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Um Café para Sócrates

De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

Marc Sautet
http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm

Café Filosófico - Marc Sautet

Primeira parte
Quem somos?

Prólogo
Domingo, praça da Bastilha
A filosofia no café
O consultório
Em consulta
Sessões coletivas
Em seminário sobre a autenticidade
Em viagem

Segunda parte
Onde estamos?

Em viagem
Derrota do pensamento
O Iluminismo
A Revolução heliocêntrica
A revolução mercantil
Galileu
Copérnico
Petty & Smith
Marx
A Revolução operária
Terceira parte
Para onde vamos?

Totalitarismo
Vitória da lei do lucro
O nascimento do demos
O nascimento do logos
A lucidez de Sófocles
O cansaço de Sócrates
A vingança de Platão
A traição de Aristóteles
Os instrumentos animados
A fatalidade
Repetição
À guisa da conclusão
___________________________________

Texto publicado “doc” no seguinte endereço:


http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm
Organizado em “pdf” por
filosofia@seed.pr.gov.br
Prof. Francisco Bornholdt
04 de Abril de 2004
______________________________
www.cifra.pro.br
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

Prólogo

Domingo, 13 de dezembro de 1992, praça da Bastilha, por volta de 11 horas. Os cafés vão-se
enchendo aos poucos. Num deles, porém, umas trinta pessoas se instalaram ao redor de mesas
dispostas num retângulo. Consomem tranqüilamente o que lhes foi servido, até que alguém propõe:
“A violência é específica do homem ou se encontra em toda a natureza?” É um belo tema. É dele que
se falará durante duas horas. Pois o desafio é de porte: trata-se, nada mais, nada menos, de saber se
o homem pode escapar à fatalidade da violência, que obviamente caracteriza as relações que ele
mantém com seu semelhante. Mas é preciso também chegar a um acordo quanto ao campo da
discussão: ao longo do trajeto, perceberemos que ele não tem limites, pois o que há por considerar é
não apenas tudo o que vive na face da Terra, a fauna e a flora, ou tudo o que nela acontece, todos os
eventos naturais, mas o mundo inteiro, ou seja, o Universo, o cosmo, em toda a sua extensão e em
toda a sua história…

E é assim que transcorrerá a manhã no Café des Phares, numa troca incessante de
argumentos mais ou menos sólidos, escorados em exemplos mais ou menos pertinentes, destinados a
fundamentar tomadas de posição mais ou menos apressadas. Às 13 horas diz-se a última palavra. E
se marca um encontro para a semana seguinte.

Pois é assim que se tem praticado a filosofia, já se vão mais de dois anos, na praça da
Bastilha. Alguns expressarão certa dúvida quanto à validade filosófica de um debate de bar. Outros
sentirão tão somente desprezo por esse pequeno prazer que oferecem a si mesmos alguns parisienses
carentes de uma tribuna. E alguns, quem sabe, acharão divertida a iniciativa e quererão saber mais
sobre ela.

Este livro tem por objetivo responder a estes e àqueles. É possível, com efeito, que esses
encontros não tenham nenhuma importância, que constituam, quando muito, apenas um simples
divertimento dominical de solitários desocupados. Mas também é possível que sejam um sinal – o
sinal de que a filosofia, a despeito dos que cavaram sua sepultura, tem ainda um belo futuro pela
frente e de que o pensamento, a despeito dos pessimistas, está longe de ter sido derrotado. Havemos
de convir que isso merece uma reflexão.
Pois é esse o âmago da questão. Empurrada há mais de um século para fora do campo do
conhecimento pelos avanços da ciência, a filosofia, ainda por cima, foi recentemente suplantada pelas
ciências humanas no campo da ação. Ridicularizada em sua pretensão de deter o código de acesso à
verdade, por um lado, com as façanhas da física quântica e da bioquímica, ela teve ainda, por outro,
que ceder lugar à sociologia, à economia política e à psicologia quando se trata de penetrar no cerne
do mundo dos seres humanos para vencer os males reais. Ela resistiu, mas de nada adiantou. Nem a
França nem a Alemanha, as duas nações em que o espírito das Luzes se manifestara de maneira mais
intensa, puderam deter sua queda: nem a escola de Frankfurt nem Camus. Nem tampouco Sartre,
cujo engajamento político tardio acabou com a escassa credibilidade que ela ainda conservava na
cidade; após sua morte, só restou a seus herdeiros a alternativa entre a marginalidade esplêndida e o
oportunismo mundano: de um lado, Deleuze, Foucault e outros como Baudrillard; de outro, os “novos
filósofos”. Sem luz e sem calor, a filosofia é hoje tida por uma estrela morta, uma divindade caduca,
padecendo o destino que outrora infligiu à religião: parece chegado o momento de deixar essa
defunta entregue ao culto devoto da corte de seus servidores.

Pode ser que a filosofia tenha ficado estéril. Mas estará por isso morta? E será que essa esterilidade é
fatal? Fala-se muito, ultimamente, em ética e moral, deplora-se a corrupção dos políticos e dos
homens de negócios, fica-se assustado com a extensão da miséria excludente, do tráfico de drogas,
da selvageria das guerras interétnicas e do fanatismo religioso, invoca-se a solidariedade, o dever de
intervenção, fica-se inquieto com os trabalhos laboratoriais no campo das armas químicas e no da
genética… Acima de tudo, tenta-se não perder a cabeça, conservar o sangue-frio. E, para consegui-lo,
o que é que se faz? Acaso se faz astrofísica, microbiologia? Antropologia, sociologia, psicopatologia?
Economia política? Ou será que fazemos filosofia? Quando procuramos descobrir o que não funciona
bem na Cidade, o que destrói a democracia, o que compromete a justiça, a liberdade, a igualdade, em
suma, as relações entre os cidadãos, aquilo que impele os homens a se odiarem e a se matarem uns
aos outros, quando estendemos esse exame ao conjunto das nações, a ponto de considerar o destino
da humanidade inteira, que é que estamos fazendo? Na verdade, teremos algum dia tido tantas
razões para filosofar?

As páginas que se seguem tentam mostrar que esse uso espontâneo da filosofia em público
não se deve ao acaso. Elas propõem que recuemos um pouco da crise atual para tentar identificar sua
origem. Melhor ainda, convidam a confrontar a crise do mundo atual com a da cidade grega, onde
nasceu a filosofia. Pois a filosofia nasceu há dois mil e quinhentos anos, numa situação de crise
espantosamente semelhante à que conhecemos hoje: a crise da democracia ateniense. Por mais
incrível que pareça, encontramo-nos, em larga medida, num impasse análogo…
Para corroborar esse fato, começarei por descrever uma prática da filosofia que atesta seu
viço, seu vigor, sim, sua juventude! Refiro-me, é claro, ao debate do Café des Phares. Atualmente, o
salão se enche todos os domingos, com uns cento e cinqüenta participantes ou até mais. As más
línguas falam em modismo, em esnobismo tipicamente parisiense; para condenar a experiência,
alegam a precariedade das condições de exercício da reflexão num local como esse. É verdade que o
lugar é barulhento: levando-se em conta sua localização e a potência de sua cafeteira elétrica, esse
barzinho não parece prestar-se particularmente à meditação metafísica. Aliás, para que os oradores
fossem ouvidos por todos, foi preciso arranjar microfones e preparar o salão acusticamente, assim
como o terraço. Mas, de onde veio a idéia de que o exercício da filosofia exige o silêncio e a solidão?

Não digo que esse exercício requeira o alvoroço e a multidão. Apenas afirmo que uma coisa
não impede a outra e que, num barzinho, mesmo com cento e cinqüenta pessoas, pode-se entabular
uma reflexão que merece ser chamada de “filosófica”. Entabular não significa levar a termo.
Significa… entabular. Com a liberdade posterior, para quem quiser aprofundar o assunto, de
mergulhar nos livros evocados de improviso, de iniciar um diálogo a sós com um autor citado de
passagem, na mais completa calma.

Aliás, não vá ninguém duvidar disso, sou o primeiro a ter essa convicção. A filosofia também
requer silêncio. Implica concentração, empenho, rigor, serenidade, intimidade. Antes mesmo que os
debates no café ganhassem forma, eu havia aberto um consultório onde começara a receber
“clientes” que vinham se consultar. Havia-me convencido de que muitas pessoas estavam desejosas
de fazer uma pausa – uma pausa em sua vida trepidante de todos os dias, uma pausa na vida
profissional, uma pausa na vida afetiva, uma pausa em seus hábitos de pensar – e de que faltava um
lugar adequado para isso.

Em grande parte, é claro, os consultórios de psicoterapia desempenham esse papel. Mas não é
certo que essa função lhes caiba. Se o mal-estar do paciente tem origem em seu psiquismo, nada
mais normal do que consultar um terapeuta. Mas, e quando não é esse o caso? Ainda quando são
seus parentes, seu meio familiar que estão em questão, vá lá. Mas, e quando não é o sujeito que está
em causa e sim a cidade, ou a nação, ou o Estado, ou os Estados ou nações, unidos ou desunidos, ou
a espécie humana em seu conjunto? Pergunto: qual é a legitimidade da intervenção do terapeuta
quando o mal-estar da pessoa que vai consultá-lo provém de uma situação geral defeituosa? Se
alguém deve intervir, não será, antes… o filósofo?
Até aqui, isso não era feito. Os psicoterapeutas, portanto, tinham o campo livre. O que é uma
das razões de seu sucesso. Resta saber se é uma boa razão. Tirando proveito no inexorável
descrédito dos padres e pastores, os médicos da psique descobrem-se agora numa concorrência
selvagem com os astrólogos, numerologistas, cartomantes, videntes, marabus, iogues e outros gurus
da new age. Sem ser necessariamente mais eficaz que todas as variedades de “ciências ocultas” e
práticas mágicas, a psicoterapia ao menos pode exibir a garantia da seriedade de seus fundamentos
teóricos. Mas de que eficiência pode ela se adornar para cuidar do que não é de sua alçada? Pensando
bem, os terapeutas ultrapassam em muito seu campo de competência quando avançam pelo terreno
da aventura humana compreendida em sua totalidade, em sua história, seu desenvolvimento,
vicissitudes, regressões, promessas, esperanças desfeitas, perspectivas e o impacto desse conjunto
de dados na pessoa que vai procurá-los.

