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ANAIS
DO III ENCONTRO DA REDE
PARANAENSE DE PESQUISA EM
HISTÓRIA E FILOSOFIA
DA CIÊNCIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
Curitiba, 16 a 18 de março de 2005
Eduardo S. O. Barra
Alex Calazans
Veronica F. B. Calazans
(organizadores)
Inclui biliografia
ISBN 859922901X
SESSÃO DE ABERTURA:
MESA-REDONDA “A CIÊNCIA COMO OBJETO”
AS QUESTÕES ............................................................................................................................... 6
Pablo Mariconda
Michel Paty
AS RESPOSTAS.............................................................................................................................. 14
Alexandre Dittrich
Eduardo Salles O. Barra
João Carlos M. Magalhães
José Borges Neto
EIXO TEMÁTICO 1:
MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA; MECANICISMO; FILOSOFIA DA NATUREZA
EIXO TEMÁTICO 2:
TELEOLOGIA NA BIOLOGIA
ALGUNS PRESSUPOSTOS SUBJACENTES ÀS TEORIAS SOBRE A NATUREZA E ORIGEM DA VIDA ............. 249
João Carlos M. Magalhães
EIXO TEMÁTICO 3:
CIÊNCIA: CRITÉRIOS E VALORES; PÓS-MODERNISMO NA CIÊNCIA
EIXO TEMÁTICO 4:
ESTUDOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA;
EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E MATEMÁTICA
Pablo Mariconda
Departamento de Filosofia/USP
Michel Paty
Centre National de la Recherche Scienfique (CNRS); Equipe REHSEIS; Université Paris 7;
Departamento de Filosofia/USP
objetos de aplicação, existe uma unidade de função de todas elas, que nós
chamaremos de função de racionalidade, que permite considerar uma
coerência (possível) no ser pensante entre seus vários campos de pensamento
e de ação.
4. Admitindo estas considerações (que poderiam e deveriam ser
investigadas em mais detalhes ainda), retomemos os elementos de
questionamento sobre o objeto “ciência” considerado como evolutivo e
histórico. Em geral, a filosofia, quando considerava a ciência como seu objeto
de reflexão, a tomava no seu estado supostamente atual, na forma de suas
proposições estáticas. A atitude, exemplar a este respeito, de Kant, era de se
perguntar como a ciência é possível, como ela é um conhecimento inteligível e
seguro, e ele foi assim levado a formular o seu edifício da teoria crítica da
razão pura. Ele tomava de início a ciência tal como ela acabava de ser
transformada e edificada na modernidade, como já adquirida de maneira
essencialmente bem delineada nas suas grandes estruturas, e parecendo
bastante segura, com o papel notável da ciência newtoniana, da matemática e
da física matematizada. Esta ciência nova mostrava um grau bastante alto de
verdade, pois combinava o caráter inteligível com a adequação à natureza,
dando conta de uma grande quantidade de fenômenos naturais. A potência da
teoria física da época (a mecânica ou dinâmica) lhe vinha da forma matemática
da sua expressão, que todos os avanços do século xviii tinham confirmado e
ampliado, em particular nas áreas da mecânica dos corpos e da astronomia
matemática. A análise (infinitesimal, ou diferencial e integral), fundada por
Newton e Leibniz na última parte do século precedente, tinha sido desenvolvida
consideravelmente, em primeiro lugar, pelos discípulos de Leibniz (na escola
dos Bernoulli, e nas academias parisiense e berlinense), e, ao tempo de Kant,
mesmo pela obra notável e celebrada dos “Geômetras” (matemáticos e físicos-
matemáticos tais como Euler, Clairaut, d’Alembert, Lagrange…).
Os avanços deste ramo da matemática e sua utilização nos fenômenos
mecânicos e astronômicos e até no próprio pensamento a seu respeito, parecia
dar uma grande segurança a respeito das possibilidade da razão humana no
conhecimento do mundo. Claro que existiam muitos ramos do conhecimento
que não pertenciam ao domínio da mecânica e cuja aproximação não se fazia,
As questões 9
nem se podia fazer, da mesma forma, como este uso particular da matemática
no pensamento da mecânica. Mas a matemática dava uma grande lição até
para os outros conhecimentos, sendo ela, segundo Kant, um exemplo nítido da
“razão pura”. Era assim possível, baseando-se nos resultados mais seguros da
ciência do seu tempo, delinear uma teoria crítica da razão pura, que permita
entender como é que a ciência (na variedade dos seus ramos) é possível.
5. Encontramos aqui uma lição do programa kantiano de justificação
racionalista do conhecimento, que é este de tomar o conhecimento, na forma e
nos modos que ele tem, como um fato, e sendo este um fato, como os demais
fatos, é legítimo tentar entendê-lo (como ele é, e, sobretudo, como ele é
possível). Ao contrário do empirismo, a perspectiva kantiana é de entender o
conhecimento racionalmente, e por isto, de estabelecer racionalmente a sua
possibilidade. Tal é um aspecto importante, talvez o mais importante, da
questão “a ciência como objeto”. Temos que entender como é que a ciência é
possível, a ciência considerada como sendo um conhecimento seguro (pelo
menos bastante seguro) e inteligível, isto é, captado pela estruturação racional
do pensamento do sujeito humano transcendental. Esta estruturação racional
era concebida por Kant (das “formas puras da sensibilidade”, que enquadram e
condicionam a percepção, até as categorias do entendimento que permitem a
apreensão analítica e sintética, incluindo o “sintético a priori”, nó da elaboração
kantiana) como intangível, adquirida uma vez por todas1. Se não fosse o caso,
estimava ele, recairíamos nas perspectivas do empirismo, sem possibilidade de
entender porque se entende a ciência: ela seria simplesmente dada, e deixaria
de ser a ciência, se ela não fosse enquadrada pela razão (pura). Em princípio,
o conhecimento segundo Kant pode se modificar e crescer. Mas, basicamente,
ele teria que ficar dentro dos moldes da razão pura, os quais, por abrangentes
que estejam, estavam, como nós sabemos hoje, marcados pelos limites da
ciência mais segura do tempo, elaborada em tôrno da mecânica clássica.
6. Ora, a ciência muda, sem entretanto deixar por isso de ser
ciência. A ciência mudou desde o tempo do iluminismo e da filosofia kantiana,
sem deixar de ser ciência, e na continuação daquela precedente, mas sem
1
Kant [1781-1787].
Michel Paty 10
mais se deixar adequar aos requisitos da filosofia kantiana que devia, pelo
menos, sofrer alterações e ser adaptada. Tais tentativas foram feitas pelos neo-
kantianos: por exemplo por Ernst Cassirer, que propôs superar os limites da
concepção kantiana do espaço e do tempo, inadequada para dar conta da
teoria da relatividade, substituindo estas formas da intuição pura por uma
“função de espacialidade” permitindo a construção de conceitos de espaço e de
tempo mais físicos e adequados às exigências da física contemporânea2. Mas
este tipo de adaptação sofre de uma falta de generalidade, quando se
necessita repensar as grandes linhas da filosofia racionalista. Em particular, era
necessário reconsiderar o sintético a priori, que Kant colocava no centro do seu
edifício. Os empiristas e positivistas lógicos, propunham uma pura e simples
“dissolução do sintético a priori”, mas esta seria também a dissolução da
racionalidade. Pois, com a rejeição do sintético a priori, rejeita-se a sua função,
que é a da organização racional dos elementos de conhecimento.
7. Se nós compartilhamos da perspectiva racionalista, no sentido
kantiano da superação do empirismo, nós temos que manter a idéia de uma
função de racionalidade, que teria de ser concebida diferentemente do sintético
a priori kantiano no sentido estrito, isto é, no seu caráter intangível, inerente, na
sua forma proposta, ao pensamento humano3. Da nossa perspectiva
racionalista, pretendemos, como Kant, tomar a ciência como um dado, sem
com isso nos satisfazer com a sua simples aceitação à maneira dos empiristas,
mas tentando entendê-la com a razão. Só que nós sabemos agora que este
objeto da nossa investigação, o conhecimento científico, transforma-se
historicamente de tal maneira a colocar em jogo até as noções que nos
pareciam as mais bem estabelecidas e fundadas (espaço, tempo, uma certa
acepção da causalidade etc.). Tomando como objeto de investigação a ciência
tal como é dada, temos que levar em conta esta lição dos fatos do
conhecimento: a ciência muda, nossas formas de conhecimento mudam
também. A nossa concepção das condições de possibilidade também vão ter
que mudar, se mantemos o programa de uma inteligibilidade racional do objeto
2
Cassirer [1922]; veja Paty [1993], cap . 7.
3
Veja, a este respeito: Paty [1992]
As questões 11
4
M. Paty [no prelo].
5
Refiro-me aqui à conferência dada neste mesmo evento, na sessão de encerramento, sobre
uma aproximação do tema da criação científica através do caso do trabalho de Einstein com a
teoria da relatividade: M. Paty [2005].
As questões 13
Referências
KANT, I. [1781, 1787]. Critik der reinen Vernunft, J.F. Hartknoch, Riga,
1781; 2a ed. modificada, 1787. Trad. fr. por A.J.L. Delamarre e F.
Marty, Critique de la raison pure, in Kant, E., Oeuvres philosophiques,
vol. 1, Gallimard, Paris, 1980, p. 705-1470.
Alexandre Dittrich
Departamento de Psicologia/UFPR
(...) falar sobre o falar não é mais circular do que pensar sobre o pensar ou saber
sobre o saber. Estejamos ou não nos elevando através de nossos próprios recursos,
o simples fato é que nós podemos fazer progresso em uma análise científica do
comportamento verbal (1945/1972, p. 380).
1
Usaremos o termo “escolha” por conveniência, mas entendemos que uma “escolha” filosófica
não implica, necessariamente, qualquer deliberação ou opção consciente por parte de quem a
realiza.
2
Tais escolhas, contudo, também integram o campo comportamental – e, portanto, a
realização de escolhas filosóficas também figura entre os objetos de interesse para a análise
do comportamento.
3
Contudo, nem todos os problemas filosóficos admitem soluções científicas. O aspecto
prescritivo da ética é um exemplo digno de nota.
As respostas 17
4
Deve-se notar, contudo, que o behaviorismo radical não só não desconsidera a existência de
eventos comportamentais privados, como fornece novas perspectivas para a compreensão de
sua gênese. .
As respostas 23
que fosse. A rigorosa obediência a esta regra traz valiosos dividendos: ela
contribui para a efetividade das leis científicas. Retomando as famosas
palavras de Bacon, “(...) a natureza não se vence, se não quando se lhe
obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática”
(1620/1999, p. 33). “Obedecer à natureza”, contudo, é um aprendizado, sujeito
a uma ética particular – e, ao menos nesse sentido, o pesquisador está tão
sujeito a influências éticas quanto qualquer ser humano.
Conclusão
Bibliografia
Bibliografia:
Não creio que a ciência seja um objeto natural. Logo, não vejo porque
deveria haver, necessariamente, uma ciência da ciência. Também não vejo
porque não poderia haver uma ciência da ciência. A ciência não seria um
objeto mais misterioso ou esquivo do que a linguagem, por exemplo. Assim
como a Lingüística é possível – e engloba estudos tão distintos quanto a
fonética, a semântica formal, a neurolingüística, a sociolingüística, a lingüística
histórica e a análise do discurso – seria possível uma “cienciologia”, que
englobaria estudos tão distintos quanto a história da ciência, a antropologia da
ciência, a sociologia da ciência, a psicologia da ciência, a filosofia da ciência,
etc.
Certamente, a ciência da ciência teria que ver externamente o fazer
científico e os seus resultados (TODA ciência vê externamente o seu objeto).
Embora eu não acredite que haja algum fundamento ou utilidade para a
distinção entre ciência natural e ciência humana, essa ciência da ciência seria,
por excelência, uma ciência humana. E enfrentaria os mesmos problemas que
outras ciências humanas enfrentam.
Não posso concordar, no entanto, com a afirmação (se é que é, de fato,
uma afirmação) de que qualquer reflexão sobre a ciência seria filosófica. O
filósofo não tem o monopólio do pensar a ciência. Ao contrário, como pensava
Bachelard (ouvi isso do Granger), o filósofo da ciência é que tem que ser, antes
de tudo, um cientista (até para saber do que está falando).
Antes de encerrar, creio que vale dizer algumas palavras sobre a
questão da natureza investigativa própria da ciência a que Pablo faz alusão.
Creio que aí por trás está um pressuposto de que a ciência deve ser
definida como um método, como um modo de pensar. Eu diria que os
"processos investigativos" não são iguais para todos os tipos de ciência. Em
conseqüência, não creio que haveria razão para supor que a ciência da ciência
não pudesse ter "processos investigativos" próprios, tão "científicos" como
qualquer outro
Na questão colocada pelo Michel, há dois pontos centrais que eu
gostaria de comentar. O primeiro é a questão da definição do que é ciência –
ponto que já abordei no comentário anterior, mas que não aprofundei para
poder retoma-lo aqui. O segundo é a questão da racionalidade.
As respostas 43
Como já disse antes, a ciência é uma atividade humana que tem por
objetivo a busca do conhecimento fundamentado. Logo, a ciência comporta
tanto o lado da busca do conhecimento como o lado do conhecimento que
obtém. E creio que cada uma dessas coisas pode ser observada e analisada
deforma independente (embora todos os aspectos se relacionem). Por
exemplo, é possível estudar os sujeitos envolvidos neste “fazer”, suas crenças,
seus comportamentos, e fazer uma psicologia dos cientistas. É possível
estudar as formas de convencimento de que lançam mão esses sujeitos para
impor aos outros os conhecimentos que obtiveram, e que consideram
verdadeiros, fazendo uma retórica da ciência. É possível estudar as várias
formas que esse fazer assume no decorrer da história, permitindo uma história
da ciência. É possível estudar as diversas feições que esse fazer assume
quando voltado a domínios distintos, na forma de uma tipologia da ciência (ou
uma ciência comparada). É possível, por outro lado, buscar invariantes do fazer
científico por sobre as várias ciências. E, é possível, também, ater-se aos
conhecimentos obtidos por uma determinada ciência, olhando a consistência
interna desses conhecimentos de forma a tomá-lo como um sistema.
Como também já disse antes, a ciência não é um objeto mais misterioso
do que a linguagem. E na lingüística co-existem (nem sempre harmonicamente,
reconheço) abordagens, digamos, “estruturalistas”, que tomam as línguas
como conjuntos de produções lingüísticas (enunciados), que têm sua lógica
interna investigada, ao lado de abordagens “gerativas”, que tomam as línguas
(os conjuntos de enunciados) como fenômenos que resultam de algo mais
profundo e fundamental – uma gramática interiorizada, na proposta de
Chomsky, ou um conjunto de condições de produção, externas, por definição,
na proposta das análises do discurso.
Enfim, a questão de se ter que escolher entre o processo ou o produto,
é, na minha opinião, uma falsa questão. Pelo mesmo caminho vai a questão da
busca da racionalidade apontada no mote do Michel: também é uma falsa
questão.
Concordo com Lakatos quando ele diz que a racionalidade da ciência é
construída a posteriori. Assim, ao tomar a ciência como objeto, a última coisa
que deveríamos fazer é supor que lá iremos encontrar racionalidade. A busca
José Borges Neto 44
1. VISÃO GERAL:
1Em outros casos, entretanto, poderíamos dizer que o processo de matematização foi além,
mesmo bem antes de Newton. Tal é o caso de fenômenos óticos, que receberam tratamento
geométrico desde os gregos, mas também de fenômenos como o da queda dos corpos.
César Augusto Battisti 50
2. Antifinalismo cartesiano:
2
As referências à obra cartesiana são dadas a partir da edição standard de Adam e Tannery
(AT).
A natureza do mecanicismo cartesiano 51
fim,3 a menos que o expresse de forma volitiva, o que o mundo físico não pode
fazê-lo.
Por definição, a causa final não está presente no efeito e, portanto, não
é manifesta. Ela é algo que não é imediatamente dado e, portanto, precisa de
uma interpretação. Assim, ela não recai sob os preceitos da evidência, do claro
e distinto, por não se apresentar imediatamente à mente.
Entretanto, não estando manifesta, ela poderia talvez ser descoberta
retroativamente, a partir do meio ou efeito. Mas essa perspectiva também é
fadada ao fracasso, pois o efeito denuncia a causa, mas uma causa que lhe
seja suficiente e, de algum modo, semelhante. A causa deixa sua marca no
efeito, mas somente na proporção dada pelo próprio efeito. Tal é o que diz o
princípio "do nada nada provém". Essa relação entre causa e efeito, porém, é
uma relação entre a causa eficiente e o efeito e não entre a causa final e o
meio para realizar o fim.
De um modo geral, podemos concluir, portanto, que, no que concerne ao
mundo físico, ainda que ele seja obra do criador e que, portanto, Deus tenha
agido conforme um ou mais fins, Descartes não vê como conciliar a abordagem
mecânico-matemática, nem uma abordagem clara e distinta da natureza com o
recurso à teleologia. Por um lado, os fins são inacessíveis, mas, além disso, os
fins não são quantificáveis, nem apreendidos dentro do quadro metodológico
do simples - complexo.
Além disso, há o problema de a natureza dever ter consciência de seus
próprios fins. Que ela tenha fins, isso Descartes parece admitir, pelo menos
para a natureza em seu todo. Mas que tais fins estejam inscritos de algum
modo na natureza, Descartes talvez duvidaria. De todo modo, se eles
estiverem, de algum modo, inscritos nela, ela não tem consciência. E, se ela
não tiver consciência deles, ela não pode realizá-los efetivamente. Portanto,
eles são inúteis à natureza em si. Logo, se eles estiverem inscritos nela, eles
devem ser redefinidos em termos determinísticos. E, portanto, o que temos a
conhecer são as leis fixas que Deus impôs à natureza.
3Essa afirmação talvez seja problemática no campo da biologia e da medicina, uma vez que
essas ciências, mesmo em Descartes, dificilmente desvinculam o estudo de um órgão (tal
como o coração) de sua finalidade.
A natureza do mecanicismo cartesiano 53
Finalmente, é preciso dizer que, para Descartes, tal como para Bacon e
para Espinosa, o finalismo é, em grande parte, uma projeção humana sobre a
natureza ou uma avaliação da natureza a partir da perspectiva humana. Nós,
seres de vontade e de liberdade, avaliamos a natureza a partir da perspectiva
dessas características do espírito. Avaliamo-la também sob a perspectiva da
sensibilidade e do que ela nos fornece. Assim, cometemos dois erros ao
procedermos desse modo. Em primeiro lugar, por não distinguirmos claramente
alma e matéria, imputamos à matéria vontade, liberdade e espiritualidade. Em
segundo lugar, ao avaliarmos as coisas a partir de nós e da sua utilidade para
nós, agora já não como almas, mas como homens (corpo e alma), cometemos
o erro do antropomorfismo e do antropocentrismo. Como dirá Descartes nos
Princípios (Parte III, art. 3), "não é de nenhum modo verossímil que todas as
coisas tenham sido feitas para nós, de tal maneira que Deus não tenha tido
nenhum outro fim ao criá-las".
Em síntese, o combate ao finalismo é o contraponto do mecanicismo. A
sua negação é a afirmação do mecanicismo e vice-versa. Não há como aderir
ao mecanicismo cartesiano sem a crítica à teleologia física, da mesma forma
que não se pode fazê-lo sem a crítica à sensibilidade.
na glândula pineal (ou conário). Depois disso, trata dos nervos, dos quais vêm
as impressões dos objetos exteriores por meio dos chamados espíritos
animais. Essa é uma descrição comum a todos os sentidos, distinguindo-se a
visão somente pelo que representa o olho. Efetivamente, como veremos, a
teoria da percepção visual terá uma função paradigmática em relação à teoria
da percepção em geral.
Dito isso, a primeira observação que Descartes faz é que a alma, para
sentir, não precisa de imagem alguma. A exemplo das palavras e dos signos,
não é preciso haver imagem para "excitar nosso pensamento" (AT, VI, p. 112);
e, se houver, não há necessidade de que as imagens sejam semelhantes aos
objetos que significam. Na verdade, as imagens não podem ser semelhantes
em tudo aos objetos que representam, pois do contrário seriam os próprios
objetos. Ademais, como as regras da perspectiva mostram, uma pintura ou
imagem bidimensional, como a que aparece na retina, no fundo do olho, deve
assemelhar-se pouco ao objeto tridimensional real; além disso, por seu aspecto
esférico, utiliza as técnicas dessa teoria, tal como quando representamos
círculos e quadrados por meio de ovais e losangos.
Isso tudo não impede, entretanto, que a imagem inscrita no fundo do
olho tenha certa semelhança com o objeto e que ela represente naturalmente
em perspectiva o objeto visto, como uma lente fotográfica sobre um filme ou a
imagem no interior do quarto escuro sobre um pano branco. E, tal como nesses
casos, a maior ou menor perfeição da imagem depende dos raios, da sua
dispersão ou reunião, da quantidade de luz, da distância do objeto, da maior ou
menor abertura da pupila, que nada mais é que um músculo que se comporta
mecanicamente em razão de estímulos luminosos externos.
É importante observar também que, para a formação da imagem, os
raios provenientes de um único ponto do objeto visto devem se reunir em um
único ponto sobre a retina, ainda que percorram caminhos distintos.
Igualmente, cada ponto do objeto visto mantém sua posição ou situação em
relação aos outros pontos. Em síntese, como uma pintura, a imagem no fundo
do olho reproduz bidimensionalmente as características espaciais do objeto
visto, com sua figura, situação, grandeza e distância. E tudo isso por meio das
César Augusto Battisti 58
leis que regem o comportamento dos raios luminosos, dentre as quais a lei da
refração.
Todos esses fatores, que são de natureza geométrica, são produzidos
mecanicamente, por meio do comportamento dos raios luminosos. Nessa
perspectiva, o olho poderia ser substituído sem dificuldade por um globo
artificial, adequadamente construído e semelhante a ele, cujas divisões
internas contivessem lentes ou líquidos com índices de refração idênticos ao do
cristalino e dos outros humores ou líquidos que o compõem e em cujo fundo
contivesse um tecido delicado e semitransparente (ou, mesmo, uma casca de
ovo) que funcionaria como a retina. Sobre essa fundo da casca de ovo, que
envolveria boa parte do globo artificial, com exceção de uma abertura
semelhante a do olho, poderíamos constatar a presença da imagem do objeto,
tal como no olho natural.
No segundo momento da análise, Descartes irá tratar da passagem
dessa imagem sobre a retina até o cérebro. Esse percurso, também descrito
mecanicamente, já não será de natureza ótica, mas fisiológica. Trata-se da
transmissão dos "impulsos" captados pelo nervo ótico, que espalha suas
terminações pelo fundo do olho e que transmite, por meio do comportamento
cinético de seus filamentos, a "imagem" ao cérebro.
Aqui duas observações são importantes. A primeira é a seguinte: dado o
número muito elevado de filamentos que compõem o nervo ótico e que se
espalham no fundo do olho, cada um desses filamentos em sua extremidade é
atingido por um conjunto de raios luminosos provenientes de um único ponto
do objeto visto, de modo que, para cada ponto do objeto, um único ponto do
nervo ótico é acionado e, assim, o nervo ótico é atingido em locais diferentes
por movimentos diferentes. Essa configuração é transmitida por ele até o
cérebro, de sorte que, na superfície interior desse órgão, se forma uma espécie
de pintura de algum modo semelhante à imagem produzida na retina e,
portanto, ao objeto visto. Contudo – e essa é a segunda observação – essa
pintura ou configuração de dados não é mais de natureza ótica, mas
cinemática; portanto, sua semelhança com o objeto exterior não pode ser mais
em termos de imagem propriamente dita, mas de outro tipo, uma espécie de
A natureza do mecanicismo cartesiano 59
Dito isso, Descartes pode concluir que "há um meio de explicar a causa
de todas as mudanças que acontecem no mundo e de todas as variedades que
aparecem sobre a Terra" (AT, XI, p. 12). A tese exposta acima contém
potencialmente, portanto, toda a física; e, assim, da análise da sensação da luz
emerge aos poucos as principais teses do mecanicismo cartesiano.
