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A LEGENDA AUREA: UMA OBRA ABERTA

Ms. Carolina Fortes (UGF) e Msda. Priscila Falci (UFRJ)


1. Introdução
Ao pensarmos em um título para essa comunicação não nos
preocupamos em buscar definições exatas do que viria a ser uma “obra
aberta”. Mas ao nos indagar qual seria a principal característica desta
que foi uma das mais copiadas obras medievais, não pudemos deixar de
recorrer à expressão “aberta”. Porque, em vários sentidos, esta foi se
construindo e reconstruindo, ganhando novos capítulos escritos pelas
mãos de vários religiosos, e do próprio compilador, ao longo de sua vida.
Como compilação, é devedora de muitas fontes anteriores e coevas. E
apresenta como personagens pessoas de diferentes grupos sociais, que
demonstram ter, em certa medida, fundos culturais diferentes.

2. A Legenda Aurea
O quanto se pode escrever sobre uma obra, aparentemente sem
grandes pretensões, escrita há mais de 700 anos? Sem dúvida, pode-se
escrever tratados. A historiografia produzida a cerca da Legenda Aurea,
apenas no século XX é relativamente extensa. Os mais variados ramos
do conhecimento já se interessaram por essa coletânea de vidas de
santos, mas, sobretudo filólogos e historiadores, como não poderia
deixar de ser. Uma das perguntas que freqüentemente se repetem em
relação à obra mais conhecida de Jacopo de Varazze é o porque de seu
sucesso na época na qual foi redigida. Não é nossa intenção respondê-
la, mas gostaríamos de levantar algumas considerações sobre o intenso
estudo que vem sendo feita sobre ela nos dias de hoje.
Antes de mais nada, o interesse renovado pela Legenda vem a
reboque de um movimento mais abrangente de interesse por fontes
alternativas para o estudo da História, suscitado primeiramente pela
História Social, e enraizado pela História Cultural. O estudo da
hagiografia é muito valioso para a apreensão de diversos aspectos da

1
cultura medieval. E, sendo a Legenda Aurea, um dos maiores, senão o
maior, expoente da hagiografia do período, nada mais certo do que
buscar nesta a resposta para um sem fim de perguntas. É claro que a
obra por si só não pode responder a todas, mas nos permite vislumbres
daquela outra realidade, a medieval. Feitas estas breves colocações,
aprofundemo-nos um pouco mais na Legenda sanctorum alias
Lombardica hystoria, dita Legenda Aurea.
Assim como obscura é a primeira fase da vida de seu compilador,
obscura é também a data exata na qual foi produzida a obra. É consenso
entre os historiadores que o documento foi escrito por volta de 1260.
Uma das principais características da compilação é a importância imputada à
pregação, o que pode ser compreendido como um dos pontos norteadores da Legenda Aurea,
principalmente se considerarmos a tensão entre os membros da Ordem Domincana causada pela
disputada entre privilegiar as atividades apostólicas dos pregadores ou as doutrinárias dos
professores. Este impasse cresceu gradativamente, durante o século XIII, tornando-se fonte de
fortes divergências, e, talvez, de certa forma marcando a resolução de Jacopo em escrever sua
compilação.
Por um lado, o dominicano reuniu um dos mais vastos materiais sobre santos já compilados,
utilizando fontes variadas, englobando experiências pessoais, textos cristãos e pagãos e a oralidade,
apresentando um material caracterizado pela heterogeneidade temporal e espacial. Somando-se a
isso, temos a organização da obra de acordo com o calendário litúrgico e a constante remissão ao
Evangelho, o que aponta para o uso na instrução dos demais irmãos, segundo preceitos reafirmados
pela Santa Sé. Em outras palavras, o compilador realizou um trabalho que requereu tempo para
levantamento e coleta das informações, e erudição para análise e compilação, visando um público
marcadamente diversificado.
Por outro lado, o uso recorrente dos exempla e o destaque dos feitos maravilhosos – os
milagres, a reconstituição dos corpos, a resistência às duras macerações, entre outros – possuíam um
forte caráter pedagógico e didático. A exaltação dos mártires e dos ascetas também indica um
objetivo apologético: a existência de recompensa em manter-se fiel ao ideal cristão, mesmo que em
condições adversas. Ambos os pontos, relacionados à construção do texto e ao seu conteúdo,
remetem-nos ao ideal apostólico da pregação e a atuação pastoral na conversão dos hereges.