Vista por esse prisma, a legitimidade das ciências ocultas não é inferior à de qualquer espécie
de terapia – muito pelo contrário, uma vez que elas se apresentam como uma resposta à questão do
destino. “Conhecerei a felicidade?” Ou: “Encontrarei minha alma gêmea? Ficarei rico(a)? Conservarei
ou recobrarei a saúde?” – eis o tema dessas consultas. Sabemos que inúmeros políticos – e não dos
mais insignificantes – consultam seus astrólogos antes de uma eleição ou de uma data decisiva;
quanto ao cidadão comum, ele teme sofrer um acidente ou morrer e quer saber mais a respeito.
Também há quem deseje mal a outrem, quem queira livrar-se de seus inimigos, e existem praticantes
que favorecem tais anseios.

E daí? Para além das formulações ingênuas da “demanda” e aquém das conseqüências
macabras que possam ter, o que impele as pessoas a buscar os praticantes das ciências ocultas é o
lugar de cada indivíduo no todo: a sorte, o amor, o poder, tudo o que qualquer um pode esperar da
vida encontra-se no centro do ato que pratica. Em suma, o que está no cerne das consultas é a
questão do destino. Com a parcela de acaso e a parcela de determinação necessária que ele
comporta. Pois o astrólogo não imputa a seu cliente a completa responsabilidade pelo que lhe sucede,
mas o adverte sobre as correntes favoráveis ou desfavoráveis a seus atos e lhe sugere que adapte
suas escolhas às “configurações” vigentes dos astros. Logo de saída, a pessoa que vai consultar-se é
re-situada num todo que a ultrapassa em larga medida, o que, a priori, é pelo menos tão justo quanto
polarizar todo o destino do indivíduo em seu passado pessoal e em sua dificuldade de assumi-lo.

Confiantes nessa aptidão para desculpabilizar as pessoas que vão consultá-los, os praticantes
das ciências ocultas dividem entre si benefícios cuja fonte é inesgotável, uma vez que ela se situa no
desarvoramento do indivíduo frente a seu destino. Assim, muitos de seus clientes habituais esquivam-
se da “culpa” que os espera no consultório do psicoterapeuta e, depois, no divã do analista: pensando
bem, eles ainda preferem correr o risco se ser tapeados por uma “ciência” assim, entre aspas, que
pelo menos leva em conta a realidade do mundo externo, a natureza coletiva da história humana e a
escassa margem de manobra de cada indivíduo para mudar o rumo das coisas. Rejeitando
confusamente a idéia de um sujeito concebido como centro do Universo, muitos retornam à velha
sabedoria popular, que reconhece que cada ser humano é muito insignificante.

Ainda mais que os filósofos se calam. Se ao menos fizessem seu trabalho! Se, em vez de
repetirem incansavelmente o que aprenderam com seus mestres, os que se encarregam do ensino da
filosofia entrassem na roda e formulassem as perguntas que importam: “É verdade que cada ser
humano é o centro do mundo? Será possível, cada um por si, acabar com aquilo que nos atormenta a
todos? Será que a solução de todos os nossos males, ou pelo menos de todas as nossas fraquezas,
encontra-se num domínio completo de nossas frustrações infantis?” Se essas perguntas fossem
formuladas por aqueles cujo ofício consiste em interrogar os que afirmam saber por que as coisas
acontecem da maneira que acontecem, então, sem dúvida, muitos dos que confiam seu destino aos
astrólogos e gurus pensariam duas vezes.

Do mesmo modo, se os filósofos profissionais, cujo número é considerável, perguntassem aos


astrólogos e gurus, com toda a simplicidade necessária, de onde eles extraem sua ciência, o que
entendem por “destino” e de que natureza são as forças a que dedicam seus talentos, talvez fosse
possível separar as coisas, distinguir o que, na arte dessas pessoas, deve ser atribuído a uma
habilidade real e o que não passa de subterfúgio, e discernir o que, nas motivações de seus clientes,
decorre do desejo de fugir das responsabilidades, pela invocação da fatalidade, e do desejo de
assumi-las, pelo aprofundamento da personalidade.

Pois bem, falemos abertamente: a vocação do filósofo não é calar-se. Não é se retraindo que
ele desempenha seu papel. É na rua, na cidade, misturando-se à vida de todo o mundo,
perambulando pela praça do mercado, em meio à multidão dos negociantes e dos que oferecem
entretenimento. Fazendo perguntas a uns e a outros. Questionando. Não porque ele mesmo saiba,
porque disponha de um saber superior, mas, ao contrário, por invejar aqueles que sabem ou alegam
saber. Ele quer saber, mas não quer ser tapeado. E, se há uma coisa a ser ensinada, é esta: é preciso
empenho, método, atenção, concentração e calma, mas é também preciso o inverso – o confronto
com o real, o convívio na multidão, o enfrentamento daqueles que pretendem iludir os outros.
Meditação e luta. Silêncio e alarido. A solidão e a ágora.
Alguns, é verdade, ergueram a voz. Mas, para dizer o quê? Que a razão havia acabado, que a
sorte estava lançada, que a era das Luzes ia chegando ao fim. Numa segunda parte, submeterei essa
afirmação a um exame atento. Por mais corajoso que seja, esse diagnóstico repousa, a meu ver,
numa ilusão grosseira. A exemplo dos historiadores das idéias, os “pessimistas” consideram que o
espírito humano dispõe de grande autonomia, que ele se manifesta livremente na história, por si só, e
que no Ocidente, em particular, seus progressos determinaram o curso dos acontecimentos. Temo
que, nesse aspecto, eles sejam vítimas de uma ilusão de óptica (no sentido estrito). Tentarei mostrar
que esse ponto de vista opõe-se diretamente à realidade concreta e, mais ainda, ao próprio espírito
do Iluminismo. Não teria havido vitória da razão sobre a superstição se Copérnico não houvesse
mostrado que o centro do mundo não era a Terra, mas o Sol. Ora, não teria havido revolução
cosmológica sem a reviravolta introduzida nas relações sociais pela economia de mercado. O motor da
“modernidade” não foi a Razão, mas a generalização da troca de mercadorias.

Nesse processo, darei minha contribuição para a pergunta: “De onde viemos?” Restar-me-á
então responder a uma outra pergunta, aquela que nos importa acima de tudo: “Para onde vamos?”
Esse será o tema da terceira parte. O fato de os pessimistas se enganarem não prova que os
otimistas tenham razão. Descrever o futuro de nossa civilização como o retorno à barbárie talvez seja
um contra-senso. Mas não justifica em nada o império exclusivo das leis de mercado sobre o destino
da humanidade. Com efeito, é possível que esse império já esteja caduco. A todos os que afirmam
que não temos alternativa, que todas as outras possibilidades fracassaram, que temos de nos resignar
a esse regime, sob pena de recairmos nos horrores do totalitarismo, que só nos resta apostar na
inventividade provocada pela pressão da concorrência, que cabe aos indivíduos tomar a iniciativa,
ousar, inovar para sair do marasmo, que o futuro passa pela computação das informações em escala
planetária, que as mercadorias mais preciosas, hoje, são imateriais, que o mercado mundial abriga
imensas potencialidades de desenvolvimento e que certamente não é repisando o passado que nos
posicionaremos como convém para o futuro, a todos esses proponho que suspendam seu julgamento
por um instante. É que, sem saber, eles se acham na posição de alguns interlocutores de Sócrates,
vinte e cinco séculos atrás. Sua incapacidade de explicar as causas do mal que corrói a Cidade
impele-os a uma fuga voluntarista para o futuro. Ora, a analogia entre esse mal e o que precipitou a
ruína de Atenas é flagrante. A menos que se queira a qualquer preço precipitar a catástrofe, acaso
não vale a pena deter-se nisso?

Daí os trinta capítulos que se seguem. Primeiramente, apresentarei o debate do Café des
Phares através de alguns dos seus momentos, assim como o consultório de filosofia que está na
origem dele e tenta atender à demanda latente de filosofia em público; no percurso, evocarei os
primórdios de minha experiência prática: as primeiras consultas, o primeiro seminário e a primeira
viagem. Em seguida, exporei o que sinto sobre as razões dessa demanda, que estão na crise que hoje
atravessamos. Formularei duas hipóteses: a primeira é que, por conhecermos mal o motor de nossa
história, temos dificuldades em perceber a origem dos flagelos que nos assolam; a segunda é que a
filosofia, ao nascer, viu-se confrontada com dois flagelos similares. De fato, é como se as nações
modernas estivessem repetindo cegamente o erro que foi fatal para as cidades gregas, dois mil e
quinhentos anos atrás. Por mais incongruente que isso possa parecer, minha impressão é de que a
peça que estamos encenando já foi montada na Grécia, na época do nascimento da filosofia socrática.

MARC SAUTET
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

PRIMEIRA PARTE
ONDE ESTAMOS?

I
Domingo, praça da Bastilha

Domingo, portanto, 13 de dezembro de 1992, Café des Phares, praça da Bastilha, Paris. É
meio-dia. Reina na sala um clima estranho. Trinta a quarenta pessoas fazem uma reunião, em vez de
estampar a crônica indiferença (às vezes apenas fingida, é verdade) que costumam ter os fregueses
uns pelos outros. Qual o assunto? Política, sem dúvida, certo? Ou algum acontecimento, um novo
escândalo, um boato? Quem apurasse o ouvido nesse exato momento ouviria uma jovem afirmar que,
quando rasga um pedaço de papel, ela o faz sofrer! Será louca? Não parece: é muito calma, bem
arrumada e se empenha em explicar-se. Faz uma hora, está na companhia desse grupo, que está
refletindo sobre a violência. Também ela se pergunta onde a violência começa e onde termina.
Quando recebemos um golpe, “praticam uma violência” contra nós; quando o desferimos, “praticamos
a violência” contra o outro, seja ele um ser humano ou um animal – por exemplo, um cão que nos
incomoda e que repelimos com um pontapé ou que nos compraz machucar. Mas, quando damos um
chute numa acha de lenha, estaremos praticando uma “violência” contra esse pedaço de madeira? E
ao rasgarmos um pedaço de papel? A jovem diz que sim…

E a coisa não é tão idiota quanto parece. Porque, no início da discussão, tratava-se de saber
se a violência é universal ou apenas humana. Todos concordam em que a violência existe nas
relações entre os homens, hoje e em toda a história da humanidade; por isso, o problema é saber se
há uma fatalidade nisso, se a condição humana implica a violência e, se assim for, por quê. Supondo
que a violência impere no universo, é difícil dizer de que modo o homem poderia livrar-se dela. Mas,
mesmo não sendo esse o caso, é possível que ele esteja condenado a praticá-la para viver: ainda que
possa abster-se de fazer o mal ao próximo ou de maltratar o cão por prazer, como pode evitar matar
para comer? Será que consegue viver sem praticar violência contra seu meio ambiente? No passado,
os homens cortavam madeira, quebravam-na e a queimavam para se aquecer: não era isso uma
violência contra as árvores? Hoje em dia, milhões de homens continuam a se aquecer com lenha e, se
podemos prescindir dela, nem por isso deixamos de destruir cada vez mais florestas para atender a
outras necessidades: quando não dizimamos as árvores para fazer móveis e pasta de celulose,
desmatamos para plantar café ou criar gado. Essa violência contra a natureza traduz-se no
desaparecimento da cobertura vegetal do planeta. Até quando continuaremos a fechar os olhos a
isso?

