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O Desertor

Poema Herói-cômico
Por
Manuel Inácio da Silva Alvarenga,
na Arcádia Ultramarina Alcindo Palmireno
SUMÁRIO

Discurso sobre o Poema Herói-cômico


Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Sonetos
D ISCURSO SOBRE O P OEMA H ERÓI -C ÔMICO

A imitação da Natureza, em que consiste toda a força da Poesia, é o meio mais eficaz para
mover, e deleitar os homens; porque estes têm um inato amor à imitação, harmonia, e ritmo. Aristóteles,
que bem tinha estudado a origem das paixões, assim o afirma no cap. 4° da Poética. Este inato amor foi
o que logo ao princípio ensinou a imitar o Canto das Aves: ele depois foi o inventor da Flauta, e da
Poesia, como felizmente exprimiu Lucrécio no liv. 1 ° v. 1378.
At liquidas avium voces imitarier ore
Ante fuit multo, quam levia carmina cantu
Concelebrare homines possent, aureisque juvare.
Et Zephyri cava per calamorum sibila primum
Agrestes docuere cavas inflare cicutas.

O prazer, que nos causam todas as artes imitadoras, é a mais segura prova deste princípio.
Mas assim como o sábio Pintor para mover a compaixão não representa um quadro alegre, e risonho, também
o hábil Poeta deve escolher para a sua imitação ações conducentes ao fim que se propõe: por isso o
Épico, que pertende inspirar a admiração, e o amor da virtude, imita uma ação na qual possam aparecer
brilhantes o valor, a piedade, a constância, a prudência, o amor da Pátria, a veneração dos Príncipes, o
respeito das Leis, e os sentimentos da humanidade. O Trágico, que por meio do terror, e da compaixão
deseja purgar o que há de mais violento em as nossas paixões, escolhe ação, onde possa ver-se o horror
do crime acompanhado da infâmia, do temor, do remorso, da desesperação, e do castigo: enquanto o
Cômico acha nas ações vulgares um dilatado campo à irrisão, com que repreende os vícios.
Qual destas imitações consegue mais depressa o seu fim, é difícil o julgar, sendo tão diferentes os
caracteres, como as inclinações; mas quase sempre o coração humano, regido pe las leis do seu
amor próprio, é mais fácil em ouvir a censura dos vícios, do que o louvor das virtudes alheias.
O poema Chamado Herói-Cômico, porque abraça ao mesmo tempo uma e outra espécie de
poesia, é a imitação de uma ação cômica heroicamente tratada. Este Poema pareceu monstruoso aos
Críticos mais escrupulosos; porque se não pode (dizem eles) assinar o seu verdadeiro caráter. Isto é mais
uma nota pueril, do que bem fundada crítica; pois a mistura do heróico, e do cômico não envolve a
contradição, que se acha na Tragicomédia, onde o terror, e o riso mutuamente se destroem.
Não obsta a autoridade de Platão referida por muitos; porque quando este Filósofo no Diálogo 3 da
sua República parece dizer que são incompatíveis duas diversas imitações, fala expressamente dos Autores
Trágicos, e Cômicos, que jamais serão perfeitos em ambas.
Esta Poesia não foi desconhecida dos Antigos. Homero daria mais de um modelo digno da sua
mão, se o tempo, que respeitou a Batracomiomaquia, deixasse chegar a nós o seu
Margites, de que fala Aristóteles no cap. 4 da Poética, dizendo que este poema tinha com a
Comédia a mesma relação que a Ilíada com a Tragédia. O Culex, ou seja de Virgílio, ou de outro
qualquer, não contribui pouco para confirmar a sua antiguidade.
Muitos são os poemas herói-cômicos modernos. A Secchia rapita de Tassoni é para os Italianos
o mesmo que o Lutrin de Boileau para os Franceses, e o Hudibraz de Butler, e o Rape of the lock de Pope
para os Ingleses.
Uns sujeitaram o poema herói-cômico a todos os preceitos da Epopéia, e quiseram que só diferisse
pelo cômico da ação, e misturaram o ridículo, e o sublime de tal sorte, que servindo um de realce a outro,
fizeram aparecer novas belezas em ambos os gêneros. Outros omitindo, ou talvez desprezando algumas
regras, abriram novos caminhos à sua engenhosa fantasia, e mostraram disfarçada com inocentes
graciosidades a crítica mais insinuante, como M. Gresset no seu Ververt.
Não faltou quem tratasse comicamente uma ação heróica; mas esta imitação não foi também
recebida, ainda que a Paródia da Eneida, de Scarron, possa servir de modelo.
É desnecessário trazer à memória a autoridade, e o sucesso de tão ilustres Poetas para justificar o
Poema Herói-cômico, quando não há quem duvide que ele, porque imita, move, e deleita: e porque
mostra ridículo o vício, e amável a Virtude, consegue o fim da verdadeira poesia.
Omne tulit punctum, qui miscuit utile dulci.
Horat. Poet. v. 342.
Discit enim citius, meminitque libentius illud,
Quod quis deridet, quam quod probat, ac veneratur.
Horat. Epist. I. 1. 2. v. 262.

C ANTO I

Musas, cantai o Desertor das letras, Restaurador do seu Império antigo.


