Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
CULTURA
PERFIL
Trabalhos e paixões
de Miguel
O jornalista frontal cedeu lugar ao contador de histórias
pressentido, e o resultado é um best-seller. Depois do
deserto, do Algarve, do futebol, o que faz correr M.S.T.?
SÍLVIA SOUTO CUNHA* tador de histórias, tal como a minha avó
[a poetisa Sophia de Mello Breyner]»,
E
screvi como um exercício de li- recorda Pedro Sousa Tavares, 28 anos,
‘ berdade. Não escrevi por dinhei-
ro, nem para ser um best-seller
jornalista do 24 Horas. «Eu e a minha
irmã Rita ficávamos fascinados com os
ou para acrescentar 'romancista' relatos dele, histórias verdadeiras mas
ao meu cartão-de-visita. Escrevi porque com um toque pessoal. Em viagem, ele é
me apeteceu contar uma história», diz nitidamente feliz», acredita o filho mais
Miguel Sousa Tavares sobre o seu pri- velho de Miguel. A aura de homem te-
meiro romance. Mas Equador, 527 pági- merário, coberto de pó, assenta-lhe bem.
nas editadas pela Oficina do Livro, ge- Depois, a caneta cumpre a missão de
rou todos esses efeitos secundários. A resgatar a aventura. A introdução do seu
história passada em São Tomé e Prínci- livro de viagens, Sul (Relógio d'Água), é
pe de há cem anos, tendo como pano de o testemunho de «alguém que, como
fundo a escravatura, a economia das ro- nos sonhos de infância, teve a sorte de
ças e o poderio colonial, partir tantas vezes com
D.R.
LUÍS VASCONCELOS
NATACHA MELO
D.R.
■ MOMENTOS DECISIVOS Miguel em pose de director no seu gabinete da Grande
Reportagem; com a actual mulher, Cristina Avides Moreira; ao lado do filho mais novo, Martim;
e com José Barata Feyo, companheiro de informação da RTP, em 1984
a minha mulher é uma cozinheira 40 ve- ção no título de um texto revela-se pre-
zes melhor do que eu. Pessoas do Norte monitória: Timor, Véspera da Invasão.
são outra coisa!» Um ano depois, M.S.T. viu-se como as-
As mesmas vozes falam de dois Mi- sessor jurídico do Ministério da Educa-
guéis, noção partilhada pelo próprio ção. Mas o jornalismo vence e segue-se
Sousa Tavares. «As pessoas pensam que uma década de trabalho na RTP, vários
tenho muitas contradições: 'se o tipo prémios e uma despedida amarga. A
pensa isto, não devia pensar aquilo'. Te- SIC será o seu novo palco, onde faz
nho a infelicidade de ser figura pública, programas de grande informação como-
o que significa que 99% das pessoas têm Terça à Noite, Crossfire, Viva a Liberda-
à partida um juízo sobre mim que não se de, A Hora da Verdade. Segue-se novo
funda em coisa nenhuma. Mas habituei- intervalo até o jornalista chegar à TVI
natos de bilhar acontecem, apesar do -me a conviver com isso, já que existem com o programa Em Legítima Defesa,
proprietário ser, contam várias vozes, dois Miguéis Sousa Tavares – um que eu ao lado de Paula Teixeira da Cruz. Na
«hipercompetitivo e detestar perder». e os meus próximos conhecem, e o ou- imprensa, foi director da Grande Repor-
Os amigos elogiam-lhe o espírito de tro que é uma espécie de coisa pública.» tagem, de 1989 até 2000, as crónicas na
descoberta, a timidez disfarçada. «Ado- As diferenças? «São imensas. Até ho- revista Máxima estenderam-se por oito
ra um sítio onde se coma um bom peixe mossexual já disseram que eu era. Não é anos e a sua opinião no Público tornou-
e ficar na praia a pastar», diz um. «Ele que eu seja homofóbico, de maneira ne- se numa presença familiar. E, então, fez
tem um prazer de viver, algo que não nhuma, mas quem me conhece sabe que silêncio para escrever.
passa na televisão, onde tem uma ima- é uma coisa tão impossível de acontecer Quem conhecia as intenções de Mi-
gem arrogante, fechada», acrescenta ou- que chega a ser patético.» guel eram os amigos, muitos incluídos
tro. «Tem imenso sentido de humor. É na dúzia de participantes das famosas
capaz de contar a anedota mais básica Tertúlias e jantaradas tertúlias, jantares organizados com te-
com o prazer de um miúdo de cinco Aquilo que todos sabem sobre Miguel mas para debate, ferozmente interditos a
anos.» E conta bem? «Não é um dos Sousa Tavares é o desfiar de uma carrei- estranhos. «Eram pessoas em alturas pa-
contadores de anedotas mais dotados, ra jornalística marcada pela vontade de recidas da vida, em processo de divór-
mas diverte-se.» Os dotes culinários dizer sempre o que pensa. Formado em cio, que se encontravam e conversavam
compensam. «Faz uma magnífica sopa Direito, fez o estágio ao mesmo tempo sobre os mesmos temas», descreve Pe-
de peixe…», conta Pedro Patrocínio. que escrevia as primeiras peças jornalís- dro Patrocínio. Miguel estava então a
Mas Miguel já perdeu as ilusões: «Eu era ticas na secção internacional do jornal separar-se da segunda mulher, Laurinda
um bom cozinheiro até me ter casado A Luta, onde protagoniza um acidente Alves, jornalista e actual directora da re-
agora [pela terceira vez] e descobrir que feliz: a queda de um ponto de interroga- vista Xis. «Acabava sempre por haver
▲
D.R.
