas, desde que tio corpo social os sucos gastricos deixaram de fun- ‘ionar, um ar sufocante nos persegtc. Os pocmas de Kastner em nada contribuem para purificar o ambiente. 1930 Que é 0 teatro épico? Um estudo sobre Brecht* One esti acontecendo, hoje, com o teatro? Essa per- gunta pode ser melhor respondida se tomarmes como ponto de referencia o paleo, e nao o drama. O que est acontecendo 6, simplesmente, o desaparecimento da orquestra. O abismo ‘que separa os atores do piiblico, como os mortos sto separa- dos dos vivos, © abismo que, quando silencioso, no drama, provoca emocdes sublimes e, quando sonoro, na 6pera, pro- ‘yora 0 éxtase, esse abismo que de todos os elementos do paleo conserva mais indelevelmente os vestigios de sua origem sa- ‘grada perdeu sua fungto. O palco ainda ocupa na sala uma Posigdo elevada, mas ‘nfo € mais uma elevagdo a partir de profundidades insondaveis: ele transformou-se em tribuna. ‘Temos que ajustar-nos a essa tribuna. Esta é a situagao. Mas, fem vez. de leva-la em conta, a atividade teatral prefere enco- brisla, como tem feito em outros casos. Tragédias ¢ dperas continuam sendo escritas, & primeira vista para um sélido ‘aparelho teatral, quando na verdade nada mais fazem que abastecer um aparelho que se tornou extremamente frigil. “Bssa falta de clareza sobre sua situagHo, que hoje predo- mina entre misicos, escritores ¢ criticos, acarreta conseqién- cias graves, que no slo suficientemente consideradas. Acre- ditando possuir um aparelho que na realidade os possui, eles () Primeira verso, publcada em Verche ier Bret (Ensaie sobre ahve th Ue separa eo pice ado amin i ie (MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ~ defendem esse aparetho, sobre o qual no dispdem de qual- ‘quer controle e que no € mais, como supZem, um instru- mento a servigo do produtor, ¢ sim um instrumento contra 0 produtor.” Com essas palavras, Brecht liquida a iusto de que O teatro se funda na literatura. Isso nao é verdade nem para 0 teatro comercial nem para o brechtiano. O texto tem ume fun- ‘Gio instrumental nos dois casos: no primeiro, ele esta a servigo Ga preservagio da atividade teatral e no segundo, a servigo de sua modificacio. Em que sentido podemes falar em modifi- cacao? Existe um drama para a tribuna, ja auc © palco se converteu em tribuna, au, como diz Brecht, para “institutos ‘de propaganda”? E, se existe, quais suas caracteristicas? Um “teatro contempordineo” (Zeittheater) sob a forma de pecas de tese, com cardter politico, parecia a tinica forma de fazer jus- tiga aessa tribuna. Mas, qualquer que tenha sido 0 funcions- mento desse teatro politico, do ponto de vista social ele se li- tnitou a franquear ao piblico proletirio posigdes que o apare- Iho teatral havia eriado para o péblico burgués. As relagdes funcionais entre paleo ¢ péblico, texto e representacio, dire- tore atores quase nfo se modificaram. O teatro épico parte da fentativa de alterar fundamentalmente essas relagbes. Para seu piiblico, o palco néo se apresenta sob a forma de “'tabuas ‘Que significam o mundo” (ou seja, como um espago mésico), sim como uma sala de exposicZo, disposta num Angulo favo- tavel. Para seu palco, o poblico nao € mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembléia de pessoas inte- ressadas, cujas exigencias ele precisa satisfazer. Para seu texto, a representagdo néo significa mais uma interpretacto virtuosistica, e sim um controle rigoroso. Para sua represen {aclo, o texto nfo é mais fundamento, ¢ sim roteiro de traba- the, no qual se registram as reformulagdes necessérias. Para seus atores, o diretor néo transmite mais instrugBes visando & ‘btencdo de efeitos, e sim teses em funcdo das quais eles tém ‘que tomar uma posicdo. Para seu diretor, o ator iio € mais ‘um artista mimico, que incorpora um papel, ¢ sim um funcio- nario, que precisa inventarif-lo. PB claro que fungBes tio novas tém que se basear em novos clementos. Uma representacao recente, em Berlim, de Mann ist Mann (Um homem é un homem), de Brecht, ofereceu 4 ‘melhor ocasigo para por & prova esses elementos. Gracas 205 sforgos Iicidos e corajosos do intendente legal, ela nfo cons- we WALTER BENIAMIN tituiu apenas uma das produgdes mais cuidadosas apresen- tadas em Berlim nos iiltimos anos, mas também um modelo do teatro épico, até agora © Gnico. Veremos mais tarde as razbes que impediram os eriticos profissionais de dar-se conta desse fato. O paiblico teve um acesso facil & comédia, indepen- dentemente dessa critica, depois que a atmosfera sufocante da premiére se aliviou, Pois as dificuldades que inibem a com- preensiio do teatro pico nfo so outras que as resultantes da sua aderéncia imediata & vida, enquanto a teoria definha no exilio babilénico de uma pritica que nada fem a ver com nossa existéncia. Assim, os valores de uma opereta de Kolla podem ser mais facilmente expressos na linguagem académica da es- tética que os de um drama de Brecht. Tanto mais que esse drama, a fim de consagrar-se inteiramente 4 construgto do novo palco, preserva inteira liberdade com relagio ao texto escrito. O teatro épico € gestual. Em que sentido ele também é literésio, na acepeao tradicional do termo, & uma questo aberta. O gesto é seu material, ¢ a aplicagio adequada desse ‘material é sua tarefa. Em face das assertivas e declaracdes fraudulentas dos individues, por um lado, e da ambigtidade e falta de transparéncia de suas ages, por outro, o gesto tem

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