2
No entanto, apenas podemos compreender a relação entre este dualismo e as tensões entre
pregação e ação, se nos questionarmos sobre os possíveis destinatários da Legenda Aurea. Como
ponto de partida, assinalamos o argumento de Hilário Franco Jr.:

O objetivo imediato de Jacopo de Varazze era fornecer aos seus colegas de hábito, (...),
material para elaboração de seus sermões. Material teologicamente correto, isento de
qualquer contágio herético, mas também compreensível e agradável aos leigos que ouviriam
a pregação.1

A partir deste trecho, podemos imputar à LA três funções diretamente relacionadas aos seus
públicos: destinava-se às leituras litúrgicas nos conventos dominicanos, às leituras particulares como
obra de edificação e como “fonte” de consulta para o preparo dos irmãos pregadores. Contudo,
considerando cada relato individualmente, sublinhamos que os elementos e as funções apresentados
não aparecem de forma homogênea na obra.
Portanto, defendemos que Jacopo de Varazze pretendia atingir dois públicos principais de
formas distintas. O primeiro e mais imediato era formado por clérigos, que consumiriam a obra e a
utilizariam na composição de seus sermões. Se considerarmos que a língua original de redação foi o
latim e que parte do material abordava questões relativas às particularidades da Igreja, 2 poderíamos
circunscrever o público mais direto à parte do clero bem educada. O segundo seriam todos os demais
– cristãos, hereges, infiéis – através da pregação.
Concluímos que a obra de Jacopo carregaria a responsabilidade simbólica de armar os
pregadores contra os inimigos da doutrina cristã, objetivando o combate às heresias e aos infiéis e a
“manutenção” dos fiéis. Somado a isso, ainda percebemos a promoção dos preceitos religiosos
propostos pela Igreja e a colocação da lei divina acima das demais, mesmo dos poderes imperiais.3
Assim, a Legenda Aurea foi uma ponte entre ação e erudição. Em suma, Jacopo
intencionava alcançar um equilíbrio entre estudo e pregação ao compilar uma extensa obra, cujas
leituras forneceriam instrução e material suficientes para garantir a eficácia da pregação. Em outras
palavras, consideramos que se o seu uso inicial era a instrução dos clérigos, seu objetivo final era
tornar mais eficaz a disseminação e o entendimento dos pressupostos cristãos para os leigos.

1
FRANCO JR., Hilário. Op.Cit. p.12.
2
Neste ponto, a pesquisadora Fortes argumenta que “(...) Jacopo insere um material distintamente não
voltado para os leigos, como dissertações escolásticas sobre questões doutrinais; breves ensaios sobre a
história de elementos particulares da liturgia; notas críticas sobre os conflitos entre uma fonte e outra, etc.”
(FORTES, Carolina C. Op. Cit. p.101).
3
Acreditamos que essa questão relacionar-se-ia a resquícios da Reforma Eclesiástica ou Gregoriana e o
processo de separação das coisas eclesiásticas das laicas. Essa distinção visava retirar a Igreja e os clérigos do
domínio laico. Contudo com a afirmação da lei divina, representada pela Igreja, não poder ser submetida a
nenhuma outra.

