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Personagens:

Hóspedes: K
A femme fatale
O jóquei israelense
Os atores

Funcionários: A Recepcionista
O Ascensorista
A Camareira
O Porteiro
“K” O Mensageiro
A cozinheira

Estrangeiros: O Alpinista
O mergulhador curdo

Leonardo Moreira – 2007


Cena 01 Hospedado, senhor. (olhando sua ficha) Então você é um detetive
particular. Eu não sabia que eles realmente existiam, a não ser em
(Hall do Hotel) livros. Ou então pensava que fossem baixinhos sebosos, fuçando em
hotéis. Aqui está sua chave. Sua presença deixa a todos mais
A Recepcionista – seguros. É um prazer tê-lo de volta depois de todas as ameaças.
As chaves do seu quarto, senhor K.
K–
K– Ameaças?
Meu quarto?
A Recepcionista -
A Recepcionista – Ameaças, senhor K.
Seu quarto, senhor.

K–
Deve ser uma confusão. Eu só queria umas informações. Há alguém
chamado K na lista de hóspedes?

A Recepcionista –
Sim. O Senhor.

K-
Eu não fiz reservas.

A Recepcionista –
O senhor já está hospedado, senhor K.

K–
Hospedado?

A Recepcionista –
Cena 02 de ser descoberto por trás do personagem. Os que causam terror são
os homens que apagam todas as marcas do seu passado, os que
(Ouve-se a secretária eletrônica de K) tornam impossível toda biografia. Mesmo que você não seja quem
eu acho que você é, talvez você seja o que eu quero que você seja.
K- Como dizem nos filmes antigos: “I could make your business my
Olá. Você ligou para K. No momento, não posso atendê-lo. Deixe business.” Venha ao meu quarto, querido. Hotel ******, quarto 54.
seu recado após o sinal.
Mensagem apagada
Voz 1-
Olá, sou eu, Beth. Você desapareceu na quinta-feira. Hoje, já faz três Voz 4-
dias que nos despedimos e você ainda não voltou. Quero acreditar Sr. K. Spot Corporation. Seu currículo foi pré-selecionado para a
que você foi escalar as montanhas Eu espero que você esteja usando vaga de auxiliar contábil. Favor entrar em contato o mais breve
luvas, porque me disseram que a neve pode congelar os dedos. possível.
Quando eu tiver minhas botas de neve, eu vou te procurar. E você
tinha razão, eu andei lendo sobre a geografia da África: tem neve Mensagem apagada
nas montanhas mesmo.
Voz 5-
Mensagem apagada. Detetive K? Atenda o telefone, por favor. É urgente. Agência de
Detetives K? Aqui é do Hotel ******. Precisamos falar com o senhor
Voz 2- com urgência.
Covarde! Atende esse telefone! Você é um assassino, seu filho da
puta! E ainda vem me falar de raízes? Eu não sou um pé de alface e Mensagem apagada
meus pés não ficarão enterrados em uma terra que não é minha.
Ninguém ultrapassará minhas fronteiras. Voz 6-
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
Mensagem apagada ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
Voz 3- ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
Você é patético, detetivezinho. Quem passa a vida desvendando os ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
mistérios dos outros tem medo de ver ameaçado seu próprio
anonimato, seus próprios segredos. Como um ator que tem medo Voz 7-
K, é melhor você parar com essas perguntinhas, ou você vai Voz 11-
amanhecer com a boca cheia de formigas. Chega de interrogatórios. Allá en el fondo está la muerte, pero no tenga miedo. El miedo
Chega de perturbar a nossa paz. Mais uma pergunta e não vou ter herrumbra las áncoras, cada cosa que pudo alcanzarse y fue
mais paciência. Eu já disse. Eu não sei de nada. Eu nunca quis ouvir olvidada va corroyendo las venas, gangrenando la fría sangre de tu
nada. Bons hóspedes são hóspedes mudos. Agora, me deixe em paz. pequeño cuerpo. Y allá en el fondo está la muerte si no corremos y
llegamos antes y comprendemos que ya no importa.
Mensagem apagada
Mensagem apagada.
Voz 8-
Oi, sou eu. Eu sei que não devia mais te ligar. Mas é que estou Não há novas mensagens.
preocupada. Tranque bem as portas. Tenha certeza de que elas
estão sendo vigiadas. O estrangeiro das poças de água está atrás de
você. É um risco, eu sei. Mas eu tinha que te avisar.

Mensagem apagada.

Voz 9-
Sou eu de novo, sua bichinha de sobretudo. Quem você pensa que é
pra dizer se eu tenho ou não tenho pé chato?! Quando eu for um
pára-quedista, entrarei na tua casa pelo teto. Como chuva. E quando
eu tiver meu cabelo bem curto de soldado eu vou poder esfregar
seu bigode muçulmano no chão.

Mensagem apagada.

Voz 10-
K. É a mamãe. Você anda desaparecido, querido. Te espero
domingo com aquele tayin de cordeiro que você adora. Beijos.

Mensagem apagada.
Cena 03 Cena 04

(Voz off) (O quarto 32. Atores 1, 2, 3 e 4, enquanto comem)

K-
Tudo começou por um número errado. O telefone tocou três vezes 1–
no meio da noite e a voz do outro lado perguntou por alguém que Tem que ter voz em off?
não era eu. Agora, olhando para as coisas que aconteceram, tenho
certeza de que nada era real, exceto o azar. Mas isso foi muito mais 2–
tarde. A princípio, não havia mais que as coincidências e suas Acho um recurso pobre de quem não consegue resolver com os
conseqüências. próprios diálogos.
Se poderia ter sido diferente ou se tudo estava predeterminado
desde o primeiro toque do telefone, não importa. O que importa é a 3–
própria história, e se significa algo ou não significa nada não é a Colocar um narrador desloca a ação pro passado. Acho ótimo.
história que vai dizê-lo.
1-
Antiquado. Vejo isso desde a década de 50.

4-
Todo filme noir tem voz em off. Põe todos os acontecimentos na
perspectiva do narrador. É a visão que ele tem do que se passou.

2–
Por isso voz em off, flashback são sempre – pelo menos em parte –
ou quase sempre – quase sempre mentirosos.

3–
O que eu acho ótimo.
4– 4–
É exatamente isso. É a visão que ele tem do que passou. É um K.
engodo que está na própria base desses artifícios cinematográficos –
entende? - substituem o ponto de vista da câmera por um fictício. 3-
A voz em off é como uma espécie de ventríloquo, o próprio K é o
1– boneco e o detetive K, a personagem que dá sentido a tudo isso.
O do personagem. Que conta o que lhe convier – Acho confuso. Embora o detetive K seja uma ilusão, justifica as vidas dos outros
dois. Embora a voz em off de K talvez não exista, é a ponte que
2- permite a K passar de si mesmo ao detetive K. E, pouco a pouco, o
Acho desnecessário. detetive K vai se convertendo em presença na vida de K, seu irmão
interior, seu companheiro na solidão.
4–
Que conta o que lhe convier... Muitas vezes o narrador pode estar 1–
tentando enganar o público. A história contada acaba sendo não a Confuso. Quem era, de onde vinha e o que fazia têm pouco
verdade, mas o passado que esses indivíduos gostariam de ter tido. importância.

3- 2–
Relembrar, falar do passado é uma oportunidade de contar uma Sabemos, por exemplo, que tinha quarenta e quatro anos. Sabemos
mentira, de apagar as pistas. Permeia de omissões o que está sendo que havia se casado, que havia sido pai e que tanto sua esposa como
dito. E cria... seu filho haviam morrido.

1– 3–
Não sei se gosto. Explosão de bomba no metrô ou vítima de ataque terrorista na
escola do filho ou suicídio após invadir um cinema e atirar em mais
2– de doze pessoas.
De quem é a voz?
(alguém bate na porta. Eles não atendem)
3–
De K. 1–
Também sabemos que era auxiliar contábil. Desempregado há seis
meses. E que nas horas vagas, escrevia livros.
3-
4– Só olhos e pernas. Sem lugar
Lia livros. Pra ser exato, sabemos que só lia livros de mistério. Lia
muitos desses livros. (alguém bate na porta. Os atores ignoram)

