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TAO TE KING
Tradução e Introdução: Ivo Storniolo
Compilação, organização e digitalização:
Lumensana
Nota Inicial
No seu laconismo epigramático, o Tao Te King é um livro de sabedoria tão inesgotável como
o próprio Tao – de cujo sentido ele trata. Passados quase três mil anos do seu surgimento, o forte
efeito direto que exerce sobre nós resulta, ainda hoje, do fato de Lao Tse expressar seus
reconhecimentos em imagens totalmente elementares e mesmo quase arquetípicas.
Os comentários finais “Os Ensinamentos de Lao-Tse” são de autoria de Richard Wilhelm,
publicados pela primeira vez em 1925. Por ser um importante complemento de leitura ao Tao-Te
King, incluímos aqui esses comentários, para nos dar um conhecimento mais exato do ambiente
cultural em que surgiu e atuou essa obra, ajudando-nos a compreender mais profundamente o que
significa para a cultura chinesa o Tao, e o que pode significar para nós também, hoje.
LAO TSE, ao lado do filósofo social Kong Fu Tse (Confúcio) é certamente uma das maiores
figuras da cultura chinesa. Sua Obra, o Tao Te King, sem dúvida é uma das colunas fundamentais da
cultura chinesa. Neste pequeno livro encontramos uma concepção mística e ética que marcou
profundamente a cosmovisão, a religião e os princípios de vida da China. Em estilo epigramático,
encontramos uma intuição que praticamente perscruta todos os âmbitos da vida, desde a religião até
uma psicologia individual e social. A coincidência com outras tradições místico-religiosas do
Oriente e do Ocidente faz pensar em uma matriz comum a toda a humanidade. É a razão
fundamental de este livro ter sido e continuar sendo objeto de pesquisa e meditação, dirigidas tanto
à vida pessoal como social. Trata-se de uma obra sapiencial que penetra o mais profundo da
experiência humana, em qualquer tempo ou lugar.
O “Tao”
Como todo ideograma da língua chinesa, a palavra “Tao” pode receber inumeráveis traduções
em nossas línguas modernas: a Divindade, o Absoluto, o Ser Supremo, o Infinito, o Eterno, o
Insondável, o Uno, o Todo, a Fonte, a Causa, a Realidade Última, a Alma do Universo, o Caminho,
o Sentido, a Inteligência Cósmica... e outras ainda. Como nome, ele é simplesmente uma espécie de
signo algébrico para designar o Mistério dos Mistérios, o Mistério supremo. Embora tenha os
atributos da Divindade, não devemos logo identificá-lo com o Deus dos judeus e cristãos, pois ele
não é concebível como um Deus Pessoa, mas como um Deus Cósmico, bem conhecido de místicos
como Demócrito (filósofo grego), Francisco de Assis (místico cristão) e Spinoza (filósofo judeu), e
por outros místicos, que por isso mesmo sempre levantaram suspeitas nos círculos científicos e
religiosos do tempo em que viveram.
O Tao é o Uno, que é constituído pela síntese fontal dos opostos, reunindo em si ao mesmo
tempo o Yang e o Yin, a Luz e a Treva, O Masculino e o Feminino, o Positivo e o Negativo, e todos
os demais opostos. Diríamos que ele é um complexo ou compositio oppositorum, “compleição ou
composição dos opostos”, a unidade pelo perfeito equilíbrio dinâmico dos contrários, resultando no
que Nicolau de Cusa chama de coincidentia oppositorum, a “coincidência dos opostos”. Isso leva a
um profundo senso de complementaridade de tudo o que existe – uma vez que o Tao está presente
no mais fundo de toda a realidade –, assim como de uma concepção da divindade que não é
exclusivamente masculina ou feminina, mas que transcende ambos os princípios num perfeito
equilíbrio: em seu ser e em sua ação, Deus é masculino e feminino, ao mesmo tempo.
O Tao, portanto, é em si mesmo o Mistério que escapa a qualquer investigação lógica
discursiva, e só é atingível pela intuição mística. ele não tem nome, e é a contragosto que o autor o
chama de Tao. Mas a ação dele é sentida por todos os seres, que o experimentaram como a força do
masculino agindo através da suavidade do feminino, a paternidade do masculino através da
maternidade do feminino. Desse modo, ele é também chamado de Mãe de todas as coisas. É
decisiva, portanto, a concepção de uma divindade que integra o princípio feminino e age através
dele. No Tao encontra-se também a raiz e o fundamento da receptividade do feminino.
O conceito mais típico do livro é o do wu wei, da “atividade sem ação” ou do “não-agir”, que
é um estado de passividade, mas de uma passividade totalmente ativa, no sentido de ser receptiva.
Isso é a essência do feminino e também o modo de o Tao agir sem ação, porém realizando tudo. A
mulher é passiva em relação ao homem, a fim de receber a semente que a torna fértil. É uma
passividade ativa, dinâmica e criativa, da qual brotam a vida e seus frutos, o amor e a comunhão. O
mundo necessita hoje descobrir este senso do poder feminino, que é complementar ao do poder
masculino e sem o qual o homem se torna dominador, estéril e destrutivo. Há muito tempo o mundo
ocidental está seguindo o caminho do Yang, o caminho da mente masculina, ativa, agressiva,
racional e científica, levando o mundo à beira da destruição. É tempo de recuperar o caminho do
Yin, da mente feminina, passiva, paciente, intuitiva, poética, geradora e nutridora da vida. Também é
tempo de redescobrir a face feminina de Deus. Este é o caminho que o Tao Te King nos propõe.