Que, depois dos estragos da Ignorância, Brilhante luz, paterna liberdade,
Por longos, e duríssimos trabalhos Vós, que fostes num dia sepultadas
Conduziu sempre firme os companheiros Co bravo Rei nos campos de Marrocos,
Desde o loiro Mondego aos Pátrios montes. Quando traidoras, ímpias mãos o armaram
Em vão se opõem as luzes da Verdade Vítima ilustre da ambição alheia,
Ao fim, que já na idéia tem proposto: Tornai, tornai a nós. Da régia stirpe
E em vão do Tio as iras o ameaçam. Renasce o vingador da antiga afronta.
Assim o novo Cipião crescia
E tu, que à sombra duma mão benigna, Para terror da bárbara Cartago.
Gênio da Lusitânia, no teu seio Possam meus olhos ver o Ismaelita
De novo alentas as amáveis Artes; Nadar em sangue, e pálido de susto
Se ao surgir do letargo vergonhoso fugir da morte, e mendigar cadeias;
Não receias pisar da Glória a estrada, E amontoando Luas sobre alfanges
Dirige o meu batel, que as velas solta, Formar degraus ao Trono Lusitano.
O porto deixa, e rompe os vastos mares Dissiparam-se as trevas horrorosas,
De perigosas Sirtes povoados. Que os belos horizontes assombravam,
E a suspirada luz nos aparece.
Quais seriam as causas, quais os meios Tal depois que raivoso, e sibilante
Por que Gonçalo renuncia os livros? Sobre o carro da Noite o Euro açoita
Os conselhos, e indústrias da Ignorância Os tardios cavalos do Bootes,
O fizeram curvar ao peso enorme E insulta as terras, e revolve os mares,
De tão difícil, e arriscada empresa. Raia a manhã serena entre doiradas,
E tanto pode a rústica progênie! E brancas nuvens: ri-se o Céu, e a Terra:
Vento dorme, e as Horas vigilantes
A vós, por quem a Pátria altiva enlaça Abrem ao claro Sol a azul campanha.
Entre as penas vermelhas, e amarelas
Honrosas palmas, e sagrados loiros, A soberba Ignorância entanto observa,
Firme coluna, escudo impenetrável E se confunde ao ver o próprio trono
Aos assaltos do Abuso, e da Ignorância, Abalar-se, e cair: o seu ruído
A vós pertence o proteger meus versos. Redobra os ecos nos opostos vales,
Consenti que eles voem sem receio E o Mondego feliz ao mar undoso
Vaidosos de levar o vosso nome Leva alegre a notícia, porque chegue
Aos apartados climas, onde chegam Das suas praias aos confins da Terra.
Os ecos imortais da Lusa glória. Ela abatida, e só não acha abrigo,
E desta sorte em seu temor suspira.
Já o invicto Marquês com régia pompa
Da risonha Cidade avista os muros. Verei eu sepultar-se entre ruínas
Já toca a larga ponte em áureo coche. O meu reino, o meu nome, e a minha glória;
Ali junta a brilhante Infantaria; Depois de ser temida, e respeitada?
Ao rouco som de música guerreira Pobre resto de míseros vassalos
Troveja por espaços: a justiça, Não há mais que esperar. Já fui rainha:
Fecunda mãe da Paz, e da Abundância, Já fostes venturosos: não soframos
Vem a seu lado: as Filhas da Memória As injúrias, que o vulgo nos prepara:
Digna imortal coroa lhe oferecem, Injúrias mais cruéis do que a desgraça.
Prêmio de seus trabalhos: as Ciências Deixemos para sempre estes terríveis
Tornam com ele aos ares do Mondego; Climas de mágoa, susto, horror, e estrago.
E a Verdade entre júbilos o aclama Mostrai-me algum lugar desconhecido,
Onde oculta repouse, até que possa Caiu de todo a Ponte, e se acabaram
Tomar de quem me ofende alta vingança. As distinções, que tudo defendiam,
Mas onde, se um Prelado formidável, E o ergo, que fará saudade a muitos!
Esse Argos, que me assusta, vigilante Noutro tempo dos Sábios era a língua
Ao lugar mais remoto estende a vista? Forma, e mais forma: tudo enfim se acaba,
Monstros do cego abismo, em meu socorro Ou se muda em pior. Que alegres dias
Empenhai o poder do vosso braço; Não foram os de Maio, quando a estrada
Que se entre os homens me faltar asilo, Se enchia de Arrieiros, e Estudantes!
Ao triste vão dos ásperos rochedos, Ó tempo alegre, e bem-aventurado!
Onde o Tenaro escuro, e cavernoso Que fácil era então o azul Capelo
Da morada sombria as portas abre, Adornado de franjas, e alamares,
Irei chorar meus dias sem ventura: O rico anel, e a flutuante borla,
Irei... Assim falando misturava Honra, e fortuna, que chegava a todos!
Gemidos, e soluços, que sufocam Hoje é grande a carreira, e serão raros
Dentro do peito a voz, e umedecia Os que se atrevam a tocar a meta.
Co pranto amargo a face descorada. Ah Gonçalo! Gonçalo! que mais vale
Mas logo, serenando o rosto aflito, Tirar coa própria mão no fértil Souto
Corre por entre sustos, e esperanças Moles castanhas do espinhoso ouriço!
Ao caro abrigo do fiel Gonçalo. Quanto é doce ao voltar da Primavera
A sonolenta, a pigra Ociosidade O saboroso mel no loiro favo!
Por esta vez deixou de acompanhá-la: Ó alegre, e famosa Mioselha
E a lânguida Perguiça forcejando Fértil em queijos, fértil em tramoços!
Pôde apenas segui-la com os olhos. Só lá de romaria em romaria
Podes viver feliz, e descansado:
Toma a forma dum célebre Antiquário Quem te obriga a levar sobre os teus ombros
Sebastianista acérrimo, incansável, O desmedido peso, que te espera?
Libertino com capa de devoto. Não tenhas do bom Tio algum receio:
Tem macilento o rosto, os olhos vivos, Comigo irás: bem sabes quanto posso.
Pesado o ventre, o passo vagaroso. Se te envergonhas de ser só, descansa;
Nunca trajou à moda: uma casaca Fiel parente, amigo inseparável,
Da cor da noite o veste, e traz pendentes Eu farei que abraçando o mesmo exemplo
Largos canhões do tempo dos Afonsos. Muitos se apressem a seguir teus passos.
Dizem que o tempo da mais bela idade
Consagrou às questões do Peripato. Assim falava: quando um ar de riso
Já viu passar dez lustros, e experiente Apareceu no rosto de Gonçalo.
Sabe enredos urdir, e pôr-se em salvo. Tudo o que se deseja se acredita;
Entra por toda a parte, e em toda a parte Nem há quem o seu gosto desaprove.
É conhecido o nome de Tibúrcio. Ele porque já traz no pensamento
Poupar-se dos estudos à fadiga
Gonçalo, que foi sempre desejoso Não vacila na escolha, e se aproveita
Da mais bela instrução, lia, e relia Da feliz ocasião, que lhe assegura
Ora os longos acasos de Rosaura, O meditado fim de seus desejos.
Ora as tristes desgraças de Florinda,