3
3. As Fontes e o Original
É sabido que o período medieval não se caracteriza pelo amor às
novidades. Como bem coloca Aron Gurevitch o medievo é um tempo em
que se considerava meritório “repetir o pensamento dos antigos e se
condenava a expressão de novas idéias; que o plágio não fosse objeto
de perseguição, enquanto que a originalidade poderia ser tomada como
heresia”.4 Assim, não poderíamos esperar nada diferente de Jacopo de
Varazze, personagem inserida em seu contexto de dominicano do século
XIII. Século esse que se configura como a “idade de ouro” da Ordem,
quando alguns pontos da missão dos pregadores são colocados em
prática.
Por exigência de sua missão doutrinal, alguns frades pregadores
consagraram-se desde cedo à escrita. Para eles, como para todos os
dominicanos, a atividade literária era uma prolongação da atuação
apostólica. A produção literária dos pregadores, durante o primeiro
século de sua existência, foi enorme. Mandonnet, renomado historidor
dominicano, afirma que, embora uma estimativa global seja difícil, é
muito provável que o conjunto de obras dominicanas até a metade do
século XIV não esteja longe de se igualar a totalidade do que foi escrito
pela Igreja latina até então.5 Buscava-se, então, conhecer para
converter. E parte desta busca pelo conhecimento se concretizou em um
grande esforço de compilação do saber cristão produzido até ali.
Não é necessário dizer que compilações têm como definição a
cópia, a reunião de saberes já conhecidos. Une-se nesse esforço
dominicano, desta forma, o pendor à cópia, próprio do período, e a
necessidade de se organizar os conhecimentos cristãos, própria da
missão dominicana. O que nos levaria a supor, muito naturalmente, que
a Legenda Aurea não passa de um aglomerado de vidas de santos, como

4
GURIEVITCH, Aron. Las Categorias de la Cultura Medieval. Madri: Taurus, 1990. p. 29.
5
MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work In:http://www.op.org/domcentral/trad/domwork/default.
htm

4
diria Le Goff no prefácio ao livro de Boureau,6 que “carece de qualquer
valor literário”7 e cujos “milagres e episódios edificantes parecem
maçantes e sem incisividade”.8 Enfim, Jacopo é um “compilador sem
genialidade e um teólogo medíocre”.9
Em parte, concordamos com Le Goff, não há dúvida de que o
conteúdo da LA é repetitivo, de que Jacopo bebeu de fontes variadas, as
quais apontaremos em seguida, muitas vezes copiando-as ipsi literis. No
entanto, existe algo além da cópia nesta obra, em alguns momentos o
compilador se deixa levar por suas próprias posições a respeito do seu
tempo, e as faz ser ditas pelos santos, seus confessores e pelos fiéis que
enchem as páginas da compilação.
Embora as fontes sejam bastante numerosas, algumas aparecem
com mais freqüência. Jacopo tomou conhecimento do trabalho
desenvolvido por seus predecessores, escolhendo como fontes principais
de muitos capítulos de seu legendário a Abbreviatio in gestis et
miraculis sanctorum (1244) de Jean de Mailly e o Liber epilogorum in
gestis sanctorum (também de 1244) de Bartolomeu de Trento,
integrando com as vitae e as passiones originais partes que não o
fatisfaziam.10 Segundo Dondaine, 136 episódios são copiados
literalmente de Jean de Mailly, 11
embora este não seja citado sequer
uma vez.
Além dessas duas fontes principais, de Bartolomeu de Trento ainda
temos o Liber Miraculorum beatae Mriae Virignis (1244-51), o Speculum
de Vicente de Beauvais, o qual é citado apenas duas vezes embora
esteja presente em mais de 500 passagens. Jacopo também se baseia
nas hagiografias de Tomás de Cantimpré, assim como em seu Bonum

6
BOUREAU, Alain. La Legende Dorée. Le Système narratif de Jacques de Voragine. Paris: Cerf, 1984
7
Idem, p. I
8
Idem, p. IV.
9
Idem.
10
MAGGIONI, P. Ricerche sulla composizione e sulla transmissione della “Legenda aurea”. Spoleto: Centro
italiano de studi sull´Alto Medioevo, 1995. p. 65.
11
DONDAINE, Antoine. Le dominicain français Jean de Mailly et la Légende Dorée. Archives d´histoire
dominicaine, 1, 1947, p. 53-100.