3– 2–
Mais que qualquer outra coisa, gostava de caminhar. Todos os dias Se entregando ao movimento das ruas, conseguia escapar da
– não, quase - quase todos os dias, com chuva ou com sol, com frio obrigação de pensar. E isso, mais que tudo, lhe dava certa paz.
ou calor, saía de seu apartamento para caminhar pela cidade.
1–
2– Anota isso. Vazio o suficiente para uma peça de teatro.
Pra onde?
4–
1- Todos os lugares pareciam iguais e tanto fazia onde estivesse. Em
Pra lugar nenhum. Saia sem se dirigir a nenhum lugar concreto, ia seus melhores passeios, conseguia sentir que estava em lugar
onde lhe levassem as pernas. São Paulo – era São Paulo? nenhum. E isso, em última instância, era só o que pedia: não estar
em lugar nenhum.
4–
Não importa. 3–
Nova York era o lugar nenhum - era Nova York?
1–
São Paulo era um espaço inesgotável, um labirinto de passos 1-
intermináveis e, por melhor que conhecesse seus bairros e ruas, Não importa.
sempre ficava com a sensação de estar perdido.
3-
2- Istambul ou Munique ou Budapeste era o lugar nenhum que havia
Gostei disso. Cada vez que dava um passeio, se sentia como se construído ao seu redor. E ele sabia que nunca deixaria seu lugar
deixasse a si mesmo para trás e, se entregando ao movimento das nenhum.
ruas, se transformando só em olhos e pernas...
(alguém bate na porta. Não atendem.)
2– 4-
No passado, K. havia sido mais ambicioso. Quando jovem havia se Já não pensava muito em seu filho e recentemente havia tirado a
formado no curso técnico de contabilidade, tinha um emprego fotografia de sua mulher da parede. De vez em quando, sentia o
decente. Mas de repente, renunciou a tudo isso. mesmo que sentia quando tinha o menino de três anos em seus
braços - mas isso não era exatamente pensar, nem sequer era
3– recordar. Era uma sensação física, uma mancha.
Uma parte dele havia morrido, disse a seus amigos, e não queria
que voltasse a aparecer. Foi então que deixou de existir. 3-
Uma mancha que o passado havia deixado em seu corpo e sobre a
1- qual ele já não tinha controle. Esses momentos aconteciam cada vez
Cafona. com menos freqüência. Agora parecia que as coisas haviam
começado a mudar para ele. Já não desejava estar morto. Ao mesmo
4– tempo, não se pode dizer que se alegrava por estar vivo. Mas pelo
Mas ele continuou a ler os livros de mistério, porque era a única menos não lhe incomodava. Estava vivo e a persistência disso
coisa que se sentia capaz e fazer. As novelas de mistério lhe começava, pouco a pouco, a fasciná-lo.
pareciam uma solução razoável pra se esquecer do metrô. Foi nessa
época que ficou desempregado. 1–
Como se houvesse conseguido sobreviver, como se de certo modo
1- estivesse vivendo uma vida póstuma. Já não dormia com a lâmpada
No começo, quando seus amigos souberam que tinha sido acesa e há muitos meses não se lembrava de nenhum de seus
demitido, lhe perguntavam se precisava de ajuda, do que iria viver. sonhos.
Ele respondia a todos a mesma coisa: que havia recebido uma
indenização pela morte da esposa. 2–
Mas ele ainda tinha suas histórias de mistério. Onde ele podia
inventar ser o K que lhe conviesse.
2-
Mas a verdade era que nem todos os pedaços do corpo da esposa (alguém bate na porta)
foram encontrados. E a verdade era que ele já não tinha amigos.
Cena 05 É um assunto de máxima urgência.

K– K-
Quem é? Então, sugiro que ligue de novo. Não há nenhum detetive aqui.

Voz no telefone – Voz no telefone –


Alô? Detetive K. Da Agência de Detetives K.

K– (K desliga o telefone e permanece parado.)


Quem é?
Voz em off –
Voz no telefone -
Alô? Desliguei o telefone. Fiquei de pé sobre o chão frio, olhando meus
pés, a barriga saliente e o pênis murcho. Detetive? Durante um
K- segundo, lamentei ter sido tão brusco com a pessoa do outro lado
Estou te escutando – Quem é? da linha. Poderia ter sido minha chance, pensei. Talvez pudesse ter
perguntado alguma coisa sobre o caso, talvez pudesse ter ajudado a
Voz no telefone - salvar alguém. E além do mais, era meu nome a quem chamavam
Quem fala? K? de detetive.

K– K–
Sim. Sou eu. K. Tenho que aprender a pensar mais depressa quando estou de pé.

Voz no telefone- Voz em off –


Detetive? – Gostaria de falar com o senhor, detetive. “Tenho que aprender a pensar mais depressa quando estou de pé.”
Disse a mim mesmo. Como a maioria das pessoas, até então não
K- sabia quase nada de delitos. Nunca havia assassinado ninguém,
Aqui não há nenhum detetive. Sinto muito. Você deve ter se nunca havia roubado nada e não conhecia ninguém que já tivesse.
enganado de número. Nunca havia estado delegacia de polícia, nunca havia conhecido um
detetive particular, nunca havia falado com um terrorista. O pouco
Voz no telefone – que sabia das coisas, havia aprendido em livros, filmes e nos jornais.
Não considerava isso um problema. O que me interessava das Cena 06
histórias não era sua relação com o mundo, mas sua relação com
outras histórias. (Elevador)
Naquela noite, enquanto finalmente estava conseguindo dormir,
fiquei imaginando que teria dito um detetive de verdade? O que O Ascensorista –
teria dito um desses personagens àquele telefonema? E tomei uma Eu não sei de nada. Eu nunca quis ouvir nada. Hóspedes deveriam
decisão: eu investigaria o desaparecimento de K. ser mudos. Esses pedaços de conversa que se ouve entre um e outro
Em meus sonhos, que mais tarde fiz questão de esquecer, eu estava andar, essas historinhas pela metade é que comprometem os
sozinho em meu apartamento, disparando uma pistola contra uma inocentes. Os ascensoristas e os inocentes.
parede branca e limpa.
Quando acordei, se acordei, onze mensagens me esperavam na K–
secretária eletrônica. Nenhuma mensagem era para mim. Todas E você é inocente de quê?
eram para um tal de detetive K.
O mesmo nome que o meu. Inventei milhões de histórias, supus O Ascensorista –
centenas de crimes, imaginei múltiplos atentados, teorias Quem disse que eu sou inocente? É impossível que um ascensorista
conspiratórias e duvidei da minha memória. Minha cabeça era uma seja inocente. Ninguém que ouve conversas é inocente.
rodovia em que caminhões brincavam de autorama. Depois de
ouvir dezenas de vezes cada um dos recados, tentando descobrir K–
nas vozes pedaços esquecidos do que talvez fosse eu, decidi Você é culpado, então. De quê?
investigar quem era aquele homem com quem me haviam
confundido. Quem era esse detetive que tinha o mesmo nome que O Ascensorista-
eu? É impossível que um ascensorista seja culpado. Mãos que
O nome do Hotel era familiar. Era por lá que começaria a minha esfaqueiam, braços que estrangulam não se sujeitariam a ficar
investigação. Era lá que eu descobriria quem é K. invisíveis num elevador. Os olhos que assistem ao terror de quem
Antes de sair, ainda me certifiquei de que nenhuma das paredes do sabe que vai morrer não suportariam olhar para o painel de andares
meu apartamento era branca e limpa. e pra porta que abre sem levar a lugar algum. Dedos que disparam
gatilhos não apertariam os botões dos andares. Ouvidos que
(K ainda permanece parado.) escutam as vítimas se engasgarem com o próprio sangue não
agüentariam passar dias e dias ouvindo essa adorável música
ambiente.
K- O Ascensorista –
Adorável. Quem quer ficar invisível, pinta os cabelos de vermelho. Vermelho e
com franja. Franja é uma regra em quem muda de identidade.
O Ascensorista –
Eu prefiro o silêncio, como nas montanhas cheias de neve. Os K–
alpinistas, esses podem ser assassinados. Pendurados como aranhas Ou vira-se ascensorista.
e com os dedos enfiados na neve. Assassinos não são invisíveis
como os ascensoristas. Como você acha que alguém pode ter a idéia (Entra a Femme Fatale, fumando. Silêncio. O elevador se enche de fumaça
de esfaquear ou estrangular, primeiro a idéia, e depois passar pra O elevador pára em outro andar. Ela desce.)
ação?
O Ascensorista –
K- Ou vira ascensorista. Dessas pessoas que ficam invisíveis, só restam
Puro vício. vestígios. Objetos, imagens, lugares que habitaram, segredos que
esconderam: um elevador não é um lugar de segredos. Não é uma
O Ascensorista – casa, não é um desses quartos misteriosos no fim de um corredor
Eu que sou um ascensorista já faz quinze anos, eu sempre olhei os em hotéis abandonados onde milhões de possibilidades vazam por
hóspedes procurando onde poderia estar o que faz com alguns debaixo das portas. Um elevador é só um lugar de rastros. Dessas
sejam diferentes de mim, escravo das normas e gentilezas da pessoas que desaparecem pela porta do meu elevador, ficam os
hotelaria, incapaz de esfaquear ou estrangular, incapaz até de ter a estilhaços de suas conversas – um homem que se deixou fascinar
idéia de fazer isso. Eu pensei, eu procurei, eu ouvi suas conversas, pela camareira, alguém que foi traído e quer se vingar, terroristas
eu fiquei até olhando quando eles se coçavam, eu olhei o volume de que planejam atentados em escolas russas. Ficam apenas os rastros
suas calças - porque me disseram que era no pau que o instinto de seus perfumes. O elevador é o lugar perfeito para aquele que
assassino se alojava. Eu vi centenas de hóspedes, e nenhum ponto tenta deixar de ser quem era, para aquele que precisa pintar os
em comum entres eles: tem gordo, pequeno, magro, bem pequeno, cabelos de vermelho. Um elevador é um lugar de gente sem
redondo, pontudo, tem ainda os enormes, e não dá pra chegar a história, sem memória. Dos que abandonam tudo e vão morar
nenhuma conclusão a partir disso. Nas mulheres, é mais fácil. Os numa outra cidade qualquer, para reaparecer, anos depois, com
cabelos ruivos as denunciam. outro nome, fazendo outra coisa, num outro lugar. Deles só
sabemos, quando muito pelo tom da tintura, que fizeram algo
K- errado. Mas tudo isso um detetive já deveria saber.
Cabelos ruivos?
K- K-
Mas eu não sou um detetive. K usava barba. Como um desses vilões americanos? Como Fidel
Castro?
O Ascensorista –
Só um detetive ouviria as histórias de um ascensorista. O Ascensorista –
Não, como quem pinta os cabelos de vermelho e usa franjas. Pra
K– começar outra vida.
Você conhece um hóspede desse hotel chamado Senhor K?
(A porta do elevador se abre.)
O Ascensorista –
Rastros de conversa dele. O Ascensorista –
Andar intermediário, senhor. Entre o terceiro e o quarto andar. O
K– senhor desce aqui. E eu fico apenas com o rastro das suas perguntas
O que você ouviu? e a fumaça do seu cigarro. De resto, não ouvi mais nada.