E sempre se detinha com mais gosto Convocam-se os heróis, e deliberam
Na cova Tristiféia, e na passagem Em pleno consistório, onde Gonçalo
Da perigosa ponte de Mantible. Silêncio pede, e assim a todos fala.
Repetia de cor de Albano as queixas Heróis, a quem uma alma livre anima,
Chamando a Damiana injusta, ingrata; Que desprezando as Artes, e as Ciências,
Quando Tibúrcio apaixonado, e triste Ides buscar da Pátria no regaço,
Ralhando entrou. Que esperas tu dos livros? Longe da sujeição, e da fadiga
Crês que ainda apareçam grandes homens Doce descanso, amável liberdade:
Por estas invenções, com que se apartam Se algum de vós (o que eu não creio) ainda
Da profunda ciência dos antigos? Tem na alma o vão desejo dos estudos,
Morreram as postilas, e os Cadernos: Levante o dedo ao alto. Uns para os outros
olharam de repente, e de repente Que os meus males recorde? enfim, perjuro,
Rouco, e brando sussurro ao ar se espalha: As tuas vãs promessas me enganaram.
Qual nos bosques de Tempe, ou nas frondosas Justiça pedirei ao Céu, e ao Mundo:
Margens, que banha o plácido Mondego, O mundo tem prisões, o Céu tem raios.
Costuma ouvir-se o Zéfiro suave,
Quando meneia os álamos sombrios. Falava; e o herói, que arrasta ainda
Nenhum alçou a mão, e a Ignorância Dum incômodo amor os duros ferros,
Pareceu consolar-se, imaginando Parece vacilar; quando Tibúrcio
Sonhadas glórias de futuro império. Dá conselhos a um, a outro ameaça
Pondo irados os olhos em Narcisa.
Dispõe-se a companhia, e se aparelha Diz-lhe que em vão suspira, que em vão chora
Para partir antes que o Sol desate E que sempre tiveram as mulheres
Sobre a Terra orvalhada as tranças d'oiro. Para enganar aos míseros amantes
Tibúrcio tudo apronta. Mas Janeiro As lágrimas no rosto, o riso na alma.
Loquaz, traidor, doméstico inimigo Gonçalo então, que o seu dever conhece,
Voa de casa em casa publicando Dá provas de valor, e de prudência.
Da forte esquadra a próxima partida. Ouve Narcisa bela, (lhe dizia)
Serena a tua dor, e os teus queixumes:
Guiomar, velha que há muito que insensível O teu pranto me move, injusto pranto,
Às delícias do amor, aferrolhando Que o meu constante amor de ingrato acusa:
Emagrece nos míseros cuidados Sossega: a nova herança dum morgado
Da faminta ambição, e é na Cidade É quem me chama, a ausência será breve.
Uma ave de rapina, que entre as unhas Tempo depois virá que em doces laços
Leva tudo o que encontra aos ermos cumes Eterno amor as nossas al mas prenda,
Da escalvada montanha, onde a festejam E então farás tibornas e magustos.
Coa boca aberta os ávidos filhinhos: Nem sempre cobre o mar a longa praia:
Triste agora, e infeliz ouve, e se assusta Nem sempre o vento com furor raivoso
Das notícias cruéis, que o Moço espalha. Do robusto pinheiro o tronco açoita.
Ó Ama desgraçada! Ó dia infausto!
Agora que esperava mais sossego Acaba de falar, e lhe oferece
Principiam de novo os meus trabalhos! A leve bolsa, que Narcisa aceita
Estas, e outras palavras arrancava Como penhor sincero de amizade,
Do peito descontente, enquanto a Filha Bolsa, que deve ser na dura ausência
Amorosa, e sagaz estuda os meios, Breve consolação de tristes mágoas.
Com que possa deter o ingrato amante:
Faz ajuntar de partes mil à pressa O experto Amigo, que se mostra em tudo
Cordões, e anéis, e a pedra reluzente, Companheiro fiel, com os olhos tristes,
Que os olhos desafia: os seus cabelos, Pondera os longos, e ásperos caminhos:
Que desconhecem o toucado, empasta Lembra funestas noites de estalagem,
Coa cheirosa pomada: a Mãe se lembra E adverte em vão, que ao menos por cautela
Da própria mocidade, e lhe vai pondo Deve fazer-lhe a bolsa companhia.
Com a trêmula mão vermelhas fitas. Deixando enfim inúteis argumentos
Simples noiva da aldeia, que ao mover-se Remete a decisão ao próprio braço.
Teme perder o desusado adorno, Não se esquecem das unhas, nem dos dentes,
Nunca formou mais vagarosa os passos. Armas, que a todos deu a Natureza.
Narcisa chega entre raivosa, e triste, Ouvem-se pela casa em som confuso
E fingindo esquecer-se da mantilha As troncadas injúrias, e os queixumes.
Para mostrar-se irada, desta sorte Assim dois cães, se o hóspede imprudente
Em alta voz lhe fala. Será certo Lança da mesa os ossos esburgados,
Que pertendes fugir, e que me deixas Prontos avançam; duma, e doutra parte
Infeliz, enganada, e descontente? Se vê firme o valor: mordem-se, e rosnam;
Assim faltas cruel, pérfido, ingrato Mas não cessa a contenda. Amigo, e amante,
Dum longo amor aos ternos juramentos? Que farias, Gonçalo, em tanto aperto?
Não disseste mil vezes... mas que importa Concorre a plebe, e o férvido tumulto
Vai pelas negras Fúrias conduzido E espera ouvir gemer em poucas horas
Despertando nos peitos a desordem. O mancebo infeliz em prisão dura.
Ninguém sabe por quê, mas todos gritam. Mas Rodrigo, que ouviu o rumor vago,
Já voam as cadeiras pelos ares: À pressa chega, e desta sorte fala.
Pedras, e paus de longe se arremessam.
E se a cândida Paz com rosto alegre Que desgraças te esperam! foge, foge
Serenou as desgraças deste dia, Gonçalo, enquanto há tempo: gente armada
Os teus dentes, intrépido Gonçalo, Vem logo contra ti. Guiomar convoca
Viste voar em negro sangue envoltos. Todo o poder do mundo: um só momento
Torna alegre Narcisa, e cinco vezes Não percas, caro amigo; os companheiros
Abriu a bolsa, e numerou a prata: Com alvoroço esperam. Ah deixemos,
Fez diversas porções, que num momento Deixemos duma vez estas paredes,
Tornou a confundir: não doutra sorte Onde co próprio sangue escrita deixas
O menino impaciente, e cobiçoso, De teu trágico amor a breve história.
Quando alcança o que há muito lhe negavam, É já outro o Mondego: a liberdade
Repara, volta, move, ajunta, espalha, Destes campos fugiu, e só ficaram
E neste giro o seu prazer sustenta. A dura sujeição, e o triste estudo.
Enfim hei de apartar-me desta sorte?
Entanto a mãe, que já por experiência Ó sempre tristes, sempre amargos sejam
Os enganos conhece mais ocultos, Os teus últimos dias, velha infame.
Busca novos pretextos de vingança Gonçalo, sim, chorando, monta, e parte.
Fingindo torpes, e horrorosos crimes,