5
universale de apibus.12 Ainda são fontes freqüentes a Agiographia, de
Uguccione de Pisa, a Historia scolastica de Pedro Comestore, o Tractatus
de diversis materiis praedicabilibus, de Estevão de Borobone e,
logicamente, a Vulgata. De acordo com Ferruccio Bertini, Jacopo
também se vale de fontes patrísticas e clássicos da antiguidade, como
Cícero e Sêneca, citando-os em segunda mão.13
Segundo Maggioni, podemos classificar as vidas da LA em quatro
tipos:
1. Dependência literal de uma única fonte: Algumas partes da
Legenda Aurea são copiadas palavra por palavra da fonte. Trata-se, em
geral, de autorictates ou de hinos litúrgicos, mas também capítulos
inteiros que reproduzem obras de outros autores. Nesses casos, Jacopo
se comporta como um copista, limitando-se a intervir eventualmente no
incipit para tornar menos brusco a passagem entre as várias partes de
seu legendário. Como exemplo podemos citar o capítulo Os Sete
Adormecidos,14 copiado do legendário de Jean de Mailly.
2. Reelaboração de uma única fonte: Alguns capítulos, como
aqueles que derivam do material hagiográfico que usualmente
acompanhava a transmissão da Vitae Patrum, constituem algumas das
partes mais originais da Legenda Aurea, descrevendo os feitos dos
santos que haviam sido ouço desenvolvidos nos legendários
precedentes. Nestes casos o texto de Jacopo é fruto de uma
reelaboração original e se afasta das fontes, embora seja sempre
evidente a relação de dependência. A parte final do capítulo sobre Santa
Maria Egipcíaca15 pode ser tomado como exemplo dessa categoria, e

12
FERRUA, Valério. “Istanze e antitesi dell´Ordo Praedicatorum nella vita e nell´opera di Iacopo da
Varazze”. In: GUIDETTI, S.B.(org) Il Paradiso e la Terra. Iacopo da Varazze e il suo tempo. Atti Del
Convegno Internazionale. Varazze, 24-26 settembre, 1998. Firenze: SISMEL/Galluzzo, 2001.p. 44.
13
BERTINI, Ferruccio. “Le Fonti Classiche in Iacopo”. In: GUIDETTI, S.B.(org). Op. Cit., p.61-70.
14
JACOPO DE VARAZZE. Legenda Aurea. Vidas de Santos. Trad: Hilário Franco Jr. São Paulo: Cia. das
Letras, 2003. p. 576-580. As referências a obra serão feitas a partir da edição em português feita por Hilário
Franco Jr, sob a sigla LA.
15
LA, p. 354.

6
teve como fonte a Vita Mariae Aegyptiacae.16 Diversamente do caso
anterior, aqui a Legenda Aurea se afasta da sua fonte, abreviando o
texto original.
3. Reelaboração a partir de várias fontes: A maioria dos capítulos da
Legenda Aurea foram compostos integrando partes dos predecessores
de Jacopo com o texto das vitae e das passiones originais. Como
exemplo dessa categoria podemos citar o capítulo referente a São
Bartolomeu,17 que funde a Passio Bartholomaei e o Abreviatio de Jean de
Mailly.
4. Partes originais: Termos como originalidade e autoria devem ser
usados com muita cautela diante de obras como os legendários
condensados. Todavia não há dúvidas de que algumas partes da
Legenda Aurea não têm nenhuma fonte direta e são produtos
exclusivamente da cultura e da capacidade narrativa, histórico ou
interpretativa de Jacopo. Exemplos de partes originais da obra são os
capítulos de São Pelágio,18 que contem uma “História Lombárdica”, a
qual deu nome a toda a compilação (Legenda aurea, vulgo historia
lombardica dicta),19 e algumas partes exegéticas ou homiléticas que
constituem a estrutura dos capítulos mais complexos, como A
Natividade e Nosso Senhor Jesus Cristo segundo a carne 20 e a Purificação
da Bem-Aventurada Virgem Maria.21

4. Diferentes “vozes” para diferentes ouvidos


Na Legenda Aurea se lê sobre um cavaleiro que, partindo para
combater em um torneio, passa por um mosteiro dedicado a Virgem, e
aí para a fim de assistir a missa. Mas uma missa se segue a outra, e a
16
Cf. MAGGIONI, P. Ricerche sulla composizione e sulla transmissione della “Legenda aurea”. Spoleto:
Centro italiano de studi sull´Alto Medioevo, 1995. p. 69.
17
LA, p. 697-705.
18
LA, p. 1003-1024.
19
MULA, Stefano. “L´Histoire des Lombards. Son role et son importance dans la Legfenda aurea” In:
Morenzoni, Franco e Fleith, Barbara, (ed.) De la sainteté à l’hagiographie : genèses et usages de la Légende
dorée (XIII-XVe siècles) Actes de Colloque de Genève, avril 1999. Genève : Droz, 2001.p. 75-95.
20
LA, p. 94-102.
21
LA, p. 243-252.