Essa formulação não é desprezível. Alguns aprovam com verdadeiro fervor; outros mostram
dúvida. Faz-se um silêncio incômodo. Será que a lista de argumentos ecológicos autoriza atribuir uma
alma aos objetos? Por mais urgente que seja interrogar as condições de nossa grande casa, acaso o
animismo é o futuro do homem? Supondo que eu cometa uma violência contra o papel ao rasgá-lo,
resta saber se lhe faço algum mal. Quando dou um pontapé no cachorro, estou lhe fazendo mal, pois
ele sente dor, mas por acaso o papel sente seja lá o que for? Não será um absurdo atribuir-lhe a
sensação de dor, já que isso equivale a lhe conferir uma consciência? Nesse caso, por que não
conferi-la também ao açúcar, que deve sofrer de maneira atroz ao se dissolver no café escaldante?

A discussão atinge um clímax. Um dos participantes exige que se retorne ao bom senso, o
qual só reconhece a violência quando exercida contra um ser vivo! A moça, sempre segura de si, finca
pé em suas posições: como podemos saber, retruca, que as coisas inertes não têm consciência?

E tem razão de insistir. Reconhecer que a violência só pode ser praticada contra os seres
vivos já é reconhecer que ela pode ser exercida contra uma árvore, a qual – como reconhece o senso
comum – é um ser vivo; quem sabe, portanto, se não sofre ao ser derrubada? Quem sabe se o galho
não sofre ao ser cortado com o machado ou a serra elétrica, que fazem sua seiva escorrer como o
sangue de um braço cortado? Quem sabe, por conseguinte, se a lenha “morta” não sofre ao ser
cortada e se não sofre o papel, tirado da madeira ainda viva, ao ser rasgado? Isso, é claro, implica
uma completa mudança de perspectiva, uma renúncia ao bom senso e a presença de uma consciência
nas coisas, à maneira dos antigos ou dos primitivos, que por toda parte viam elfos, gênios, espíritos
ou deuses em ação na natureza inteira. Do mundo humano ao reino animal, do reino animal ao reino
vegetal, do reino vegetal ao mundo mineral, da superfície da Terra à esfera celeste, tudo volta a ser
“animado”, o Universo inteiro enche-se de um fluxo divino e, ainda que por um instante, sentimo-nos
filhos das estrelas…

Aqueles que preferem ficar na Terra – por uma rejeição do misticismo ou pela recusa do
antropomorfismo e do retorno aos piores arcaísmos, em nome da racionalidade, do materialismo ou,
muito simplesmente, do laicismo – devem, no mínimo, enfrentar a seguinte dificuldade: se
restringirem a violência aos limites da consciência, terão um bocado de trabalho para definir o que
acontece na natureza quando um vulcão entra em erupção, quando ocorre um sismo ou quando um
maremoto devasta uma cidade inteira. Mesmo sem tomar exemplos tão flagrantes quanto esses, que
dizer de uma simples tempestade e de um relâmpago acompanhado de trovão, não será isso
violência? O senso comum, nesse ponto, vê-se numa armadilha, porquanto é o primeiro a falar de tais
acontecimentos e calamidades nesses termos. Se a violência implica a consciência, não se deve dizer
que uma tempestade, um tufão ou um furacão são violentos! Ou deveremos afirmar que sua violência
decorre da presença de vítimas, seres humanos ou, pelo menos, animais, os quais, eles sim, são
dotados de consciência? Nesse caso, só se poderia falar em violência no tocante aos fenômenos dos
quais os seres vivos são testemunhas!

Como se vê, a questão não é simples. Depois de permitir que os dois campos se pronunciem,
que explicitem seu pensamento e o ilustrem para se fazerem compreender com clareza, parece-me
oportuno retomar a iniciativa. Traço uma curva no ar e pergunto se o terei ferido com o dorso da
mão. Incredulidade dos presentes… Assim, parto para a ofensiva, pois tão cedo não me farão admitir
que a violência é a lei que rege os destinos da espécie humana. Não duvido que essa idéia goze de
grande prestígio. Tem a seu favor as provas fornecidas por uma rápida investigação do passado da
humanidade – uma sucessão ininterrupta de guerras, conquistas e massacres. E quem não quer ser
enganado pelas formas mais sutis de opressão – as de outrora ou as mais comuns hoje mesmo –
dificilmente pode resistir aos atrativos dessa idéia, sob pena de passar por ingênuo ou por cúmplice.

Temo, no entanto, que essa idéia repouse numa ilusão. Que a violência é universal, que é
encontrada em toda a história da humanidade, em todo o mundo animal, que está presente nas
erupções vulcânicas e nos movimentos das placas tectônicas que moldam o relevo de nosso planeta,
que se oculta no âmago da atividade solar, que está na origem de nosso sistema galáctico e até
mesmo do cosmo, sob o nome de big bang, tudo isso eu admito de bom grado. Mas o fato de a
violência estar em toda parte não implica que esteja presente o tempo todo.

Para que o cosmo se transforme em cosmo, é preciso que a violência ceda lugar a seu oposto:
cosmos, em grego, significa “território posto em ordem” e, portanto, saída do caos. O nascimento do
cosmo é a ordenação de elementos caóticos. Nosso sistema solar resultou de uma pacificação
localizada do caos: planetas-satélites puseram-se em órbita regular em torno do Sol e foi essa
regularidade que permitiu à Terra esfriar-se e, mais tarde, gerar vida. Assim, de certa maneira, foi
por haver diminuído a violência natural, por ela haver cessado, que ganharam forma nosso planeta e
a biosfera.

O mesmo se aplica à história da humanidade. Não somos mais do que uma espécie animal
entre outras, é claro, e toda a nossa pré-história foi marcada pela luta contra os flagelos naturais,
dentre eles as espécies rivais. Mas nem por isso a violência é a lei que rege essa história até hoje.
Ainda podemos classificar na categoria de violência as invasões bárbaras que serviram de prelúdio à
era feudal, bem como os hábitos predatórios dos senhores. Mas é impossível caracterizar dessa
maneira o motor da civilização moderna: o que está no cerne do progresso dos últimos séculos não é
a postura predatória, mas o comércio; ora, o comércio repousa, exatamente, no oposto da violência:
comerciar é trocar mercadorias equivalentes, quer sob a forma do escambo, quer por intermédio da
moeda, em particular o ouro. Isso pressupõe que não se cometa nenhuma violência contra o outro.

Contrariando as aparências, o capitalismo não repousa essencialmente na violência. Ao


contrário, teve que triunfar sobre comportamentos dos senhores feudais e dos salteadores para impor
a todos a lei do mercado. O fato de haver empregado meios bélicos para esse fim não altera nada: ele
projetou uma ordem em que a violência tinha que ceder lugar ao comércio. E o comércio implica a
negociação. Para terminar, o fato de a própria sociedade de mercado não estar em condições de
realizar plenamente seu projeto e de, na impossibilidade de chegar à paz perpétua desejada por Kant,
as negociações comerciais tenderem, com freqüência meio exagerada, a se transformar em guerras
homicidas, eis algo que não é irrelevante mas que, na verdade, prova apenas uma coisa: que esse
sistema tem limites sobre os quais seria conveniente refletir.

Pois é isso mesmo que está em jogo: não se deixar tapear! Se os limites do sistema
dominante é que são culpados pela violência, não se deve fazer da violência o verdadeiro motor da
história humana e, por isso mesmo, uma fatalidade. Eis o que nos importa aqui: se a atração e a
repulsa dos corpos celestes e das partículas de matéria regem a passagem do caos ao cosmo, não é
ilícito supor que as relações sociais assumam um dia, em torno do ouro, a configuração assumida pela
trajetória dos planetas em torno do Sol: a de uma curva suave e regular, tão harmoniosa e generosa
quanto as carícias dos amantes.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

PRIMEIRA PARTE
ONDE ESTAMOS?

II
A filosofia no café

Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo
horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um
bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito
tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto,
já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em
comum encontram-se regularmente nesse café para “falar de filosofia”. E em número cada vez maior.

Na primeira vez não eram mais de dez. Foi em julho de 1992. Naquele dia, falamos da morte.
O que não estava previsto. Foi assim: Em breve aparição na rádio France Inter, durante a revista
cultural de sábado às 13h, eu havia comentado de passagem que aos domingos costumava me
encontrar com alguns amigos no Café des Phares para verificar em que pé estava a inauguração de
meu consultório da rue de Sévigné. Alguns ouvintes do programa concluíram que havia um “filósofo”
à sua disposição nas manhãs de domingo, para dialogar no café da praça da Bastilha… Assim, foram
até lá, rodaram um pouco pelo terraço e acabaram me encontrando. Entabulou-se uma discussão.
Alguém evocou as NDE (near death experiences), experiências de estados próximos da morte,
narradas em livros sensacionalistas por pessoas acidentadas ou reanimadas em situações extremas:
caberia denegri-las ou, ao contrário, prestar atenção nelas? Abordaram-se as questões do Além e da
decadência das civilizações, o prognóstico da morte do Sol, a eventualidade da morte do Universo etc.
O tempo passou muito depressa.

Na semana seguinte, alguns retornaram e outros apareceram por lá: falou-se da arte
efêmera. Um tema bizarro, levantado por ocasião de uma exposição surpreendente: uma artista fazia
esculturas de açúcar sobre as quais, todas as noites, derramava água… Aquilo era arte ou não? Em
geral, o artista almeja perenizar seu nome, produzindo obras o mais duradouras possível e,
idealmente, passíveis de imortalizá-lo: como qualificar de arte algo que visa ao efêmero? Ora, aquelas
esculturas eram tão belas que, uma vez desfeitas, desaparecidas, deixavam um longo rastro de
felicidade, a exemplo daquelas representações teatrais de que saímos com pesar. Recusar à arte o
direito de ser fugidia equivaleria a recusar ao ator ou ao diretor teatral o título de artista, reservando-
o unicamente ao autor! E o mesmo se daria com a ópera. Não é o teatro o lugar por excelência da
arte efêmera? Assim se desenrolou, meio lá meio cá, o segundo debate no Café des Phares.

