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na construção de uma fama dois perfis no New York Times ou rrrr,r, rl:r rrrítlia). Se antes era preciso buscar legitimidade em
três reportagens num jornal latino-americano, o quanto utn l,,rr),,r:. tlisltutasno interior do campo artístico, hoje ela pode
Oscar pesa mais que um prêmio em Cannes, ou vice-versa. , r ,rlrtitlir crl instituições menos interessadas pelas perspec-
De modo algum tais afirmações do mercado estão isentas de
rrr.r', t'stúticas. Enquanto se afirma a soberania do público'
transcendência: tudo isso faz parte de um mapa cujos marcos
1, lorçlrrrÌ-sc as balizas que designam os territórios onde
essa
dependem dos costumes e das instituições; o público se desloca A discussão sobre valores
,illrr'|lrniu é supostamente exercida.
por essa cartografia cambiante, às vezes seleciona um certo
rr,r .rrlt' cxcluiu milhões de pessoas porque' efetivamente' era
território, noutras vezes é deportado para outras zonas, confor-
rrrrr,r rliscltssão entre protagonistas. O fato de que hoje essa
me a conveniência do mercado; certos públicos ocupam sempre
,lr'., rrssrìo tenha sido riscada da agenda (de que ela seja con-
as mesmas fileiras, como se estivessem confinados; outros
.r,l, rrtlu fbra de moda ou de que lhe seja imputada uma vocação
aprenderam a desÌocar-se entre regiões diferentes e a decidir
rlr' :rlrsoluto típica da modernidade que se pretende superar)
seu próprio rumo. Ninguém se mexe na base de uma liberdade
Seja como for'
sem limites; os mais pobres, menos favorecidos, são prisio- 1,,rrh'Set um sinal da democracia dos tempos'
r,rnrlrúnr seria preciso considerá-la como um resultado da ex-
neiros de seu local de origem.
na esfera das
A neutralidade valorativa indica que mais democrático é lì.rrsrìo sem precedentes do mercado capitalista
pensar que tudo é possível e igualmente legítimo. O passado .rrtt's. ll é bem sabido que o mercado é cego perante as dife-
r, n\-iìs, como a imagem mítica da justiça'
da arte é um grande depósito, ao qual se pode recorrer a fim
de buscar o que for necessário, e não existe outra regra que O pluralismo e a neutralidade valorativa, por outro lado'
governe a entrada e a saída de mercadorias. Entretanto, a situa- rr,r,, significam a mesma coisa na esfera da arte ou na perspec-
trvrr rr partir da qual são julgadas as diferenças entre os po-vos
ção não nos autoriza a sermos otimistas: criou-se uma fratura
entre os artistas e o público de massa que as vanguardas culti- , os costutrÌes. Pode-se afirmar, ainda, que a arte'não vive da
varam como sua marca de distinção, mas que, ao mesmo tem- ,,,t'ristência das diferenças e sim da utopia de um absoluto'
po, pretenderam exorcizar violando os limites estabelecidos ins- (): lrstados e as instituições são os guardiães da eqüanimidade:
posições exclu-
titucionalmente para a arte. Nessa fratura, o mercado trabalha l)iil('cc que os artistas se adequaram melhor às
para si e não para uma utopia de igualitarismo estético. Nessa r lt'rrtcs. Talvez abordar a esfera estética da
perspectiva do plura-
fratura, há pouco que possa interesar a uma discussão sobre lr:,rrrrr religioso ou político signifique, em vez de colocá-la sob
a arte. O absolutismo implantado pelo relativismo estético é um r lrrrrrinação sociológica verdadeiramente inovadora, obscurecer
dos paradoxos da modernidade, etalvez o último. Também nes- ,rlritrrts dos traços que realmente a definem'
te caso, no reverso de uma posição triunfante, por mais justa O fato de os valores serem relativos a suas respectivas
que ela pareça, poderia ser descoberto um fato de barbárie. ',,reicclades e épocas não deve excluir o interesse pelo debate
Solapados os fìndamentos do valor estético, aumenta ',,rlrlc quais seriam, para nós, esses valores. Saber que eles nllo
como nunca a força dos especialistas (do mercado, da acade- rlt,vctìì ser impostos a outras culturas é um obstáculo ao abstl-
CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA
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I24 cENAs DÁ vrDA pós-MoDERNA O lugar da arte I25
como as vanguardas, contra o sentido comum do público. Tam_ lÌrr urn lado, a indústria cultural não tinha acabado de
pouco que sua arte é pura negatividade, crítica estética que se rrrrpl:rrrlll sua hegemonia sobre todas as formas culturais ante-
converte em crítica ideológica. pelo contrário, Ozu e Ford não u,)r('s. l)or'outro, as vanguardas não tinham dividido por com-
só nunca se colocaram fora da indústria cinematográfica, como I'lr'to, nunìa cisão definitiva, o campo da arte. Quando essas
afinal foram pilares da credibilidade de um cinema de massa rrrrrtlrrrrçus aconteceram, na segunda metade do século XX, a
nas décadas de 30 e 40. Junto com as banaliclades que os gran_ ,rrrrpliirçho estratificada dos públicos e a experimentação estética
des estúdios atiravam sobre as telas de todo o planeta, os filmes a trilhar caminhos distintos, que se cruzam apenas
lì,r',siìriuìr
de Ozu e Ford (ou os de Wyler, ou antes de
Griffith e Chaplin, , nÌ ('irsos inteiramente excepcionais. Com a música e a literatu-
mas também os de Hitchcock, para irmos direto ao assunto) r.r, isso aconteceu antes do que com o cinema.
são obras perfeitas, em que a linguagem do cinema está desen_ l)or que devemos nos preocupar com um processo que
volvida a ponto de alcançar seu estágio clássico. São filmes per_ p,u('cc irreversível e que, além disso, apresenta aspectos demo-
feitamente reconhecíveis: os planos gerais de Ford e os enqua_ , r irticos'Ì Com efeito, a implantação das indústrias culturais tem
dramentos de Ozu hoje são considerados marcas pessoais que
,,,rrscrltiências niveladoras e levanta um marco de ferro para
passaram a fazer parte da gramática do cinema.
,rr;rrilo que muitos se comprazem em chamar de "cultura co-
A pergunta sobre Ozu e Ford poderia ser multiplicada rrrrnÌÌ". Ninguém pretende colocar-se nas antípodas desse oti-
indefinidamente: por que temos a convicção de que Canrando
rrrisrrro, e muito menos fazer a crítica elitista desses protestos.
na chuva está tão longe de Fama ou Embalos cle sábado à noi-
Nas páginas seguintes, contudo, tratarei de apresentar,
te? O filme de Stanley Donen e Gene Kelly foi, de imediato,
,rtrrvés ile uma série de retratos de escritores e pintores, os
um grande sucesso e um modelo de musical, cuja obsessivi_
tr:rços tipicamente modernos da arte, que a cultura audiovisual
dade detalhista construía uma forma impecável. O que conver_
rl(' rÌìorcado parece destinar a um desvão visitado apenas pelos
tia esses diretores e esses filmes, de uma vez por todas, em
( ,il)ccialistas ou por públicos muito vocacionais. Embora suas
façanhas estéticas singuÌares e grandes favoritos de todos os
,,lrnrs sejam expostas ou publicadas, o modelo de artista que
públicos?
{ r,s('s retratos apresentam foi tocado por uma clara margi-
Talvez a pergunta não esteja bem posta. provavelmente,
rrrrlitlacle. Existem, sem dúvida, grandes escritores cujos livros
a formulação correta seria: o que permitia que Ford , OzLt,
.rtrr(ìrn centenas de milhares de leitores; mesmo assim, um mo-
Hitchcock e Wyler fossem compreendidos por um público de
vrrrcnto como o boom da literatura latino-americana, nos anos
massa, que consumia o cinema mais banal mas também Rio
t,{ ) r' 70, hoje atravessa uma fase quase residual, em que apenas
Grande c Hi.çtória em Tóquio? O que se passava com a cultura
('', llrÌtores consagrados naquele tempo conservam o público
desse público? Sob que condições Ozu e Ford conseguiram
não ser tolcradcls ìr margem (um no Japão e o outro nos Estados rrr:rssivo que então se constituiu.
Unidos) e sim manter-se no centro de um sistema de produção Os retratos que proponho tentam provar a variedade com
e consagração'l rlil(' ir iÌrte opera. Ela cruza e superpõe faixas bem diferentcs:
I28 CENAS DÂ VIDA PÓS-MODERNA
O lugar da trtt 129
com que se concentra. Explica em detalhes questões
técnicas: turas. seus refinados cinzas e pretos evocam um
como é feito o traço do junco na pintura chinesa, quais cromatisrno
os que se resolve, como no cinema ou na história
melhores papéis para trabalhar com aquarela, como em quadrinhos,
mistura as em branco e preto. A abstração dos grafismos, vistos
tintas para obter os cinzas que se distinguem, numa escaÌa de longe,
revela, quando a perspectiva é próxima, citações
sutilíssima, a partir dos pretos mais intensos. Suas opiniões de um ima_
so_ ginário cultural que a composição do desenho nunca
bre pintura são mais breves que suas discussões sobre teria
cinema. permitido supor. A mistura de abstração e imaginário
Decerto sua formação técnica é mais compÌeta que
ficcional
sua cultura não causa conflito. As duas perspectivas integram
diferenças
estética. Não vê toda a pìntura como especialista, mas e permitem ver não várias coisas ao mesmo tempo,
conhece mas sim,
bem o que conhece. euando fala de pintura boa ou ruim conforme o lugar a partir do qual se ajusta o foco,
suas dois sistemas
opiniões têm um tipo de densidade compacta e nenhum de representação que conservam o rastro de suas
espírito diferentes
de conciliação. origens culturais.
Da mistura caótica de seus gostos, seus desenhos con_ Pintura e razíÍo. Falava cliante de seus quadros
e não
servam provas quase invisíveis. Durante anos, desenhou admitia que o espectaclor ficasse ensimesmado nas peripécias
perso_
nagens pequenos que, vistos a uma distância .,normal,,, de sua visão. Acreditava que é preciso falar da pintura
pare_ e que
cem meros grafismos. Tais desenhos têm uma dupla perspec_ a arte (não só a pintura, mas também o cinema, os
romances,
tiva: de longe são composições abstratas, pelas quais se a música) é uma matéria que o discurso captura,
esten_ rodeia, inter_
dem grandes massas vaporosas que formam espirais interrom_ roga, contradiz. Diante de sua própria obra discorria
como um
pidas, círculos incompletos ou superfícies que não intelectual. Nada nele evocava a imagem clássica
evocam ne_ do pintor
nhuma geometria, mas somente a ocupação livre do plano cntregue à sua pulsão como que mergulhado
l que, em águas luase
por vezes, parece o grande fragmento de uma composição clesconhecidas, nem a ìmagem mais atual do
au_ indiferente que
sente; de longe, esses desenhos conseguem um movimento clesconfia da polêmica e das posições fortes. A polêmica
era
amplo e desenvolto sobre a base de grafismos muito pequenos. scu território preferencial: ela permitia que
ele empregasse uma
Vistos de perto, os grafismos revelam_se como personagens artilharia de motivos sem sacrificar seu gosto pela
hipérbole.
diminutos, paisagens, casteÌos, monstros, cavalos, moinhos, lìazia do diáÌogo uma forma do conflito estético
e não uma
vegetações de ficção científica, heróis de histórias c,rnunicação de informações sobre o mercado
em quadri_ de arte ou os
nhos sobre a idade da pedra. Estão saturados de significação prômios.
cultural, ficções de terceira, ícones que evocam uma espécie Preservava do passado a tensão política (uma
espécie de
original de rctrô pop, ou sci-fi ott contos de fada. Tolkien l)cnnanente alerta ideológico) e o estilo de intervenção vanguar_
visi_ rlista. Foi invariavelmente excessivo e desconheceu
tando a abstração. as estra-
tógias de poupança do capital estético, de reaplicação
As duas perspectivas desses desenhos podem ser inter_ do pres_
lÍgio acumulado e de moderação elegante em face
pretadas como uma hipótese estética sobre a mistura dos clonos
de cul- rlt. galerias, colecionadores ou críticos.
130 cENAs DA vrDA Pós-MoDERNA
O lugar drt artt' l3 I
Referia-se à própria obra com a ceÍteza paradoxal de que corno se fossem motivos geométricos; as briÌhantes estrelas cla
não estava falando dele mesmo: tratava-se, pura e simplesmente, são atravessadas por pranos que destroem a estabi-
de pintura. Passava de seus quadros à história da pintura num 'cvolução
liclade das cinco pontas perfeitas; os vermelhos mais ricos e
gesto que também explica quanto de história da pintura existe tlçcorativos recobrem somente a metacle da tela; sobre a outra
em seus quadros. Mas era totalmente hostil ao colecionismo rrrctade, como um esqueÌeto traçado prosaicamente a lápis,
pós-moderno da citação decorativa. Não visitava o passado co- nlostra-se o futuro do quadro que não chegou a ser pintaclo;
mo um arqueólogo, para inscrever em seus quadros os restos rr rrrtificiosa fotogenia de grupos famiriares é questionacla por
de encontros caprichosos. Como um verdadeiro moderno, co- cspclhos que nos impedem de contemplar tranqüilamente o
nhecia a tradição a ponto de arriscar-se a parecer erudito ou rrrotiv<l (reunião de pais e filhos, crianças), porque a nossa posi_
pedante. Suas decisões seguiam uma linha bem pensada. çlr. cle espectadores está comprometida; as cadeiras, os pincéis,
Escolhia suas citações para demonstrar que o ato de pintar rs flutuam num espaço não-figurativo, num fundo pu-
'artelos
inclui uma reflexão sobre os procedimentos e sobre o passado I iuìÌclìte pÌástico.
da pintura. Trabalhou com as estrelas das vanguardas russas, A feÌicidade de sua pintura cerebra a possibilidade cle
os ícones expressionistas, as naturezas mortas da representação r'.rrrirruar a pintar depois das últimas clécadas. É possíveÌ conti-
reaÌista, às quais dedicou um virtuosismo que lhe permitiu lr'irf ir pintar depois da arte conceitual, das instalações, dos
mostrar fielmente os limites do realismo: pintou uma fruteira Itrtltltt',irtgs, da arte de manifesto porítico. Entretanto, essas dé-
branca sobre uma toalha branca, em homenagem a Malevitch, r'rrtlrrs rrão passaram em vão: ele sabia que não bastava mostrar
,,'lr lì.licidade. Sem negar-se a experimentação alguma, pintou,
a quem citaria muito depois em suas últimas obras. Mesmo
quando seus quadros citam claramente outros quadros seus, rt\\int, u razão da beleza e a beleza d,a razão.
estão longe da clausura espetacular, da repetição e do narci-
l,ú,s.snros. passa um bom tempo observando pássaros.
sismo. Essas claras referências à própria obra são um momento
l{r'rrrirr urna boa bibliografia: tem binóculos, botas de borracha,
a mais da reflexão estética.
rrrrr t'lrrpéu de palha, um cantil enfim, o bastante para ver
Seus quadros proporcionam uma felicidade que pertence
r", |itssltr.os ern lagoas, planícies,- canaviais, pântanos,
à ordem do sensoriaÌ e não só à ordem da razão. Mas essa feli- rios e,
lirrnrirlnÌcrìrc, bosques ou simples montes cobertos de eucalip_
cidacÌe, que nos chega como uma iluminação persistente, está
tr,. lrxplic. que o observador de pássaros é uma espécie de
perpassada pela idéia antidecorativa de densidade conceitual.
,.L'r'r..lrtl.l'de lembranças, pois a única coisa que guarda cle
Urna explosão de cores sustenta a distorção de grafismos obs-
lìrrr\ r'xr)c(lições são as linhas que registra no seu caderninho,
curos. e inquietantes, nos quais o traço é livre e pesado ao mes-
rr',',ilrr: vi trrl piissaro, macho ou fêmea, sozinho ou em bando,
mo tempo; uma série de objetos simpáticos e cotidianos nos
r',ir'rl. .rr Pousado, perto do ninho ou atrás de alimento,
inquieta por sua sintaxe abstrata; uma simples capa impermeá-
r rurrirrrl'.tr crn silêncio, caçando minhoca ou
bicando migalhas,
vel se converte no pesadelo hiper-realista de frutas reiteradas
rrr'r1'rrllrrrrtkl rr., charco ou parado no galho; também anota u
&
I32 CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA O lugar h rrtt 133
personagem. Sua ironia sempre ressalta demais' ea graça Sua obra de ficção é compacta e extensa. Nela tamptluco
freqüentemente causa um efeito que não entrega tudo ao llretende se mostrar inteligente. Só busca a perfeição que tenha
Ir poesia como horizonte. Seus personagens e suas tramas, con-
subentendido e ao não dito. Diverte-se fazendo demonstrações
trrclo, resultam de um interesse inesperado, quando se considera
evidentes e não procura quase nunca a originalidade em suas
observações. Não faz questão de parecer inteligente' tlrc são quase sempre os mesmos, recortados na mesma paisa-
Seus olhos' entretanto, durante essas longas conversas gc:rn e discutindo na realidade muito pouca coisa. Sua literatura
titlil'ícil, se o que se são idéias citáveis e argumentos
fiadas, ficam contraclitoriamente acesos, como se a vista esti-
espera
rurrrírveis. É preciso lê-lo como se lê a poesia, bem devagar,
vesse buscando o que suas paìavras sequer se propõem trans-
mitir. Alguém dentro dele está atento e, às vezes' vem à tona: ;xrra captar, no ritmo das fìases e na matéria das palavras, o
quando pronuncia uma diatribe política, quando faz
juízos irviuìço fentíssimo de relatos que estão literalmente colados na
com litrg,uugem. Como programa estético, também ele poderia es-
morais duríssimos, quando eventualmente é provocado o
('r'('vcr: "Atrás de ti, linguagem amadíssima".
nome de um escritor querido ou desprezado'
Homem de província, vive em Paris com a distância fria Em seus romances, o tempo se arrasta como se não
lrrrrk:ssc transcorrer, embora de repente fique claro que
já
e pouco deslumbrada de quem não está disposto a comprar
pirssor.r para sempre. As descrições parecem mostrar algo
quinquilharia alguma dentre as que o mercado cultural oferece'
rrpn'crrsível, mas logo se repetem: as mudanças numa paisagem
Nem mesmo com relação à própria obra ele se mostra disposto
\ri() tiuìtas que a descrição é só uma aposta contra a multipli-
a participar cle qualquer transação, por menor que seja' A
rrlrrtlc clo mundo que a literatura rodeia sem nunca capturar
literatura na televisão para ele é um pesadelo, do qual prefere
r
Irrlrinrnrcnte. A dramaticidade da condição humana não provém
abster-se de aparecer como personagem' Quer ser lido'
mas
ruídos cíclicos, quase imperceptíveis. Mexeu nuns papéis. Na- grande sucesso ou, se preferirem, sua primeira grande obr.lr.
da. Só podia pensar naqueÌe outro, o escritor mais velho' ho- Sem dúvida, pode-se admirar um escritor mais velho com rnais
mem de paixões contidas e públicas ao mesmo tempo, o poeta tranqüilidade do que um contemporâneo. Mas esse velho tinlru
tocado pelos deuses e pela fama' Sua admiração era tão poderosa que continuar vivendo, porque sua morte significaria o fim dc
quanto seu desejo de ser mais que esse homem. qualquer possibilidade de ele afinal reconhecê-la como sua se-
O que os unia a ponto de separá-los era, nessa noite e melhante. Apesar de tudo, tinham mais coisas a uni-los do que
nos dias seguintes, uma precipitação quase cega sobre as a separá-los: A religião da arte? A república das letras? A busca
palavras, nadando contra a corrente de um líquido elástico e, em comum pela beleza e pela verdade? O trabalho sobre os mes-
ao mesmo tempo, insubstancial. Unia-os a perseguição do mos assuntos com os mesmos instrumentos? A leitura de aìgu-
mesmo, da qual o mais sortudo preservaria, entretanto, um mas centenas de livros? A separação insuperável que sentiam
diferente rastro. Unia-os também a busca de favores, o sucesso diante das peripécias repetidas do cotidiano? A idéia de que
no ofício de apresentar a própria obra, a idéia de que tinham competiam no mesmo espaço e de que a competição não os
uma missão e que outros (sem missão a cumprir) deviam reco- diferenciava tanto um do outro quanto a ambos do resto dos
nhecê-la. Unia-os a diferença entre eles, e ainda a diferença mais seres humanos? A obsessão do fracasso e do êxito? A crença
radical entre eles e os outros homens e mulheres. Unia-os o amor alternada de que tinham vencido e perdido?
pela beleza, que reconheciam como uma paixão superior, e pela Mas o que os unia, enfim? Eram paroquianos da mesma
fama, que concebiam como um truque no qual davam mais do igreja? Membros do mesmo partido? Gostavam dos mesmos
que recebiam. Unia-os, sem dúvida, o respeito pelas ferramentas vinhos ou da mesma paisagem? Talvez sequer se sentissem
do ofício, a convicção de que só era possível aprender a usá- comovidos pelos mesmos livros, sequer citassem os mesmos
las até certo ponto, e a crença de que o trabalho que realizavam versos de um poeta lido por ambos. A mulher soube, entretanto,
era extenuante dém de todos os limites. Procuravam' clue descobrir o que os unia era importante para dissolver a
A mulher, acordada, mas incapaz de escrever uma só distância que os separava. Mas, afinal: o que se pretendia
palavra, sem vontade de ler nem ver nem ouvir nada, pensou tiescobrir? A verdade da inveja, arazáo de uma amizade intensa
que o outro dormiria tranqüilo, sem saber que ela, nesse instante, com um homem quase desconhecido, o assombro diante de
pensava nele com uma admiração esfriada pela inveja ou, antes, uma obra considerada admirável, o direcionamento para um
com os restos de uma inveja que a admiração tornava supérflua. lugar onde talvez não se encontre o que se procura e onde tam-
De todo modo, a juventude estava a seu favor: comparou o pouco o outro encontrou o que buscava, o cansaço e a imaginu-
que ambos tinham escrito, a idade que tinham quando publi- ção que afoga a escritura. "Andamos às cegas, sabendo, por
caram o primciro Iivro. Ainda faltavam alguns anos para que outro lado, quase tudo o que há para se saber". "Assim", clissc,
a mulher que não conseguia dormir chegasse à idade em que uma vez, o homem certamente adormecido à mulher insrtrrt',
o homem que dorrnia líl longe tinha alcançado o seu primeiro "assim é a arte".
O lugar dt arrt 143
142 cENAS DA vrDA Pós-MoDI.RNA
beram de herança. As tomadas de posição no campo intelectual rrr nri[os da liberdade absoluta da criação.
140 CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA O lugar dt artc 141
Mas como ter tamanha pretensão? "Com a certeza de cram eles os únicos príncipes e sacerdotes de sua república.
que os outros não têm remédio senão reconhecer nosso direito"' Mais tarde, chegaram outros artistas, vindos de mais longe, das
respondeu, quase sem parar para pensar. São assim as regras rÌìargens da sociedade, para dizer que não eram nem uma coisa
do jogo em que os dois estão metidos com uma intensidade norn outra, e sim boêmios, mulheres desafiadoras, missonários
que beira o excesso, embora também possam vestir a máscara ou, finalmente, produtores que levavam suas produções até o
da distância indiferente. Os outros reconhecem o nosso direito' rrrcrcado.
Girar à volta desse direito, usufruí-lo, fazê-lo produzir (se Até poucas décadas atrás, as pessoas que intervieram
possível) o melhor livro. Mas, quem pode dizer tranqüilamente r'nr cada uma dessas peripécias pensavam que suas posições
"o melhor livro", como se soubesse de que se trata? A mulher blscavam-se em valores cuja superioridade poderia ser demons-
acordada pensou: esta é, decerto, outra questão' E talvez ti- Iliula ou pela razão ou porque assim o teriam decidido razões
vesse razão. srrlrcriores à razáo estética. O reino, embora atravessado pelas
lrrlls de programas ou personalidades, era estável e soberbo'
Valores e mercado Sirbil-se (ou pensava-se que se sabia, o que dá no mesmo) por
Durante séculos, um punhado de homens e umas poucas rlrc lc;uilo que cada um defendia era melhor do que aquilo que
mulheres participaram de uma longa e movimentada discussão t'rrrlir urn atacava. Nunca se duvidou de que a discussão era
sobre arte. Houve um pouco de tudo: briga de poetas, querelas
rrlrrcssante porque nela se estabeleciam dif'erenças fundamen-
lrris lirnto para fazer quanto para fruir a arte.
entre os partidários do clássico e os inovadores que defendiam
as virtudes dos modernos, pugilato nos palcos de alguns teatros, Quase todas as palavras escritas acima estão agora sob
jovens diretores de cinema que responderam às vaias do público t;rrcslho. Ouço dizer que a discussão é improdutiva, transcorre
atirando pedras. Houve competições e lealdades até a morte, lnr lclrìlos equivocados ou esconde seus verdadeiros motivos.
perseguições, suicídios, destruição de obras próprias e alheias, Alilrrra-se que já não se pode fazer uma pergunta sobre o que
sacrifícios sublimes e baixarias. O nome da arte foi pronunciado
I rr lrlte. Para um indiferentismo chamado "pós-moderno", a
em cacla uma dessas escaramuças, apesar de nem sempre seus Jr('rl.Ìurìta carece de interesse. Por sua vez, a sociologia da cul-
llu lr ir rcsponde de uma perspectiva institucional: a arte é aquilo
protagonistas terem podido demonstrar que só eram movidos
por aquela razão que todos consideravam superior. De todo rillf ltnì grupo especializado de pessoas concorda que ela seja.