O Tao é onipresente. É a fonte e a base do ser da Natureza e do Universo, e também de cada
ser em particular. Ao mesmo tempo que está presente em tudo, ele também ultrapassa tudo,
aplicando-se a ele a apresentação que são Boaventura faz de Deus: Deus est circulus cuius centrum
ubique, circunferentia vero nusquam (“Deus é um círculo cujo centro está em todo lugar e cuja
circunferência não se encontra em lugar nenhum”). Não se trata de panteísmo (=Deus é tudo), mas
de panenteísmo (=Deus em tudo). A realidade visível seria o testemunho do Tao, que faz tudo
evoluir para o ponto em que, como diz o apóstolo Paulo, Deus será “tudo em todos” (1Coríntios
15,28). O místico é capaz de ver esse projeto em andamento, e procura harmonizar-se com ele, tanto
em si mesmo como na sua ação em favor dos outros.
O “Te”
O Tao é o Uno infinito e invisível, porém, manifesta-se de forma finita e visível através do
Te, a Natureza, que inclui a dualidade oposta formada pelo Céu (princípio masculino espiritual) e
pela Terra (princípio feminino material). Da união entre o Céu e a Terra nascem todos os seres e
coisas, levando no mais profundo de si mesmos a imagem e a semelhança do Tao, e de seu perfeito
equilíbrio entre os opostos. Em outras palavras, cada ser leva na sua base mais íntima a presença do
Tao que preside à sua realização enquanto ser. O Te seria, portanto, a Virtude, ou seja, a força ou
impulso vital do Tao presente na Natureza e em todo o Universo.
Isso nos conduz seja ao ser humano em si, tomado como indivíduo, e à sua realização
psicofísica, desde que o pequeno Eu consciente se volte para o Si-mesmo, espelho do Tao no seu
interior mais profundo, entregando-se ao impulso que vem do Tao e se manifesta no Si-mesmo,
levando o indivíduo à consecução da sua mais elevada individualidade (in-divíduo = não divisível).
Em outras palavras, o impulso que vem do Tao leva o indivíduo a tornar-se “imagem e semelhança”
do próprio Tao. A esse processo C. G. Jung deu o nome de “individuação”.
Também a vida social pode ser focalizada segundo a percepção do Tao. Já dissemos que o
Tao é o perfeito e infinito equilíbrio entre os opostos. Isso também pode ser chamado de “equilíbrio
infinito da justiça”. Na vida social, cheia de desigualdades e conflitos por causa das pretensões e
ambições dos pequenos Eus agrupados, a busca do Tao é, em última análise, uma contínua busca da
justiça que leva à vida em equilíbrio, evitando qualquer excesso para mais ou para menos. Daí o
ideal da moderação e da frugalidade: todos com igual direito à vida (isto é, aos bens necessários
para mantê-la) e à liberdade (a possibilidade de participar na organização da sociedade e nos rumos
da história). Portanto, nem isso nem aquilo: nem a pobreza nem a riqueza; nem o poder nem a
impotência.
Quanto à autoridade política, o ideal que deve reger o governante é o modo de agir do Tao: a
força do masculino através da suavidade do feminino, ou a ação da não-ação. O governante ideal é
o que representa (torna presente) de tal modo a presença do Tao e de sua ação, que o povo nem
percebe a presença do próprio governante, vivendo com a sensação de se autogovernar a partir de
sua própria liberdade, que nasce do Si-mesmo e do governo do Tao.
O Tao é também comparado à água, que beneficia todas as coisas, e sempre ocupa o lugar
mais baixo. Encontramos aqui a virtude da humildade, a pobreza de espírito do Sermão da
Montanha (Mateus 5,3). Isso leva ao valor paradoxal do vazio: “Modelais a argila para fazer um
pote, mas a utilidade do pote vem do vazio” (cf. 11). Traduzido em termos pessoais, isso significa
que a utilidade da pessoa supõe o esvaziamento do seu pequeno Eu, a fim de que o Tao a preencha
com sua presença e ação. Todo seguidor do Tao é, portanto, uma pessoa que deixou as pretensões ou
ambições pessoais: quando ele se esvazia, o Tao tudo preenche e, através da não-ação do seu
pequeno Eu, o Tao tudo realiza. Dessa forma, o Sábio, ou seja, todo seguidor do Tao, se torna sinal
e sacramento da presença e da ação do Tao.
Lao Tse
É muito difícil situar um personagem com o nome de Lao-Tse (= “ancião”; nome que
também pode ser traduzido por “criança velha”) na história literária chinesa. Os chineses em geral
cultuam mais o simbólico do que o histórico. Poucas fontes históricas o situam pelo fim do séc. VII
a.C. e meados do séc. VI a.C., sendo, portanto, contemporâneo de Kong-Fu-Tse (Confúcio).
Segundo uma tradição mais ou menos lendária, Lao-Tse teria sido bibliotecário ou arquivista
na corte chinesa, de onde pôde observar de perto a decadência política e social do seu tempo.
Decepcionado com o estado das coisas do Império, na meia-idade teria deixado a corte e se tornado
eremita numa floresta, onde viveu a segunda metade de sua vida, contemplando e meditando. No
fim da vida, aos oitenta anos, teria se dirigido para a fronteira, procurando deixar a China com
destino à Índia. O guarda da fronteira pediu-lhe então que deixasse algo escrito sobre o seu
pensamento. Lao-Tse entregou-lhe, pois, um pequeno livro contendo cinco mil ideogramas, que
formariam o assim conhecido Tao-Te King. Depois atravessou a fronteira, tomando rumo
desconhecido. Desse modo Lao-Tse teria seguido até o fim o caminho do Sábio, escondendo-se por
trás de sua obra, que continua viva até os dias de hoje e que se tornou em todos os tempos um dos
pilares básicos do pensamento e do modo de vida chinês.