Quem eram aquelas pessoas? Não sei. De situação modesta, discretas, até tímidas, não
compareciam para se impor, mas para trocar idéias. Lembro-me de um jovem casal que acabara de
se lançar na “criação de eventos” para a promoção de empresas com dificuldades de comunicação:
dir-se-ia que eram dois pombinhos, certos de se amar para sempre, à procura de bons materiais para
construir um ninho sólido, mas perturbados pelo barulho e pela fúria de tudo o que acontecia à sua
volta. Ainda me lembro de uma mulher mais velha, secretária de uma empresa de cosméticos, com
um longo passado de sindicalista, cansada mas de espírito muito forte, e que parecia ainda não haver
perdido por completo a esperança de tornar o mundo mais justo e mais fraterno. Os outros vão-se
esfumando em minha lembrança…

Na impossibilidade de guardar a imagem dos primeiros rostos, lembro-me esplendidamente


do debate seguinte. Fazia um tempo magnífico naquele domingo de outono, tão bonito que o terraço
do bistrô estava tomado de gente. Pois bem, uns quarenta fregueses tinham acabado por se
aproximar do pequeno núcleo inicial, até formar um círculo espantoso, cada um tomando a palavra
alternadamente e procurando se fazer ouvir, apesar do trânsito ao redor… O tema “O que é um
marginal?” fora proposto por um estudante ginasiano. Não era inspirador para todo o mundo e me
deu panos para manga. É que atingia em cheio todos aqueles que se recusam a adotar como regra o
que os outros denominam de “norma” e que muitas vezes conduz o homem a ser apenas o lobo do
homem. Num irreprimível arroubo de poesia contagiante, um orador tomou a defesa dos artistas
amaldiçoados por sua época, fazendo deles o fermento necessário de uma sociedade sempre por
nascer, na qual o homem possa enfim tornar-se não um lobo, mas um deus para o homem! Ele se
pôs de pé. Parecia um velho professor, muito elegante em seu terno de lã, com sua bengala, sua
barba e seus óculos, disposto a encerrar na beleza uma vida por demais conformista, como um belo
fruto que ninguém colheu e que procura cair por si mesmo, antes que seja tarde demais.

Esse debate foi realmente uma alegria. Inesperado, imprevisível, inaudito. Alguns amigos,
muitos desconhecidos, todos dispostos em círculo no terraço do Café des Phares, em frente à Ópera
da Bastilha, com a suavidade do veranico outonal, a cumplicidade do Sol… Mas a felicidade é sempre
precária: como perpetuá-la quando fecha o tempo? Foi o que se deu na semana seguinte: impossível
ficar do lado de fora! Tivemos que nos resignar a entrar. No fundo, bem lá no fundo do salão, havia
um banco comprido, que uma espécie de biombo separava do resto; ali nos refugiamos, portanto,
para abordar outro assunto. Acaso a alegria seria a mesma?

Narcisismo. O tema surgiu da situação, pois, confinados naquela sala dos fundos, cujas
paredes eram revestidas de espelhos, éramos diretamente confrontados com o prazer que alguns
tinham de se mirar neles, a ponto de se esquecerem dos demais. Assim, uma das pessoas que tinham
vindo “refletir” achou perfeitamente natural procurar inteirar-se mais do famoso mito de Narciso.
Chamava-se Martine. Era bonita, viva e irrequieta. Buscava um contato com a filosofia, mas era
visível que temia decepcionar-se mais uma vez. Eu estava atento a ela. Por acaso, acabou se
tornando assídua, a ponto de não mais nos separarmos… Nosso poeta não estava presente, mas seu
lugar foi prontamente tomado por um pequeno personagem de voz débil, impecável atrás de sua
gravata, bem penteado, grave, até mesmo afetado, funcionário estatal (do Ministério das Finanças,
creio). Possuía uma cultura ímpar em nossa pequena assembléia e apelava para uma doutrina hoje
tida por obsoleta, mas que, em sua época, deu a muitos a impressão de possuir as chaves do futuro:
a de Augusto Comte, o positivismo! Aliás, ele possuía as chaves de um lugar espantoso, bem no
coração do Marais, onde o positivismo continua a ter sua igreja (graças a um mecenas brasileiro),
lugar esse que um dia nos levou a visitar, uma vez estabelecida a confiança. Sua silhueta logo se
tornou familiar e, enquanto novos rostos iam aparecendo a cada semana, “Augusto Comte” esteve
entre os primeiros freqüentadores habituais.

Houve outros habitués que se afirmaram no correr das sessões. Menos doutos do que
“Augusto Comte”, sem dúvida alguma, menos precisos na exposição dos pontos de vista, menos
rigorosos no manejo da língua, mas igualmente cativantes: homens de quem sabíamos apenas o
prenome, mas que se empenhavam zelosamente em fazer o debate progredir – como Jacques, um
rapazola baixote e gorducho que se encolerizava tão lindamente em todos os encontros, que logo se
tornou indispensável para o bom humor geral; mulheres jovens ou muito menos jovens, que, sem
nada ficarem a dever no tocante à paixão, não hesitavam em ilustrar suas colocações com
experiências pessoais – como Antoinette, advogada de ofício, cuja franqueza impunha respeito a
todos. De uma semana para outra, o grupo era diferente, posto que ninguém tinha a obrigação de
comparecer. Mas estava dado o impulso e, ao ocupar suas instalações de inverno, o Sol não fez o
debate do Café des Phares entrar em hibernação.

Ao contrário! O grupinho refugiado na sala dos fundos do café não parava de acolher os
recém-chegados. Vez por outra, freqüentadores habituais do balcão na hora do aperitivo vinham
misturar-se ao debate em andamento. A princípio escutando distraidamente, decerto surpresos por
ouvir aquelas colocações num lugar tão pouco adequado, eles iam chegando e, quando não
agüentavam mais, pediam a palavra. Hei de me lembrar por muito tempo dos quatro blacks que um
dia pediram para entrar na brincadeira, um após outro, num impressionante crescendo de referências
de alto nível. Eram músicos, tinham tocado a noite inteira e, nesse começo de manhã, queriam
apenas tomar um último trago antes de dormir… Qual era mesmo o assunto? “O poder das palavras”,
creio; ainda revejo muito bem a cena, a sucessão daqueles quatro peritos no reggae, esgotados, mas
radiantes por intervirem no debate, por improvisarem um discurso carregado de densas referências
clássicas – uma espécie de “improviso” sobre o conceito.

Não obstante, a perenidade do debate nada tinha de certo. Sua forma livre e ingênua dava
margem a muitas tentações, as quais, caso se houvessem imposto, logo o teriam condenado. Em
primeiro lugar, o intelectualismo: a tendência ao exagero no registro da “seriedade”. Dado que se
tratava de “filosofia”, era importante, pensavam alguns, lidar apenas com os conceitos próprios dessa
disciplina, rechear o discurso de referências apropriadas e invocar Kant, Hegel e Heidegger, sob pena
de cair na trivialidade da discussão de botequim. Daí a só conceder a palavra aos que dominassem
esse tipo de saber seria apenas um passo, que eles se apressariam alegremente a dar. Diversos
oradores intervieram cronicamente nesse sentido, censurando-me por deixar que qualquer um
dissesse qualquer coisa…

Assim, foi preciso frustrar esse clã para dar aos outros o gosto pela filosofia. Os assuntos
eram escolhidos na hora, sem consulta prévia, e eu não tinha intenção nem vontade de propô-los eu
mesmo. Vinham me pedir para refletir de improviso, portanto estava fora de questão eu saber
antecipadamente do que deveria falar. A morte, a arte efêmera, o narcisismo, o poder das palavras,
nada disso tinha sido previsto e era muito melhor assim. Em pouco tempo, diversos temas
começaram a entrar em concorrência e realmente tivemos que decidir, que escolher um em
detrimento dos outros. Pois bem, esse foi um excelente meio de rechaçar a tendência de alguns
participantes a “elevar” subitamente o debate, sem que os preocupasse a idéia de verem seus
vizinhos confundirem-se rapidamente. Bastava eu escolher aquele dentre os temas que menos desse
margem a esse tipo de situação. Correndo o risco de enfurecer os “intelectuais” de visita ao lhes pedir
que se expressassem com palavras do dia-a-dia, era freqüente eu optar por um tema incomum na
esfera da filosofia clássica: uma frase banal, que a priori desse pouca margem à reflexão, ou uma
expressão corriqueira. Daí o debate sobre “A primeira vez”.

A primeira vez! No dia em que essa expressão foi proposta, senti-me um tanto
desconcertado, sem saber espontaneamente o que dizer. Mas, confesso, senti um certo prazer ao
observar o desamparo dos que tinham vindo para que falássemos do “Bem”, do “Direito”, do
“Estado”… Percebendo o pudor de uns e de outros, enquanto me vinham à mente ínfimas lembranças,
dei-me conta de que havia algo de paradoxal nessa formulação. De fato, à primeira vista, nada é mais
emocionante do que uma primeira experiência: é um momento importante e que, como tal, confere
interesse à vida – o primeiro dia de aula, o primeiro beijo, a primeira viagem ao exterior… Que
emoções! Quantas batidas do coração por conter, quanto desejo por temperar, quanta espera a
suportar, quanto medo a vencer, quanta angústia a sufocar, quanta repugnância a superar! Pois bem,
essa denominação, “primeira”, traz em germe a condenação do que ela mesma sugere, já que,
passada a primeira vez, vem a segunda, depois a terceira, e por fim não se conta mais; é a vida…
Perfila-se assim uma perspectiva desoladora: através da repetição da primeira vez, a experiência se
banaliza e, no final das contas, a morte se apodera do vivo, pois, afinal, o que é uma vez que já não
tem importância? A vida, portanto, torna insignificante aquilo que importava da primeira vez: a
repetição mata o interesse da vida. Por conseguinte, a vida é a morte!

Paradoxal em seu desenvolvimento, essa expressão revela-se ainda por cima contraditória. A
bem da verdade, o que acontece uma primeira vez é único. Assim, o primeiro beijo que se deu foi
dado uma vez só: longe de inaugurar uma série de experiências análogas, ele constitui um momento
de exceção que só tem sentido em relação ao passado e nenhum em relação ao futuro. Fez-se o que
não se fizera até então. A história divide-se em duas. Existem um antes e um depois. Logo, trata-se
de uma experiência que não pode se repetir; não pode haver uma “segunda vez”. Não se pode dar
um primeiro beijo duas vezes, assim como não se pode caminhar duas vezes na Lua pela primeira
vez. Por isso, stricto sensu, “a primeira vez” é uma formulação absurda, uma vez que dá a entender
que pode ser sucedida por aquilo que ela tornou impossível.