Sr,rri possível incorporar essa resposta a uma discussão esté-
modo, a discussão continuou sob formas diferentes. Houve
tempos em que se reconheceu a existência de autoridades exte- lk'rr'/ Nao existiria uma alternativa à definição meramente
riores que traçavam planos para a cabeça dos artistas, definindo, Itrrilitrrcional da arte?
Assegura-se hoje que só se pode dizer o que é a arte
como príncipes ou sacerdotes, o sentido e a perspectiva do que
ttrcrlirrrrlc ou uma Ìista das funções que ela desempenha na
estavam produzindo. Depois, essas autoridades largaram esse
mundo à própria sina e os artistas passaram a pensar que então virlrr social ou um inventário das crenças sobre ela, tal cotntl
-l
,ilr
O /ug,tr líí /trt( 147
146 CENAS DA VIDA PÓS-MODE,RNA
ú il,
O lugar da ,trtt 145
144 cENAs DA vlDA PÓs-MoDERNA
perspectiva sociológica dissolve a boa consciência earacterística) dissolve qualquer possibilidade de se conside-
A
das razões da r.rrcm outros valores que sejam independentes daqueles que são
autojustificativa, mas também corrói a densidade
a ser surpreendente irÌstituídos pela visada do artista (legitimada, por sua vez, por
arte. A partir dessa perspectiva' não chega
um mictório para exi- 0utras visadas: as de outros artistas, a do galerista que aceita
o gesto de Marcel Duchamp ao escolher
premoni- suas obras, a do editor que as publica).
bir como obra de arte numa galeria. Pelo contrário,
fim a demonstração da Nesse contexto, o debate estético perdeu seu fundamento
toriamente, Duchamp teria levado até o
seria a prrrvavelmente para sempre' Não existe deus nem fora nem
teoria institucional sobre a arte' e sua obra-mictório
sua visada estética tlcrrrro do espaço artístico que nos venha a entregar o livro em
chave da teoria. O artista fez o objeto com
considerado estético rprc estejam escritos os valores da arte. O processo de dessa-
e não há nada no objeto que possa ser
pretende t'rirlização se concluiu. Um de seus méritos é a instituição do
por seus valores intrínsecos; na verdade' o mictório
da arte rcllrtivismo estético. Esta é também uma de suas conseqüências
liquidar para sempre esses valores' A convencionalidade
ao gesto de esco- rriris pcrturbadoras. O relativismo é como a democracia: uma
atingiu seu limite quando o valor ficou,colado
que não as relações vt'z ouvidas suas promessas, tudo desaba frente ao ímpeto
lha, e a obra não admite outro fundamento
Duchamp escolhesse rrivcllrrl0r e igualitário de seu impulso' No entanto, em contraste
institucionais; eìas é que permitiram que
r'onr r.rììa proposta otimista para a esfera política, os problemas
o rnictório e que isso fosse aceito pelos entendidos'
pôde ser visto rlr virlor e do gosto na arte parecem adequar-se penosamente
O que nas primeiras décadas deste século
hoje poderia ser n lruir icléia de "acordo constitucional" sobre o que se deve
como um momento decisivo das vanguardas'
da dessacralização da lnrcr. Mais que em qualquer outra esfera, na arte é tão difícil
encarado também como capítulo final
que lhe proporcionolt Irrrtitrrir. o possível quanto o proibido. Essa dificuldade frustra
arte. Sem querer, Duchamp faz o gesto
sociológica' E acen- it ('('nsÌrra, cujos argumentos (religiosos, políticos, nacionais,
sua "experiência crucial" sob a perspectiva
qual também serão queimadas as vanguar- Ilvulrrcionários) carecem de outro apoio além da força: quando
de uma fogueira na
XX' n rlcrttocracia irrompe na esfera da arte também é imposto o
das, ou seja, o melhor da arte do século
que a ;tlttrrrlisttto como princípio de regulamentação
das diferentes
A partir das vanguardas' a arte toca um limite
outros aspectos: se tudo ;lilrtç(ì(:s. Esse pluralismo assegura uma
equivalência universal:
sociedade deste século conhece sob
precisamente a "llrlos os cstilos parecem mais ou menos equivalentes e igual-
é possível' aquilo que era próprio da arte -
problemas diferentes lrFnl(' (lx)uco) importantes". Ninguém poderá ser condenado
luta por impôr soluções novas e definir
perde sua pnl ìrirs icléias estéticas, mas em compensação ninguém terá
claqueles do passado e de outros contemporâneos -
da cultura ensinlr rtí lr\lrunìcntos que permitem comparar, discutir e validar as
coluna vertcbrul. Por um lado, a sociologia
lidos como combates tllletí.illcs cstóticas. O mercado, expert em equivalentes abstra-
que os movimentos estéticos devem ser
por outro' uma intervenção Itti, trt'cbc csse pluralismo da estética como a ideologia mais
fela legitinridade c a consagração;
considera perfeitamentc ËlelÍrr rìs sttas necessidades.
vanguardista (que a sociologia da arte
pÓs-tr'toDERNA' O /try,tr rltt rtt lt' I 5 I
150 cF-NAs DA vtu,t
arcaizante que só serve para tranqüilizar a moral dos intclt'c
de qualquer limite pensável até então' Nesse duplo ttrovirtrcnto'
o mercado c o que tuais. Seria pref'erível, no entanto, que a tolerância não sc rrris-
contudo, ela levaria ur-na lição imprevista:
"indústria cultural" tninavam turasse tão amigavelmente com a incapacidade de enxergur: no
depois passou a ser chamado de
propriedacle de um mercado de bens simbólicos, não fica bem falar em termcls tlc
as bases da autoridade que avaliavam a
A contradição Íoi lucros, maximização de ganhos, competição econômica, expres-
paradigma educativo em matéria de estética'
na "arte indus- sões que em outros mercados ninguém deixaria de empregar.
logo reconhecida por aqueles que cliagnosticaram
de que as elites A sociologia da cultura ressaltou modos de funcionamento dos
trial" a sentença de morte dos valores refinados
artistas que irnpedem a consideração do campo estético corno
culturais se imaginavam portadoras' divulgirdoras ou lnesmo
mercado introduz crité- um reino de espíritos livres de qualquer outra pulsão que nãcl
derradeiros bastiões. Inevitavelmente, o
contradi- a da arte. Acredito, em todo caso, que os limites dessa descrição
rios de avaliação quantitativos, que freqüentemente
as opiniões dos artistas'
são menos estreitos do que os que propõem o otimismo de
zem a arbitragem estética dos críticos e
deixar de ser vista mercado em sua apologia da substituição de uma autoridade
A própria idéia de popularidade não poderia
a contradição ins- estética por um conjunto atomizaclo de consumidores.
com desconfiança, já que sobre ela se erguia
Àqueles que há quase Se assim for, qual será o futuro de uma arte que ainda
talada bem no coração cla democracia'
no campo da arte e da não é ou taÌvez nunca seja uma arte de fiìassas, nem participa
duzentos anos previram uma catástroÍè
número' os que prefe- do mercado como um bem atraente para os agentes capitalistas
cultura provocada pela opinião cle maior
das belas-letras que definem suas tendências? A pergunta encontra algumas
riram correr os riscos de uma clemocratização
na eficácia das insti- respostas naquilo que hoje denominamos "políticas culturais",
e das artes responderam com a confiança
também começava estratégias desenvolvidas por Estados que não entregam todo
tuições pedagógicas (cujo poder, entretanto'
o destino da cultura à dinâmica mercantil.
a ruir). Ampliação do público e decadência dos valores foram
o paradigma No momento, porém, não é esta a perspectiva que
dois temas fatalmente relacionados' Enquanto
chegou a assumir importa aqui. Antes, pretendo retomar uma pergunta sobre a
peclagógico foi mantido, porém' o conflito
não
instituição do gosto e dos valores: se as certezas elaboradas
todos os traços de um dilema'
e sair do dilema pelos artistas e pelos filósofos entraram em crise porque, vista
Será preciso então aceitar essa fatalidade
dc perto, qualquer legitimidade estética se clesdobra numa lu-
pela única porta que parece entreaberta? Refiro-me à saída de
cultural' que encon- tir por Ìegitimidade social; se a problemática da relação entre
ernergência clescoberta pelo neopopulismo
para a lcpresentação estética e sociedade, a dinâmica do novo e o
tra nos sintomas clo mercailo um substituto capitalista
sem susto essa saída prriprio projeto das vanguardas foram explicados peÌas leis que
velha noção rotnântica de Povo' Para usar
r'cgem a competição entre artistas e pelas lutas para impor dcl'i-
precis o Ïazer vista grossa diante de alguns
de et'nergôncia' ó
do mercado: o lu- rrições institucionais da arte; se o relativismo valorativo ;.rotlc
problemas. O prirneiro cleles é a lei de ferro
qualquer condenação scr considerado a única crença forte que passa da moclcrnirllrtlt.
cro, sobre o qual é irnpossível pronunciar
JLI
ì
para a pós-modernidade, então: existe outro lugar, além do o perdeu completamente, porque o mercado precisa autorizar-
mercado, onde se possa pensar a instituição de valores? No sc junto a essas autoridades, porque o Estado decidiu tratá-la
mercado, fazem-se ouvir as vozes que não têm autoridade para rlc acordo com políticas específicas, porque o lobby da arte
falar na sociedade dos artistas: o público, cujo saber não é espe- :rinda mantém canais de comunicação com outros lobbies). A
cífico, tem ali um valor igual ao que detêm aqueles que dispõem tlrreda de braço dos artistas com o mercado não se apresenta
de saberes específicos. Em última análise, o público poderá tlrr mesma maneira em todo o Ocidente. Além disso, as forças
decidir se as opiniões dos críticos e as declarações dos artistas
(luc se sentam ao redor de uma mesa de negociações não têm
lhe parecem razoáveis, convenientes, simpáticas ou engraçadas' :ì Ínesma capacidade de ação nem meios equivalentes para
Poderá conceder a alguns personagens a possibilidade tempo- urtervir no mercado e assim passar pela prova democrática do
râria de indicar as tendências do gosto; e poderá revogar essa s ucesso.
concessão sem precisar justificar convincentemente seus mo- A questão é bastante complicada, mas não se pode dizer
tivos; poderá coroar um artista e destronar o outro que ontem tlue seja nova. A crise da objetividade, o desaparecimento das
favorito; poderá desprezar e ignorar, celebrar e respeitar, "cvidências", a insegurança dos fundamentos, a dissolução das
era o
praticar suas preferências com toda a firmeza que lhe permitir ('r'cnças legitimadoras e sua substituição por novas crenças anti-
o peso de suas intervenções no mercado que, através de diver- lrierárquicas, são capítulos de um longo processo nivelador que
sos mecanismos (a lista dos mais vendidos ou a resposta da produziu, em política, a institucionalidade republicana, certo
bilheteria), transformam-se alquimicamente em opinião pública' tipo de populismo, o democratismo. Nesse processo, alguns
A autoridade dos especialistas está ferida para sempre e estes srrberes se separaram do poder, difundiram-se pela sociedade,
(que uniam saber e poder naquela visão convincente e crítica rrliaram-se com as pessoas despojadas de saberes prestigiosos,
da modernidade) têm que buscar em outra parte o poder que rnfientaram-se com os saberes tradicionais e disputaram as
lhes era atribuído por seus companheiros de armas e pelo posições adquiridas. A opinião da pessoa comum passou a ser
público, antes da expansão ilimitada do mercado. rrma dimensão inseparável da opinião pública.
As fontes de legitimidade se multiplicaram: uma pessoa No campo da arte, a revolução democrática instalou seus
não fala porque outras poucas lhe reconheceram tal direito' A tlilemas e paradoxos há quase duzentos anos. Entretanto, foi
menos que se queira falar só para essas pessoas, é preciso preciso esperar até a metade do século XX para que o processo
conseguir uma autoridade que não dependa por completo nem rlc nivelamento anti-hierárquico se unisse à indústria cultural
do discurso nem dos especialistas em discursos, e sim teori- t:, particularmente, aos grandes meios de comunicação de
camente de "todos". É verdade que a comunidade dos artistas rììassa, numa combinação que hoje parece indissolúvel. Ao
e dos críticos continua julgando, construindo reputações e Iongo das décadas, o público não só aumentou como também
organizando hierarquias. Isto só acontece, porém, onde ela é sc emancipou de instituições mais tradicionais (geridas pelos
poderosa (porque teve esse poder reconhecido, porque nunca cspecialistas na formação do gosto) para travar um permancnlc
154 cENAs DA vrDA Pós-MoDEl{NA O lugar da trt,' 155
diálogo com outros especialistas (os hoje denominados intelec- O neopopulismo de mercado e os defensores do rela-
tuais rurzssmidiáticos). Aumento do público e tendências anti- tivismo valorativo em matéria de arte, por diferentes caminhos,
hierárquicas são duas superfícies de um mesmo plano: chegam rucabam de solapar o fundamento estético que uma perspectiva
juntas, e ninguém pode esperar o milagre de permanecer numa sociológica tinha dcsvendado em sua mecânica profana. A
sem escorregar para a outra. clessacralização da arte parece uma conseqüência irreversível
Entretanto, não é indispensável acreditar que todos os de dois amplos movimentos perfeitamente inscritos na lógica
resultados de um processo de expansão e nivelamento devem da modernidade. De um modo geral, há pouco o que lamentar
ser celebrados em uníssono. Especialmente se o mercado, que diante do retrocesso de autoridades baseadas na exclusão ou
éum espaço certamente imprescindível de circulação e distribui- no tradicionalismo. Entretanto, algo indica que o carisma que
ção, acrescenta às tendências igualitaristas um antiigualitarismo o artista antes carregava como marca de sua condição excep-
baseado na concentração do poder econômico. Não é indispen-
cional Íbi transferido para outros portadores, que ainda não
sável celebrar a decadência da autoridade dos artistas e intelec-
sabemos se poderão escrever uma história à altura da aura que
tuais quando ela é provocada pela ascensão dos dirigentes da
os ilumina: aqueles que foram consagrados exclusivamente pelo
indústria cultural. Parece desnecessário afirmar: o mercado cul-
mercado parecem tão pouco dispostos a adotar uma perspectiva
ïural não põe em cena Ltme comwúdade de consumidores e
relativista quanto os antigos heróis culturais. Esta seria uma
produtores livres.
pretensão razoâvel se não viesse acompanhada da prática de
Se o relativismo é um ideal de tolerância, o espaço onde
urn novo tipo de absolutismo, apoiado em noções que também
esse ideal se estabelece não é o mercado. Este, antes, funciona
merecem ser postas sob escrutínio, tanto quanto aquelas que
como uma alfândega do gosto: alguns produtos circulam com
há poucas décadas se romperam. O mercado de bens simbólicos
vistos preferenciais, outros são favorecidos por políticas pro-
não é neutro e, como qualquer outra instituição que o tenha
tecionistas, uns poucos são desterrados, uma quantidade con-
precedido, forma o gosto, institui critérios vaÌorativos e gira
siderável enfrenta sérios problemas de ingresso. O gosto se for-
sobre o conjunto de capital culturaÌ coÌonizando até os terri-
ma na colisão e na aliança de todas essas tendências. Em nome
do relativismo valorativo, e à falta de outros critérios de diferen-
tórios abertos pelas vanguardas do início do século. Para os
grandes públicos, o mercado e algumas instituições direta ou
cìação (porque o que ruiu foram justamente os fundamentos
do valor), opera-se como se o mercado fosse o espaço ideal indiretamente vinculadas a suas tendências substituem, com
do pluralismo. E,mbora também se possa pensar que o mercado
autoridade semelhante, os prestígios carismáticos tradicionais
exerce, em vez de uma neutralidade valorativa, fortes inter- e aqueles que foram consagrados pela modernidade.
venções sobrc os artistas e sobre o público. Um absolutismo O que o mercado tem a dizer sobre a arte é bastante
de mercado, espccialrnente naquelas produções artísticas vin- interessante: como se impõe uma estética na costa oeste ame-
cuÌadas às inclústrius ludiovisuais, substitui a autoridade à ricana, qual a valorização das ações de um artista quando clc
moda antiga. tem uma retrospectiva organizada no Pompidou, quanto vulcrrr
158 cENAs DA vtDA Pós-MoDEIìNA
CINCO
lutismo; mas a moral relativista não nos deveria impor o abso-
luto de uma renúncia. Em matéria de arte, uma forte tomada
de partido que possibilite a discussão de valores pode tornar Intele ctuais
evidente para muitas pessoas a significação densa (a mais densa
das significações na sociedade contemporânea) do fato estéti-
co: mesmo reconhecendo-se que instituir valores para a eterni-
dade é uma ilusão.
Intelectuais, arte
e uìdeocultura
na Argentìna
3" ediçáo
tradução
Sérgio Alcides
UFRJ
Reitor Aloisio Teixeira
Vice-reìtora Sylvia Vargas
Coordenador do
I;omn da Cìência e Cultura Carlos Anronio Kalil lànnus
I]DITORA UFRJ
Dìretor Carlos Nelson Coutinho
Edìtora Executiua Cecília Moreira
Coortlrnn dora de Produção Janise Duarre
Editora UFRJ
2004
Copyright @ 6y 2004 Grupo lìdrtorirl Phnctr
Ficha Catalográficr claborrda peh Divisão de Processrrrrorto 'l úcnico - SIBI/UFlìj
5243c Sarlo. lìeatriz-
Ccnas da vida pós-rnoderne: intclccturis, rrrc c virlcoc u lnr ra Sumário
nr Argcnrina/lìcrtriz- Sarlo; tradução, Sérgio Alciclcs .l.cd.
Rio dc Janeiro; Iìditora UFIìJ,2004,
196 p.; l3 x l9 crr
1. Desenvolvimenro Crrltural - Argcntinr 2. ( rrlturr -
Globaliz-rção 3. Arte - Globalização L-l'írukr.
cr)r) 303.44
ISIrN 85-7 t08-t96-4 Perguntas 7
Cnpd
Cidade 13
'Ì'ita Nigrí
Mercado 22
Reu ìsâo
Jouens 32
Cccília Morcira
Josette Babo Videogames 42
Maria Tercsa Kopschitz. de IJarros
I)rojeto Grá.fìco e Iidìtordção lilerrônìct Capítulo II - O sonho acordado 53
Alice Brito
Zapping 53
Janisc Duarte
Grauação ao uiuo 68
Perguntas
g*r inverrid" no rr tcirnosa reagiu: por isso mesmo! Você ainda é muito nova
clc sigltíÍ'icantes.
ouui',ìJÏf: ;j,ïïn ::::nJi.,J; l)rìra tomar essa decisão, afirmou
o pai' Todas as minhas ami-
mexer para suas Í'estas
lÌlrs mexeram em alguma coisa ou vão
Mercado tlc15anoslEuéquenãoqueroseraúnicaidiota!Idioticeé
AcorrÍcceu rccentemente, Iaz.cr operação, redargüiu o irmão, porque deve doer à beça'
numa tarde cle domingo,
fesIituriìrìlc (lUc colììc num Ninguém me entende, lamentou a menina'
sunrara,,ì .,Ire cr,r,l;ilï."r;.:;ïï; ?i,illlrïlmenina per- O pai então ficou sério: nós a entendemos perfeitamente'
Vocôs jií rrrirrha filha. A ninguém se pode negar esse direito' O problema
s:tlrt'rtr. t.csnonde'al.. ^ ^_- que
mereram no a,ìo me pro- titFre vai sair caríssimo! Mais caro ainda vai ser se ninguém
,,,,,,:,,ï:lnï,ïffJ""ïr 1;eeração
tlrriscr olhar para mim, se não tirarem fotos minhas na praia'
24 cENAs DA vrDÂ pós-MoDErìNA
Abundância e pobreza 25
se eu não puder sair em capa de
revista... Isso é que vai
sair
caro, os gastos com. a terapia, e sem ;r;rr:r lrtrrlcr usar biquíni de novo. Quantas vezes você fez ani-
que eu possa arranjar qual_
quer trabarho quando crescer. r,'r:,rrrio tlcsde que eu entrei no Segundo Grau? Três. E quantas
Nisso era tem aìgurna
razão, con_ vr'/('s ()l)cl'ou? Mas nem todas tiveram anestesia total e, aÌém
siderou a mãe.
rlr,,so, os culpados pela minha barriguinha foram vocês dois.
Ninguém perguntou a você quanto
custou o seu lifting, N,ro st' rìletam comigo, reagiu o menino.
disse a menina, sem se dar conta
de que não precisava
seus aÌiados. Eu mesma paguei o
atacar l:stá bem, disse o pai, mas não me peça outra coisa até
meu ttfting;iui até , .i;;
, lrt'1';;1'lros 18. Ih, aos 18 já vou ser uma milionária e vou estar
com um saco cheio de moedinhas
e ainda sobrou dirh;;;;. rrr.rrrìtk) em Miami, disse a menina. E depois, a mamãe disse
Sabe_se Ìá de onde você.foi tirar
essa grana, ironizou
a filha. ,1rrt' ilr l'azer dois retoques antes que percebessem que ela já
Dinheiro não ÍèrÌe nem cheira, disse
o i-rmaozinho. Tirei o di_ ,,,tirviì lìcando com as pálpebras caídas. Com dois retoques por
nheiro do estúdio, clisse a mãe. E
o men
tt ,ur(ì, sc viver até os 75, serão mais ou menos setenta retoques,
túdio de quem? Idiora, esse guri u
,"' ,;;;:ïJ:Ïï j; nr:r\ rìtuìca se sabe o que mais pode aparecer nesse meio tempo.
Do jeito que eu sou, com esse bumbum
vergonha até de ir à escola. Todas
achatado, tenho Quem realmente precisava se operar era o pai. Com
as garotas mexeram em ,rrlrrcllrs olheiras, se fosse mandado embora do trabalho nunca
alguma coisa: aÌargamento da ponte
noroÌ, ."o1." das maçãs rnrris conseguiria um emprego decente. Este ano eu também
rosto, engrossamento do lábio inferior, do
implante a" \'()u rììe operar, declarou. Afinal, mais coisas dependem de
diminuir a testa. retoque do queixo. fu.u
seios maiores. "oO"là
seios mais rrrrrrr sozinho do que de vocês todos juntos.
arredondados, depilação deÍìnitiva
clo púbis, serradura Somos livres. Cada vez seremos mais livres para projetar
da última
costela, ancas, rearce dos grúteos,
desbastamento cle torno_ r(ìssos corpos. Hoje a cirurgia plástica, amanhã a genética, tor-
zeÌos, endireitamento dos dedos dos
pés, levantamento clo
peito niun oLl tornaram reais todos os sonhos. E quem sonha esses
dos pés, suavização dos punhos, .,.rrlros'Ì A cultura sonha, somos sonhados por ícones da cuÌ-
imftante de músculo peitoral
duplo, arredondamento clos braços, rrrnr. Somos livremente sonhados pelas capas de revistas, pelos
estreiti
peeting com ácidos narurais. E
se eu
cabelos lisos? Seria muito pior, porque
,:i:::",ïïffiìïï: ( iutiÌzes, pela publicidade, pela moda: cada um de nós encontra
u g.nr" não sabe se vai rrrrr l'io que promete conduzir a algo profundamente pessoal,
poder continuar usando. Isto sim r('ssl trama tecida com desejos absolutamente comuns. A ins-
é qu" .,"riu jogar dinheiro
ra, como as tatuagens que esse doido fo_
aí fez. Não se meta comi_ trrlriliclade da sociedade moderna se compensa no lar dos so-
go, reagiu o menino. rrlros, onde com retalhos de todos os lados conseguimos operar
Não somos miljonários, disse a mãe. :r "linguagem da nossa identidade social". A cultura nos sonha
E o que é que isso
tem a ver com meu presente? Desde (()nìo uma colcha de retalhos, uma colagem de peças, um con-
que comecei o Segundo
Grau você jâ fez as bolsas debaixo lunto nunca terminado de todo, no qual se pode reconhecer o
áos olhos, enclireitou
o
desvio de septo, botou colágeno duas
vezes e operou a barriga irro crì que cada componente foi forjado, sua procedência, o
,rr if inlrl que procura imitar.
CENAS DÁ VIDA PÓS_MODEÌìN,{
Abundância e pobreza 27
As identidades, dizem, quebraram.
Em seu lugar não l,',lolrrs rle uma coleção devem permanecer intatas. O cole-
ficou o vazio, mas o mercado.