7
outra e a outra mais. O tempo passa, mas o cavaleiro permanece
assistindo à missas, pela grande devoção que tem a Virgem. Quando o
cavaleiro enfim sai a caminho da justa, já é tarde demais. Então corre
para o local do torneio e encontra pela estrada espectadores que
comentam sua brava performance. Continua a andar e se depara com
homens que dizem terem sido vencidos por ele se oferecendo como
seus prisioneiros. O cavaleiro entende, enfim, o que havia acontecido: a
rainha do céu o havia honrado com sua gentileza. Explica a todos o que
aconteceu e retorna ao mosteiro, onde viveria a partir dali como servo
de Cristo.
Entendemos essa curta passagem de um dos capítulos da Legenda
Aurea22 como um bom exemplo da obra. Ao mesmo tempo em que se
preocupa com assuntos religiosos, volta-se para o divertimento de laicos
e clérigos, utilizando-se de armas espirituais. Nunca é demais insistir em
que os quadros eclesiásticos eram formados, no século XIII, por nobres
cavaleiros, como também por camponeses, artesãos, comerciantes. E
Jacopo pretende atingir a todos esses cristãos, que provêm de fundos
culturais diferentes. É assim que a obra é também aberta no sentido de
tentar chamar a atenção de todos. Constituindo-se como material básico
para sermões, as pequenas narrativas maravilhosas, que têm como
personagens as pessoas e situações mais corriqueiras, intencionam a
fácil identificação dos fiéis com os relatos e, principalmente, o
cumprimento dos ensinamentos que são passados através destas.
Um exemplo no relato de um discurso voltado mais para os
clérigos está na relação entre o bispo e o imperador Teodósio de
Tessalônica em um segundo momento no capítulo. Jacopo apoia-se da
História Tripartite ao narrar uma passagem na qual, durante uma
revolta em Tessalônica, alguns juízes foram apedrejados pelo povo e o
imperador Teodósio, revoltado, mandou matar 5 mil pessoas, sem
diferenciar culpados de inocentes. Quando foi a Milão, foi proibido de

22
A Natividade da Bem-Aventurada Virgem Maria. LA, p. 752.

8
entrar na igreja e intensamente repreendido por Ambrósio. O imperador
voltou chorando e gemendo a seu palácio. Contudo, um de seus
generais, Rufino, vendo a desolação do imperador e informado do
ocorrido, propôs-se a ir a Milão para demover o bispo de sua decisão.
Em vista disso, o imperador respondeu: “Você não poderá persuadir
Ambrósio, porque o poder imperial não é capaz de amedrontá-lo a
ponto de fazê-lo violar a lei divina” (Idem, p.363).
Rufino insiste e segue para Milão, mas não consegue alterar o
jugo de Ambrósio. Assim, o imperador decide reencontrá-lo e aceitar a
punição pelos seus pecados. Após cumprir penitência pública, Teodósio
retorna perdoado. Destacamos a seguinte passagem:

Depois de perdoado foi à igreja, dirigiu-se ao presbitério e ali


ficou de pé. Ambrósio perguntou-lhe o que fazia, e o imperador
respondeu que esperava para participar dos santos mistérios.
Ambrósio disse: “Imperador, o coro da igreja é reservado apenas
aos padres, saia e espere junto com os outros fiéis. A púrpura faz
de você imperador, não sacerdote.” No mesmo instante Teodósio
obedeceu. De volta a Constantinopla, estava um dia fora do coro
quando o bispo local mandou que entrasse, ao que Teodósio
respondeu: “Demorei muito para saber a diferença entre um
imperador e um sacerdote, não tinha um mestre capaz de me
ensinar à verdade, somente Ambrósio, autêntico pontífice
conseguiu fazê-lo” (Idem, p.364)

Acreditamos que a insistência do compilador em reafirmar a


separação dos poderes temporais dos espirituais era mais que
influência dos discursos da Reforma do século XII. Jacopo responde
diretamente aos conflitos entre o papado e a dinastia Hohenstaufen, do
imperador Frederico II, e o rei da França, Filipe Augusto, ao longo do
século XIII.23 Neste sentido, ele posiciona-se acerca do lugar do
imperador em relação à Igreja, evidenciando que a lei divina não
poderia ser desrespeitada por nada. Em suma, a LA é produto das
relações de poder, nas quais seu compilador está inserido.24
23
FORTES, Carolina C. Idem.
24
Mais uma vez, Jacopo, ao colocar Ambrósio como autêntico pontífice por não temer o poder do imperador,
estaria criticando os sacerdotes que se curvavam perante as vontades imperiais.