Tal constatação, estabelecida enquanto caminhávamos pelas lembranças de cada um, bastou
para me alegrar nesse dia. Os que participaram do debate perceberam que, partindo de uma
expressão anódina, era possível chegar a reflexões surpreendentes. De minha parte, fiquei perturbado
e radiante: perturbado por esbarrar naquele impasse, até então insuspeitado, e radiante por ter sido
levado a descobri-lo ao falar de improviso num café. Ainda mais que, remoendo essas idéias, percebi
que elas teriam divertido os antigos. Pelo menos alguns deles, com certeza, teriam sabido sair
prontamente do impasse. Como? Supondo que tudo o que acontece aqui já teria ocorrido uma
infinidade de vezes. Era o que pensavam sobretudo certos estóicos. Segundo eles, o cosmo, em seu
conjunto, nascia, desdobrava-se e desaparecia numa conflagração que era prelúdio de um novo
nascimento: na face da Terra, portanto, tudo estava fadado a reviver exatamente as mesmas coisas
do ciclo anterior. E isso deveria repetir-se sem parar. Para eles, esse era o melhor meio de não
afundar no desespero por ocasião de um infortúnio ou de não cantar vitória cedo demais quando o
destino era auspicioso – em suma, de conservar o sangue-frio perante o curso dos acontecimentos:
se tudo se repete eternamente e nos mínimos detalhes, nenhuma perda é irreparável, nenhuma
vitória é definitiva. A primeira vez? Para os estóicos, ela não existe, pois o tempo não é linear: qual
um círculo, ele passa e volta a passar ininterruptamente pelos mesmos pontos, de modo que, na
opinião deles, sem dúvida alguma, ninguém jamais deu um primeiro beijo…

Mas nem por isso a partida estava ganha. É que, uma vez abertas as comportas da
experiência pessoal – uma experiência necessária para justificar uma afirmação e atestar que se está
progredindo de maneira a obter a adesão dos outros ou, ao contrário, sua objeção em nome de uma
experiência inversa -, o debate do Café des Phares poderia mergulhar rapidamente num desabafo de
problemas pessoais: a fórmula “no que me diz respeito” poderia se tornar a lei, o que seria uma
calamidade tão fatal quanto a tendência ao cenáculo por parte dos adoradores do conceito. O debate
sobre “A dependência” permitiu encontrarmos a resposta para o problema.

Com esse tema, evidentemente, a fórmula “no que me diz respeito” tinha caminho livre. A
pessoa que o levantara sofria flagrantemente por não ter sabido libertar-se do domínio do “outro”.
Havia uma comoção no ar e o clima era intensamente psi. Para a maioria dos participantes, era óbvio
que a “dependência” estava ligada à patologia: significava que o eu não havia atingido a maturidade
ou que se refugiava numa relação mórbida com o outro, por medo de sua liberdade. Sem dúvida,
havia uma multiplicidade de razões para isso e uma infinidade de casos ilustrativos, mas, se havia
uma coisa certa, era que se tratava de uma doença, cujo tratamento entrava na alçada da corporação
dos médicos e psicólogos!

Pareceu-me oportuno, nesse dia, fazer referência a Hegel, a fim de abalar esse consenso. Já é
fácil observar que a dependência de um ser humano em relação a outro pode ser considerada uma
fase durante a qual se prepara a emancipação do “dependente”, o qual, sem esse momento de
subordinação, não poderia acumular as forças necessárias a sua autonomia. Podemos pensar, nesse
ponto, na relação da criança com os pais: a criança tem que passar pela obediência e pela submissão
para, um dia, por sua vez, tornar-se adulta. Foi essa evidência que Kant utilizou para levar seus
contemporâneos a ouvirem a mensagem do Iluminismo: é chegado o momento de os povos modernos
se tornarem adultos, pois faz séculos que estão sob a autoridade da Igreja e da monarquia… Hegel,
porém, vai ainda mais longe. Mostra que até a relação entre senhor e escravo é “dialética”, ou seja,
constitui em si mesma um fator de progresso, é uma força motriz da evolução das relações sociais. O
que equivale a dizer que ele faz o imperativo moral de Kant passar para a condição de lei inerente à
história humana: não apenas é hora de os povos subjugados se livrarem de qualquer tutela, como
também o curso dos acontecimentos lhes é favorável.
A referência a Hegel permite sair do terreno da patologia clínica, em prol de uma visão
histórica do destino das coletividades humanas. Há momentos em que a dependência é realmente
uma coisa boa, de vez que, num confronto, mesmo intenso, ela permite preservar a vida: quando o
vencido, fazendo pouco de sua honra, concorda em se colocar a serviço do vencedor, ele tem todas as
possibilidades de ser poupado. É esse o cenário celebrizado da “dialética do senhor e do escravo”,
exposta por Hegel em 1807 na Fenomenologia do espírito, no livro I, capítulo II, sob o título de
“Independência e dependência da consciência de si”. Ali vemos “aquele cuja vida foi preservada”
preferir esta última à liberdade e se tornar escravo daquele que o venceu; inversamente, vemos o
vencedor tornar-se senhor daquele a quem preferiu não matar. Pois bem, as coisas não param por aí.
Conforme o combinado, o escravo passa a trabalhar para seu senhor e, com isso, a se afirmar
indispensável, dentro de pouco tempo, enquanto vai adquirindo o controle das coisas. Sem trabalhar
para viver, o senhor logo se torna dependente do trabalho do escravo, no momento mesmo em que
este, havendo partido do nada, torna-se o criador das condições de vida do senhor e das suas
próprias, uma vez que é ele quem as assegura. Chega o dia em que o escravo pode considerar que o
senhor é supérfluo – e se livrar dele…

A questão da dependência, portanto, é muito mais rica e muito mais complexa do que a
psicologia clínica nos permite apreender. Ademais, a história não se deteve por aí: não somente essa
teoria teve imenso sucesso na época do próprio Hegel, pois deu ao Aufklärung – ao Esclarecimento –
uma legitimidade decuplicada, como também foi incorporada por outros pensadores, pouco depois,
para que justificassem sua própria visão da história. Assim foi que Marx serviu-se dela para anunciar
a emancipação do proletariado: sendo a classe trabalhadora a classe operária por definição, aquela
que garante as condições de vida de seu senhor (o burguês, o capital), o esquema hegeliano deveria
ser-lhe aplicado em primeiríssimo lugar. Em muito pouco tempo, isso fez com que um bom número de
pessoas que haviam aplaudido Hegel mudasse de idéia. Pautados na identificação do “progresso” com
o trabalho, os socialistas se apropriaram da dialética hegeliana em detrimento dos abastados e dos
novos-ricos, que haviam acreditado que ela os protegia de qualquer crítica conservadora e que, por
conseguinte, sentiram-se desde então fortemente tentados a mergulhar no pessimismo. Levantar o
problema da dependência, portanto, é passar do singular para o universal, de meu uso pessoal da
liberdade para o da humanidade inteira. Nessa mudança do centro de gravidade, a interrogação passa
por uma fase histórica: trata-se de indagar se existe na história dos homens um momento em que a
humanidade inteira possa considerar-se adulta e se esse momento já ficou para trás ou se ainda
estamos à sua espera. E, nessa investigação de grande envergadura, convém delimitar o exame por
partes, para saber se o que importa é o “momento” de Hegel ou o que foi designado por Marx.
Vê-se que estamos redondamente enganados quando nos comprazemos com a fórmula “no
que me diz respeito” e verificamos que o livre exercício da fala num debate de bar não implica a
ditadura da comoção, por menos atenta que esteja a razão. No entanto, isso não obriga a uma
confissão pública de culpa quanto ao conteúdo “teórico” requerido das intervenções. Não é pelo fato
de eu conhecer Hegel que aqueles que não o conhecem devem ficar calados e se contentar em ouvir.
Citar Hegel não é bloquear o outro, mas, ao contrário, é sugerir-lhe uma pista, convidá-lo a uma
leitura pessoal desse autor, a entrar na Fenomenologia, porém com simplicidade, da maneira
adequada, isto é, formulando ao filósofo a questão debatida no café naquela manhã. Citar Hegel
tampouco é fazer uma alusão, deitar um olhar significativo aos conhecedores, marcar que se pertence
a um clã. Ainda mais que, no caso, não existe consenso. A alusão não basta. A maioria dos
professores de filosofia acompanha Marx, sem torcer o nariz, quando ele traduz “senhor” por
“burguês” e “escravo” por “trabalhador”, fazendo da fábula hegeliana o relato codificado da história
moderna; outros vêem nisso uma falta de discernimento e tentam restituir a essa história um sentido
muito menos histórico, chegando até a sugerir que, a rigor, ela não tem nada a ver com as categorias
sociais e que tudo se passa no “espírito”, cujas metamorfoses Hegel expõe. Quando nos servimos
dessa “dialética”, portanto, não podemos agir como se sua significação fosse uma evidência.

Tristes das piscadelas entendidas! Esse debate sobre a dependência ofereceu-me, pela
primeira vez, a oportunidade de testar em público a maneira como eu mesmo encarava essa coisa.
Lembrei que Hegel se exprimira na língua alemã… Aquilo que traduzimos por “mestre” é designado
por Hegel através da palavra Herr, que significa, antes de qualquer coisa, “senhor”; o que traduzimos
por “escravo” é o que Hegel chama de Knecht, ou seja, “criado” ou “servo”. Portanto, achamo-nos
numa configuração ainda muito mais histórica do que a proposta por Marx: a meu ver, Hegel designa
na Fenomenologia a passagem do feudalismo para o capitalismo. O “senhor”, aquele que dirige a vida
do vencido, é o senhor feudal, saído das grandes invasões e que se apropriou da terra e dos que nela
trabalhavam; o “escravo” é o servo, o vencido naquele caos gigantesco, que perdeu sua liberdade sob
o impacto das hordas germânicas: assim, o servo colocou-se a serviço do senhor feudal, que em troca
passou a protegê-lo do risco de novas invasões (escandinavas, ao norte, mouras, ao sul, e hunas, a
leste). O que chamamos “dialética do senhor e do escravo”, portanto, é o processo pelo qual o servo
ocidental veio a se emancipar do jugo do seu protetor, o senhor germânico.

Esse processo passou pelo trabalho e, acima de tudo, pela circulação das mercadorias
provenientes do trabalho. A princípio incondicionalmente restrito à gleba e às muralhas do senhor
feudal, o servo, com efeito, aos poucos passou a dispor dos meios para conquistar sua liberdade. Isso
porque, no correr dos séculos, o dinheiro voltou a circular. O comércio, por muito tempo estagnado
em ponto morto, reativou a circulação das mercadorias e da moeda; os comerciantes, a princípio
desprovidos de poder, beneficiaram-se da ordem (bastante precária) gerada pelo feudalismo para
enriquecer e se proteger autonomamente nos burgos, cercados por muralhas, e a eles foram juntar-
se ali os servos fugitivos, que se tornaram artesãos e, por sua vez, aumentaram o volume das trocas.
Em suma, o trabalho prevaleceu sobre a força. O centro de gravidade das relações entre os homens
passou imperceptivelmente do castelo (do senhor feudal) para a cidade (dos burgueses), até o dia em
que o senhor, aos olhos de seu antigo servo, tornou-se um parasita inútil do qual foi preciso livrar-se
para chegar à prosperidade.

Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo
horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um
bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito
tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto,
já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em
comum encontram-se regularmente nesse café para “falar de filosofia”. E em número cada vez maior.

Na primeira vez não eram mais de dez. Foi em julho de 1992. Naquele dia, falamos da morte.
O que não estava previsto. Foi assim: Em breve aparição na rádio France Inter, durante a revista
cultural de sábado às 13h, eu havia comentado de passagem que aos domingos costumava me
encontrar com alguns amigos no Café des Phares para verificar em que pé estava a inauguração de
meu consultório da rue de Sévigné. Alguns ouvintes do programa concluíram que havia um “filósofo”
à sua disposição nas manhãs de domingo, para dialogar no café da praça da Bastilha… Assim, foram
até lá, rodaram um pouco pelo terraço e acabaram me encontrando. Entabulou-se uma discussão.
Alguém evocou as NDE (near death experiences), experiências de estados próximos da morte,
narradas em livros sensacionalistas por pessoas acidentadas ou reanimadas em situações extremas:
caberia denegri-las ou, ao contrário, prestar atenção nelas? Abordaram-se as questões do Além e da
decadência das civilizações, o prognóstico da morte do Sol, a eventualidade da morte do Universo etc.
O tempo passou muito depressa.

Na semana seguinte, alguns retornaram e outros apareceram por lá: falou-se da arte
efêmera. Um tema bizarro, levantado por ocasião de uma exposição surpreendente: uma artista fazia
esculturas de açúcar sobre as quais, todas as noites, derramava água… Aquilo era arte ou não? Em
geral, o artista almeja perenizar seu nome, produzindo obras o mais duradouras possível e,
idealmente, passíveis de imortalizá-lo: como qualificar de arte algo que visa ao efêmero? Ora, aquelas
esculturas eram tão belas que, uma vez desfeitas, desaparecidas, deixavam um longo rastro de
felicidade, a exemplo daquelas representações teatrais de que saímos com pesar. Recusar à arte o
direito de ser fugidia equivaleria a recusar ao ator ou ao diretor teatral o título de artista, reservando-
o unicamente ao autor! E o mesmo se daria com a ópera. Não é o teatro o lugar por excelência da
arte efêmera? Assim se desenrolou, meio lá meio cá, o segundo debate no Café des Phares.

Quem eram aquelas pessoas? Não sei. De situação modesta, discretas, até tímidas, não
compareciam para se impor, mas para trocar idéias. Lembro-me de um jovem casal que acabara de
se lançar na “criação de eventos” para a promoção de empresas com dificuldades de comunicação:
dir-se-ia que eram dois pombinhos, certos de se amar para sempre, à procura de bons materiais para
construir um ninho sólido, mas perturbados pelo barulho e pela fúria de tudo o que acontecia à sua
volta. Ainda me lembro de uma mulher mais velha, secretária de uma empresa de cosméticos, com
um longo passado de sindicalista, cansada mas de espírito muito forte, e que parecia ainda não haver
perdido por completo a esperança de tornar o mundo mais justo e mais fraterno. Os outros vão-se
esfumando em minha lembrança…

Na impossibilidade de guardar a imagem dos primeiros rostos, lembro-me esplendidamente


do debate seguinte. Fazia um tempo magnífico naquele domingo de outono, tão bonito que o terraço
do bistrô estava tomado de gente. Pois bem, uns quarenta fregueses tinham acabado por se
aproximar do pequeno núcleo inicial, até formar um círculo espantoso, cada um tomando a palavra
alternadamente e procurando se fazer ouvir, apesar do trânsito ao redor… O tema “O que é um
marginal?” fora proposto por um estudante ginasiano. Não era inspirador para todo o mundo e me
deu panos para manga. É que atingia em cheio todos aqueles que se recusam a adotar como regra o
que os outros denominam de “norma” e que muitas vezes conduz o homem a ser apenas o lobo do
homem. Num irreprimível arroubo de poesia contagiante, um orador tomou a defesa dos artistas
amaldiçoados por sua época, fazendo deles o fermento necessário de uma sociedade sempre por
nascer, na qual o homem possa enfim tornar-se não um lobo, mas um deus para o homem! Ele se
pôs de pé. Parecia um velho professor, muito elegante em seu terno de lã, com sua bengala, sua
barba e seus óculos, disposto a encerrar na beleza uma vida por demais conformista, como um belo
fruto que ninguém colheu e que procura cair por si mesmo, antes que seja tarde demais.

Esse debate foi realmente uma alegria. Inesperado, imprevisível, inaudito. Alguns amigos,
muitos desconhecidos, todos dispostos em círculo no terraço do Café des Phares, em frente à Ópera
da Bastilha, com a suavidade do veranico outonal, a cumplicidade do Sol… Mas a felicidade é sempre
precária: como perpetuá-la quando fecha o tempo? Foi o que se deu na semana seguinte: impossível
ficar do lado de fora! Tivemos que nos resignar a entrar. No fundo, bem lá no fundo do salão, havia
um banco comprido, que uma espécie de biombo separava do resto; ali nos refugiamos, portanto,
para abordar outro assunto. Acaso a alegria seria a mesma?
Narcisismo. O tema surgiu da situação, pois, confinados naquela sala dos fundos, cujas
paredes eram revestidas de espelhos, éramos diretamente confrontados com o prazer que alguns
tinham de se mirar neles, a ponto de se esquecerem dos demais. Assim, uma das pessoas que tinham
vindo “refletir” achou perfeitamente natural procurar inteirar-se mais do famoso mito de Narciso.
Chamava-se Martine. Era bonita, viva e irrequieta. Buscava um contato com a filosofia, mas era
visível que temia decepcionar-se mais uma vez. Eu estava atento a ela. Por acaso, acabou se
tornando assídua, a ponto de não mais nos separarmos… Nosso poeta não estava presente, mas seu
lugar foi prontamente tomado por um pequeno personagem de voz débil, impecável atrás de sua
gravata, bem penteado, grave, até mesmo afetado, funcionário estatal (do Ministério das Finanças,
creio). Possuía uma cultura ímpar em nossa pequena assembléia e apelava para uma doutrina hoje
tida por obsoleta, mas que, em sua época, deu a muitos a impressão de possuir as chaves do futuro:
a de Augusto Comte, o positivismo! Aliás, ele possuía as chaves de um lugar espantoso, bem no
coração do Marais, onde o positivismo continua a ter sua igreja (graças a um mecenas brasileiro),
lugar esse que um dia nos levou a visitar, uma vez estabelecida a confiança. Sua silhueta logo se
tornou familiar e, enquanto novos rostos iam aparecendo a cada semana, “Augusto Comte” esteve
entre os primeiros freqüentadores habituais.

Houve outros habitués que se afirmaram no correr das sessões. Menos doutos do que
“Augusto Comte”, sem dúvida alguma, menos precisos na exposição dos pontos de vista, menos
rigorosos no manejo da língua, mas igualmente cativantes: homens de quem sabíamos apenas o
prenome, mas que se empenhavam zelosamente em fazer o debate progredir – como Jacques, um
rapazola baixote e gorducho que se encolerizava tão lindamente em todos os encontros, que logo se
tornou indispensável para o bom humor geral; mulheres jovens ou muito menos jovens, que, sem
nada ficarem a dever no tocante à paixão, não hesitavam em ilustrar suas colocações com
experiências pessoais – como Antoinette, advogada de ofício, cuja franqueza impunha respeito a
todos. De uma semana para outra, o grupo era diferente, posto que ninguém tinha a obrigação de
comparecer. Mas estava dado o impulso e, ao ocupar suas instalações de inverno, o Sol não fez o
debate do Café des Phares entrar em hibernação.

Ao contrário! O grupinho refugiado na sala dos fundos do café não parava de acolher os
recém-chegados. Vez por outra, freqüentadores habituais do balcão na hora do aperitivo vinham
misturar-se ao debate em andamento. A princípio escutando distraidamente, decerto surpresos por
ouvir aquelas colocações num lugar tão pouco adequado, eles iam chegando e, quando não
agüentavam mais, pediam a palavra. Hei de me lembrar por muito tempo dos quatro blacks que um
dia pediram para entrar na brincadeira, um após outro, num impressionante crescendo de referências
de alto nível. Eram músicos, tinham tocado a noite inteira e, nesse começo de manhã, queriam
apenas tomar um último trago antes de dormir… Qual era mesmo o assunto? “O poder das palavras”,
creio; ainda revejo muito bem a cena, a sucessão daqueles quatro peritos no reggae, esgotados, mas
radiantes por intervirem no debate, por improvisarem um discurso carregado de densas referências
clássicas – uma espécie de “improviso” sobre o conceito.

Não obstante, a perenidade do debate nada tinha de certo. Sua forma livre e ingênua dava
margem a muitas tentações, as quais, caso se houvessem imposto, logo o teriam condenado. Em
primeiro lugar, o intelectualismo: a tendência ao exagero no registro da “seriedade”. Dado que se
tratava de “filosofia”, era importante, pensavam alguns, lidar apenas com os conceitos próprios dessa
disciplina, rechear o discurso de referências apropriadas e invocar Kant, Hegel e Heidegger, sob pena
de cair na trivialidade da discussão de botequim. Daí a só conceder a palavra aos que dominassem
esse tipo de saber seria apenas um passo, que eles se apressariam alegremente a dar. Diversos
oradores intervieram cronicamente nesse sentido, censurando-me por deixar que qualquer um
dissesse qualquer coisa…

Assim, foi preciso frustrar esse clã para dar aos outros o gosto pela filosofia. Os assuntos
eram escolhidos na hora, sem consulta prévia, e eu não tinha intenção nem vontade de propô-los eu
mesmo. Vinham me pedir para refletir de improviso, portanto estava fora de questão eu saber
antecipadamente do que deveria falar. A morte, a arte efêmera, o narcisismo, o poder das palavras,
nada disso tinha sido previsto e era muito melhor assim. Em pouco tempo, diversos temas
começaram a entrar em concorrência e realmente tivemos que decidir, que escolher um em
detrimento dos outros. Pois bem, esse foi um excelente meio de rechaçar a tendência de alguns
participantes a “elevar” subitamente o debate, sem que os preocupasse a idéia de verem seus
vizinhos confundirem-se rapidamente. Bastava eu escolher aquele dentre os temas que menos desse
margem a esse tipo de situação. Correndo o risco de enfurecer os “intelectuais” de visita ao lhes pedir
que se expressassem com palavras do dia-a-dia, era freqüente eu optar por um tema incomum na
esfera da filosofia clássica: uma frase banal, que a priori desse pouca margem à reflexão, ou uma
expressão corriqueira. Daí o debate sobre “A primeira vez”.