As ciênc.ias sociais descobrenr
que a cidadania também
se pratica no r ' r{rill(l()t'tfadicional conhece o vaÌor de mercado de seus ob-
soas que não têm como
e que as pes- l.t,s (.iri que pagou por eles) ou conhece o tempo de trabalho
reaÌiza, ,uo., ,.,tttcado,
,1r(' invcstiu na sua coleta, caso não tenham sido adquiridos
assim dizer, rbra do mundo.
obtêm nesse cenário planetário,
o.r*;";;::'::t:il:,,ïïi.tï ;',,r rrrt'io cle compra e venda. Mas ele também conhece o valor,
ão quut ficam excluídos os ,lrlrrÌos, sintático que esses objetos têm em sua coleção; sabe
muito pobres. .O mercado
unifica, ,.t..i,
cstho faltando para completar uma série, quais os que não
duz a itusão da diferença ' lil;lis
otruué, 0", ,J;;r":ïl;::*lï porlt'rrì ser trocados de forma alguma, as histórias que estão
que abarcam os objetos
adquiridos por meio clo p.r tllis de cada um deles. Na coleção tradicional, os objetos
mercantil. O mercado é uma intercâmbio
Ìinguagem e todos nós procuramos vrrliosos são literaÌmente insubstituíveis, ainda que um cole-
falar algumas de suas línguas:
jogo de cintura. Sonhamos
norro, ,;;;
;;;#;:j , rorrrrtlor possa sacrificar algum para conseguir outro mais
com as coisas que estão r':rlioso ainda.
Séculos atrás, essas mercadorias no mercado.
vinham de outras partes O colecionctdor às avessas sabe que os objetos que
eram necessariamente melhores. e não
A crítica dos sonhos Íbi um ;rtklrrirc desvalorizam-se assim que ele os agarra. O valor desses
dos grandes impulsos para a construção
da imagem de socie_ olrjctos começa a erodir-se e então enfraquece a força mag-
dades diÍ'erentes. Assim,
hoje, são os sonhos seriais rrt:ticu que dá brilho aos produtos quando estão nas vitrines
que do mercado
se apresentam como objeto
cla crítica. ,hr rncrcado: uma vez adquiridas, as mercadorias perdem sua
O desejo clo novo é, por definição, .rlrrlt; na coleção, ao contrário, a alma das coisas enriquece à
inextinguíveÌ. Em
certa medida as varlguardas
estéticas já sabiam clisto' rrrt'tlicla que a coleção vai se tornando mais e mais rica: na cole-
uma vez rompidas porque
da.tradìção' da reìigião' qrrtr, rr antigüidade implica maior valor. Para o colecionador às
autoriclades,no,r."rrlì^l^omportas àas
o novo se impõe com seu ,/t'(',s.!d.ç, o desejo não tem um objeto com o qual possa confor-
pétuo. o mesmo o.,uttt' moto-per-
rniu -se, pois sempre haverá outro objeto chamando sua atenção.
mercado mais do
o;'ïJïriliïll;ï:l::;:',""0",
Hoje o sujeito que pode entrar
"" l'.lc coleciona atos de compra-e-venda, momentos plenamente
no mercado, que tem o rutlcntes e gloriosos: os norte-americanos, bons conhecedores
dinheiro para intervir neÌe tlrrs peripécias da modernidade e da pós-modernidade, chamam
como consumidor, é uma
colecionador às avessqs. espécie de
Em vez de colecionar objetos, tlt' .sltopping spree a uma espécie de bacanal de compras na qual
ciona atos cole_
cle aquisição de objetos. O rrrna coisa leva a outra até o esgotamento que encerra o dia nos
velho tipo de
colecionador
subtrai os objetos da circulação O shopping spree é um impulso teo-
t'rrlõs das grandes lojas.
e do uso a fìm de anexá-los
a seu tesouro: nenhum fiÌateÌista liclrnente irrefreável enquanto houver condições econômicas
envia cartas com
os selos cle
sua coleção; nenhum aficcionado prrlu levá-lo a cabo. Trata-se, ao pé da letra, de uma coleção dc
por soldadinhos de chumbo
permite que uma criança brinque lrtos de consumo na quaÌ o objeto se consome antes sequcr
com eles; as caixinhas de tlc scr tocado pelo uso.
28 CENAS I)A VIDA PÓS-MoDEÌìNA
Abundância e
Pobreza 29
No pólo oposto ao colecionudor c);s (tvesses
estão os ex_ lrrrtlctanto, os objetos escapam (e não só dos desejos das
cluídos do mercaclo: descle os excluíclos "^
cpe, cle q";ü;" lìr",,i()irs tlue não podem adentrar com desenvoltura
no mercado
do, ainda podem sonhar consumos
irnaginirrios, até aqueÌes ('il:,('(luc| podem nele pôr os pés). Aquilo que os torna dese-
cuja pobreza os restringc ao cur.ral
das fantasias rnínimas. Es_ ;.rvt'rs trrrnbém faz com que sejam voÌáteis. A instabilidade dos
gotam os objetos no consumo
e a aquisição cle objetos não ïaz , rlr;t'tos so origina justamente em seu livro sagrado e nos saberes
com que estes percam seu interesse:
para eles, o uso dos moda codifica a cada temporada. São
objetos é uma dimensão fundamental 'lU(' ir erìciclopédia da
da posre. porém, salvo r',rlrosos porque mudam constantemente, mas, por paradoxal
no caso destes atrasados para a festa,
o clesejo de objetos é '1il(' l)lu'cça, também
perdem seu valor porque constantemente
hoje quase inextinguível para as pessoas
que compreenderam rrrrrrllrrÌì: a vida não encontra apoio neles, e ninguém vai querer
as regras do jogo e estão em
condições de jogar. u',rr ulìì par de tênis velhos só porque um dia foi feliz enquanto
Os objetos nos escapam: às vezes
porque não podemos ,,', r'rrlçuviì. Por vezes, o sentimentalismo pode salvar os objetos
consegui-los, outras vezes porque já
os conseguimos, mas rl,r tlt'saparição: guardam-se as camisetas de um time de futebol'
sempre nos escapam. A identidade
transitória afeta tanto os co- ,, r't'sticlo de casamento, o primeiro uniforme escolar. O sen-
lecionadores às avessas quanto
os menos Íavoreciclos colecio_ trrrrt'rrtalismo, assim, é uma forma psicológica do colecionismo'
nadores imaginários: ambos pensam
que o objeto lhes dá (ou lrrr gcral, no entanto, o passado marca os objetos só com a
daria) aÌgo de que precisam, não
no níveÌ da posse, mas no da rt'llricc, e não há defensores dos objetos velhos, assim como
identidade. Assim, os objetos
nos significam; eles têm o poder r'\rslL:rÌì os preservacionistas de cidades ou edifícios: somente
de outorgar-nos aÌguns sentidos, e
nós estamos disp.stos a ,, ptiblico reclama a preservação. Os objetos privados envelhe-
aceitá-ros' um tradicionarista diria
que se trata de um mundo ( ( nì r'írpido e apenas um projeto perfeito poderia salvá-los de
perfeitamente invertido. Mesmo
assim, quando nem a religião, t.rl tlctclioração. Aliás, nem isto: os objetos de projeto perfeito
nem as ideoÌogias, nem a política,
nem os velhos ìaços comu_ \';r() l)urar nos museus e nas coleções; os objetos de projeto
nitários, nem as relações modernas '',,rrlinírio" (geralmente, os objetos marcados pela moda) só
da sociedade poclem oÍère_
cer umÍÌ base de identificação
ou um fundamento suficiente pa_ '.:r{) l)rcservados enquanto não se puder substituí-los por outros
ra os vrrlor.cs, ali estír o mercado,
um espaço universal e livre, e melhores.
rrr;ris rìovos
que rìos dít algo para substituir
os deuses desaparecidos. Os O tempo foi abolido para os objetos comuns do mercado'
objctos sã<t os nossos ícones, quando
os outros ícones, que re_ N:rrr clrte eles sejam eternos, e sim por serem inteiramente tran-
prcsetìtiìvitrÌì ulgurna divindade,
demonstram sua impotência tttririo.ç. Duram enquanto não se gastar de todo seu valor
sirnbólicu, são os nossos ícones porque
podem criar uma co_ ',rrrrlrrilico, porque, além de mercadorias, são objetos hiper-
munidaclc irrragirriíria (a dos consumidores,
cujo livro sagrado ',rlrrilicantes. No passado, só os objetos de culto (religioso ou
é. o adverti,s'irrg, c cu jo
ritual é o shopping spree, ecujo i r v i I ) c os objetos de arte tinham essa capacidade de acrescentar
templo
é o shopping, scrrtlo ir ntocla seu código
civil;. ,ri) uso um "algo mais" de sentido que lhes conferia um signi-
30 cENAS r)A vrr)A pós-N,ToDERNA
Abundância e pobreza 37
ficado maior. Hoje, o mercado pocle tanto quanto
a religião ou Irrrlur rrrrrir rnaterialidade exterior que só excepcionalmente
o poder: acrescenta aos objetos um ..algo mais,,
simbólico fu_ r'rrlllrvir ul intimidade de nossos corpos. Hoje, não existe um
gaz, porém tão poderoso quanto qualquer outro
símbolo. Os t('r'il(il'i() onde o mercado, com sua imponente maré generali-
objetos criam um sentido para além cle sua utiriclacle
ou de sua z;rtkrriì. niro esteja abrindo suas lojas. Sonham-se objetos que
beleza ou, melhor dizendo, sua utilidacle e suiÌ
beleza são Irrrrrslìrlrnarão nossos corpos, e este é o sonho mais feliz e ater-
subprodutos desse sentido que vem cla hierarquia
mercantil.
ror'171q1119. O desejo, não tendo encontrado um só objeto que
Não é à toa que os objetos que ocupam o centro
e o topo da
hierarquia sejam mais belos (mais bem projetaclos) o slrtislìrça nem ao menos transitoriamente, encontrou na cons-
do que os
que formam a base e os escalões médios. trrlçiro de objetos a partir do próprio corpo o non plus ultra
Sern dúvida, o mer_
cado não é uma nau dos insensatos, onde se atribui rrrrtlrr se reúnem dois mitos: beleza e juventude. Numa corrida
maior pon_
tuação a uma etiqueta sem que suas qualidiicles ( rìrÌtllÌ o tempo, o mercado propõe uma ficção consoladora:
sejam ,"qu",
examinadas. Contudo, a pontuação de uma marca,
uma etiqueta
;r vt'llrice pode ser adiada e possivelmente não agora, mas
ou uma firma sempre tem outros fundarnentos, que t;rlvcz em breve para sempre vencida.
-
extrapolam -
suas qualidades materiais, seu funcionamento Se a velhice indigna das mercadorias expulsou a tem-
ou a perÍ.eição de
seu projeto. porrrlidade da nossa vida diária (o tempo dos objetos só pesa
Tudo isto é sabiclo. Ainda assim, os objetos continuam
l)iu'tì cÌuem não pode substituí-los por outros mais novos),
escapando de nós. Tornaram_se tão valiosos para
a construção rlÌ.()ra nos oferecem objetos que alteram nosso corpo: próteses,
de uma identidade, são tão centrais no discurso
cla fantasia, srrbstâncias sintéticas, suportes artificiais, que entram no corpo
despejam tamanha infâmia sobre quem não
os possui, que rlrrlante intervenções que o modificam segundo as pautas de
parecem feitos da matéria resistente e inacessível
Frente a uma realidacle instável e fragmentária,
clos sonhos. wl clesígn que muda de tempos em tempos alguém ainda
em processo -
(luor os peitos chatos que se usavam hâ dez anos,
de velocíssimas metamorfoses, os objetos são uma ou a magreza
âncora, rlrr década de 60? No cenário público, os corpos devem ade-
porém uma âncora paradoxal, pois ela mesma
<Jeve mudar o
(luar-se à função perfeita, à prova de velhice, que antes
tempo todo, oxidar-se e destruir_se, entrar em se
obsolescência
no prriprio dia de sua estréia. com tais paradoxos ('sl)crava das mercadorias. Não há motivos para rejeitar essa
constrói_se
o porlcl rlos objetos: a liberdade daqueles que os consomem tt'cnologia cirúrgica, imitando o escândalo com que as senhoras
surgc cla Íõrr-ca necessidade do mercado rcspcitáveis do Novecentos se abstinham de tingir os cabelos.
de converter_nos em
consurnicl.rcs l)cnnanentes. A liberdade dos nossos Nlìo se trata de ficarmos horrorizados hoje, diante de inter-
sonhos de
objetos csc'tlì tr v.z clo ponto teatral mais poderoso, ve rrções que nós mesmos vamos considerar até inocentes den-
e coÌÌì
ela nos lìrlir. tnr de uma década. Ainda assim, precisamos perguntar o que
O rnurrrlo rlos olr.jetos se expandiu e continuará a t'strr sociedade está buscando em tais avatares da engenharia
expan_
dir-se' Até há porcirs tróclrcras, o que se podia comprar ttrrlroral ou do design de mercado.
e vender
32 c[.NAs DA vrDA pós-MoDEIìNA Abundância e
Pobreza 33
Quem fala em nossos sonhos de beleza? O que acon_ rs ltrrrotits clos anos 50, quando iam tomar chá na boate, na
tecerá conosco se conseguirmos não só prolongar a vida, mas Ir'rrlrrlivrr tlc serem as reproduções Kitsch de suas mães ou das
tarnbém simplesmente abolir a morte,Ì rutrlhclcs clo cinema. Como seu amigo (colete pintado à mão,
- - ('rÌì colcs rnais ou menos rasta, tatuagem no bíceps, aros), ela
Jovens vt'stc rrrrur fantasia de discoteca na qual o humor disputa o ter-
A Í'antasia é um tema e tanto. Nas discotccas, cle madru_ r('no corn o erotismo.
gada, os muito jovens interpretam a seu rnotlo um ritual. Trata_ A pura exterioridade do carnaval produz um efeito de
se do carnaval que todos pensavam definitivamente excluído srrpcr'l'ície, em que tudo está para ser visto por inteiro: é uma
da cultura urbana. Entretanto, o fim do século o clesenterra para rnotlu que se propõe a desnudar, opondo-se à sua função tra-
sair à noite. tlit'ional de oscilar entre o visto e o não visto. O traje de festa
Que ninguém se confunda: essa garota que parece a t' lrpoteose da insinuação; a fantasia de discoteca realiza quase
rr
prostituta de uma história em quadrinhos da ttrttvìrlu espanhola t'orrrpletamente o ideal de visibilidade total. O traje de festa não
é simplesmente uma máscara. Está Íìntasiacla cle prostituta, :rtlrrrite combinações fora de seu sistema: os sapatos, a bolsa,
mas seria um grave mal-entendido se a confunclíssernos com :rs.jtiias, o perfume devem pertencer a isso que o traje significa'
uma prostituta de verdade (que, por sua vez, jamais se vestiria A I'antasia vive de uma certa descontinuidade; sua beleza sur-
desse jeito, e sim no estilo das modelos). Confundi-Ìa com uma plccnclente provém da arte do imprevisto, da imaginação
prostituta equivaleria a crer, num carnaval dos anos 20, que cornbinatória mais que do cânon. Como a roupa hippie dos anos
a "dama antiga" ou a "bailarina russa" vinham mesmo clo século (r0, a fantasia de discoteca não exclui a combinação de diferen-
XVIII ou da Rússia. Essa garota pintou o rosto e distribuiu lcs temporalidades e origens: retrô punk, retrô romântico, retrô
sobre o corpo uma série de signos que já não significam o que cabaré, retrô folk, retrô militar, retrô Titanes en el Ring*, retrô
outrora significaram: a bÌusa preta e transparente nho é uma rrrsta, gigolô, femme fatale, demí-mondqlne, prostituta de Al-
blusa preta e transparente, os lábios vermelhos não são Ìábios rrroclóvar. Como na fantasia carnavalesca (que Madonna inter-
vermelhos, os seios quase nus não são seios nus e tampouco l)rcta com deliberada fidelidade), o prefixo "retrô" é um traço
as botinas rnilitares são botinas militares, nem a minissaia bru- biisico do estilo que aposta mais na reciclagem que na produção
tal, colacla nas cadeiras e no púbis, é uma minissaia. Essa garota rlo inteiramente novo. A originalidade é sintática, evoca o collage
escolheu urna máscara para usar de madrugada; não é uma c rrão rejeita uma estratégia de ready-made.
versãro d<l traje cle festa de sua mãe, nem o resultado cla nego_ A garota está vestida em dois tempos: há um contraponto
ciação entl'e urìì vcstido de princesa e as possibilidades eco_ (ìrìtre o corpo e sua fantasia. A roupa não foi escolhida para
nômicas da íìntília. E,la não se veste adaptando uma moda
alheia ao gosto clas disc.tecas da adolescência, como se vestiam N. do T.: Trata-se de um programa da televisão argentina semelhantc
'
ao "Telequete" brasileiro.
34 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA Abundâncìa e Pobreza 35
Essa iconografia
idade apenas, mostram a pose grave com a qual seus mode- dispostos a tudo, o que agora é lugar-comum'
de publicidade
los pretendem dissipar quaÌquer idéia da imaturidade que tem apenas um quarto de século' As modelos
as modelos
fascinava a Gombrowicz. Éramos jovens, afirrna Nizan, mas imitavam as atrizes ou a classe alta; hoje, imitam
modelos' Somente no
que ninguém me venha dizer que os 20 anos são a rnelhor ópoca mais jovens. As atrizes é que imitam as
em crise. A permanência, que era urì traço constitutivo ar dos tempos. A renovação incessante necessária ao mercado
da
autoridade, foi rompida pelo fluir da novidade. capitalista captura o mito da novidade permanente que também
Se é quase
impossível definir o permitido e o proibido, iì moral
deixa de impulsiona a juventude. Nunca as necessidades do mercado
ser um território de conflitos significativt_rs para converter_se estiveram afinadas tão precisamente ao imaginário de seus
num elenco de enunciaclos banais: a autoriclade percleu consumidores.
seu as_
pecto terrível e intimidatório (que potencializava
a rebelião) e O mercado promete uma forma do ideal de liberdade e,
só é autoridade quando exerce a força repressiva (como
costu_ na sua contraface, uma garantia de exclusão' Assim como o
ma fazer, com indesejável freqüência). Oncle antes se podia racismo se desnuda na entrada de algumas discotecas, cujos
enfrentar a proibição discursiva, hoje parece restar só
a polícia. porteiros são especialistas em diferenciações sociais, o mer-
Onde há poucas décadas estava a política, apareceram
depois cado escolhe aqueles que estarão em condições de, no seu in-
os movimentos sociais e hoje avançam as neo_rcligiões. terior, fazer suas escolhas. Todavia, como precisa ser universal'
O mercado ganha relevo e corteja a juventucle, depois ele enuncia seu discurso como se todos, nele, fossem iguais'
de instituí-Ìa como protagonista da maioria de seus rnitos. Os meios de comunicação reforçam essa idéia de igualdade na
A
esquina onde se encontram a hegemonia do mercaclo liberdade que é parte central das ideologias juvenis bem
e o peso
decadente da escoìa ilustra bem uma tenclência: pensantes, as quais desprezam as desigualdades reais a fim de
os .Jovens,,
passam da novela familiar de uma infância armar uma cultura estratificada porém igualmente magnetizada
cada vez mais breve
para o folhetim hiper-realista que põe em cena pelos eixos de identidade musical que se convertem em espaços
a dança clas
mercadorias frente aos que podem pagar por elas para a identidade de experiências. Só muito abaixo, nas mar-
e também
frente àqueles outros consumidores imaginários, aqueles gens da sociedade, esse acúmulo de camadas se racha' As
que
são mais pobres, aos quais a perspectiva de uma rachaduras, de todo modo, têm suas pontes simbólicas: o vi-
vicla de tra_
balho e sacrifício não atinge com a mesma efic/aciado deoclipe e a música pop criam a ilusão de uma continuidade
que a
seus avós, entre outros motivos porque eles sabem na qual as diferenças se fantasiam de escolhas que parecem
que não
conseguirão sequer o que seus avós conseguiram, individuais e isentas de motivação social' Se é certo, como se
ou porque disse, que se ama uma est;ela pop com o mesmo amor com
não querem conseguir só o que estes buscavam.
que se torce por um time de futebol, o caráter transocial desses
Consumidores efetivos ou consumidores imaginários,
afetos tranqüiliza a consciência de seus portadores, ainda que
os jovens cncontram no mercado de mercadorias
e bens simbó_
eles mesmos, depois, diferenciem cuidadosamente e até com
licos um deptisito clc objetos e discursos
fast preparados espe_ certo prazer esnobe os negros dos louros, segundo a lógica que
cialmente. A vclociclude de circulação e, portanto,
a obsoles_ também os classifica na portaria das discotecas' O impulso
cência acelcr.clu sc crlrnbinam numa alegoria
de juventude: no igualitárioque às vezes se crê encontrar na cultura dos jovens
mercado, as r.crc.rklr.i.s clevem ser novas, devem
ter o estiÌo tem seus limites nos preconceitos sociais e raciais, sexuais e
da moda, devem ciÌl)tar as mudanças mais insignificante.s
do morais.
!
42 CENAS DA VIDA PÓS-MoDERNA Abundância e Pobreza 43
de obstáculos (cogumelos, pontes, buracos, barreiras, labirin_ periódica, vai até o balcão e retorna com uma ficha' disposto
tos, arcos) por onde circula uma bola de metal: avança, a intervir para mudar a ordem da máquina'
retroce_
de e desaparece. Avança, retrocede e clesaparccc, rnas,
ao fazê_ Em outro lugar como esse, havia um cenário de fundo'
lo, produz música: a música que o jogaclor joga, com as mãos com escadaria e cascata, teto decorado I pintado de dourado'
nes-
nas laterais do painel horizontal, impedintlo clue a
esfera caia com uma fonte que jorra água de verdade' Provavelmente
ses ambiciosos restos de decoração estará a metáfora
no poço de onde já não sai até que tucro rcc()rncce mais que
uma
procuro para entender o jogo em questão' Esse salão era
vez. Observo que os jogadores goÌpeiarn, inclinarn, um
empurram
os pés e as laterais da máquina, que nho ó operacla .in"-u. Hoje, o cinema foi dividido, como uma imagem de
somente
cubí-
com as mãos, mas com todo o corpo. No pairrcl vcrtical,
as luzes
televisão processada por computador, em mais de cem
culos. onde a escuridão e o silêncio admitiam uma só
super-
iluminam diferentes setores, desenhos de anirttlris, anõrcs,
roletas,
fície iluminada e uma só fonte de som, agora há cem super-
naves espaciais, gorilas, florestas, praias, piscinlrs, rnullrcres,
sol_
dados, dinossauros, atletas. Os desenhos são vcrclacleiros fícies e cem sons. No entanto, nada tem o futuro assegurado:
de_
senhos (ao contrário das figuras geometrizaclas cla rnaioria em pouco tempo mais, a realidade virtual acabará com as
dos os ar-
vídeos); os sons também têm algo cìe real por(plc a esÍ-era telas de videogame e só os roqueiros nostáÌgicos ou
em fliperamas que
movimento bate fisicamente nos c,gurrrcros o. n.s barreiras tistas do revivalismo freqüentarão os poucos
de metal. não tiverem sido transformados, como as velhas iuke-boxes,
Essas máquinas (as que não têm vídeo) lernbram em peças de decoração retrô PoP'
As casas de videogames não podem evitar o "efeito
um cas_
sino: Las Vegas no espaço de dois metros por um. Não
estou
querendo dizer simplesmente que os cassinos espelunca" mesmo as mais luxuosas, que combinam
de Las Vegas
estão cheios dessas máquinas e de vídeos conto o Kitsch e um certo ar East Side nova-iorquino com escadas
de ferro e biombos de metal dobrável, ou grafismos de
os do outro lado.
