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Renascimento

Luiza realmente não queria se levantar quando o rádio-relógio tocou, no horário de


sempre. Sentia-se mais pesada, era como se o colchão a imobilizasse. Não, não se tratava de
uma preguicinha matutina qualquer. Já vinha sentindo isso há alguns dias. E parece que estava
piorando. Um desânimo crescente, um descontentamento sem causa, uma tristeza indefinida.
Difícil descrever.
Iria chegar atrasada novamente, paciência. Uma conversa franca com o chefe deveria
resolver o caso por ora. Dr. Paulo era um sujeito compreensivo, e os 15 anos de casa como
secretária – conduta irrepreensível – mais os outros 5 anos como seu braço direito – eficiência
à toda prova – certamente também contariam.
Vestiu-se com um esforço sobre-humano, o primeiro trabalho de Hércules do dia. Um
dia como todos os outros, mas que parecia mais difícil que os da semana passada e, tudo fazia
crer, seria menos penoso que os da semana vindoura.
Luiza deixou-se cair no banco do seu carro hatch. Achava que a mulher tinha que ter
carro hatch. Muito mais feminino. Carro sedan era coisa de homem, meio sisudo, não
combinava com a sensibilidade da mulher. Um conceito que, agora, parecia não ter mais
nenhuma importância, assim como muita coisa em sua vida vinha perdendo importância. Sua
própria vida lhe parecia sem importância alguma atualmente. Não havia uma causa
distinguível. Não era propriamente solidão, sempre vivera sozinha. No entanto, sentia-se só
agora, estranhamente só.
Ligou o carro, acionou o piloto automático do seu cérebro e poucos minutos depois
estava na garagem do prédio comercial. Deixou a chave com o Zé manobrista, acompanhada
de um sorriso mecânico. Entrou no elevador, subiu até o 14º andar e foi direto para a sala do
Dr. Paulo, o chefe compreensivo.
—Desculpe o atraso, Paulo.
—É “desculpe-me pelo atraso”, Luiza, disse ele querendo fazer graça. Em outros
tempos ela teria rido dessa sua mania de português correto, mas agora não conseguia nem
mesmo esboçar um sorriso de gentileza.
—Não sei o que está acontecendo. Sinto um desânimo enorme. Não vejo graça em
nada. Sinceramente, queria mesmo é estar na cama agora, com o cobertor até os olhos e a
cortina fechada.
Dr. Paulo olhou seriamente para ela.
—Você está com problemas. Acho que é um quadro de depressão. Já vi casos
semelhantes, na minha família inclusive. Quero que faça o seguinte: vá para casa, descanse,
marque consulta com um psiquiatra e só retorne quando estiver em tratamento e se sentir
melhor. Não se preocupe com nada. Essa crise deixou as coisas meio paradas por aqui, como
você sabe.
—Obrigada. Obrigada mesmo. Agradecimento sincero, mas sem ênfase. Um tímido
sorriso ainda ameaçou brotar em seu rosto abatido, sem sucesso. Luiza se virou e, sem falar
com os demais colegas, voltou para casa.
Deitada no sofá, com a televisão ligada, ela abriu o manual do plano médico. Ligou
para o primeiro médico de alma que encontrou e marcou uma consulta para a manhã seguinte.
Durante a consulta, recebeu o diagnóstico, sem necessidade de exames
complementares: depressão moderada. “Moderada? O que sente então quem está com
depressão profunda?...” Enquanto ruminava esses pensamentos, ficou sabendo que seu
problema era ocasionado por um singular desbalanceamento químico no cérebro. Os níveis de
certos neurotransmissores estariam anormalmente baixos nas sinapses. Uma recaptação
indesejável dessas substâncias pelos neurônios estava dificultando a troca de impulsos
elétricos entre eles. O resultado disso era a depressão.