A título de exemplo, podemos apresentar algumas delas, como a tese da
inexistência do vazio e a da existência de três diferentes tipos de partículas ou
de aglomerações mínimas de matéria, das quais outras são concebidas quase
que imediatamente, como a da identidade entre matéria e extensão.
Quanto à questão do vazio, Descartes não apresenta aqui o seu
argumento mais forte sobre a sua inexistência, como fará nos Princípios (Parte
II, art. 16): o de que o vazio é um conceito contraditório, uma vez que é uma
coisa (substância) que não é nada e que não tem propriedades. Logo, não
pode existir. No Mundo, o autor se centra mais no problema da origem do
conceito. O vazio é um conceito oriundo do uso indevido dos sentidos: como
muitas vezes não sentimos nada, pensamos que não há nada. Mas os sentidos
só servem para detectar algo, se este algo se manifestar, isto é, se houver uma
alteração externa. Da mesma forma que o ar estático não pode ser detectado,
assim também não sentimos o peso de nosso corpo ou de nossas roupas.
Desse modo, nasce a noção de vazio, novamente sob a pressuposição da
relação de semelhança entre o que sentimos e os objetos externos. Conclui-se
disso que o vazio é um conceito infundado e, como tal, não há razão para
estipular a sua existência.
Admitida a inexistência do vazio, é preciso explicar como o movimento
pode ocorrer sem que surja entre as partículas um espaço sem partículas.
Como o movimento não necessita de pequenos espaços vazios para ocorrer?
A explicação cartesiana – que anuncia a famosa teoria dos turbilhões –
consiste na distinção entre a tendência retilínea de cada corpo e seu
movimento real circular, de modo que, ainda que toda partícula tenda a
percorrer o movimento mais simples (o reto) e ter, portanto, por si mesma, um
comportamento inercial, na realidade, seu movimento real é sempre circular; e
isso evita a necessidade do vazio, a exemplo do que ocorre com peixes que
A natureza do mecanicismo cartesiano 65
Bibliografia
Claudemir RoqueTossato
Pós-doutorando em filosofia/USP
Finalmente, porque toda observação do céu se faz por meio da luz ou da sombra,
pois os meios entre as estrelas e os olhos são afetados diferentemente, e porque
observamos nos céus movimentos – a retrogradação, as estações etc. – e também
os arcos, isto é, os ângulos dados à visão, e os corpos luminosos, e como tudo isto
está ligado às considerações da ciência óptica, a terceira parte da astronomia que
apresentamos aqui é a óptica (Kepler, 1980, p. 100).
1
Obviamente, uma teoria, assim como uma casa, não deve ser “bela e elegante” para
satisfazer apenas exigências estéticas. Os critérios de beleza e elegância significam, em
Kepler, compromissos com a verdade do cosmo, pois, segundo os critérios metafísicos de
harmonia e de perfeição, Deus não desejou construir um universo deselegante, isto é, sem
relações simétricas entre as suas partes, e nem feio, ou seja, um monstro em que suas partes
não têm relações entre si e com o todo. Sobre isso, é interessante consultar o prefácio ao De
revolutionibus, no qual Copérnico utiliza a imagem de monstro para denunciar a falta de
unidade matemática dos modelos geocêntricos.
As origens da Óptica de Kepler 69
óptica: ela é uma ciência que vem auxiliar a parte prática da astronomia,
dando-lhe bons fundamentos para a construção bela e harmônica do mundo.
O interesse de Kepler pela óptica não é o de um cientista que trabalha
especificamente nesse campo, mas o de um estudioso que, interessado em
resolver problemas de uma outra ciência, a astronomia, procura na óptica
recursos para melhorá-la. Os estudos ópticos feitos por Kepler inserem-se
completamente na construção da sua teoria astronômica, mais
especificamente, na obtenção de dados mais seguros para os seus estudos
sobre os movimentos planetários.
Porém, um ponto que deve ser considerado é que, para Kepler, apesar
da óptica ser necessária para a astronomia, ela é uma ciência autônoma, isto
é, ela não é simplesmente uma parte da astronomia, voltada unicamente para
determinar bons resultados acerca das observações astronômicas, mas uma
ciência que contém o seu campo próprio de atuação e seus objetos próprios de
pesquisa.
Tendo-se isso em vista, pode-se afirmar que Kepler foi importante para a
história da óptica pelo estudo de três aspectos básicos, que podem ser
apreciados segundo as suas próprias palavras:
2
Acerca das origens das preocupações keplerianas sobre óptica, conferir Chevalley (1980, p.
11- 23) e Caspar (1959, p. 142 –6). Estas duas obras, em especial a primeira, apresentam
informações relevantes sobre como Kepler veio a se interessar pela óptica.
As origens da Óptica de Kepler 71
A peça central era um eixo pivô ao redor de um ponto fixo, no azimute, no ponto
máximo de sua altura. Sobre esse eixo, encontram-se discos fixados
perpendicularmente, com uma distância determinada um do outro, o mais alto tendo
uma abertura circular, enquanto que o mais baixo serve como placa. Se se volta o
eixo em direção ao Sol, então a luz tomba circularmente sobre a abertura e a placa.
Os movimentos do eixo, o diâmetro da imagem e as grandes características do
eclipse são facilmente medidos por essas disposições especiais (Hammer apud
Chevallier, 1980, p. 16).
33
Esses manuscritos keplerianos foram comprados pela Czarina Catarina II, em 1773, e
ficaram guardados na cidade de Leningrado, a partir dessa época. Esses manuscritos ficaram
conhecidos como “manuscritos de Pulkovo”.
Claudemir RoqueTossato 72
Bibliografia
1
Galileu, Il Sagiotore (1623), citado por Blay (1998:1).
2
Descartes (1989, Parte I, Arts. 8 e 53).
3
Descartes (1989, Parte IV, Art. 187).
Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 75
4
Ver, por exemplo, Leibniz (1979:171) e Kant (1985b:533).
5
Cf. Berkeley (1989, Introd. §§ 11 e 18) e Hume (1978:17).
6
Cf. Berkeley (1989, Introd. §§ 13 e 16).
Eduardo Salles O. Barra 76
7
"[S]e a idéia de extensão realmente pode existir, como somos conscientes de que realmente
ocorre, suas partes também devem existir; e, para isso, elas devem ser consideradas como
coloridas e tangíveis." (Hume, 1978:39)
8
Cf. Newton-Smith (1985) e Buchdahl (1988:285).
9
Cf. Hume (1998, §27).
10
A sugestão de distinguir esses três níveis (metafísico, fenomênico e ideal) na metafísica
leibniziana do espaço e do tempo é de Hartz & Cover (1988:503-513).Cf. também Buchdahl
(1988:407).
Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 77
11
Cf. Leibniz (1979:201-2003).
12
Cf. Leibniz (1979:176, 193-194).
13
Cf., por exemplo, Kant (1989, A223/B271).
14
"todos os objetos exteriores do mundo sensível devem necessariamente coincidir de modo
preciso com as proposições da geometria, porque a sensibilidade, graças à sua forma de
Eduardo Salles O. Barra 78
intuição externa (o espaço), de que o geômetra se ocupa, torna possível aqueles objetos
enquanto simples fenômenos." (Kant, 1988, §13; cf. também Kant, 1989, A165-166/B206)
15
Para isso os princípios matemático-transcendentais (particularmente, os Axiomas da
Intuição, referido na nota anterior) são insuficientes, e serão necessários também os princípios
dinâmico-transcendentais, particularmente as Analogias da Experiência, que "nada mais são do
que princípios da determinação da existência dos fenômenos no tempo." (Kant, 1989,
A215/B262)
16
Na medida em que a inteligibilidade a priori das forças essenciais da matéria possui limites
intransponíveis, estabelecidos a priori e necessariamente, elas deverão ser consideradas
genuínas "forças fundamentais", isto é, conceitos que já não se pode derivar de nenhum outro
e cuja possibilidade "jamais se pode discernir." (Kant, 1985b:524) A incompreensibilidade
intrínseca das forças essenciais da matéria está dada pelo seu próprio modo de representação
como esquematizações dos conceitos transcendentais de qualidade (realidade, negação e
limitação).
17
Cf. Kant (1989, A206-207/B252; A648/B676;A650/B678 e A648/B676)
Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 79
dificuldade comum a todos eles foi encontrar uma explicação alternativa para o
fato da aplicabilidade da matemática ao mundo. Isso apenas parecia ser
possível se envolvesse uma restrição problemática do estatuto cognitivo e
ontológico da matemática, que comprometeria ora o seu caráter apriorístico –
e, consequentemente, a necessidade que se confere às suas conclusões – ora
a sua própria aplicabilidade. A conseqüência mais imediata dessa atitude foi o
abandono das antigas convicções galileu-cartesianas de que a real natureza
das coisas pudesse ser descrita e compreendida mediante princípios e
raciocínios geométricos. Nas suas interpretações mais extremadas, as
soluções empirista berkeley-humeana (a matemática é ontologicamente
vácua), abstracionista leibniziana (a matemática é uma mera idealização de
relações ou propriedades fenomênicas) e transcendental kantiana (a
matemática contém apenas os esquemas transcendentais do nosso modo de
representar empiricamente os aspectos quantitativos dos objetos) parecem
conformar-se às interpretações formalistas ou instrumentalistas da matemática,
que a atribuem a tarefa de apenas construir sistemas coerentes de axiomas,
princípios e conceitos a partir dos quais se retiram conclusões a serem
confrontadas com a experiência.18 A crítica metafísica ao mecanicismo
cartesiano parece responder satisfatoriamente à pergunta pelas razões que
levaram a um abandono tão radical do legado galileu-cartesiano. Contudo, a
hipótese desta pesquisa é que uma segunda e, talvez, mais decisiva razão
deve ser acomodada à resposta anterior. Trata-se de uma mudança ocorrida
nos próprios métodos matemáticos empregados pelos cientistas ativos na
investigação da natureza. Refiro-me ao cálculo infinitesimal, cujo surgimento
provocou o abandono progressivo dos métodos construtivos, geométricos e
mecânicos inspirados no modelo geométrico euclideano e sua substituição por
métodos algébricos, sujeitos a um procedimento regular e uniforme.
Com efeito, as questões que conduziram à progressiva substituição do
modelo geométrico do século XVII, em particular no seu caso de aplicação
mais fundamental, qual seja, a geometrização do movimento, surgiram de
18
Cf. Steiner (1992).
Eduardo Salles O. Barra 80
19
Cf. Descartes (1989, Parte I, Arts. 26 e 27).
Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 81
20
Em particular, esse fato parece desempenhar um papel central no tipo de argumentação que
conduziu Kant a concluir a não-construtibilidade numa intuição pura das grandezas intensivas
(ou qualidades) da matéria (cf. Kant, 1989, A 170/B 211-212; Barra, 2000:225-266).
21
Blay (1998:10). Cf. também Urbaneja (1992:36) e Duhem (1981, p.44).
Eduardo Salles O. Barra 82
22
Para uma defesa dessa perspectiva, ver Cohen (1980:109 e 254-255)
23
Ver, em particular, Steiner (1998), mas o mesmo tipo de preocupação pode ser também
encontrada em Benacerraf & Putnam (1983), Hand (1993), Hodes (1990), Kitcher (1984),
Parsons (1990), Resnik (1988), Shapiro (1983 e 1989) e Tymoczko (1991).
24
Para a discussão dessa posição meta-epistemológica, ver, por exemplo, Bonjour (1994),
Feldman (1999), Foley (1994), Goldman (1992), Kim (1988), Kitcher (1992), Kornblith (1994 e
1999), Laudan (1996), Mafffie (1990), Quine (1969 e 1990) e Stich (1990).
Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 83
Bibliografia:
KANT, I. (1989 [1787]) Crítica da Razão Pura. [trad. Manuela Pinto dos
Santos e Alexandre Fradique Morujão] Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2. ed.
Marlene Perez
Doutoranda em Educação (Educação Matemática)/UFPR.
1 Introdução
la, que se iniciou com Brunelleschi na arquitetura, deve ter sido uma das
fontes, na mentalidade renascentista, do pensar numa estrutura subjacente à
natureza.
Outra característica desse período é o tratamento dado ao espaço vazio;
a pintura medieval nos oferece um “espaço agregado, isto é, um espaço onde
os objetos são justapostos sem que as suas relações espaciais sejam levadas
em conta” (Panofsky apud Thuillier, 1994, p. 58).
Brunelleschi conseguiu superar essa visão do espaço para um sistema
que reproduz um modelo imaginário que permite a todas as regiões do espaço
se comunicarem entre si através de planos que se interceptam. Francastel
(1990, p. 11), escreve a esse respeito:
somente por seu comprimento, largura e, ainda, por suas qualidades” (p. 76).
Esse estudo sobre a geometria, onde as qualidades substituem a profundidade,
e algumas noções sobre a óptica, servem-lhe de base para a análise da
perspectiva.
As qualidades da superfície são divididas em qualidades permanentes e
qualidades mutáveis. As qualidades permanentes são as que constituem a
superfície propriamente dita tais como as linhas e os ângulos do seu contorno,
assim como o seu dorso que a classifica como plana ou esférica (convexa e
côncava). As qualidades mutáveis fazem com que as superfícies variem de
acordo com a mudança do lugar: mudando o lugar, as qualidades que ficam à
superfície parecem maiores, com outro limite ou com cores diferentes. Isto
acontece porque as superfícies são medidas por raios visuais que levam aos
sentidos a forma daquilo que vemos.
Os autores consultados divergem em suas opiniões sobre a importância
da perspectiva linear, la construzione legittima, para as artes visuais.
Panofsky (1999, p. 58) compara o método de Alberti com o método
utilizado pelos Lorenzetti, que tinham preservado, no Trecento, o rigor da
convergência matemática das ortogonais, não existindo ainda um método que
medisse as distâncias em profundidade, o que apareceu com o método de
Alberti.
Granger (2002, p. 99-100) se manifesta afirmando que o Quattrocento foi
original no sentido de “colocar em destaque a construção de um espaço plano
destinado a figurar o espaço tridimensional” e que as soluções geométricas
propostas não foram adotadas por todos ou pela maioria dos artistas da época,
porque as soluções do problema da representação “são de natureza tecno-
estética-matemática”. Essa transposição do espaço para o plano é muito
complexa e levou a uma renovação da própria geometria, com Desargues
(1591-1661), através do conceito de espaço projetivo.
Segundo Francastel (1990, p. 20-24), para os homens do começo do
Quattrocento, “a perspectiva dita renascentista – ou seja, a perspectiva linear
segundo as fórmulas de Alberti – não era em absoluto a mais difundida, nem,
sem dúvida, que melhor parecia dar conta dos aspectos correntes do universo”.
A etapa vencida por volta da metade do século XV, por alguns pintores e por
A história da arte como história da ciência 95
Bibliografia
Júlio C. R. Vasconcelos
Departamento de Filosofia /UEFS
Para Drake, alguns desses manuscritos até então inéditos só podiam ser
entendidos como anotações de experimentos que Galileo teria executado no
período em que trabalhava em Pádua. No artigo em que anunciava a
redescoberta, Drake inicialmente chamava a atenção para o fólio 117r (figura
1):
1
Drake 1979, p. VIII
2
Drake 1973, pp. 293/296
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 103
"Se, então, houvesse algum modo de fazer uma dada bola abandonar o plano em
diferentes velocidades das quais fossem conhecidas as razões, a velha idéia de
Galileo de que o movimento horizontal continuaria uniformemente na ausência de
resistência poderia ser colocada em teste. Sua lei de queda livre tornava isso
possível. As razões entre as velocidades poderiam ser controladas fazendo a bola
cair de alturas conhecidas, ao final das quais seria defletida horizontalmente. As
quedas subseqüentes por uma altura dada consumiriam o mesmo tempo do topo da
mesa ao chão, e as distâncias percorridas horizontalmente seriam proporcionais às
velocidades adquiridas no topo da mesa.5
3
Ver nota 31, à p. 67.
4
A proposição III do seu Nova Scientia, por exemplo, enuncia que "um corpo uniformemente
pesado em movimento violento irá mais fracamente e devagar quanto mais se afasta do
começo ou se aproxima do fim do movimento" (Drake & Drabkin, p. 78). Drake crê que se pode
afirmar que "Tartaglia adotou a idéia da força impressa ou ímpeto auto-exaurível, associada ao
nome de Alberto de Saxônia, que é oposta à idéia de uma forma de ímpeto que diminui
somente com a resistência externa (ao menos em certos tipos de movimentos), associada ao
nome de Jean Buridan" (Drake & Drabkin, nota 18, p. 76).
5
Drake 1973, p.296.
Júlio C. R. Vasconcelos 104
6
A independência de movimentos aparece tanto nos Discorsi como nos Principia mas em
nenhum deles é declarada como um princípio; sobre isto, ver pp. 65/67.
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 105
"Estes cálculos foram feitos de acordo com a regra de que os quadrados das
velocidades adquiridas na queda vertical até a mesa são proporcionais às distâncias
2 2
de queda a partir do repouso, ou V2 : V1 :: S2 : S1 7. Uma vez que todas as
distâncias horizontais são percorridas no mesmo tempo (aquele de uma queda livre
por 828 pontos), elas são proporcionais às velocidades adquiridas na queda inicial;
2 2
portanto, designando as distâncias horizontais pela letra D, nãs temos D2 : D1 :: S2 :
S1. Tomando D1 como 800 e S1 como 300, estes sendo os dados empíricos da queda
2 2
mais curta, Galileo tinha D2 : 800 :: S2 : 300, a partir do que cada distância horizontal
esperada em outras quedas foi obtida por uma média proporcional, equivalente a
2
extrair a raiz quadrada de (800 S/300). Para o primeiro caso, no qual S1 foi
exatamente dobrado, Galileo multiplicou 800 pelo seu dobro e tomou a raiz quadrada,
como se vê no alto do fólio 116v. Em todos os demais casos ele multiplicou a queda
inicial por 800, dividiu o produto por 300, multiplicou o quociente por 800, e extraiu a
raiz quadrada do produto. Seus resultados estão resumidos abaixo, em "pontos" de
aproximadamente 17/18 milímetro.
Queda até a Mesa para Projeção Expectativa calculada por Galileo através
mesa o chão horizontal de sua régua da média proporcional
7
Ressalte-se que Drake abrevia por "S" não o comprimento do plano inclinado mas sua altura
até a mesa.
8
Drake 1973, pp. 296/299
Júlio C. R. Vasconcelos 106
"Nós sabemos que a fonte básica do problema é o fator 5/7 para o rolamento em
contraposição à queda livre (ou ao deslizamento sem atrito), mas Galileo não sabia
disto. Desse modo, ele foi obrigado a buscar uma possível explicação no único lugar
óbvio para ele - na perturbação ocasionada pelo impacto com o topo da mesa. (Em
anos posteriores ele mencionou mais de uma vez a perda de movimento em
deflexões angulares.) Foi isto, eu creio, que o levou a um refinamento do experimento
anterior, refinamento do qual temos um registro no fólio 114v2. A idéia era simples: a
fim de contornar o efeito da deflexão, deixou-se a bola rolar para fora do término do
plano inclinado, por uma altura fixa, com várias velocidades cujas razões eram
conhecidas. O experimento foi apropriadamente efetuado e os dados empíricos
anotados; mas tendo obtido estes, Galileo se descobriu incapaz de fazer os cálculos
adequados de modo a obter novas cifras "doveria". Ele facilmente se capacitara para
compor um movimento horizontal com um movimento vertical, mas ele não via como
9
Ver pp. 66/67.
10
Ver esquema da p. 132.
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 107
lidar com uma velocidade oblíqua impressa em composição com uma queda livre. É
isto o que devemos fazer agora." 11
o
Drake inicialmente calculou os valores supondo uma inclinação de 30
para o plano descendente, suposição inspirada pelo próprio esboço de Galileo
no folio 114v2 e obteve "bons resultados". Mas informa, a seguir, que uma
melhor concordância com os dados de Galileo foi obtida por MacLachlan
o
usando um plano a 450 pontos de altura do chão e com uma inclinação de 26 ,
o
valor que, com satisfação, nota ser o complementar de 64 , o ângulo que
estimou para o experimento do folio 116v. Isto sugeriu a Drake que Galileo
possuía "uma moldura triangular rígida, com uma canaleta ao longo da
hipotenusa, que ele usou nos experimentos deste tipo" (Ibid, p. 302). Vejamos
a tabela que apresenta, relativa à reconstrução empreendida por MacLachlan:
Distância de Movimento Dados de Galileu Redução
rolamento em horizontal (fol. 114v2) percentual da
pontos esperado previsão
200 256 253 1.17
400 339 337 0.59
600 395 39512 0.25
900 454 451 0.66
1200 499 495 0.80
1600 543 534 1.66
2000 579 574 0.86" 13
A diferença entre os dados e os valores calculados não chega a 2%,
sugerindo mais uma vez notável acuidade experimental de Galileo.
Após comentar o fólio 114v2, Drake introduz uma nova idéia
interpretativa, a de que Galileo teria descoberto a forma parabólica da trajetória
dos projéteis devido à observação repetida dos movimentos que registrou
neste fólio e no 116v, e que nos demais esquemas do já citado fólio 117 está a
pioneira análise que associa aquela forma geométrica ao movimento dos
projéteis. Com base neste e em outros manuscritos redescobertos, Drake
reformula sua opinião de que a descoberta da forma da trajetória não teria
ocorrido antes de 1632, transferindo para o ano de 1609 a sua datação.
11
Drake 1973, p. 300.
12
Drake cita a cifra 394 na tabela da pagina 302 do artigo, mas a inspeção à reprodução
contida no seu Galileo's Notes on Motion mostra o número 395, que citei.
13
Drake 1973, p. 302
Júlio C. R. Vasconcelos 108
Por que Galileo não publicou seus experimentos? Para Drake a resposta
é fácil; não o fez porque:
"...nenhum de seus oponentes teria ficado convencido com uma longa sucessão de
dados, pois eles não estavam interessados em leis físicas mas nas causas das
coisas, e causas não são reveladas em experimentos. De fato, sua lei de queda livre
foi rejeitada por Descartes como uma mera aproximação, e dois outros físicos14
ostensivamente demonstraram que a verdadeira lei que estava por trás das
aparências meramente sensíveis da regra dos números ímpares de Galileo era um
aumento por pulos quânticos das distâncias percorridas na progressão dos números
naturais.”15
2 2
RC = / (40 + 10 ) = 41,2
14
Segundo uma nota de Drake à mesma página desta citação, os físicos mencionados são
Baliani e Fabri.
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 109
2 2
CS = / (40 + 30 ) = 50,0
2 2
ST = / (40 + 50 ) = 64,0
2 2
TF = / (40 + 70 ) = 80,6 16
1600
100
______
4 41 19
__ __
81 1700 83
__
1917
15
Drake 1973, p. 305.
16
Naylor 1975, pp. 395/396.
17
Naylor 1975, p. 395.
18
Drake, ao que parece, não rebateu esta crítica e nunca mais voltou a apresentar sua primeira
avaliação do folio 117, aceitando, aparentemente, a interpretação de Naylor para aqueles
números.
Júlio C. R. Vasconcelos 110
19
As razões de Drake e MacLahlan bem como as ponderações de Shea e Wolf podem ser
encontradas nas pp. 398/401 de Isis, vol. 66, 1975.
20
Drake & MacLachlan, p. 109.
21
Naylor defende sempre em seus artigos a tese de que o volume 72, ao contrário do que
pensa Drake, não contém o conjunto completo das anotações manuscritas de Galileo relativas
à ciência do movimento.
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 111
300 800
600 1172
800 1328
828 1340
1000 1500" 22
O leitor pode conferir a justeza da interpolação de Naylor, através da
2 2
fórmula D2 : D1 :: S2 : S1, que Drake nos apresentou, fazendo "S2" e "S1"
corresponder a duas alturas "H" da tabela acima.