O Ascensorista –
Senhor K entrou no elevador. Ficou em silêncio, pediu pelo quarto
andar. Só ouvi a música ambiente. No terceiro andar, entrou um
Alpinista falando espanhol.

K-
As montanhas de neve.

O Ascensorista –
O Alpinista disse alguma coisa sobre escadarias. E lhe entregou um
pequeno mapa, parecia um manual de instruções do caminho a ser
seguido. Se cumprimentaram com um leve beijo no rosto. A barba
de K provocou cócegas no alpinista.
Cena 07 Já fez sua pergunta. Minha vez: Como você se chama?

(No corredor, K encontra a camareira saindo do quarto do detetive K) K-


Me chame como você quiser.
Camareira-
Estou apenas trocando as toalhas, senhor. Brancas e limpas. Camareira –
Sua vez.
K-
Ótimo. Posso te fazer umas perguntinhas? K–
O estrangeiro. É um alpinista espanhol?
Camareira-
É o que todos fazem às camareiras, não é? Com uma condição: se eu Camareira-
puder lhe fazer outras. Não, é um destes estrangeiros de verdade. Dos que são proibidos de
entrarem em hotéis porque talvez carreguem bombas dentro dos
K- seus bigodes muçulmanos. Desses que têm o corpo molhado e
Combinado. encharcam os tapetes dos hotéis com seus pés de pato. Minha vez:
O que você faz na vida?
Camareira-
O senhor começa. K-
Na vida?
K-
Este hotel está sobre alguma ameaça? Camareira –
É, na vida. Seu trabalho, sua ocupação, como você ganha dinheiro, e
Camareira – todas essas coisas que todo mundo faz.
Todos estamos, senhor. Há um boato de que há um estrangeiro
escondido no hotel. K-
Eu não faço o que todo mundo faz.
K–
Um alpinista espanhol? Camareira –
Então, justamente, me diz o que você faz.
Camareira –
K- K-
Eu sou um agente secreto. Você sabe o que é, um agente secreto? Com isso, você pode matar tão bem quanto com qualquer outra
arma.
Camareira –
Eu sei o que é secreto. É o que todas as camareiras sabem não é? Camareira-
Fora matar, que mais que ele faz, um agente secreto?
K-
Um agente, além de ser secreto, ele viaja, percorre o mundo. Ele tem K-
armas. Investiga. Ele procura por K.

Camareira- Camareira-
Minha vez: Você tem uma arma? K?

K- K-
Claro que tenho. Você sabe onde ele está? Quem é K? O que você sabe sobre ele? Ele
é esse estrangeiro? É a minha vez: me responda!
Camareira-
Me mostra. Eu a escondo entre as toalhas. Camareira-
Aqui não. Amanhã pela manhã, na hora da arrumação. Me espere
K– em seu quarto.
Não.

Camareira-
Então, você não tem uma arma.

K-
Olha.

Camareira-
Isso não é uma arma.
Cena 08 No chão, um prato com restos de tayin de cordeiro com ameixas e
damasco. O garfo está sujo.
(Quarto do detetive K. K está sentado na cama, com um gravador. A TV No banheiro, a privada parecia entupida. Enfiando a mão no fundo,
está ligada) consegui retirar grande quantidade de cabelo. Os cabelos
encontrados não são ruivos.
Apresentador do telejornal (TV) – Sobre a escrivaninha, cartas em um alfabeto desconhecido, letras
Alpine Incident: body discovered at Hauslabjoch. Climbers indecifráveis. Um atestado de óbito descrevendo um corpo em
descending the Finailspitze discovered a body sticking out of ice. estado de decomposição e uma espécie de mapa com anotações em
Identity not yet stablished. Judging by the equipment this was an espanhol, um tipo de manual de instruções. Como o ascensorista
Alpine accident going back many years, perhaps as long ago as the disse.
Second World War. In 1941 a mountaineer walking the exact same Só o que tenho que fazer é seguir o mapa deixado por K.
route went missing and is still unaccounted for. P.S: O quarto é grande, com paredes brancas e limpas. Nenhum
Terror continues: Terrorists explode themselves on a hotel… quadro, nenhum retrato. Como devem ser os quartos de um hotel.

(K fala para o gravador) (Alguém bate na porta. K vai atender. Não há ninguém. Apenas um bilhete
anônimo, debaixo de sua porta.)
K-
Inciso primeiro. Segunda-feira. Setembro de 1972. Primeiro dia de K – (lendo)
investigações. “Você está perturbando a paz do andar. Deixe tudo como está. Aos
Onze mensagens em minha secretária eletrônica me trouxeram até desaparecidos, o esquecimento.”
esse quarto. Onze mensagens que não eram para mim, mas para
alguém que tem o mesmo nome que eu: K.
Agora, olho no espelho e só consigo enxergar o detetive. Quando
me perguntam o que faço, minto: sou detetive particular. Me
reconheço em cada um dos detalhes desse quarto, como seu eu
tivesse mergulhado entre as histórias que leio. Como se tudo ficasse
em preto, branco e cinza. Como devem ser as histórias de mistério.
O que encontrei no quarto do detetive K:
Sobre a cama, ainda desfeita – a camareira não passou por aqui?
Sobre a cama, ainda desfeita, uma toalha molhada com perfume de
mulher, um maço de cigarros aberto e uma tesoura.
Cena 09 Cena 10
(Quarto 43. O quarto do jóquei israelense)
(Quarto de K. Projetado sobre as paredes brancas do quarto e sobre K,
atônito e absorto, o mapa encontrado. Desenhos da planta do hotel, em cada O jóquei israelense –
quarto, setas que os ligam, nomes estrangeiros em alfabetos diversos – Você vem até minha porta no meio da noite pra perguntar sobre
hebraico, russo, latino. As setas formam uma enigmática e indecifrável rede alguém que não merece ser lembrado. Minha memória é um quarto
de ligações entre hóspedes e funcionários do hotel.) que ainda não pode receber hóspedes novos porque os antigos
ainda ocupam suas camas. E sempre que se tenta girar a chave no
Voz do Alpinista (off)- trinco da porta, algumas lembranças escapam pela fechadura. Eu fiz
La tarea de ablandar el ladrillo todos los días, la tarea de abrirse questão de esquecer o nome de todos os meus cavalos. Cavalos
paso en la masa pegajosa que se proclama mundo, cada mañana esquecidos são cavalos que nunca existiram
topar con el paralelepípedo de nombre repugnante, con la
satisfacción perruna de que todo esté en su sitio, la misma mujer al K-
lado, los mismos zapatos, el mismo sabor de la misma pasta É que encontrei seu nome nas anotações de K. O senhor sabe por
dentífrica, la misma tristeza de las casas de enfrente, del sucio quê?
tablero de ventanas de tiempo con su letrero “Hotel de Belgique”.
Y no que esté mal si las cosas nos encuentran otra vez cada día y O jóquei israelense-
son las mismas. Que a nuestro lado haya la misma mujer, el mismo Talvez ele gostasse de apostar em corridas de cavalos. Acredite, há
reloj, y que la novela abierta sobre la mesa eche a andar otra vez en quem goste de apostar em cavalos.
la bicicleta de nuestros anteojos, ¿por qué estaría mal? Castigarse los
ojos mirando eso que anda por el cielo y acepta taimadamente su K-
nombre de nube, su réplica catalogada en la memoria. No creas que O senhor não se lembra de ninguém chamado K?
el teléfono va a darte los números que buscas. ¿Por qué te los daría?
Solamente vendrá lo que tienes preparado y resuelto, el triste reflejo O jóquei israelense-
de tu esperanza, ese mono que se rasca sobre una mesa y tiembla de Claro me lembro. Esse nome sempre retorna. Como num
frío. Rómpele la cabeza a ese mono, corre desde el centro de la hipódromo. Quando os cavalos acham que a corrida acabou, ela
pared y ábrete paso. ¡ está apenas recomeçando. É impossível esquecê-lo enquanto ele
continuar correndo no hipódromo em que correm meus
pensamentos. Esse K que você procura é um terrorista. Não sei por
que lembrar dos terroristas. Só pra termos a certeza de quem as
portas trancadas não nos garantem nada. Só pra passarmos a noite
acordados, pensando em quantas esporadas na virilha do cavalo O jóquei israelense-
serão necessárias para fugir do terrorista escondido sob nossas Sim, até agora, tudo bem.
camas.
O Porteiro-
K- Desculpe-me incomodá-lo. Só estou garantindo a segurança do
Esse hotel sofreu um ataque terrorista? hotel, senhor. Sabe como é, em tempos como esse, qualquer
visitante pode ser uma ameaça.
O jóquei israelense–
Quatro e meia da manhã. Era época de Olimpíadas. O hotel cheio O jóquei israelense-
de mergulhadores e alpinistas e lutadores e levantadores de peso e Sim, eu entendo. É bom saber ter a certeza de que nossas portas
nós, os jóqueis. Graças a graves falhas na segurança, dois terroristas estão sendo vigiadas. Obrigado.
estrangeiros entraram no hotel. Dizem que K era um deles.
(fecha a porta. O jóquei continua a falar com K)
K-
K era um detetive, não um terrorista. O jóquei israelense-
Um homem bate na porta de nosso apartamento. Em alemão
O jóquei israelense- precário, grita: "Ist dieses die israelische Mannschaft?" Moshe
Qual a diferença? O final de um é sempre o começo de outro. Eles Weinberg, de 33 anos, treinador do time de luta israelense, que
entram, com facilidade no hotel, usando máscaras e carregando dividia o apartamento com os outros atletas do país, ficou assustado
sacolas com metralhadoras e granadas. Os terroristas passeiam pelo com as batidas. Abre uma fresta na porta e, sentindo o perigo, joga-
hotel, interrogando os inocentes. Invadem os últimos andares do se contra a mesma e tenta fechá-la, à força. "Rapazes, saiam!" 1 , grita.
hotel, cruzam as fronteiras que não devem ser cruzadas. Seu único Gad Zavarj, lutador e colega de quarto de Weinberg, pula da cama.
objetivo eram os atletas israelenses. Um homem bate na porta do Os terroristas não têm como fazer com que Weinberg saia da frente
nosso apartamento. da porta, então um deles atira com uma AK-47 e o acerta no peito e
no pescoço. Os terroristas abrem a porta e atiram em Zavarj, que
(alguém bate na porta. O jóquei atende). tentava fugir. Erram. Os terroristas atravessam o quarto de
Weinberg e vão até os outros dois apartamentos, onde mais
O Porteiro- israelenses dormem.
Está tudo bem, senhor?