Cada uma dessas máquinas sintetiza o ruído e a iÌuminação que se
cle
publicidade pós-moderna com as cores fosforescentes
um cassino, a repetição, a concentração, o infinito periódico efeito
de usavam hâ dez anos. Melhor dizendo, suportam esse
um cassino. AIérn disso, copiam a estética de Las Vegas (ou Nos bairros'
como uma das conseqüências de sua cenografia'
quem sabc seria rnelhor clizer que Las Vegas e
estas máquinas algumas mães que acompanham seus filhos parecem com-
têm a mesrna ostética?). portar'
pletamente fora de lugar, porque não sabem como se
Dou urna volta em U e chego à saída. Ali, a cada ìado
como evitar o golpe da luz ou do som: levaram seus filhos
it
da porta, há dois granclcs telões nos quais se reproduz presençil
um jogo um lugar inevitável porém perigoso e acreditam que sua
46 cLNAs r)A vrDA pós-MODERNA Abundância e Pobreza 47
ali poderá salvá-los de um vício que consideram terrível justa- gestos de quem sabe que está sendo olhado' O curioso metido
mente porque retira seus filhos daquelcs espaços imaginários e o exibicionista se distinguem negativamente na
paisagem dos
ou reais onde se pode exercer a vigilância. Scus filhos, tendo videogames.
os controles à mão, são mais hábeis do cluc elas. E também O "efeito espelunca" também tem a ver com a presença
mais inteligentes, porque não se perdern no Iabirinto gráfico, minoritária de mulheres. Algumas vão atrás dos namorados;
pelo quaÌ elas não se interessam, pois não cortrpreendem, ou outras, mais inclinadas ao jogo, em geral se restringem aos
não compreendem, porque não as intercssa. Essas mães não videogames geométricos, que são menos surpreendentes na
amenizam o "efeito espelunca"; aliás, o rcssaltun-r: estão ali co- proliferação de sons, mas impõem dificuldades mais intelec-
mo quem acompanha um alcoólatra até o bar, corn a fìnalidade tuais. o último Tetris tridimensional apresenta verdadeiros de-
inalcançável de que ele tome uns copos a rììolìos. safios à previsão de configurações espaciais sobre três planos
queda dos
Muito mais que a mecânica clos jogos, o "cf'cito espe- e um quarto eixo temporal que pauta a velocidade de
lunca" marca a presença de uma subcullunr cujos membros volumes. Seja como for, as mulheres são poucas e ninguém
valorizam feitos que o resto da socicclaclc nho consirlcra tanto. olha para elas. Não são ignoradas por serem mulheres' e sim
Por exemplo, ganhar da máquina, o que signil'icir vclìccr alguém porque o hábito induz a cruizar a menor quantidade possível
que não é teoricamente igual, mas sinr rculrrrcnle rliÍ'crcnte; por de olhares sobre os espaços reais; os espaços reais embotam
exemplo, ganhar sem obter outra rcconìltcnsir ulónr da simbó- o olhar e tiram sua acuidade e sua capacidade de enfoque
lica. (Nos cassinos, quanclcl se ganha clirs rniitluirri,, ,,, I.Ë.o-- refinado, necessários para enxergar bem os espaços das telas
pensas são, evidentemente, rnateriais. Nurrrl ou lìoult.ír casa de de vídeo. obviamente, há mais mulheres nas casas de videoga-
videogames cheguei a ver apostas, rìlas isso ó Íì.urrcamente mes situadas nos bairros residenciais (mais familiares' menores
excepcional). O "efeito espelunca" tarnbórrr tctÌì, crìtretanto, e mais pobres na sua oferta técnica) e nos enormes videódro-
algo de cassino: cada jogador está isolado para clcÍ'inir seu mos do centro, que interrompem a decadência de algumas ruas'
antes tradicionais, com uma decoração generosa e a
destino num combate singuÌar com a máquina, c é ìr rrrírc1uina, presença
e não aos outros, que se deve demonstrar destreza, irnpavidez, de seguranças, que muitas vezes são apresentados como um
perspicácia, arrojo e rapidez. Se é certo que muitas mltquinas dos serviços especiais oferecidos pela casa' Quando se descobre
permitem o desafio entre dois jogadores, o mais comum, nos a presença de um desses seguranças' o "efeito espelunca" au-
lugares públicos, é o enfrentamento individuaÌ do jogador com menta imediatamente.
sua m/rquina. Como no cassino, alguns observadores podem As máquinas estão para além de tudo o que se disse' Na
assistir à pcflonnunce dos jogadores mais habilidosos ou mais verdade,sãoumconjuntodeelementosdetemporalidades
sortud'os, mas, turnbém como nos cassinos, as maneiras ade- diversas: as alavancas e os botões de controle pertencem à era
quadas impõern sulÌ regra de bom-tom: não olhar tle modo a da mecânica; os vídeos, à era de imagens e sons digitalizados'
levar o outro a senlir-se olhado e vice-versa, não.fazer os A combinação dessas duas tecnologias produz um híbrido ainda
48 cLNAs DA vrDA pós-MoDERNA Abundância e Pobreza 49
mais incongruente que o teclado bem projetado de um com- Há máquinas que simulam um filme ruim e têm con-
putador barato. Assim, combater essas rnáquinas requer uma troles imitando pistolas ou rifles. Embora sua tecnologia seja
soma de habilidades de tipos diferentes: o manejo das alavancas mais soltsticad a, conceitualmente estão na pré-história do video-
e dos botões se inscreve na ordem dos reflexos corporais; en- game. O realismo das imagens produzidas por tais jogos é banal
tretanto o que se passa no vídeo e o que se deseja que ali acon- e incrível: banal porque traduz em ícones a independência
teça obedece a uma Ìógica extracorporal. Muitos dos jogos icônica original das imagens clássicas do videogame; incrível
trabalham com as dificuldades resultantes dessa heterogenei- porque, segundo as leis do videogame, só se pode admitir um
dade. Até que ponto posso acelerar meus reflexos corporais realismo naturalista perfeito (como a realidade virtual) e não a
para conseguir vencer a velocidade dos chips? Que nível de aproximação grosseira de imagens mais velhas do que a tecno-
dificuldade posso atingir, não pela previsão abstrata, mas pela logia que as torna possíveis. Poucos jogadores sutis escolhem
capacidade física de transformá-la em ações quc apareçam no essas máquinas, cujas regras, ainda por cima, são simplórias'
vídeo? São estas as perguntas cruciais de todo borl jogador e cuja imitação aproximada acaba sendo ofensiva à imaginação
de videogames. Os maus jogadores (como os maus bebedores,
totalmente livre do referente "naturalista" que se destaca nos
que só bebem para embriagar-se) não procuram respondê-las.
jogos mais bem projetados. Em geral, essas máquinas (como -
São facilmente identificáveis porque operam a alavanca como
as que apresentam partidas de futebol nas quais se enfrentam
se fossem sonâmbulos, apertam os botões o tempo todo, não
times realmente existentes) encontram-se nas entradas das
se sujeitam à rapidíssima lógica tle efèitos e conseqüências, não
casas de videogame, para atrair aqueles que não são verdadeiros
mudam de tática; vão até o fim do jogo como se curnprissem
aficcionados, que começam a jogar porque as máquinas thes
um destino inexorável, que nunca conseguem adiar ou transpor,
fazem lembrar de outra coisa e não por lhes mostrarem algo
através de uma pontuação mais elevada. Esses rnaus jogadores
de inteiramente novo.
(a maioria dos que vi) são arrebatados pela velocidade da
No mesmo local se encontram as máquinas que simulam
máquina e acreditam que a rapidez do reflexo físico poderá um
a condução de um carro pela estrada ou numa pista de corridas'
dia compensar a aceleração visuaÌ. Trabalham contra o tempo.
O bom jogador, por sua vez, trabalha com o tempo: é rápido Pode-se dizer que são as máquinas infantis por excelência'
apenas o bastante, não mais. Os maus jogadores vão contra Didáticas, com ligeiras mudanças de programação poderiam ser
a lógica do jogo, que não está só na aceleração física, mas numa incorporadas à auto-escola, que ensina a dirigir respeitando os
teoria dcl cncontro (como a balística) entre a aceleração dos sinais de trânsito, acelerando apropriadamente nas curvas e
movimentos e a tradução dos reflexos em decisões que retar- evitando os bólides que a qualquer momento podem apaÍeceÍ
dem o firn. Ralamcnte encontrei bons jogadores, mas já existem pela frente. Multiplicadoras de uma onipotência trivial, adap-
manuais de aut<l-ajuda nos Estados Unidos. Os jogadores não tiÌm-se aos desejos mais previsíveis. Seu didatismo não ensina
I
aprendem muito cprando se entregam ao videogame como se nada de novo; a emoção que produzem vem de uma variante
i
fosse um progratna de televisão um pouco mais participativo. I lripertecnológica dos carrinhos de bater, dos parques de diver-
{i
i
t
50 crÌNÁ.s r)A vrDA pós-MODEIìNA
Abundiìncia e pobreza. 57
sões. Os jogadores que não enten<Jem a abstração clo videogame Jli sc disse que os videogames são um ..carnaval de signi_
geométrico ou a iconografìa estilizada invcntada pelos Nintenclo Í'icantcs". Assim é interpretado o esvaziamento de narração que
recorrem a esses jogos, mais afìns ao imaginírrio clo mercado slcs rcalizam, mesmo os que, no título e no sistema de persona_
e à publicidade televisiva do que à estética do vicleódromo. gens, prometem uma história. Na realidade, o cumprimento
As máquinas clássicas (chamemos assirl àquelas que, rlcssl pror.nessa não faz diferença para o jogador, que não co_
como o Pacman, produzem seus próprios her(ris) são as mais lììcçu o.iogo para ver se este afinal revelará o desenlace de uma
originais. Elas deixam bem clara a lógica de variaçho e repetição Í'icção rprase ìnexistente, e sim para produzir um desenlac
e não_
que é a lei do jogo. E também assinalant clr.rc o segredo está ict'iotrtrl em seu duelo com a máquina. Os signos que evocam
.f
num limite nítido entre ciclos de peripéciais c vuzio de sentido
l)crsorìagens, oposições, hierarquias, inimigos e ajudantes (num
narrativo. Em cada unidade, se ganha ou sc pcrclc sem que se csl)urìtoso modelo estrutural-folk-televisivo) provam que é
altere qualquer relato. A progressho c<tnsistc crn acumular possívcl um sistema de personagens sem história. Da mesma
pontos a favor ou evitar o aumcnto clirs rlil'iculclades pela Íìrlrrra, existe ação sem narração em cada uma das unidades
abertura de saídas possíveis. Nho há r-rrna Iristtiriu, c sim uni- rl. .i.go: algo aproxima os videogames do tédio de um infinito
dades regulares, ao final das cpais o .j<lgacl<tr Í'ica sabendo se cíclico, como o desenho animado de gato e rato, ou o do papa_
ganhou ou perdeu. O videogarnc clíssico rcjcita a narrativa: o lógtras. Não é preciso recordar a unidade anterior para passar
suspense depende das contas c1r,rc a rnírcluina c o.jogaclclr fazem
l)iÌra iÌ seguinte. E mais: se o jogador se cletivesse em recorda_
depois de cada troca cle tela, a cacla acionarncnto clc botão ou
çõcs ficaria imediatamente atrasado na corrida imposta pelo
movimento de alavanca. Os jogos clássicos cstilizararl perso-
.jouo. O que existe, e os anúncios publicitários que acompanham
nagens e objetos do imaginário das histírrias cm cluadrinhos, os jogos o apresentam como argumento de venda, é
um íema,
da reportagem ou do filme de ação, mas sua voraciclaclc é maior gclalmente descrito da perspectiva do jogador, que o anúncio
nos personagens inventados. Porque existe Pacrnan, pode haver converte em primeira pessoa: você é um piloto de guerra que
aviões, discos voadores, animais pré-históricos, lutadores de rlcvc cumprir uma missão, sobrevoanclo um território monta-
caratê e princesas aprisionadas et.Ìl outros videogames. paoman nlroso desconhecido, etc., etc., etc. Também existem jogos
e Tetris são o tipo ideal de semiose a que foram aclaptadcls os "inteìectuais", para computadores
domiciliares, que cortejam a
personagens e objetos que vêm de âmbitos exteriores ao chip. boa consciência de seus usuários, assim convidados a construir
E estes ficarn tanto melhores quanto mais perderem os traços l'elutos completos, com tempo disponível para que imaginem
pertencclìtcs a tlirnensões gráficas ou narrativas historicamente al tcrnativas.
anteriorcs ao vicleogame. Entretanto, anuncia-se para um futuro Tema sem narração, tema em estado primitivo antes da
próxirno a sLrltclação clesses jogos clássicos pelo cruzamento pcripécia, dos desvios, das linhas secundárias. portanto: terna
entre filmes e jogos. Sontente então será reconhecido seu cará- scrn significantes. No meio, repetições organizadas em ciclos
ter clássico. tlrrc cxigem uma perfonnance cuja verdade não está no crrÍì-crr_
52 cENAs DA vtDA Pós-MoDERNA
ï|lï"n'.,
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
Ex.3 UC LJVV
56 CENAS DA VIDA PÓ5-MODERNA O sonho acordado 57
alguns minutos. Controle remoto. Anúncios: outra vez a dança das com bastante gelo; das garrafas corre um líquido cor de
das brancas com os negros; agora se vê bem que estão numa mel, que parece caramelo; de repente, todos se voltam para um
paisagem caribenha. Controle remoto: dois atores fazem cara canto da sala porque um rapaz de paletó branco empunhou seu
de idiota, encostam as testas e se olham. Anúncios: um carro sax. O médico do filme trabalha num hospício, onde enfrenta
desliza por uma estrada com paisagem montanhosa. Um homem os casos mais enigmáticos, inclusive o de um louco que parece
de quarenta e tantos anos abre a porta de um apartamento onde ter chegado de outro planeta para revelar a verdade sobre este;
estão um menino de l7 e uma garota da mesma idade, que se em casa, para distrair-se de tantas preocupações, o módico
assustam. Controle remoto. Volta o homem elegantíssimo; à também toca sax. Esta noite a televisão parece uma inesperada
direita e à esquerda estão sentados alguns políticos conhecidos homenagem a Charlie Parker e John Coltrane. Num momento
e uma mulher desconhecida. Deixa o controle rernoto sobre o qualquer, o canal de videoclipes passa Wayne Shorter.
braço da poltrona e se levanta. Da cozinhu, cscuta o começo Imagens demais e um dispositivo relativamente simples,
da entrevista. Depois de cinco minutos, o homem elegante se o controle remoto, tornaram possível o grande avanço interativo
despede até depois do intervalo comercial. Controle remoto. das últimas décadas, que não foi resultado de um desenvolvi-
Flash informativo. Anúncios. Comédia pastelho. Série policial. mento tecnológico da parte das grandes corporações, e sim dos
Anúncios. Um homem gordo suspira ao beijar uma mulher usuários comuns e correntes. Trata-se, é claro, do zapping.
adormecida, que parece reclamar ent sonhos. Anúncios. O controle remoto é uma máquina sintática, uma moviola
Um homem jovem (espócie de irrnão gêmeo de Richard caseira de resultados imprevisíveis e instantâneos, uma base de
Gere) termina de se barbear e passa uma colônia brilhante e poder simbólico que é exercido segundo leis que a televisão
gelatinosa pelo rosto e pelo peito nu; uma mulher jovem, lindís- ensinou a seus espectadores. Primeira lei: produzir a maior
sima, se veste; o homem, sem camisa, atravessa o sótão, vai até acumulação possível de imagens de alto impacto por unidade
o teÌefone, fica distraído por um tempo, pega um sax e começa de tempo e, paradoxalmente, baixa quantidade de informa-
a tocar; a mulher terminou de se vestir, elegante e formal; o ção por unidade de tempo ou alta quantidade de informação indife-
homem continua tocando sax; ela faz um gesto de contrarie- renciada (o que oferece, de todo modo, o "efeito de informa-
dade e sai; o homem já está na rua, em seu carro, e a pega; ção"). Segunda lei: extrair todas as conseqüências do fato de
parece que se conheciam. Uma garota muito nova anda de que a retroleitura dos discursos visuais ou sonoros, que,se
camiseta e meias pelo apartamento que ocupa com o marido sucedem no tempo, é impossível (exceto quando a pessoa gra-
ou narnorado; vai até o quarto, à procura de aÌguma coisa; a va um programa e rcafiza as operações próprias dos especia-
cama está clcsÍ'cita e ele, recostado na parede, a observa sor- listas em mídia e não dos telespectadores). A televisão explora
rindo; de repente, a garota levanta os lençóis e encontra um esse traço como uma qualidade que lhe permite uma enlou-
sax; ajoelha-se na ciÌrìla e começa a tocar. É o melhor da festa: quecida repetição de imagens; a velocidade do meio é superior
todo mundo está trocantkr olhares significativos, tomando bebi- à nossa capacidade de reter seus conteúdos. O meio é mais
58 CENAS DA VIDA PÓS-MoDEIÌNA
O sonho acordado 59
veloz do que aquilo que transmite. Estes, nessa velocidade, O switcher ancora os diretores de câmera num certo ambiente
competem até anularem-se os limites entre áudio e vídeo. (o paincl dcl noticiário, o salão das modelos-apresentadoras, a
Terceira Ìei: evitar a pausa e a retenção temporária do fluxo de pista c as arquibancadas do musical, os pátios e palacetes das
imagens, porque conspiram contra o tipo clc atenção mais telenovelas). O controle remoto não ancora ninguém em parte
adequada à estética clos meios de massa c aÍctanr o que é alguma: é a sintaxe irreverente e irresponsável do sonho pro-
considerado seu maior valor a variada repctiçho <Io mesmo. duzido por um inconsciente pós-moderno que embaralha ima-
Q3gtalei:
-
a montagem ideaÌ, ainda que nem scrÌrpre possível, gens planetárias. Os otimistas poderiam pensar que foi alcançada
combina planos muito breves; as câmeras clcvcrn rnover_se o a apoteosc da "obra aberta", o limite da arte aleatória num gi-
tempo todo, para encher o vídeo conr irnagcrrs cliferentes e gantcsco banco de imagens ready-mctde. Para pensar assim, é
assim evitar a mudança de canal. preciso cultivar uma indiferença cínica diante do probÌema da
Na observância dessas leis resiclc o succsso cla televisã-o, densidade semântica dessas imagens.
mas também o do zapping. Os alarrnuclos cxccutivos de emis_ O zctpping suscita uma série de questões interessantes.
soras e agências de publicidacle vôcrn n<t ?.ttltltine urn atentado Entre elas, evidentemente, a liberdade do espectador, exercida
à lealdade que os cspectaclores clcvc'iurrr c.'tirruar cr-rltivanclo. com a rapidez com que se percorreria um shopping center a
Contudo, seria razolívcl aceitarent o íìrto clo cluc ho.je, sem o bordo de um ônibus espacial atômico. Toda parada implica uma
zappíng, ninguém rnais assistir-ia ìr tclcvisão. O clue até quase atividade suplementar: enlaçar imagens, em vez de sobrepô-las,
meio século era uma atraçrro bascacla rra irnugc'r converteu- Íìrzer uma leitura baseada na subordinação sintática e não na
se numa atração sustentada na velocidadc. A tclcvisão foi coordenação (o zapping nos permite ler como se todas as ima-
desenvolvendo as possibilidades cle cortc e rììontagem que lhe gens/frases estivessem unidas por um "e", um "ou", ou urn
permitiarn suas três câmeras, sem suspeitar cle que a certa "nem", ou simplesmente separadas por pontos). Velhas leis da
altura desse caminho dos longos planos gerais fixos até a narração visual que legislavam sobre o ponto de vista, a pas-
dança do switcher
-o feitiço
se voÌtaria contra o Íeiticeiro: sagem de um tipo de plano a outro de abertura maior ou menor,
-
para os aficcionados, o controle remoto é muito n.rais clo que a duração correspondente dos planos, a superposição, o enca-
um syyiÍcher. cleamento, a fusão de imagens, são revogadas pelo zctpping.
O switcher é a arma dos cliretores cle câmera; muitas Não se trata, como pretendia Eisenstein, da "montagem sobe-
vezes seln que nerÌt por que, eles apertam seus botões c passam rana", e sim, muito mais, da desaparição da montagem, que
de um ponto clc vista a outro. O controle remoto é uma arma sempre supôs uma hierarquia de planos. O zapp1l1g demonstra
dos espcctirckr.cs cluc apertam botões fazendo cortes oncle os que a montagem c.aseira conhece uma única autoridade: o
diretores dc câr'u'r rrho tinham previsto e montando essa desejo à frente da mão que faz pulsar o controle remoto. Como
imagem truncacla cotìì outra imagem truncada, procluzicla por muitos dos fenômenos da indústria cultural, o zappíng parcco
outra câmera, ern outro canal ou em outro Ìugar do planeta. uma realização cheia de democracia: a montagem aulogc:r'itlrr
60 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA O sonho acordado 6l
pelo usuário, indústrias domiciliares de telespectadores produ- quase contemporânea das vanguardas, aproveita delas alguns
tivos, tripulantes livres da cápsula audiovisual, cooperativas procedinrentos, mas nunca os princípios construtivos. Não é
familiares de consumo simbólico onde a autoridade é duramen- preciso atacá-la ou defendê-la por isso; a televisão não melhora
te questionada, cidadãos participantes na cena pública eletrô- nem piora por tomar de empréstimo poucos ou muitos procedi-
nica, espectadores ativos que contradizem, a partir do controle mentos da arte "culta" deste século. Sua estética é própria. Se
remoto, as velhas teorias da manipulaÇão, zapper"- da hegemonia a percla clo silêncio, do vazio ou do branco atinge a televisão, não
cultural das elites, obstinados sabotadores das medições de é porque a arte moderna tenha realizado obras nas quais o silên-
audiência e, se houver ocasião, massas dispostas a rebelar-se cio e o vazio demonstrarem exageradamente a impossibilidade
diante dos Diktats dos capitalistas da mídia. de dizer e a necessidade do não dito para que algo possa ser dito.
A perda do silêncio e do vazio de imagem a que me refiro
- Seja como for, o zapping, na televisão, é o novo. Porém,
sua novidade exacerba algo que jta fazìa parte desse meio. O aqui é um problema próprio do discurso televisivo, imposto não
zapping faz com maior intensidaile o que a televisão comercial pela natureza desse veículo, e sim pelo uso que desenvolve
sempre fez, desde o início: no núcleo do discurso televisivo algumas de suas possibilidades técnicas e atrofia outras. Ritmo
sempre existiu o zapping, como modo de produçho de imagens acelerado e ausência de silêncio ou de vazio de imagem são
encadeadas tirando partido da presença cle mais de uma câmera cfèitos complementares: a televisão não pode arriscar-se, porque
no estúdio. A idéia de supar,* por coincidôncia semântica, tanto o silêncio quanto o branco (ou a permanência de uma
também remete à improvisaçho sobre pautas melódicas ou rìlesma imagem) chocam-se contra a cultura perceptiva que a
rítmicas prévias; a idéia de sapada de televisão conserva algo tclcvisão implantou e que seu público lhe devolve multiplicada
do improviso dentro de pautas bem rígidas. Entre elas, a pelo zapping. A mudança de canal é uma resposta não só frente
velocidade pensada como meio e fim do chamado "ritmo" iro silêncio, mas também frente à duração de um mesmo plano.
visual, que se corresponde com os lapsos curtos (cada vez l'or isso, a televisão de mercado precisa de "ritmo", embora
mais curtos) de atenção concentrada. Atenção e duração são :r sucessão vertiginosa de planos não constitua uma frase rítmi-
duas variáveis complementares e opostas: acredita-se que só t'rr c sim uma estratégia para evitar o zapping. Espera-se que
a curta duração pode reter a atenção. o rrlto impacto e a velocidade compensem a ausência de brancos
No caminho, perdeu-se o silêncio, um dos elementos t' silôncios, que devem ser evitados porque abrem as fendas
formais decisivos da arte moderna (de Miles Davis a John Ca- ;rclirs quais passa o aapping. Entretanto, é preciso considerar
ge, de Malevitch a Klee, de Dreyer a Antonioni). A televisão, st' rrão acontece exatamente o contrário: que o zappirzg seja
possível justamente pela falta de ritmo de um discurso visual
sobrccarregado, que pode ser cortado em qualquer parte urììir
* N. do T.: Ern castcllr.ulo, zapar significa "trabalhar com sapa" ou
v('z (lue todas as partes são equivalentes. A velocidaclc c o
"fazer trabalho dc sapa". Scgundo o Aurélio, o termo vem do italiano
prccrrchimento completo do tempo não são leis cla lck:visiro
zappa, "enxadi'.
O sonho acordado 63
62 c!rNAS DA vrDA Pós-MODETÌNA
como possibilidade virtual e sim da televisão como produtora Deleitar-se com a repetição de estruturas conhecidas é
l)razeroso e tranqüilizador. Trata-se de um deleite
perfeitamente
de mercadorias cujo custo é gigantesco e, em conseqüência
lcgítimo tanto para as culturas populares quanto para os cos-
disto, os riscos das apostas devem restringir-se ao mínimo.