Embora seja excelente o ajuste da reconstrução de Naylor aos valores
anotados no fólio 114v2, o estudioso David Hill não a aceita. Apóia-se na
própria evidência do fólio, cujo desenho sugere lançamentos oblíquos e não
o
horizontais. Para uma inclinação de 12,5 do plano e uma distância de queda
deste até o chão de 329,5 pontos, Hill faz um experimento efetivo e uma
simulação em computador para os valores ideais obtendo a seguinte tabela:
Rolamento pelo Pontos de Pontos de Hill Pontos Ideais
plano Galileu
400 253 253 254
800 337 340 345
1200 395 405 411
1600 451 453 463
2000 495 495 506
2400 534 533 544
2800 573 564 577"23
Hill afirma que sua reconstrução dos supostos lançamentos oblíquos do
fólio 114v2 oferece valores que, em média, diferem somente 0.8% dos dados
de Galileo; esta proximidade excelente, entretanto, não é decisiva pois é
22
Naylor 1976, pp. 405-406.
23
Hill 1988, p. 661.
Júlio C. R. Vasconcelos 112
24
Hill 1988, p. 661.
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 113
7o 3,5o 81r
750 750 750,0
533 528 525,5
25
A esse respeito, recomenda-se o excelente "Galileo: Real Experiment and Didatic
Demonstration" de Naylor; ao leitor interessado indicamos ainda as pp. 176/197 do La Física de
Galileo..., de José R. Feito.
26
A transcrição se encontra em Hill 1988, p. 647 e a reprodução do fólio em Drake 1979, p. 93.
27
Naylor 1975, p. 1; para não ser acusado de cometer o pecado de avidez por experimentos
que ele próprio critica, Naylor argumenta exaustivamente, em vários trechos do artigo, que os
números do desenho não podem ser ajustados a nenhum esquema teórico, sendo legítimo,
portanto, entendê-los como anotações experimentais.
Júlio C. R. Vasconcelos 114
28
Naylor 1975, p. 165.
29
Naylor 1975, p. 165.
30
Hill 1988, p. 655.
31
Ver p. 101 do capítulo anterior.
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 115
32
Hill 1988, p. 667.
Júlio C. R. Vasconcelos 116
qualquer outro ponto.33". Uma vez que este sólido é obtido mediante um corte
parabólico num prisma, Sagredo ressalta que "seria importante para os
artesãos possuir uma regra fácil e rápida para poder traçar essa linha
parabólica sobre o plano do prisma". Salviati lhe dá duas regras, uma das quais
é a seguinte:
"...Tomo uma bola de bronze, perfeitamente redonda, não maior que uma noz; esta,
lançada sobre um espelho de metal, colocado não perpendicularmente ao horizonte
mas um pouco inclinado de modo que uma bola possa rolar sobre sua superfície,
pressionando-a levemente no movimento, deixa uma linha parabólica muito nítida e
precisa, mais larga ou mais estreita segundo o ângulo de projeção seja mais ou
menos elevado. Mediante essa experiência evidente e sensível vemos também que o
movimento dos projéteis se dá por linhas parabólicas: efeito que foi primeiramente
observado por nosso amigo, o qual aporta também a demonstração em seu livro
sobre o movimento que examinaremos em nosso próximo encontro. Para que a bola
possa descrever as parábolas do modo indicado, é necessário que ela seja aquecida
com as mãos e um pouco umedecida, para que possa assim deixar mais aparentes
seus vestígios sobre o espelho..."34.
33
As explicações e as demonstrações de Galileo para essa forma ideal estão às pp. 137/144
de Duas Novas Ciências.
34
Galileo 1988a, p. 144.
35
Ver, por exemplo, Hill 1988, p. 662.
36
Naylor 1990, pp. 701/703.
37
Ver capítulo anterior, pp. 91/95.
Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 117
Bibliografia
Marcelo Moschetti
Professor Assistente/UNICENTRO
1
FAVARO, A. (ed.). Le Opere di Galileu Galilei. Edizione Nazionale. Florença: Barbèra, 1968,
v. VIII, p. 470. As referências seguintes às Opere conterão simplesmente Ed. Naz., volume e
página.
2
Ed. Naz., VIII, 472.
3
O rompimento de Galileu com a distinção aristotélica entre céu e Terra foi o tema de minha
dissertação de mestrado.
Marcelo Moschetti 122
ainda não havia uma nova teoria física capaz de sustentar a novidade. Por
isso, a história da defesa de uma cosmologia heliocêntrica se confunde com a
do nascimento da ciência moderna.
Ao lado desse rompimento com a distinção entre céu e Terra, e
intimamente ligada a ele, como ressalta Alexandre Koyré, está a geometrização
da natureza – a nova maneira de compreender o mundo característica da
ciência moderna. Por isso, Galileu Galilei foi um dos protagonistas desse
processo, ao recusar o dualismo cosmológico tradicional a partir do
questionamento da coerência lógica dos princípios da Filosofia Natural
aristotélica e com base em suas observações telescópicas, bem como ao
estabelecer a matemática como a linguagem necessária para a compreensão
do “livro da natureza”.
A passagem mais conhecida (e certamente uma das mais importantes)
da obra galileana está contida no parágrafo sexto do Ensaiador (1623):
“...A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que aí está aberto continuamente
diante dos olhos (isto é, o universo), mas não se pode entendê-lo se primeiro não se
aprende a entender a língua e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele está
escrito em língua matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras
geométricas, meios sem os quais é humanamente impossível entender-lhe sequer
uma palavra; sem estes trata-se de um inútil vaguear por um obscuro labirinto...”4
4
Ed. Naz., V, p.232. Utiliza-se nesta passagem a tradução de C. A. R. Nascimento, apud
NASCIMENTO, C. A. R., De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1988,
p. 176.
A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre o candor lunar 123
“...essa tênue iluminação não é a luz solar que, refletida na Terra, atinge a superfície
lunar [...] ela há de ser o conjunto formado pela débil luz nativa da Lua e pela luz do
Sol repercutida na mesma e refletida nas partes altas do éter que circunda o corpo
lunar...”5
5
Ed. Naz., VIII, 483.
Marcelo Moschetti 124
solar para sua face voltada para a Terra, da mesma maneira que a Terra se
mantém iluminada algum tempo após o desaparecimento do Sol no horizonte.
A estrutura da resposta de Galileu é bastante simples: o autor apresenta
a tese do adversário, e depois um breve resumo da sua própria, para então
discutir pontualmente o capítulo em que é criticado por Liceti. O primeiro ponto
examinado é o subtítulo de tal capítulo, “digressão físico-matemática”. Galileu
se detém sobre a palavra digressão e a interpreta como uma confissão de que
o capítulo é desnecessário. Ironicamente ele compara o Liteosphoro a um
banquete, que não é melhor ou pior devido à presença do que é necessário,
isto é, comida e bebida, mas em função do que há além do necessário. Tal
passagem é um dos mais belos exemplos da retórica galileana, ainda que não
seja de tão grande interesse para este trabalho quanto a discussão do restante
do subtítulo: físico-matemática. Diz Galileu:
“...E porque ele procede como matemático e físico, seguirei examinando como
filósofo, se é que o sou, e como matemático, as suas oposições, fazendo também
algumas poucas considerações acerca da forma de argumentar que ele por vezes
apresenta quanto à sua conformidade aos preceitos dialéticos postos por
Aristóteles...”6
Durante toda a carta, como veremos, Liceti será ironizado por sua
ignorância em matemática (ainda que Galileu não esteja se referindo
exatamente aos conhecimentos matemáticos comuns à maior parte dos
eruditos seus contemporâneos). Além disso, como notou o professor Pablo
Mariconda7, que recentemente traduziu e comentou uma carta de Galileu a
Liceti envolvida nessa mesma polêmica, também a conseqüência lógica da
argumentação licetiana é questionada (concordo com Mariconda que a mais
tradicional lógica aristotélica é considerada por Galileu uma necessidade para a
aquisição do conhecimento filosófico e científico).
Embora todo o texto da carta seja extremamente interessante e rico, a
discussão a seguir será limitada a algumas passagens particularmente
interessantes em vista do meu interesse nesta comunicação, a geometrização
da natureza: a resposta a um argumento do adversário que afirma que, se
6
Ed. Naz., VIII, 495-496.
7
MARICONDA, P. “Lógica, experiência e autoridade na carta de 15 de setembro de 1640 de
Galileu a Liceti”. In: Scientiae studia, 1, 1, 2003, p. 63-73.
A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre o candor lunar 125
“...se o candor da Lua derivasse do reflexo da luz terrestre, ele deveria ser mais
luminoso no centro de sua face escura que na região mais próxima da margem
extrema...”8
Isso ocorreria porque, sendo a Lua uma esfera, o centro de sua face
voltada para nós estaria mais perto da Terra, origem dessa iluminação. Liceti
usara o mesmo princípio em uma objeção anterior, no mesmo texto, que
permitiu a Galileu atacar a coerência lógica do discurso licetiano. Ora, no que
se refere à luz secundária, o disco lunar se mostra iluminado de maneira
praticamente uniforme na conjunção, e não mais iluminado no centro que na
periferia. Liceti pretende que isso refute a opinião do adversário. Não
examinarei aqui toda a resposta, mas apenas uma questão que venho
mapeando através da obra de Galileu: a diferença entre o reflexo da luz em
superfícies opacas e em espelhos. Para Liceti, como para outros aristotélicos, a
perfeição que estes atribuíam ao céu incluía, além da ausência dos diversos
tipos de mudança, a esfericidade perfeita, ou seja, a superfície dos astros era
considerada lisa e polida como um espelho. Essa questão é recorrente no
debate de Galileu com os tradicionalistas, e mostra de uma maneira
interessante o que é, para Galileu, dicorrer físico-matematicamente. Quanto à
iluminação uniforme do disco lunar, Galileu nota que
“...Isso dificilmente aconteceria se o globo lunar fosse polido e liso como um espelho,
mas ele é tão irregular quanto a Terra, se não for mais; e sobre ele não receber maior
iluminação que a periferia extrema, muito claramente o mostra a própria lua, quando,
na oposição [lua cheia], plena de luz do Sol, mostra igualmente luminosa, sem
nenhuma diferença entre o centro e a extremidade, o que prova sua irregularidade e o
fato de os raios solares não se desviarem para a circunferência extrema, a qual, se
fosse polida como um espelho, jamais seria vista pelos homens, como demonstrei
longamente algures...”9
8
Ed. Naz., p.484.
9
Ed. Naz., VIII, 518.
Marcelo Moschetti 126
“...exposto um de nossos espelhos côncavos aos raios solares, que luz eles refletem?
Seguramente nenhuma; e, todavia, é verdadeiro o refletir vigorosamente de tais raios
e os mesmos são verdadeiramente potentes ao iluminar corpos opacos, mais
potentes que a própria luz solar; mas é necessário pôr, na cúspide do cone, ou
próximo a ela, alguma matéria densa e opaca, a qual, em contato com tais raios,
deverá iluminar e machucar a vista mais que o próprio Sol, mormente se o espelho for
grande [...]que os raios refletidos por um espelho côncavo não vão unir-se em figura
de cone senão a uma pequena distância desse espelho e que sua vivacíssima luz
não pode ser vista senão em alguma matéria densa e opaca... ”11
10
Ed. Naz., VII, 94-105.
11
Ed. Naz., 520.
A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre o candor lunar 127
“...O discurso matemático serve para superar aqueles obstáculos com os quais às
vezes o puro físico corre o risco de chocar-se e se quebrar...”12
12
Ed. Naz., 521.
Marcelo Moschetti 128
13
NASCIMENTO, C.A.R. De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998,
p. 171.
Continuidade e movimento em Bradwardine
1
O tratado de Bradwardine sobre o contínuo pode ser descrito como um texto polêmico, contra
os que afirmam que o contínuo é composto por partes indivisíveis. Alguns historiadores da
ciência defendem que seria uma resposta direta a Ockham. Como o De proportionibus (1328),
o De continuo também está escrito em forma axiomática, com definições e suposições que
forçam o leitor a acatar as conclusões do texto. Apesar dessa estrutura prevalecer, há seções
nas quais Bradwardine simplesmente apresenta uma contra-hipótese ao assunto tratado, a
qual segue uma série de conclusões com o mote “se isto for assim, então...”, ou seja, se a
contra-hipótese fosse verdadeira, então, seguir-se-ia tal conclusão que, no esquema de
argumentação, ou seria falsa ou seria impossível. Estas seções têm o objetivo de reduzir as
contra-hipóteses ao absurdo. Já as partes estritamente axiomáticas do De contínuo são as
primeiras e encontram-se divididas em definições, suposições e conclusões preliminares, às
quais se seguem duas partes negativas escritas ao modo dialético, lançando-se mão de contra-
hipóteses sobre relações de indivisíveis com o contínuo, todas reduzidas ao absurdo. Na
seqüência, o texto encerra com duas partes axiomáticas: a primeira afirma que todas as
hipóteses que sustentam que o contínuo é composto por indivisíveis são falsas, e a segunda
conclui que indivisíveis não existem, mas que o contínuo existe.
Márcio Augusto Damin Custódio 130
Assuma que dois líquidos se unem para formar um contínuo. Então, dois indivisíveis,
que eram anteriormente o término dos dois corpos líquidos, não serão nem
corrompidos nem outros serão gerados a partir deles. Assim, eles permanecem
imediatos e também os pontos de quantidade situados neles. Desse modo, por
[suposição] 30, isto ocorre com todo e qualquer contínuo. (De continuo, 105*-
106*/443-444) 2
2
Cito sempre a página do manuscrito com um asterisco, seguida da página do texto na tese de
doutorado de MURDOCH. Geometry and the continuum in the Fourteenth Century: a
philosophical analysis of Thomas Bradwardine’s Tractatus de Continuo. Tese de Doutorado.
Madison: University of Wisconsin, 1957.
3
De continuo, 41*/379.
4
Minha abordagem sobre o estatuto da matemática e das ciências intermediárias na
classificação das ciências do aristotelismo medieval foi desenvolvida em: CUSTÓDIO, M.
Implicações do problema da interdependência entre a História e a Filosofia da Ciência em Imre
Lakatos, 1998.
5
Na Física, a definição de contínuo aparece seguida por exemplos que se valem de corpos
extensos, portanto próprios da filosofia da natureza, não da matemática. Vide Física V, 3,
226b34-227a16.
Continuidade e movimento em Bradwardine 131
6
De continuo, prop. 25 (39*/377).
7
Vide MURDOCH. 1957, especialmente pp. 1-74; MAIER, A. Kontinuum, Minima und aktuell
Unendliches. in: Vorläufer Galileis; DUHEM, P. Leonard de Vinci et les deux infinis. in: Etudes
sur Leonard de Vinci, Cap. IX.
8
Murdoch sustenta que a popularidade do “problema do contínuo” é tal que se tornou
obrigatório para qualquer um que escrevesse sobre a Física, as Categorias ou mesmo o De
caelo, ainda que fosse para resolver questões bem diversas daquela que levou Aristóteles a
estabelecê-lo. Para os contemporâneos de Bradwardine, o tratamento do contínuo permitiria
não somente medir o movimento, mas abordar problemas, contextualmente, mais relevantes,
como: Pode um anjo mover-se de um lugar para outro em movimento contínuo? Toda causa é,
segundo sua própria natureza, circunscrita por certos limites? Deve-se atentar para esta
característica do pensamento medieval, ou seja, noções que para nós caracterizam-se
unicamente como de interesse da física, bem como de ciências correlatas a ela, eram
discutidas não apenas no âmbito da filosofia da natureza, mas também no âmbito da teologia.
A duas questões são, respectivamente, de DUNS SCOTUS. In lib. II sententiarum. Dist. II, q. 9
e RICHARD KILLINGTON. Commentaria sententiarum. Q. 3. Apud MURDOCH, 1957: 15.
Márcio Augusto Damin Custódio 132
9
Também: “Uma linha, por outro lado, é uma quantidade contínua, pois é possível encontrar
um limite comum no qual suas partes se juntam” (Categoria 6, 5a1-2).
10
Vide também De caelo I, 1, 268a6-7 e Física I, 2, 185b10.
11
A argumentação que parte de (a) para obter (b) foi assim exposta por Murdoch (1957).
Impossibilidade dos Indivisíveis pela noção de limite: Indivisíveis não podem ter limites, pois
limite é limite de algo, o que quer dizer que o limite é diferente deste algo que limita,
integrando-o como parte; contudo, o indivisível não pode ser dividido em partes; Por não
possuírem limite, os indivisíveis não podem ser as partes do contínuo, i.e., aquelas que
possuem limites comuns. Impossibilidade dos Indivisíveis pela noção de contato: Todo contato
dá-se de três formas: parte com parte; parte com todo; todo com todo; As duas primeiras são
impossíveis uma vez que o indivisível não tem partes; Quanto ao terceiro, se as partes
indivisíveis do contínuo forem o todo do contínuo, isto implica afirmar que uma parte não será
distinta de outra parte; Se o contínuo é divisível em indivisíveis, estes indivisíveis têm que estar
em contato uns com outros; Porém, isto é um absurdo, pois indivisíveis parecem não poder
entrar em contato.
Continuidade e movimento em Bradwardine 133
12
Aristóteles as denomina de “união natural” (προσϕβσις) ou “junção natural” (σβνϕυσις)
segundo a tradução de MURDOCH, 1957: 81.
13
Pode-se, ainda, compreender essa afirmação considerando que o ponto não tem existência
por si mesmo, mas que dele pode ser dito existir na linha: “Tome a linha enquanto um contínuo
que pode ser dividido em duas partes por qualquer ponto nela. A extremidade das duas partes
é um único ponto ou, em outras palavras, eles têm um limite comum” (Metafísica III, 1090b5-
13).
Márcio Augusto Damin Custódio 134
A B C D
A C B D
14
De continuo, def. 7, 1*/339. Esta definição é muito semelhante, à primeira vista, às definições
Aristóteles (Física VI, 1, 231b3) e Euclides (Elements, Book 1, prop. 1).
15
Vide: Alberto da Saxônia. Questiones in octe libros physicorum Aristotelis, lib VI, Q1, folio
64D, apud MURDOCH, 1957: 99.
16
A definição quantitativa de indivisível é dada em um outro texto de Bradwardine, Geometria
speculativa (Tract I, cap 1).
Continuidade e movimento em Bradwardine 137
17
De continuo, 12*/350.
18
Deste contínuo isolado não se pode postular a existência dos indivisíveis enquanto partes,
mas apenas a possibilidade de existência: “se há um a1...”. Isto porque a segunda premissa é
uma definição e, enquanto tal, nada diz a respeito da existência do que toma com postulado
(os indivisíveis). As definições apenas tratam dos significados dos termos, logo, quanto à
existência, o argumento trata dos indivisíveis por suposição.
19
A marca mais característica da quantidade é que a igualdade e a desigualdade lhe são
predicáveis (...) O que não é uma quantidade não pode, de modo algum, ser nomeado igual ou
desigual a qualquer outra coisa... Desse modo, essa é a marca da quantidade, que pode ser
chamada igual e desigual. (Categorias VI, 6a27-35).
Márcio Augusto Damin Custódio 138
20
A oposição entre Aristóteles e os atomistas é patente em inúmeras passagens, como a
seguinte: “Nenhum demente é capaz de se apartar tanto da razão a ponto de supor que o fogo
e o gelo são um; somente entre o que é correto e o que parece ser correto pelo hábito, que
Continuidade e movimento em Bradwardine 139
Conclusão
uma pessoa é demente o suficiente para não ver diferença” (De generatione et corruptione I, 8,
325a17-23)
21
Nessa perspectiva, De Libera afirma: “Tais textos não se engajaram em uma confrontação
com a experiência ou com a experimentação ativa. Pois não buscavam o conhecimento do real
e nem mesmo a verificação de uma hipótese ou de uma conjectura, mas sim a produção de
novas regras ou o estabelecimento de novos quebra-cabeças lógicos, os sofismata. O
progresso se fazia, assim, sobre o terreno da análise lógica e não sobre aquele da indução
científica” (DE LIBERA, A. La philosophie médiévale, p. 64). Concordo com De Libera quanto à
ausência de compromisso com a verificação, pela experiência, do conhecimento. Quanto à
discussão, em Bradwardine, creio que deve ser compreendida como epistemológica e não
lógica, com ênfase, não aos sofismata, mas à geometria.
22
De continuo, prop. 21-25 e 32.
23
De continuo, prop. 24
Márcio Augusto Damin Custódio 140
Bibliografia
Marisa C. de O. F. Donatelli
Departamento de Filosofia/UESC
1
Plempius nasceu em Amsterdã, estudou medicina em Leiden, Pádua e Bolonha, onde
concluiu seus estudos. Em 1633, torna-se professor na Universidade de Louvain, onde se opõe
ao ensinamento do cartesianismo. Se, inicialmente, ele se opõe à defesa da circulação do
A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 143
sangue, mais tarde ele vai se compor com os argumentos expostos por Descartes, ao longo da
discussão que travaram sobre o assunto.
2
AT II, 54 (Plempius a Descartes, mars 1638)
3
Plempius defende a participação da alma nas funções orgânicas. Cf. 3.10.37
4
AT I, 497-499 (Plempius a Descartes, janvier 1638)
5
O primeiro divulgador da filosofia natural cartesiana na Universidade de Utrecht.
Marisa C. de O. F. Donatelli 144
não foi bem recebida pela Universidade de Utrecht, gerando toda uma
discussão que deu início a um debate acirrado, envolvendo a Faculdade de
Teologia e uma acusação contra Regius de ateísmo, além da proibição da
difusão da filosofia cartesiana: as autoridades de Utrecht organizaram um
julgamento público da nova filosofia e retiraram a autorização de Regius para
lecionar filosofia natural.
Regius adota a explicação física e procede à aplicação do método,
segundo os padrões cartesianos, conforme pode ser constatado nas cartas
enviadas a Descartes, nas quais busca orientação do filósofo na defesa das
teses, de forma a serem feitas correções no texto e a ser adotada uma
linguagem precisa. Da carta de 24 de maio de 1640, podem ser extraídas
partes da teoria médica cartesiana que é defendida por Regius, como é o caso
referente ao processo de preparação do sangue a partir da concepção da
matéria composta de partículas em movimento. Ainda nessa carta, pode ser
encontrada a referência à necessidade da experiência e constatado o esforço
constante de Descartes em atualizar os estudos, ao acompanhar as
descobertas na área médica. A discussão por elas engendradas e a
comparação entre duas obras oferecem um testemunho bastante confiável:
L´Homme (1632?) e La description du Corps Humain (1648). Trata-se da
descoberta dos vasos lácteos por Asellius, em 23 de julho de 1622. Na época
em que escreveu o tratado L´Homme, Descartes não tinha conhecimento
dessa descoberta, pois o trajeto do alimento aí exposto está de acordo com a
tese galênica, segundo a qual o alimento passa por um triplo processo de
digestão, sem considerar a existência dos vasos que transportam o quilo para
os intestinos7. Essa ausência mostra que Descartes não tomou conhecimento
dessa descoberta tão logo foi levada a público, em 1627, mas provavelmente
em 1640. Nesse mesmo ano, quando Regius (na carta supracitada) intenta
mencionar os vasos lácteos em suas teses, Descartes desaconselha, uma vez
que pretende repetir a experiência feita por Asellius para constatar a existência
6
As teses foram organizadas e publicadas em 1641 com o título Physiologia.
7
No primeiro, a digestão se dá no estômago; no segundo, nos intestinos, sendo transformado
em quilo e voltando a subir, misturado ao sangue, pelas veias mesentéricas até o fígado e, por
fim, transforma-se em sangue pelo último processo de digestão.
A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 145
dos vasos lácteos, o que parece ter sido empreendido pelos dois, pois em uma
carta a Mersenne (30.7.1640), Descartes afirma a existência dos vasos. Porém,
em 1648, na Description du corps humain, a posição do filósofo quanto ao
trajeto do quilo sofre alteração, por conta das descobertas de Jean Pecquet -
cisterna do quilo e vasos linfáticos. Esses dois textos, combinados com as
cartas, constituem o exemplo mais notável da atualização dos estudos
médicos do filósofo.