As intuições do Tao-Te King abordam, em estilo simples e penetrante, aspectos bastante
comuns da vida, muito embora passem derpercebidos à maioria das pessoas. Por incrível que
pareça, muitas vezes é difícil captar o mistério que se esconde por detrás do óbvio. As pessoas, em
geral, pensam e se preocupam com grandes problemas, não se dando conta de que eles começam de
forma pequena e óbvia. Lao-Tse nos ensina a ver o que é óbvio e nele descobrir as raízes mais
profundas do mundo e de nós mesmos. A sabedoria, com efeito, não é a posse de uma vasta cultura,
mas reside na formação de um discernimento capaz de penetrar todas as coisas e situações, nelas
descobrindo o sentido que se esconde por trás daquilo que nos parece tão óbvio.
O Tao-Te King representa a mais alta expressão do pensamento chinês, constituindo-se por si
próprio um completo sistema filosófico, dotado de uma Metafísica, que entrevê e descreve no Tao a
causa primeira, o bem supremo do Universo; de uma Moral, que indica ao homem o caminho para
alcançar o seu próprio fim; e de uma Política, que mostra aos governantes a via que estes devem
percorrer para o progresso e o bem-estar do povo.
O Tao-Te King é um livro de sabedoria inesgotável, exercendo depois de quase três mil
anos um forte efeito direto sobre nós, com imagens simples e totalmente elementares:
“Trinta raios cercam o eixo da roda: a utilidade da roda consiste no vazio entre eles.
Escava-se a argila para modelar vasos: a utilidade dos vasos está no seu vazio”.
2 – O CONHECIMENTO DIALÉTICO
3 – O GOVERNO DO SÁBIO
O Tao é um vazio, mas, quando dele se faz uso, não se esgota jamais.
Ele é tão profundo que parece ser a fonte de todas as coisas.
Embota o que é agudo, resolve os problemas;
torna difuso o brilho que ofusca, unifica o mundo:
Que profundidade! Parece que há aí qualquer coisa.
Não sei de onde ele saiu.
Dir-se-ia que sua existência é anterior à do Ancestral.
O Céu e a Terra não são humanos; eles tratam as inumeráveis coisas como cães de palha.
O Sábio não é humano; ele trata as pessoas como cães de palha.
O espaço entre o céu e a terra é comparável a um fole: vazio, mas inesgotável;
acionai-o, e ele produz sempre mais.
Quem muito fala logo se esgota.
Nada é tão bom quanto permanecer no centro.
8 – A MELHOR ATITUDE
Encher uma taça até a borda não é tão bom quanto parar.
Afiar demasiadamente uma lâmina acabará por torná-la cega.
Se encherdes vossa casa de ouro ou de jade, ela não estará em segurança.
Com a riqueza e a honra vem o orgulho, e os defeitos que daí decorrem são ornamentos.
Uma vez terminado o trabalho, retirai-vos.
Assim é o Tao do Céu.
Podes unificar o espírito do sangue e o espírito do sopro sem que eles de novo se separem?
Concentrando a respiração para obter a elasticidade: és capaz de ser como um bebê?
Purificar a Visão Misteriosa: podes fazê-lo perfeitamente?
No amor do povo e no governo da nação: podes fazer com que o povo seja desprovido de saber?
Abrir e fechar a porta do Céu: podes realizar o papel da Mulher?
Espalhar a iluminação nas quatro direções: podes fazê-lo sem ação consciente?
Produzi e aprovisionai uma boa redondeza: produzi, mas não possuais.
Agi, mas não controleis.
Fazei brotar, mas não ceifeis.
Chama-se a isso a Virtude da Profundidade.
11 – A UTILIDADE DO VAZIO
12 – EXCESSO E MODERAÇÃO
Olhai o que não pode ser visto, porque está além da forma.
Escutai o que não pode ser ouvido, porque está além do som.
Pegai o que não pode ser tocado, porque é intangível.
Essas três atitudes não podem ser compreendidas, seja qual for o número
de questões que levantardes a seu respeito.
Mas, tomadas juntas, elas formam uma unidade.
No alto, seu aspecto não é ofuscante, embaixo, seu aspecto não é escuro.
O não-nomeável se move numa processão sem termo, até que retorne ao seu nada.
É uma forma sem forma, a imagem do sem-imagem. É possível chamá-lo caos obscuro.
Encarai-o: não vereis sua face; segui-o: não vereis suas costas.
Apegai-vos ao antigo Tao para ordenar as realidades presentes.
Somente aquele que é capaz de apreender os antigos inícios, pode-se dizer que participa do Tao.
15 – O MISTÉRIO DO SÁBIO
Nos tempos antigos, os sábios eram misteriosos e estavam em comunicação com o Céu.
Sua profundeza era insondável.
É precisamente por causa de sua impenetrabilidade que pareciam pouco apressados,
até mesmo hesitantes, como aqueles que atravessam uma corrente em pleno inverno.
Circunspectos, como se o perigo pudesse surgir das quatro direções;
reservados, como convidados;
cedendo, como o gelo prestes a fundir-se;
puros por natureza, como o jade bruto;
vastos, como um vale;
confusos, como a lama.
Quem pode acalmar a água turbulenta para torná-la perfeitamente clara?
Quem pode fazer com que o inerte torne-se gradualmente vivo, ativando-o?
Aqueles que preservam o Tao não querem estar cheios.
É porque eles não estão cheios que podem ter a plenitude e não desejar mais.
16 – VOLTA À NATUREZA ORIGINÁRIA
18 – A PERDA DO TAO
19 – RECOMEÇAR NOVAMENTE
20 – A CRISE DO SÁBIO
23 – O EQUILÍBRIO NO MOVIMENTO
24 – NATURALIDADE E ESPONTANEIDADE
Quando alguém fica na ponta dos pés não pode ter posição firme.
Com as pernas arqueadas não é possível andar.
A fascinação por si próprio não gera muita clarividência.