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Médicos normalmente não dão informações assim tão técnicas aos pacientes, mas fora
a própria Luiza que insistira. Queria entender o que estava acontecendo com ela. “É como
uma bateria de carro que fica sem água entre as placas”, complementou o médico, apontando
para o hatch de Luiza, um pouco sujinho, visível através da janela.
Luiza foi para casa com uma receita de antidepressivo de última geração e a
recomendação de fazer exercícios físicos. Decorreriam pelo menos umas duas semanas até
que começasse a sentir alguma melhora. Até lá, os sintomas poderiam até piorar, mas ela
deveria resistir e não deixar de tomar o medicamento na dosagem recomendada.
Ela atravessou com bravura esse período crítico. Depois, de fato, sentiu alguma
melhora. Não que a alegria de viver tivesse voltado, longe disso. Mas pelo menos se sentia
meio anestesiada. A tristeza não lhe pesava tanto, embora ainda estivesse ali dentro, quase
palpável. O desânimo arrefecera um pouco, sem contudo dar lugar ao entusiasmo. Dava para
ir levando. Mais alguns dias e estaria de volta ao trabalho.
Quando finalmente retornou, Luiza até já conseguia sorrir e conversar quase
animadamente com os colegas que, a seu pedido, não sabiam da causa do afastamento.
—Por favor, Luiza, veja o que dá pra fazer nesse caso, disse Dr. Paulo certo dia,
entregando-lhe um papel com umas anotações à mão. Fiz algumas sugestões.
Desde que ela havia retornado ao trabalho, Paulo estava sempre incentivando-a a
desenvolver novos planos para a empresa.
—Vou trabalhar essa ideia com cuidado.
—É “vou trabalhar nessa ideia”. E se você soltar outro “a nível de”, leva suspensão de
uma semana! Risos de ambos os lados. A vida seguia a uns 70% do normal para os dois
amigos.
Era imenso o número de pessoas que padeciam de depressão. Isso Luiza constatou
logo, numa simples pesquisa na Internet. Havia grupos de ajuda, terapias alternativas,
comunidades em sites de relacionamento, e livros, muitos livros sobre o assunto. Luiza
acabou lendo alguns deles. E, dentre esses, quase todos falavam da necessidade de se manter
uma atitude otimista em relação à vida, de se cultivar pensamentos positivos.
Ela bem que tentou. Mesmo. Mas os resultados não foram os esperados ou, melhor
dizendo, não apareceu nenhum resultado. Continuava a viver razoavelmente bem com o
medicamento, mas o ânimo de antes nunca mais retornara. Esse negócio de forçar bons
pensamentos lhe parecia justamente algo meio forçado, antinatural. Talvez por isso não desse
resultado. Pelo menos com ela não estava funcionando.
Luiza se conformou. Dava para viver assim e já estava bom demais... Meses se
passaram nessa toada. O médico até diminuiu a dosagem do medicamento, mas nem pensar
em ficar livre dele, isso ele havia dito com todas as letras.
Mesmo sem sofrer como antes, Luiza se tornara mais introspectiva, mais pensativa.
Havia um vazio dentro dela, não tão dolorido como antes, é verdade, mas estava lá, alguma
coisa meio oca. Continuava sentindo-se só, sem porém associar esse sentimento à quietude
que tanto prezava. Esquisito. Difícil acreditar que tudo isso era produto de uns neurônios
travessos que se recusavam a mandar impulsos elétricos uns para os outros, com a desculpa de
que os neurotransmissores – um tipo de motoboy neurológico – haviam entrado em greve.
Medicamentos antidepressivos, afinal, nada mais eram também do que eletricistas
moleculares, e meio marretas diga-se de passagem, já que nunca conseguiam resolver de vez
o problema.
Um ano depois do recrudescimento dos sintomas da depressão e do início do
tratamento, Luiza ainda pensava e repensava na sua situação. Num sábado à noite fez um
rápido balanço da sua vida. O saldo não lhe pareceu muito animador. Se ela deixasse esse
mundo agora, no que ele teria se tornado melhor com a sua passagem?...