Um outro médico com quem Descartes manteve correspondência foi Jan
Van Beverwick8. Em 10 de junho de 1643, Beverwick escreve a Descartes
solicitando comentários a respeito da circulação do sangue e do movimento do
coração – questões que estão em destaque nas discussões médicas da época
e que integrarão a publicação das Epistolicæ Quæstiones que estão sendo
preparadas nesse ano. A esse médico, Descartes retoma o Discours, no que
diz respeito ao movimento do coração, e propõe enviar os textos das duas
cartas remetidas a Plempius, em 1638, sobre esse assunto, com a finalidade
de recuperar o seu conteúdo, uma vez que, segundo Descartes, elas foram
publicadas de forma distorcida e incompleta pelo médico de Louvain. Na carta
de 5 de julho do mesmo ano, Descartes deduz esse movimento do calor do
coração e da conformação dos vasos, destacando o processo de evaporação e
condensação do sangue como parte de sua explicação eminentemente
mecânica com respaldo na experiência. Van Beverwick, nessa obra, deu
destaque à palavra de seus interlocutores, sem deixar entrever a sua posição
referente aos assuntos aí tratados. Mas o interesse de Beverwick em incluir as
teses cartesianas em sua compilação, além da adoção da explicação da
circulação sangüínea defendida por Descartes, deixa entrever a importância do
filósofo nas discussões que são travadas no meio médico.
8
Autor de várias obras médicas, dentre as quais merecem destaque um manual de medicina
doméstica e clínica denominado Tesouro da saúde e da doença (1656) e o livro Sobre a
excelência do sexo feminino (1643).
Marisa C. de O. F. Donatelli 146
II
9
AT IV, 627 (Descartes a Elisabeth, mars 1647)
A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 147
“(..) não é necessário conceber nela [na máquina corpórea]nenhuma alma vegetativa
nem sensitiva nem outro princípio de movimento e de vida além de seu sangue e
seus espíritos, agitados pelo calor do fogo que queima continuamente em seu
coração”.10
10
AT XI,p.202
11
AT XI, p. 226
12
AT XI, pp. 241-243.
Marisa C. de O. F. Donatelli 148
misturar com o que entra, comporta-se como uma levedura, fazendo com que
ele se aqueça e se dilate rapidamente. Assim, o coração enrijece, dilata-se e
distribui o sangue pelo corpo por meio das artérias. Com a saída do sangue
rarefeito, o coração se alonga e desinfla. Em resposta às críticas de Plempius
ao calor cardíaco, Descartes recorre à descrição do experimento com peixes,
cujo coração extraído pulsa por muito mais tempo do que o coração de um
animal terrestre. A pulsação, após a extração, é explicada pela penetração de
um pouco de sangue de uma parte do coração em uma outra um pouco mais
quente. Isso significa que o coração é impelido a continuar a pulsar, por uma
força mínima; afinal, quanto menor é a quantidade de qualquer humor – e o
sangue é um tipo de humor - tanto mais facilmente pode ele se rarefazer,
provocando a dilatação. O exemplo, pautado em analogia, ao qual Descartes
recorre, para justificar essa afirmação, é o de licores que, ao se misturarem a
outros, se aquecem e inflam. Da mesma forma, no coração reside algum humor
equivalente a um fermento, com o qual um outro humor, ao se misturar, dilata-
se13. Assim, convém esclarecer, a rarefação à qual Descartes se refere, aqui,
consiste na manutenção da forma do licor e aumento de seu volume,
distinguindo-se da outra maneira, quando o licor transforma-se em fumo e
muda a forma. Plempius, em sua objeção, na carta de janeiro de 1638, refere-
se a este último tipo de rarefação, que não é considerado por Descartes na
explicação do movimento do coração, uma vez que não há ar nos ventrículos
do coração, mas somente sangue. Esse modo de rarefação, que se dá em um
momento, considerado pelo filósofo na explicação do movimento cardíaco,
implica o aumento de volume do sangue, adquirindo, portanto, novo
movimento, figura ou situação, de forma que suas partículas necessitam de um
lugar mais amplo. É assim que a diástole será defendida como se dando em
um momento e não de forma gradativa.
“Quando o sangue aumenta de volume no coração, a maior parte dele irrompe pela
aorta e pela veia arteriosa, mas ainda fica uma outra parte em seu interior que
preenche os ventrículos. Aí, atinge um novo grau de calor e uma certa natureza como
a do fermento: imediatamente depois, enquanto o coração desinfla, faz com que,
misturando-se muito rapidamente ao novo sangue, que escorre para dentro através
da veia cava e da artéria venosa, infla-se rapidamente e sai pelas artérias, depois de
13
AT I, pp. 521-534 (Descartes à Plempius, 15.2.1638)
A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 149
ter deixado para trás uma parte qualquer de si que funciona como um fermento.”(AT I,
p.530)
14
AT IX, 250-1
Marisa C. de O. F. Donatelli 150
III
15
AT VI,53
16
CORNELIUS VAN HOGELANDE, Cogitationes, quibus Dei existentia et animæ spiritalitas, et
possibilis cum corpore unio, demonstrantur : necnon brevis historia œconomiæ corporis
animalis proponitur, atque mechanique explicatur, Amsterdam, 1646.
A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 151
17
AT V, 48 (Elisabeth à Descartes, mai 1647)
18
Cf. Fernel, Pathologia.
Marisa C. de O. F. Donatelli 152
“No sangue, há quatro principais gêneros de partes [de matéria]: pequenas e lisas
como o espírito do vinho, pequenas e ramificadas como o óleo, espessas e lisas
como a água e o sal, espessas e ramificadas como [as partículas] de terra ou as
cinzas.” (AT XI, p.536)
“As pequenas e lisas causam a febre intermitente (que dura um ou mais dias) ao
estarem retidas e se deteriorando nas extremidades dos vasos por causa da
interrupção da transpiração insensível. As espessas e lisas causam a febre cotidiana,
ao se deteriorarem no estômago e nos intestinos. As pequenas e ramificadas causam
a [febre] terçã, ao se deteriorarem no reservatório da bílis. As espessas e ramificadas
causam a [febre] quartã ao se deteriorarem no baço.” (AT XI, pp.536-537)
IV
19
No que concerne a essas leis, há uma alteração na ordem que consta no Mundo.
20
AT IV, 188-192
21
Tempo necessário para sua maturação torná-la fluida, por isso a febre é designada como
cotidiana, terçã e quartã.
Marisa C. de O. F. Donatelli 154
22
Médico e químico belga que viveu de 1557 a 1644.
23
AT I, 137 (A Mersenne, 15 avril 1630)
A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 155
Bibliografia Primária
Bibliografia Secundária
TATON, René. (dir..). História geral das ciências. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1960. (t. II, v. 2 e 3)
Michel PATY
Centre National de la Recherche Scienfique (CNRS); Equipe REHSEIS; Université Paris 7;
Departamento de Filosofia/USP
1
Conferência baseada em argumentos apresentados no artigo “A criação científica segundo
Poincaré e Einstein”, tradução de Sérgio Alcides, Estudos Avançados (São Paulo, Br), 15, n°
Michel Paty 158
41 (jan-abr.), 2001, 157-192. Reproduzo aqui, para os Anais do Encontro, com algumas
modificações, extratos deste artigo concernentes a Einstein, conforme o título da palestra.
2
Os textos fundadores dessas teorias foram republicados na edição crítica das obras
completas de Einstein atualmente disponível: Einstein [1987-1998], vols. 2, 3, 7. Para uma
A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 159
de fato a duas teorias distintas, ainda que a segunda possa ser vista como um
prolongamento ou uma radicalização da primeira, constituem invenções
científicas no pleno sentido da expressão. Não pretendemos aqui analisá-las
completamente, enquanto tais, dando conta do processo de sua gênese em
toda a sua complexidade: seria tarefa difícil, quiçá impossível, se a
pretendêssemos; seria exaustiva, e os aspectos psicológicos, em particular,
permaneceriam inacessíveis. Limitar-nos-emos a investigar aí os elementos
significativos da racionalidade própria a esse trabalho do pensamento, bem
como o “salto lógico” que constitui a criação científica3.
A criação, mesmo quando ocorre no domínio científico, transcende a
racionalidade linear tanto quanto a lógica, e mesmo somente a partir dos
pontos de vista filosófico ou epistemológico, não devemos nos ater a estas da
maneira como as poderíamos reconstituir depois – com todos os sedimentos
de interpretações e reestruturações teóricas. O aporte do trabalho de Einstein
nos dois casos era, tal como os problemas que ele estudava, de natureza
racional, como o foi também a sua resposta particular (e o mesmo vale, em
geral, para as invenções científicas de outros pesquisadores). Toda a questão
está em saber se o caminho da criação que vai da formulação do problema até
sua solução é também, e até que ponto, dessa natureza, bem como se é
possível seguir o fio dessa racionalidade.
No que diz respeito à gênese da relatividade restrita, da qual sabemos
ter sido elaborada a partir de dificuldades da teoria eletromagnética, ainda que
seu aporte tenha mais tarde ultrapassado essa teoria em particular, o próprio
Einstein apresentou diversas vezes preciosas indicações, não exaustivas, mas
coerentes entre si. Em suas “Notas autobiográficas”, redigidas em 1946, ele
indica como “na época em que [ele] era estudante, o tema que mais [o]
tradução francesa dos textos principais, ver Einstein [1989-1993], vols. 2, 3. Consulte-se ainda
a correspondência, distribuída em vários volumes dessas edições.
3
Paralelamente ao trabalho de Einstein sobre o que ia ser chamado posteriormente a teoria da
relatividade restrita, assinalamos as contribuições de H.A. Lorenz em 1904 e de H. Poincaré
em 1905, próximas pelos seus resultados do trabalho de Einstein, mas diferentes por varias
implicações fundamentais: em particular as teorias de Lorentz e de Poincaré correspondem a
uma dinâmica electromagnética, e deixam de lado a questão dos conceitos de tempo e espaço
na sua generalidade (não há confronto entre estes conceitos na sua forma na dinâmica
electromagnética e na mecânica clássica). Veja Paty [1993a], chap 2, 3, Paty [1996a, 2005].
Michel Paty 160
fascinava era sem dúvida a teoria de Maxwell”.4 Desde seu segundo ano no
Polytechnicum de Zurique, ele “reencontr[ou] o problema da luz, do éter e do
movimento da Terra”, problema que nunca mais o abandonaria. Também se
sabe, através de outra reminiscência, mais antiga e de difusão restrita (trata-se
de uma conferência pronunciada em 1922, em Kioto, no curso de sua viagem
ao Japão, e só publicada em inglês há bem pouco tempo), como lhe ocorreu a
idéia da teoria da relatividade. “Foi há cerca de dezessete anos”, declarou ele
em 1922, “que a idéia de tentar desenvolver o princípio da relatividade me
ocorreu ao espírito”.5 Essa idéia originou-se “no problema da ótica dos corpos
em movimento”. Tratava-se do problema do éter e da possibilidade de
demonstrar o movimento da Terra com relação a este.
Dispomos, além disso, de alguns raros testemunhos contemporâneos
diretos, através de cartas a amigos guardadas ou redescobertas, que
confirmam essa preocupação: podemos acompanhar nessa correspondência, a
partir de setembro de 1899, a Mileva Maric, sua futura esposa, depois em 1901
a seu colega Marcel Grossmann, em seguida a Michele Besso, o amigo do
Bureau des brevets, o interesse constante de Einstein pelos problemas que o
conduziram à teoria da relatividade restrita em 1905.6 Aludindo mais tarde a
esse período, ele ressaltaria a convicção que tinha na época de que, em face
dos problemas da eletrodinâmica, “somente a descoberta de um princípio
formal para o movimento”, a exemplo da termodinâmica, poderia conduzir “a
resultados seguros”.7
Também sabemos que um fenômeno físico específico tem um lugar
estratégico na reflexão e no encaminhamento das idéias de Einstein: “O
fenômeno da indução eletromagnética me permite formular o postulado de um
princípio de relatividade (restrita)”.8 A importância desse fenômeno em seu
pensamento é confirmada por outros textos:9 ele constitui uma espécie de
4
Einstein [1946], p. 32. Ela devia seu caráter revolucionário, comenta Einstein, ao fato de fazer
a passagem da idéia de ação à distância à de campo.
5
Einstein [1922].
6
Einstein [1987-1998], vol. 1, Einstein & Besso [1979]. Cf. Paty [1993a], cap. 2.
7
Einstein [1946], grifo meu, M. P.
8
Einstein [1946], grifo meu, M. P.
9
Em particular o manuscrito Einstein [1920]. Para uma análise correspondente, ver Paty
[1993a], capítulos 2 e 3.
A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 161
10
Einstein [1946].
11
Sobre o que está epistemologicamente subjacente à formulação de uma “dificuldade” (e não,
por exemplo, uma “anomalia”), ver Paty [1993a, 1996b].
Michel Paty 162
não havia mais apenas duas, e sim três proposições que, tomadas em
conjunto, eram irreconciliáveis. Tal foi o fio que permitiu o desfecho: se fosse
suprimida a regra das velocidades, os dois princípios poderiam ser conciliados,
mediante uma outra regra de composição a ser buscada. Era preciso ter a idéia
mencionada acima da inversão de perspectiva teórica, e também pensar no
espaço e no tempo como grandezas físicas, contrariamente a suas definições
absolutas admitidas por Newton. Eis aí toda uma rede de reflexões, incluindo a
crítica dos conceitos físicos (e a influência, entre outras, da análise de Mach),
que deve ter tido um papel relevante, por meio de um apelo sintético da
intuição. No trabalho teórico sobre essas grandezas, uma vez ultrapassado o
obstáculo, o lugar ocupado pela questão da simultaneidade e pela crítica de
seu caráter absoluto é revelador da complexidade dessas noções em conjunto,
ligando-se além disso à tomada de consciência da impossibilidade de ações
instantâneas à distância.
Podemos identificar com bastante precisão o que foi, em Einstein, o
momento da invenção de sua solução (solução da dificuldade identificada), que
determinou sua descoberta da teoria da relatividade. Esta comporta, a partir da
ordenação das relações entre os conceitos físicos, e em primeiro lugar entre os
espaços e os tempos, uma parte de dedução (as equações de transformação
que fazem a passagem de um referencial de inércia a outro), depois do
momento de intuição sintética que abriu o caminho, e a reconstrução das
grandezas no percurso desse caminho a partir de então balizado.
Mas onde se situa o ato propriamente criador? Bem se nota que ele
caracteriza todo o movimento do pensamento, desde a própria fixação de um
alvo para si, pela escolha de suas próprias razões, através de uma formulação
dos problemas condicionada por uma certa exigência de inteligibilidade, depois
a identificação das dificuldades a superar, em seguida a formulação de um
princípio de uma solução, até as modalidades do trabalho mais comum (no que
ele tem de essencialmente demonstrativo e dedutivo) de estabelecimento das
relações de grandezas que são o corpo da teoria. Esse trabalho de criação se
utiliza do raciocínio (que não encerra apenas dedução, mas é também
construtivo ao constituir os objetos) tanto quanto da intuição, termo pelo qual
designamos aqui uma percepção (intelectual) sintética de um complexo de
Michel Paty 164
12
Einstein [1933].
13
Ver Paty [1993a], capítulo 5.
Michel Paty 166
14
Einstein [1922, 1946]. Esse pensamento lhe ocorreu em novembro de 1907, segundo
Abraham Pais (Pais [1982], p. 178).
15
Einstein [1946].
16
Ver Pais [1981], e a coleção Einstein Studies, organizada por Don Howard e John Stachel
(em particular Howard & Stachel [1989], Eisenstaedt & Kox [1992]).
17
Ver Paty [1993a], capítulo 5.
18
Ver acima.
A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 167
19
Einstein [1946], p. 6-7.
20
Einstein [1941].
21
Einstein [1946], p. 6-7.
22
Ibid., p. 8-11.
23
Ver o seu Breve tratado (Espinosa [1656]). Cf. Paty [1986], p. 294.
Michel Paty 168
24
Em alemão, “Einfuhlung”. Einstein [1946c], p. 14-15.
25
Paty [1994, a sair].
26
Ver, para indicações detalhadas, Paty [1993]. p. 383.
27
Einstein [1936, 1941].
28
Einstein [1944]. Ver a observação antes feita, no mesmo sentido, por Helmholtz, em texto de
1894 sobre “A origem e a interpretação correta das impressões dos nossos sentidos”: “As
imagens memorizadas das impressões dos sentidos podem tornar-se elementos na
A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 169
combinação de idéias, embora tais impressões não possam ser descritas pelas palavras, e
portanto conceitualizadas” (ver Helmholtz [1971]).
29
Einstein [1946].
30
Hadamard [1945].
31
Einstein [1945].
32
Einstein [1945].
Michel Paty 170
33
Jakobson [1980].
34
Poincaré [1908c], in [1908a] ed. 1918.
A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 171
35
Hadamard [1945], ed. francesa, p. 52-53.
36
“Le choix des faits”, in Poincaré [1908a], ed., 1918, p. 15-17.
37
Paty, [no prelo, a].
38
Souriau [1881].
39
Paulhan [1904]
40
Hadamard [1945].
Michel Paty 172
41
Ribot [1900].
42
Bergson [1919], in [1959], p. 947.
43
Paulhan [1901].
44
Bergson [1919], in [1959], p. 958.
45
Meyerson [1931], vol. 1, p. xix. Ver Meyerson [1921].
46
Meyerson [1931], vol. 1, p. 81.
A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 173
Bibliografia
47
Paty [1999]. Veja, por ex. Mach [1905], Peirce [] , James [1907, 1909, 1912, 1917].
Michel Paty 174
KANT, I. [1781, 1787]. Critik der reinen Vernunft, J.F. Hartknoch, Riga,
1781; 2a ed. modificada, 1787. Trad. fr. por A.J.L. Delamarre e F.
Marty, Critique de la raison pure, in Kant, E., Oeuvres philosophiques,
vol. 1, Gallimard, Paris, 1980, p. 705-1470.
Michel Paty 176
SPINOZA, Baruch [v. 1656]. Court Traité, in Spinoza, Oeuvres, ed. e trad.
por Charles Appuhn, vol. 1, Garnier-Flammarion, 1964.
Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas
2. Reducionismo
1
Dentro do movimento do positivismo lógico, buscou-se inicialmente reconstruir a ciência a
partir de uma linguagem “fenomênica”, referente apenas às observações ou dados sensoriais
(“sensacionismo”), mas depois considerou-se aceitável utilizar uma linguagem que se refira a
coisas e a suas propriedades, linguagem essa que se chamou “fisicalista”. Esta acepção do
termo fisicalismo é um tanto diferente da anterior, e poderia ser nomeada “fisicalismo
descritivista”. Ela introduz uma tese metafísica mínima, a de que os objetos do mundo se
Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 181
comportam como coisas, ou seja, como objetos da física clássica (tese desafiada pela física
quântica).
Osvaldo Pessoa Jr. 182
3. Ontologia Geral
2
O exemplo que acabamos de ver pode ser classificado como um exemplo de reducionismo
teórico ou entre teorias (SEARLE, 1997, p. 165; RUSE, 1995, p. 750): as leis e fenômenos
descritos segundo uma teoria científica (como a termodinâmica) seriam explicáveis em termos
de outra teoria (a mecânica estatística). Neste procedimento de redução, no entanto, afirma-se
a identidade entre entidades de uma teoria e outra (no exemplo visto, entre temperatura e
energia cinética média). Nesse sentido, alguns caracterizam tal procedimento como um
reducionismo ontológico (Horgan, 1995): a tese de que as entidades, os tipos, as propriedades,
os fatos postulados por uma teoria científica são idênticos a entidades de uma outra teoria.
SEARLE (1997, p. 164), em sua classificação de cinco sentidos do termo “redução”, reserva o
termo “redução ontológica de propriedades”. O que ele chama de “redução ontológica” (assim
como RUSE, 1995), por exemplo a tese de que “cadeiras são nada exceto coleções de
moléculas”, parece recair mais no domínio ôntico, de forma que reservaremos o termo
fisicalismo redutivo para esta tese. Outro sentido importante do reducionismo, na ciência, é o
reducionismo metodológico: independente de se de fato é possível efetuar um reducionismo
ontológico detalhado, por exemplo entre processos psicológicos e neurológicos, a tese
Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 183
metodológica recomenda que o cientista, em sua prática, deva buscar descobrir tais conexões
redutivas (RUSE, 1995).
Osvaldo Pessoa Jr. 184
5. Sondas Epistemológicas
3
Uma sonda epistemológica poderia ser usada para aumentar o poderio do “critério
verificacionista de significado”, dos positivistas lógicos. A afirmação “há um tiranossauro
dormindo no terreno ao lado” teria significado porque há uma receita para verificar sua verdade
ou falsidade (qual seja, passear pelo terreno com os olhos abertos). Mas teria sentido a
afirmação “havia um tiranossauro dormindo no terreno ao lado há exatamente 100 milhões
anos atrás”? Ora, se supusermos um Universo determinista, poderíamos definir uma “sonda
temporal”, com as propriedades de observação local e de não-distúrbio, que viaja para o
passado, observa a situação no referido terreno, e retorna para o presente com a informação
solicitada (tal caracterização teria que ser refinada para impedir viagens ao futuro ou para
contemplar Universos indeterministas). A sonda temporal poderia nos auxiliar a exprimir
diferentes hipóteses a respeito do início do tempo: segundo a teoria de Hawking-Turok, nossa
sonda poderia rumar o quanto quiséssemos para o passado, antes de retornar. Uma
modificação da sonda temporal poderia ser útil também para exprimir propriedades de histórias
contrafactuais, em um mundo indeterminista. Suporíamos que esta “sonda contrafactual”
Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 185
6. Demônio Escalar
pudesse ir para o passado de nosso mundo factual, até uma certa data inicial, e de lá ela
rumaria para uma história diferente, até a data de hoje. De lá, então, ela poderia voltar para a
data inicial; um problema seria que marcador ela usaria para encontrar novamente o nosso
ramo histórico, trazendo-nos informações sobre mundos possíveis.
4
O “demônio de Maxwell” utiliza semelhantes óculos para poder ver com resolução fotônica a
posição de moléculas de um gás que se aproximam de uma portinhola, que ele controla sem
dissipar energia. Uma propriedade essencial desta sonda epistemológica é que ela não
consegue observar o mundo sem provocar um distúrbio ou, se conseguir, terá que apagar
informações passadas em sua memória. Em ambos os casos, ela dissipa energia, o que é
necessário para que possa adquirir informação sobre o mundo e diminuir a entropia do gás em
questão.
Osvaldo Pessoa Jr. 186
5
O termo “determinação” não deve ser confundido com “determinismo”. O primeiro é mais
geral, exprimindo a situação em que o estado de uma região espaço-temporal-escalar
restringe, mesmo que fracamente e probabilisticamente, o estado de outra região.
“Determinismo” é uma situação de determinação forte e não-probabilística entre diferentes
regiões temporais, ou seja, é um tipo de causação forte.
Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 187
Agradecimentos
Bibliografia
NAGEL, E., The Structure of Science. Nova Iorque: Harcourt, Brace &
World, 1961.
1
Ora, onde não há partes, não há extensão, nem figura, nem divisibilidade possíveis, e, assim,
as Mônadas são os verdadeiros Átomos da Natureza, e, em uma palavra, os Elementos das
coisas. (Monadologia, 3)
2
As almas atuam por apetições, fins e meios, segundo as leis das causas finais. Os corpos,
segundo as leis das causas eficientes ou dos movimentos. E ambos os reinos o das causas
eficientes e o das causas finais, são harmônicos entre si. (Monadologia, 79)
Matéria e substância segundo Leibniz 193
para esclarecer essa noção (de substância), aqui direi que a reflexão sobre o conceito
de força é de grande auxílio para a compreensão da natureza da substância. Essa
força ativa é diferente da faculdade dos escolásticos, que consiste apenas em uma
possibilidade aproximada de ação e que nela mesma está morta, por assim dizer, e
inativa, a menos que seja excitada por algo exterior a ela. Mas a força ativa envolve
uma enteléquia, ou uma atividade; está a meio caminho entre uma faculdade e uma
ação, além de conter em si mesma um certo esforço ou conatus. É levada à ação por
si mesma sem qualquer necessidade de auxilio, desde que nada a impeça. (4)
3
Segundo Deleuze (2000) o uso do termo harmonia é pertinente à teoria musical: “Duas razões
podem levar a acreditar que a referência musical é precisa e concerne ao que se passa na
época de Leibniz. A primeira é que a harmonia é sempre pensada como preestabelecida, o que
implica precisamente um estatuto muito novo; e, se a harmonia opõe-se ao ocasionalismo, é
visto que a ocasião desempenha o papel de uma espécie de contraponto que ainda pertence a
uma concepção melódica e polifônica da música. É como se Leibniz estivesse atento ao que
estava em via de nascer com a música barroca, ao passo que seus adversários permaneciam
ligados à antiga concepção. A segunda razão é que a harmonia relaciona a multiplicidade não
a uma unidade qualquer, mas a uma certa unidade que deve apresentar caracteres
distintivos.”( p. 213-4)
Patricia Coradim Sita 194
A materia prima de que fala Russell é o repetido tomado per se, aquilo
que é pressuposto pela extensão como repetição, puramente passiva, diferente
da materia secunda, dotada da força ativa.