C ANTO II

Com largo passo longe do Mondego De ações, que ele não pode chamar suas,
Alegre a forte gente caminhava. Aos outros trata com feroz desprezo.
Gonçalo excede a todos na estatura, Iracundo Gaspar, que te enfureces
Na força, no valor, e na destreza. No jogo, e quando perdes não duvidas
Sobre um magro jumento se escarrancha Meter a mão à ferrugenta espada,
Tibúrcio, e já dum ramo de salgueiro Tu não ficaste: 'as noites sobre os livros
Desata ao Norte fresco, que assobia, Não queres suportar, porque não temes
Por vistoso estandarte um lenço pardo. Da já viúva mãe as frouxas iras.
Cosme infeliz, e sempre namorado Nem tu, Alberto alegre, e desejado
Sem ser correspondido, vai saudoso, Das vistosas funções das romarias,
Ama, e não sabe a quem: vive penando, Que és vivo, pronto, e ágil, e nos bailes
E se consola só porque imagina Tens fama de engraçado, e garganteias
Que tem de conseguir melhor ventura. Coa viola na mão trocando as pernas.
Rodrigo, que de todos desconfia, Os que aprendem o nome dos autores,
É de índole grosseira, e gênio bruto, Os que lêem só o prólogo dos livros,
Não conhece os perigos, nem os teme: E aqueles, cujo sono não perturba
Melancólico sempre, vai por gosto O côncavo metal, que as horas conta,
Viver na choça, aonde foi criado. Seguiram as bandeiras da ignorância
Qual o Tatu, que o destro Americano Nos incríveis trabalhos desta empresa.
Vivo prendeu, e em vão depois se cansa
Por fazê-lo doméstico, que sempre O Sol já sobre os campos de Anfitrite
Temeroso nas conchas se recolhe Inclina o carro, e as nuvens carregadas
E parece fugir à luz do dia. Importunos chuveiros ameaçam;
Também vinha Bertoldo, e traz consigo Quando a velha estalagem os recebe.
Carunchosos papéis por onde afirma
Vir do sétimo Rei dos Longobardos. Mesa de tosco pinho se povoa
Grita contra as riquezas, a Fortuna, De negras azeitonas, e salgado
Segundo o que ele diz, não muda o sangue: Queijo, que estima a gente que mais bebe.
Pisa com força o chão, e empavesado Dum lado, e doutro lado se levantam
Pichéis, e copos, em que o vinho abunda. Um gênio dócil, sério, e moderado?
Corriam para aqui desafiados Isto deveis às letras? respondei-me,
Rodrigo, o triste, e o glutão Tibúrcio. Ou insultai também os meus cabelos
Este instante fatal é que decide Da triste, e longa idade embranquecidos.
Da dúbia sorte dos heróis cobrindo Julgais acaso, que o saber se infunde
Um de eterna vergonha, outro de glória. Deixando o vosso nome assinalado
Pelos muros, e portas da Estalagem?
A feia Noite, que aborrece as luzes, Ó néscia mocidade! é necessário
Desce dos altos montes com mais pressa Muito tempo sofrer, gastando a vista
Por ver este combate, e afugentada Na contínua lição, e sobre os livros
Pela sombria luz duma candeia Passar do frio Inverno as longas noites.
De longe observa o novo desafio. E quando já tivésseis conseguido
Um, e outro ocupando as mãos, e a boca De tão bela carreira os dignos prêmios,
Avidamente a devorar começa. Muito pouco sabeis, se inda vos falta
Assim esse animal grosseiro, e pingue, Essa grande Arte de viver no mundo,
Que de alpestres bolotas se sustenta, Essa, que em todo o estado nos ensina
À pressa come, e tendo uma nos dentes, A ter moderação, honra, e prudência.
Noutra tem o desejo, e noutra a vista. Eu também já na flor da mocidade
Rodrigo quase certo da vitória Varri coa minha capa o pó da sala:
Coas mãos ambas levanta um grande copo, Eu também fui do rancho da carqueja,
Copo digno de Alcides, e à saúde Digno de fama, e digno de castigo.
De todos os famosos Desertores Era então como vós. Jamais os livros
De uma vez esgotou: então Tibúrcio Me deveram cuidado, e me alegrava
Cheio de nobre ardor, fechando os olhos Das noturnas empresas, dos distúrbios:
Toma um largo pichel, e assim lhe fala. Os dias se passavam quase inteiros
Nos jogos, nos passeios, nas intrigas,
Vasilha da minha alma, tu que guardas Que fomentam os ódios, e as vinganças.
A alegria dos homens no teu seio, Por isso estou no seio da miséria:
E tu, filho da cepa generoso, Por isso arrasto uma infeliz velhice
Se estimas, e recebes os meus votos, Sem honra, sem proveito, sem abrigo.
Derrama sobre mim os teus encantos. Tempo feliz da alegre mocidade!
Já tinha dito muito: e enquanto bebe Hoje encurvado sobre a sepultura
Voa a cega Discórdia, que se nutre Eu choro em vão de vos haver perdido!
De sangue, e de vingança, e sobre os copos Assim suspira, e geme, e continua:
Três vezes sacudiu as negras asas. Conservai sempre firme na memória
Viam-se já nos lívidos semblantes Dum velho desgraçado o triste exemplo,
A raiva sanguinosa, a má tristeza. E aprendei a ser bons, que a vossa idade
A Noite, a quem o Acaso favorece, As indignas ações não justifica.
Estende a fusca mão, e a luz abafa. Mas se vós desprezais os meus conselhos,
Veloz passa o furor de peito em peito, Nunca gozeis o prêmio dos estudos:
Perturba os corações, e inspira o ódio. Aflições, e trabalhos vos oprimam,
Enquanto o mar das índias vos espera.
Só tu, Gonçalo, descrever puderas
Os terríveis estragos desta noite, Então Gaspar, tomando o caso em brio,
Tu, que posto debaixo duma banca Aceso de ira com valor responde,
(Por não manchar as mãos no sangue amigo) Traça o capote, e tira pela espada.
Sentiste pela casa, e pelos ares O velho grita, e foge: às suas vozes
Rolar os pratos, e tinir os copos. De rústicos um povo se enfurece,
Range os dentes Gaspar, e pelo escuro E toma as armas, e bradando avança.
Não acerta coa espada, nem coa porta: Qual nos imensos, e profundos mares
Quando Ambrósio, que tinha envelhecido O voraz Tubarão entre o cardume
Da Estalagem na mísera oficina, De argentadas Sardinhas: elas fogem,
Coa candeia na mão assim falava. Deixam o campo, e nada lhe resiste;
É crível, que entre vós jamais se encontre Assim Gonçalo, a quem já todos temem,
Faz espalhar a turba, que o rodeia, Espada, que ao romper as linhas d'Elvas,
E só deixa a quem foge de encontrá-lo. Se dos velhos Avós não mente a história,
Abriu de meio a meio um Castelhano.
Gaspar, que o rosto nunca viu ao medo,
A todos desafia, e não perdoa Teme Bertoldo, que o encontre o Povo;
Duma oliveira ao carcomido tronco, E no meio daquela escuridade
Que ele julga broquel impenetrável, Chega-se aos mais com pânico receio.
Vendo estalar da sua espada a folha. Cosme quase insensível aos perigos,
E aos amargos momentos desta noite,
Da noite a densa névoa favorece. Aproveita o silêncio, o sítio, a hora
Receosos de nova tempestade, Para chorar saudades sem motivo.
Salvam as vidas os Heróis fugindo Só Gonçalo pensava cuidadoso
Por entre o mato espesso. Ouvem ao longe Em salvar os aflitos companheiros.
Da vingativa plebe a voz irada. Assim o astuto assolador de Tróia,
À clara luz das pinhas resinosas Quando os Gregos heróis ouviu cerdosos
Aparecem as foices, e aparecem Grunhir nos bosques da encantada Circe,
Chuços, cacheiras, trancas, e machados. Ou quando viu a detestável mesa
Levanta-se o clamor; e a crua guerra, Na vasta cova do Ciclope horrendo.
Que o sangue dos mortais derrama, e bebe, Onde estarás fiel, e caro amigo!
Gira por toda a parte, e move as armas. (Dizia o condutor da stulta gente)
Entanto a valerosa companhia Se tu me faltas como irei meter-me
Amparada da sombra feia, e triste Nas mãos dum Tio rústico, inflexível?
Voa por longo espaço sobre as asas Voltarei? mas ó Céus! quem me assegura
Do pálido terror. Não doutra sorte Que essa velha cruel, nefanda harpia
Rasos xavecos de piratas Moiros, Não tenha urdido algum funesto engano?
Quando aos ecos do bronze fulminante E se o Povo indignado, e ofendido
Vêem tremular as vencedoras Quinas Nos vem seguindo, e ao surgir da Aurora
sobre a possante Nau, que oprime os mares, Neste inculto deserto... Céu piedoso,
Fogem à vela, e remo, e não descansam Longe, longe de nós tão graves danos.
Sem ter beijado as Argelinas praias.
Ouvem-se então diversos sentimentos. Gonçalo assim falava, e vigilante
Chora Gaspar de se não ter vingado, Tristes horas passou, até que o dia
E ainda aqui colérico assevera Apareceu entre rosadas nuvens
Que a não faltar-lhe a espada não fugira. Sobre as altas montanhas do horizonte.