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“Calma, Luiza, é muita pretensão imaginar que você teria o poder, ou o dever, de
tornar o mundo um lugar melhor. Você foi e é uma boa pessoa, e isso é tudo. Já está bom
demais.”
Tudo bem, talvez fossem apenas pensamentos de um depressivo em tratamento, mas,
de alguma maneira, ela achava que podia sim, que deveria fazer algo mais enquanto estivesse
por aqui. Mas o que?
“Vou fazer algo muito simples, vou tornar-me uma pessoa um pouco melhor, mais
simpática, só isso. Não custa nada.”
Com surpresa, Luiza constatou que essa simples resolução de meio de ano lhe dava
acesso a múltiplas possibilidades. Começou cumprimentando o seu João-porteiro com um
sorriso mais aberto. Aberto, e não forçado, pois de fato queria que ele tivesse um bom dia.
“Bom dia, seu João! Esfriou, não? Final de outono e esse vento gelado. O senhor melhorou do
joelho?” Seu João abriu um largo sorriso e discorreu alegremente sobre os derradeiros efeitos
da última crise de gota.
E assim Luiza foi fazendo com as outras pessoas de sua relação, como se fosse um
treinamento, um condicionamento da personalidade. Não precisava ser amigo, nem mesmo
conhecido. Tratava todos muito bem, mostrava real interesse. “Menina, você não cansa de
passar tanto produto nessa maquininha?”, perguntou certo dia à moça do caixa do
supermercado. A jovem, surpresa, explicou que já estava acostumada, que no começo, sim,
ficava um pouco cansada, mas agora não mais. Quando se despediram, o sorriso da moça não
se desvaneceu de imediato, mas permaneceu por longos minutos, e ainda retornou vez por
outra durante o dia.
Coisas pequenas passaram a ter um significado especial: um passarinho se banhando
numa poça d’água, uma criança carregando um balão, um abraço de duas amigas que se
encontravam casualmente. Começou a ver poesia em tudo. A vida parecia um poema. Cabia a
nós, os personagens, encontrar as rimas certas em cada situação.
Certo dia, no estacionamento do Shopping, encontrou uma senhora exasperada ao
celular. Pneu furado. A ajuda ia demorar. Luiza propôs a ela encarar o desafio. Vencida a leve
hesitação da senhora, ambas puseram mãos à obra. Levaram exatos 57 minutos para efetuar a
troca, aí incluído o tempo em que se revezaram em pular sobre a chave de roda, para garantir
a segurança da operação. Terminado o trabalho, já eram amigas de infância, com um evento
conjunto agendado para o próximo sábado. E assim seguia a nova vida de Luiza, de
descoberta em descoberta, de vivência em vivência.
Os colegas de trabalho comentavam a transformação visível que ela deixava
transparecer no trato cotidiano. Nunca fora antipática, claro que não, mas agora andava
especialmente solícita, sempre com um sorriso fácil, não estudado, a emoldurar suas palavras,
independentemente do assunto. Ela mesma acabou contando aos colegas que tivera um
episódio de depressão, mas que já se sentia muito melhor.
—Puxa, esses remédios de hoje fazem milagres, não é mesmo D. Luiza?
—É verdade, Ricoleta, é verdade. Olhar de ternura para a moça do café, e um sorriso
franco pelo seu típico sotaque argentino.
Algo havia mudado dentro de Luiza. Era alguma coisa diferente, boa, como um
bálsamo numa ferida. E ela se atreveu a chamar esse sentimento de paz. E procurou entender
o que havia provocado isso.
“O remédio certamente ajudou. Não fosse por ele eu não teria tido nem ânimo de
tentar uma mudança qualquer em mim. Mas o que realmente fez a diferença foi justamente
essa mudança tão simples. Tenho certeza disso, embora não entenda bem o processo.” Com
esses pensamentos, foi dormir. Em paz.
Mais alguns meses e Luiza foi dispensada da medicação. Estava de volta à vida.
Integralmente. Era como se tivesse nascido de novo. Com base na sua vivência particular,
com seu reconhecimento de até então, procurou aperfeiçoar cada vez mais o seu modo de ser

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em relação aos outros. O interesse que manifestava aos que estavam à sua volta era
verdadeiro, irradiava sinceridade. Nada de calculado. Com o tempo notou que a paz que
habitava dentro dela ganhara um companheiro: a alegria. Mais um pouco e ambos os
sentimentos se fundiram num terceiro. Luiza tornara-se uma pessoa feliz. Não buscara a
felicidade conscientemente, mas fora encontrada por ela.
—Vamos almoçar no chinês hoje, Luiza?, convidou Paulo.
—Vamos, só um momento. Preciso terminar isso aqui. Me dá uns minutos.
—É “dá-me uns minutos”. Não se pode iniciar uma frase com
pronome oblíquo átono. Dar-te-ei três minutos.
—E eu dar-te-ei um grampeador na cabeça.
Saíram juntos, Paulo assobiando uma música da MPB e Luiza cantarolando baixinho.
A vida, afinal, tinha mesmo sentido. E nem era tão difícil assim descobri-lo.

Plato Junior

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