A noção de substância expressa logo no início da Monadologia (1 e 2) é
indicativa do tratamento que o autor dispensará a essa idéia: “Visto que há
compostos, é necessário que haja substâncias simples, pois o composto é
apenas a reunião ou agregatum dos simples.” Ora, Leibniz está pressupondo
neste momento que a substância não é um conceito que precise ser
problematizado. Ele é claro por si mesmo. Ainda que a Monadologia não possa
ser considerada um bom referencial para a investigação deste conceito, uma
vez que é um texto da maturidade (1714), e ainda que não estejamos aqui
defendendo uma identidade conceitual entre o conceito de mônada e o de
substância individual, notamos que já em 1686, no Discurso de Metafísica, a
primeira menção do autor à substância (artigo 8) nos oferece uma definição
que abrange seu aspecto lógico, cuja base está fundada na estrutura das
proposições categóricas constituídas por sujeito e predicado: “É correto,
Matéria e substância segundo Leibniz 195
Bibliografia
“Ele toma a primeira da bela ordem que é observada entre todos os grandes corpos
do mundo, cujos movimentos são tanto mais velozes quanto eles são menores, pois a
1
O documento encontra-se em MERSENNE, M. Correspondance, Vol. 3, p. 186.
Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 199
Lua faz seu curso em 29 dias, Mercúrio em 80 dias, Vênus em nove meses, o Sol em
um ano, Marte em dois, Júpiter em doze e Saturno em trinta anos, de sorte que os
tempos dos circuitos que fazem esses corpos vão sempre aumentando na proporção
de suas grandezas, e conseqüentemente o céu das estrelas deve ser imóvel, ou
mover-se muito lentamente, a fim de preservar a mesma ordem dos outros céus, e
em nada perturbar na harmonia do universo. O que não pode ocorrer se a Terra não
se move em vinte e quatro horas.”(MERSENNE, M. Correspondance, Vol. III, p. 570)
“Há muito tempo afirmamos que é certo que a Terra se move em vinte e quatro horas
em torno de seu eixo, se o Autor da natureza fez todas as coisas pelo caminho mais
curto de todos os possíveis, e que é mais fácil e mais curto dar uma volta sobre o alto
das torres de Notre Dame para ver toda a cidade de Paris do que se a cidade se
movesse, e o olho permanecesse sempre em um mesmo lugar.”(MERSENNE, M.
Correspondance, Vol. III, p. 571)
“Mas não teremos nem ciência nem revelação da maneira segundo a qual Deus
regulou os movimentos do Universo, pois ainda que ele não faça qualquer coisa
inutilmente, e que não haja nada de supérfluo em suas obras, entretanto, ele pode ter
grandes razões, pelas quais faz girar o firmamento deixando a Terra imóvel. É por
esse motivo que me parece mais apropriado suspender nosso julgamento do que se
deixar levar por conjecturas que se levantam em favor desse
movimento(...)”(MERSENNE, M. Correspondande, Vol. III, p. 571)
“Visto que nós não podemos formar qualquer conclusão demonstrativa sem um meio
termo que serve como um elo necessário ao atributo e ao sujeito, e que este meio
termo nos falta neste assunto, não é possível saber se a Terra se move, ou se ela
está imóvel, enquanto o Sol, e as Estrelas se movem, de modo que podemos explicar
todos os fenômenos que tem ocorrido até o presente tanto pelo movimento da Terra,
quanto pelo movimento dos Astros. Entretanto podemos dizer que ela se move em
torno de seu eixo, se Deus seguiu o caminho mais curto de todos os possíveis dentro
da ordem e dos movimentos de todas as partes do Universo.” (MERSENNE, M.
Questions Inouyes, Prop. 11, Ed.Fayard, p. 37)
Essa passagem nos mostra uma situação muito parecida com aquela
encontrada na carta remetida a Antoine de Rebours. Encontramos aqui dois
aspectos bastante claros. O primeiro diz respeito à impossibilidade de decidir
entre a hipótese ptolomaica e a copernicana. Segundo Mersenne, não
dispomos de elementos suficientemente fortes para optar definitivamente por
uma das duas hipóteses. Note-se que Mersenne confere o mesmo peso aos
dois sistemas, como se eles tivessem o mesmo valor instrumental. O segundo
aspecto está relacionado mais uma vez com o princípio de simplicidade. Se
Paulo Tadeu da Silva 202
Deus escolheu o caminho mais simples, então a Terra gira em torno de seu
próprio eixo.
A mesma situação comparece na proposição 34 das Questions
Théologiques. Os argumentos arrolados em favor do movimento da Terra têm
em vista a mesma simplicidade e ordem pressupostas no final do primeiro
parágrafo da proposição 11 das Questions Inouyes. Além disso, de modo
análogo ao que foi dito naquele momento, Mersenne não vê razões
inquestionáveis para afirmar o movimento ou o repouso da Terra. Além desses
aspectos é preciso chamar a atenção para o famoso problema da queda dos
corpos. Seguindo a mesma linha de Galileu, o que, vale lembrar, será
retomado no segundo livro do Harmonie Universelle (1636/37), Mersenne
afirma que esse fenômeno não acarreta qualquer prejuízo para a hipótese
copernicana. Para ambos, todos os objetos presentes na Terra participam do
movimento realizado por ela. Portanto, esteja ela em movimento ou não, os
movimentos em seu interior não sofrerão qualquer alteração.
A questão 37 das Questions Théologiques, diferentemente das questões
precedentes, não discute o movimento da Terra em torno de seu eixo, mas a
possibilidade de seu movimento anual em torno do Sol. Os argumentos
apresentados, embora relacionados com outro tipo de movimento, estão
igualmente fundamentados nos princípios de ordem e simplicidade. No caso do
movimento anual, a situação permanece inalterada: não é possível afirmar
definitivamente que a Terra gira em torno do Sol.
As questões 44 e 45 das Questions Théologiques são dedicadas a uma
rápida sinopse das duas primeiras jornadas do Diálogo de Galileu. A meu ver,
elas não alteram o quadro exposto até aqui.
Com vimos a postura de Mersenne é extremamente cautelosa quando o
assunto em discussão diz respeito à defesa do copernicanismo. Dada a sua
condição, o padre Mersenne não sustenta definitivamente a doutrina de
Copérnico. Tal posicionamento merece algumas considerações.
Em primeiro lugar, é preciso notar que Mersenne, ao longo de algumas
passagens dos tratados de 1634 e em algumas proposições do segundo livro
2
A partir desse momento esse texto será indicado como Questions Théologiques.
Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 203
“Eu vos envio os três pequenos tratados que fiz, a fim de que possais receber algum
contentamento entre vossas ocupações mais sérias.
Eu vos peço que envieis ao Monsenhor Doni, quando por alguma ocasião o
encontrar, aqueles nos quais seu nome está. Neles, as Questions Morales,
mathematiques etc. são diferentes das vossas, uma vez que existem razões para o
movimento da Terra sem refutação, para as quais eu coloquei a sentença dos
cardeais como remédio, como vós vereis. Mas uma vez que me foi dito que houve
algum barulho entre os doutores da Sorbonne em virtude das razões que eu não
recusei, suprimi todas as questões as quais se poderia formalizar, e coloquei outras
que vós vereis no livro para o Monsenhor Doni, que serão mais próprias para Roma.
Contudo, se não vos agradar de vê-las ali, enviá-las-ei separadas.”(MERSENNE,
Correspondance, vol. 4, p. 267)
Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 205
“Mas é preciso enfatizar que não é intenção da censura impedir o cálculo dos eclipses
e dos astros pelo método de Copérnico, visto que esta operação não causa qualquer
dano à Escritura, e que ela não se opõe a seu julgamento.”(MERSENNE, Questions
Inouyes, 1634, p. 425)
Bibliografia
Alex Calazans
Mestrando em Filosofia/UFPR
Introdução
1
Newton não foi o primeiro a tratar o movimento como produtor de magnitudes geométricas.
Josseph afirma que outros matemáticos, inclusive contemporâneos de Newton, já
consideravam esse tratamento muito comum. “Essa concepção cinemática não é uma inovação
newtoniana; isso é dominado nas Lectiones Geometricae de Barrow e pode ser igualmente
encontrado em outros escritos” (Josseph, p.143).
2
Newton expressa essa noção de tempo da seguinte maneira: “O tempo absoluto, verdadeiro
matemático, por si mesmo e da sua própria natureza, flui uniformemente se a relação com
qualquer coisa externa...” (Principia, Escólio das definições, I). Assim, segundo Cohen, o tempo
considerado dessa maneira passa a ser para Newton o “pano de fundo do
movimento”(Cohen,I.2002, p.452).
3
Um instante é a quantidade infinitamente pequena de tempo com a qual as fluxões e
quantidades fluentes são geradas. Nas palavras de Newton: “Fluxões são aproximadamente
A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 211
como os Aumentos dos Fluentes gerados em partes iguais, mas infinitamente pequenas, do
Tempo” (Newton. De quadraturam curvarum. Publicado por: Whiteside, 1964, vol.1.p.141)
4
Newton não considera os momentos como quantidades finitas geradas em um tempo
infinitamente pequeno, provavelmente, para evitar que as quantidades matemáticas sejam
compostas de indivisíveis: “...como a hipótese dos indivisíveis parece um tanto obscura (...)
optei por reduzir as demonstrações (...) à primeiras e últimas somas e razões das quantidades
nascentes e evanescentes...” (Principia.I.I.escólio).
Alex Calazans 212
II
5
A sublinha é minha.
A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 213
III
6
1ª Demonstração: “Um retângulo, como AB, aumentando por um fluxo contínuo, quando
ainda faltava dos lados A e B metade de seus momentos (½)a e (½)b, era A – (½)a vezes B –
(½)b, ou AB – (½) aB – (½)bA + (¼)ab; todavia, assim que os lados A e B são aumentados
pelos outros meio momentos, o retângulo transforma-se em A + (½)a vezes B + (½)b, ou AB
+ (½)aB + (½)bA + (¼)ab. Subtraia-se desse retângulo o retângulo anterior e restará o excesso
aB + bA. Portanto, com a totalidade dos incrementos a e b dos lados gera-se o incremento aB
+ bA do retângulo. Q.E.D.” (Principia. II, II).
Alex Calazans 214
“Nada se pode fazer enquanto não se descarta a quantidade ab. Para tanto, a noção
das fluxões é alterada e iluminada sob formas diversas: aspectos que deveriam ser
claros como princípios fundamentais tornam-se confusos, e termos que deveriam ser
usados de maneira constante torna-se ambíguos” (Analista, §10).
7
2ª Demonstração: “Mas está claro que o método direto e verdadeiro para obter o momento
ou incremento do retângulo AB é considerar os lados aumentados por seu incrementos inteiros
A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 215
IV
Fica evidente que pensar é possuir idéias e possuir idéias é, antes de tudo,
possuir percepções. O objeto do conhecimento não pode possuir outra forma
que não seja idéia. É esse o significado da doutrina contida na expressão latina
do esse est percipi,8 “ser é ser percebido”(Idem).
Berkeley, nos Princípios, também apresenta o vínculo entre os sentidos
e a imaginação ao acessarem o objeto do conhecimento. Como se consegue
sustentar esse vínculo? Ele observa que todas as idéias que a imaginação
produz podem de alguma maneira se reduzir a uma idéia vinda pelos sentidos.
8
Aqui não nego que Berkeley, nos Princípios, se compromete com uma ontologia ao expressar
essa máxima. Porém, suspendo por enquanto essa interpretação e retenho o critério de
Alex Calazans 218
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
BERKELEY, G. (1992) ‘De Motu’ and ‘The Analyst’ [ed., with commentary,
Douglas M. Jesseph] Dordrecht and Boston.
1
Segundo Dicker, “Hume pretende fazer aquilo que os filósofos contemporâneos chamam de
uma análise da causalidade: uma definição que especifique, de maneira não circular, todas
aquelas afirmações que devem ser verdadeiras para uma relação causal ser obtida, ou que dê
A relação entre inferência e conexão necessária 223
um objeto pode ser contíguo e anterior a outro, sem ser considerado como causa
dele. Há uma CONEXÃO NECESSÁRIA que deve ser levada em consideração e que
é uma relação muito mais importante [ou mais abrangente] do que aquelas outras
duas acima mencionadas (T.I.iii.2. p. 77; maiúsculas e itálicos do autor).
[i] Por que razão nós afirmamos ser necessário que cada coisa, cuja existência tenha
um começo, deva também ter uma causa? [e ii] Por que nós concluímos que tais
causas particulares devem necessariamente ter tais efeitos particulares; e qual é a
natureza da inferência que fazemos de um ao outro e da crença que nós depositamos
nela? (T.I.iii.2 p. 78; itálicos do autor).
as condições necessária e suficiente para a afirmação de que X causa Y” (Dicker, 1998, p. 99;
itálicos do autor).
2
Vale ressaltar que minha análise estará, em grande medida, fundamentada na concepção de
Barra, segundo a qual estas duas questões colocadas por Hume, dizem respeito,
respectivamente, aos problemas da causalidade e da indução. Acredito que a sugestão de
Barra a esse respeito é bastante clara e de fato resolve alguns problemas de interpretação
acerca das ásperas discussões da parte III do Tratado. Segundo Barra, “enquanto o primeiro
diz respeito às condições de existência das coisas [problema ontológico], o segundo diz
respeito às suas condições do conhecimento (crenças e inferências) [problema
epistemológico]” (Barra, 2002, p. 85).
Claudiney José de Sousa 224
3
Hume rejeita, por exemplo: i) as objeções de Hobbes de que deve haver uma causa, capaz
de determinar o ponto do espaço e do tempo em que a coisa começa a existir; ii) a concepção
de Clarke, segundo a qual, sem uma causa, a coisa teria de produzir-se a si própria e iii) as
A relação entre inferência e conexão necessária 225
nos revela nenhuma idéia nova como é a de conexão necessária que estamos
investigando.
Além disso, é preciso saber ainda, em que está fundada a própria
inferência a partir da experiência, se no entendimento ou na imaginação, ou em
outras palavras, saber se a inferência pode ser realizada pela razão ou por
uma associação e relação de idéias. Segundo o autor, “se fosse a razão, ela
procederia sob o princípio de que aqueles casos de que não tivemos
experiência devem se assemelhar àqueles casos de que tivemos experiência, e
que o curso da natureza continua sempre uniformemente o mesmo (T.I.iii.6 p.
89; itálicos do autor). No entanto, os argumentos para fundamentar esta
proposição (sejam eles demonstrativos ou prováveis) nos conduzem a uma
circularidade. Sendo assim, a única alternativa seria a de que a inferência é
produzida pela imaginação ou associação de idéias.
Dessa forma a imputação de regularidade à natureza depende
intrinsecamente das operações da imaginação. Trata-se de uma relação
naturalmente introduzida pelos próprios objetos. Segundo Hume, o que ocorre
é que existem algumas relações ou associações que nos fazem passar
naturalmente de um objeto a outro, mesmo sem haver uma razão para a
transição. Assim, “podemos estabelecer como regra geral que, sempre que a
mente, constante e uniformemente, faz uma transição sem nenhuma razão, ela
está sendo influenciada por estas relações [semelhança, contigüidade e causa
e efeito] (T.I.iii.6, p. 92; itálico meu). Então, a passagem da idéia ou impressão
de um objeto à idéia de outro (inferência) é determinada por princípios que
produzem a união dessas idéias na imaginação (conexão).
Se as idéias não tivessem mais união na fantasia do que os objetos parecem ter no
entendimento, nunca poderíamos realizar uma inferência das causas aos efeitos, nem
poderíamos depositar nossa crença em qualquer questão de fato. A inferência,
portanto, depende unicamente da união das idéias (T.I.iii.6, p. 92).
afirmações de Locke de que, se não houvesse causa, a coisa teria de ser produzida pelo nada
(Cf. T.I.iii. 2-3, p. 79-82).
Claudiney José de Sousa 226
Ainda que a causalidade seja uma relação filosófica, que implica contigüidade,
sucessão e conjunção constante, é apenas enquanto relação natural, que produz
uma união entre nossas idéias, que somos capazes de raciocinar sobre ela ou extrair
dela alguma inferência (T. I.iii.6. p. 94; itálicos do autor).
Mas como afirma Barra, “os raciocínios de causa e efeito não envolvem
apenas a concepção imaginária de um objeto ausente aos sentidos. Além de
concebe-los (...) é preciso também acreditar na sua existência” (Barra, 2000, p.
89), ou seja, é preciso concebe-los uma maneira diferente, mais intensa, forte e
vivaz. É nisto que consiste a crença; ela é uma “IDÉIA VIVAZ RELACIONADA
OU ASSOCIADA A UMA IMPRESSÃO PRESENTE” (T.I.iii.7, p. 96).
Por fim, é preciso considerar que, embora esta força e vivacidade da
crença lhe sejam transmitidas pela impressão dos sentidos, ela depende do
COSTUME ou HÁBITO para ser produzida, pois, somente depois de termos
observado a mesma impressão em circunstâncias passadas, aparecendo
constantemente conjugada a outra impressão que a sucede ou que a antecede,
é que podemos dar origem a este sentimento que é a crença. Dessa forma,
somente o hábito poderia nos levar a fixar nossa crença num evento futuro,
pois, mesmo após a observação da conjunção constante de objetos, não temos
razão para fazer a inferência. Ele é, portanto, o único princípio de determinação
dos eventos futuros.
No entanto, conforme afirma Barra, “o hábito somente pode oferecer
uma solução promissora para o problema da indução se puder também
fundamentar a idéia em que se baseiam todas as nossas expectativas acerca
da regularidade da natureza” (Barra 2000, p. 91). Dessa forma nos envolvemos
propriamente com o problema da idéia de conexão necessária, uma vez que,
somente ela pode fornecer uma base sólida para tais expectativas.
Investiguemos, portanto, esta idéia, com o intuído de esclarecermos este
problema.
A relação entre inferência e conexão necessária 227
Fiel a seu método de análise, o autor acredita que, se temos essa idéia
de necessidade, devemos investigar, em um caso qualquer de causa e efeito, a
impressão correspondente a essa idéia. No entanto, nas relações de causa e
efeito percebemos apenas contigüidade e sucessão entre os objetos e nunca
uma terceira relação ou conexão necessária entre eles. Da mesma forma, a
observação de vários exemplos semelhantes em relações semelhantes de
contigüidade e sucessão não ajuda muito na descoberta da conexão
necessária, pois, “a reflexão sobre várias instâncias apenas repete os
mesmos objetos e, portanto, nunca pode fazer surgir uma nova idéia”
(T.I.iii.14, p. 155), que é o que estamos procurando.
No entanto, embora a repetição não gere uma nova idéia, ela produz
uma nova impressão que, conseqüentemente, deve ter uma idéia
correspondente A esta “impressão nova” deve corresponder também uma
“idéia nova”.
Depois de uma repetição freqüente, descubro que, quando um dos objetos aparece, a
mente é determinada pelo costume a considerar seu acompanhante usual e a
considera-lo de um modo mais intenso, por causa de sua relação com o primeiro
objeto. É esta impressão, então, ou determinação, que me fornece a idéia de
necessidade (T.I.iii.14, p. 156; itálicos do autor)
4
Esta seria uma das razões para não se pensar que Hume estabelece uma divisão, em sua
discussão sobre a causalidade, entre uma fase puramente negativa e outra positiva. Segundo
Smith, “uma vez mais se manifesta que não cabe distinguir, na economia interna do texto
humeano, entre uma parte negativa e cética, baseada no princípio da cópia, e outra positiva e
naturalista, baseada nas associações da imaginação ou instintos naturais” (Smith, 1995, p. 97).
5
Cabe lembrar que Hume inicia esta análise esclarecendo que “os termos eficácia, ação,
poder, força, energia, necessidade, conexão e qualidade produtiva são quase sinônimos”. Se
é assim, não se pode definir qualquer deles por meio dos demais, como fazem erroneamente
alguns filósofos.
A relação entre inferência e conexão necessária 229
poder, Deus seria a fonte última e imediata de todo o poder; iv) a hipótese dos
newtonianos que sustentam a idéia da chamada eficácia das causas segundas,
atribuindo “à matéria um poder e energia derivados mais reais” (T.I.iii.14, p.
193); v) a concepção de que a idéia de poder provenha da observação de
casos individuais das operações da mente sobre os corpos ou sobre as idéias
ou de que talvez tenhamos uma idéia geral de poder (Cf. T.I.iii.14. p. 157-162).
Segundo Hume, nas explicações sobre a idéia de poder dadas acima, as
expressões “força”, “poder” ou “eficácia”, acabaram perdendo seu significado
verdadeiro ao serem erroneamente aplicadas, por isso, precisamos proceder a
uma nova aplicação destas idéias, conferindo-as um significado ao analisá-las
de acordo com o método experimental de raciocínio.
Para Hume, somente depois da conjunção constante é que começamos
a atribuir uma conexão necessária entre os objetos. No entanto, objetivamente
não há diferença entre um único par de eventos e uma grande quantidade de
pares de eventos semelhantes. A observação de uma multiplicidade de pares
de eventos semelhantes não acrescenta nada aos objetos. O que ocorre é que
os casos semelhantes não produzem uma nova qualidade nos objetos que
possa ser o modelo dessa idéia, mas “a observação dessa semelhança produz
uma nova impressão na mente; e esta impressão é seu modelo real” (T.I.iii.14,
p. 165; itálicos do autor). Então a necessidade é uma impressão interna da
mente, nascida da observação da semelhança. Isso ocorre porque a
observação da semelhança, em vários casos, cria uma determinação na mente
para passar de um objeto ao que usualmente o acompanha. Ao multiplicar
nossas idéias, a repetição faz com que sofram um acréscimo em relação ao
que são quando da observação de um caso isolado. Essa determinação é o
único efeito da semelhança e, segundo Hume, deve ser a mesma coisa que a
idéia de necessidade (Cf. T.I.iii.14, p. 163-164).
A multiplicidade, embora não acrescente nada aos objetos externos,
acrescenta algo à mente do observador. A observação de muitos casos
similares da relação de causa e efeito adiciona à mente um sentimento de
expectativa ou antecipação. Este sentimento é a impressão da idéia de
conexão necessária, que no Tratado, recebe o nome de impressão de
Claudiney José de Sousa 230
reflexão6. A única impressão interna que pode dar origem à idéia de conexão
necessária é essa “propensão produzida pelo costume, a passar de um objeto
à idéia de seu acompanhante usual” (T.I.iii.14, p. 165). Sendo assim, o autor
pode concluir que “a necessidade é algo que existe na mente e não nos
objetos” (T.I.iii.14, p. 165). Enfim, se ela não é uma qualidade dos corpos, não
pode ser outra coisa senão uma determinação do pensamento, ou uma
qualidade presente em nossa mente, que possibilita a conexão entre os
objetos.
Com esta resposta a respeito da origem da idéia de necessidade, Hume
consegue, inclusive, descobrir o fundamento da inferência causal, ou seja, “o
fundamento de nossa inferência é a transição que surge da união habitual”
(T.I.iii.14, p. 165) ou seja, é a própria conexão necessária.
De posse desses argumentos, Hume pode então dar uma definição
clara de causa. Uma definição de causa enquanto comparação de idéias
(definição filosófica) e enquanto associação de idéias (definição natural) na
tentativa de diferencia-las, embora, para ele esta seja apenas uma
consideração diferente sobre os mesmos objetos (ou eventos). Mas antes
disso, o autor lembra ainda que somente depois de toda essa análise
poderíamos dar uma definição precisa da relação porque a natureza da
relação depende da natureza da inferência, ou seja, tínhamos que examinar
primeiro a inferência baseada na relação (problema da indução) para somente
depois poder explicar a própria relação de causa e efeito (problema da
causalidade), o que fica claro agora com as duas definições de causa.