C ANTO III

A Fama sobre o carro transparente, Entanto a Fama heróica vão seguindo


Que arrastam ao través do espaço imenso As velozes, e incógnitas notícias,
O sonoro Aquilon, e o veloz Austro, Que trazem, e que levam os sucessos
Cantava o caro nome, a imortal glória De país em país, de clima em clima.
Do Augusto Pai do Povo. Entre milhares Elas voam em turba, enchendo os ares
De ações dignas dum Rei, Europa admira Dos ecos dissonantes, a que atendem
O soberbo Edifício levantado, Crédulas velhas, e homens ociosos.
Que o saudoso Mondego abraça, e adora: Qual no fértil Sertão da Ajuruoca
Edifício, que o tempo doravante Vaga nuvem de verdes Papagaios,
Vê de longe, rodeia, teme, e foge: Que encobre a luz do Sol, e que em seus gritos
Que sustenta em firmíssimas colunas É semelhante a um povo amotinado:
Da ciência imortal o Régio Trono. Assim vão as Notícias, e estas vozes
Pelo campo entre os rústicos semeiam.
Se longe da feroz barbaridade Gente inexperta, alegre, e sem cuidados,
Os olhos abre a forte Lusitânia, Fero esquadrão, que os vossos campos tala,
Grande Rei, esta ação é toda vossa. Vem destruindo as terras, e os lugares.
O povo indócil, cego e receoso,
Que as funestas palavras acredita, Se inconstante, e perjura me chamaste,
Toma os caminhos, e os oiteiros cobre. Dá-me nomes mais doces, e ouve atento
Por onde irás, intrépido Gonçalo, Duma alma amante a confissão sincera.
Que escapes ao furor da plebe armada? Sempre te amei, e espero ver unidos
Mas já os desgraçados companheiros Os nossos corações em fortes laços
Desciam por incógnitas veredas Do casto amor, que o Céu não desaprova.
Para o fundo dum vale cavernoso, Mas eu sem nada mais, que a lã, que fio,
Que o Zêzere veloz lavando insulta Tu rico só de afetos, e palavras,
Coas turvas águas do gelado inverno. Onde iremos, que a sórdida miséria
Há um lugar nunca dos homens visto, Não seja em nossos males companheira?
Na raiz de dois montes sobranceiros. Vai-te, e longe de mim segue a ventura,
Suam as frias, e musgosas pedras, Que firme te hei de ser em toda a idade.
Que dos altos cabeços penduradas Do velho Afonso o triste, e pobre filho,
Ameaçam ruína há tempo imenso. Pela dura madrasta afugentado,
Jamais do Cão feroz o ardor maligno Também deixou a suspirada Pátria,
Desfez a neve eterna destas grutas. E veio em poucos anos o mais rico
Árvores, que se firmam sobre a rocha, Dos bens imensos, que o Brasil encerra.
Famintas de sustento à terra enviam Vês tu quanto cresceu, que não cabendo
As tortas, e longuíssimas raízes. No paterno casal, ergue as paredes
Pendentes caracóis coa frágil concha Até chegar ao Céu, que testemunha
Adornam as abóbadas sombrias. A ditosa união com que ele paga
Neste lugar se esconde temerosa O firme amor da venturosa Ulina?
A Noite envolta em longo, e negro manto Vai pois, Rufino meu, que muitas vezes
Ao ver do Sol os lúcidos cavalos: Muda-se a terra, e muda-se a Fortuna.
Fúnebre, eterno abrigo aos tristes mochos,
Às velhas, às fatídicas corujas, Assim falando os braços lhe oferece.
Que com medonha voz gemendo aumentam Ó que instante feliz, se Amor perverso,
O rouco som do rio alcantilado. Dos últimos favores sempre avaro,
Não firmasse esta sombra de ventura
Rufino por seu mal sempre extremoso, Sobre as asas de um sonho lisonjeiro!
E sempre escarnecido, suspirando Desperta o triste, e desgostoso amante,
Aqui se entrega ao pálido ciúme, Vós em mim achareis amigo, e guia:
Dum puro amor ingrata recompensa. Que pode dar alguma vez socorro
Contam que nestas hórridas cavernas Um desgraçado a outro desgraçado.
De míseras angústias rodeado, Duros casos de amor me conduziram
Vinha exalar os últimos suspiros A acabar nesta gruta os tristes dias;
Queixando-se de Amor, e da Fortuna. Mas hoje volto por feliz presságio
Entre os braços do sono repousava A tentar noutra parte a desventura.
Este infeliz já de chorar cansado;
Quando a inquieta Ignorância, que se aflige, Acaba de falar movendo os passos
De ver nestas montanhas escabrosas Pelo torcido vão das nuas pedras.
Os tímidos amigos, em que funda Todos o seguem com trabalho imenso.
De novo império a única esperança:
Por que Rufino os acompanhe, e guie Depois que largo tempo caminharam
À pingue, e suspirada Mioselha, Por ásperas montanhas, aparecem
Que é de tantos heróis Pátria famosa, Ao longe a estrada, e o lugar vizinho.
Finge o rosto da bela Dorotéia, Qual a nau sofredora das tormentas,
Dorotéia a mais nova, a mais humana Que, depois de tocar o porto amigo,
De quantas filhas teve o velho Amaro. Sente fugir-lhe as arenosas praias,
Ela a roca na cinta, as mãos no fuso E dos hórridos ventos açoitada
Em sonhos lhe aparece, e mais corada, Volta a lutar co pélago profundo:
Que a rosa na manhã da Primavera, Assim Gonçalo, quando ver espera
A falar principia. Se até agora Tranqüilo fim de míseros trabalhos,
Ingrata me mostrei a teus amores, O povo o cerca, e dos confusos gritos
As montanhas ao longe retumbaram. Serias morto, intrépido Gonçalo,
Vós ó Musas, dizei como a Discórdia Se Gaspar cum rochedo áspero, e rombo
Com o negro tição, que acende os peitos, Não atalhasse do inimigo a fúria,
Mostra o rosto de sangue, e pó coberto, Quebrando-lhe com golpe repentino
Seguindo os passos do homicida Marte. Ambas as canas do direito braço.
Aqui não aparecem refulgentes Rangem os ossos, e a terrível maça
Escudos d'aço, e bronze triplicado: Caindo sobre a terra ao longe soa.
Não assombram a testa dos guerreiros Torna a juntar-se a fugitiva plebe,
Flutuantes penachos, que ameaçam, E o prudente Gonçalo, que deseja
Como tu viste, ó Tróia, ante os teus muros; Mostrar o seu valor noutros perigos,
Mas o valor intrépido aparece Finge-se morto: a turba irada o pisa,
A peito descoberto. O povo armado Mas ele não se move. Contra todos
De choupas, longos paus, e curvas foices, Então Gaspar em cólera se acende:
É semelhante a um bosque de pinheiros, Ameaça, derriba, ataca, e fere;
Que o fogo devorou, deixando nuas Até que já sem forças, rodeado
As elevadas pontas. Animoso Dispõe Vê de seus companheiros os opróbrios.
Gonçalo a forma de batalha
Posto na frente: à sua voz a um tempo Soa nas costas dos heróis valentes
Todos avançam, todos se aproveitam O duro azambujeiro, e são levados
Das perigosas, e terríveis armas, Ao som terrível de insultantes gritos
Que o terreno oferece em larga cópia. Para a escura prisão, que os esperava.
Voa a cega Desordem, e aparece Gonçalo, o bom Gonçalo as mãos atadas,
No meio do combate. Por um lado Os olhos para o chão, porque era terno
Gaspar se opõe arremessando pedras Não refreou o compassivo pranto.
Com força tal, que atroam os ouvidos. A par dele Bertoldo em vão lamenta
Gonçalo doutra parte invicto, e forte A falta de respeito, que devia
Abre co ferro agudo amplo caminho. Rústica plebe ao neto de Alarico.
Já pendia a balança da vitória Com vagaroso passo todos marcham,
Contra a tímida gente, que se espalha; Como as ovelhas por caminho estreito.
Quando chega atrevido Brás, o forte. Tal depois da ruína de um Quilombo
(Gigante Ferrabrás lhe chama o povo Vem a indômita plebe da Etiópia,
Pela enorme estatura, e força incrível) Quando rico dos loiros da vitória
Ergue a pesada maça sem trabalho, O velho Chagas sempre valeroso
Qual nos montes de Lerne o fero Alcides: Cobre o fuzil da pele da Guariba,
Gonçalo evita a morte com destreza: E forra o largo peito cos despojos
Ele renova os formidáveis golpes; Da malhada Pantera, e do escamoso
Mas o irado mancebo ao desviar-se Jacaré nadador, que infesta as águas.
Tropeça, e cai. Neste arriscado instante

C ANTO IV

Tibúrcio, que nas guerras da estalagem Feias bruxas, e vagos lobisomens.