9
Determinamos, até o momento, que o personagem Ambrósio foi
construído como um modelo eclesiástico para os clérigos
(especialmente, para os dominicanos).
Nesta lógica, sua narrativa possuiria a função de instruir os
pregadores para o combate e a conversão dos hereges e dos infiéis
através da pregação. Como os sermões também se destinavam à
doutrinação dos fiéis, para guiá-los com os preceitos religiosos da
“verdadeira fé” propostos pela Igreja, quais os elementos que
indicariam a presença deste objetivo, nessa vitae?
A respeito dessa questão, sublinhamos no relato a constância de
milagres e fenômenos maravilhosos – que serão analisados mais
adiante – com o intuito de atrair os fiéis. Contudo, é em um longo
parágrafo, dedicado a enumerar e descrever de forma simples e
aprazível as virtudes do bispo Ambrósio, que percebemos indicações
para a condução correta da vida de um cristão. Neste, destaca-se a
abstinência do santo, realizando o jejum quase que diariamente; sua
generosidade e o desapego às coisas materiais; sua compaixão
demonstrada com as lágrimas pelo pecado alheio; sua humildade e o
amor ao trabalho por escrever manualmente seus livros; sua piedade e
doçura por chorar amargamente a morte de um sacerdote ou bispo; e
sua constância e força na alma por não adular imperadores e príncipes,
pelo contrário, repreender seus erros em voz alta. A apresentação de
cada qualidade com a indicação de como Ambrósio a alcançou
apontaria não apenas para o engrandecimento moral dos eclesiásticos,
mas, neste caso, dos fiéis também. Antes de ser sacerdote, Ambrósio é
colocado como cristão.
A explicitação das virtudes pode ser interpretada como um
artifício para atrair a atenção dos fiéis, como intuito moralizante, mas
não o único. Em um dos trechos da narrativa, um homem, que havia
cometido um crime horrível, foi sentenciado por Ambrósio, que temia
novos crimes, a ser entregue a Satanás. No mesmo momento, “o

10
espírito imundo dilacerou aquele homem” (Idem, p.359). Defendemos
que a ausência de especificação do crime cometido alargaria as
possibilidades de uso deste exemplum na pregação. Neste sentido, o
pregador jogaria com o fator medo, ou seja, esse caso serviria para
amedrontar os fiéis de cometer o mesmo crime desconhecido e,
portanto, sofrer as mesmas conseqüências.
Assim, por um lado, a narrativa de Ambrósio é recheada de
exempla, objetivando postular modelos de conduta para clérigos e
laicos, utilizando-se da convergência de elementos da erudição com os
da pregação.

5. Várias redações
Podemos dizer que a Legenda não é uma só, mas muitas obras. Ou
melhor, que é uma obra aberta porque permitiu, ao longo das últimas
décadas do século XIII que seu compilador a reescrevesse, ao mesmo
tempo em que, ainda no mesmo século, outros religiosos adicionassem
a ela novos capítulos.
Existem muitas Legende do ponto de vista do autor, não tanto
porque ao longo dos anos se tenha transformado a cultura de Jacopo,
mas sobretudo porque mudaram sua história e seu papel político.
Existem várias redações do legendário, seja porque se distinguem,
durante sua vida, o número de capítulos, seja pela variedade das fontes
citadas, seja pela forma como as fontes são utilizadas e inseridas na
obra.25 Tal fato é condizente com a forma de redação de outros
legendários do mesmo período. O autor não termina de uma vez por
todas sua obra, mas continua a trabalhá-la enquanto ainda é um simples
prior em Asti, depois como provincial dominicano da Lombardia e
também quando se torna arcebispo da grande e conturbada Genova.26

25
MAGGIONI, Giovanni Paolo. “Le Molte Legende Auree: modificazioni testuali e itinerari narrativi”. In:
Morenzoni, Franco e Fleith, Barbara, (ed.). Op. cit., p. 16 e ss.
26
Cf. AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi e mercanti. Milão: Camunia, 1988.