Se alguém procurar justificar-se, não será a sua própria prova.
Se alguém for pretensioso, não ganhará a confiança.
Se alguém der importância ao próprio êxito, não será durável.
Para o Tao, tais coisas não são mais que “restos” e “comportamento supérfluo”,
que contradizem as leis naturais.
Eis por que o homem que segue o Tao as despreza.
25 – O MISTÉRIO DO TAO
Se alguém usar a força para ser senhor do mundo, eu não vejo como ele poderia ter êxito.
O mundo é um vaso sagrado que não se pode obter pela força.
Aqueles que a isso se dedicam acabarão malogrando.
Aqueles que tentam agarrá-lo acabarão por perdê-lo.
Está estabelecido que os seres conduzam ou sigam, respirem fortemente
ou suavemente, tornem-se fortes ou fracos, perseverem ou caiam.
Por isso o Sábio se livra do excesso, da extravagância e do desmesurável.
33 – O CAMINHO DO SÁBIO
34 – A GRANDEZA DO TAO
O grande Tao é tão onipenetrante que não se pode dizer onde está sua direita ou sua esquerda.
Todas as coisas dele dependem para seu crescimento, mas ele nada reclama delas.
Ele realiza seu trabalho, sem nada exigir para si mesmo.
Ele veste e alimenta sem exercer controle.
Como não tem desejos, é chamado de “o menor”.
Como todas as coisas o seguem, sem que ele exerça
controle sobre elas, é chamado de “o maior”.
É porque ele não ostenta sua grandeza que ela se torna uma realidade.
37 – O IDEAL DO GOVERNANTE
O Tao é sempre sem-ação, mas não há nada que ele deixe de fazer.
Se um príncipe a ele aderir, todos os seres se desenvolverão espontaneamente.
Depois desse desenvolvimento, quando eles quiserem agir,
ele os manterá em seu lugar com a unidade original do Sem-nome.
Então haverá finalmente Não-desejo.
E se não houver desejos, haverá tranqüilidade.
Então, finalmente, o mundo colocará a si mesmo em paz.
Segunda Parte
A VIRTUDE
38 – O SER E A APARÊNCIA
A Virtude superior não ostenta sua Virtude; e é por isso que ela a conserva.
A Virtude inferior não pode afastar-se da ostentação da Virtude, caso contrário a perderá.
A Virtude superior pratica o não-agir, e não serve a nenhum interesse particular.
A Virtude inferior age, e serve a fins particulares.
O humanismo superior age, mas não serve a nenhum interesse particular.
A justiça superior age, e serve a fins particulares.
A cortesia superior não somente age, mas, quando ela não obtém resposta,
tenta impor sua vontade brandindo os punhos.
Assim, se o Tao é perdido, aparece a Virtude.
A perda da Virtude faz aparecer o humanismo.
Se o humanismo é perdido a justiça aparece.
A perda da justiça acarreta o aparecimento da cortesia.
Quando consciência e honestidade diminuem, a cortesia é o início das querelas.
Quanto à presciência, ela é apenas uma aparência do Tao e o início da estupidez.
É por isso que o homem verdadeiro toma a generosidade como moradia e expulsa a mesquinhez.
Ele reside no Ser, e não na aparência.
Rejeita esta e escolhe aquele.
39 – A UNIDADE DO TAO
41 – OS PARADOXOS DO TAO
O mais suave vence o mais forte, como o cavaleiro que controla seu corcel.
O Imaterial pode penetrar onde não há abertura.
Por causa disso, eu conheço o poder do Não-agir.
Raros são aqueles que chegam ao ensinamento silencioso e ao Não-agir.
44 – O IDEAL DA FRAGILIDADE
A maior realização parece irrealização, e, todavia, seu efeito não tem fim.
A maior plenitude parece vazia, e, todavia, seu efeito é inesgotável.
O maior talento parece frustração.
A maior eloqüência parece gaguejo.
A atividade supera o frio.
A imobilidade supera o calor.
A calma e a quietude colocam as coisas em ordem no mundo.
46 – O NECESSÁRIO E O SUFICIENTE
Quando o Tao prevalece no mundo, os cavalos são usados para lavrar os campos.
Quando o Tao não prevalece, cavalos de guerra são criados nos campos lavrados.
Não há maior desastre do que não conhecer a frugalidade.
Não há maior crime do que a cobiça.
Quem se contenta com o necessário sempre terá o suficiente.
47 – SABEDORIA E ERUDIÇÃO
48 – ACUMULAR OU PERDER?
49 – A NATUREZA DO SÁBIO
O Sábio não tem idéia própria; ele é consciente das necessidades dos outros.
“Eu sou bom com os bons e também sou bom com os maus,
pois é assim que se chega à bondade.
Sou sincero com os que são sinceros e sincero também com os insinceros,
pois é assim que se chega à sinceridade.”
Quando se encontra no mundo, o Sábio evolui suave e calmamente,
e seu espírito se harmoniza com o mundo.
Ele trata cada um como se fosse seu próprio filho.
50 – O SÁBIO É INVULNERÁVEL
51 – TEMOR E TERROR
52 – FIDELIDADE À ORIGEM
54 – O MISTÉRIO DO ÓBVIO
56 – NA ESCOLA DA SABEDORIA
Nada pode se igualar à moderação, quando se trata de governar o povo e de servir o Céu.
Somente a moderação permite retornar rapidamente ao estado normal do homem.
Esse retorno rápido vem da acumulação da Virtude.
Se há acumulação da Virtude, então nada é impossível.
Se nada for impossível, então não haverá limites.
Aquele que não conhece limites é capaz de possuir o mundo.
Se ele alcançar ser a Mãe do mundo, perdurará muito tempo.
Isso se chama “estar profundamente enraizado e firmemente alicerçado”.