Soube abrandar os inimigos peitos, Com ele o Antiquário se acredita
Pondo-se como em êxtase profundo Por um devoto, e santo Anacoreta,
Com os olhos no Céu, e as mãos no peito, Que passa os breves dias deste mundo
Vem a empenhar a força das intrigas. Entre os rigores duma austera vida.
Que não farás, intrépida Ignorância, Amaro, que se fia de aparências,
Por libertar os tristes prisioneiros! Para nutrir o frágil penitente
Vai degolando os patos, e as galinhas.
Tem o cuidado das ferradas portas Entanto (quem dissera!) a própria filha
Amaro vigilante, inexorável; Inocente era o móvel deste enredo,
Mas crédulo, e medroso; e tem ouvido Seu nome é Dorotéia, e no semblante
Não sem horror pela calada noite Gênio se lhe descobre inquieto, e leve.
Grasnar nos ares, e mugir nos campos E como estes momentos preciosos
Não se devem perder, depois que a fome E Dorotéia já se sente amante,
Afugentou do estômago vazio, Excogitando os mais seguros meios
Com branda voz em tom de profecia De abrir a porta, e dar-lhe a liberdade.
Humildade afetando assim começa. Na molesta prisão o novo engano,
De imperceptível arte pronto efeito,
Pois tanta caridade usais comigo, Sabe o Herói, e assim consigo fala.
O Senhor, que reparte os seus tesoiros, Ó amigo tão raro como a Fênix,
Vos encherá de mil prosperidades. Que podendo deixar-me entre estes ferros,
A vossa filha... mas convém que eu cale Vens encher-me de alívios, e esperanças!
Os segredos, que o Céu me comunica, Valentes expressões em crespa frase,
Inda vereis nascer entre riquezas Que ao Alívio de Tristes rouba a glória,
Os venturosos netos, doce arrimo Pensando, felizmente ressuscita
Aos fracos dias da caduca idade. Aquelas hiperbólicas finezas,
O velho então coas lágrimas nos olhos Que em seus escritos prodigou Gerardo.
Assim falou: Ó filho abençoado, Num pequeno papel como convinha
Que pela débil voz já me pareces A triste, e desgraçado prisioneiro,
Habitador do Céu, quanto consolas Viu Dorotéia as letras amorosas,
As pecadoras cãs, que te estão vendo! Que os ditos confirmaram de Marcela,
Assim talvez seria o meu Leandro, E dois grandes presuntos, que jaziam
Se as bexigas em flor o não roubassem! Intactos na despensa do bom velho,
Dez anos tinha, quando a morte avara Vão levar a resposta acompanhados
Cortou coa dura mão seus tenros dias. Do roxo néctar, que dissipa os males.
Então suspira, e segue passo a passo Mensageira fiel então afirma,
A longa enfermidade; e enquanto narra Que virá Dorotéia abrir-lhe as portas
Aparece Marcela, conhecida Nas horas, em que o plácido sossego
Entre todas as velhas por mais sábia Dos cansados mortais os olhos cerra.
Em penetrar olhando para os dedos Gonçalo espera tímido, e confuso
Tudo quanto já dantes lhe contaram. Vem-lhe à memória o seu antigo afeto;
Sobre pequeno pau, a que se encosta, Qual leve sombra: escuta, arde, e deseja
Ela vem debruçada pouco a pouco, Sentir no coração novas cadeias.
O semblante enrugado, os olhos fundos,
Contra o nariz oposta a barba aguda: Já com a fria mão a noite escura
Os dous últimos dentes balanceiam Entre o miúdo orvalho derramava
Co pestífero alento, que respira. Papoilas soporíferas, que inspiram
Em segredo lhe mostra Dorotéia O brando sono, e o doce esquecimento.
A esquerda mão por que ela decifrasse Reina o vago silêncio, que acompanha
As confusas palavras de Tibúrcio. De amor furtivo os trágicos transportes.
Ela observa, e depois de mil trejeitos Gonçalo então, cansada a fantasia
Franzindo a testa, arcando as sobrancelhas, Sobre os meios, e os fins de seus projetos,
Com voz trêmula, e fraca assim dizia. Pouco a pouco se esquece, e pouco a pouco
Cerra os olhos, boceja, dorme, e sonha.
Ó que grande ventura o Céu te guarda! Quando voa do leito, onde deixava
Por esposo terás um cavalheiro Nos braços do Descanso ao Pai da Pátria
Que te ama, e te deseja. Mas ai triste! A brilhante Verdade, e lhe aparece
Em vão chora infeliz o terno amante Numa nuvem azul bordada d'oiro.
Nessa escura prisão desconhecido A Deusa ocupa o meio, um lado, e outro
Por casos de fortuna. Criai filhos, A severa justiça, a Paz ditosa.
Ó desgraçadas mães, para que um dia
Longe de vós padeçam mil trabalhos! Benignos Céus, enchei meus puros votos:
Aqui suspira a boa velha, e chora. Fazei que esta celeste companhia,
Duas vezes começa, e depois fala. Como do terno Avô rodeia o trono,
O seu nome é Gonçalo: é rico, e nobre, De seu Neto imortal orne a Coroa.
E mancebo gentil, robusto, e loiro.
Estas, e outras palavras lhe dizia, Gonçalo viu, e pondo as mãos nos olhos
Receia, e teme de encarar as luzes.
Abre os olhos, mortal, (assim lhe fala Entanto sem receio o Velho dorme,
Do claro Céu a preciosa filha) E a filha vem as sombras apalpando
Abre os olhos, verás como se eleva Com as chaves na mão: e quantas vezes
Do meu nascente Império a nova glória. Segue, vacila, e pára, e lhe parece
Esses muros, que a pérfida Ignorância Ouvir a voz do Pai: escuta, e treme;
Infamou temerária com seus erros, Move os passos, tropeça, e ao ruído
Cobertos hão de ser em poucos dias Acorda Amaro, e grita. Ela se apressa,
Com eternos sinais de meus triunfos. E torna a tropeçar. Aqui Tibúrcio
Eu sou quem de intrincados labirintos Em casos repentinos pronto, e destro
Pôs em salvo a Razão ilesa, e pura. Em um lançol se embrulha, e corre ao leito,
Eu abri aos mortais os meus tesoiros: Onde jazia o Velho espavorido,
Fiz chegar aos seus olhos quanto esconde Que cuida que vê bruxas, e fantasmas:
No seio imenso a fértil Natureza. Então lhe diz em tom medonho. Ó filho,
Pode uma destra mão por mim guiada Ingrato filho, que de um Pai te esqueces!
Descrever o caminho dos Planetas: Que mal, que mal cumpriste os meus legados!
O mar descobre as causas do seu fluxo: Hoje comigo irás... Ao Velho o medo
A Terra... mas que digo? Que ciência Corre as medulas dos cansados ossos:
Não fiz tornar às margens do Mondego, A voz lhe falta, eriça-se o cabelo.
Ou dentre os braços da Latina Gente, Entanto as portas Dorotéia abrindo
Ou dos belos países, cujas praias (Amor a fez intrépida) abraçava
O mar azul por toda a parte lava? O prometido esposo: ele se apressa,
Se são firmes por mim o Estado, a Igreja, Acorda os miserandos companheiros,
Se é no seio da paz feliz o Povo, Que se alegram deixando solitárias
Dizei-o vós, ó Ninfas do Parnaso. As vagas sombras da prisão funesta.
Ilustres, imortais, vós que ditastes Passa o resto da noite entre temores
As poderosas leis a vez primeira, Amaro, quanto pode o prejuízo!
Vós, que ouvistes da lira de Mercúrio
Os úteis meios de alongar a vida. Apenas matizava a branca aurora