Podemos dar duas definições dessa relação, que diferem apenas por apresentarem
uma opinião diferente do mesmo objeto, fazendo-nos considera-las como uma
relação filosófica, ou como uma relação natural; como uma comparação de duas
idéias, ou como uma associação entre elas. [i] Nós podemos definir uma CAUSA
como um objeto precedente e contíguo a outro, em que todos os objetos semelhantes
ao primeiro são colocados em iguais relações de precedência e contigüidade com os
objetos semelhantes ao último (...). [ii] Uma CAUSA é um objeto precedente e
contíguo a outro e tão unido a ele que a idéia de um determina a mente a formar a
idéia do outro, e a impressão de um a formar uma idéia mais vívida do outro”
(T.I.iii.14, p. 170; itálicos e maiúsculas do autor).
6
Segundo Dicker, este é também “o ponto de contato entre a teoria da causalidade de Hume e
sua explicação psicológica do raciocínio causal e indutivo” (Dicker, 1998, p. 107). Eu diria, o
ponto de contato entre os problemas da causalidade e da indução.
A relação entre inferência e conexão necessária 231
7
Segundo Dicker estas duas definições de causa tem chamado bastante a atenção dos
comentadores, principalmente pelo fato de serem definições diferentes de um mesmo objeto,
como afirma Hume. Para ele, de acordo com estas duas definições, “um par de eventos pode
satisfazer (...) [a primeira] sem satisfazer (...) [a segunda], e reciprocamente, um par de eventos
pode satisfazer (...) [a segunda] sem satisfazer a primeira” (Dicker, 1998, p. 114). Para ilustrar
este caso, utilizemos um exemplo do próprio Dicker: “suponhamos, por exemplo, que todos os
eventos similares a E1 [evento 1] são eventos macroscópicos que nós freqüentemente
observamos e eventos similares a E2 [evento 2] são eventos microscópicos que a ciência não
têm entretanto descoberto. Então, pode ser verdadeiro que eventos como E1 são sempre
seguidos por eventos como E2, mas falso que eventos como El sempre levam-nos a esperar
eventos como E2” (Idem). Neste caso, apenas a primeira definição de causa seria satisfeita.
Está claro, portanto, que as duas definições não são equivalentes. A respeito das
interpretações diante da equivalência ou não entre as duas definições, Dicker acha importante
ressaltar que “alguns comentadores tem argumentado que apenas a primeira definição
representa sua real opinião [opinião de Hume] (veja Robinson, 1962). Alguns têm argumentado
que ele tem duas teorias diferentes que podem ser integradas em uma única (Beauchamp e
Rosemberg, 1981). Stroud (1977:89) está seguro de que Hume nunca teve a intenção,
estritamente falando, de dar uma definição da causação. Recentemente, Don Garrett (1997:
107-17) tem argumentado que as duas definições de Hume podem ser interpretadas de tal
modo que voltem a ser equivalentes” (Idem).
Claudiney José de Sousa 232
Bibliografia
“Mas essa natureza me ensina realmente a fugir das coisas que causam em mim o
sentimento da dor e a dirigir-me para aquelas que me transmitem algum sentimento
de prazer; porém, não vejo que, além disso, ela me ensine que dessas diferentes
percepções dos sentidos devêssemos concluir alguma coisa acerca das coisas que
existem fora de nós, sem que o espírito as tenha analisado cuidadosamente. Pois é,
ao espírito, e não ao composto de espírito e corpo, que cabe conhecer a verdade
dessas coisas”. (Descartes, 1973, 6ª metitação)
Bibliografia:
Felipe Ribas
Graduando em Filosofia/UNICENTRO
reais, elas pareceriam manchas únicas, num ciclo transitório retilíneo através
do sol (ou em torno dele) e não agrupadas em corpos separados.
A discussão entre Galileu e Scheiner é o início das discussões referente
à aparição das manchas no sol. É exatamente nesta discussão que a tradição
aristotélica de incorruptibilidade do céu poderá encontrar seu fim, as manchas
acabam evidenciando alterações numa regiao celeste nobre, ou seja, na região
lussidíssima e purrísima do sol. Como afirmado anteriormente, a principal
divergência era a respeito da inalterabilidade celeste. As observações de
Galileu não produziram qualquer efeito sobre Scheiner que, confiante na
ciência tradicional, acreditava serem as manchas uma agregação de planetas e
não mudanças geradas no disco solar, apesar de que o padre concordava com
Galileu quanto ao fato de que as manchas não estavam localizadas abaixo da
esfera lunar.
Nas primeiras páginas da segunda carta sobre as manchas solares,
Galileu, através de suas observações e ilustrações geométricas, praticamente
comprova a impossibilidade de as macchie oscure do disco solar serem apenas
a sombra gerada pela transição de planetas. Galileu afirma que as manchas
não estão tão distantes do sol e que elas encontram-se separadas dele por um
intervalo não tão grande, com isso ele atesta que devido a distância entre a
Terra e o Sol este intervalo é imperceptível. Assim sendo: “... não estão
altamente distantes da superfície dele (Sol), entretanto lhes são contíguas;
separadas, assim, por pouco intervalo que é, em suma, imperceptível...”
(Saragat, 1968, p. 117).
Todavia, tal observação já poderia proporcionar a idéia de que as
manchas observadas eram oriundas do próprio corpo solar e estavam
contiguas a ele graças a curta distância em que se encontravam ou, que
poderiam ser fenômenos que se originavam mais próximos do sol. Mas uma
coisa é certa, as manchas já não poderiam incorporar a idéia de uma
agregação de planetas como afirmou Scheiner, afinal, os planetas pertenciam a
uma ordem elíptica que transitava em uma órbita muito mais afastada do Sol
do que as observações de Galileu demonstravam a respeito da proximidade
das manchas com o corpo solar. Tal proximidade anulava também a idéia de
que as manchas se encontravam abaixo da esfera lunar, causando assim o
As manchas solares de Galileu Galilei 245
à própria Lua, pairando sobre sua superfície, mas sim pela iluminação da sua
superfície repleta de irregularidades. Apesar de Galileu descartar a
possibilidade de uma semelhança entre as manchas solares com as manchas
apresentadas na lua, ele não acreditava que as manchas fossem mais escuras,
afinal, a luz do sol impede a observação da lua, bem como a observação das
estrelas fixas e também dos planetas, entretanto sua luz não impede a
observação das manchas. Este fato levou Galileu a crer que as manchas
solares apresentavam-se de uma forma mais clara, elas só pareciam mais
escuras devido a forte luminosidade emanada pelo sol. Assim sendo, Galileu
passou a crer que as manchas solares não tinham, necessariamente, que
obedecer ao mesmo padrão de matéria que os planetas, ou seja, de uma
matéria com maior grau de densidade ou mais opaca. A comparação das
manchas às nuvens afirma também o principio pelo qual os corpos mais
escuros são vistos com mais dificuldade do que corpos mais claros quando
apresentados sob uma luminosidade mais intensa. Desse modo Galileu atribui
a obscuridade das manchas ao contraste do brilho intenso do sol.
A teoria galileana de que as manchas são mais semelhantes a nuvens
pode ser confirmada ainda na 1a carta, segundo Galileu:
“... não é necessário que a matéria dessa mancha seja muito opaca e densa, a qual
se deva razoavelmente estimar que seja (a mesma) da Lua ou de outro planeta; mas
uma densidade opaca similar aquela de uma nuvem já é suficiente, numa
interposição entre o Sol e nós, para (parecer) escura e ngra.” (Ed. Naz., Vol. V,1968)
Bibliografia
Resumo: A noção de “vida” não tem uma definição clara em biologia. Não
há concordância sobre quais são características mínimas que um objeto
deve ter para ser considerado vivo, nem se é possível definir vida desta
maneira. As teorias sobre a origem da vida refletem as concepções de seus
autores sobre a natureza da vida. Alguns dos principais problemas da
filosofia da biologia estão implicados nesta discussão. Na concepção
predominante atualmente, a vida teria se desenvolvido a partir de algum tipo
de molécula capaz de se reproduzir e posteriormente teria surgido a célula
primitiva. A seleção natural, juntamente com as leis da física e da química,
seria suficiente para explicar a origem da organização biológica. Teorias
alternativas propõem a precedência de agregados de moléculas
organizadas em redes autocatalíticas. S. Kauffman preconiza a necessidade
de novos princípios biológicos, referentes à complexidade e auto-
organização. Nesta comunicação discute-se alguns aspectos de duas
diferentes concepções sobre o que é vida e como se deu sua origem, com o
fim de relaciona-las às questões da teleologia e do reducionismo na biologia
contemporânea.
Palavras-chave: filosofia da biologia; teleologia; reducionismo; definição de
vida.
Introdução
1
Estes e outros assuntos relacionados são tratados em uma coletânea publicada recentemente
(El-Hani e Videira, 2000).
João Carlos M. Magalhães 252
7. Composição.
Um último critério em nossa lista é a composição material. Para muitos a
vida é necessariamente baseada no carbono e só é possível porque este
elemento forma moléculas complexas e combina-se com outros elementos,
como nitrogênio, hidrogênio e oxigênio. A composição química é um critério
importante, entre outras coisas, para a busca de vida em outros planetas.
Talvez seja possível a existência de vida baseada em outros materiais, como
silício, que também pode formar polímeros. Pode-se pensar em uma
concepção mais abstrata de vida, que privilegie a organização
independentemente de uma base material específica. Esta poderia incluir, por
exemplo, os programas de simulação em computadores conhecidos como “vida
artificial”. A questão é saber se entidades deste tipo seriam vivas (em algum
sentido aceitável) ou apenas modelos analógicos de fenômenos referentes aos
seres vivos que são o objeto tradicional da biologia.
Com isto terminamos nossa lista. Diferentes autores selecionam,
classificam e apresentam as propriedades dos seres vivos de modo diverso,
mas o que foi apresentado acima toma por base noções bem estabelecidas
que podem ser encontradas em qualquer manual introdutório à biologia e isto
resume a questão para o que segue.
Na verdade, qualquer definição de “vida” baseada nas características
dos “seres vivos” nos coloca na mesma situação de quem pretenda definir algo
como, por exemplo “mesa” a partir de uma conjunção de propriedades
partilhadas por todas as mesas. Provavelmente não encontraremos uma lista
de propriedades necessárias e suficientes para isto. Podem existir mesas que
não possuem todas as propriedades listadas, ou objetos que são mesas, mas
que não são identificados a partir da lista. Pode-se, entretanto, pensar definir
“mesa” a partir de suas funções, mas isto teria suas próprias dificuldades. A
seleção de propriedades dos seres vivos acima indica o conjunto de objetos
que estamos tratando, embora de forma um tanto vaga. Como qualquer outra
lista de propriedades, não fornece critério consensual e adequado para definir o
que é um ser vivo.
Maturana e Varela propuseram uma outra abordagem para a definição
de vida, introduzindo a noção de organização autopoiética (cf. Maturana e
Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza e origem da vida 255
Varela, 2001). Uma organização deste tipo caracteriza-se por: ser um sistema
autônomo; seus componentes são relacionados por uma rede contínua de
interações; os componentes são produzidos pela própria rede; o sistema é e
separado do meio por alguns de seus componentes (como a membrana
celular). A autopoiese forneceria uma definição de vida: os seres vivos são
sistemas que produzem continuamente a si próprios (confere também
Emmeche e El-Hani, 2000).2 A alegação de que esta concepção supera de
plenamente a confusão de critérios não parece procedente. Apenas prioriza
alguns critérios (autonomia, organização em rede, metabolismo) em detrimento
de outros.
2
Segundo Kauffman, concepções semelhantes e mais antigas podem ser encontradas em
diversos autores, incluindo Kant (cf. Kauffman, 1995, p. 274).
João Carlos M. Magalhães 256
Conclusão
3
Conforme Lewontin, Rose e Kamin (1984), o reducionismo, enquanto doutrina, leva a
confundir nível de organização orgânica com nível de explicação, isto é, a confundir aspectos
ontológicos e epistemológicos.
Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza e origem da vida 259
Bibliografia
KAUFFMAN, S. At home in the universe: the search for the laws of self-
organization and complexity. Oxford: Oxford Univ. Press, 1995.
Referências bibliográficas
Bibliografia
HULSWIT,M.Teleology.In:
http://www.digitalpeirce.fee.unicamp.br/hulswit/p-telhul.htm.
Consultado em 13/11/2003.
Gustavo Piovezan
Graduando em Filosofia/UEM
I – Introdução:
1
Descartes. Meditações de Filosofia Primeira. P. 130.
Sobre a importância do objeto em Descartes 285
“... começo a melhor conhecer a mim mesmo e a descobrir mais claramente o autor
de minha origem, não penso, na verdade, que deva temerariamente admitir todas as
coisas que os sentidos parecem ensinar-nos, mas não penso tampouco que deva
colocar em dúvida todas as coisas em geral”.3
“Que existe um determinado corpo que está mais intimamente ligado a nossa mente
do que qualquer outro é evidente, a partir do fato de nosso claro reconhecimento de
que a dor e outras sensações nos atingem de maneira inteiramente inesperada. A
mente está ciente de que estas sensações não provêm apenas dela mesma e não
podem pertencer a ela, simplesmente em virtude de ela ser uma coisa pensante. Ao
contrário, elas só podem pertencer em virtude de a mente estar ligada a algo
diferente dela mesma, que é extenso e móvel, e ao qual chamamos corpo humano.”5
2
Ibidem: p. 131.
3
Ibidem: p, 134.
4
A respeito deste assunto o que garante a união de fato da alma e do corpo, como das outras
demais verdades é Deus. Lebrun afirma que “É o elemento essencial da prova da distinção:
Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo clara e distintamente. Só este princípio basta
para invalidar todas as conclusões derivadas da união de fato entre a alma e o corpo.” (
LEBRUN, G. In: Descartes.p. 134. nota 164.).
5
Descartes. Principia. II, art. 2. In: Gaukroger, p. 157.
6
Descartes. Meditações. P. 136.
Gustavo Piovezan 286
7
Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem.
8
O diferencial entre os homens e animais é a alma, pois o fator caracterizador da vida, tanto
nos homens, bem como nos animais, é este fogo que produz calor e, no entanto, não possui
luz.
9
Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem. p.
143.
Sobre a importância do objeto em Descartes 287
10
Ibidem., p. 146. Rotschuh afirma que Descartes conhecia a teoria de Harvey sobre a
circulação sanguínea e seguia tal teoria por ela encaixar-se em seu sistema, contudo, segundo
a carta a Mersene, Descartes só teria lido sobre tal teoria após já escrita a obra do Tratado do
homem. O que seria diferenciado na teoria cartesiana com relação à de Harvey é o papel
passivo do coração que move-se em conseqüência do sangue esquentado. Posto que “na
verdade o coração movimenta-se na sístole e impulsiona, de maneira ativa, o sangue”
(Rotschuh., apud. Marques, J., p. 144).
11
Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem., p.
147.
12
Rotschuh., apud. Marques, J., p. 147.
Gustavo Piovezan 288
muito viva e muito pura, que é chamada de espíritos animais"13, estes espíritos
animais por serem muitos sutis e puros não perdem a sua agitação, diferindo,
assim, daquelas partes mais volumosas.
E, enfim, quando houver alma racional nesta máquina [o corpo humano], ela terá a
sua sede principal no cérebro e será nela como que o encarregado da fonte, que
deve estar nas aberturas onde vão ter todos os tubos dessa máquina, quando quiser
exercitar, impedir ou mudar de algum modo seus movimentos.14
Mas isso não é suficiente para podermos diferenciá-las umas das outras [as paixões],
é necessário procurar suas fontes e analisar suas primeiras causas, mas, ainda que
possam algumas vezes ser causadas pelas ações da alma, que se determina a
conceber estes ou aqueles objetos, e também pelo exclusivo temperamento do corpo
ou pelas impressões que se encontram acidentalmente no cérebro (...)17
13
Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem., p.
148.
14
Ibidem., p. 150.
15
Conferir acima a nota nº 8.
16
O corpo por si só, ou seja, sem a presença de uma alma, não pode ser afetado por alguma
paixão, porque, como dissemos, ele é “apenas uma coisa extensa e que não pensa”, logo, o
que determina o afetar de alguma paixão em nós é a racionalidade que a alma possui, mas fica
claro que o corpo está unido à alma e, é desta união que também surgem as paixões: a alma
sofre com as paixões e estas se dão por um processo fisiológico que acontece no corpo (o
movimento dos espíritos animais).
Sobre a importância do objeto em Descartes 289
de pôr adiante, barreiras, obstáculo. (2º) objeto [algo] que se oferece à vista de
alguém, espetáculo18.
Dentre essas duas concepções trazidas pelo dicionário, ambas podem
ser aplicadas ao estudo das Paixões da Alma de Descartes, e procuramos
ressaltar o termo obiectus, pelo fato de que ele parece ter uma grande
importância dentro dessa obra de Descartes, no tocante a como se dão as
paixões em nós. Pois um obstáculo, uma barreira, [1ª definição] que se oferece
aos nossos olhares independentemente se ele seja algo material, como, por
exemplo, a escada de um edifício a qual temos de subir para chegar aos
apartamentos, ou algo imaterial, como Deus19. Tanto um quanto outro objeto,
material como imaterial, são apresentados a nós como espetáculos [2ª
definição], não no sentido contemplativo que o termo pode oferecer, mas, no
sentido de chamar a nossa atenção àquele objeto com o qual estabelecemos
uma relação.
A partir disso, podemos, também, lançar a noção de objeto em
Descartes, que não seria outra coisa senão tudo, ou melhor, todas as coisas
que afetam a alma, produzindo nela esta ou aquela paixão. Estas definições
que admitir do dicionário, fez com que tornasse mais óbvia a noção cartesiana
a respeito do objeto. Ora, uma “barreira, um obstáculo, algo que se oferece à
visão ou, ainda, um espetáculo” são coisas que, cartesianamente falando,
afetam a nossa alma.
Esta relação primeira que estabelecemos com o objeto, simplesmente o
fato de vê-lo, já é uma determinada paixão, a primeira de todas as outras,
chamada de admiração. É a primeira, pelo fato de que quando alguém entra
em contato com algum objeto, esta pessoa não pode, por exemplo, amá-la ou
odiá-la sem antes admirá-la, é como que automático, ao estabelecer uma
17
Descartes, Paixões da Alma. Art. 51.
18
FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino Português/Ernesto Faria, revisão de Ruth
Junqueira de Faria. Brasília: FAE, 1994. P. 367.
19
Deus se oferece ao olhar não no sentido literal da expressão, até mesmo porque ele é um
ser que não possui corpo, e, por isso, não pode ser oferecido aos nossos olhares, mas, sim,
enquanto um objeto o qual se estabelece uma relação, por exemplo, um monge, Deus, na
figura de um monge, é o principal objeto de sua busca e relacionamento; nesse sentido, então,
ele é oferecido aos nossos olhares, como um objeto.
Gustavo Piovezan 290
(...) julgo que podemos em geral defini-las por [1ª] percepções, ou sentimentos, ou
emoções da alma, [2ª] que atribuímos particularmente a ela, e que são provocados,
sustentados e fortalecidos por algum movimento dos espíritos.23
20
No corpo humano temos: os órgãos, os músculos, os membros, etc. Sabemos, hoje em dia,
que a interação dos músculos com os ossos constitui o sistema motor, no entanto são os
músculos a principal causa do movimento de nossos membros. Para Descartes, o que
chamamos de movimentos de contração e relaxamento dos músculos se dão por causa dos
espíritos animais, que circulando em nosso sangue através das artérias e veias chegam ao
cérebro, onde as veias vão cada vez mais se estreitando até o ponto de somente passarem
estes espíritos animais e quando chegam à glândula pineal, onde se situa a sede da alma,
partem para os músculos ou os nervos devido ao comando da glândula, de modo que causam
o inflar (contrair) do músculo, por exemplo, quando contraímos o nosso bíceps os espíritos
animais de uma tamanha rapidez saem do cérebro e do restante do corpo onde estão inflando
o músculo, o mesmo acontece com uma queimadura, quando colocamos a mão sobre o fogo,
os espíritos, da mesma forma com que acontece com os músculos, saem do cérebro e do
restante do corpo fazendo-nos sentir a sensação do queimar. A este último processo, o do
fogo, podemos perceber uma grande semelhança aos processos de transmissão
neurofisiológicas.
21
Descartes, Paixões da Alma. Art. 10.
22
Idem. Art. 17.
23
Idem. Art. 27.
Sobre a importância do objeto em Descartes 291
(...) a questão da natureza ou da origem das paixões não é a principal aos olhos de
Descartes, e que a única e a verdadeira resposta a uma paixão da alma (que é uma
ação do corpo) é uma ação da alma (e logo uma “paixão” do corpo, se assim
podemos dizer, pois para “padecer” é preciso ser consciente). As ações da alma são
suas vontades. Mas uma vontade não poderia se opor ao involuntário, como são os
movimentos corporais.25
24
Idem. Art. 27.
25
Guenancia, P., p. 118.
Gustavo Piovezan 292
O motivo é que pelo fato de não ter nem o bem nem o mal por objeto, mas apenas o
conhecimento da coisa que é admirada, ela não se relaciona ao coração e ao sangue,
dos quais depende todo o corpo, mas somente ao cérebro, onde se localizam os
órgãos dos sentidos que auxiliam nesse conhecimento.26
(2ª e 3ª) O amor assim como o ódio, provêm do modo com que nos
relacionamos com os objetos: se os desejamos a nós, temos o amor que pode
Sobre a importância do objeto em Descartes 293
“Chega à alma pela própria ação da alma, e que se pode considerar uma agradável
emoção excitada em si própria, na qual consiste o gozo que ela frui do bem que seu
entendimento lhe representa como seu. É verdade que quando a alma está unida ao
corpo, essa alegria intelectual não pode deixar de acompanhar a outra, que é uma
paixão; pois, tão logo o nosso entendimento percebe que possuímos algum bem”27
26
Descartes, Paixões da Alma. Art. 71.
27
Ibidem: 91.
Gustavo Piovezan 294
V – Conclusão.
Bibliografia
científicas puedan ser propiamente evaluadas (en tanto que teorías científicas)
(p. 55). Para tal fin, Lacey hace otra distinción de interés al separar reglas de
valores. Lacey asocia la evaluación a través de reglas al proyecto
metodologista de procurar la objetividad a través de la aplicación de un
conjunto finito de pasos formales (cuyo caso ideal se cumpliría en la
matemática), y – salvo el falsacionismo - al objetivo central de una alta
confirmación. Este proyecto enfrenta dos dificultades principales; la primera
referida al escaso acuerdo sobre la naturaleza de las reglas (inductivas,
deductivas, hipotético deductivas, probabilísticamente formalizadas) y la
segunda vinculada al escaso desarrollo de la teoría de la confirmación. Ante
tales dificultades su estrategia apuesta a defender la imparcialidad de la ciencia
en función de la evaluación de los valores cognitivos que éstas manifiestan (p.
57). Estos valores cognitivos serán: adecuación empírica, poder explicativo y
de unificación, posibilidad de encapsular posibilidades, consonancia,
conectividad y holismo respecto de otras teorías, solución de problemas,
simplicidad, entre otros (pp. 58-60).
Es posible estimar el grado de manifestación de tales valores a través de
criterios generales y criterios vinculados con la adecuación empírica. Entre los
últimos (E) encontramos: representatividad, pertenencia a fenómenos
característicos del dominio de explicación, relevancia para confrontar
críticamente teorías alternativas y confiabilidad (por el rigor de los métodos
utilizados en su obtención). Entre los generales encontramos: testabilidad
comparativa, comprensividad comparativa, fuerza local comparativa,
comparabilidad con las teorías mejor establecidas, capacidad de respuesta a
las críticas (pp. 62-66).