11
Tanto quanto é inquestionável que tenha existido uma Legenda
Aurea originária, é igualmente difícil reconstituí-la. Tanto mais porque
quase imediatamente o legendário começou a se difundir de forma
impressionante.27
A primeira Legenda Aurea não é muito diferente daqueles que a
precedem e que se constituem como suas principais fontes, o
Abbreviatio e o Liber epilogorum. Mas a Legenda Aurea que se
desenvolve nas décadas seguintes, como obra do provincial da
Lombardia, equivale àquilo que haviam composto, em âmbitos
diferentes, Tomás de Aquino para a teologia e Vicente de Beauvais para
a história, ou seja, uma síntese exaustiva, uma espécie de summa
agiographica, que comportasse como complementar tudo que pudesse
explicar as passagens obscuras da história sacra. Para Maggioni, não se
tratava mais de uma obra destinada apenas ao púlpito, mas também
aos leitores. Esta ampliação de público encontra respaldo em uma das
primeiras variantes redacionais,28 no capítulo sobre o Advento do
Senhor:

“(...) Esta também é a razão pela qual o primeiro


responso do primeiro domingo do advento tem quatro
versículos, inclusive o Gloria Patri, a fim de designar esse
quatro adventos. Julgue o leitor, com prudência, a qual
dos quatro prefere dar sua atenção.” 29

Assim, como a última redação da Legenda Aurea feita por Jacopo foi
destinada a um público também composto por leitores diretos, um
público mais variado e, pelo menos em parte, mais culto
inevitavelmente muda o uso da língua, o número de fontes e a forma de
sua utilização.

27
GAFFURI, Laura. “Du texte au texte: réflexions sur la premiére diffusion de la Legenda Aurea.” In:
Morenzoni, Franco e Fleith, Barbara, (ed.). Op. cit., p.139-145.
28
MAGGIONI, Giovanni Paolo. “Le Molte Legende Auree: modificazioni testuali e itinerari narrativi”. Op.
cit., p. 18.
29
LA, p. 47. Grifo nosso.

12
Neste sentido, como não podemos citar aqui todas as fontes às
quais Jacopo recorreu, por conta de seu grandioso número, também nos
será impossível enumerar todas as adições que sofreu a Legenda ao
longo dos séculos. A própria edição Graesse, até fins do século passado
a mais considerada dentre as edições da Legenda, apresenta nada mais
do que sessenta capítulos adicionais, escritos por outras pessoas. Outro
exemplo da variedade de suas adições temos nas Atas do Colóquio
Internacional sobre a Legenda Aurea, realizado em 1983.30 Estas são
divididas em quatro partes, das quais cinco dedicam-se a diversos
ramos vernaculares, ou seja, a tradução/adaptação para o vernáculo,
sempre acompanhadas da colocação de novos capítulos e eliminação de
antigos que careçam de interesse para as diferentes comunidades.
Esses ramos são: em língua de oc e catalão, em francês, em alemão, em
tcheco e em inglês.
As muitas versões da Legenda Aurea começaram a circular ainda no século XIII, quando a
compilação foi traduzida para o catalão e o alemão. Em 1340, foi elaborada a primeira tradução
para o francês; para o holandês, em 1358; e para o tcheco, em 1360. No final do século XIV, as
múltiplas edições contabilizavam 156, aproximadamente. Essa difusão da obra não apenas
comprova sua importância desde o século em que foi produzida, mas também suscita questões
relacionadas às diferenças entre cada versão.
Percebemos assim, que até o século XV a Legenda continuou a ser
copiada e reescrita ao sabor dos interesses locais. Foi utilizada como
legitimadora da fama sanctitate de várias personagens ainda não
reconhecidas pela Igreja,31 como é o caso de Adelfo, bispo de Metz,
Henrique, imperador do Sacro Império Romano Germânico, Catarina de
Siena, Tomás de Aquino, entre outros.32

6. Conclusão
30
DUNN-LARDEAU, Brenda (org.). Legenda Aurea: Sept Siécles de Diffusion. Actes du Colloque
international sur le Legenda Aurea: textes latin et brainches vernaculaire. Montreal-Paris: Bellarmin-Vrin,
1986.
31
REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University
Press, 1985.p.?
32
SANTIAGO DE LA VORÁGINE. La Leyenda Dorada. 2 vols. Madri: Alianza, 2000.