Eu vejo renascer um Povo ilustre Da Tíria cor o véu açafroado,
Nas armas, e nas letras respeitado. Quando o Velho ao través da luz escassa
seu nome vai já de boca em boca Viu abertas as portas. Dorotéia,
A tocar os limites do universo. Dorotéia onde estás? Assim clamava,
pacífico Rei lhe traz os dias E entregue à sua dor consulta os olhos
Dignos de Manuel, dignos de Augusto. Do profeta, que pronto a pôr-se em marcha
E tu enquanto a Pátria se levanta Com rosto de candura, e de inocência
Sacudindo os vestidos empoados Brandamente o consola. O Céu, Amigo,
Coa cinza vil de um ócio entorpecido: Tudo faz por melhor, e muitas vezes
Enquanto corre a mocidade alegre Com trabalhos cruéis aos bons aflige.
A colher loiros ávida de glória, Disse, e deixando ao Pai desconsolado,
Serás o frouxo, o estúpido, o insensível? Caminha na esperança de encontrar-se
Sacrificas o nome, a honra, a Pátria Co valente esquadrão dos fugitivos.
Aos moles dias de uma vida escura? Sol já com seus raios luminosos
Cego, errado mortal, vê que te enganas. Tinha roubado às folhas dos arbustos
Disse: e cerrada a nuvem luminosa, frio gelo do noturno orvalho.
Estremece Gonçalo: foge o sono: Eis à sombra de fúnebre arvoredo
Por toda a parte lança incerto a vista, Rufino, o melancólico, chorando.
Busca assustado, mas já nada encontra. Quem és, que em tua mágoa inconsolável
As mesmas impressões em seus sentidos Pareces abalar estas montanhas?
Vivas imagens pintam, e não sabe Compassivo pergunta o Antiquário,
Se então dormia, ou se inda agora sonha. E depois de chorar por largo tempo,
Sente a suave força da Verdade; Estas vozes o triste lhe tornava.
Mas recusa abraçá-la. Triste sorte Eu sou aquele amante sem ventura,
D'alma infeliz, que ao erro se acostuma! Sempre extremoso, e sempre escarnecido,
Sofredor das ingratas esquivanças, Então o Amor, que na sonora aljava
Que vi (ai dura vista!) face a face Esconde setas de mortal veneno,
Do tardo Desengano o feio rosto. E setas doutro ardor mais grato, e puro,
Ah Dorotéia, um sonho lisonjeiro Fazia escolha das terríveis armas,
Meus dias dilatou para que agora Para vingar-se da cruel Marfisa:
Te visse em outros braços, insultando Marfisa ingrata, pérfida, inconstante,
O meu fiel amor? Ó noite infausta, Peito de bronze, a quem a natureza
Noite terrível, noite acerba, e dura! Não formou para ternos sentimentos.
Quanto eu fora feliz, se a tua sombra E por ver se os seus tiros correspondem
Eternamente os olhos me cobrisse! Sempre fiéis à mão, e ao desejo,
Faz no teu peito, ó Dorotéia, o alvo,
Tibúrcio, que já tudo penetrava, As forças prova, e a destreza ensaia.
Do caminho se informa, e dos lugares, Encurva o arco ebúrneo, solta, e voa
Por onde fora a incerta companhia, Sequiosa de sangue a ponta aguda
Que em tanto risco o seu conselho espera. Tinta no Averno. Ao golpe inevitável
Tremeu o coração, e um vivo lume
Não distante se eleva antigo bosque Nos olhos aparece: do seu braço
Horroroso por fama: já nos tempos, Admira a força Amor. Vai outra seta
Em que torrente Bárbara saindo Ao brando peito incauto, e descoberto
Do seio da Meotis inundava Do mancebo infeliz. A vez primeira
As províncias d'Europa, aqui se via Soube de amor o namorado Cosme.
Arruinado Templo. Os vivedoiros Que violenta paixão pode encobrir-se!
Ciprestes se levantam sobre os pinhos: Os olhos falam: seguem as palavras;
Heras, e madressilvas enlaçadas E depois o delírio. O tempo é surdo
Ali fazem curvar a crespa rama Aos votos dos amantes. Eles viam
Dos velhos, e infrutíferos carrascos. Crescer ditoso em rápidos momentos
Três fontes misturando as puras águas De uma nova esperança o belo fruto;
Mansamente se envolvem, e oferecem Mas Gonçalo a favor dos arvoredos
À vista cobiçosa os alvos seixos, Oculto chega, pára, e ceva as iras.
E os verdes limos, que no fundo nascem. Tal pode ver-se o rápido Jaguara
Os amigos fiéis aqui se encontram. Do fértil Ingaí nos vastos campos,
Qual em noite funesta, e pavorosa Se tem defronte o cervo temeroso;
Perdido caminhante, que receia Encolhe-se torcendo a hirsuta cauda,
Achar em cada passo um precipício, Tenta, vigia, espera, e lambe os beiços
Se acaso a dúbia luz divisa ao longe, Formando o salto sobre a incauta presa.
A esperança renasce, e de alegria Cegos amantes, aprendei agora
Sente pular o coração no peito; Os perigos da nímia confiança.
Assim o Desertor constante, e forte O zeloso Gonçalo investe; acodem
Ao ver o companheiro, que prudente Os companheiros duma, e doutra parte.
Sabe evitar, e prevenir os males. Triste ruído! pedras contra pedras
Eles se reconhecem, e derramam Ali se despedaçam: ao seu lado
De alegria, e ternura o doce pranto. Acha Cosme a Rodrigo, acha a Bertoldo.
Ó vínculos do sangue, e da amizade! Enquanto dura o férvido combate,
Menos unidos viu o Lácio antigo Dorotéia, que vê sem uso a espada,
Aos dois Troianos, que uma cega noite, De que o Herói em fúria se não lembra,
Espalhando o terror no campo adverso, (Que não farás, Amor, tu que transformas
Levou às turvas margens de Aqueronte. Uma donzela num feroz guerreiro!)
Gonçalo se retira pelo bosque; Desembainha: a Morte insaciável
Com ele vai Tibúrcio, e mil projetos Lhe afia o gume, e o furor sanguíneo
Formavam sobre o fim da grande empresa; Ergue, e dirige o ferro: já pendente
E a muito fácil, e infeliz donzela Sobre Gonçalo o golpe, falta, e chega
Do seu profeta o rosto, e a voz conhece, O amigo a tempo de salvar-lhe a vida,
E pensa, e teme de se achar culpada. Pelos braços o aperta, e neles grava
Roxos sinais dos dedos. Em derrota
Correm os três, e o campo desamparam. Para soltar os oprimidos braços
O mísero, infeliz, e novo amante Dorotéia se empenha; mas Tibúrcio,
As negras fúrias levam, que despertam Lançando a esquerda mão à ruiva trança,
No aflito coração desesperado A fez voltar, torcendo-lhe o pescoço,
Ciúme, raiva, amor, ódio, e vingança. Ao claro Céu a vista ameaçante.
Assim o invicto domador dos monstros, Gaspar o ferro dentre as mãos lhe arranca:
Quando por mão da crédula consorte Este um braço sustenta, outro Gonçalo,
Recebeu o vestido envenenado E ela presa, e sem forças grita, e geme.
No sangue infausto do biforme Nesso Não doutra sorte o toiro da Chamusca,
Os rochedos, e os montes abalava: Quando três cães o cercam atrevidos,
Soaram os seus fúnebres gemidos Dois pendem das orelhas, e um da cauda;
Por longo tempo nas Ismárias grutas. A cornígera testa em vão sacode;
Valentes, e indiscretos vencedores Contra a terra se arroja a um lado, e outro,
Tarde conhecereis, e muito tarde, E depois que não pode defender-se,
Que um amigo ultrajado é perigoso. Mugindo exala a indômita fereza.