De modo más general, su análisis divide el problema de la neutralidad
valorativa en tres subtesis vinculadas a la imparcialidad (juicios basados
exclusivamente en valores cognitivos), neutralidad (consistente con todo juicio
de valor, sin consecuencias valorativas y no tendenciosa) y autonomía (el
objetivo propio de la ciencia es procurar teorías imparciales y neutrales, sin
interferencia exterior) (cap. 4)
Si bien hay al menos cuatro tipos diferentes de consideraciones
relevantes para determinar si el criterio utilizado está asociado a valores
Complejo de valores, cambio social y estrategia cognitiva 299
Gelson Liston
Departamento de Filosofia /UEL
Bibliografia
Robinson Guitarrari
IBMEC-SP e UniFECAP
*
Sou muitíssimo grato ao meu professor Caetano Ernesto Plastino, que orientou a minha tese
de doutorado, por ter discutido comigo, de maneira detalhada, todos os passos do trabalho,
pelas diversas sugestões e por ter concedido parte fundamental do material bibliográfico.
Racionalidade e incomensurabilidade científica 307
2. Em segundo lugar, defendo que não se pode afirmar afirmar que uma
alternativa é tão racional quanto qualquer outra, porque a
incomensurabilidade nega a existência de padrões neutros exigidos em um
tal juízo.
3. Em terceiro lugar, defendo que não é necessário adotar uma visão anti-
relativista para que se possa proceder a uma avaliação racional. Pois, no
caso de Kuhn, as escolhas podem ser consideradas racionais se e
somente se elas estão apoiadas em boas razões reconhecidas pela
comunidade científica, isto é, na capacidade do paradigma em solucionar
problemas, na sua simplicidade, no seu poder explicativo e preditivo, na
sua precisão, na sua fertilidade, na sua consistência interna e externa, por
exemplo.
As restrições de um modelo kuhniano de racionalidade implicam que as
justificações de escolha científica gozam de virtudes epistêmicas e pragmáticas
(em sentido estrito), reconhecidas pela comunidade científica. Contudo, tais
razões não são compulsivas porque os conjuntos de problemas, estratégias de
solução e valores não são igualmente compartilhados pelos defensores de
paradigmas rivais. Tais razões justificam uma preferência, mas não são
capazes de impô-la a todo participante da comunidade científica. É que, por
outro lado, é possível também haver boas razões para fazer outra escolha. Em
particular, os problemas que só o paradigma a que se deu preferência resolve,
ou o modo de se compreender certos valores para tal escolha ou ainda o
conflito entre os pesos que foram atribuídos para os valores compartilhados
pelas comunidades rivais constituem, cada um por si e conjuntamente, razões
para compreender que legitimamente dois cientistas de comunidades rivais
podem adotar diferentes paradigmas com base em boas razões.
Isso significa que as boas razões (pragmáticas em sentido estrito e
também epistêmicas), reconhecidas por parte da comunidade científica, são
condições necessárias e suficientes para julgar se uma certa escolha pode ser
dita racional.
Contudo, o fato de uma mudança ser racional não é suficiente para que
a mudança se dê: as boas razões são estratégias eficazes de persuasão, mas
não implicam a conversão do cientista.
Robinson Guitarrari 308
Bibliografia
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LAUDAN, L. (1984a) Science and values: the aims of science and their role
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Introdução
•
Período de Ciência Normal, que se dá pautado no
Paradigma – conceito este criado por Kuhn.
• Período de Crise na ciência, que acontece por
conseqüência das Anomalias que surgem no Paradigma.
• Revolução Científica, que ocorre com o estabelecimento
de outro Paradigma que melhor explique as Anomalias.
• Restabelecimento do período de Ciência Normal.
Veremos, com mais detalhes a partir de agora, como se deu o
desenvolvimento dos conhecimentos geográficos e a formação da Geografia
como ciência constituída levando em conta a visão de kuhniana de como a
ciência se desenvolve, caminha, analisando como se dá esse processo em
cada uma das categorias delineadas por Kuhn e aplicando esta visão ao
desenvolvimento dos conhecimentos geográficos e à formação da Geografia
como ciência.
“Sob este nome de meio, caro à escola de Tainá, sob o de vizinhança, de emprego
freqüente na Inglaterra, ou mesmo sob o de ecologia, que Haeckel introduziu na
linguagem dos naturalistas, termos que, no fundo, se referem à mesma idéia, a
sempre e mesma preocupação que se impõe ao espírito, à medida que se descobre
mais a íntima solidariedade que une as coisas e os seres. O homem faz parte dessa
cadeia e, em suas relações com o que o cerca, ele é, ao mesmo tempo, ativo e
passivo, sem que seja fácil determinar, na maior parte dos casos, até que ponto ele é
uma coisa ou outra (...) . Do ponto de vista geográfico, o fato da coabitação, isto é, do
uso comum de um certo espaço, é o fundamento de tudo” (LA BLACHE, 1948, p.104,
apud SODRÉ, 1982).
Com o objetivo de cada vez mais incluir a Geografia no rol das ciências
naturais, a própria definição de Geografia muda diversas vezes. Clozier a
define da seguinte forma:
“As suas investigações incidem, ao mesmo tempo, sobre fatos que observa
diretamente e sobre resultados que outras ciências obtiveram aplicando aos fatos a
observação e a experiência. Mas a Geografia não utiliza estes resultados
isoladamente; restabelece-os no seu ambiente natural, coloca-os na ordem concreta
das coisas; precisa, portanto, a inesgotável variedade das combinações de que
resultam as paisagens morfológicas, as paisagens botânicas, os gêneros de vida dos
grupos humanos” (CLOZIER, 1950, p.93).
“As cartas, sobretudo as cartas de grade escala, são, para o geógrafo, ao mesmo
tempo o complemento e a correção da observação. O complemento, porque, por mais
vasto que seja o campo de visão, a paisagem percebida é estritamente limitada. A
carta vem então substituir o exame direto e enriquecer a observação; (...). A correção
também, porque uma carta, mesmo de grande escala, é sempre um esquema, isto é,
uma interpretação simplificada da realidade; ela elimina os traços secundários e
constitui, deste modo, um incentivo para a generalização e, portanto, para a
explicação; (...)” (CLOZIER, 1950, p.101).
“A nova epistemologia vai romper com a noção de uma Razão imóvel, pois as
ciências contemporâneas são o testemunho de que o espírito científico está em
constante evolução. Com o aparecimento das novas teorias como a relatividade de
Einstein, a mecânica quântica, a teoria ondulatória, as geometrias não-euclidianas,
etc, ficou demonstrado que a estrutura da Razão é variável, pois seus princípios se
modificaram. Em La valeur enductive de la reletivité, vai ficar bem claro o aspecto de
novidade das teorias contemporâneas. Bachelard julga necessário afirmar a
variabilidade do espírito científico, mostrando que o desenvolvimento do
conhecimento se faz através de retificações que a cada momento renovam os
princípios da Razão. Conforma diz Bachelard: ‘a doutrina de uma Razão absoluta e
imutável é uma filosofia superada’”. (BULCÃO, 1999, P.14)
Conclusão
Bibliografia
Introdução
1
Esta é uma versão revisada e ampliada de nosso trabalho apresentado no IX EPEF, sendo
parcialmente apoiado pela CAPES e Fundação Araucária.
Irinéa de Lourdes Batista 338
Desse modo, tem-se a impressão de que a ciência está acabada, com nada
mais a se descobrir, quando, na verdade, estamos nos primeiros passos do
conhecimento do mundo exterior.
O que acreditamos é que o ensino das ciências físicas deve dar
significado à evolução humana, para fazer compreender e admirar o grande
esforço coletivo de adaptação e transformação representado pela nossa
ciência. A redução da Física à pura técnica, em certos casos; à técnica
experimental e, em outros, à técnica matemática para a dedução lógica de
conseqüências dos axiomas da teoria, evita questionamentos conceituais no
seu ensino e gera uma formação limitada, estreita e acrítica. Assim, a
investigação e o ensino da Física não devem ignorar simetricamente os
avanços e os contrastes históricos que deram origem às idéias científicas
atuais.
Para ponderarmos a respeito dos vários problemas já levantados no
ensino de Ciências, especificamente da Física, vamos usar como referenciais
teóricos aspectos que consideramos mais relevantes para o nosso trabalho,
quais sejam, as estruturas conceituais, as concepções prévias e a contribuição
do enfoque histórico-filosófico para o ensino da Física. A importância desses
aspectos quanto à tomada de conhecimento de conteúdos e os problemas
decorrentes disso, mais a relação entre esses aspectos, é que vão nortear
nossas análises.
• ANCORAGEM •
O processo contínuo de interação que o indivíduo estabelece com os
novos conceitos exige uma preocupação com a programação do conteúdo,
pensando-se especificamente nas questões de ensino. Assim, serão
importantes as formas para proporcionar a diferenciação progressiva, explorar
explicitamente as relações entre proposições e conceitos, chamar a atenção
para diferenças e similaridades, reconciliar inconsistências reais ou aparentes,
entre os conceitos. Desse modo atinge-se a reconciliação integrativa, que é a
antítese à prática usual dos livros-texto (separação de idéias e tópicos em
capítulos e seções). Um dos recursos instrucionais desenvolvidos a partir
desses princípios e, visando uma aprendizagem significativa, é o mapa
conceitual. Ele é, num sentido amplo, um diagrama indicando relações entre
conceitos; neste caso específico, se torna um diagrama hierarquizado que
procura refletir a organização conceitual de um estudo, uma disciplina, ou aula.
Cabe ainda ressaltar que não existe "o mapa conceitual", pois existem várias
maneiras de traçar um mapa, dependendo sempre do entendimento e
interpretação dados pelo sujeito criador.
Em relação à questão da estrutura, há ainda uma outra dimensão
relevante para a compreensão da Física, ou seja, na forma de um produto
complexo de investigações científicas. Tal como apresentado por ROBILOTTA
(1988), o mapa conceitual pode representar um conjunto de relações lógico-
matemáticas de uma teoria e também representar um conteúdo associado à
totalidade de tal teoria. Nesse último caso, um conceito que é essencial a uma
teoria tem seu significado determinado pelo seu contexto, pela sua posição na
estrutura conceitual dada. Dessa forma, temos um jogo no qual o todo dá
significado às partes que, por sua vez, constituem o todo.
tem identidade e estrutura; cada parte desempenha sua função, se articula com
as demais, como as partes de um corpo ou organismo. Essa característica é
importante para se contrapor à visão fragmentada que muitas vezes está
presente no ensino. Tais reflexões sobre o papel da estrutura no processo de
aprendizagem têm por objetivo buscar um referencial para pensar na maneira
pela qual as discussões sobre os conceitos e teorias poderiam contribuir para o
ensino da Física.
2
A nossa escolha pela construção de modelos se deu a partir de uma longa conversa com
Newton C. A. da Costa a respeito de modelos na Física e as várias imprecisões conceituais
percebidas em textos gerais usados na formação superior inicial, na literatura específica em
vários campos do saber, bem como em nossa busca de um esclarecimento mais aprofundado.
Agradecemos as contribuições nas análises realizadas, sobre nossa elaboração, por Michel
Paty e Pablo R. Mariconda. Há também de se ressalvar a análise de teorias elaboradas por
princípios; nessa perspectiva sugerimos consultar a interessante obra “Princípios: seu papel na
filosofia e nas ciências”, Dutra, L. H. A. e Mortari, C. A. (org.), NEL/UFSC, Florianópolis, 2000.
Irinéa de Lourdes Batista 346
razão, ele é, como era, uma exigência para uma teoria consistente, não-
contraditória, que estimule o desenvolvimento de uma compreensão teórica
sobre o assunto.
Podemos eleger os principais fatores associados a uma interpretação
generalizada do método de construção-de-modelo:
1) a correspondência objetiva entre o modelo e o que está sendo
modelado;
2) um modelo pode figurar como um substituto para o objeto sob estudo
(modelo como quasi-objeto);
3) a natureza da imagem e a natureza do objeto no processo de
construção-de-modelo formam uma unidade, como aspectos de dois estágios
inseparáveis desse processo;
4) a função heurística: uma explicação preliminar do fenômeno que não
tem qualquer outra explicação na antiga teoria.
Para discutirmos o papel dos modelos no processo de formação e
desenvolvimento das teorias, tendo como exemplo a Física das partículas
elementares, podemos dividir os modelos usados no processo cognitivo em
dois tipos:
- modelos ilustrativo-metodológicos (mais clássicos);
- modelos heurísticos (preliminares, incompletos, pontos de partida para
uma explicação).
Dependendo do grau de expressão da natureza da entidade a ser
modelada, julgamos pertinente dividir os modelos heurísticos em
fenomenológicos (descrevem certos aspectos que caracterizam o modo como
um processo físico se desenvolve, mas não explicam por que ele ocorre
precisamente daquela maneira) e tipo-essência (fornece certas interpretações
preliminares das essências e causas do processo físico).
Os modelos fenomenológicos incluiriam modelos classificatórios que
percebem regularidades específicas nas relações das entidades físicas, mas
não são capazes de explicar suas essências. Eles têm seu papel, têm largo
uso (por exemplo, a teoria de Dirac do elétron faz uso de um modelo
representando o elétron na forma de um ponto enquanto que em teorias não-
locais o elétron é visto como uma nuvem difusa), mas têm valor limitado na
O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 349
elaboração da teoria das partículas elementares, pois não são tão heurísticos
como os modelos de sistematização.
Para caracterizar os elementos que servem como objeto de construção-
de-modelo, os modelos tipo-essência são convenientemente divididos em
lógico-matemáticos e em ontológicos. Os modelos lógico-matemáticos são
sistemas de elementos lógico-matemáticos, cuja estrutura é análoga à
estrutura das entidades físicas; se eles possuem tal estrutura em um grau
inferior, chamamo-los de modelos lógico-matemáticos fenomenológicos e, se
eles a possuem em um grau superior, chamamo-los de modelos lógico-
matemáticos tipo-essência.
Os modelos ontológicos servem como suposições iniciais concernentes
às peculiaridades essenciais de certos domínios da realidade física. O
reconhecimento dessas peculiaridades de existência real permite obter
resultados teóricos importantes.
A matematização da Física exerce um papel inquestionável para o
alcance e a estabilidade de suas teorias, contribuindo para a sua
cognoscibilidade, intersubjetividade e universalização. Sendo assim, em qual
sentido e em quais condições os elementos do aparato matemático podem ser
considerados um modelo na investigação física?
– O aparato matemático deve expressar uma condição de conteúdo
básico: analogia com os respectivos aspectos do processo físico. Tal analogia
é de natureza específica, que não se reduz a uma correspondência elemento-
a-elemento entre o modelo e o objeto sendo modelado.
– Ocorre a presença de um isomorfismo de um tipo especial: a alguns
aspectos do processo físico corresponde uma expressão matemática tomada
com uma certa integralidade que não pode ser decomposta em quaisquer
elementos.
Por exemplo, a estrutura da equação de Dirac, para a eletrodinâmica
quântica (QED) como um conjunto, é uma analogia de certos aspectos
significantes no comportamento do elétron e, por esta razão, quando
investigando a equação, obtemos informação sobre o elétron de forma
mediada.
Irinéa de Lourdes Batista 350
3
O termo prototeoria, um neologismo, foi por nós cunhado (em 1996) em semelhança ao
significado de proto-história (protohistoire): período cronológico intermediário entre a pré-
história e a história.
O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 353
4
Baseamos nossa definição, com algumas modificações, em DA COSTA (1997, p.107)
Irinéa de Lourdes Batista 354
QUADRO DE SISTEMATIZAÇÃO
TEORIA
PROTOTEORIA
MODELOS MODELOS
LÓGICO-MATEMÁTICOS LÓGICO-MATEMÁTICOS
FENOMENOLÓGICOS TIPO-ESSÊNCIA
Exemplar de Análise
TEORIA
ELETROFRACA
PROTOTEORIA DE FERMI
Interação local entre correntes;
constante g; partícula neutrino e suas propriedades;
corroboração experimental; interação V–A; etc.
5
Para detalhes dos desdobramentos históricos e conceituais dessa proposta de Fermi, ver
BATISTA (1999 e 2001).
Irinéa de Lourdes Batista 356
Ou seja, para que o estudante aprenda um determinado modelo, não basta que seja
apresentado a ele, senão que deveriam de ser-lhe apresentadas uma série de
situações que lhes permitissem perceber os conceitos, relações e propriedades dos
modelos físicos...(GRECA, I. L. & MOREIRA, M. A., 2002, p.22)
Bibliografia
Simone Luccas
Mestre em Ensino de Ciências e Educação Matemática/UEL
1. Introdução
[...] cidadãos matematicamente educados com base numa metodologia histórica que
promova o pensamento independente e crítico e a autonomia intelectual é que
estarão melhores preparados para propor, analisar, discutir e votar por medidas
emancipadoras referentes ao papel a ser desempenhado no contexto das sociedades
atuais pelas ciências em geral e pela matemática em particular (MIGUEL, 1993,
p.114).
Infelizmente não podemos afirmar que, juntamente com esse crescente interesse pela
História da Matemática, tenha havido uma sensível melhora na forma de
apresentação do conteúdo matemático nos livros didáticos ou que os alunos tenham
passado a mostrar uma melhor compreensão da matemática (VIANNA, 1995, p. 64).
Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 365
1
A atividade científica compreendida como resolução de problemas é recorrente na filosofia da
ciência. Conforme temos em Popper: “... a ciência deve ser vista como o desenvolvimento de
um problema para outro – problemas cada vez mais profundos”. E ainda “o problema suscita o
desafio de aprender, avançar o nosso conhecimento, experimentar e observar” (POPPER,
1982, p.247). A diferença em Laudan é que ele amplia essa compreensão para aspectos
filosóficos que incluem a ontologia e a metafísica desses problemas.
Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 366
1977, p. 174). Desse modo, o aumento da especialização das áreas tende não
só a dificultar o desenvolvimento de um conhecimento com tal caráter, como
também o distancia cada vez mais de qualquer tipo de contexto. Tal concepção
inevitavelmente apresenta reflexos na produção de conhecimentos e,
conseqüentemente, no campo educacional.
Outra defesa de Laudan consiste na idéia de que uma concepção teórica
pertence a um contexto histórico e, também, está sujeita às tradições de
pesquisa (LAUDAN, 1977, p. 180-184). Para Laudan uma tradição de pesquisa,
caracteriza-se como “um conjunto de suposições gerais sobre entidades e
processos em um domínio de estudo e sobre os métodos apropriados a serem
utilizados para a investigação dos problemas e a construção de teorias nesse
domínio” (LAUDAN, 1977, p. 81).
A adoção por uma tradição de pesquisa, segundo ele, é feita segundo a
capacidade que esta possui de resolver a maior quantidade possível de
problemas que surgem. Laudan admite também que o poder de argumentação
pode mudar de uma época para outra, dependendo da tradição de pesquisa
atuante, pois os “sistemas de pensamento não são meramente relações lógicas
entre proposições [...], mas também tentativas de resolver o que são
percebidos como problemas importantes”, e que “um sistema de idéias só pode
ser compreendido, quando se conhece, em detalhes, os problemas aos quais
ele foi dirigido” (LAUDAN, 1977, p. 175-176).
Queremos ressaltar, desse modo, a relevância e a pertinência da
existência de uma discussão e proposta pedagógica fundamentada em um
contexto histórico e em uma discussão filosófica, que evidencie o
desenvolvimento e o conhecimento baseado na resolução de problemas de
uma determinada ciência, como observaremos na análise histórico-filosófica
que iremos realizar no próximo item, pois a reconstrução histórica com essa
abordagem filosófica – identificação dos problemas e tradições de pesquisa –
permite o acesso à criação e à evolução do conhecimento em seu contexto
original, bem como à trajetória deste no decorrer do tempo até os dias atuais.
Consideramos que a abordagem histórico-filosófica contribui para a
compreensão dos problemas contemporâneos, uma vez que a análise
epistêmica, lógica, ontológica e metodológica da estrutura e das articulações
Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 367
sendo l = ( s1 - a ) , temos:
1 2
( ) ( ) a
2
v= u + u s - a + s - a (2)
3
1 1
Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 371
ou
-3v + ( s12 + s1u + u 2 ) a - ( 2s1 + u ) a 2 + a 3 = 0 (3)
sabendo que
s 2 = l2 + a 2 (4)
tem-se que
s 2 = ( s1 - a ) + a 2
2
(5)
ou
( s1 - s 2 ) - 2s1a + 2a 2 = 0 (MIKAMI, 1913, p.192) (6)
2
A notação atual do volume de uma pirâmide truncada de base quadrangular é
1
v = h(B + Bb + b) , sendo que B representa a área da base maior, b a área da base menor e
3
h a altura.
Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 372
B + Ax = 0
(7)
D + Cx = 0
têm-se:
D B sei
C A
C + Bx + Ax2 = 0
F + Ex + Dx2 = 0 (8)
2
I + Hx + Gx = 0
s s s
I F C
H E B
G D A
k k k
x–3=0 e 2x – 6 = 0 (9)
A4 + A3 x + A2 x2 + A1 x3 = 0
B4 + B3 x + B2 x2 + B1 x3 = 0
(10)
2 3
C4 + C3 x + C2 x + C1 x = 0
D4 + D3 x + D2 x2 + D1 x3 = 0
k s k s
D4 C4 B4 A4
D3 C3 B3 A3
D2 C2 B2 A2
D1 C1 B1 A1
k s k s
r o r o
o o o 4 3 2 1
3 2 1 2 4 3 1
Três equações 3 2 4 1
Quatro equações
4 3 5 2 1 3 5 4 2 1 5 4 3 2 1
3 4 2 5 1 5 3 2 4 1 4 5 2 3 1
5 2 4 3 1 4 2 3 5 1 3 2 5 4 1
2 5 3 4 1 2 4 5 3 1 2 3 4 5 1
Cinco equações
(11)
2341 2431 3241
D4 C4 B4 A4 B4 D4 C4 A4 C4 B4 D4 A4
D3 C3 B3 A3 B3 D3 C3 A3 C3 B3 D3 A3
D2 C2 B2 A2 B2 D2 C2 A2 C2 B2 D2 A2
D1 C1 B1 A1 B1 D1 C1 A1 C1 B1 D1 A1
4 3 2 1
2 4 3 1
3 2 4 1
3
Os Quadrados Mágicos vêm sendo estudados no Oriente desde 2.200 a.C. Tais quadrados
compreendem uma disposição de números em colunas e linhas, sendo o número de colunas
igual ao número de linhas, de modo que a soma de cada linha, ou de cada coluna, ou mesmo
Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 378
das diagonais, resulta num mesmo valor, observando que no quadrado não há repetição de
Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 379
10 + 11x + 12y = 0
20 + 21x + 22y = 0 (12)
30 + 31x + 32y = 0
Com o objetivo de encontrar uma lei geral que lhe permitisse eliminar os
desconhecidos, ele explica que estes números são na verdade “falsos
números” de dois dígitos, no qual o primeiro deles informa a equação, e o
segundo informa a letra da qual faz parte. Veja que Leibniz expõe a
versatilidade do uso desta sua notação.
O matemático comenta também que realizando os cálculos necessários
para a eliminação dos desconhecidos, é possível perceber certa harmonia nos
numerais.
Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 380
4
Tomamos aqui a liberdade de utilizar o termo ‘resultante’ e não o termo ‘equação’ como usou
Leibniz (SMITH, 1929, p.268), pois entendemos que em (13) há duas resultantes de operações
efetuada com equações do 1º grau.
Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 381
Esta notação foi utilizada por Thomas Muir em suas notas. Já Smith,
apresenta uma notação diferente em seu Source Book in Mathematics (1929,
p.269):
10.21.32 10.22.31
11.22.30 = 11.20.32 (18)
12.20.31 12.21.30
Com tal resultado, Leibniz comenta que após um longo processo chega-
se ao resultado esperado, livre dos desconhecidos e que “leva sua própria
prova junto consigo, da harmonia observável” (LEIBNIZ apud SMITH, 1929,
p.269). Comenta também que seria um tanto quanto difícil atingir este resultado
utilizando letras como a, b e c, principalmente se houvesse um grande número
de letras e de equações.