Por tudo isto surge uma forma de ìeitura e uma forma turnes clas elites letradas. A repetição é uma máquina de produzir
de memória: alguns fragmentos de imagens, os (lue conseguem ulÌla suave Í'eÌicidade, na qual a desordem semântica, ideológica
fixar-se com o peso do icônico, são reconheciclos, lembrados, ou experiencial do mundo encontra um reordenamento fìnal e
citados; outros são desprezados e se repetem inÍ'initamente sem rerÌriÌnsos cle restauração parcial da ordem: os finais de folhetim
aborrecer a ninguém, pois, na verdade, ninguónt os vê. São peierl as coisas em seu lugar e isto agrada inclusive aos sujeitos
imagens de preenchimento, maré gelatinosa orrcle Í'lLrtuam, afun- lì'actais e descentrados da pós-modernidade. Não é preciso
dam e emergem os ícones reconhecíveis, cluc trcccssitam dessa reiterar toclos os dias o que já se disse vinte vezes a propósito
massa móbil de imagens justamente para poclcr clilèrenciar-se clo Ícllhetim, apenas para buscar antecedentes pretigiosos para
dela, despertar surpresa e circular com rapidez: as imagens a televisão, que na verdade não os reclama nem deles necessita.
mais atraentes precisam de um "meio tlc contraste". Existem Caberia, antes, perguntar se os efeitos estéticos da repetição
porque existe uma infantaria dc intagens tltre pavirnentlìm o tclevisiva evocam mais a serialidade de Alexandre Dumas que
caminho, embora não scjarn lembraclls. As ittragctrs de preen- a clo justamente esquecido Paul Feval. Quer dizer: no folhetim
chimento, cadavez mais tttttlerosits, não slto notadas enquanto oitocentista incluíam-se Alexandre Dumas e Paul Feval. Conhe-
existirem as outras irnagens; quanclo cstas colÌleçlÌltì a escassear, ço rnuito bem aqueles que poderiam ser os Paul Feval da televi-
zapping. Tudo isso demora mais para scr clcscrito clo que para sho, rnas seria mais difícil distinguir seus Dumas. Se essa com-
acontecer efetivamente. paração parece improcedente, é preciso considerar que tam-
As imagens de preenchimento se repr'tL'nì rnltis que as l.louco estaria bem ajustada a comparação entre teìevisão e
imagens "afortunadas". Estas, poróm, também se rcpetern. Os lìrlhetim clo século XIX. Até Umberto Eco pensa que Balzac
admiraclores intelectuais da estética televisiva reconhecem que ó rrais interessante que os autores de Dallas; na verdade, só
a repetição é um de seus traços e, com erudição variável de rììcsrrìo quem nunca viu Dallas ou nunca leu Balzac poderia
caso a caso, rastreiam suas origens nas culturas folclóricas, inraginar uma demonstração em sentido contrário.
nos espetáculos da praça pública, nas marionetes, no grand- A novidade da televisão é tal que seria necessário lê-la
guignol, no Íìrlhetim oitocentista, no melodrama, etc. Não preten- cÌìì seus recursos originais. Comecei pelo zappìng porque existe
do cletcr-rnc ncsscs cletalhes, mas convenhamos: a repetição serial irí urna verdade do discurso televisivo. É um modelo de sintaxe
da televisiul corncrcial é como a de outras artes e discursos (clucr dizer, de uma operação decisiva: a relação de uma imagem
cujo prestígio lìri lcgitirnado pelo tempo. Como o folhetim, a corn outra imagem), que a televisão manejou antes que seus
televisão rcpctc LrrììiÌ estrutura, um esquema de personagens, cspcctadores inventassem esse uso "interativo" do controlo
um conjunto pequeno clc tipos psicológicos e morais, um
tctìloto. A televisão realmente existente no mercado corncrciltl
sistema de peripéciais c aló uma ordem de peripécias.
O sonho acordado 65
64 cENAS DA vrDA Pós-MoDERNA
está obrigada a uma quantidade infinita de horas anuais; assim cacla há décadas, a nova televisão dos últimos anos aplica a
como seus espectadores se vêem solicitados por imagens de- ccrzidura cle remendos que assinalam a realidade: corrupção
mais, também a televisão deve produzir demais. A relação política, Aids, excessos sexuais, homossexualidade, negociatas
qualitativa entre uma imagcm e outra, na qual emerge uma públicas e privadas.
terceira imagem ideal que permite construir sentidos, é quase A estética seriada precisa de um sistema de traços sim-
impossível na linha ininterrupta de montagem que o mercado ples, cuja condição é o desvanecimento dos matizes' O ma-
exige da televisão comercial. O acaso do encontro de imagens niqueísrno psicológico e moral baixa o nível de problema-
não é, portanto, uma escolha estética que aproxime a televisão ticiclacle e costura as fendas cle desestruturação formaÌ e ideo-
l(rgica. A emergência de uma moda intelectual que começou
da arte aleatória, e sim um último recurso no qual a televisão -
retrocede porque tem que transrnitir centenas de milhares de lrír alguns anos a interessar-se pelo Kitsch no rádio e nas tele-
novelas e terminou por consumi-lo não basta para responder
imagens por semana. - à cultura de massa, que
A repetição serial é uma saída para o impasse: centenas cle rnodo convicente às condenações
a clernonizaram muitas vezes sem conhecê-la bem. Ao elitismo
de horas de televisão semanais (pelo ar e a cabo) seriam inviá-
clas posições mais críticas não deveria opor-se uma inversão
veis se cada unidade cle programa pretendesse ter um formato
próprio. O que foi um traço da literatura popular, ou do cinema simétrica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos
desse gênero, do circo, clo teatro itinerante, da múrsica do cam- encantos da indústria cultural.
po, do melodrama (todos se aprcssam em recordá-lo citando Os programas de variedades, humorísticos' infantis ou
mais uma vez os antecedentes cuja ancianidade se ergueria em nrusicais encontram na repetição serial uma tela fixa (como um
fator de prestígio) é uma resposta exigida pelo sistema de roteiro de ferro) sobre a qual o improviso tece a repetição com
produção. A série evita os imprevistos estilísticos e estruturais. variações. Essa novidade moderada funciona em todo o sistema
Na teledramaturgia de seriados, o sistema binário de persona- produtivo, atingindo desde os roteiristas até os atores; e não
gens permite construir relatos com a rapidez exigida por pro- cleixa de ser econômica, por garantir o menor investimento de
dutores que gravam três ou quatro episódios por dia; os atores tcmpo, ao permitir a repetição de cenários e figurinos. A tele-
sabem perfeitamente a que procedimentos devem ater-se, os visão não renuncia de boa vontade ao que já demonstrou sua
cenários respondem a umas poucas tipologias bem identifi- cficácia e isto não se opõe ao fluxo ininterrupto de imagens;
cáveis; os conflitos enfrentam forças morais e psicológicas pelo contrário, é justamente o que o torna viável. Os melhores
cuja previsibiliclacle só é interrompida pela complicação da c os piores programas podem ser realizados dentro de módulos
peripécia que, por um lado, recorre aos tópicos clássicos, e, seriais: estes, por si sós, não garantem bons resultados; asse-
por outro, os atualiza com pacotes de referências imediatas que guram, isto sim, um modo de produção em que a repetição
ttazem para a telcclratnaturgia os assuntos em pauta nos pro- compensa as lacunas da improvisação interpretativa e técnica'
gramas noticiostts. Sobrc a mesma trama de paixões, codifi- No entanto, por mais detestável que pareça a afirmação, a rc-
66 CENAS DA VIDÂ PÓS-MODERNA O sonho acordado 67
petição banaliza as improvisações interpretativas e se converte carisma eletrônico. A televisíbilidade é uma condição que deve
numa estratégia para sair do impasse, ajustada conveniente- ser cJominada não só pelos atores mas por todos os que apa-
mente à escassez do tempo de produção televisivo. Como em recem no vídeo. Tem a importância da fotogenia nas décadas
qualquer outra arte, a improvisação não é uma qualidade subs- clássicas cle Hollywood. Assegura que as imagens pertençam
tancial e sim um conjunto de operações técnicas e retóricas. a urìr rresmo sistema de apresentação visual, as homogeneíza
O fato de serem os humoristas e os atores de novelas aqueles c as torna imediatamente reconhecíveis. Permite a variedade
que recorrem com maior freqüência à improvisação testemunha porque sustenta a unidade profunda que sutura as desconti-
mais sobre o modo de produção em condições de mercado do nr.riclaclcs cntre os diferentes programas (a publicidade colabora
que sobre a influência daquilo que há várias décadas foi uma irrnlrlanrente nessa tarefa) . A televisibilidade é o fluido que dá
inovação teatral. A improvisação televisiva responde antes à corrsistência à televisão e assegura um reconhecimento ime-
lógica da produção seriada capitalista do que à estética. tlillo por parte de seu público. Se for respeitada, é possível
Os cstilos televisivos trazem, muito cÌaramente, as mar- irl(crar algumas regras: o tom de alguns intelectuais eletrônicos,
cas de um discurso serializado: comédias, dramas, crítica de inrportaclo da academia ou do jornaÌismo escrito, conserva o
costumes e programas de variedades remetem menos a uma rrtnrtivo da televisibiticÌade sem pagar tributo a seus modelos
tipologia de gêneros (o conflito psicossocial, os avatares do nlris cclmuns. Esse tom faz valer sua diferença: diante do
sentimento, o enigma do crirne, a apresentação da juventude, Iolvclinho de todo dia, abre-se um parêntese de calma que
da dança e da música) do que a um estilo padrão: o show, tribu- tlcslrfia a "tirania do tempo" e demonstra que a televisão não
tário das variedades humorísticas, musicais ou circences. O irrrpecle necessariamente um momento de reflexão de vez em
show paira sobre todas as demais matrizes estilísticas: show tlrnrnclo, desde que alguns traços se mantenham: forte presença
de notícias, show de reportagens, show de gols, show noturno icônica, movimentos de câmera arbitrários' mas aos quais já
de política, distinto do show da meia-noite ou do show da tarde, ('starÌìos habituados, imagens digitalizadas, atenção à palavra do
show de seriados, show infantil, show humorístico, show pri blico, sentimentalismo.
íntimo de subjetividades. O denominador comum é a misce- A televisão partilha do que antes repartiu, e reparte o que
lânea. l()rììou um pouco de cada parte, mas sempre conforme o
Esse eslilo padrão funda a televisibilidade. Os políticos, pr incípio de que, assim como o público é seu melhor intérprete
por exernplo, procuram construir suas máscaras segundo essa (tllí a Íorça da audiência para a televisão de mercado), a tele-
lógica e, erÌì conseqüência disto, tentam memorizar tipos de visrro entende cle públicos pelo menos tanto quanto o público
diálogo, gcstualidadcs, ritmos verbais; devem ser especialistas t'rrtcncle de televisão. Espelho democrático e plebeu, espelho da
em transiçõcs rápidas, mudanças de velocidade e direção para Iotrrliclacle dos públicos que, além disso, começou a refletir cada
evitar o tédio cla audiôncia. A destreza do político televisivo é rrrrr rlc seus fragmentos, a televisão constitui seus referentcs
aprendida na escola audiovisual que emite certificados de t.,rrro públicos e seus públicos como referentes. Como roslx)lì-
68 cuNAs DÁ vrDA pós-MODERNA O sonho acordado 69
der à pergunta sobre se o público fala como as estrelas do star- char da gente imitando o jeito de falar da minha senhora.
system ou as estrelas do s/ar-^rystent falam como seu público? Disse a ele para não se meter comigo. Veja bem, sou uma
Esses traços podem proteger os discursos televisivos da pessoa boa, me considero uma pessoa boa. Aí vieram
descontinuidade do zappingl a todo momento, sempre se sabe uns vizinhos e disseram a ele que não provocasse o meu
onde se está e pode-se abandonar um programa e passar para temperamento. Reconheço que meu temperamento é
outro com a garantia de que num segundo se compreenderá bastante forte. E, vou lhe contar, saímos no braço. Dei-
o que estiver acontecendo. Votamos com o controlc remoto. lhe uns safanões e depois brigamos. Eram três, mais ou
A competição entre canais é a disputa pelo lugar (imaginário) rnenos, e eu estava sozinho. Não me lembro muito bem.
onde o zctppíng seja detido. Apesar de tudo, as imagens sig-
Apresentador: E depois?
nificam cadayez menos e, paradoxalmente, são cacla vez mais
importantes. De um ponto de vista Íbrmal, a televisão, que NN: Me pegaram, me deram um chute na cabeça. Sangrei
parece a vencedora Íelriz de todos os discursos, chegou a uma na boca. Olha só como fiquei com o lábio cortado!
encruzilhada.
Apresentador: Por que decidiu se entregar? Por que o
senhor veio até nossos estúdios?
Gravação ao vivo
NN: Eh... eu não tinha para onde ir, e não me considero
DiáÌogo visto e ouvido, ao cntardecer, num programa
jornalístico transrnitido peÌo canal estatal. um assassino, ou...
Apresentador: Mas o senhor matou ou não matou?
Apresentador: Este programa nos faz uma surpresa a
cada momento. Agora chegou uma das grancles. Vamos NN: Eh... foi pena o que aconteceu. Não sei se ficou
anunciá-la com todo o cuidado. Este senhor veio aos vivo, o garoto. Tomara que sim!
nossos estúdios e disse que tinha acabado de matar uma
Apresentador: Acha que o matou?
pessoa, e gostaria de se entregar no ar...
NN: Não sei, não...
NN: Não sei se o matei. Brigamos, e eu me defendi.
Apresenrador: O que o senhor usou para acertá-lo?
Aprasentarlor: Conte-nos o que aconteceu.
NN: Uma faca.
NN: Ontern à tarde estávamos esvaziando umas garrafas
de vinho conr rninha esposa e outros amigos, quando Apresentador: O senhor sabe que vai sair daqui preso,
alguns clelcs conrcçaram a gozar da minha mulher porque
não sabe?
ela tem lábio lcporino. Então esse rapaz começou a debo- Nl/: Tudo bem, acredito na justiça.
r
mas também convence como verdadeira: alguém o viu com praticado pelos telejornais pelo fato de que as gravações ao
-
seus próprios olhos, não foi contado por outrem. A gravação vivo de notícias fbram pré-vistos por alguém em algum lugar
ao vivo põe o espectador nos olhos da câmera e ninguém pre- da emissora. A sintaxe dessas gravações ao vivo transmitidas
cisa contar nada para ele, porque é como se estivesse ali mes- em VT não foi montada por si só. No happening de gravação
mo, ou ainda melhor, porque não teria podido aproximar-se a ao vivo transmitida ao vivo, cria-se a ilusão de que não existe
ponto de captar um trejeito imperceptível com a nitidez do pri- um narrador: os personagens se impõem sem o filtro de
meiro plano, ou talvez se tivesse distraído com detalhes secun- nenhuma intermediação, exceto a intermediação institucional
dários, que a câmera retira de seu quadro. televisiva que, neste caso, procura apagar suas marcas'
Por isso, o homem se acusa de assassinato diante de uma Esse happening duplamente ao vivo é um pedaço de vida
câmera de televisão: como espectador, quer ocupar um espaço que autoriza não somente suas próprias imagens, mas também,
de verdade no qual suas palavras soarão mais críveis. Diz que
por procuração, todas as imagens televisivas. Sua verdade é
confia justiça, mas não se dirigiu a um juiz, a fim de confes-
na
tão grancle que abarca outras gravações ao vivo transmitidas
em VT e ainda as gravações que sequer foram feitas ao vivo,
sar sua ação. De todas as instituições, a teÌevisão ao vivo foi a
que lhe pareceu a mais digna de confiança: ninguém poderá e sim com cortes. A verdade da televisão está na gravação ao
distorcer nem seus gestos nem suas afirmações e, mais ainda,
vivo transmitida ao vivo, não só por ser esta sua novidade
técnica original, mas também porque nela se funda um dos
nenhum policial poderá forçá-lo adizer mais do que deseja, nem
argumentos de credibilidade do veículo: diante da opacidade
deixá-lo incomunicável por horas. A televisão se converteu em
crescente de outras instituições, diante da complexidade infernal
guarda de seu habeas corpus.
dos problemas públicos, a televisão apresenta o que ocontece
Os espectadores, por sua vez, recebem o que procura-
ta! como esíá acontecendo e, em seu cenário, as coisas parecem
ram: não uma maior verossimilhança (que é produto de opera-
sempre mais verdadeiras e mais simples. Investida da autoridade
ções discursivas e retóricas) mas sim, ao vivo, a vida. O happening,
que as igrejas, os partidos e as escolas perderam, a televisão faz
quer dizer, o fato no seu fazer-se: tanto mais valioso quanto
soar a voz de uma verdade que todo mundo pode compreender
maior for a desconfiança despertada por outros fatos públicos,
rapidamente. A epistemologia televisiva é, neste sentido, tão
cujas leis e cujos atores não são bem conhecidos e tampouco
realista quanto populista, e submeteu a uma demolidora crítica
as normas de funcionamento de suas instituições (quer dizer,
prática todos os paradigmas de transmissão do saber conhe-
todas aquelas prírticas que, como a política, nem sempre podem
cidos pela cultura Ìetrada.
ser mostraclirs (nquanto acontecem). No happening, entretanlo,
O pacto com o público se apóia nessa ìdeologia de base
a televisiro constlrii um modo de apresentação que amplia e clue ninguém ousaria criticar desenterrando argumentos eli-
aperfeiçoa o rsulisrno (apesar de tudo, bastante alto) de outros tistas. A televisão éparte de um mundo laico onde não existcrn
formatos: o hupltanirtg, transmitido ao vivo se diferencia da gra- autoridades cujo poder seja oriundo somente das tradiçõrcs, tllr
vação ao vivo transrniticla em VT modo freqüentemente lcvelação, da origem. Se funda outros mitos e tlttlrits lttttoti
-
76 cF.NAs DA vrDA pós-M()DERNA O sonho acordado 77
dades, não o faz através de uma reconstituição do passado, e Todos podemos estar diante das câmeras porque estão
sim por uma configuração do presente e, queiramos ou não, luli figuras-chave que operam como "âncoras"; se a televisão
provavelmente do futuro. A televisão tende ao igualitarismo s(r nos mostrasse a nós mesmos, seria um pesadelo hiper-
porque, até o momento, sua forma de competir no mercado rcalista. Em contraste, ela também nos mostra seus astros,
baseia-se nos níveis de audiência. Embora alguns publicitários scres excepcionais que, ao mesmo tempo, falam uma língua
inteligentes opinem que, acima dos dez pontos de audiência, cornpletamente familiar e não evitam as banalidades cotidianas.
a única coisa que se pode vender é a eletricidade necessária "Cultura espelho" de seu público mediada pela aura do star-
para manter ligados os televisores, e não as mercadorias anun- ,ty.rtem. Nesse paradoxo do democratismo televisivo, funda-se
ciadas nos intervalos, o nível de audiência define as políticas uma cultura comum que permite reconhecer a televisão como
das emissoras comuns (e, com uma estimativa de público mais um espaço mítico (aí estão suas estrelas, que são as verda-
preocupada com a fragmentação por setores, também a das cleiras estrelas da sociedade de massa) e, ao mesmo tempo,
emissoras a cabo e a da televisão codificada). próximo: Vênus na cozinha, a cozinha de Vênus. O público fala
cleigual para igual com as estrelas, dirige-se a elas pelo primeiro
A "nova teÌevisão" se concentra em formatos como o
nome, confia nelas porque estão eletronicamente próximas e
reality show e os programas participativos: quer dizer, aqueles
porque as estrelas, em vez de basearem seu carisma na distância
que, por definição, são impossíveis sem púbÌico de auditório,
c na indiferença, procuram-no na proximidade de ideologia e
diante das câmeras, em contraste com um tipo mais arcaico
scntimentos.
de programa, que podia basear-se na concorrência entre partici-
A televisão apresenta as estrelas e seu público navegando
pantes do público, ou ainda receber o público no estúdio, mas
rìo rìesmo fluxo cultural. Essa comunidade de sentidos reforça
não transferia esses recursos para o resto da programação. Ho-
rurn imaginário igualitarista e, ao mesmo tempo, paternalista' O
je em dia, pelo contrário, até os programas de debate político
ptiblico recorre à televisão para alcançar aquelas coisas que as
mais reflexivos têm público no estúdio, recebem ligações tele-
irìstituições não garantem: justiça, indenizações, atenção. É di-
fônicas e convidam não-especialistas para a mesma mesa, jus-
l'ícil afirmar que a televisão seja mais eficaz do que as insti-
tamente por sua condição de não-especialistas. Como na trrições para assegurar essas demandas, mas sem dúvida parece
conhecida boutede de Andy Warhol, a televisão promete que ser, uma vez que não precisa ater-se a adiamentos, prazos,
um dia todos iremos ao ar, já que não existem qualidades pr<lcedimentos formais que retardem ou transfiram as soluções.
específ icas, mas só "acontecimentos" que podem levar-nos à O cenário televisivo é como o paredão no jogo de squash: o
televisho, à Íìrlta de "acontecimentos", nossa qualidade de cida- rcbote pode não chegar onde se espera, mas sempre tem rebo-
dãos é sr-rÍ'icicntc para estarmos ali. Neste ponto, a televisão tc. O cenário institucional, mesmo o mais aperfeiçoado, não
comercial vivc clc unt imaginário fortemente nivelador e igua- tcrn nem poderia ter essa qualidade instantânea. O cenário
litarista. Mas nho sti tlestc. tclcvisivo vive do impulso, enquanto o cenário institucional
l-
78 CENAS DA VIDA PÓs-MODERNA O sonho acorltr/o 7()
cumpre adequadamente suas funções, se processar com eficá- seja, efetivamente, seu. A dinâmica capitalista desse meio passir
cia os impulsos coletivos. O cenário televisivo é rápiclo e parece por cima de tudo o que puder diferenciar a televisão do público
transparente; o cenário institucional é lento e suas formas (jus- e, portanto, fica impedida de desenvolver estratégias de paga-
tamente as formas que tornam possível a existência de insti- rnento apenas a longo prazo (como as estratégias empregaclas
tuições) são complicadas até a opacidade que engendra a falta pela indústria editorial ou discográfica, que vive um equilíbrio
de esperança. sempre instável entre os gostos do mercado e o risco de um
Embora seja possíveÌ demonstrar que a televisão não é investimento cujo retorno pode não ser imediato). O público,
melhor do que as outras instituições para conseguir mais se-
por sua vez, encontra na televisão uma instância que as ins-
gurança ou um serviço púbÌico melhor, eÌa vive do que seu
tituições não parecem conceder aos marginais, a quem está
público oferece e taÌvez o retribua, a curto prazo, com algo do
atravessando situações excepcionais, àqueles que carecem do
que esse público procura nela. O suposto assassino que corre
saber necessário para movimentar-se nos ziguezagues do ser-
a uma emissora para fazer sua confissão encontra ali mais
viço público, aos que desconfiam da mediação política, aos que
garantias do que na instituição policial: maior velocidade da
fracassaram em suas tentativas de ser ouvidos em outros es-
máquina burocrática, maior segurança pessoal depois da divul-
paços. A televisão joga com transparência e, nesse jogo, res-
gação do fato, ajuda para a família, que ficará entregue à própria
ponde a uma demanda por rapidez, eficácia, intervenção per-
sorte enquanto estiver preso, um advogado gratuito e mais
sonalizada, atenção às manifestações da subjetividade e par-
interessado em seu caso do que o def'ensor público que o Esta-
do lhe ofereceria. Paternalismo televisivo numa época em que ticularismo que seu público não encontra em outra parte. Os
o paternalismo político, nas grandes cidades, já não pode sujeitos televisivos adoram a proximidade (mesmo sendo uma
garantir o intercâmbio de serviços que antes implementava, proximidade imaginária) e a televisão lhes repete que ela, a
num universo menos superpovoado. No lugar do caudilho polí- única, está sempre perto. Na tormenta relacional das grandes
tico, que fazia a mediação entre seus seguidores e as institui- cidades, a televisão promete comunidades imaginárias e nelas
ções, a estreÌa televisiva é uma mediadora sem memrjria, que vivem aqueles que hoje estão céticos quanto à possibiÌidade cle
esquece tudo entre um intervalo comercial e o outro, e cujo fundar ou fortalecer outras comunidades.
poder não reside na solução dos problemas de seus protegidos, Há inclusive quem pense que o ato de partilhar de un'r
e sim na oÍerta de um espaço de reivindicações e, também, aparelho de televisão, instalado na sala ou na cozinha como um
indenizaçires sirnbólicas. Como os solitários que vão à televisão totem tecnológico, une com novos laços aqueÌes que estão
em busca dc narnoradas, os esquecidos e os rejeitados procuram sentados diante do mesmo vídeo. Videofamílias, às quais o
nela o ouviclo qr.re não encontraram em outra parte. enfraquecimento das relações de autoridade, paternidade e Í'ilil-
A televisão rcconhece seu público, entre outras coisas, ção tradicionais teria lançado ao limite da dissolução, voltarirrrrr
porque necessita dcssc rcconhecimento para que seu púbÌico a unir-se no calor da luz cromática. É Olficit dizer se t:ssrr bclrr
80 cENAs DA vrDA Pós-MoDERNA O sonho acordado 8I
ficção neoantropológica tem mesmo alguma veracidade, além saber afinal de que se trata, já que todo mundo o faz, ou porque
das boas intenções. o gosto pelo Kitsch não se esgotou de todo nos anos 60). Os
Ainda assim, não há motivos para desconfiar do fato de cÌichês da televisão passam como contra-senhas à Ìíngua
que certos heróis das subculturas juvenis hoje possam ser cotidiana, na qual muitas vezes a própria TV vai buscá-los, para
conhecidos e ouvidos pelos mais velhos; a televisão os pôs ali em seguida devolvê-los sob uma forma generalizada. A moda
e, se o fez, assegurou-os contra o potencial subversivo ou sim- e as mudanças de look são hoje mais televisivos do que cine-
plesmente antiadultos que tinham quando seus semelhantes es- matográficos: as aulas de ginástica ensinam a modelar corpos
tavam confinados aos filmes e aos discos. Assim como tende femininos como os que aparecem na televisão; a programação
a transpor as classes sociais, a televisão também transpõe algu- televisiva também contribuiu para legitimar as intervenções
mas fronteiras de idade e sexo: os programas para adolescentes cirúrgicas embelezadoras, propondo um espelho ideal, no qual
são vistos por crianças e adultos; os seriados passam, com li- todas as idades são cada vez mais indistinguíveis. Nem todos
geiras modificações, nos horários noturnos; e, basicamente, os esses desenvolvimentos de um processo identificatório têm a
anúncios comerciais da programação do dia ou da semana televisão como único pólo ativo, mas ela sonda o que o público
podem ser vistos a qualquer hora e põem em circulação, diante viu no vídeo para tornar a registrá-lo, generalizá-lo e então
de públicos não-específicos, imagens específicas. A sintaxe submetê-lo a uma nova sondagem, e assim sucessivamente,
aleatória do zapping provoca o encontro, ainda que fugacíssimo, num círculo hermenêutico e produtivo no quaÌ é difícil encontrar
entre um aposentado e um videoclipe, entre um programa para o ponto verdadeiramente original.