C ANTO V

Alto conselho aqui se faz, aonde Mísera Dorotéia chora, e geme.


Infeliz Dorotéia, o teu destino Ai, Marcela cruel, que m'enganaste
Cruel, e dúbio dum só voto pende. Com teus belos, fantásticos agouros!
Dos três heróis discordam as sentenças. Queira o Céu que outras lágrimas sem fruto
Um deseja que fique em liberdade, Mil vezes tresdobradas te consumam
E do Pai ultrajado exposta às iras: Os encovados olhos! Que inda a Morte
Inexorável outro pensa, e julga Às tuas vozes surda correr deixe
Que a sua morte deve dar exemplo, Piorando em seu curso vagaroso
Que encha d'horror as pérfidas amantes. Os momentos de dor, e de amargura!
Gonçalo, que era o único ofendido, Assim falava: a leve Fantasia
Consulta o coração, e se enternece. Com as cores mais vivas lhe apresenta
Mas o ardente Ciúme, que se alegra D'escarpados rochedos no alto cume
De pintar como crimes horrorosos palácio da cândida Inocência
Inocentes ações, então lhe mostra Cercado de funestos precipícios.
A feia Ingratidão, e o torpe Engano. Ó morada feliz, onde não torna
A vingança cruel, e o vil Desprezo, Quem uma vez rodou entre as ruínas!
Ainda mais terrível que a Vingança, Giram no plano do elevado monte
Ganham do coração ambas as portas. Cruas dores, remorsos devorantes,
Mimosa Dorotéia, e como ficas As três Irmãs, a Peste, a Fome, a Guerra,
Coas mãos ligadas a um pinheiro bronco pálido Receio, o Crime, a Morte,
Sem outra companhia, que os teus males! As Fúrias, e as Harpias, que s'envolvem
É este o prêmio, filhas namoradas, No turbilhão dos míseros cuidados.
Este o prêmio de Amor, quando imprudente
Os termos passa, que a razão prescreve. Então de tantas lágrimas movida
De quando em quando um ai do peito arranca, A mãe soberba do propício Acaso,
Que ao longe os tristes, magoados A mudável Fortuna, e já cansada
Ecos Desperta, e faz sentir os duros troncos. De ouvir as tristes queixas de Rufino,
E espera sem defesa (forte ingrata!) Tais palavras ao filho dirigia.
Que a devorem os lobos carniceiros.
Assim ligada aos ásperos rochedos Esse amante infeliz, que em vão suspira,
A filha de Cefeu ao mar lançava Ache a dita uma vez, e enxugue o pranto.
A temerosa vista, e lhe parece Acaba de falar, e ao mesmo tempo
A cada instante ver surgir das ondas Rufino para o bosque s'encaminha,
A verde espalda do marinho monstro. o Acaso o conduz por entre as sombras
Da pavorosa Noite, que já desce.
Sem esposo, sem pai, sem liberdade À rouca voz da mísera donzela
Palpita o coração: o Amor, e o Susto Dos cuidados tenazes, e importunos
Quiméricas imagens lhe afiguram; Lavarás a minha alma nas perenes
Mas ele chega: o próprio crime, e o pejo Purpúreas fontes do espremido cacho!
Cobrem de roxas nuvens o semblante
De Dorotéia ao ver-se ainda amada Mostra Gaspar vaidoso a livraria,
Por aquele, que foi há poucas horas Donde o Tio Doutor sermões tirava.
Alvo de seus insultos, e desprezos. Mau Gosto, que à razão não dás ouvidos,
A mole vista, as lágrimas em fio, Vem numerar as obras, que ditaste:
Que aos corações indômitos abrandam, Seja a última vez, e eu te asseguro
Que fariam num peito namorado? Que não vejas fumar nos teus altares
Tu lhe ensinas co fraco rendimento Do Gênio Português jamais o incenso.
Os meios de vencer. Ó sete vezes
Venturoso Rufino, s'ela um dia Geme infeliz a carunchosa Estante
Não quiser renovar os seus triunfos, Co peso de indulgentes Casuístas,
E medir a fraqueza do teu peito Dianas, Bonacinas, Tamburinos,
Pelo grande poder das suas armas! Moias, Sanches, Molinas, e Larragas.
Criminosa Moral, que em surdo ataque
Depois de longa, e trabalhosa marcha, Fez nos muros da Igreja horrível brecha,
Cansado de sofrer enfim respira Moral, que tudo encerra, e tudo inspira,
O Desertor, e mostra aos companheiros Menos o puro amor, que a Deus se deve.
Os conhecidos montes. Fuma ao longe Aparecei famosa Academia
A fértil Mioselha, e pouco a pouco De humildes, e Ignorantes, Eva, e Ave,
Os oiteiros, e as casas aparecem. Báculo pastoral, e Flos Sanctorum,
E vós, ó Teoremas predicáveis,
Tibúrcio, que uma antiga, e voraz fome Não tomeis o lugar, que é bem devido,
Sofreu nestes aspérrimos trabalhos, Ao Kess, ao Bem Ferreira, ao Baldo, ao Pegas,
Com gosto espera de afogá-la em vinho, Grão-Mestre de forenses subterfúgios.
E já se apressa alegre, e transportado. Aqui Tibúrcio vê o amado Aranha,
Qual o novilho, que perdeu nos bosques O Reis, o bom Supico, e os dois Suares:
A doce vista do rebanho amigo, Dum lado o Sol nascido no Ocidente,
E depois de vagar a noite, e o dia E a Mística Cidade, doutro lado,
Por vales sem caminho, a Mãe conhece, Cedem ao pó, e a roedora traça.
Alegre salta, e berra, e por momentos Por cima o Lavatório da consciência,
Espera umedecer entre carícias Peregrino da América, os Segredos
Co leite represado a boca ardente. Da natureza, a Fênix renascida,
Lenitivos da dor, eos Olhos de água:
Mas Cosme, que conserva na memória Por baixo está de Sam Patrício a cova,
As passadas injúrias, por vingar-se, A Imperatriz Porcina, e quantos Autos
Ao Tio de Gonçalo narra as causas A miséria escreveu do Limoeiro
Da funesta derrota. Determina Para entreter os cegos, e os rapazes.
Gaspar que os fatigados companheiros Rudes montões de Gótica escritura,
Achem na própria casa um doce abrigo. Quanto cheirais aos séculos de barro!
De os ver a Mãe s'aflige; mas espera Falta ainda uma Estante; mas Amaro
Que obrigados da fome se retirem. Seguindo os passos da roubada filha
Leve foi o jantar, mais leve a Ceia, Caminha aflito, e de encontrar receia
E Tibúrcio com pena assim chorava O valente esquadrão, que procurava.
Os dias, em que fora Tesoireiro Tanto a fama das bélicas proezas
Duma rica, e devota Confraria. O seu nome fazia respeitado!
Ó santa ocupação, tu nunca viste
A magra mão da pálida Miséria, Que novas desventuras se preparam!
Que os fracos membros do mendigo apalpa. O povo cerca da Viúva as portas;
Sem trabalho em teus próvidos Celeiros Quando a triste Ignorância, que deseja
A ditosa Abundância se recolhe. Arrancar dentre os ásperos perigos
Se torno a possuir-te, quantas vezes Aos seus Heróis, por boca de Gonçalo
Começou a falar. Se tantas vezes Mas o Herói inflexível só responde,
Mais que heróico valor tendes mostrado, Que não há de mudar do seu projeto.
É este o campo, ide a cortar os loiros Não é mais firme a carrancuda roca,
Para cingir a vencedora frente. Com que Cintra soberba enfreia os mares:
Não se diga que fostes oprimidos Nem tu, ó Pão de Açúcar, namorado
Por fraca, e rude plebe: este combate Da formosa Cidade, Velho, e forte,
Não se pode evitar: só dois caminhos Que dás repouso às nuvens, e te avanças
Em tanto aperto aos olhos se oferecem. Por defendê-la do furor das ondas.
Escolhei ou a índia, ou a Vitória. Então falando o Tio em torpes crimes,
E em furtadas donzelas, ergue irado
Disse, e depois abrindo uma janela, Coa mão inda robusta o pau grosseiro,
Arroja de improviso sobre o povo E a paixão desabafa: a longa idade
De informe barro uma espantosa talha. Proíbe-lhe o correr; mas não proíbe
Seco trovão, que faz gemer os Pólos Que o pau com força ao longe acompanhe.
Quando vomitam as pesadas nuvens Ai, Gonçalo infeliz, que dura estrela
Do oculto seio a negra tempestade, Maligna cintilou quando nasceste!
Não causa mais pavor: ao golpe horrendo Depois de mil trabalhos insofríveis,
Muitos feridos, muitos assombrados Onde o gosto esperavas, e o sossego,
Mancham de negro pó as mãos, e o rosto. Viste nascer estragos, e ruínas.
Amaro anima aos seus, e enquanto voam Assim depois dos últimos combates,
Contra a janela mil pesados seixos, Que as margens do Scamandro ensangüentaram,
(Que novo estratagema!) o Antiquário O Rei potente d'Argos, e Micenas,
Finge da capa um vulto, que aparece Esperando abraçar saudoso os Lares,
De quando em quando, com que atrai as armas, Abraça o ferro de uma mão traidora.
Que hão de servir depois para a defesa. Fechadas tem o experto Tio as portas:
Novo furor os corações acende. Volta Gonçalo, encontra novos golpes,
Qual a grossa saraiva ao sopro horrível E jaz enfim por terra. Ferve o sangue
Do Bóreas turbulento embravecido Da boca, e dos ouvidos: sem acordo,
As searas derrota, os troncos despe, Apenas se conhece que inda vive;
E o triste lavrador contempla, e chora Mas tem glória de trazer consigo
A perdida esperança de seus frutos: A derrotada estúpida Ignorância.
Assim de pedras vaga, e densa nuvem Ela reina em seu peito, e se contenta
Sai da janela a devastar o campo. De ter roubado aos muros de Minerva
As que arroja o Herói já se distinguem De fracos Cidadãos o preço inútil.
Pelo som entre as mais, já pelo estrago. Goza, Monstro orgulhoso, o antigo império
A confusão, e o susto ao mesmo instante Sobre espíritos baixos, que te adoram;
Pelo povo s'espalha: então Gonçalo Enquanto à vista de um Prelado ilustre,
Valeroso saiu por um postigo: Prudente, Pio, Sábio, e justo, e Firme
Depois Gaspar; o intrépido Tibúrcio Defensor das Ciências, que renascem,
Metendo o braço, e a cabeça clama Puras as águas cristalinas correm
Que o não deixem ficar naquele estado. A fecundar os aprazíveis campos.
Herói as mãos firmando nas orelhas Brotam as flores, e aparecem frutos,
Ainda mais o aperta, e deixa exposto Que hão de encurvar co próprio peso os ramos
Da plebe ao riso, a cólera de Amaro. Nos belos dias da estação doirada.
Quantas vezes Tibúrcio desejaste Possa a robusta mão, que o Cetro empunha,
Não ser de grosso peito, e largo ventre! Lançar-te num lugar tão desabrido,
Que te sejam amáveis os rochedos
O Desertor enfim cansado chega Onde os coriscos de contínuo chovem.
À presença do Tio formidável,
E a teimosa Ignorância, que se aferra,
E que afirma, somente porque afirma,
O coração de novo lhe endurece.
A sofrer o trabalho dos estudos
O Tio o anima, roga, e ameaça,
S ONETOS

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A Terra oprima pórfido luzente, Enquanto o grande Rei coa mão potente
E brilhante metal, que ao Céu erguidos Quebra os grilhões do Erro, e da Ignorância,
Os altos feitos mostrem esculpidos E enquanto firma com igual constância
Do Rei, que mais amou a Lusa Gente. À Ciência imortal Trono luzente,

Esteja aos Régios pés Dragão potente, Nova Musa de clima diferente
Que tanto os povos teve espavoridos, Canta do Pai da Pátria a vigilância,
Cos tortuosos colos suspendidos Vingando a Mãe das luzes da arrogância,
No gume cortador da espada ardente. Com que a despreza o estúpido indolente.

Juntas as castas filhas da Memória O Monstro de mil bocas sem sossego,


As brancas asas sobre o Trono abrindo Que a glória de José vai repetindo
Assombrem a doirada, e muda História. Ou sobre a Terra, ou sobre o imenso Pego:

Ao índio livre já cantou Termindo. Com ela o nome levará d'Alcindo


Que falta, grande Rei, à tua Glória; Desde a invejada margem do Mondego
Se os loiros de Minerva canta Alcindo? Ao pátrio Paraguai, ao Zaire, ao Indo.
E. G. P. L. F. C. S.

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