Isso é o Tao da longevidade e da visão eterna.
60 – O SEGREDO DO GOVERNANTE
61 – O SEGREDO DA CONQUISTA
Uma grande nação deve ser como um vale profundo, ao qual afluem os rios menores.
Ela é o lugar de união com o mundo, o Feminino no mundo.
É a tranqüilidade que permite ao Feminino dominar o Masculino.
A tranqüilidade é a posição inferior.
Portanto, um grande país deve colocar-se abaixo de um pequeno país, e triunfará sobre este.
Se um pequeno país colocar-se abaixo de um grande país, será o vencedor sobre este.
No primeiro caso, o grande país toma como desígnio a posição mais baixa;
no segundo caso, o pequeno país simplesmente permanece em sua posição.
Um grande país deseja apenas proteger e alimentar o povo.
O que um pequeno país deseja é dar liberdade e satisfação ao povo.
Assim, ambos realizam o que desejam.
Todavia, convém que o maior aceite a posição mais baixa.
67 – OS TRÊS TESOUROS
O mundo inteiro considera meu Tao grande e em comparação com nada mais.
É precisamente porque ele é tão grande que é sem comparação com nada.
Se ele fosse comparável a outras coisas, há muito tempo já teria se apequenado.
Possuo três tesouros que conservo preciosamente:
o primeiro é o amor;
o segundo é a frugalidade;
o terceiro é não presumir ser o primeiro.
Quando alguém tem o amor, pode ser corajoso.
Quando alguém tem a frugalidade, pode ser generoso.
Quando alguém não presume ser o primeiro, pode tornar-se líder.
Hoje, muitas pessoas rejeitam o amor, mas desejam a coragem.
Rejeitam a frugalidade, mas desejam a generosidade.
Rejeitam ficar atrás, mas querem ser líderes.
Isso é caminhar para a morte.
Quem pratica o amor é vitorioso na ofensiva e invulnerável na defensiva.
A prática do amor atrai a proteção e o socorro do Céu.
68 – A VIRTUDE DA NÃO-RIVALIDADE
72 – RESPEITAR O POVO
75 – O EXCESSO DE INTERFERÊNCIA
77 – A JUSTIÇA DO TAO
81 – A GRATUIDADE DO TAO
I. O Tao
O antigo teísmo chinês ensinara que no céu havia um deus de quem o mundo
simplesmente dependia, um deus que recompensava os bons e castigava os maus. Essa
Entidade possuía consciência humana, e permitia os santos eleitos ao seu redor, como
o rei Wen; podia encolerizar-se quando os homens eram maus, mas, no fim, sempre os
perdoava de novo e deles se compadecia, quando seu sacerdote e representante, o
filho do céu, se purificava de maneira correta e se acercava dele com sacrifícios.
Além desse pai no céu – acompanhado pela mãe-terra, cuja presença jamais afetou
basicamente o pensamento monoteísta –, havia ainda uma série de espíritos da
natureza e dos ancestrais. Apesar de dependentes do céu, eles tinham, não obstante,
as suas áreas específicas a cuidar, de modo semelhante aos funcionários subordinados
ao rei.
Essa filosofia religiosa havia sido esmagada pelo impacto de acontecimentos terríveis, que
não revelavam, em parte alguma, a existência de um deus do céu que interviesse em favor dos
pobres seres humanos torturados e, apesar de tudo, inocentes. Com Lao-Tse, a eliminação definitiva
do antropomorfismo religioso se iniciou. O céu e a Terra não têm os sentimentos humanos de amor.
Para eles todos os seres são como meros cães de sacrifício feitos de palha. Nas festas de sacrifício,
antes de montar os cães de palha, estes são colocados num escrínio e envoltos em bordados. O
sacerdote dos mortos jejua e se purifica antes de sacrificá-los. Mas, depois de montados, eles são
jogados fora; de modo que ao passar as pessoas pisam sobre as suas cabeças e costas e os coletores
de gravetos os recolhem e queimam. O mesmo acontece com relação à natureza de todos os seres
vivos: enquanto o tempo lhes pertence, encontram a mesa da vida naturalmente posta para eles e
tudo está preparado para seu uso. Mas, passada a hora, são jogados fora e pisoteados, e o fluxo da
vida passa por eles.
No entanto, Lao-Tse está longe de considerar o curso da natureza como algo acidental ou
desordenado. Dessa forma ele está livre de todo o ceticismo e pessimismo. Ele não luta apenas
contra a religião popular, contudo a substitui por algo mais elevado e que leva até mais longe.
Baseado na velha sabedoria do Livro das Mutações, Lao-Tse reconhecera que a essência do mundo
não é uma condição estaticamente mecânica. O mundo está em constante alternância e
transformação. Tudo o que existe está, portanto, condenado a morrer, porque, embora sendo
verdade que nascimento e morte são opostos, um e outro estão, não obstante, forçosamente ligados.
Mas, ainda que tudo o que existe tenha de perecer, não há nisso nenhum motivo para dizer que
“tudo é vão”, porque o próprio Livro das Mutações mostra igualmente que todas as transformações
se realizam segundo leis estabelecidas. O Livro das Mutações contém a concepção de que a
totalidade do mundo fenomenal está baseada no antagonismo polar das energias; o criativo e o
receptivo, a unidade e a duplicidade, a luz e a sombra, o positivo e o negativo, o masculino e o
feminino, são fenômenos das energias polarizadas que produzem toda alternância e transformação.