A primeira vez! No dia em que essa expressão foi proposta, senti-me um tanto
desconcertado, sem saber espontaneamente o que dizer. Mas, confesso, senti um certo prazer ao
observar o desamparo dos que tinham vindo para que falássemos do “Bem”, do “Direito”, do
“Estado”… Percebendo o pudor de uns e de outros, enquanto me vinham à mente ínfimas lembranças,
dei-me conta de que havia algo de paradoxal nessa formulação. De fato, à primeira vista, nada é mais
emocionante do que uma primeira experiência: é um momento importante e que, como tal, confere
interesse à vida – o primeiro dia de aula, o primeiro beijo, a primeira viagem ao exterior… Que
emoções! Quantas batidas do coração por conter, quanto desejo por temperar, quanta espera a
suportar, quanto medo a vencer, quanta angústia a sufocar, quanta repugnância a superar! Pois bem,
essa denominação, “primeira”, traz em germe a condenação do que ela mesma sugere, já que,
passada a primeira vez, vem a segunda, depois a terceira, e por fim não se conta mais; é a vida…
Perfila-se assim uma perspectiva desoladora: através da repetição da primeira vez, a experiência se
banaliza e, no final das contas, a morte se apodera do vivo, pois, afinal, o que é uma vez que já não
tem importância? A vida, portanto, torna insignificante aquilo que importava da primeira vez: a
repetição mata o interesse da vida. Por conseguinte, a vida é a morte!

Paradoxal em seu desenvolvimento, essa expressão revela-se ainda por cima contraditória. A
bem da verdade, o que acontece uma primeira vez é único. Assim, o primeiro beijo que se deu foi
dado uma vez só: longe de inaugurar uma série de experiências análogas, ele constitui um momento
de exceção que só tem sentido em relação ao passado e nenhum em relação ao futuro. Fez-se o que
não se fizera até então. A história divide-se em duas. Existem um antes e um depois. Logo, trata-se
de uma experiência que não pode se repetir; não pode haver uma “segunda vez”. Não se pode dar
um primeiro beijo duas vezes, assim como não se pode caminhar duas vezes na Lua pela primeira
vez. Por isso, stricto sensu, “a primeira vez” é uma formulação absurda, uma vez que dá a entender
que pode ser sucedida por aquilo que ela tornou impossível.

Tal constatação, estabelecida enquanto caminhávamos pelas lembranças de cada um, bastou
para me alegrar nesse dia. Os que participaram do debate perceberam que, partindo de uma
expressão anódina, era possível chegar a reflexões surpreendentes. De minha parte, fiquei perturbado
e radiante: perturbado por esbarrar naquele impasse, até então insuspeitado, e radiante por ter sido
levado a descobri-lo ao falar de improviso num café. Ainda mais que, remoendo essas idéias, percebi
que elas teriam divertido os antigos. Pelo menos alguns deles, com certeza, teriam sabido sair
prontamente do impasse. Como? Supondo que tudo o que acontece aqui já teria ocorrido uma
infinidade de vezes. Era o que pensavam sobretudo certos estóicos. Segundo eles, o cosmo, em seu
conjunto, nascia, desdobrava-se e desaparecia numa conflagração que era prelúdio de um novo
nascimento: na face da Terra, portanto, tudo estava fadado a reviver exatamente as mesmas coisas
do ciclo anterior. E isso deveria repetir-se sem parar. Para eles, esse era o melhor meio de não
afundar no desespero por ocasião de um infortúnio ou de não cantar vitória cedo demais quando o
destino era auspicioso – em suma, de conservar o sangue-frio perante o curso dos acontecimentos:
se tudo se repete eternamente e nos mínimos detalhes, nenhuma perda é irreparável, nenhuma
vitória é definitiva. A primeira vez? Para os estóicos, ela não existe, pois o tempo não é linear: qual
um círculo, ele passa e volta a passar ininterruptamente pelos mesmos pontos, de modo que, na
opinião deles, sem dúvida alguma, ninguém jamais deu um primeiro beijo…

Mas nem por isso a partida estava ganha. É que, uma vez abertas as comportas da
experiência pessoal – uma experiência necessária para justificar uma afirmação e atestar que se está
progredindo de maneira a obter a adesão dos outros ou, ao contrário, sua objeção em nome de uma
experiência inversa -, o debate do Café des Phares poderia mergulhar rapidamente num desabafo de
problemas pessoais: a fórmula “no que me diz respeito” poderia se tornar a lei, o que seria uma
calamidade tão fatal quanto a tendência ao cenáculo por parte dos adoradores do conceito. O debate
sobre “A dependência” permitiu encontrarmos a resposta para o problema.

Com esse tema, evidentemente, a fórmula “no que me diz respeito” tinha caminho livre. A
pessoa que o levantara sofria flagrantemente por não ter sabido libertar-se do domínio do “outro”.
Havia uma comoção no ar e o clima era intensamente psi. Para a maioria dos participantes, era óbvio
que a “dependência” estava ligada à patologia: significava que o eu não havia atingido a maturidade
ou que se refugiava numa relação mórbida com o outro, por medo de sua liberdade. Sem dúvida,
havia uma multiplicidade de razões para isso e uma infinidade de casos ilustrativos, mas, se havia
uma coisa certa, era que se tratava de uma doença, cujo tratamento entrava na alçada da corporação
dos médicos e psicólogos!

Pareceu-me oportuno, nesse dia, fazer referência a Hegel, a fim de abalar esse consenso. Já é
fácil observar que a dependência de um ser humano em relação a outro pode ser considerada uma
fase durante a qual se prepara a emancipação do “dependente”, o qual, sem esse momento de
subordinação, não poderia acumular as forças necessárias a sua autonomia. Podemos pensar, nesse
ponto, na relação da criança com os pais: a criança tem que passar pela obediência e pela submissão
para, um dia, por sua vez, tornar-se adulta. Foi essa evidência que Kant utilizou para levar seus
contemporâneos a ouvirem a mensagem do Iluminismo: é chegado o momento de os povos modernos
se tornarem adultos, pois faz séculos que estão sob a autoridade da Igreja e da monarquia… Hegel,
porém, vai ainda mais longe. Mostra que até a relação entre senhor e escravo é “dialética”, ou seja,
constitui em si mesma um fator de progresso, é uma força motriz da evolução das relações sociais. O
que equivale a dizer que ele faz o imperativo moral de Kant passar para a condição de lei inerente à
história humana: não apenas é hora de os povos subjugados se livrarem de qualquer tutela, como
também o curso dos acontecimentos lhes é favorável.

A referência a Hegel permite sair do terreno da patologia clínica, em prol de uma visão
histórica do destino das coletividades humanas. Há momentos em que a dependência é realmente
uma coisa boa, de vez que, num confronto, mesmo intenso, ela permite preservar a vida: quando o
vencido, fazendo pouco de sua honra, concorda em se colocar a serviço do vencedor, ele tem todas as
possibilidades de ser poupado. É esse o cenário celebrizado da “dialética do senhor e do escravo”,
exposta por Hegel em 1807 na Fenomenologia do espírito, no livro I, capítulo II, sob o título de
“Independência e dependência da consciência de si”. Ali vemos “aquele cuja vida foi preservada”
preferir esta última à liberdade e se tornar escravo daquele que o venceu; inversamente, vemos o
vencedor tornar-se senhor daquele a quem preferiu não matar. Pois bem, as coisas não param por aí.
Conforme o combinado, o escravo passa a trabalhar para seu senhor e, com isso, a se afirmar
indispensável, dentro de pouco tempo, enquanto vai adquirindo o controle das coisas. Sem trabalhar
para viver, o senhor logo se torna dependente do trabalho do escravo, no momento mesmo em que
este, havendo partido do nada, torna-se o criador das condições de vida do senhor e das suas
próprias, uma vez que é ele quem as assegura. Chega o dia em que o escravo pode considerar que o
senhor é supérfluo – e se livrar dele…

A questão da dependência, portanto, é muito mais rica e muito mais complexa do que a
psicologia clínica nos permite apreender. Ademais, a história não se deteve por aí: não somente essa
teoria teve imenso sucesso na época do próprio Hegel, pois deu ao Aufklärung – ao Esclarecimento –
uma legitimidade decuplicada, como também foi incorporada por outros pensadores, pouco depois,
para que justificassem sua própria visão da história. Assim foi que Marx serviu-se dela para anunciar
a emancipação do proletariado: sendo a classe trabalhadora a classe operária por definição, aquela
que garante as condições de vida de seu senhor (o burguês, o capital), o esquema hegeliano deveria
ser-lhe aplicado em primeiríssimo lugar. Em muito pouco tempo, isso fez com que um bom número de
pessoas que haviam aplaudido Hegel mudasse de idéia. Pautados na identificação do “progresso” com
o trabalho, os socialistas se apropriaram da dialética hegeliana em detrimento dos abastados e dos
novos-ricos, que haviam acreditado que ela os protegia de qualquer crítica conservadora e que, por
conseguinte, sentiram-se desde então fortemente tentados a mergulhar no pessimismo. Levantar o
problema da dependência, portanto, é passar do singular para o universal, de meu uso pessoal da
liberdade para o da humanidade inteira. Nessa mudança do centro de gravidade, a interrogação passa
por uma fase histórica: trata-se de indagar se existe na história dos homens um momento em que a
humanidade inteira possa considerar-se adulta e se esse momento já ficou para trás ou se ainda
estamos à sua espera. E, nessa investigação de grande envergadura, convém delimitar o exame por
partes, para saber se o que importa é o “momento” de Hegel ou o que foi designado por Marx.

