Do livro “Sagas”, editora Hedra, 2008. MEIA FOLHA DE PAPEL Tradução de Carlos Rabelo.
A ÚLTIMA LEVA da mudança partira, e o inquilino, um jovem
com véu de luto no chapéu, vagava pelo apartamento mais uma vez, para certificar-se de que não esquecera nada. Não, não esquecera nada, absolutamente nada; e saiu para o ves- tíbulo, decidido a não mais pensar na vida que levou nesse apartamento. Mas lá, junto ao telefone, a metade de uma folha de papel estava pregada com tachas. O papel estava coberto por várias caligrafias; algumas eram muito elegantes, a tinta; outras foram rabiscadas a lápis ou caneta vermelha. Aquela meia folha de papel contava a bela história que se desenrolou no curto período de dois anos; ali estava tudo que ele tentava esquecer: um pedaço de vida humana, ocupando a metade de uma folha de papel. Desprendeu a folha; era um desses papéis de rascunho amarelo-claros, que brilham. Colocou-a em cima da cornija da lareira e, apoiado, leu a folha. Primeiro estava escrito o nome dela: Alice. Para ele, o nome mais belo do mundo, porque era o nome de sua noiva. E o número — 15. 11. Parecia o número de um salmo na igreja. Em seguida, "banco". Era o seu trabalho, o sagrado trabalho que lhe provia o pão, o lar e a esposa, sua razão de viver. Mas o banco havia falido, e o nome estava riscado; ele se salvara em outro banco, após um curto periodo de muita preocupação. A hora chegou; a floricultura, o cocheiro — era a época do noivado, quando seus bolsos estavam cheios. A seguir, a loja de móveis, a loja de tapetes, a casa montada. A empresa de transportes: o casal se muda. A bilheteria da Ópera: 50. 50. Os dois são recém-casados MEIA FOLHA DE PAPEL
e vão a Opera aos domingos. Os melhores momentos juntos
eram passados lá, em silêncio, quando se imaginavam em meio à beleza e harmonia do outro lado da cortina, naquele mundo de faz-de-conta. A seguir vem um nome riscado. Um amigo que ganhou certo renome, não soube lidar com o sucesso e caiu, desampa- rado; depois, precisou viajar para longe. Como isso é delicado! Aqui alguma novidade parece ter entrado na vida do casal. Está escrito com uma caligrafia de mulher e a lápis: "Par- teira". Mas que parteira? — Sim, aquela de capa longa e com o rosto amigável e simpático que vinha silenciosa, e nunca passava pela sala, preferindo ir até o quarto pelo corredor. Abaixo do nome dela estava escrito "Doutor L". Pela primeira vez surge o nome de um parente: "Mamãe". Era a sogra que, sendo discreta, ausentara-se para não inco- modar os recém-casados; mas quando chamada, na hora da necessidade, veio de bom grado, pois precisavam dela. Depois começa um grande rabisco azul e vermelho. Agên- cia de emprego: a criada se mudou, ou uma nova foi chamada. Farmácia. Hum! As coisas pioram. A companhia de laticínios. Aqui um pedido de leite, livre de micróbios. Loja de especiarias, açougueiro... A casa começa a ser gerida pelo telefone, pois a patroa não está mais no seu lugar. Não. Ela está de cama. Não conseguiu ler o que vinha mais adiante, porque seus olhos começaram a se turvar, como deve acontecer aos que se afogam quando tentam ver através da água salgada. Estava escrito: "funerária". Já diz o bastante! Um grande e um pequeno. Subentenda-se: caixões. E em parênteses estava escrito: "de cinzas". Depois mais nada! Cinzas às cinzas, e é assim mesmo. Apesar disso, pegou aquele papel amarelo e deu-lhe um beijo. Depois, colocou-o no bolso da camisa. Em dois minutos, revivera dois anos de sua vida. Quando saiu para a rua, não STRINDBERG
estava mais cabisbaixo; pelo contrário: tinha a cabeça erguida
como um homem feliz e orgulhoso, pois sentia que, apesar de tudo, havia possuído o que há de mais belo. Quantos infelizes nunca o possuíram!
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“Meia folha de papel”, de August Strindberg.
Do livro “Sagas”, editora Hedra, 2008. Tradução de Carlos Rabelo.