Não se deve, porém, imaginar essas energias como princípios primordiais estáticos. O conceito do
Livro das Mutações está longe de qualquer dualismo cósmico. Essas energias encontram-se, ao
contrário, em contínua transformação. A unidade se divide e se converte em duplicidade, a
duplicidade se une e torna a ser unidade. O criativo e o receptivo se unem e geram o mundo. Assim,
Lao-Tse também diz que o Um gera o Dois, o Dois gera o Três e este gera todas as coisas. No Livro
das Mutações isso é representado pela união da linha indivisa do criativo com a linha dividida do
receptivo que se combinam na formação dos oito signos primordiais de trigramas em três níveis,
combinações estas de que é construído todo o mundo das constelações cronológicas possíveis.
Lao-Tse, no entanto, também deduziu a partir do Livro das Mutações que essa mudança de
todos os fenômenos não é uma mera coincidência. Esse livro fala de três mudanças:
1. Uma transformação cíclica, como, por exemplo, a representada pela mudança das estações
do ano. Um estado passa a outro, mas, no curso dessa mudança, retorna ao estado inicial. Assim, ao
inverno sucedem-se a primavera, o verão e o outono, mas, depois deste, vem outra vez o inverno e,
dessa forma, fecha-se o ciclo de mutação. Essas transformações cósmicas são o nascer e o pôr-do-
sol, e durante os dias e os anos, as fases da lua minguante e crescente, as estações da primavera e do
outono, o nascimento e a morte.
2. O desenvolvimento progressivo. Um estado passa progressivamente a outro, mas a linha de
desenvolvimento não retorna a si mesma; o progresso e o desenvolvimento prosseguem sempre com
o tempo. Assim, os dias de um homem, embora incorporados ao grande ciclo das estações do ano,
não são iguais; cada um contém a soma das vivências antecedentes acrescidas da vivência de cada
novo dia.
3. A lei imutável que atua nessas mudanças. Essa lei determina que todos os movimentos se
manifestem de maneira definida. Ao observar os fenômenos entre o céu e a Terra, o homem sente o
esmagador efeito de sua imponente grandeza, de seu peso, de sua desconcertante variedade e
multiplicidade. Essa lei expressa que o princípio criador é a energia ativa que atua no tempo.
Quando entra em ação, essa energia o faz inicialmente de uma maneira muito suave e imperceptível,
de modo que não se perde a visão geral. Só a partir do suave e do diminuto se desenvolve o denso e
o imponente. O receptivo é o princípio da mobilidade espacial. Quando ele reage aos estímulos do
criativo, cada mudança espacial é inteiramente simples e paulatina, de modo que é reconhecível,
sem haver confusão. Essa mudança singela e gradual só cresce até a desconcertante multiplicidade
no curso posterior dos fatos. Por isso é preciso reconhecer as sementes em tudo. Aqui é que se deve
intervir, quando se quer agir, a fim de que, do mesmo modo que a natureza, os efeitos possam
crescer do tênue e simples até o denso e variado. Pois, em todas essas leis, não há necessidades
impostas de fora, mas uma vitalidade orgânica imanente que atua de maneira completamente
independente, numa liberdade que corresponde à própria lei da enteléquia.
O que está no fim de tudo, no âmago de todas essas mudanças, é a grande polaridade (T’ai
Gi), a unidade que transcende toda dualidade, todos os fatos e mesmo toda a existência. Essas
mudanças se processam por meio de um caminho fixo e pleno de sentido (Tao), no caminho do céu
(T’ien Tao), ao qual corresponde, na Terra, o caminho do homem (Jen Tao). Pois o princípio mais
importante do Livro das Mutações é o de que há uma relação universal e harmônica entre o
macrocosmo e o microcosmo, entre as imagens que o céu envia para baixo e os pensamentos
culturais que os santos formam, quando as imitam. Vê-se ainda, na concepção do caminho do céu e
do caminho do homem, contida no Livro das Mutações, o reflexo do fundamento astronômico-
astrológico peculiar à religião chinesa. Essas idéias, mais ampliadas, são encontradas na filosofia de
Confúcio. Mas Lao-Tse também baseia nelas a sua filosofia. Apesar de ter deixado apenas alguns
aforismos, Lao-Tse também tinha uma filosofia; os aforismos contêm um sistema rigorosamente
fechado, que se revela a quem seja capaz de ter uma visão geral do seu conteúdo.
Lao-Tse procura, antes de tudo, um princípio básico de sua concepção do mundo. O
confucionismo havia se detido na concepção de céu. O céu era uma entidade imaginada de algum
modo pessoal. Era, na verdade, concebido de maneira mais elevada e pura do que o deus da religião
popular, Chang Ti, que, em parte, tinha traços fortemente antropomórficos; no entanto, em
momentos de grande tensão, Confúcio falava sempre de uma forma em que se podia perceber
claramente suas relações religiosas com o céu que “o conhece”, que lhe confiou a transmissão da
cultura e ao qual se podia orar, quando se passava por crises íntimas. Para Lao-Tse, o céu não era
ainda o mais elevado e derradeiro grau. O grau mais elevado e definitivo estava além da
personalidade e até de qualquer ser de algum modo perceptível ou definível. Não era nada que
estivesse ao lado ou acima das outras coisas. Mas não era também um nada, mas algo que se
subtraía às formas do pensamento humano.
Para uma coisa assim não há, naturalmente, nome algum, já que todos os nomes só nascem
das vivências; essa coisa é, no entanto, o que primeiro possibilita as vivências. Denominou-a, por
força da necessidade, Tao, só para poder falar dela, pois não tinha uma expressão melhor e chamou-
a igualmente de grande. Desse modo, aceitou uma expressão existente e a transformou. O Tao do
céu e o Tao dos homens sempre foram conhecidos, mas não o Tao absoluto. Tao significa caminho.
Mas, no sentido de Lao-Tse não se pode, sem mais nem menos, traduzi-lo por caminho ou senda.
Há duas palavras chinesas para caminho. Uma é Lu. Resulta da combinação dos símbolos para “pé”
e “cada”. É o que cada pé pisa, o caminho que resulta justamente do fato de ser percorrido.