o lar e um homem em busca de um show internacional de gols, A sociedade vive em estado de televisão. No entanto,
entre um metaleiro e um pastor eletrônico. contra a ideologia neopopulista que encontra no vídeo a energia
Em algumas horas do dia ou da noite, milhões de pes- sob cujo influxo podem ser restaurados os laços sociais que
soas estão vendo televisão na mesma cidade ou no mesmo a modernidade corroeu, seria necessário verificar até que ponto
país. Isso gera algo mais do que pontos de audiência a mais. a televisão precisa de uma sociedade em que esses laços sejam
Gera, sem dúvida, um sistema retórico cujas figuras passam fracos, para apresentar-se diante dela como a verdadeira de-
para o discurso cotidiano: se a televisão fala como nós, nós fensora de uma comunidade democrática e eletrônica ameaçada
também falamos como a televisão. Na cultura cotidiana de con- e desprezada por aqueles que não ouvem suas vozes nem dão
sumo rlais fugaz, as piadas, as maneiras de dizer, as persona- importância a suas reivindicações. Não digo que essa ideologia
gens da televisão Íìzem parte de uma caixa de ferramentas cujo seja indispensável à existência de "qualquer" televisão; digo que
domínio assegura um pertencimento; quem não as conhece ou ela convém a esta, que hoje conhecemos: a mimese entre tele-
é esnobe ou vem cle fora. Até as elites intelectuais, quando não visão e público não é, como provavelmente não seria qualquer
praticam a condcnação e o rechaço à televisão, acham simpá- fusão completa, o melhor que pode acontecer ao mundo na
tico o cultivo dos clichôs aprendidos ao assistir à TV (para pós-modernidade. Nessa sobreposição, a possibilidade de crítica
82 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA
O sonltt, acordado 83
à televisão realmente existente fica obstruída pela acusação de
Ela, cntretanto, também opera em outro sentido difìcil_
elitismo ultrapassado ou vanguarclismo peclagógico.
mente disti'gLrível do primeiro: contribui para a erosão cle
legitimiclaclcs tradicionais, porque fala cle tudo o que seu público
Presa ao espelho dos níveis de audiência, a televisão não
deseja c o clcsejo de seu público se tornou incontrolável para
pode senão propor uma cultura de espelho, na qual todos pos_
os princípi.s que antes o governavam ou pelo menos pareciam
sam reconhecer-se- Esse "todos" configura justamente o sujeito
govclná-1.. Mirnética e ultra-realista, a televisão constrói seu
ideal televisivo: o número mais amplo possível é o target das
públic. u I'ir' de poder refleti-Ìo, e o reflete para poder construí-
emissoras de transmissão peÌo ar; e a ampliação das faixas de
Io: no pcríntetro desse círculo, a televisão e o público estabe_
público até incluir todos os interessados em pontecial é o obje_
leccrn o pacto de um programa mínimo, tanto clo ponto de vista
tivo das emissoras de transmissão a cabo. No momento, ainda
cstétic. cìuanto do ponto de vista ideológico. para produzir-se
que essa característica não perdure necessariamente para
curno tclevisão, basta Ìer o livro do público; para produzir_se
sempre, a televisão deseja a universalidade ou a saturação dos
c'rrr. público, basta ler o livro da televisão. Depois, o público
espaços fragmentados. Para consegui-lo, o novo modelo ,,inte_
tusu a lclevisão como lhe parece meÌhor, ou como pode,
rativo" ou "participativo" se instala nas Í-enclas deixadas pela ea
tclcvisho não deixa de Íazer o mesmo. o mercado audiovisuaì,
dissolução de outros laços sociais e outras instâncias de parti_
rprc Í'iccionaliza a todos como iguais, reside nesse pacto que
cipação. Lá onde a democracia complica cls mecanismos insti_
tucionais e dissolve as relações cara a cara, a televisão encontrou 'h. ó necessário às possibilidades técnicas do veículo, e sim
ì lci capitalista da oferta e da procura. A relação de forças é
um campo em que pode operar como meio à distância que, pa_
lão clesigual (e tão satisfatória) que nacla mudará, a menos que
radoxalmente, encontra na representação cla proximidacle uma
ocorra uma intervenção externa sobre ela. Mas quem gostaria
de suas virtudes.
tlc crtrpreendê-la, nesses tempos de liberalismo de mercado e
De quaÌquer ponto de vista, a televisão é acessível: reflete
llopulismo sem povo?
seu público e nele se reflete, como uma estrutura em abismo
que confirmaria os traços barrocos que muitos acreditam veri-
Política
ficar na condição pós-moderna. A televisão é laica e democrá_
tica, mas não deixa de ter fortes elementos de fundamento A televisão faz circular tudo o que pode ser convertido
rnítico. Repara a ausência de deuses neste munclo, através de crìì ussllnto: desde os costumes sexuais até a política. E também
|crluz. ìr poeira do esquecimento os assuntos de que não trata:
um Olinrpo dc pequenos ídolos descartáveis, efêmeros porém
fortes cornr scrni-heróis enquanto possuam a qualidade aurática tlcstlc os costumes sexuais até a política. A primeira imagem
que a TV lhes proporciona. Diante da arìdez de um mundo t;rrc rr relevisão argentina transmitiu (e é basicamente dela que
desencantaclo, a tclcvisho traz uma fantasia sob medida para It'rrlr, Íìrl.clo ao longo destas páginas) foi uma fotografia de Ev,
a vida cotidiana. l't'rtirr. lÌli ern l7 de outubro de 1951, durante uma transrnisslr.
('\l'('r'irììcrìtiìl à qual, pouco depois, seguiram-se as transrrrissõt,s
84 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA
O sonho acordado tÌ5
regulares. Não surpreende a escolha desse primeiro ícone mais força e persistência seus direitos (ou aquilo que considenr
televisivo (embora tenha sido a imagem de alguém que não seus direitos).
chegou a viver a era da televisão): Evita era a política na sua Para D. Rosa, a política deliberativa-institucional é um
forma sexualizada, e sua fotogenia era adequadamente te- obstáculo e nlto um meio. Por isso, ela ataca os políticos, des-
levisiva. Com a imagem de Evita, a televisão argentina as- confiando não só de suas intenções, mas também, ainda mais
sinou seu primeiro maniÍèsto: tudo o que passar pelo vídeo deve radicalrnente, de sua própria existência. Os políticos afastariam
estar tocado por uma aura. A imagem de Evita unia a aura do os sujeitos da realização de suas necessidades. A política, além
carisma à da juventude e da beleza. DaÌi para a frente, o disso, seria artificial, diante dos desejos dos sujeitos que são
caminho até a atual política televisiva seria longo e sinuoso, mas considcrados naturaís. D. Rosa participa de um sentido comum
em sua origem trazia um gesto que, sem querer, tinha sido que sorÌlente por exagero paródico poderia ser denominado
duplamente fundador. liberal: para ela, é ilegítimo qualquer sistema que não ponha em
Hoje, a política existe, na medida em que exista tele- prirneiro lugar a realizaçã.o do que considera direitos individuais
visão. Não pode haver lugar para a nostalgia de passadas (e indiscutíveis. D. Rosa tem uma relação brutal com o Estado
provavelmente hipotéticas) fbrmas diretas de política. Tudo o e as instituições. Pensa, em primeiro lugar, que o fato de pagar
que se pode fazer é a crítica mais radical da videopolítica irrpostos a habilita como árbitro na distribuição de recursos do
realmenle existente. orçarnento nacional. Assistiu a várias séries americanas em que
os cicladãos afirmavam seus direitos não por pertencerem à co-
O desejo de uma sociedade em que as relações sejam rnunidade nacional, mas sim na condição de fonte de arreca-
perceptíveis imediatamente para todos os seus integrantes, em clação compulsória. Essa concepção fiscalista tla cidadanía, no
que a comunicação entre eles seja sempre simples e direta, em lirnite, contrapõe-se a toda idéia de igualdade: os que mais pa-
que os dispositivos artifìciosos da política pareçam desneces- gurn teriam mais direitos a reclamar e os que menos pagam
sários é, no limite, um desejo anticultural. A televisão inventou, clcveriam aceitar a capitis diminutict de sua situação. D. Rosa
há anos, uma personagem feminina vamos chamá-Ìa de D. nircl entende muito dessas coisas, que aliás nem interessam a ela.
Rosa
-
que sintetizava esse desejo até o exagero hiper-realista. Na verdade, sua idéia de cidadania está vinculada ao econômico
-
Para D. Rosa, não importa como seus objetivos são alcança- rnais que ao civil e ao político: define-se pelo uso e não pelo exer-
dos: não irnporta o que os outros possam padecer em conse- cício; centra-se nos direitos, e não em direitos e deveres.
qüência cla atcnção dada a suas solicitações; não importam os D. Rosa só pode viver num mundo de política midia_
valores em jogo, cxceto quando coincidirem com a moral tizada (embora suas raízes remontem à pequeno-burguesia <Jos
miniaturizada que cla professa. Por isso D. Rosa nega a po- romiìnces reaÌistas do século XIX). A política que interessa a
lítica que pode opor-sc justamente a esse primitivismo darwi- cla ó construída peÌos comunicadores, pela ordem do clia
niano, próprio de qucm cstá ern condições de sustentar com l)ropostil pelos telejornais, pela credibilidade decrescentc ckrs
O sonhc, aton/rtrlo tl'f
86 cENAS DA vtDA Pós-MoDEl{NA
representantes, para ser administrada pelos líderes dos meios blemas e tirar os conflitos de sua clausura para levá-los à cctllt
pública na qual sejam definidos e afinal encontrem suas soltt
de comunicação de massa. À cultura do debate parlamentar
- pela políticl,
que D. Rosa cletesta, acusando o Parlamento de uma lentidão ções. Ora, se os conflitos não são apresentados
insuportável s,gssds-3s a da mesa redonda televisiva, em que os meios de comunicação de massa ocupam seu lugar assiltlt-
- lando outros caminhos pré-políticos ou antipolíticos para soltt-
os jornalistas bancam os proÍ'essores (liberais, progressistas,
cioná-los. A política tem um momento de diagnóstico e uln lììo-
democráticos ou reacionários) dos políticos, e estes pretendem
passar por menos inteligentes do que são, quando o são, e por
mento forte cle produtividade. Em ambos, a relação entrc os
políticos e os cidadãos precisa, hoje' do cenário dos meios tlc
mais honestos do que são, porque sabem que o público apren-
comunicação de massa, mas não necessariamente da tutela tltls
deu com D. Rosa uma verdade quase única: que os poÌíticos
apresentadores da mídia. Se algumas questões importantes lxtrlt
são todos corruptos.
amplas maiorias se convertem em objeto exclusivamente micliír-
Se hoje é impossível imaginar política sem televisão,
pode-se, não obstante, imaginar mudanças na videopolítica: não
tico, o sentido da política e dos políticos não parecerá eviclctlttr
para ninguém.
há nenhum destino inscrito na televisão do qual não se possa
escapar. Não é inevitável acreditar que os políticos são em si
Citaçáo
mesmos desinteressantes e, por conseguinte, que devem con-
verter-se ao estilo televisivo se desejam, em primeiro lugar, Como todas as semanas' à mesma hora, dois atol'cs
aparecer no vícleo, e em segunclo lugar falar a seus concida- participam de um esquete de programa humorístico' O a(ttr
dãos como eles querem que se fale. Diga-se cle passagem que principal é rápido, astuto, fanfarrão e discreto ao mesmo telììpo'
seria bom que os políticos fossem os primeiros a se convencer O outro o acompanha e lhe dá a deixa para tiradas engenh<lsits,
sobre este ponto, para em seguida convencerem seus asses- l'inge ser mais esperto, mas sempre demonstra menor conìl)rc:-
sores de imagem que, diligentes servos-patrões, instruem aos ensão, embora na verdade seja ele quem carregue a respollsil
políticos sobre o que, quando e como devem falar no rádio e biliclade pelo desenvolvimento do esquete. Na relação crltt'c
na televisão. esses dois homens diferentes (que na vida real são alltigos
A identidade dos políticos não é construída somente nos rnuito próximos) surge o cômico. O segundo ator, coln strtil
meios cle comunicação de massa. Os políticos, entregando-se habilidade, prepara o terreno para a tirada final por contrt tlo
por intciro aos apelos da selva audiovisual, renunciam àquilo primeiro; sua missão, repetida semanalmente, é arat a te trit lllttlt
que os constitLritt eln políticos: ser a expressão de uma vontade que a piada brote e o esquete termine numa explosão côrrtit'ir'
mais ampla cluc a própria e, ao mesmo íempo, trabalhar para Às vezes, o quadro também tem a participação de ulttit tttttlltt'r
a formação clessa vontade. Justamente porque na política há jovem, seminua, com quem é ensaiado um reperttil'io lritttltl'
pouco cle imediatisrno o muito de construção e imaginação, rnas igualmenÍe eficaz, de chistes, indiretas e trocaclil[()s tlt' tlrr
pode-se dizer que é a política que deve tornar visíveis os pro- plo sentido, olhares, toques e, conforme a noite, <lí'e:ttslts ptttv"
88 cENAs DA vÌDA pós-MoDERNA O sonho acordado 89
cadas pela mistura convencional de abundância sexual e inge- rtor rlc scguncla, hábil, rápido e, além disso, amigo do protago-
nuidade. Como sempre, a improvisaçáo faz parte do efeito cô- rristrr; a hicrarquia das estrelas é posta a nu e, emyez de produ-
mico, com muitas olhadelas para a câmera, alusões ao que se zil urn cstranhamento frustrante para o efeito cômico, o realça:
passa fora do quadro, esquecimentos do scrupl (fingidos ou lri tlturs piadas para fazer graça. A piada improvisada (meta-
reais), frases ditas em voz baixa, para serem ouvidas apenas liccional, auto-reflexiva porque se refere a uma hierarquia de
pela metade, demonstrando que algo de imprevisto transcorre lrtrlrcs anterior ao esquete) solicita nossa cumplicidade e assim
por trás das linhas conhecidas do esquete (um subtexto mais rcconhece nossa capacidade de manejo do repertório semanal.
privado entre os dois atores). lr llrcciso saber muito mais coisas para entender a piada impro-
Certa noite, depois da mulher, entra em cena um terceiro visirtla dcl que para achar graça da piada do script. Quem acha
ator, muito menos conhecido do que os outros dois. Num clima griÌça t:rÌì "segundo, sim; terceiro, não" sabe muito bem como
geral de improviso aparentemente sem orientação, implantado são as coisas nesse programa. A compreensão da réplica de
pelo protagonista e seu coadjuvante, o terceiro ator se acha au-
inrproviso aproxima os atores (neste caso, os verdadeiros ídolos
torizado a abandonar as falas determinadas pelo script e res-
tclcvisivos) de nós, os espectadores, ainda que, de certa forma,
ponde ao ator principal um corì uma frase de sua lavra, inva-
rros clesvie da ficção cômica. Rimos nc teÌevisão e não com
dindo o lugar do ator que habitualmente dá a deixa para a piada
clir. Todos fazemos parte da tribo e a autoridade de quem sabe
final. Este, sem vacilar, corta o intruso, a seco: "Segundo, sim;
rlus coisas está assim distribuída: nem o roteirista, nem o diretor
terceiro, não!"
tlc câmeras, nem o primeiro ator podem evitar que o segundo
Essa reação, totalmente fora do script, deixa clara a exis-
rc:r.ja revelando as leis do programa. Porém, o que é ainda mais
tência de uma estrutura de diálogos forte que responde, por
cxcitante é que os espectadores se dão conta do que está acon-
sua vez, a uma hierarquia de atores. Corr ela, as coisas retornam
lccendo, porque esse programa e muitos outros nos ensinaram
a seu lugar habitual. Num quadro sempre cheio de mal-entendi-
rriio só sua comicidade mas também suas leis de produção. Ri-
dos, o segundo ator não deixou passar o mal-entendido dupla-
rÌros numa dupla risada: a de quem entende a piada e a de quem
mente improvisado com que usurpavam seu Ìugar. Os técnicos
sirbc por que está rindo. lir
da emissora festejam ruidosamente a resolução do pequeno
A familiaridade da televisão com seu público e a proxi-
conflito. Todo o episódio se escora no traço metaficcional qlue
rrriclacle imaginária que o público estabelece com a televisão
o programa apresenta como uma de suas virtudes mais originais.
lrrnça rnão de um recurso que oferece uma garantia de trans-
A resposta improvisada do segundo ator desnuda as leis do
quadro que, pckr nìenos em teoria, deveriam permanecer ocul- lrrrrôrrcia: a auto-reflexividade. A televisão só mostra sua co-
tas. Entretanto, explicitá-las como o programa costuma fazer, zinha quando leva o público aos estúdios ou o põe diante das
em yez de destruir a ilusão do cômico, a acentua. Rimos da t'irrrcras. Seriam, então, visitas guiadas, cuja função é aproxi-
piada que consta d,o .rcrì1tt e rimos (ainda mais) da mordacidade lniÌr rÌìirs náo interiorizar. J6t, a auto-reflexividade é a forma pela
com que um ator de terceira foi posto em seu lugar por um t;u:rl rr tclcvisão interioriza seu público mostrando a elv como
90 CE,NAS DA VIDA PÓS-MODERN,A O sonho acordado 9l
se faz a televisão. O que começou como recurso improvisado t'o ptiblico, c o que se vê no vídeo é mesmo uma efusão da
de alguns atores e apresentadores, numa época em que a maio- virllr, lr rnrto-rcl'lexividade só aparentemente produz um efeito
ria se esforçava para ocultar as marcas do que estava sendo oposlo. l)trlo contrário, ela promete que o público (pelo menos
feito e assim se empenhava na apresentação da TV como "coisa t'rrr lrill<itcsc) pode ver as mesmas coisas que os técnicos, os
feita", hoje é um traço de estiÌo já clássico, de produtividade rlrrclorcs, os atores e as estrelas vêem: ninguém manipula o que
indiscutível. A televisão se apresenta a si própria ao vivo (mes- ti rrroslnrclo, porque qualquer manipulação pode ser mostrada
mo nos casos de transmissões gravadas) e, portanto, não pode t' conrorrtadu. A televisão se mostra sozinha e ao mostrar-se
nem quer apagar os sinais do que é vivo. Tais sinais se tornaram (.tirtt'<'nt. Nada aqui, nada lá: é a televisão de mãos limpas. O
tão típicos que persistem mesmo nos programas gravados: rrso tlcscrrÍ'reado de efeitos especiais, que também Çaracteriza
todos os programas humorísticos são auto-reflexivos; os teÌe- ir tclcvisão realmente existente como a dupÌicação do vídeo,
jornais estão cheios de comentários auto-reflexivos sobre a -
ir gnrtluçho de cores, a sobreposição de imagens, a câmera
tarefa realizada para conseguir as imagens da notícia; os pro- lcrrtir, ir trucagem computadorizada é associado à auto-
gramas jornalísticos mais sérios incluem avaÌiações da audiên-
-,
rcl'lcxividade, sem que esta se anule. Talvez esteja aí um dos
cia deles próprios, que se olham a si mesmos no espelho das rrrilirgres da retórica televisiva dos últimos anos: um "realismo"
escolhas do público; os apresentadores não hesitam em men- (luc rìssegura a presença da "vida" em çarÍaz; uma alusão
cionar suas dificuldades, os tropeços organizativos, ou os fatos corÌstrìnte à maneira pela qual a "vida" chegou até ali1, e pro-
que estão acontecendo por trás das câmeras; os artistas con- vitlôrrcias discursivas para que a "vida" seja atraente e não
vidados e os apresentadores de shows de variedades sempre sirrrplcsmente sórdida ou banal.
se referem aos momentos anteriores à transmissão, revelando A televisão nos quer do seu lado (ao contrário do cinema,
as condições de produção do que se verá depois; o proprietário t;rrc precisa do escuro, da distância, do silêncio, da atenção,
de uma emissora pode irromper no meio de uma tomada e mos- rr 'l'V não requer nenhuma dessas condições ou qualidades). A
trar a verdade de seu poder no vídeo. É comum vermos o des- rrrrto-rcflexividade, que na literatura é uma marca.de distância,
locamento de uma câmera nos estúdios, feito a fim de captar ()l)crir na televisão como uma morca de proximidade que torna
um ângulo diferente; ninguém se importa muito, além disso, possível o jogo de cumplicidades entre a televisão e o público.
que os reÍletores ou os microfones apareçam no enquadra- l)c (oclos os discursos que circuÌam numa sociedade, o da tele-
mento, em meio a uma atmosfera de improvisação da mise en visão produz o efeito de maior familiaridade: a aura televisiva
scène, associada à legitimidade da qual se beneficia a auto- rriio vive da distância e sim de mitos cotidianos. Só existe um
reflexão; a TV sc apresenta como processo de produção e não jcito cle aprender televisão: vendo-a. E é preciso convir que esse
só como resultlrdtl. irplcrrclizado é barato, antielitista e nivelador.