1
Traduzir para o hebraico.
Baleiam Joe Romano, campeão de levantamento de peso. Enquanto O jóquei israelense-
isso, outros israelenses, que tinham ouvido os gritos e o tiroteio, Porque não se pode abandonar assim um lugar. Deixando pra trás
correm para se vestir e tentar fugir. todo esse cheiro. Montado num cavalo de memórias que corre
Os terroristas conseguem capturar nove israelenses. Amarram seus numa pista circular, não há começo e não há fim. Enquanto eu
pés e mãos com cordas e os forçam a entrar em um quarto anexo, no conseguir me lembrar do cheiro nessas paredes, não posso deixar o
terceiro andar. O corpo de Romano foi arrastado para dentro deste hotel.
quarto, como exemplo do que poderia acontecer aos reféns. Às nove
horas, horário que as camareiras vêm, os terroristas deixam um K-
bilhete com um mapa desenhado na janela do quarto onde mantêm Mas é só um quarto de hotel.
presos os atletas. Era um manual de instruções para outros
terroristas, sei que era. Executam dois reféns a cada hora. Então, O jóquei israelense-
ouve-se um tiro de fuzil. O terrorista atirou no porteiro do hotel, Um quarto de hotel não é só um quarto. Um quarto de hotel é um
numa das escadarias. O porteiro tentava impedir que o terrorista hipódromo... um salão de baile onde as lembranças dançam polca.
subisse até o último andar. Depois de matar o porteiro, entrou aqui As curvas do travesseiro que você abraça num quarto de hotel,
no quarto, com uma granada em suas mãos. E explodiu com a porta foram desenhadas por outras cabeças. A parede que você acaricia
fechada. Os pedaços dos atletas ficaram espalhados pelo chão. enquanto dorme já foi suporte para as traições de muitos maridos.
Nenhuma parede ficou limpa. Eu ainda esfrego as paredes todas as O pequeno espelho na parede do fundo já refletiu tantas cicatrizes e
manhãs, mas não consigo me esquecer do cheiro. Você consegue segredos que talvez você não tenha coragem de imaginar. Essa
sentir? cama ainda tem o peso dos sonhos esquecidos por muitos hóspedes.
É um ciclo sem fim. Mas eu não. Eu só saio daqui quando todas as
K- minhas lembranças forem apagadas. Não deixarei um só vestígio
Não, não consigo. Mas por que os terroristas fizeram isso? para o próximo hóspede.

O jóquei israelense-
Desde quando os carrascos precisam de um motivo para degolarem
as vítimas?

K-
Por que o senhor continua hospedado aqui?
Cena 11 K-
Por quê?
(Quarto de K.)
Camareira-
K (para o gravador)- Não é a sua vez de fazer perguntas. Preste atenção no que eu vou
Inciso segundo.Terça-feira. Setembro de 2001. Segundo dia de lhe dizer e não faça perguntas. Eu o conheci muito bem.
investigações.
Primeira suposição: K é um terrorista. K-
Segunda suposição: Há um estrangeiro perigoso neste hotel. Quem? K?
Terceira suposição: A mulher de cabelos vermelhos que encontrei
no elevador não está na lista de nomes do mapa de K. Camareira-
Quarta suposição: o Alpinista... Sem perguntas. Eu o conheço. Esse moço que carrega o mesmo
nome que você.
(Batem na porta)
K-
Camareira (do outro lado da porta)- K. Quem é?
Serviço de quarto, senhor.
Camareira-
Voz em off- Um agente secreto. Um amigo. Eu o conheci no corredor. Eu
É a camareira. perguntei o seu nome, ele me disse que tinha uma arma. Ele me
mostrou sua arma. Eu poderia ter me apaixonado por ele e eu teria
K- escondido suas armas entre minhas toalhas. Ele teria me levado em
Pode entrar. suas viagens. Ele me perguntou se o hotel estava sendo ameaçado.

(Ela entra) K-
Talvez ele seja a ameaça.
Camareira-
Suas toalhas limpas, senhor. Entre elas, há uma arma. Você vai Camareira-
precisar. O que você sabe sobre K? Não acredite em que faz do hotel sua
casa. Um hotel só pode ser a casa de baratas e ratos e lagartixas.
Digam o que quiserem, ele não é um terrorista.
Voz em off-
K- Nosso trabalho? Eu já era um detetive. Eu já interrogava como um
O que você sabe dele? detetive.

Camareira- Camareira-
Tudo. Ele é um estrangeiro. Ele me disse que ia fazer umas missões na África, nas montanhas, lá
onde tem neve o tempo todo.
K-
K francês como Koltés? K como os egípcios? K-
Um agente alemão no Quênia.
Camareira-
Ele tinha um pequeno sotaque estrangeiro, muito simpático. Ou Camareira-
talvez eu é que tenha imaginado o sotaque. Ou talvez um alpinista.

K- Voz em off-
K como Kafka? Germânico? Minhas suposições não estavam tão erradas, afinal. Eu já era
detetive K.
Camareira-
Eu não sei o que quer dizer germânico. K-
Você poderia me fazer um retrato de K?
K-
Então, ele te disse que era um agente secreto. É estranho. Em Camareira-
princípio, um agente secreto deve permanecer secreto. Camareiras não são muito boas com desenhos.

Camareira- K-
Eu disse pra ele que eu guardaria esse segredo a qualquer custo. Um retrato falado.

K- Camareira-
Bravo. Se todos os segredos fossem guardados como esse o nosso Ele tinha um bigode como o seu, se você tivesse um bigode. E os
trabalho seria fácil. olhos fundos, como os seus, se os seus começassem na nuca. E
olheiras grandes de quem se preocupa com o dia seguinte, como as
suas se você se preocupasse com o dia seguinte. E o corpo de um Cena 12
alpinista, como o seu se você se pendurasse em montanhas. E dedos
finos e roxos, como os seus, se você os enfiasse na neve pra (Corredor do hotel. K encontra o Alpinista.Sua roupa de neve cobre seu
sobreviver. E a pele enrugada como um mergulhador que passa rosto. É impossível saber quem é o Alpinista, ou quem está disfarçado de
meses na água como a sua, se você soubesse mergulhar. E um tom Alpinista. O Alpinista tenta fugir. Perseguição. Sobem escadas, descem
cinza na pele de quem vive em um filme antigo como você. E lábios escadas. Entram e saem pelos corredores.. Parecem ser muitos K’s e muitos
quase sangrando de tanto beijar os lábios da camareira, como os Alpinistas. O Alpinista consegue fugir. Enquanto isso, a voz do alpinista,
seus. em off)

(Os dois se beijam) Voz do Alpinista-

Camareira- Dejando de lado los motivos, atengámonos a la manera correcta de


Eu guardo tua arma entre minhas toalhas. Brancas e limpas. E llorar, entendiendo por esto un llanto que no ingrese en el
quando for preciso sujar as paredes, eu limparei tudo. escándalo, ni que insulte a la sonrisa con su paralela y torpe
semejanza. El llanto medio u ordinario consiste en una contracción
general del rostro y un sonido espasmódico acompañado de
lágrimas y mocos, estos últimos al final, pues el llanto se acaba en el
momento en que uno se suena enérgicamente.
Para llorar, dirija la imaginación hacia usted mismo, y si esto le
resulta imposible por haber contraído el hábito de creer en el
mundo exterior, piense en un pato cubierto de hormigas o en esos
golfos del estrecho de Magallanes en los que no entra nadie, nunca.
Llegado el llanto, se tapará con decoro el rostro usando ambas
manos con la palma hacia dentro. Los niños llorarán con la manga
del saco contra la cara, y de preferencia en un rincón del cuarto.
Duración media del llanto, tres minutos.
Cena 13 indicador e o polegar. Comer com quatro ou com cinco dedos é
comportamento de glutões ou assassinos. Você acha que mãos que
(A cozinha do Hotel. A cozinheira chora descontroladamente.) cozinham podem matar?