Transposto o seu sentido, essa expressão poderia ser usada para o conceito moderno de lei natural,
que é, do mesmo modo, aceita como existente, pois os processos ocorrem no sentido dessa lei. A
outra palavra para caminho é Tao, que se escreve combinando os símbolos para “cabeça” e “andar”.
Daí resulta um significado substancialmente diferente do da palavra Lu. O de um caminho que
conduz a um objetivo, o de direção, de caminho indicado; tem, ao mesmo tempo, o sentido de
“falar” e “guiar”. Parece que esse símbolo foi usado inicialmente para as trajetórias astronômicas
dos corpos celestes. O Equador, desde os tempos antigos, é chamado “caminho vermelho” e a
elíptica de “caminho amarelo”. Esses caminhos não são, no entanto, acidentais: têm um significado,
um sentido. É a liberdade absoluta, que se orienta somente por si mesma, ao passo que todas as
outras coisas recebem o seu sentido de algo externo: o homem, da Terra, a Terra, do céu, e o céu, do
Tao.
Falando do Tao, Lao-Tse preocupa-se em afastar tudo o que possa lembrar algum tipo de
existência. O Tao está num nível totalmente distinto de tudo quanto pertence ao mundo dos
fenômenos. É anterior ao céu e à Terra; não é possível dizer de onde vem; é anterior ao próprio
Deus. Ele se baseia em si mesmo, é imutável e está em eterna circulação. É o princípio do céu e da
Terra, isto é, da existência espacial e temporal. É a origem de todas as criaturas; outras vezes é
designado também como o ancestral de todos os entes. Há um antigo versículo que o compara ao
espírito do vale vazio, ao misterioso feminino que flui ininterruptamente semelhante a uma queda-
d’água e cuja porta misteriosa é a raiz do céu e da Terra. É bem possível que essa concepção se
baseie numa velha fórmula mágica destinada a conjurar o espírito do pictograma K’an. Este é um
dos oito pictogramas arcaicos do Livro das Mutações. Significa a lua e a água celeste que flui entre
as margens escarpadas. É o escuro misterioso, e o abissal, a sabedoria mais elevada e mutável, o
inesgotável. Originariamente, foi imaginado como feminino. Somente por volta do segundo milênio
começou a ser designado como masculino. Encontra-se no norte ou no oeste, sempre na metade
escura do ciclo solar. O seu signo no céu estrelado é o guerreiro escuro, misteriosa união de
serpente e tartaruga. Não há dúvida de que, em tempos antigos, a magia negra estava ligada a esse
signo. Liä Dsï afirma que o versículo citado deriva dos escritos de Huang Ti. É bem possível que
também Lao-Tse o tenha citado, visto que muita coisa no Tao-te King é citação. Para Lao-Tse havia,
nesse versículo, certos elementos concordantes com o que ele entendia como Tao, de modo que o
usou como metáfora. Também noutras passagens, ele compara o Tao com a água, que é tão potente
porque permanece sempre embaixo e em lugares que, em geral, são odiados; ou encontrou uma
semelhança do Tao com o vale, o mar, os rios profundos, porque todos se mantêm embaixo e são
capazes de absorver todas as águas que para eles afluem, sem ficarem cheios ou transbordarem.
Pois o Tao também é vazio e nunca se enche.
Embora se negue existência ao Tao, ele, no entanto, também não é simplesmente nada.
Porque do nada, não pode surgir nada. É verdade que o Tao não é temporal nem espacial. Olhando-
o, não o vemos, escutando, não o ouvimos, e se quisermos tocá-lo, não o sentimos. Contudo, nesse
não ser espacial nem temporal está depositada, de algum modo, a variedade. Mesmo não o vendo,
ouvindo e sentindo, há algo nele que corresponde a essa variedade dos sentidos: figuras, imagens,
embora informes, imateriais. No Tao não se pode distinguir a cabeça nem as costas. Muitas vezes é
como se estivesse aí para logo se retirar para o não-existente. Ele se encontra então num nível que
está além do ser e do não-ser. Não é nada real, porque se o fosse, seria uma coisa ao lado de outras
coisas. Mas também não é tão irreal que as coisas reais não possam resultar dele.
Portanto, não é possível depoimento direto algum sobre o Tao. Todo depoimento direto será
falso, porque ele está além do predicável. Daí a razão pela qual Lao-Tse se esforça constantemente
por restringir os seus depoimentos. Ele fala por metáforas. Diz “parece”, “pode ser chamado”, “é
como se”, “é mais ou menos como”, ... Enfim, usa apenas designações vagas e restritas. Porque, na
sua totalidade, o Tao não pode ser reconhecido e entendido. Todos os depoimentos são meras
referências a uma vivência espontânea, que não é possível descrever em palavras.
Justamente por esse motivo, o Tao também não é um conceito. Por ser espontânea, a vivência
do Tao ultrapassa todos os conceitos. Tampouco é matéria de estudo. Quem o conhece não fala dele
e quem fala dele não o conhece. Quanto mais se quer circunscrevê-lo e defini-lo, tanto mais distante
se está dele. Por isso o caminho para o Tao é diretamente oposto ao do aprendizado. Por meio deste
acumulam-se experiências e obtém-se progressiva abundância, na medida em que se vai mais longe;
ao passo que, se nos voltarmos para o Tao, as experiências disponíveis vão se reduzindo cada vez
mais até que se chega ao não-fazer. Cultivando o não-fazer, nada fica sem ser feito; tudo se faz por
si mesmo.
No entanto, nessas circunstâncias, Lao -Tse sabia muito bem que o seu Tao não era nenhuma
conquista científica. Homens de natureza elevada, ao ouvirem falar dele, atuam segundo suas leis.