Se a gravaçho uo vivo dá a impressão de que nada se Por isso, a televisão não enfrenta obstáculos culturais
interpõe entre a imagem c seu referente, ou entre a imagem prrnr lculiz.ar suas operações auto-reflexivas. Também por isso,
92 CENAS DA VIDA PÓS-MoDERNA
O son/to rtt otr/,tt/tt t) )
televisão os torna, primeiro, tal como apareceram no vídeo e de outros filmes). Quando os exemplos não são contemporâ-
sobre essa imagem realiza suas operações de deformação neos, todo mundo recorre ao providencial folhetim oitocentista,
paródica. A televisão nunca dá por evidente uma existência que tinha encontrado sua descendência nos seriados de tele-
extratelevisiva: suas citações do extratelevisivo sempre são visão; os mais engenhosos buscam formas antigas de humo-
precedidas de uma aparição audiovisual. Pode-se dizer que esse rismo popular que a televisão tinha retomado depois de seu de-
traço reforça a aproximação entre o meio e seu público, bem saparecimento. Para encarar seriamente essa discussão, seria
como seu inerente democratismo. Pode-se dizer ainda que a necessário diferenciar a reciclagem de formas próprias (a tele-
reciclagem paródica gera "leituras aberrantes", instáveis, "tur- visão assistindo a si própria na auto-reflexão e na citação) da
bulências do sentido". De minha parte, porém, eu sustentaria recuperação de gêneros literários, musicais, circences, etc.
o contrário. Das infinitas possibilidades da citação, da paródia O caso dos gêneros literários apresenta uma certa quan-
e da reciclagem, a televisão que conhecemos trabalha com o ticlade de problemas, entre eles o da tradução de um discurso
nível mais baixo de transformação, para não impedir indevi-
escrito para outro, audiovisual. A televisão talvez tenha feito
damente o reconhecimento do discurso citado e, assim, arriscar
muito mais do que reciclar o folhetim (e neste ponto seus admi-
o efeito cômico ou crítico. Em geral, a televisão se limita a
radores não lhe fazemmuita justiça). Também fez muito menos,
exacerbar os traços do parodiado, exibindo-os, por assim dizer,
lin-ritan<Jo-seà reprodução de um sistema de personagens, à
em primeiro plano. Basicamente, a paródia televisiva aumenta
pcrrnanência de um mundo de valores dividido em duas metades
até deformar, sem buscar detalhes secundários nem produzir
sirnétricas, ao frágil encadeamento das peripécias e à recorrên-
novas configurações a partir do discurso de base. Na televisão,
cia a certos tópicos: o reconhecimento de pais, mães e filhos
nunca é possível hesitar sobre a natureza de uma citação (salvo
ignorados, perdidos ou trocados, num típico nó conflitivo que
por ignorância de materiais televisivos anteriores); sabe-se de
imediato se se trata de uma cópia ou de uma paródia; descarta-
muito freqüentemente tangencia o tabu do incesto; os obstá-
se, geralmente, a estilização, a ironia, a homenagem. Esses usos
culos que a sociedade levanta frente à virtude, e a riqueza ao
limitados da citação não estão inscritos no destìno formal do amor; e alguns outros. Se o valor da operação televisiva sobre
meio, e sirn numa retórica que deve garantir, sempre e em cada o folhetim é este, não há incoveniente em admitir que ela foi
um de seus pontos, a conexão de um fio terra pelo qual todos eÍicaz ao trazer para a atualidade um gênero do século XIX
os espcctadores possam escoar-se rapidamente. (antes também freqüentado pelo rádio). Admitamos que a te-
Fala-se rnuito sobre a reciclagem de gêneros realizada lcvisão fez justiça ao folhetim, desprezado pelas elites intelectuais
pela televisao. Os nrais sofisticados pesquisadores, ao subscre- por preconceitos estéticos e sociais.
verem essa tosc, l)rorìlctem exemplos que a confirmariam. Em As defesas da televisão já se repetiram demais: acho que
geral, esses cxcrnpkls siur sempre os mesmos: anúncios que scu potencial não deveria restringir-se com essa mistura co-
reciclam anúncios ou irnilarn filmes, e filmes que exibiriam a nlrccida de elegia e celebração, por sua capacidade de resgatar
influência da publiciclade (c1ue, antes, tinha sofrido a influôncia r,ôrrcros perdidos. O folhetim televisivo é bom quando é born'
96 cENAS DA vlDA pós-MoDErÌNA
O sonho acordado 97
E é ruim (não importando o alcance cle sua reciclagem) quando ,r() tt'rl)'rllt u('ln colìì osses traços de estilo as vanguardas não
não consegue cumprir os requisitos mínimos do gênero: sus- rr'rrrrnt'irrv;rnr ìs suas próprias marcas; cabia tudo dentro de sua
pense, forte interdito do pessoal e do social, complicações ines- r',,t rilrrrr.
peradas porém não de todo inverossímeis (porque o folhetim, l'trrr lorrlÌr urn exemplo especialmente probÌemático, em
se é que estamos falando do folhetim, é minimamente rea- ,;rrt' :r irrovlrçlìo se aproxima mais dos procedimentos e da
lista), reiterações para despertar a atenção e novidades para r( orl()1ìlirli't tlo rnercado, vamos dar uma volta pela pop art.
retê-la. Também existe uma possibilidade, deixada de lado pela l)t':;rlr'o l)ol), o consumo de símbolos, marcas de estilo, ícones
televisão que conheço: a criação de novos tipos de ficção a par- rhr:, rrrt'ios tlc rnassa já não assusta a ninguém. Sabe-se que tudo
tir do esquema básico do folhetim. porlt' st'r rtrutcrial estético (que, de certa forma, tudo começou
.r r;t' lo :r lrtrrtir da arte moderna). O que o pop trazia era a notí-
Mas não se pode dizer que a televisão seja o único ( r:l (tÌil() tolalrnente inédita) da morte da arte e do ocaso da
discurso que propõe a reciclagem de gêneros tradicionais ou ',rrlrjctivitlurle. Com alegria espontânea, o pop se entregou ao
a universalização da paródia como quase único procedimento ( onsurÌÌo c cscolheu o que todo mundo consome: sopas, foto-
cômico. Uma rede fina porém bem evidente comunica essa j
1'rrrli;rs tlc: rcvistas, fìlmes, coca-cola, sapatos, caixas de sabão
marca televisiva com formas extratelevisivas, até mesmo com l! trrr po, lrist(lrias em quadrinhos. Sobre esses atraentes restos,
algumas propostas de circuitos aparentemente tão distantes da i
crt'rt'itou o olhar estético e a reconstituição: séries, ampliações,
I
televisão quanto o underground teatral "jovem". I
rt';rctiçocs, cópias exatas, miniaturas, blow-ups. No entanto,
i
Desenvolveu-se um sistema de empréstimos pelo qual a lr rr('\nr(ì r;uundo parece mais próximo dos objetos que adota,
televisão alimenta o underground e este consegue, mais tarde, ) rr l)()l) ('xcrcc sobre eles algum grau de violência simbólica: co-
alguma forma de reconhecimento na televisão. Assim descrito,
I
l)r;u ('\itliuììente uma lata de sopa é diferente de parodiar o
o circuito pareceria ideal, quase uma invenção vanguardista
'1,'ti.ritt rlc uma lata de sopa. Embora pareça o contrário, a cópia
para a república estética. Entretanto, quando o underground se ('\:rt:r iìl)rcsenta mais problemas estéticos do que sua defor-
faz "televisivo" (ou seja, em termos gerais, muito ou exclusi- rrirç:r(), lx)rque questiona muito fortemente as idóias de que a
vamente paródico; muito ou exclusivamente reconstituidor de ,rrlr llrrrrsÍìrr-rna tudo o que toca e o artista se define na marca
gêneros tradicionais), ele converte suas marcas mais espontâ- p(',is():ll tlrro deposita mesmo sobre os objetos mais banais. A
neas num estilo que encontrou na paródia o recurso hegemônico ( (llìr:r ('xit(tÌ é, em sua própria exatidão, uma ironia.
da comicidadc, da dramaticidade e da crítica. A televisão con- O pop é impossível sem essa dupla distância: a que, por
voca esse unrlergrouncl, melhora sua própria qualidade e rea- urrr lrrtlo, critica a arte consagrada, na linha das vanguardas
firma um circuito clc inspirações mútuas. Os defensores desse ,lt'slr'stlcrrlr); e a que, por outro, transforma os usos de uma
circuito evocarão a inspiração que as vanguardas encontraram l:rtrr tlt' sol)u ou de um desenho de história em quadrinhos, para
na arte do cabaré, da caricatura, do humor de feira, oìt no pa- .rlr rrrrr': "isto pode ser feito com aquilo". Consumista e celebra-
ckaging e na história ern quadrinhos. Parece-me, contudo, que t,rn(r, () llop lìli urna gigantesca máquina de reciclagem c
98 CENAS DA VIDA PÓs-MoDEIìNA
BIBLIOTECA
mistura, mas conservou a distância que possibilitou justamente SEDESruWES
TIì ÊS
a operação pop. Ainda que seu legado estético seja menos inte-
ressante do que o das vanguardas anteriores, é preciso reconhe-
cer que o pop leva até o limite a afirmação de que os mate- Culturas populares,
riais artísticos são indiferentes. Em suma: depois do pop, nin- velhas e novas
guém pode escandalizar-se (nem surpreender-se) com nenhu-
ma reciclagem.
Quando o undergrcund se enamora dos meios de comuni-
cação de massa, do bolero e da revista, percorre um caminho
que poucos hoje impugnariam, e abre portas que, na verdade,
Nrrrr,r vrL,rnEJo DE MoNTANHA, A sEGUTNTE história me é con-
desde os anos 60 o pop já tinha deixado abertas. Abre-as,
tirrlu pelo seu protagonista: "Há três noites, roubaram-me o
contudo, diante de um público jovem que, certamente, não
zirino cle porte maior, não o que está sempre comigo, mas o
passou peÌos escândalos mundanos e estéticos do pop. O pro-
()utro, unì cavalo alto, com mais de um e setenta, ou quase.
grama estético é mais moderado do que a liberdade de idéias 'l'inha cmprestado para o cunhado de minha irmã, que
ficou
sobre a sexualidacle, a violência, a religião, as autorìdades tradi-
scrn cavalos, porque vendeu todos os que possuía, para pôr
cionais ou o travestismo, carnpr)s eln que o underground é te-
lcllrlclo em casa, aquela que a senhora conhece, em cima do
maticamente audaz, nos quais obtém eÍèitos "progressistas"
rÌÌorìtc, antes da estrada e das quadras de tênis. O cavalo estava
(ainda que este adjetivo não seja muito popular hoje em dia).
lli, preso a uma corrente, mas o cunhado da minha irmã não
Provavelmente por isto, a indústria audiovisual (que, (t'rrr bons cães. Carregaram ele e deixaram a corrente. por isso
acredite-se ou não, sempre soube que era preciso cuidar meÌhor
ti tlrrc a senhora não me viu nos últimos dias; saímos à procura
das fbrmas do que das idéias) pode adotar sem maiores confli-
tlt'lc, porque um amigo me disse que aquilo certamente foi coisa
tos a paródia que traz à tona o underground. Como o impe-
tlt' ul.Ìì pessoal do outro lado da serra, que rouba só por malda_
rialismo branco no século passado, a televisão não reconhece (l(', I)aríì dar umas voltas e depois, se der, vender. Mas geral-
fionteiras: daí sua força.
rrrcntc eles não vendem nada, são só uns moleques, mas uns
rrrolcclues de nada. Além disso, a gente toda por aqui conhece
rrcus cavalos, e eles então teriam que ir para bem longe se
t;rriscssern mesmo vender o zaino. Procuramos um dia inteiro
irr('t;ue , de tardinha, voÌtei. Já tinha até tirado a sela da montaria
r;rurnrkr apareceu um amigo meu, com o cunhado cla minha
ir rruì, rlue jí tinha ido embora. Meu amigo parou e disse: ,Olha,
o st'rr cuvalo foi visto lá perto do açude'. Não fui avisar à poli
Culturas populares, uelhas e rtou,ts l0l
100 cENAs DA vrIlA Pós-MoDERNA
o que se perdeu, também devemos contar a obediência cega sua própria experiência, com a política, com a linguagem, com
a formas tradicionais de dominação sirnbólica (como a do cau- o mercaclo, com os ideais de beleza e saúde. Quer dizer: tudo
diÌho, a do senhor, a do padre, a do pai, a clo professor). Como aquilo que configura uma identidade social.
se vê por essa enumeração, nem toda obediência tinha as As identidades tradicionais eram estáveis ao longo do
mesmas conseqüências para aqueles que a observavam: a es- tempo e obedeciam a forças centrípetas que operavam tanto
cola, sem ir mais longe, foi um fator essencial de modernização sobre os traços originais quanto sobre os elementos e valores
libertadora dos setores populares que compreenderam desde o impostos peÌa dominação econômica e simbólica' Hoje, as
início o valor do saber e souberam valer-se dela. A debilidade identidades atravessam processos de "balcanização", vivem um
atual da escola, que não pode distribuir saberes básicos de mo- presente desestabilizado pela desaparição de certezas tradicio-
do minimamente aceitável, é um clcls piores obstáculos para a nais e pela erosão da memória; comprovam a quebra de normas
construção de uma cuÌtura comum que nao se apóie somente na aceitas, cuja fragilidade realça o vazio de valores e propósitos
comunidade imaginária construída pelos rneios de cornunicação comuns. A solidarieclade da aldeia era estreita e, muitas vezes'
de massa. egoísta, violenta, sexista, intolerante com os que eram dife-
Também ficaram soltos tls valores liberados num pro- rentes. Essa trama de vínculos caÍa a cara' em que princípios
cesso cle transÍbrmação das iclentidadcs populares tradicionais, de coesão pré-moclernos fundavam comunidades fortes, basea-
cujas fisionornias já tinham sido dcsbastadas pelos processos das em autoridades tradicionais, dispersou-se para sempre' As
de modernização. A cultura da míclia convertc a todos em mem- velhas estratégias já não podem soldar as bordas das novas
bros de uma sociedade eletrônica, que se apresenta imagina- diferenças.
riamente como uma sociedade de iguais. Aparentemente, não Muitas comunidades perderam seu caráter territorial: as
há nada mais democrático do que a cultura eletrônica, cuja migrações deslocaram homens e mulheres para cenários desco-
necessidade de audiência a obriga a digerir, sem interrupções, nhecidos, onde os laços culturais, se chegam a ser reimplanta-
fragmentos culturais de origens as mais diversas. Na mídia, dos, fazem-no em conflito com restos de outras comunidades
todo mundo pode sentir que há aÌgo de próprio e, ao mesmo ou com os elementos novos das culturas urbanas' E ali, os
tempo, todo mundo pode imaginar que o que a mídia oferece meios de comunicação de massa, como o ácido mais corrosivo,
é objeto cle apropriação e desfrute. Os miseráveis, os margina- reagem sobre as lealdades e as certezas tradicionais. No entanto,
lizados, os sirnplesmente pobres, os operários e os desempre- entre os restos de velhos mundos separados entre si pela distân-
gados, os habitantes das cidades e os interioranos encontram cia cultural e pelo espaço, a mídia também estende pontes e
na mídia uma cul{ura em que cada um reconhece sua medida cria uma nova globalidade' Vivemos na era do individualismo
e cada um crê iclcntiÍ'icar seus gostos e desejos. Esse consumo que, paradoxalmente, floresce no terreno da mais inclusiva
imaginário (em toclos os sentidos da palavra imaginário) reforma comunidade eletrônica. Entretanto, os desvãos que separavam
os modos com quc os sctores populares se relacionam com distintas comunidades culturais não chegam a unir-se de todo
106 cENAS DA vrDA pós-MoDErìNA Culturas populares, uelltas e nouas 107
porque, em alguns casos, essas velhas culturas foram poderosas Os mais jovens não encontram nesses espaços nenhuma
demais para desaparecer por completo. E, fundamentaÌmente, das marcas culturais que interessaram a outros jovens, há trinta,
porque, com a tenacidade do rnaterial, persistem as diferenças quarenta ou cinqüenta anos. E sem jovens, não existe possi-
econômicas e os obstírculos sociais contrapostos a um uso ver- biliclade de transmissão cultural. Outros lugares propõem aÌter-
dadeiramente universal dos bens simbólicos. Seja como for, as nativas mais bem sintonizadas com as qualidades da cultura
velhas identiilades se abrandaram e, acima de tudo, perderam audiovisual: Igrejas cujo estilo se inspira na pastoral eletrônica;
a capacidade de regenerar sentimentos de pertencimento, em- organizações centradas em objetivos pontuais que garantem
bora a última palavra ainda não tenha sido pronunciada e, vez assepsia política, horizontalismo democrático e um mínimo de
por outra, velhos símbolos tornem a ser usados em novos con- estruturação institucional; casas de videogames; discotecas que
textos culturais ou geográficos. se especializam num leque particularíssimo de público, sele-
Também os setores longamente enraizados num deter- cionado com firme autoconsciência; fãs-clubes cujo perten-
minado lugar sofreram uma desterritorialização: o bairro popular cimento se origina na cultura audiovisual (com exceções: al-
hoje é menos importante do que há quarenta ou cinqüenta anos, gumas bandas de rock conseguiram estabelecer uma ponte
como espaço de associação, construção da experiência comum sobre os meios de comunicação de massa, que, de qualquer
e estabeÌecimento de relações face a face. Em muitas cidades, rnodo, aperfeiçoaram-se para não deixar escapar um fenômeno
o bairro operário c o subúrbio são lugares inseguros, onde a que, no início, passou-lhes despercebido).
violência cotidiana aconselha o recolhimento privado. E no Hoje a cultura juvenil é uma dimensão dinâmica, possi-
centro mesmo do munilo privado, reluz o vídeo sempre des- vclrnente a mais dinâmica das culturas populares e não-popu-
perto. O bairro deixa de ser o território de uso e pertencimento, lares. Mesmo quando os jovens demonstram fina capacidade
porque seus habitantes seguiran'r o contraditório processo duplo tlc clistinguir matizes, a cultura juvenil tende a ser universal e,
de transpor todas as fionteiras, tornando-se público audiovisual, rle fato, atravessa as barreiras entre classes e nações. Mais clo
e ao mesmo tempo ficar cada vez mais encerrados dentro de r;uc pelo pertencimento social, as experiências culturais se re-
suas casas. Velhos centros tradicionais de interação a escola, cortam pela pirâmide de idades. Nela, subsistem as diferenças
as bibliotecas populares,
-
os comitês políticos, as sociedades (c1uc, no rock, são a base de verdadeiras tribos), mas a universa-
de Íbmento, os clubes de bairro deixaram de ser os lugares lização pressiona com mais fbrça que os velhos particularismos
-
oncle, no passado, deflniam-se perfis de identidade e sentido ills subculturas e os novos métodos de discriminação.
cornunitÍriil. E,sses lugares, ainda dominados pela cultura da O único obstáculo eficaz contra a homogeneização cul-
Ietla c pela rclaçho individual, face a face, tôm hoje uma pre- tural são as desigualdades econômicas: todos os desejos tendem
sença rrruito tììorìor'. Recorre-se a eles não ao longo de um co- lr assemelhar-se, mas nem todos os desejos têm as meslllas
tidiano corrtínuo, c sirn no momento de uma crise ou de uma conclições de realizarem-se. A ideologia nos constitui enr cott-
necessidaclc l.rclcrnltttiri a. srrrrriclores universais, embora milhões sejam apenas cottsttttti
108 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA Culturas populares, uelhas e nouas 109
dores imaginários. Se, no passado, o pertencimento a uma irrrposta por suas elites. Hoje, qualquer possibilidade de iniciati-
cultura assegurava bens simbólicos que constituíam a base de vrr cultural independente passa pelo modo como diferentes gru-
identidades fortes, hoje, a exclusão do consumo torna inseguras pos sociais estejam em condições de misturar seus próprios
todas as identidades. Isto, justarnente na cultura juvenil, é bem irrstlunrgr.rtos culturais, os da cultura letrada e os dos meios de
mais evidente: o desejcl pela marca marca socialmente. t'ornuuicação. Conforme essas três dimensões sejam relacio-
- -
Perdeu-se e ganhou-se. Por um lado, os letrados, que, rrirrlas (elerlentos próprios de identidade, cultura institucional
no passado, detinham o rnonopólio da Iegitimidade cuÌtural e cscolar, cultura da mídia), criam-se configurações diferentes
só deviam disputá-lo entre seus diversos grupos, hoje se vêem c instírveis, que podem mudar segundo as conjunturas políticas
desafiados, em bloco, por novos mecanismos de produção de rì lr lcl]ìperatura social. No marco da hegemonia audiovisual,
Ìegitimidade. Não podem mais legislar sobre o gosto com orgu- rrlgurnas situações especialmente nítidas (como a passagem de
lhosa independência porque outros centros legitimadores ditam rrrna ditadura para a democracia) desviam os canais através dos
a moda. A cultura audiovisual escolhe seus próprios juízes e rluais essa hegemonia é exercida. São episódios particulares em
reconhece a força do número uma vez que seu negócio está tyuc valores são reordenados, e condutas não habituais são
na ampliação incessante dos públicos, mais do que na distinção cstirnuladas, sobre a base de uma mistura de elementos origi-
elitista de grupos. A diferenciação em subculturas audiovisuais rlrrlos na tradição cultural, na cultura institucionalizada, em no-
é um fenômeno subordinaclo à ampliação e à homogeneização: vos conteúdos políticos e nos meios de comunicação de massa.
as neotribos culturais tênt a impressão de cultivar os mais ex- Muitas vezes, e isso fica bem claro nos cenários eleitorais, o
clusivos particularismos com inteira liberdade, e não são des- tliscurso da mídia entra em curto-circuito ao contato com iden-
mentidas contanto que não entrem na disputa clo mercaclo au- titllcles políticas profundas ou novos ideais que a mídia não
diovisual global. Quando o fazem, como aconteceu em muitos rcspalda (por razões de censura ou cegueira). Nesses momen-
lugares com as rádios de freqüência modulada, as grandes los, as subculturas atravessam fases de reestruturação rela-
empresas da indústria cultural reagem: primeiro, botam a boca tivarnente independente, embora não perdurem depois de esgo-
no trombone; depois, redefinem estratégias para intervir nesse tirclo o potencial ideológico da conjuntura.
novo mercado cuja base está no fracionamento quase infinito
d,.: diul ratliolônico. Seja como for, se é que alguma vez tiveram limites fortes
Na acentuação desses particularismos está apoiada uma c precisos, as culturas populares afinal desvaneceram-se; tam-
subordinação diÍcrente: não são as classes dominantes, através bónr se esfumaram os perfis mais estáveis que distinguiam as
de um sistcrna cortrplicado de instituições e delegados, que atra- clites do poder. A universalização imaginária do consumo ma-
vessam o lirnitc crìtrc grupos sociais. Em conseqüência disto, tcrial e a cobertura total do território pela rede audiovisual não
já não se pocle Í'ullrr lltenas de uma hegemonia cultural das rrcabam com as diferenças sociais, mas diluem algumas mani-
classes dominantcs ncrrr rlc urna autonomia restrita à cultura lcstuções subordinadas a essas diferenças. O caso da língtrl
i10 cENAS DA vrDÂ Pós-MoDERNA Culturas populares, uelhas e noaas 111
falada é particularmente significativo. Durante décadas, a lín- ruivel o usufruto cle uma biblioteca familiar ou a posse de uma
gua "correta" foi um ideal da escola, hoje desaparecido, pois rnotocicleta japonesa. Os símbolos do mercado, que são igual-
a escola não se encontra em conclições de transmitir qualquer rììcnte acessíveis a todos, tendem a desvanecer os símbolos
ideal, seja ele qual fbr. Por outro lado, a vitalidade e a criação tlir vclha clominação, baseados na diferença e no estabelecimento
lingüísticas passarn pur cantinhr)s cornpletamente estranhos à tlc lirnites intransponíveis.
cultura letrada; e a homclgcneização lingüística desbasta as di- Aquilo que antes era considerado cultura letrada (então
ferenças de região, classe ou profissãcl. Esse impuìso nivelador rr única cultura legítima, pelo menos para os letrados) já não
tem ressonânciirs democráticas, se comparado à língua ultra- organiza a hierarquia de culturas e subculturas. Os letrados,
estratificada de alguns países europeus. Entretanto, nem tudo tliante clisso, escolhem entre duas atitudes possíveis. Uns lamen-
pode passar sob o rótulo de nivelamento democrático quando tlrrn o naufrágio dos valores sobre os quais estava baseada a sua
o discurso de um presidente da república ou de um parlamentar Ircgemonia como letrados. Outros celebram que os restos do
proporciona os exemplos mais típicos da Ìíngua popular. Num rraufrítgio tenham chegado à costa, onde começam a montar
círculo cujo ponto de origem é inútil buscar, os políticos falam Lrnr arteÍato para explicar em que consistem as novas subcul-
como os jogadores de futebol ou como as vedetes da televisão, turas e os usos populares dos despojos audiovisuais' Os pri-
na tentativa de imitá-los em seu sucesso, cultivando o neopopu- rrrciros clesconfiam das promessas do presente; os segundos,
lismo, ou (como se diz) para aproxirrìar-se de um povo, trans- rreollopulistas de mercado, acreditam fervorosamente nelas' Os
uma
formado em comunidade de públicos e não de cidadãos, que lrrirnciros são velhos legitimistas, porque ainda respeitam
os consagraria segundo os critérios definidos pela aura da lriclurquia cultural em que a cultura da letra tinha um lugar he-
mídia. gcrrrônico assegurado, ao abrigo das pretensões de outras for-
Todo mundo fala do mesmo jeito e a inovação lingüística rrrlrs culturais. Os segundos são os novos legitimistas, porque'
emigra muito rapidamente de um grupo social para outro. Se rro rraufrágio da cultura da letra e da arte culta, instalam seu
fortes marcas lexicais e fonéticas são conservadas em velhos porlcr como decifradores e intérpretes daquilo que o povo faz
setores tradicionais das elites, de qualquer modo, é mais peÌo ('olÌì os restos de sua própria cultura e os fragmentos da cultura
que esses níveis têm em comum com o resto da sociedade do rlir nríclia, de que se apoderou. As coisas se inverteram para
que pelo que os diferencia. Apesar de os próprios sujeitos toma- s('nìpre. Os neopopulistas só aceitam uma legitimidade: a das
rem a distinçho entre grupos como um escudo protetor, essa t'rrltrrras produzidas no cruzamento entre experiência e discurso
distinção se atenua, porque está menos fundada em elementos rrurliovisual. Consideram que os limites impostos à cultura culta
culturais inaccssívcis e mais apoiada em elementos ao alcance r.cl)rcscntam uma revolução simbólica na qual os antigos sub-
de todos; niro ó o rìrosrÌlo distinguir-se por falar fluentemente jrrglrrlils se apossarão de um destino independente por meio cltr
uma língua estranÊcil'lr ()u por comprar o último CD do Guns' :rllcsluìato que fabricam com o zuppìng e outros recursos tec-
n'Roses. Nho gcra o rììcsrÌlo tipo de diferenciação incontor- rrolrigicos cla cultura visual. Ambas as posições se enÍì'ctttilttl
112 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA Culturas populare s, uelltas e nouas I13
segundo a fórmula que se tornou céÌebre há quase trinta anos: rr(.nliu('s; vivcrnos a crise da alfabetização (e, com eÌa, a da
apocalípticos (hoje diríamos velhos legitimistas, defensores
' ultlriì tllr lctru), embora os otimistas midiáticos celebrem as
irredutíveis das modaÌidades cuÌturais prévias à organização lrrrlrilirlrrtlcs ldquiridas no zapping e no videogame. Essa crise,
audiovisual da cultura) e integrados (os defensores assalariaclos ( l)()rÌ (luo se diga logo, não tem origem apenas na maior
ou vocacionais das indústrias audiovisuais e de sua nova le- ,lrlrrslro tlo cnsino entre setores sociais que antes estavam fora
gitimidade cultural). rh' scu ulcance (imigrantes, minorias étnicas, etc.); nos últimos
,ur()s, LÌ cnr países onde o ensino descreve há décadas um mo-
Entretanto, algumas coisas permanecem irredutíveis. pa- \ nn('rìto clc expansão universal, a crise surgiu independentemente
ra começar, a desigualdade no acesso aos bens simbólicos. Ao ,los cÍcitos introduzidos pelas minorias raciais, religiosas, ou
contrário de atenuar-se, essa dificuÌdade acentua-se porque a pcl:r irrclusão parcial dos mais despossuídos. A crise da alfa-
escola atravessa uma crise econômica em cujo reverso se pode lrt'tiztrçircl afeta aos filhos das camadas médias urbanas, aos dos
ler tambérn uma crise de objetivos e a corrosão de uma autori- ,,('t()rcs operários bem estruturados, aos da pequena burguesia.
dade que não foi substituída por novas formas de direção. A r\ t;rrcstlto tem uma importância especial na América Latina,
escola já não é iluminada pelo prestígio que tinha, reconhecido , rrtlc prclblemas comuns se acumulam no âmbito de instituições
tanto pelas elites quanto pelos setores populares, nas primeiras luilicis, e mais fragilizadas ainda pelos programas de reajuste
décadas deste século. Na maioria dos países cla América Latina, t't orrôrnico e redimensionamento dos Estados.
a escola pública é hoje o lugar da pobreza simbóÌica, onde pro- Afirma-se que a escola não estava preparada para o
fessores, currículos e meios materiais concorrem em condi- ;rtlvcntcl da cultura audiovisual. Nem os programas nem as
ções de muito provável derrota com os meios de comunicação lrrrnrcracias educacionais foram modificados com velocidade
de massa, que são de acesso gratuito ou moderadamente cus-. i orrrparáveÌ à das transformações ocorridas nos últimos trinta
toso e abarcam todos os territórios nacionais. rrrros. Tudo isto é verdade. A questão não passa apenas pelas
Sabemos que a cultura letrada está em crise no mundo: t orrclições materiais de equipamento, que as escolas mais ricas,
os administradores norte-americanos vêem com inveja os re- tle gestão privada, podem encarar e, em muitos casos, resolver
sultados dos exames das crianças japonesas, que, de todo tlrrs maneiras mais estapafúrdias. Comprar um aparelho de
modo, são submetidas a disciplina de samurai para evitar o te lcvisão, um videocassete e um computador pode representar
declínio de seus desempenhos; também a escoÌa francesa hoje urìì grave obstáculo para as escolas mais pobres (que são mi-
lamenta a quecla dos padrões, sobretudo nas disciplinas huma- llrirrcs) em qualquer país latino-americano. Suponhamos, de to-
nísticas, tendo enlì'entado duas reformas consecutivas nos últi- tkr rnodo, que a Sony e a IBM decidam praticar a filantropia em
mos dez anos, isto nurna instituição já reformada no calor do t'scala gigantesca. Ainda assim o problema que pretendo iden-
clima antiinstitrrcional dos anos 70. Multiplicam-se os exemplos til'icar permaneceria, justamente porque não se trata apenas de
de um domínio mais tarclio e incompleto das capacidades ele- rrrrra questão de equipamento técnico e sim de mutação cultural.