A cozinheira (chorando)- K-
Prepare uma infusão com 25ml de açafrão e um litro de água. Eu não duvido. Me conte o que aconteceu.
Misturas canela, cúrcuma, sal e pimenta-banca, esfregue na carne de
cordeiro em pedaços. Coloque a carne pra cozinhar no tayin com a A cozinheira-
infusão de açafrão, a cebola picada, o alho, a manteiga, o azeite e Sim? Disse a recepcionista. O que eu posso fazer por por você?
meio copo de água. Deixe cozinhar. Retire com uma concha o caldo Como eu posso te ajudar? Quem você gostaria de ver? Você marcou
do ensopado e use para hidratar as ameixas, as tiras de damasco e hora? Eu atirei na sua boca e desci o corredor. Rápida e silenciosa
os figos, junto com o suco que liberam os paus de canela. Salpique como as cozinheiras. Já comeu biruak? São pequenas empadas feitas
de amêndoas picadas... de massa brick.

K- K-
Por que você está chorando? Continue a história, por favor. Você desceu o corredor.

A cozinheira- A cozinheira-
Telefonemas anônimos. Depois de tudo o que aconteceu, eles não Eu desci o corredor. Abri a primeira porta que encontrei. Entrei na
me deixam em paz. Sempre que o telefone toca, já sinto a ameaça e sala. Sim? Disse o professor. Como eu posso ajudar? Eu atirei nele
sei que do outro lado uma voz estrangeira vai me chamar de no peito. Corte o peito do frango em oito pares: asas, coxa e
assassina, murderer, asesina, meuchelmörder. sobrecoxa e o restante, em quatro partes.

K- K-
Depois de tudo o que aconteceu? Você atirou nele no peito.

A cozinheira- A cozinheira-
É por isso que você ainda conversa comigo. É por isso que você Eu atirei no peito do professor. As crianças não entenderam – elas
ainda come minha comida marroquina sem desconfiar de venenos. não entenderam o que estava acontecendo – o que aconteceu com o
Minhas mãos assassinas ainda sabem fazer comida marroquina. professor delas? Elas não entenderam. Isso nunca aconteceu antes.
Deve-se comer como os profetas, com os três dedos: o médio, o
K- se afastar – a menos que seja alguém que você ame. Qualquer outra
Isso nunca aconteceu antes, mas elas entendem – é claro que pessoa vai se afastar. Mas alguém amado vai segurar na sua mão
entendem – elas já viram na TV – elas ficaram acordados até mais como uma criança – tardes inteiras apenas sentindo o espaço entre
tarde por bom comportamento e viram isso na TV – Elas sabiam os dedos. E então uma criança se afastou.
exatamente o que estava acontecendo.
K-
A cozinheira- Das suas mãos.
Elas sabiam exatamente. Foi por isso que elas ficaram de costas –
instintivamente. Corte a extremidade superior das berinjelas, A cozinheira-
espete-as com um garfo e as mantenha por cinco minutos num Não. Do metal quente. Do cano quente da arma. Só uma criança. Eu
banho de água com bicarbonato. atirei nessa criança. Na cabeça. Faça nos tomates um corte em
formato de cruz.
K-
Certo. Então elas se viraram – é a pior coisa que elas poderiam fazer K-
– se virar de costa, olhando para a parede. Você atirou na primeira criança.

A cozinheira- A cozinheira-
Elas ficaram contra a parede, olhando pros seus desenhos na E continuei. Eu atirei na segunda criança – na cabeça.
parede. “Minha Casa”
K-
K- E continuou.
“Meu gato” A cozinheira-
A terceira criança tentou fugir. Escondeu a cabeça com as mãos e se
A cozinheira- agachou. Eu atirei na terceira que criança – entre os dedos – na
“Minha Casa”, “Eu e meu gato”, “Eu e a árvore”. Você já reparou cabeça. Corte o músculo em 12 pedaços e tempere com sal e
que as crianças sempre fazem desenhos de mãos dadas? Elas pimenta. Pique a cebola e dois ramos de erva-doce bem finos.
estavam de costas e eu ficava observando como algumas delas Refogue numa panela com azeite até ficarem dourados.
seguravam nas mãos de outras. É interessante o jeito que elas
seguram – instintivamente seguravam – do jeito que as crianças K-
seguram. Se você esticar sua mão para ela enquanto ela caminha ao E por que você fez isso? Como estava sua vida?
seu lado, ela se agarrará em sua mão – não como um adulto que irá
A cozinheira- Mas por que isso?
O quê? Minha vida? Estava muito bem. Eu continuei. Atirei na
quarta criança- na cabeça. A cozinheira-
Limpe as codornas. Faça o caldo. Tire a pele do peito das codornas,
K- pique e misture-os com as claras de ovo. É o que todos esperavam
Devia haver sangue. que eu fizesse. É o que eu faço. Mas agora, esses telefonemas. Essa
ameaça de ouvir o telefone tocar e fazer com que eu queime meus
A cozinheira- pasteizinhos de batata. Mas eu me recuso a me esconder, como esse
Claro. Mas não apenas sangue no chão. Não apenas sangue na estrangeiro que se esconde pelos cantos do hotel.
parede. Mas sangue no ar. Sangue circulando no ar. Um aerosol de
sangue. E então, uma criança começou a chorar. Justo a criança que K-
eu ia deixar viva pra que ela se lembrasse dos sons e do aerosol toda Quem é esse estrangeiro?
noite em que deitasse a cabeça em seu travesseiro branco. Pro resto
da vida. A cozinheira-
É um homem que mancha de água os lugares onde pisa. É um
K- homem que tem os dedos enrugados de tanto ficar na água. É um
A quarta criança começou a chorar. homem que fala uma língua proibida. É um homem que se esconde
entre os encanamentos. Prestes a explodir as paredes. Mas eu não
A cozinheira- me escondo como ele. Eu agüento os telefonemas. Eu me disfarço.
Ela começou a chorar e disse o que uma cozinheira diria pro filho
que não quer comer a comida que você passou a manhã K-
preparando: Cala a boca! Você viu o que aconteceu com as outras Disfarces.
crianças? Cala a boca! Come tudo.
A cozinheira-
K- O disfarce. Uma peruca ou uma burca ou um uniforme. Ninguém
E você atirou na cabeça dela. desconfia de uma pessoa de uniforme. Um chapéu e um avental
atestam sua invisibilidade. Um terrorista não mata pessoas de
A cozinheira- uniforme. Com um uniforme, eles te abrem as portas. Com meu
Eu ia atirar na cabeça. Acertei no pescoço. E depois na cabeça. uniforme, eu sou insípida, eu sou inodora, eu sou incolor.

K-
Cena 14
(alguém bate na porta. Ignoram)
(Quarto 32. Os atores)
3-
Não sei se entendi. O narrador e o detetive são a mesma pessoa?
1-
K vai se disfarçar? Está muito confuso isso. 2-
O público vê o mundo através dos olhos do detetive,
2- experimentando a proliferação de seus detalhes como se fossem
Como nas histórias de mistério que ele lia. Como nas histórias de novos. As coisas que cercam o personagem quase podem falar,
mistério em que ele imagina estar. como se, devido à atenção que se presta às palavras, elas
começassem a ter um sentido diferente do simples feito de sua
3- existência.
O que gostava nessas histórias era a sensação de plenitude e
economia. A boa história de mistério não tinha desperdício, não 1-
havia nenhuma frase, nenhuma palavra que não fosse significativa. Confuso. Detetive particular. Não é que K deseje ser o detetive K,
O mistério toma vida, cheio de possibilidades, de segredos. Como nem sequer ser como ele, mas lhe dá segurança fingir que é K
tudo tem significado, todos os detalhes, inclusive as coisas mais enquanto investiga, saber que tem a capacidade de ser o detetive K
vagas, mais trivais, podem estar relacionados com o desenlace da se alguma vez decidisse isso, mesmo que só fosse em sua mente.
história, é preciso não passar por cima de nada.