Neste parágrafo acima, é possível notar que pela segunda vez em sua
carta, Leibniz faz referência ao termo “harmonia”. Este é um termo
característico de sua obra, pois sua visão de mundo é fundamentada em uma
concepção filosófica que admitia a possibilidade de existência de diversos
mundos. Porém Deus, ao conceber o nosso, teria escolhido de todos os
mundos possíveis o mais harmonioso, que acolhesse as combinações
perfeitas.Tal concepção pode ser constatada na dissertação Sobre a Arte
Combinatória, publicada em 1666, na qual vinculava a Filosofia à Matemática.
Ainda nesta primeira correspondência, Leibniz chega a enunciar um
teorema geral (grifo do autor), para qualquer número de desconhecidos e de
equações simples, sugerindo que esta busca por coeficientes livres de
incógnitas pode ocorrer em outras situações:
sinais diferentes se eles tiverem muitos fatores semelhantes como é indicado pelo
número que é subtraído antes que o número de quantidades desconhecidas: o resto
tem o mesmo sinal (LEIBNIZ apud SMITH, 1929, p.269).
Regra:- Faça todas as possíveis combinações dos coeficientes das letras, de tal
modo que mais de um coeficiente do mesmo desconhecido e da mesma equação
nunca apareça junto (isto é, na mesma combinação). Estas combinações são
colocadas juntas, sendo que seus sinais serão estabelecidos conforme a norma que
logo será dada, e o conjunto de resultado igual a zero dará toda uma equação livre de
desconhecidos (LEIBNIZ apud SMITH, 1929, p.269) .
Lei dos sinais:- Para uma das combinações um sinal será arbitrariamente designado,
e as outras combinações que diferem desta primeira com respeito a dois, quatro, seis,
etc, fatores levarão o sinal oposto: esses que diferem daqueles com respeito a três,
cinco, sete, etc, fatores claro que levarão seu próprio sinal (LEIBNIZ apud SMITH,
1929, p.270). Por exemplo, permita
este resultará
Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 383
seu estudo pode não somente saciar a curiosidade dos educandos como
também ajudá-los a aprender sobre o que existe, como existe, porque existe.
Este aspecto filosófico, tão ausente das salas de aula atualmente, pode
fundamentar o trabalho desenvolvido pelos educadores. Tal enfoque filosófico
apresenta-se como essencial na estrutura de qualquer atividade produzida,
pois leva a reflexões tais como: Como agir em determinada situação? Como
analisar os dados disponíveis? Alguém já se deparou com uma situação
parecida como esta? Em caso afirmativo, como resolveram a questão? Há uma
solução mais prática atualmente para solucioná-la?
É interessante notar que o fio condutor de tais reflexões começa a ser
tecido pelo educador, então, é de fundamental importância que ele realize
questionamentos como esses. Tal caracterização pode causar inicialmente
uma certa insegurança; porém, é no surgimento de questões como estas e de
reflexões oriundas deste tipo de trabalho que reside a dinâmica do trabalho
educacional.
Na investigação histórica desenvolvida no item anterior é possível notar
que Seki Kowa, envolvido com um problema geométrico e com o intuito de
solucioná-lo, se deparou com uma série de sistemas de equações e,
conseqüentemente, com um novo problema: Como simplificar tais sistemas?
Com tal dificuldade o pesquisador, que havia desenvolvido na mesma época
estudos sobre Quadrados Mágicos, os quais envolvem também a combinação
de elementos, cria uma operação que permite eliminar os valores
desconhecidos de sistemas compostos por várias equações.
Ao submeter a investigação histórica a um olhar teórico-metodológico é
possível perceber que um assunto toma várias formas até sua sistematização.
Em alguns momentos o determinante, entendido como uma operação, foi
reconhecido como uma regra (assim como Cramer descreveu em sua
Introduction à l’analyses dês lignes courbes algebriques), como uma resultante
(assim como Vandermond se referiu em sua Mémoire sur l’elimination) e
também como um método (como afirma Lima em sua obra Álgebra Linear ou
Boldrini et al em sua obra cujo título também é Álgebra Linear) utilizado não só
para resolver sistemas de equações como também para calcular áreas,
volumes, entre outros.
Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 388
Análise
Combinatória
Problema
gerador
Solução do
Problema
Sistema de Quadrados
Equações Mágicos
Problema
gerador
Sistemas de Análise
Equações Lineares Combinatória
Solução do
Problema
5. Comentários Finais
6. Bibliografia
5
Um exemplar de proposta feita com os cuidados que consideramos adequados para a
Educação Matemática no Ensino Médio, para essa aplicação, pode ser consultado em Luccas,
2004.
Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 394
Introdução:
1
Pelo contrário, clareza e precisão são qualidades que Peirce tinha em alta conta. Na verdade,
críticas realmente endereçadas ao cartesianismo, particularmente no que se convenciona
chamar de filosofia da mente, encontram-se em outros dois ensaios: “Questions concerning
certain faculties claimed for man” e também “Some consequences of four incapacities,” ambos
de 1868.
O pragmatismo e a filosofia da ciência 401
2
A título de ilustração diga-se que James era afilhado de Ralph Waldo Emerson. Para se
imaginar um pouco da atmosfera intelectual em que William James cresceu, basta ler algum
romance de seu irmão mais novo, o famoso ficcionista Henry James.
3
Maiores detalhes encontram-se na minha tese “Consciência não-linear: de William James aos
Sistemas Dinâmicos,” trabalho financiado pela FAPESP por meio de bolsa de doutoramento
direto.
O pragmatismo e a filosofia da ciência 403
[As ciências naturais] fornecem expressões que, dados lugares e tempos, podem ser
traduzidas em valores reais, ou interpretadas como porções definidas do caos que
nos chegam aos sentidos. Assim se tornam um guia prático de nossas expectativas,
bem como proporcionam deleite teórico. Mas não vejo como alguém atento aos fatos
pode chamar a tais sistemas de produtos imediatos da ‘experiência’ no sentido
ordinário. Toda concepção científica é antes de tudo uma ‘variação espontânea’ no
cérebro de alguém. Para cada uma que se prova útil e aplicável, existem milhares de
outras que perecem em virtude de seu pouco valor. A gênese das concepções
científicas é aparentada com os flashes poéticos e os insights de perspicácia, os
quais um cérebro instável igualmente promove. Mas enquanto a poesia e a
perspicácia (...) bastam por si mesmas, não tendo que se curvar a testes, as
concepções ‘científicas’ devem mostrar seu valor sendo ‘verificadas’ (James,
1890/1983, p. 1232-1233).
Ora, James não faz parte dos pensadores que propunham uma
psicologia racional baseada em princípios metafísicos, nem tampouco
procurava erigir uma psicologia baseada exclusivamente no empirismo de
vertente indutivista (Kinouchi, 2001). Para o pragmatista, o conhecimento
científico é sempre uma expectativa para a ação, que, se frustrada, deve ser
forçosamente abandonada. James adere a um tipo de filosofia da ciência onde
o conhecimento é visto como inerentemente falível, “uma variação ‘espontânea’
do cérebro de alguém” (p. 1233), que precisa mostrar seu valor através de seus
efeitos práticos sensíveis4; por exemplo, pela efetivação de suas previsões.
Assim, nota-se que o pragmatismo jamesiano também possui uma faceta
científica. Mas esse ‘pragmatismo científico’ de James se encontra
principalmente nos trabalhos psicológicos do autor — por exemplo, no The
Principles of Psychology.
4
Como exemplo do que se poderia chamar de ‘índole’ pragmatista, James (1907/1975 a)
comenta que quando o físico J. C. Maxwell era criança, ele tinha a mania de que lhe
explicassem as coisas, e fazia isso impacientemente perguntando “I want you to tell me the
particular go of it!” — o que é uma perquirição tipicamente pragmatista, sem dúvida.
Renato Rodrigues Kinouchi 404
Objetivos:
5
Uma rara contribuição para a divulgação da obra de James é o volume que lhe foi dedicado
na Coleção Os Pensadores, organizado pelo supervisor deste projeto, Dr. Pablo R. Mariconda.
Renato Rodrigues Kinouchi 406
6
Adicionalmente também podemos indicar as contribuições de Mead (1938), no ensaio
Science and the Objectivity of Perspectives.
O pragmatismo e a filosofia da ciência 407
Bibliografia:
Sanders Peirce and William James. London: Macmillan Press Ltd, 1968.
7
Por exemplo, no que tange ao debate “determinismo versus indeterminismo,” consultar o
ensaio “De Nuvens e Relógios”, que faz parte da coletânea Conhecimento Objetivo (1975),
São Paulo:EDUSP.
8
Aliás, o candidato já vem discutindo tais assuntos, via listas de discussão na Internet, com
pesquisadores estrangeiros tais como Dr. Howard Callaway da Universidade de Mainz -
Alemanha.
Renato Rodrigues Kinouchi 408
uma ponte; ele não está preocupado em descobrir se tal lei funcionará
eternamente – caso ele estivesse, ele teria que analisar “um número imenso,
talvez infinito, de instâncias dispersas pelo tempo e pelo espaço”2 –, ele quer
simplesmente saber se a lei garante que a ponte projetada funcione bem e de
maneira segura – ou ainda, ele deseja que todas as pontes que ele projete com
base na tal lei funcionem adequadamente. Dessa forma, o grau de confirmação
da lei para o caso chega perto de um, e justifica-se a aceitação da lei com base
na alta probabilidade de que ela funcione.
Assim, então, a hipótese analisada “não é a lei em si mesma, mas
somente uma previsão relativa a uma instância ou a um número relativamente
pequeno de instâncias”.3 Temos que a confirmabilidade de uma lei (l), dadas as
evidências (e), é igual à probabilidade da hipótese (h), ou seja, da próxima
instância observada, dadas as mesmas evidências:
c(l,e) = c(h,e)
Um outro exemplo dado por Carnap é o de um cientista que visa
confirmar uma lei na forma:
∀x(Px → Qx)
O cientista analisará a hipótese de o próximo indivíduo x a ser
observado ter o predicado Q, caso ele tenha a propriedade P; na possibilidade
de tal evento ocorrer, o grau de confirmabilidade da lei acima será aumentado,
caso contrário, será reduzido. Quanto mais exemplos que confirmem a lei
forem encontrados, maior a confiança que se tem nela.
Karl Popper, no artigo The Demarcation Between Science and
Methaphysics, de 1963, apresentou importantes críticas à visão defendida por
Carnap. Popper defende que o que caracteriza a ciência empírica,
diferenciando-a dos outros ramos do conhecimento, não é o método indutivo,
mas sim a “sua capacidade de se submeter a testes experimentais”.4 Deste
1
Uma outra forma de utilização do confirmacionismo apontada por Carnap em 1936/37 utiliza o
grau de confirmação de maneira topológica, ou seja, comparando a probabilidade de uma
hipótese com a de outra; tal técnica funciona para a decisão entre duas teorias concorrentes.
2
CARNAP, R. (1967), p. 572. An immense number, perhaps an infinite number, of instances
dispersed through all time and space.
3
CARNAP, R. (1967), p. 572. Is not the law itself but only a prediction concerning one instance
or a relatively small number of instances.
4
MALHERBE, J. F. (1979), p. 92. Leur capacité à se soumettre à des tests expérimentaux.
Rudolf Carnap: teorias científicas e predições 413
5
POPPER, K. (2002), p. 370. There exists an omnipresent, omnipotent and omniscient
personal spirit.
6
POPPER, K. (2002), p. 372. Cannot be submitted to any scientific test: there is no hope
whatever of falsifying it – of finding out, if it is false, that it is false.
Ivan Ferreira da Cunha 414
7
POPPER, K. (2002), p. 381. If we permit ourselves the freedom thus to introduce a new
measure (…) then we can obtain for any sentence any probability (or degree of confirmation) we
like.
8
POPPER, K. R. apud MALHERBE, J. F. (1979), p. 84. En fait, led hommes de science
préferènt conjectures audacieuses et peu probables, mais hautement informatives (et donc
hautement falsifiables) à des trivialités hautement probables mais insignifiantes.
Rudolf Carnap: teorias científicas e predições 415
elas serão submetidas, e deve escolher dentre suas teorias aquelas que
poderão ser submetidas aos mais severos testes.
Carnap aproxima a explicação científica – de propor explicações e
respostas aos problemas que o mundo nos apresenta – da explicação
corriqueira, a qual é feita com base em experiências anteriores; Carnap afirma
que não precisamos que as leis tenham alta probabilidade de estarem corretas;
precisamos apenas que a lei tenha uma probabilidade alta o suficiente para
garantir confiança na predição realizada.
Popper critica Carnap neste ponto, dizendo que ele está de volta ao seu
erro verificacionista de eliminar as leis da atividade científica (Cf. Popper, 2002,
p. 382). Contudo, o que Carnap propõe não é que as leis devem ser
eliminadas, ele afirma que “o uso das leis não é indispensável para fazer
predições”,9 afinal criamos expectativas sobre determinados eventos em
nossas vidas cotidianas o tempo todo, sem que precisemos de leis científicas.
Porém, o uso de tais leis “é expediente para estabelecer leis universais em
livros de física, biologia, psicologia, etc”.10
Podemos dizer que Carnap descreve a atividade científica como um
procedimento de previsão de eventos; e justificar as leis e hipóteses científicas
é dizer o porquê de ter confiança em determinadas previsões em detrimento de
outras – e tal justificação se dá por meio da probabilidade lógica, afastando a
suposta irracionalidade do procedimento indutivo e rompendo com a
identificação da racionalidade com a validade da lógica dedutiva.
Alex Michalos, em The Popper-Carnap Controversy, analisa uma
objeção ao Confirmacionismo que ficou conhecida como Paradoxo da
Confirmação. Tal objeção afirma que duas leis logicamente equivalentes
possuem graus de confirmação de instâncias qualificadas – ou graus de
confiabilidade – diferentes, o que supõe que o grau de confirmação de uma lei,
ou hipótese, varia conforme a maneira como a lei é expressa verbalmente. (Cf.
Michalos, 1971, pp.53-4).
9
CARNAP, R. (1967), p. 575. The use of laws is not indispensable for making predictions.
10
CARNAP, R. (1967), p. 575. it is expedient, of course, to state universal laws in books on
physics, biology, psychology, etc.
Ivan Ferreira da Cunha 416
Bibliografia
11
MICHALOS, A. (1971), p. 55. If h and h’ are L-equivalent, then C(h,e)=C(h’,e).
Ivan Ferreira da Cunha 418
1
Nesse sentido, Guenancia afirma que “Deve-se primeiramente observar que, das Regulae ao
Discurso, o número de regras restringiu-se consideravelmente. O método, no Discurso,
consiste apenas em alguns preceitos, ao passo que nas Regulae Descartes expõe
detalhadamente o conteúdo de um método que é também uma tentativa de resolução de
Joyce Mayumi Shimura 420
Os estudos devem ter por meta dar ao espírito uma direção que lhe permita formular
juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo que se lhe apresenta4. [...] Os objetos com os
quais devemos nos ocupar são aqueles que nossos espíritos parecem ser suficientes
para conhecer de uma maneira certa e indubitável5.
7
Segundo Kujawski: “A dedução tem sentido muito amplo para Descartes, significando
qualquer conclusão, tanto da causa para o efeito, como vice-versa, [...]. Processa-se numa
série de razões encadeadas entre si pela memória. É sucessiva, ao passo que a intuição, a
visão intelectual é simultânea, tota simul.” Kujawski, G. de M. Descartes Existencial, p. 62.
8
Esta regra é datada do meio de novembro de 1619, assim como as Regras que tratam da
intuição e da dedução. Garber, D. Descartes’ Metaphysical Physics, p. 32.
9
Na Regra XII, escrita, provavelmente, segundo Garber, em 1626 e 1628, Descartes altera as
noções que concernem às naturezas simples, reconhecendo três tipos de naturezas simples:
puramente mental (pensamento, dúvida e vontade); puramente material (forma, extensão,
movimento, etc.) e aquelas que pertencem a ambas (existência, unidade, duração). Garber, D.
Descartes’ Metaphysical Physics, p. 33. Nesse sentido, Landim afirma que “As noções
primitivas mais gerais são as noções de ser, de número e de duração, que convêm a todas as
coisas que podem ser percebidas. O pensamento (percebido somente pelo intelecto puro), a
Extensão (percebida pelo intelecto puro, mas, melhor ainda, pelo intelecto puro ajudado pela
imaginação) e a união da alma e do corpo (percebida claramente pelos sentidos) são noções
primitivas específicas”. Landim Filho, R. F. Evidência e Verdade no Sistema Cartesiano, p. 39.
E, ainda, Kujawski afirma que: “A intuição tem por objeto as naturezas simples e sua relações
imediatas. Que são naturezas simples? Descartes não as define. Exemplifica-as nas “noções
primitivas”, como as de extensão, de pensamento, de união entre alma e corpo; ou as de ser,
de número, de duração, etc. (carta a Elizabeth, 21 de maio de 1643). Outros exemplos: a
figura, o movimento, o conhecimento, a dúvida, a volição, a existência, a unidade (v. Laporte, le
ratinalisme de Descartes, página 104)”. Kujawski, G. de M. Descartes Existencial, p.63.
10
Segundo Landim “As Regulae, além de considerar como naturezas simples as noções que
posteriormente foram denominadas de noções comuns, não formularam, de maneira precisa, o
nexo de pressuposição que vincula as idéias que representam os modos com as idéias que
representam os atributos principais, nem caracterizam as noções que, para ser claramente
Joyce Mayumi Shimura 422
Cabe observar, porém, que o método não é constituído para ajudar nas
atuações da intuição, mas para servir de instrumento que nos guia a desvendar
o conhecimento verdadeiro. Este conhecimento é baseado na intuição e na
dedução que o espírito é capaz de ter sem o método. O método consiste na
organização dos objetos, por meio do qual o intelecto busca ordená-los, de
modo a reduzir as proposições mais complexas às proposições mais simples,
gradualmente. Este processo é chamado, por Descartes, de análise; enquanto
que o processo contrário, o qual, se inicia pela proposição mais simples em
direção à mais complexa, dá-se o nome de síntese11.
compreendidas, não dependem de qualquer outra noção e que, por isso, podem representar a
essência das substâncias.” O mesmo aponta que “As noções primitivas são as categorias
básicas ou elementares do sistema cartesiano [...]. Nas Meditações, as noções primitivas são
denominadas de idéias primeiras e principais[...].” Landim Filho, R. F. Evidência e Verdade no
Sistema Cartesiano, p. 39.
11
Sobre isso, Garber afirma que embora a regra do método apresente estes dois passos,
análise e síntese, esses não fazem sentido. “Contudo, a regra faz pouco sentido, nem,
tampouco, está ligada, claramente, com a consideração do conhecimento e certeza nos termos
da intuição e da dedução, a menos que nós saibamos o que ele entende aqui por redução ao
O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito 423
[...]por volta de 1628 ele [Descartes] tenha passado a ver toda a filosofia natural como
fundamento de conhecimentos gerais das propriedades corpóreas de extensão,
forma, movimento e, todos os ramos mais especializados, dióptrica, meteoros, até
mesmo, talvez, a biologia das plantas e dos animais e porções largas de medicina
como estando no cume dessas fundações, no sentido preciso que a fim de conhecer
as ciências mais elevadas, no mais estrito sentido deve-se passar através das
disciplinas mais fundamentais” (GARBER, p.39)
14
É possível notar isso nos comentários das Regras I, II, III, IV, sobre essa matéria Guenancia
expõe que “[...] a crítica que Descartes faz da lógica e da silogistica corre sério risco de voltar-
se contra um método que se limita a propor outras regras tão gerais quanto aquelas que
pretendem substituir, e que assim como estas, não proporcionam o conhecimento de um objeto
preciso, isto é, particular. Essa crítica da lógica formal é entretanto um dos traços mais
marcantes do cartesianismo; ela revela logo de início a exigência de uma nova maneira de
filosofar, que é menos procura de originalidade do que de radicalidade”. Guenancia, P.
Descartes, p. 12.
15
“Esse método, na verdade, se parece com os das artes mecânicas que não necessitam da
ajuda dos outros, mas fornecem por si sós o meio de fabricar seus instrumentos próprios. De
fato, se alguém quisesse exercer uma dessas artes, por exemplo a de ferreiro, e se estivesse
desprovido de qualquer instrumento, seria no início certamente forçado a utilizar uma pedra
O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito 425
Por outro lado, aqui não pode haver nada de mais útil do que procurar o que é o
conhecimento humano e até onde ele se estende. É por isso que, agora, vamos tratar
desse assunto numa única questão e pensamos que é preciso examiná-lo primeiro
que todas, em virtude das regras já estabelecidas anteriormente. É isso que deve
fazer uma vez na vida qualquer um que ame um pouco que seja a verdade, uma vez
que a investigação aprofundada desse ponto encerra os verdadeiros instrumentos do
16
saber e do método.
dura ou algum bloco informe de ferro como bigorna, a pegar uma pedra para martelo, a dispor
pedaços de madeira em forma de tenazes e a juntar se preciso fosse outros objetos desse
gênero. Depois desses preparativos, não se esforçaria de imediato em forjar para o uso dos
outros espadas ou capacetes ou qualquer outro objeto de ferro; mas, antes de tudo, fabricaria
martelos, uma bigorna, tenazes e o restante do que lhe seria útil a si próprio. Este exemplo nos
ensina que no começo, depois de podermos ter encontrado unicamente certos preceitos
grosseiros que mais parecem inatos a nossas inteligências do que fornecidos pela arte, não
devemos imediatamente tentar com seu auxílio resolver rapidamente os debates dos Filósofos
ou tirar de apuros os matemáticos; mas temos de utilizá-los primeiro para investigar com maior
cuidado tudo o que é mais necessário para o exame da verdade, sobretudo mesmo quando
não há razão que o faça parecer mis difícil de encontrar do que alguma das questões
propostas comumente em Geometria ou em Física e nas outras disciplinas”. Ibid., p. 52-53.
16
Ibid., p. 54. Sobre isso Garber afirma que: “uma parte central da construção de instrumentos
para capturar a verdade é a investigação de uma questão epistemológica particular. Nestas
passagens Descartes argumenta que a investigação do conhecimento, seu escopo e sua
natureza, constitui uma necessidade preliminar à qualquer aplicação do método a questões
científicas ( e filosóficas) específica, um prelúdio à investigação científica genuína. Mas, alguém
pode questionar, por que a ciência precisa de um tal prelúdio epistemológico? O que é que faz
o método, como as pedras e as madeiras do futuro ferreiro, provisório e impróprio para
investigar questões científicas, e como é que se supõe que uma investigação do escopo e da
natureza do conhecimento possa nos ajudar? [...]o método que Descartes esboça nas Regras
depende essencialmente de uma certa concepção de conhecimento, de uma investigação
epistemológica não examinada (lá) de acordo com o qual o conhecimento genuíno é
fundamentado na intuição e na dedução. O método, propriamente dito, argumentei, é um
instrumento gerador de tal conhecimento, um mecanismo para construir respostas intuitivas e
dedutivas para as questões postas. Mas há um problema óbvio aqui: de onde esta
epistemologia, o quadro de conhecimento que gera todo o método, surge? E como podemos
ter certeza que esta epistemologia é um fundamento (base) sólido e apropriado para
basearmos nosso método? Estas, eu acredito, são questões que Descartes está levantando
nesta passagem da Regra 8; elas são, eu presumiria, reflexões posteriores sobre o método que
ele esboçou uns anos antes com ingênuo entusiasmo. É interessante notar(observar) que não
há nenhuma preocupação cética abstrata aqui. A questão epistemológica neste contexto
parece ser um senso comum, quase uma questão prática: tal como o ferreiro deve fazer suas
ferramentas (instrumentos) antes de se engajar em projetos sérios, do mesmo modo, deve agir
o cientista. Antes de nós entrarmos em uma atividade científica genuína, devemos (com a
ajuda do método provisório, baseado em uma epistemologia provisória) primeiro descobrir
Joyce Mayumi Shimura 426
Referência Bibliográfica
quais ferramentas tem-se para forjar as verdades, quais são mais confiáveis, à que tipo de
verdade cada ferramenta (instrumento) é adequado, e assim por diante; esta é a questão da
natureza do conhecimento. Garber, D. Descartes’ Metaphysical Phisics, p.41-42.
17
Descartes, R. Regras para a orientação do espírito. Regra VIII, p. 54.
18
Ibid., Regra XII, p. 73.
O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito 427