de homenagem feita à sua mãe, Sophia
de Mello Breyner, em Abril de 2002; numa festa
da Central Models; recebendo um Sete de Ouro
1989 das mãos de Herman José; nos estúdios
do programa Face a Face, em 1987,
entrevistando Belmiro de Azevedo
D.R.
temas sobre sexo e relacionamento en-
tre homens e mulheres. Tudo muito in-
disciplinado, mas divertido. O Miguel ti-
nha opiniões que dificilmente poderia
explanar em público. É conhecido por
ser frontal. É uma das pessoas mais in-
dependentes que conheço. Muitos per-
guntam-me a posição política dele, eu
não sei. Ele não é seguidista de nenhum
grupo», acrescenta.
O cantor Rui Veloso, também presen-
te nas tertúlias, não está com rodeios.
«Tem mau feitio como eu!» Livre-se al-
guém de o acompanhar a ver um jogo de
futebol! Portista ferrenho, «não concebe
que alguém veja um jogo do Futebol
Clube do Porto sem estar calado e quie-
to». Veloso aponta-lhe igualmente uma
necessidade «quase física» das suas ho-
ras solitárias e uma «ponta de arrogân-
cia que só lhe fica bem», remédio certo responsáveis por essa nova paixão de Mi- A natureza. Este é agora o seu credo.
para afastar incautos. «Desperta muita guel Sousa Tavares. Há 20 anos, compra- São gostos de um urbano mal assumido,
curiosidade feminina. É a história da vi- ram uma pressão de ar a meias. Hoje, são que recorda os tempos felizes em que,
da dele, não há mulher nenhuma que parceiros regulares de caçadas. com 6 anos, viveu no campo. Numa
não tenha curiosidade em conhecer o Miguel Sousa Tavares defende a caça quinta perto de Amarante, pertencente a
animal. É um sedutor nato, só não can- com a mesma convicção com que sem- uma das sobrinhas do Teixeira de Pas-
ta», acrescenta. A inveja que provoca pre defendeu as suas causas públicas de coaes, sua madrinha. «O meu lanche era
em muitos homens começa logo por aí, estimação, nomeadamente o ordena- um bocado de broa e cebola com sal.
é a mensagem implícita. Rui Veloso, que mento do território e ambiente, a reabi- Ainda hoje sou a única pessoa que come
está de férias no Brasil acompanhado litação da noção de justiça e de mérito. cebola crua com sal! É completamente
por um exemplar de Equador, acredita «As pessoas da cidade e as pessoas do indigesto, mas nunca mais me passou
que a personagem principal acaba por campo nunca estiveram tão afastadas esse gosto», conta.
ser um pouco autobiográfica, «pela in- como estão hoje. Temos basicamente
dependência, frontalidade, linhagem, ir- uma cultura urbana, em que, inclusive, Uma vida útil
reverência, modernidade, fogosidade e as pessoas do campo só tem o desejo de O orgulho nos pais, Sophia e o mili-
atracção que causa nas mulheres». vir para Lisboa. Preferem o centro aos tante Francisco Sousa Tavares, a recor-
grandes espaços e aos grandes silêncios, dação dos almoços de domingo, em fa-
O poder das audiências que a mim me fascinam e a eles os satu- mília, na Graça, acompanhados de ace-
«O Miguel é sensível à presença de um ra. A caça ajudou-me a descobrir muito sos debates, ou os Agostos passados em
auditório, é diferente ter-se uma conversa em relação à natureza: ensinou-me não Lagos, quando o Algarve era o mar in-
com ele a dois», refere o jornalista José só a reconhecer os animais como a teiro, um paraíso perdido que não se
Barata Feyo. Juntos, assinaram uma céle- compreender o próprio ciclo da nature- cansa de defender, são-lhe essenciais.
bre comunicação crítica sobre a profissão za.» E acrescenta: «Os verdadeiramen- Os filhos prestam-lhe igual admira-
no 1.º Congresso de Jornalistas, realizado te apaixonados pela natureza e que sa- ção. Rita foi recentemente conduzida ao
em 1982. Na altura, o jornal O Diabo, de bem tudo, são caçadores. São capazes altar, pelo braço do pai, e prepara-se pa-
Vera Lagoa, apelidou-os de «meninos pi- de dizer os nomes de todas as plantas e ra o tornar avô. Uma nova experiência
descos». E nas reviravoltas do processo árvores, o estado das culturas, se ama- que o encontra ao lado da terceira mu-
que impediria Barata Feyo de entrar du- nhã há chuva ou sol, identificar os pás- lher, a empresária nortenha Cristina
rante 19 meses nas instalações da 5 de saros pelo canto», maravilha-se. «E, de- Avides Moreira, com quem casou recen-
Outubro, este não esqueceu a solidarie- pois, há o prazer do tiro em si, e de temente numa quinta pertencente à fa-
dade do amigo. Caçador, filho e neto de acertar. O prazer de matar um bicho, mília da noiva, na zona de Cete.
caçadores, Barata Feyo diz-se um dos esse, não existe nunca», declara. José Megre, que se orgulha de ter
112 VISÃO 31 de Julho de 2003
CULTURA
D.R.