1- (alguém bate na porta)


O centro da história se desloca com cada acontecimento que o
impulsiona a frente. O centro está em todas as partes, e não se pode 2-
traçar nenhuma circunferência até que a história tenha terminado. Vou atender a porta. (abre a porta)

2- (K entra, de uniforme)
O detetive é quem olha, quem escuta, quem se move por esse monte
de objetivos e acontecimentos em busca do pensamento, da idéia K–
que una tudo e lhe dê sentido. Na verdade, o narrador e o detetive Serviço de quarto.
são intercambiantes.
1- Cena 15
Nós não pedimos tayin de cordeiro. Eu odeio comida marroquina
(Quarto de K. Restos de tayin de cordeiro no chão. A TV ligada, passando
K- um filme antigo de Bette Davis. K para o gravador)
Sinto muito.
K–
3- Inciso terceiro. Quarta-feira. Setembro de 2004. Terceiro dia de
Ainda não sei se entendi. investigações.
Eu estava sentado no vaso – cagando - quando tocou o telefone do
K- quarto. Era tarde, faltavam dez ou doze minutos para uma. O mapa
Por acaso, vocês viram algum Alpinista passar correndo por aqui? de K estava aberto no meu colo enquanto eu fazia as necessidades
no pequeno banheiro – Por que tão pequenos os banheiros em
2- hotéis? Ouvi o telefone tocar - já irritado.
Não. Atender rapidamente significaria levantar-me sem me limpar e eu
detesto cruzar ambientes nesse estado. Por outro lado, se eu
K- terminasse o que estava fazendo na velocidade normal, não
Obrigado. chegaria a tempo no telefone. Com certeza, não era para mim. Nem
o quarto era mesmo meu.
(K sai) O telefone nunca foi meu objeto favorito e mais de uma vez
considerei a possibilidade de desfazer-me do meu. O que mais me
1- desagrada é sua tirania. O telefone não só tem o poder de me
Bons detetives não precisam de disfarces. Ou de voz em off. interromper, como inevitavelmente obedecia a minhas ordens. E era
por números de telefonema errados, que eu estava cagando nesse
banheiro minúsculo.
Desta vez, decidi resistir. Ao terceiro toque, meu intestino travou.
Ao quarto toque, consegui me limpar. Ao quinto, levantei as calças,
saí do banheiro e estava cruzando tranqüilamente o quarto de K.
Atendi ao telefone depois do sexto toque, mas já era tarde. A pessoa
que chamava havia desligado.
Fui até a cama de K. Esperei. Se fosse importante, iriam ligar de
novo. De vez em quando, refém dos nervos, angustiado, me
levantava e passeava pelo quarto. Esperei, esperei. São duas e meia Mensageiro no telefone-
e o telefone ainda não tocou. Sempre o mesmo homem. K. O homem a quem chamam de K.

(o telefone toca) Voz em off –


Desta vez, não vacilei. Sabia o que ia dizer, e agora havia chegado o
K- momento.
Diga!
K-
Voz em off – Pode falar – Eu sou K.
Eu disse.
Mensageiro no telefone -
Mensageiro no telefone – Finalmente. Finalmente o encontrei.
Alô?
K-
Voz em off – Finalmente – Que deseja?
Eu reconheci a voz. Uma das muitas na secretária eletrônica.
Mensageiro no telefone-
Mensageiro no telefone – Sou o mensageiro do hotel. Preciso de ajuda. Há uma grande
Alô? É necessário, agora. ameaça. Dizem que você é o melhor pra essas coisas.

K– K-
O que é necessário? Depende a que coisas se refere.

Mensageiro no telefone – Mensageiro no telefone -


Falar. Tenho uma mensagem. Me refiro à morte. Me refiro à morte e a assassinato.

K– K-
E com quem você gostaria de falar? Mensagem pra quem? Esta não é exatamente minha especialidade - não saio por aí
matando pessoas.
Mensageiro no telefone – Cena 16
Não. Quero dizer o contrário.
(Quarto da Femme Fatale)
K-
Alguém vai matar você? Femme Fatale-
Eu queria ser uma negra. Uma dessas negras raquíticas e de lábios
Voz em off – gordos que têm o clitóris mutilado. Ainda assim, eu seria uma diva.
Era isso que um detetive de minhas histórias diria, com a voz É impossível não ser uma diva quando você se chama Bette.
tranqüila.
K-
Mensageiro no telefone - Você é Bette Davis? Você fazia filmes em preto e branco. Você era
Não posso dizer. Por telefone não. Há um grande perigo. No uma grande atriz.
terraço, amanhã nesse mesmo horário.
Femme Fatale-
K- Eu sou uma grande atriz. Os filmes é que já não são. Eu sou o
No terraço, amanhã, nesse mesmo horário. cinema. Quando me estrangularem, haverá um microfone para
capturar os últimos grunhidos e Technicolor para fotografar minha
língua vermelha e morta.

K-
Você será estrangulada?

Femme Fatale-
Vocês, detetives, levam muito a sério as palavras. Não sabem que
nunca se pode confiar na boca de uma atriz. Não existe raça mais
leviana e inconseqüente. Um palco cheio de atores levianos. Assim
será minha próxima peça.

K-
Eu não sabia que você estava planejando um retorno.
Femme Fatale- K-
Eu odeio essa palavra. Não é um retorno, eu nunca fui embora. É só K?
um consolo, um consolo para millhões de platéias que não me
perdoam por eu ter me afastado. Eu era a melhor de todas. Você Femme Fatale-
não deve se lembrar, você é muito jovem. Em uma semana, eu A sua ingenuidade me comove, detetive. Sobre K, claro. Esse K que
recebia mais de 17 mil cartas de fãs, críticas e prêmios – eu os você procura nunca existiu.
ignorava. Faltava às premiações que recebia. Homens subornavam
meu cabeleireiro para terem um pedaço do meu cabelo ruivo. Eu K-
nunca atendia aos telefonemas implorando por meu trabalho. K, o terrorista?
Houve até um marajá que veio da Índia, implorando por um par
das meias-arrastão que eu usava. Mais tarde, ele se estrangulou com Femme Fatale-
ela. Se uma atriz sentisse cócegas, eu estaria me contorcendo de rir
Chega até a ser engraçado, detetive… a carreira de uma atriz, as agora, detetive. Você não deveria acreditar nas palavras ditas
coisas que você deixa cair enquanto sobe as escadas, para poder dentro de um hotel. Tudo aqui é como um desses filmes baratos em
subir cada vez mais rápido... Acaba esquecendo que vai precisar que o assassino é o mordomo. Previsível e entediante. K é só um
delas de novo, quando tudo acabar e você voltar a ser uma mulher. personagem. Um personagem da minha peça. E dezenas e dezenas
É isso o que acontece, K...Mais cedo ou mais tarde, temos que ser só de pessoas sentarão no escuro e ouvirão minhas palavras como se
uma mulher... não importa quantas outras carreiras nós tivemos ou fossem as palavras de K. E acreditarão que eu sou K. Que você é K.
quisemos ter. No final das contas, nada é tão bom quanto se virar na E quando as luzes se acenderem e eles me aplaudirem de pé por
cama e ter certeza de que... ele está lá. Sem isso, não se é uma horas e horas, todos saberão que K nunca existiu.
mulher. Talvez um pequeno lustre francês, ou uma ridícula atriz de
teatro, ou um caderno cheio de anotações terroristas, mas não uma K-
mulher... O pano cai devagar. Fim. Mas eu sou K.

K- Femme Fatale-
E sobre o que é essa sua nova peça? E eu sou Bette Davis. Cada um acredita no que lhe convém,
querido.
Femme Fatale-
Sobre o que mais poderia ser, detetive? Sobre K, claro. K-
Mas o hotel está sob ameaças. Há um estrangeiro que talvez seja um
terrorista escondido em um desses quartos. Talvez você saiba onde
está K. Talvez essa sua peça nem exista e você só está inventando
tudo isso para apagar as evidências que te acusam. K-
Se isso é uma peça, o que acontece depois?
Femme Fatale-
Ninguém acusa uma estrela. É por isso que sou uma estrela. Femme Fatale-
Agora, você vai se deixar seduzir por mim. Porque nessa história,
(o telefone toca) eu sou a femme fatale. O detetive entra no quarto dela, faz algumas
perguntas. Revista tudo, o seu quarto, as suas coisas, as suas
Femme Fatale- roupas. Tudo o que é dessa mulher que ele só conhecia dos filmes,
Uma estrela nunca atende ao telefone. dos seus sonhos. A música ao fundo sugere nostalgia. A femme
fatale se torna o símbolo do mundo falso e hostil em que o detetive
(o telefone continua tocando, até que ouve-se a secretária eletrônica. está mergulhado. Ele percebe que nada é o que parece ser, tudo
Alguém deixa uma mensagem em uma língua estranha para a Femme adquire uma dupla e enganosa natureza. Ela vive na escuridão,
Fatale). num mundo em preto e branco que mais parece uma armadilha
para aprisionar aquele que se deixa seduzir. A artificialidade dessa
Voz no telefone- criatura pode ser mortal. O investigador, porém, teima em se
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ envolver com mulheres assim. É como se tivesse mesmo tentando
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ cair na armadilha. Ela é a viúva negra, a aranha que atrai os homens
para a sua teia e depois os mata. Chega bem perto do detetive, para
K-
que ele possa sentir seu perfume e diz: “Meu nome é Bette. Me
Está vendo, o estrangeiro misterioso. O estrangeiro que se esconde
beije.”
nas paredes, no fundo das piscinas. Eu recebi telefonemas. Eu tenho
um encontro no terraço. Isso não é uma peça de teatro. (Ela tenta beijar K.)
Femme Fatale- K-
Isso é uma peça, detetive, eu te garanto. Alguns atores devem ter Sinto muito, mas acho que você está na peça errada. Eu já fui
estar discutindo sua gênese, suas motivações, seus objetivos. Devem seduzido. A femme fatale dessa história não pode ser você. Eu fui
passar noites acordados pensando em como seria melhor interpretar seduzido pela camareira. A camareira é a viúva negra da minha
o seu papel, senhor K. Se é melhor que você tenha um sotaque história. Sinto muito, mas agora, eu tenho um encontro.
provinciano ou um sobretudo cinza. Devem ficar imaginando que
versão de você arrancaria mais gargalhadas da platéia.
Femme Fatale- Cena 17
Não. É impossível. Eu sou a femme fatale.
(K nas escadarias do hotel. Subindo para o seu encontro com o mensageiro
K- no terraço. Encontra o porteiro.)
E eu sou K. Eu admiro os atores porque eles podem acreditar no
que lhes convém. E em mais nada. O Porteiro-
Aonde você pensa que vai? Os hóspedes não podem subir até os
últimos andares. Os últimos andares dos hotéis são muito
perigosos. Pára-quedistas chechenos podem cair do céu.
Cozinheiras marroquinas podem lhe servir pratos envenenados.
Aviões islâmicos podem entrar pelas janelas de vidro. Armas
nucleares desenvolvidas em cavernas sigilosas são desenvolvidas
especialmente para destruir os últimos andares dos hotéis.