Os de natureza menos elevada ficam na dúvida; ora têm o Tao, ora ele lhes escapa de novo. Os
homens comuns riem alto ao ouvirem falar dele e, quando não riem, é porque não se tratava ainda
do verdadeiro Tao.
Se perguntarmos agora o que Lao-Tse queria dar a entender por Tao, teremos de recorrer a
vivências místicas para chegarmos à compreensão. Ele é semelhante a uma concepção como a que
encontramos também no Budismo Mahayana. Através do recolhimento e da meditação, chega-se ao
estado de samadhi, no qual a psique ultrapassa o consciente e submerge nas esferas da
superconsciência. Quando são genuínas, essas vivências levam, de fato, para profundezas do ser que
ultrapassam a totalidade do mundo fenomênico. A forma exterior dessas ocorrências é conhecida
por determinados processos da Parapsicologia e tornou-se objeto de pesquisas científicas. Mas a
vivência do próprio Tao jamais será objeto da pesquisa científica. Trata-se, no caso, de um
arquifenômeno, no mais elevado sentido, e que só podemos admirar respeitosamente, mas não
definir ou sondar. Com a experiência do Tao se passa o mesmo que com todas as experiências
imediatas. Se, por exemplo, tenho a sensação do amarelo ou do azul, os processos pelos quais essa
sensação surge nos olhos talvez possam ser pesquisados - dando-se uma boa margem a essa
hipótese -, mas com isso nada se dirá ainda sobre a sensação. E jamais será possível transmitir
qualquer noção de cor a quem não tenha essa vivência. Com o Tao dá-se exatamente o mesmo. Toda
a Parapsicologia não pode nos proporcionar essa vivência; para compreendê-la é preciso ter passado
por ela. Mas, para quem tem uma vivência correspondente, as palavras de Lao-Tse são
imediatamente compreensíveis e adequadas para fazê-lo progredir em seu caminho.
Lao-Tse atribui ao Tao importância não apenas psicológica, mas cósmica. E
nisso está certo, visto que o cosmo não é algo objetivo que existe de forma
independente da vivência. Cada organismo tem o seu ambiente de acordo com as
ferramentas criadoras que lhe são disponíveis para isso. Ao conceber o Tao de forma
que ele não possa ser compreendido de algum modo e em lugar algum, Lao-Tse
oferece, assim, as condições para cada vivência e também para cada cosmo. Toda
vivência baseia-se, pois, na dotação de sentido, e o Tao é justamente o sentido que
confere significado a tudo quanto é e, desse modo, chama tudo quanto é para a
existência. O Tao cria tudo o que é criado, mas como cria até mesmo o criativo, ele
mesmo nunca entra no mundo fenomenal. Lao-Tse não faz suas afirmações sobre o
Tao simplesmente como afirmações apodícticas. É verdade que, conforme a natureza
do assunto, não pode oferecer provas sobre ele, mas indica os caminhos pelos quais
se pode chegar à vivência do Tao.
Vivia outrora em Wuling, nos tempos de Tai Yüan, um pescador. Havia ali um rio.
Navegando-o na direção da nascente, o pescador sabia se havia ido muito longe ou não, quando
deparou com um bosque todo iluminado por flores de pessegueiro, que ladeavam as margens do rio,
numa extensão de umas boas centenas de passos. Não havia outras árvores; só um belo capim
cheiroso e fresco, onde se amontoavam as pétalas das flores dos pessegueiros. O pescador se
admirou muito disso e foi ainda mais longe, porque desejava saber onde era o fim do bosque. Na
orla deste, porém, havia uma montanha de onde brotava um rio; e havia também uma estreita
passagem para o interior da montanha, que parecia envolta em luz.
Penetrou nela com dificuldade, mas, poucos passos adiante, a passagem se tornou ampla e
luminosa e uma paisagem se estendia ao longe. Cabanas e casas muito limpas levantavam-se no
meio de boas glebas de terra entre belos espelhos de água rasa. Caminhos se entrecruzavam e havia
todos os tipos de bambus e muitas amoreiras. De uma aldeia para outra os cães e as galinhas
dialogavam. Homens e mulheres semeavam os campos, como nós fazemos; crianças e anciões
viviam satisfeitos e felizes em seus afazeres. Admiraram-se ao ver o pescador e o interrogaram.
Depois que ele falou, convidaram-no a permanecer com eles e ofereceram-lhe vinho e prepararam
galinhas para ele comer. Na aldeia, todos ouviram falar disso e vieram para fazer perguntas, e eles
próprios contaram que outrora, nos tempos agitados de Tsin Chïn Huang, seus pais haviam
emigrado com mulheres e filhos para lá e que, desde então, ninguém mais havia saído e, por isso,
nada sabiam a respeito dos homens de fora. Perguntaram quem era o rei, mas não conheciam a
dinastia dos Han, e menos ainda a dos We e dos Tsin. O pescador deu-lhes notícias de tudo quanto
sabia e eles eram todo ouvidos. Desse modo, passaram-se vários dias, o pescador sendo tratado
como convidado e hóspede e alimentado com vinho e comida. Depois, na hora da
despedida, eles acharam que não valeria a pena contar algo do que vira às pessoas de
fora...
O pescador saiu, tomou o barco para voltar para casa; porém, antes, gravou bem na memória
todos os pontos de referência à sua volta. Na capital do distrito, contou tudo honestamente ao
mandarim e este mandou mensageiros à procura do que ele havia descrito. Estes, no entanto, se
perderam e não acharam o caminho...
Conta-se que Liu Tsï Ki, sábio originário do sul, cheio de ânimo, reiniciou a busca. Antes,
porém, de ver o sucesso de sua jornada, adoeceu e morreu. Desde então ninguém mais tem
perguntado pelo caminho.