14 cENAS DA vrDA Pós-MoDElÌNA Culturas populares, ue/ltas a nou,ts I I 5
A escola (como se diz) poderia beneÍìciar-se e aumentar ,,\ rrpr.crrclizagern é um processo de aquisição de diferenças, cx-
sua eficácia reutilizando as habilidades adquiridas peÌos alunos plolrrçho clo estranho, no qual a primeira lição consta das habr-
em outra parte: a velocidaclc do J'eeling proporcionada pelo vi- lirlrrtlcs necessárias para aprender e das condições psicomorais
deogarne; a capacidade de compreensão e resposta frente a uma (tli{irrnos assirn, à Íalta de melhor termo) imprescindíveis.
superposição de mensagens; cls conteúdos Íàmiliares e exóticos A aquisição de uma cultura comum (ideal dernocrático
oferecidos pela míclia. Seria absurdo discutir esses dados, mas tlrrc pode ser reinventado com um sentido de maior pluralismo
ainda deveríamos poder questionar se tais habilidades e saberes t' r'cspeito às diferenças, mas que não deveria ser desprezado)
são suficientes como f'erramentas para a aquisição cle outros srrllelc uma série de processos de recorte e não simplesmente
saberes e habilidades ainda hoje vinculados à palavra, ao racio- t[' continuidade fiente ao cotidiano. Aprende-se o que não sc
cínio lógico e matemático abstrato, à expressão lingüística e sirbc: esta simples idéia nos obriga a considerar outras. Em pri-
à argumentação, indispensáveis, até segunda ordem, no mundo rrrciro lugar, que a fonte de um patrimônio simbólico não está
do trabalho, da tecnologia e da política. sorr.rcnte naquilo que os sujeitos receberam e entendem como
A rapidez de leitura do videoclipe e a mão leve essencial prriprio (através da cultura vivida, familiar, étnica ou social) e
para o videogame não habilitam para a capacidade intelectual sirrr naquilo que transformarão em material conhecido através
de longa concentração nutrì ponto determinado do monitor do tlc urn processo que implica, na mesma apropriação, uma difi-
mais simples dos cornpr"rtadores, que como todos sabemos é culclade e um distanciamento.
necessária para resolver até os mais banais problemas levan- A hipotética doação da Sony às escolas pobres da Amé-
tados pelo uso dos mais banais programas. Muito menos pre- lica Latina não excluiria a dura realidade de que é necessário
param para o manejo de programas sofisticadíssimos, como rrnr salto da videocultura "espontânea" rumo a outras dimen-
o hipertexto, que em pouco tempo será relativamente acessível. sires culturais, e mesmo que isto seja Íacilitado pela incorporação
A incorporação da informática. aplicacla ao aprenclizado cle cla dimensão técnica e lúdica dos meios de cornunicação de
qualquer disciplina, requer habilidades ausentes no Nintendo: rììassa, permanece a necessidade de uma intervenção forte quc
leitura cle sintaxes hierarquizadas e complexas, menos npidez, nuo pode basear-se apenas na espontaneidade dos sujeitos. O
[renos confìança nos reflexos motores, menos impaciência, luclestramento como espectadores dos programas da Xuxa ou
resultaclos a longo ptazo, toda uma narrativa da ocorrência, do como jogadores de videogame pode ser utilizado pela escola
teste c clo fracasso que é oposta à rapidez de resultados do vi- só até um certo ponto muito inicial. Logo logo, os espectadores
cleoclipo c clo vidcogame, embora os usuários lúdicos tenham da Xuxa deverão tornar-se leitores de uma página que, por mais
corÌì iÌ rnícpinu urna relação menos distante e mais audaz que simples que seja, requer habilidades ausentes do mundo rlu
seus 1.xris c proÍcssores. A aprendizagem trabalha com poucas Xuxa.
uniclaclcs scrnânticrrs c l(lgicas por unidade de tempo, ou, em Por outro lado, apesar das Íantasias de alguns filmes clrrc
outras pulavras, corìl r.lrììu leitLrra intensiva de poucas unidades. pensam que o feminismo consiste em apresentar meninas rruris
116 cENÂs DA vrDA Pós-MoDERNA Culturas populares, uelhas e nouas I 17
hábeis que seus irmãozinhos no trato com os computadores, história, teatro e poesia. As culturas populares urbanas não
ojogador de videogame ou fanático da informática é, por velhas repudiaram essa contaminação pela cultura letrada. Pelo con-
razões culturais, muito notcllir"rnrente antes um menino que trário, adotaram dela elementos cruciais para um processo de
uma menina sobretudo nos setores populares (que não dis- rnodernização, formando uma base para dimensões culturais
-
põem de computadclres ou videogames caseiros). Assim, as comuns. Milhares de mulheres de setores médios e baixos
casas de videogames de toclas as grandes cidades latino-ame- encontraram no magistério um caminho de independência tra-
ricanas são freqüentadas por um público predominantemente balhista e apoio para um poder relativamente autônomo da
masculino. A universalidade do treinamento adquirido não é, autoridade masculina. A escola era um lugar simbolicamente
portanto, tão universal assim; é apenas, na melhor das hipóte- rico e socialmente prestigioso. Sem dúvida, a dominação sim-
ses, de meío universo. Podemos extrair daí conseqüências que bólica encontrava ali um de seus ambientes, mas a escola não
afetam o otimismo tecnológico. Antes de celebrar a doação da era somente uma instituição de dominação: ela também distribuía
Sony a todos os grupos escolares da América Latina, seria con- saberes e habilidades que os pobres só podiam adquirir por
veniente desenvolver estratégias de compensação para as ha- meio dela.
bilidades masculino-femininas que, a continuarem conforme o É verdade que a escola eliminou perfis culturais muito
movimento do mercado, carregam um forte travo de desigual- ricos. Os imigrantes entregaram seus filhos à escola, onde estes
dade sexual. perderam a língua e a cultura de seus pais e encontraram so-
As doações da Sony seriam tão inúteis quanto um velho mente a nova língua do novo país. Essa imposição, no entanto,
projetor de super-8, caso a escola as empregasse como extensão também os convertia em cidadãos e não em membros de guetos
unicamente lúdica, para convencer seus alunos de que aprender étnicos onde as diferenças culturais permanecem intatas, assim
é tão divertido quanto ver televisão. A garotada, que não é boba, como a desigualdade entre nacionais e estrangeiros, entre mem-
intuiria que não é bem assim. bros de diferentes religiões ou diferentes etnias. A escola pas-
sava uma lixa de aço, mas em compensação, sobre a tábula
As culturas populares de países como o nosso têm a es- rasa de uma brutal conversão das culturas de origem, depositava
cola como ponto de referência há um século. Erra quem vê na saberes que eram indispensáveis não somente para a formação
escola apenas um instrumento de dominação. O que a escola de mão-de-obra capitalista, mas também para o estabelecimento
proporcionava passou a fazer parte ativa dos perfis culturais das modalidades letradas da cultura operária, dos sindicatos e
popularcs. A all'abctização permitiu a difusão ampliada do jor- das intervenções na luta política.
nalismo nrorlcnro, clesde o início do século XX, e a eclosão, Numa escola forte e intervencionista, os letrados irn-
nas quatro prirnr:ilus dócadas do século, de uma poderosíssima puseram aos setores populares vaÌores, mitos, histórias e tra-
indústria editorial dc rììussa, que publicou centenas de milhares dições. Aquele, contudo, foi também um espaço laico, gratuit<r
de volumes de literatura, clivulgação científica de bom nível, e teoricamente igualitário onde os setores popuÌares purlcrirrrr
I18 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA Culturas populares, uelltas e nouas I L9
apropriar-se de instrumentos culturais que não deixariam cle lares, por isso, a questão das culturas populares e sua sempre
empregar para seus próprios fins e interesses. A escola, sem relativa autonomia passa pelos elementos que entram em cada
dúvida, não ensinava a combater a dominação simbólica, mas momento da mescla. Tudo depende das operações que os
proporcionava as fcrramentas necessárias à afirmação cla cul- setores populares estejam em condições de fazer a partir da
tura popular sobre bases distintas, mais variadas e mais mo- mescla cultural, que é inevitável e que só pode ser estigmatizada
dernas que as da experiência coticliana e os saberes tradi- a partir de uma perspectiva tradicionalista arcaizante. Ninguém
cionais. A partir dessa distribuição cle bens e habilidades cul- é responsável pela perda de uma pureza original que as culturas
turais, os setores populares realizaram processos de aclap- populares, desde o início da modernidade, nunca tiveram.
tação e reconversão muitas vezes bem-sucedidos. As mulheres, A cultura popular, assim, não tem um paradigma passado
em particular, conheceram muito cedo a igualclacle legal exigicla ao qual possa ser remetida. É impossível a restauração de uma
peÌa sua presença na escola tanto quanto a exigicla pelos ho- autenticidade que só resultaria em manifestações de um Kitsch
nlens. folclórico que não poderiam interessar sequer a seus protago-
As operações de hibridização entre culturas populares e nistas. Assim como as culturas letradas não tornam a seus
cuÌtura da mídia, hoje realizadas pelos setores populares (assim clássicos senão por meio de processos de transformação, de-
como pelo resto da sociedade), tiveram um capítulo impor- Í'ormação e ironia, as culturas populares não podem pensar suas
tantíssimo no ambiente escolar. Ali, desde o início do século origens a não ser a partir do presente. E, de todo modo, pressu-
XX, obtinham-se as habilidades necessárias para fazer parte do por essas origens já é algo de problemático: qual foi o momento
público dos grandes jornais modernos, para entender as trans- verdadeiramente autóctone de uma cultura que jír foi atravessada
formações tecnológicas e dominar seus elementos técnicos e pelos processos da modernidade? Esse momento é uma utopia
para apropriar-se de conhecimentos que permitiam usos inde- etnográÍìca que só pode tornar-se visível na vitrine de um mu-
pendentes dos objetivos institucionais. Com a aquisição cle sa_ seu. Por sorte, os setores populares carecem dessa vocação
beres que desconheciam e que não pertenciam ,,naturalmente,, etnográfica, e fazem o que podem de seu passado.
a seu mundo mais imediato, os setores populares não se acle- As condições do que pode ser feito, contudo, são ins-
quavam como robôs aos conteúdos de uma cultura dominante, táveis e dependem de políticas culturais sobre as quais os
mas também recortavam, colavam, costuravam, fìagmentavam setores populares decidem muito pouco. Os neopopulistas de
e reciclavam. A apoteose da indústria cultural capitalista, po- mercado, deslumbrados com o cruzamento entre os restos cul-
rém, não compensa a decadência da escola pública. turais populares e os meios de comunicação de massa, fecham
os olhos diante das desigualdades de acesso aos bens simbólicos
Não existem culturas descontaminadas (ou contamina- e, em conseqüência disto, preferem não se referir à dominução
das somente pela dominação das elites) e só os veÌhos populistas econômica e culturaÌ. Para esses neopopulistas, a úniclr irrr
poderiam acreditar na hipotética "pureza" das culturas popu- posição cultural preocupante é a das elites letradas (ìuc (.ons(.r
l')0 (iirNls DA vrDÁ pós-MoDERNA
Culturas populares, uelhas e nouas 121
vam um paradigma pedagógico oposto ao laissez
faire e con_ como intelectuais populistas, andavam procurando. Hoje sabe-
tinuam a sustentar, além disso, o caráter fundamental
da cultura nlos que nenhuma elite letrada tem o direito de pedir aos outros
da letra dentro da configuração cultural contemporânea.
Sobre t;ue fabriquem as essências populares ou nacionais que essa
o resto, ou seja, sobre o mais importante,
eles nada têm a dizer. clite precisa para conceber-se como elite de um povo-nação.
E o mais importante são justamente os fios com que
os Sabemos que essas substâncias nacional-populares não apenas
meios de comunicação de massa completam o
tecido esfarra_ podem constituir a base de orgulhosas identidades indepen-
pado das culturas populares. Sobre isto, uma
perspectiva cul_ tlentes, mas também que adotam, muitas vezes, as facetas mais
tural democrática e igualitária não pode deixar
de pronunciar- terríveis do nacionalismo, do racismo, do sexismo e do funda-
se' Se as políticas culturais ficarem sob a responsabiridade
do rnentalismo.
mercado capitalista, os processos de hibridização
entre veÌhas Sabemos então que, assim como não existe uma única
tradições, experiências cotidianas, novos saberes
cada vez mais cuÌtura legítima, em cuja cartilha todos devem aprender a mes-
complexos e produtos audiovisuais terão no mercado
seu ver_ rna lição, tampouco existe uma cultura popular tão sábia e po-
dadeiro ministério do planejamento. Nesse mercado
simbólico, clerosa que possa ganhar todos os confrontos com a cultura
todas as desigualdades ficam mais acentuadas:
a desigualdade dos meios de comunicação de massa, fazendo com os produtos
no acesso à instituição escolar, a desiguardade
nas possibilidades cla mídia uma colagem livre e orgulhosa, nela inscrevendo seus
de escolha dentro da oferta audiovisual, a desigualdade
de for_ próprios sentidos e apagando os sentidos e as idéias dominantes
mação cultural original. Os setores populares
não dispõem de na comunicação de massa. Ninguém pode fazer uma operação
nenhum recurso todo-poderoso para compensar
aquilo que tão a contrapelo nas horas vagas, enquanto assiste à televisão.
uma escola em crise não lhes pode oferecer, aquilo
que o ócio Os setores populares não têm mais obrigações do que
dos letrados pode adquirir quase que sem dinheiro,
aqueles bens os letrados: não é lícito esperar que sejam mais espertos, nem
do mercado audiovisual que não são gratuitos ou que
não se rnais rebeldes, nem mais persistentes, nem que vejam com mais
adaptam ao gosto que o mercado protege justamente
porque clareza, nem que representem outra coisa senão eles mesmos.
é o gosto favorável a seus produtos padronizados (que
esses Mas, em contraste com as elites econômicas e intelectuais, eÌes
produtos contribuíram para formar).
dispõem de uma quantidade menor de bens materiais e sim-
Não existe nos setores populares uma espontaneidade
bólicos, estão em condições de usufruto cultural piores e têm
cultural mais subversiva, nem mais nacionaÌista,
nem mais sá_ menores possibilidades de praticar escolhas não condicionadas
bia que a de outros grupos da sociedade. Os velhos
populistas pela pobreza da oferta ou pela escassez de recursos materiais
(antecessores dos atuais neopopulistas
de mercado) acre_ e instrumentos intelectuais; em geral demonstram mais precon-
ditavam ter encontrado no povo as reservas culturais
de uma ceitos raciais, sexuais e nacionais do que os intelectuais, que
identidade nacional. Atribuíam aos setores populares
o que eles, aprenderam a ocultá-Ìos ou mesmo a eliminá-los. Desta forma,
122 cENAs DA vrDA pós-MoDEr{NA
como as vanguardas, contra o sentido comum do público. Tam_ Por um lado, a indústria cultural não tinha acabado dc
pouco que sua arte é pura negatividade, crítica estética que
se implantar sua hegemonia sobre todas as formas culturais antc-
converte em crítica ideológica. pelo contrário, Ozu e Forcl não riores. Por outro, as vanguardas não tinham dividido por conì-
só nunca se colocaram fora da indústria cinematográfica,
como pleto, numa cisão definitiva, o campo da arte. Quando essas
afinaÌ foram pilares da cre<Jibiliclacle de um cinema de massa
rnudanças aconteceram, na segunda metade do século XX' a
nas décadas de 30 e 40. Junto com as banalidades que
os gran_ ampliação estratificada dos públicos e a experimentação estética
des estúdios atiravam sobre as teras de todo o planeta,
os firmes passaram a trilhar caminhos distintos, que se cruzam apenas
de Ozu e Ford (ou os de Wyler, ou antes de Griffith e Chaplin,
em casos inteiramente excepcionais. Com a música e a literatu-
mas também os de Hitchcock, para irmos direto ao assunto)
ra, isso aconteceu antes do que com o cinema.
são obras perfeitas, em que a linguagem do cinema está
desen_ Por que devemos nos preocupar com um processo que
volvida a ponto de alcançar seu estágio clássico. São filmes per_
parece irreversível e que, além disso, apresenta aspectos demo-
feitamente reconhecíveis: os planos gerais de Ford e os enqua_
cráticos? Com efeito, a implantação das indústrias culturais tem
dramentos de Ozu hoje são consiclerados marcas pessoais que
conseqüências niveladoras e levanta um marco de ferro para
passaram a fazer parte da gramática do cinema.
aquilo que muitos se comprazem em chamar de "cultura co-
A pergunta sobre Ozu e Ford pocleria ser multiplicada
mum". Ninguém pretende colocar-se nas antípodas desse oti-
indefinidamente: por que temos a convicção de que Cqntando
mismo, e muito menos fazer a crítica elitista desses protestos'
na chuva está tão longe de Fann ou Embalos cÌe sábado
à noì_ Nas páginas seguintes, contudo, tratarei de apresentar,
le? O filme de Stanley Donen e Gene Kelly foi, de imediato,
um grande sucesso e um modelo de musical, cuja obsessivi_ através de uma série de retratos de escritores e pintores, os
dade detalhista construía uma forma impecável. O que traços tipicamente modernos da arte, que a cultura audiovisual
conver_
tia esses diretores e esses filmes, de uma vez por toclas, cle mercado parece destinar a um desvão visitado apenas pelos
em
façanhas estéticas singulares e grandes favoritos de todos especialistas ou por públicos muito vocacionais. Embora suas
os
públicos? obras sejam expostas ou publicadas, o modelo de artista que
Talvez a pergunta não esteja bem posta. provavelmente, csses retratos apresentam foi tocado por uma clara margi-
a formulação correta seria: o que permitia que Ford, nalidade. Existem, sem dúvida, grandes escritores cujos livros
Ozu,
Hitchcock e Wyler fossem compreendidos por um público de atraem centenas de milhares de leitores; mesmo assim, um IÌlo-
massa, que consumia o cinema mais banal mas também vimento como o boom da literatura latino-americana, nos lìll()s
,Rio
Grandc e Ilistória ent Tóquìo? O que se passava com a cultura 60 e 10, hoje atravessa uma fase quase residual, em que itpclìrrs
desse público'/ Sob que condições Ozu e Ford conseguiram os autores consagrados naquele tempo conservam o 1lt'iblito
não ser tolcracl.s ìr margem (um no Japão e o outro nos Estados massivo que então se constituiu.
Unidos) e sinr nritrrlcr-sc no centro de um sistema de produção Os retratos que proponho tentam provar a vurictltttl,' crtrtr
e consagração'/ que a arte opera. Ela cruza e superpõe faixas bctrl tlilì'rt'rrlr'"
1 26 cl:NÁs r)Â vrDA pós-MoDERNA
O lugar da arte 127
cultura de massas, grandes tradições estéticas,
cuìturas popu_ Instantâneos
lares, a linguagem mais próxima clo cotidiano,
a tensão poética,
dimensões subjetivas e privadas, paixões públicas. Duas perspectivas. Leu histórias em quadrinhos e viu
Aí estão as
pegadas, evidentes ou secretas, de experiências tclevisão durante toda a sua infância. Lembra-se de todos os
que todos
compartilhamos mas que, por alguma razão, iingles, todos os episódios dos seriados americanos e sabe de
só aÌguns homens
e mulheres transf'ormam em matéria cle um objeto cor falas de telenovelas que os próprios roteiristas esqueceram.
estético.
Assim transformadas, permitem um conhecimento l)c música popular, pouca coisa desconhece, e não tem qualquer
e um
reconhecimento de conclições comuns., ;lreconceito quanto a uma hierarquia de gêneros, canções ou
são o que somos, mas
de maneira mais tensa, mais precisa, mais intérpretes: gosta dos melhores e dos piores. Quis ser baterista,
nítida e também mais
ambígua. Uma distância (que é a forma rnas ninguém em sua família se mostrou disposto a suportar
estética) possibiÌita ver
mais. Ninguém é obrigaclo a viver a situação semelhante extravagância; comprou então uns atabaques com
em que a arte nos
coloca. Entretanto, por princípio, ninguém os quais percorreu, aos 20 anos, botecos em praias de segun-
está dela excluído.
A intensidade formal e semântica é alcançada quando, da categoria. Quando passou a estudar pintura aproximou-se
a
partir daquilo que têm à mão, alguns homens da vanguarda teatraÌ e participou da encenação experimental cle
e murheres criam
configurações especi ai s, de uma a rb it rar i uma peça de Plauto. Depois abandonou o teatro porque não
e dade ne c e s s árìa. Não
existe só um tipo de artista; estes perfis pretendem gostava de ficar descalço no palco. Pela televisão, viu todas
capturar
biografias em miniatura, ,.casos" nos quais as comédias argentinas e todos os meÌodramas mexicanos dos
cada um tem suas
estratégias para escolher os assuntos e anos 40 e 50. Nas cinematecas viu todo o Godarcl que pôde;
deliberar sobre as for_
mas, respeitar ou transgreclir os limites,
expressar o que se crê conhece de memória as seqüências dos filmes de Coppola. Lê
saber, Íalar ou calar sobre o que faz.
Não se é artista de uma por alto romances e poemas; lê de ponta a ponta os jornais e
só rnaneira, porque se trabalha com instrumentos
que cada um as revistas mais diversos. Durante sua única viagem longa aos
aprende a usar, modifica ou inventa. Não
se é artista de uma Estados Unidos, fìeqüentou com a mesma regulariclade o Museu
só maneira porque alguns experimentam
a plenitude do signi_ de Arte Moderna e as casas que só tocavam Tito puente. Se
ficado e outros vivem na dúvida sobre a possibilidacle
cte, afinal, algum amigo vai ao exterior, encomenda, com a mesma urgên-
dizer de fato alguma coisa. Não se é artista
de uma só maneira cia, livros de Turner e discos difíceis cle salsa ou latin ja7.7.
porque a rccle invisíveÌ de experiência
e cuÌtura, razão e ima_ Não conhece limites entre níveis culturais: passeia, sem pre-
ginaçho, ckr cpte se sabe e do que nunca
se poderá saber, é tecida conceitos e muitas vezes sem princípios, entre o Kitsch e o su_
sempre conr Í'ios clif'erentes.
blime. Aprecia o mau gosto, sem fazer disto uma reivindicação
Ent norrrc rla cliversiclacle da espécie humana,
para manter populista.
a reivindic'çã. c' su. escala ecológica
menos exigente, seria Trabalha seus desenhos com a obsessão de um minia_
necessário prescrvlrr rnoclelos como os que
posaram para os turista. Enquanto desenha, Íala com quem estiver perto, pára
instantâneos aprcsenluclos a seguir.
e gosta de ser interrompido; distrai-se com a mesma intensidade