K-
Eu tenho um encontro. É muito importante. Abra uma exceção.

O Porteiro-
Não há exceções em períodos de guerra.

K-
Mas não estamos em guerra. Nós todos estamos fugindo da guerra.
Nós tomos só queremos preservar nossas raízes. Se eu descobrir
onde está K, esse tempo de incertezas vai acabar. E todos estaremos
protegidos. Pelo menos dentro dos hotéis, onde estão suas raízes.

O Porteiro-
Minhas raízes? Que raízes? Eu não sou um pé de alface: tenho pés e
eles não foram feitos para se enterrarem na terra. Quanto à essa
guerra, eu estou pouco me fodendo. Não quero acabar com guerra
nenhuma. Ao contrário, eu quero trazê-la para cá. Como os
soldados que carregam a guerra para onde estiverem seus
uniformes. O Porteiro-
Os detetives não são como os soldados. São só policiais covardes
K- que andam de sobretudo na chuva. Eu quero ser um soldado. Não o
Você não pode ser um militar. Você pode, no máximo, cuidar da soldado que espreita pelas ruas, não aquele que roda por aí no
segurança do hotel. abrigo dos carros blindados, não aquele que joga conversa fora nos
escritórios, não o exército que fica limpando banheiro sujo, mas
O Porteiro- aquele que toma conta do céu e a terra. Quando a ameaça estiver
E por que eu não poderia ser um militar? próxima, eu – o herói – descerei do céu como um pequeno floco de
neve em pleno verão para que vocês possam dormir tranqüilos, com
K- segurança. Por que você acredita talvez que a grossura dos seus
Porque você tem os pés chatos. muros te protege? Você acredita talvez que esse seu uniforme de
investigador te protege? Mas tudo isso voaria pelos ares só com um
O Porteiro- tiro que eu desse entre esses dois olhos.
Mesmo com pé chato, eu quero ser militar, descer de pára-quedas
sobre a Argélia e o Iraque e os Estados Unidos. E fazer a guerra K-
contra o inimigo. Eu quero ser pára-quedista e eu quero pilotar Você deve estar bêbado, porteiro, eu vou falar com a recepcionista.
aviões de caça. Eu quero ter o cabelo bem curto, uniforme
camuflado, a faca presa na perna, arma na cintura; eu quero me O Porteiro-
jogar pela porta grande aberta do avião, eu quero flutuar no ar. Eu Me respeite, nem mesmo nome você tem.
quero ser admirado pelas crianças, eu quero que os meninos olhem
para mim com inveja, eu quero que as mulheres me paquerem, eu K-
quero que o inimigo tenha medo de mim. Eu quero perder a minha Eu respeito você, seu uniforme, os botões dourados do seu casaco e
perna e escrever cartas falando da saudade das putas. Eu quero ser suas luvas brancas. Eu respeito até mesmo seu quepe. Mas porque
um herói, arriscar minha vida, escapar de atentados, ser ferido, você está me impedindo de passar? Você não está aqui para nos
sofrer sem reclamar, sangrar. Eu quero morrer dizendo frases trazer segurança?
bonitas.
O Porteiro-
K- Primeiro é preciso trazer a perturbação, se queremos conseguir
Pra que serve um exército se não estamos em guerra? Pra proteger segurança.
os últimos andares dos hotéis? Me deixe passar.
K-
Eu preciso passar. Eu preciso encontrar um amigo que me levará até K-
o inimigo. Me deixe subir as escadas. Eu tenho uma arma.

O Porteiro- (K mostra a arma que a camareira lhe deu.)


Quem é o inimigo? Você é um amigo ou um inimigo? Quem eu
devo defender e quem eu devo atacar? Não sabendo mais quem é o O Porteiro-
inimigo, eu vou atirar em tudo que se mexe. A função de um porteiro é defender as fronteiras. A minha função é
ir para a guerra, e o meu único descanso será a morte.
K-
Você não pode. Esse hotel depende que eu suba essas escadas. Por (K atira na cabeça do porteiro.)
favor... não é possível que você não ame o lugar em que você vive.
Não é possível que os porteiros não amem seus hotéis.

O Porteiro-
Não se chama um hotel de lar, detetive. Os que fazem do hotel sua
casa não tem uma casa. Eu amo esse hotel, e ninguém deve duvidar
disso. Eu montei guarda nas suas fronteiras, eu andei durantes
noites inteiras, com a arma na mão, o ouvido atento e o olhar em
direção aos estrangeiros. E agora você me diz que é preciso que eu
esqueça a guerra e te deixe subir até os últimos andares. Essa é uma
fronteira, detetive. E as fronteiras não se mexem como a crista das
ondas do mar. Você me diz que uma nação existe e em seguida não
existe mais, que um homem encontra o seu lugar e em seguida o
perde, e os nomes das cidades, e das propriedades, e das casas, e
das pessoas dentro das casas mudam no curso de uma vida, e então
tudo é colocado em uma outra ordem e ninguém mais sabe o seu
nome, nem onde é a sua casa, nem seu país, nem suas fronteiras.
Nem o seu hotel. Os porteiros não sabem mais o que devem
proteger. Eles não sabem mais que é o estrangeiro. Eles não sabem
mais quem dá as ordens.
Cena 18 O Mensageiro-
Uma pergunta de cada vez.
(Terraço do hotel. Lá estão o mensageiro e o mergulhador curdo, no alto de
um trampolim. K se aproxima) K-
Quem é você?
O mergulhador curdo-
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ O Mensageiro-
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
(O mensageiro traduz)
O Mergulhador curdo-
O Mensageiro- ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
Você está atrasado.
O Mensageiro-
K- Eu sou um mergulhador curdo. Eu sou aquele que dá saltos
Eu matei um homem. carpados e saltos reversos escondidos nas paredes. Eu sou aquele
que mancha o carpete dos corredores com a água que escorre de
O mergulhador curdo- mim. Eu sou aquele que não participa das Olimpíadas porque não
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ tenho uma pátria. Meu lugar não é o trampolim. Meu lugar não é o
fundo da piscina. Eu sou aquele que não é dono do chão que pisa.
O Mensageiro- Sou dono só dos meus saltos.
Há um antigo provérbio curdo que diz “Quem tem medo, tem
desgraça.” K-
Você é a ameaça que todos dizem estar escondida no hotel?
K-
Mas eu não tenho medo. Eu só queria descobrir quem é K. Por que O Mensageiro-
ele desapareceu? ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬

O mergulhador curdo- O Mergulhador curdo-


‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
O Mensageiro-
Eu não sou um terrorista. Eu nunca matei ninguém, mas mesmo O Mensageiro-
assim me proibiram de falar minha língua nos corredores do hotel. Eu pensei que você fosse K.
Eu nunca escondi bombas, e mesmo assim me obrigaram a raspar
meu bigode. Eu nunca manchei paredes com sangue judeu, e K-
mesmo assim ainda sentem o cheiro do crime que nunca cometi. Eu Eu sou.
nunca deixei restos de cabeça espalhados pelo carpete mofado das
escadarias. Eu nunca cortei fios de elevadores. Eu nunca atirei em O Mensageiro-
recepcionistas. Eu só me esforço para cair na piscina sem espirrar E só existe um K.
muita água. Porque até a água pode ser uma ameaça nos hotéis.
K-
K- Não é verdade. Eu estou hospedado no quarto dele. Eu o estou
Eu matei um homem. perseguindo.

O Mensageiro- O Mensageiro-
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ Talvez você só esteja perseguindo seu passado.