13
Com o objetivo de mostrar que a Legenda Aurea é uma obra multifacetada buscamos
ressaltar alguns pontos que a caracterizam. A obra possui diferentes públicos-alvos. Bebe, de
variadas formas, das mais diversas fontes, contemporâneas ou antigas. Equilibra-se entre erudição e
ação, a letra e a palavra, o grande ideal dos irmãos pregadores então. Tem distintas redações, feitas
pelo próprio compilador, que a modifica tanto para complementá-la, quanto para expressar seu
sempre transformado papel político. Conta com um número enorme de redações feitas depois da
morte de Jacopo, que seguem igualmente a obsessão pela summa, adicionando mais e mais
capítulos. Mas do mesmo modo privilegiam santos regionais, buscando legitimar algum figurão ou
simples vilão que trouxesse fama e recursos para sua localidade ou comunidade religiosa.
Assim, se até aqui não utilizamos o conceito de obra aberta forjado por Umberto Eco 33 foi
para evitar cairmos em anacronismo ou um estruturalismo exacerbado. Mas, tomando os devidos
cuidados para adaptar o conceito contemporâneo a uma obra literária do século XIII, podemos
defender que esta é sim, uma obra aberta. Senão vejamos o conceito de Eco.
Para o semiotista italiano, a intencionalidade é considerada um pressuposto da obra aberta.
Vimos como Jacopo manipula suas fontes e cria matéria original para atingir alguns dos objetivos
principais da compilação: postular “modelos de boa conduta” para instrução dos seus irmãos e
proporcionar material teologicamente correto para formulação dos sermões, visando a ação entre os
fiés e a conversão dos infiéis e hereges. Além de toda obra possibilitar várias interpretações, a obra
aberta apresenta-se de várias formas e cada uma delas se submete ao julgamento do público.
À medida que o autor cria várias obras, deixando ao executante escolher uma das
seqüências possíveis, a própria execução da obra torna-se um ato de criação. É assim que o próprio
Jacopo escreve e reescreve sua obra, fazendo uso de outros autores, e deixando depois que outros
façam uso e alarguem (e/ou estritem) sua compilação. Nesse sentido, autoria e co-autoria acabam se
confundindo de tal maneira que já não se pode falar de uma obra, mas de várias. Embora Eco se
refira aqui a um único “objeto”, e a obra literária tenha, frequentemente, por característica ser mais
maleável que um obra de arte plástica, a Legenda muitas vezes não pode ser entendida como tendo
um autor. Não só por conta de toda a inexatidão que cerca esse conceito para o período medieval,
mas igualmente porque são vários os autores presentes na obra, tanto os utilizados como fonte,
quanto os que a reaproveitarão inserindo nela características direcionadas para seus próprios fins.
Além desse primeiro sentido do conceito de obra aberta, há, porém, segundo Eco, uma
segunda categoria de obras que podem ser denominadas "abertas": aquelas que são determinadas
quanto à forma, mas indeterminadas quanto ao conteúdo. Nesse caso, poder-se-ia dizer que a
abertura é efeito da combinatória de signos que formam a estrutura da obra, que, evocando os mais
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ECO, Umberto. Obra Aberta: Forma e Indeterminação nas Poéticas Contemporâneas. São Paulo:
Perspectiva, 2005.

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diversos sentidos, permitem ao intérprete fazer, durante a fruição, as mais diversas conjecturas
interpretativas. Aqui também se enquadra a Legenda Aurea. Seus sentidos são múltiplos, assim
como são múltilpas as leituras possíveis de seus signos. Portanto, podemos afirma que, também
segundo a visão de Eco, a Legenda Aurea é uma obra aberta.

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