O Mergulhador curdo- O Mergulhador curdo-


‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬

O Mensageiro- O Mensageiro-
Então, talvez você seja o terrorista. Você é o protagonista de uma peça que já aconteceu. Você está
preso ao seu passado. Um detetive, com sua obsessão de achar
K- coisas perdidas e estabelecer o fio dos acontecimentos, é uma figura
Mas K não é o terrorista? do passado. Aquele que persegue indivíduos desaparecidos e
esquadrinha lugares abandonados em busca de ameaças é a própria
O Mensageiro- ameaça, porque acaba inventando o que temer. E todos acreditam
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ nas invenções de um detetive.

O Mergulhador curdo- O Mergulhador curdo-


‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ ‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
O Mensageiro-
O Mensageiro- É usando uniformes que se muda de identidade. E você usará
Há um outro provérbio curdo que diz: "Quando um gato quer roupas de alpinista e terá os dedos finos e roxos de tanto os enfiar
devorar seus filhotes, finge dizendo que são parecidos com ratos”. na neve. E você cortará seu cabelo e os pintará de vermelho. E falará
em espanhol. Como todas as pessoas que têm algo a esconder.
K-
Então, eu sou K e inventei tudo isso. Então, eu estou correndo atrás (O Mensageiro entrega a roupa de Alpinista para K.)
do meu rabo. Mas e o Alpinista? Se isso é uma peça, você deve ser o
personagem que esclarece todo o mistério para o público. K-
Mas do que eu estou fugindo? Do que estou me escondendo? Por
O Mensageiro- que tenho que desaparecer? Por que devo mudar meu idioma.
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬
O Mergulhador curdo (já falando a língua de K)-
O Mergulhador curdo- É o que todo terrorista tem que fazer. Fugir. Se esconder.
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ Desaparecer. Fingir que não sabe falar seu próprio idioma. É o que
todo terrorista é: um estrangeiro.
O Mensageiro-
Você tem razão. Eu sou o final da sua peça. Quanto ao Alpinista, ele (K se veste com as roupas de Alpinista)
não existe.
K-
K- E quanto a você, vai continuar escondido no fundo das piscinas, nos
Mas eu o persegui pelos corredores. terraços dos hotéis, debaixo das camas... assustando a todos com
seus saltos carpados?
O Mensageiro-
Você estava correndo atrás do seu passado. Ele é só um uniforme. O Mergulhador curdo-
Um disfarce. Que você deve usar. Se eu der um tanto, que seja pouco de crédito aos cientistas muito
antigos, se eles não se enganaram além do que é razoável; se eu
O Mergulhador curdo- consigo compreender uma parte das teorias dos novos cientistas,
‫ثقحةثس شقشح خرشفسعل ث خيقشىخثم‬ que são muito mais complicadas; enfim, se eu acredito que as
conclusões dos cientistas são exatas, ou mais ou menos exatas, que
elas contêm pelo menos um pouco de verdade, e que eu acredite
sem ter absolutamente compreendido as razões, eu chego no Eu espero não estar dando o mau exemplo. Seria desastroso se o
seguinte: se a Terra é realmente redonda, se a sua circunferência planeta se esvaziasse, e mais desastroso ainda se o espaço se
tem efetivamente quarenta mil e setenta e quatro quilômetros, se ela povoasse. Em todo caso, eu só estou tentando encontrar o meu
gira realmente em torno de si mesma em vinte e três horas e lugar. Eu tento: eu não tenho nada, nada a perder. Dois segundos
cinqüenta e seis minutos como se afirma, eu me movo neste no ar e tudo irá bem. Eu acho que vai funcionar. Eu acredito nos
momento no meu trampolim à velocidade de mil seiscentos e cientistas, eu tenho fé neles. Espero que eu não tenha esquecido
setenta e quase dois quilômetros por hora. Mas eu estou, ao que alguma lei. Eu vou saber.
parece, bem preso ao solo. Agora, afirma-se, eles afirmam e eu
acredito, que a Terra completa um revolução em volta do Sol em (O mergulhador curdo salta do trampolim, do topo do hotel.)
trezentos e sessenta e cinco dias vírgula vinte e cinco; seu percurso
sendo de novecentos e quarenta milhões, quatrocentos e sessenta e O Mensageiro-
nove mil, trezentos e setenta quilômetros, trata-se de uma Você matou mais um homem.
velocidade de dois milhões, quinhentos e setenta e quatro mil,
oitocentos e sessenta e três quilômetros por hora, que se somam aos
primeiros; eu me moveria então, exatamente neste momento e sem
esforço, à velocidade de dois milhões, quinhentos e setenta e seis
mil, quinhentos e trinta e quatro quilômetros por hora. Eu tenho
tendência a acreditar nisso. Nada me prova, senão minha fé
inabalável nos antigos, mesmo se eu não os compreendo
completamente, mas tenho fé neles, e nos modernos também.
Assim, a menos que eu tenha esquecido alguma regra, a menos que
alguma lei tenha me escapado, ou que uma página tenha ficado
colada na outra sem que eu tenha percebido, se tudo isso é verdade,
se eu desse um salto carpado no ar, e que a Terra continuasse sua
corrida no espaço, se eu saltar e ficar no ar nem que seja por dois
segundos, eu deveria estar, quando caísse, a mil e quatrocentos
quilômetros daqui no espaço, a Terra se distanciará de mim a uma
velocidade louca, ela terá escapado de mim e eu terei escapado dlea.
Não há razão para que isso não funcione, os cálculos estão certos, os
cientistas têm razão. E então talvez eu finalmente tenha meu lugar
no espaço.
Cena 19
Cena 20
(Quarto de hotel. Os atores)
(Corredor. K disfarçado de Alpinista. Ele está voltando para o seu quarto,
1- com medo de ser encontrado ou reconhecido, agora que sabe que ele é o
Um looping. Um salto carpado no ar. Um hipódromo. terrorista. Encontra consigo mesmo no corredor. Como aconteceu na cena
12. K Alpinista foge de K detetive. Perseguição. Consegue escapar.)
2-
Exato. É como se K estivesse voltado ao seu passado e tivesse
reencontrado tudo lá. Inclusive ele.

3-
Não sei se gosto.

4-
Por quê?

3-
Um personagem estrangeiro chega no final e resolve tudo.

1-
Não é o final. É o começo. É como se K tivesse muitas vidas
simultâneas. Todas acontecem em tempos diferentes. E às vezes se
cruzam.

2-
É isso que os estrangeiros fazem. Se cruzam nos corredores de
hotéis.

1-
Pelo menos nesta peça.
Cena 21
K-
(Quarto de K. Sobre a cama, uma tesoura. No chão, restos de um prato Pode entrar.
marroquino. Sobre a escrivaninha, cartas em um alfabeto desconhecido,
letras indecifráveis. K está com o cabelo cortado, pintado de vermelho. (Ela entra)
K, para o gravador)
A Camareira-
K- Eu trouxe a arma.
Inciso quarto. Quinta-feira. Setembro de 2007. Quarto dia de
investigação. (Ela o beija)
Acabo de ser perseguido por mim mesmo no corredor. Tive sorte de
não ter me reconhecido, graças ao disfarce de alpinista. A Camareira-
Já cortei todo o meu cabelo e joguei as mechas na privada. Pintei de Não se preocupe. Eu limparei as paredes com cuidado. Suas
vermelho. Como deve ser. Desenhei o mapa que devo seguir paredes sempre serão brancas e limpas. Deixarei a toalha molhada
quando voltar a esse hotel. As mesmas perguntas, os mesmos sobre a cama, pra que tudo permaneça como sempre. Quando tudo
hóspedes. Os mesmos provérbios curdos. O mesmo manual de estiver bem limpo, trocarei meu nome. Me chamarei Beth, e
instruções. Já deixei tudo com K assim que eu me encontrei comigo montarei peças de teatro sobre você.
no elevador, esta manhã. Eu me alertei sobre o perigo das escadas.
Dei um beijo em meu rosto, porque não é sempre que se despede de (Ele se encosta na parede branca)
si mesmo.
Eu sou uma ameaça. E as ameaças devem ficar no alto das A Camareira-
montanhas nevadas da África. Dedos congelados não apertam É isso que as camareiras fazem, não é? Você gosta do meu novo
gatilhos. Nas montanhas cheias de neve, morrerei congelado e só nome?
serei encontrado décadas depois. E então me darão um atestado de
óbito descrevendo meu corpo semi-decomposto. E quem sabe, K-
então o gelo possa ter apagado todos os meus crimes. Beth. Nome de uma diva.

(Batem na porta) A Camareira-


Me conte sobre as montanhas nevadas.
A Camareira-
Serviço de quarto, senhor.
K- Cena 22
Eu conheço uns lugares na África, umas montanhas tão altas, onde
neva o tempo todo. Ninguém sabe que neva na África. Eu, é isso (Ouve-se a secretária eletrônica de K)
que eu prefiro...
K-
(A camareira acerta três tiros em K. Muito sangue mancha a parede Olá. Sou eu, K. No momento, não posso atendê-lo. Deixe seu recado
branca. Ela pega uma toalha, e começa a limpar.) após o sinal.

Voz da camareira-
Eu espero que você esteja usando luvas, porque me disseram que a
neve pode congelar os dedos. Quando eu tiver minhas botas de
neve, eu vou te procurar. E você tinha razão, eu andei lendo sobre a
geografia da África: tem neve nas montanhas mesmo.

Fim.

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