Vê-se que estamos redondamente enganados quando nos comprazemos com a fórmula “no
que me diz respeito” e verificamos que o livre exercício da fala num debate de bar não implica a
ditadura da comoção, por menos atenta que esteja a razão. No entanto, isso não obriga a uma
confissão pública de culpa quanto ao conteúdo “teórico” requerido das intervenções. Não é pelo fato
de eu conhecer Hegel que aqueles que não o conhecem devem ficar calados e se contentar em ouvir.
Citar Hegel não é bloquear o outro, mas, ao contrário, é sugerir-lhe uma pista, convidá-lo a uma
leitura pessoal desse autor, a entrar na Fenomenologia, porém com simplicidade, da maneira
adequada, isto é, formulando ao filósofo a questão debatida no café naquela manhã. Citar Hegel
tampouco é fazer uma alusão, deitar um olhar significativo aos conhecedores, marcar que se pertence
a um clã. Ainda mais que, no caso, não existe consenso. A alusão não basta. A maioria dos
professores de filosofia acompanha Marx, sem torcer o nariz, quando ele traduz “senhor” por
“burguês” e “escravo” por “trabalhador”, fazendo da fábula hegeliana o relato codificado da história
moderna; outros vêem nisso uma falta de discernimento e tentam restituir a essa história um sentido
muito menos histórico, chegando até a sugerir que, a rigor, ela não tem nada a ver com as categorias
sociais e que tudo se passa no “espírito”, cujas metamorfoses Hegel expõe. Quando nos servimos
dessa “dialética”, portanto, não podemos agir como se sua significação fosse uma evidência.

Tristes das piscadelas entendidas! Esse debate sobre a dependência ofereceu-me, pela
primeira vez, a oportunidade de testar em público a maneira como eu mesmo encarava essa coisa.
Lembrei que Hegel se exprimira na língua alemã… Aquilo que traduzimos por “mestre” é designado
por Hegel através da palavra Herr, que significa, antes de qualquer coisa, “senhor”; o que traduzimos
por “escravo” é o que Hegel chama de Knecht, ou seja, “criado” ou “servo”. Portanto, achamo-nos
numa configuração ainda muito mais histórica do que a proposta por Marx: a meu ver, Hegel designa
na Fenomenologia a passagem do feudalismo para o capitalismo. O “senhor”, aquele que dirige a vida
do vencido, é o senhor feudal, saído das grandes invasões e que se apropriou da terra e dos que nela
trabalhavam; o “escravo” é o servo, o vencido naquele caos gigantesco, que perdeu sua liberdade sob
o impacto das hordas germânicas: assim, o servo colocou-se a serviço do senhor feudal, que em troca
passou a protegê-lo do risco de novas invasões (escandinavas, ao norte, mouras, ao sul, e hunas, a
leste). O que chamamos “dialética do senhor e do escravo”, portanto, é o processo pelo qual o servo
ocidental veio a se emancipar do jugo do seu protetor, o senhor germânico.

Esse processo passou pelo trabalho e, acima de tudo, pela circulação das mercadorias
provenientes do trabalho. A princípio incondicionalmente restrito à gleba e às muralhas do senhor
feudal, o servo, com efeito, aos poucos passou a dispor dos meios para conquistar sua liberdade. Isso
porque, no correr dos séculos, o dinheiro voltou a circular. O comércio, por muito tempo estagnado
em ponto morto, reativou a circulação das mercadorias e da moeda; os comerciantes, a princípio
desprovidos de poder, beneficiaram-se da ordem (bastante precária) gerada pelo feudalismo para
enriquecer e se proteger autonomamente nos burgos, cercados por muralhas, e a eles foram juntar-
se ali os servos fugitivos, que se tornaram artesãos e, por sua vez, aumentaram o volume das trocas.
Em suma, o trabalho prevaleceu sobre a força. O centro de gravidade das relações entre os homens
passou imperceptivelmente do castelo (do senhor feudal) para a cidade (dos burgueses), até o dia em
que o senhor, aos olhos de seu antigo servo, tornou-se um parasita inútil do qual foi preciso livrar-se
para chegar à prosperidade.

Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo
horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um
bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito
tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto,
já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em
comum encontram-se regularmente nesse café para “falar de filosofia”. E em número cada vez maior.

Na primeira vez não eram mais de dez. Foi em julho de 1992. Naquele dia, falamos da morte.
O que não estava previsto. Foi assim: Em breve aparição na rádio France Inter, durante a revista
cultural de sábado às 13h, eu havia comentado de passagem que aos domingos costumava me
encontrar com alguns amigos no Café des Phares para verificar em que pé estava a inauguração de
meu consultório da rue de Sévigné. Alguns ouvintes do programa concluíram que havia um “filósofo”
à sua disposição nas manhãs de domingo, para dialogar no café da praça da Bastilha… Assim, foram
até lá, rodaram um pouco pelo terraço e acabaram me encontrando. Entabulou-se uma discussão.
Alguém evocou as NDE (near death experiences), experiências de estados próximos da morte,
narradas em livros sensacionalistas por pessoas acidentadas ou reanimadas em situações extremas:
caberia denegri-las ou, ao contrário, prestar atenção nelas? Abordaram-se as questões do Além e da
decadência das civilizações, o prognóstico da morte do Sol, a eventualidade da morte do Universo etc.
O tempo passou muito depressa.

Na semana seguinte, alguns retornaram e outros apareceram por lá: falou-se da arte
efêmera. Um tema bizarro, levantado por ocasião de uma exposição surpreendente: uma artista fazia
esculturas de açúcar sobre as quais, todas as noites, derramava água… Aquilo era arte ou não? Em
geral, o artista almeja perenizar seu nome, produzindo obras o mais duradouras possível e,
idealmente, passíveis de imortalizá-lo: como qualificar de arte algo que visa ao efêmero? Ora, aquelas
esculturas eram tão belas que, uma vez desfeitas, desaparecidas, deixavam um longo rastro de
felicidade, a exemplo daquelas representações teatrais de que saímos com pesar. Recusar à arte o
direito de ser fugidia equivaleria a recusar ao ator ou ao diretor teatral o título de artista, reservando-
o unicamente ao autor! E o mesmo se daria com a ópera. Não é o teatro o lugar por excelência da
arte efêmera? Assim se desenrolou, meio lá meio cá, o segundo debate no Café des Phares.
Quem eram aquelas pessoas? Não sei. De situação modesta, discretas, até tímidas, não
compareciam para se impor, mas para trocar idéias. Lembro-me de um jovem casal que acabara de
se lançar na “criação de eventos” para a promoção de empresas com dificuldades de comunicação:
dir-se-ia que eram dois pombinhos, certos de se amar para sempre, à procura de bons materiais para
construir um ninho sólido, mas perturbados pelo barulho e pela fúria de tudo o que acontecia à sua
volta. Ainda me lembro de uma mulher mais velha, secretária de uma empresa de cosméticos, com
um longo passado de sindicalista, cansada mas de espírito muito forte, e que parecia ainda não haver
perdido por completo a esperança de tornar o mundo mais justo e mais fraterno. Os outros vão-se
esfumando em minha lembrança…

Na impossibilidade de guardar a imagem dos primeiros rostos, lembro-me esplendidamente


do debate seguinte. Fazia um tempo magnífico naquele domingo de outono, tão bonito que o terraço
do bistrô estava tomado de gente. Pois bem, uns quarenta fregueses tinham acabado por se
aproximar do pequeno núcleo inicial, até formar um círculo espantoso, cada um tomando a palavra
alternadamente e procurando se fazer ouvir, apesar do trânsito ao redor… O tema “O que é um
marginal?” fora proposto por um estudante ginasiano. Não era inspirador para todo o mundo e me
deu panos para manga. É que atingia em cheio todos aqueles que se recusam a adotar como regra o
que os outros denominam de “norma” e que muitas vezes conduz o homem a ser apenas o lobo do
homem. Num irreprimível arroubo de poesia contagiante, um orador tomou a defesa dos artistas
amaldiçoados por sua época, fazendo deles o fermento necessário de uma sociedade sempre por
nascer, na qual o homem possa enfim tornar-se não um lobo, mas um deus para o homem! Ele se
pôs de pé. Parecia um velho professor, muito elegante em seu terno de lã, com sua bengala, sua
barba e seus óculos, disposto a encerrar na beleza uma vida por demais conformista, como um belo
fruto que ninguém colheu e que procura cair por si mesmo, antes que seja tarde demais.

Esse debate foi realmente uma alegria. Inesperado, imprevisível, inaudito. Alguns amigos,
muitos desconhecidos, todos dispostos em círculo no terraço do Café des Phares, em frente à Ópera
da Bastilha, com a suavidade do veranico outonal, a cumplicidade do Sol… Mas a felicidade é sempre
precária: como perpetuá-la quando fecha o tempo? Foi o que se deu na semana seguinte: impossível
ficar do lado de fora! Tivemos que nos resignar a entrar. No fundo, bem lá no fundo do salão, havia
um banco comprido, que uma espécie de biombo separava do resto; ali nos refugiamos, portanto,
para abordar outro assunto. Acaso a alegria seria a mesma?

Narcisismo. O tema surgiu da situação, pois, confinados naquela sala dos fundos, cujas
paredes eram revestidas de espelhos, éramos diretamente confrontados com o prazer que alguns
tinham de se mirar neles, a ponto de se esquecerem dos demais. Assim, uma das pessoas que tinham
vindo “refletir” achou perfeitamente natural procurar inteirar-se mais do famoso mito de Narciso.
Chamava-se Martine. Era bonita, viva e irrequieta. Buscava um contato com a filosofia, mas era
visível que temia decepcionar-se mais uma vez. Eu estava atento a ela. Por acaso, acabou se
tornando assídua, a ponto de não mais nos separarmos… Nosso poeta não estava presente, mas seu
lugar foi prontamente tomado por um pequeno personagem de voz débil, impecável atrás de sua
gravata, bem penteado, grave, até mesmo afetado, funcionário estatal (do Ministério das Finanças,
creio). Possuía uma cultura ímpar em nossa pequena assembléia e apelava para uma doutrina hoje
tida por obsoleta, mas que, em sua época, deu a muitos a impressão de possuir as chaves do futuro:
a de Augusto Comte, o positivismo! Aliás, ele possuía as chaves de um lugar espantoso, bem no
coração do Marais, onde o positivismo continua a ter sua igreja (graças a um mecenas brasileiro),
lugar esse que um dia nos levou a visitar, uma vez estabelecida a confiança. Sua silhueta logo se
tornou familiar e, enquanto novos rostos iam aparecendo a cada semana, “Augusto Comte” esteve
entre os primeiros freqüentadores habituais.

Houve outros habitués que se afirmaram no correr das sessões. Menos doutos do que
“Augusto Comte”, sem dúvida alguma, menos precisos na exposição dos pontos de vista, menos
rigorosos no manejo da língua, mas igualmente cativantes: homens de quem sabíamos apenas o
prenome, mas que se empenhavam zelosamente em fazer o debate progredir – como Jacques, um
rapazola baixote e gorducho que se encolerizava tão lindamente em todos os encontros, que logo se
tornou indispensável para o bom humor geral; mulheres jovens ou muito menos jovens, que, sem
nada ficarem a dever no tocante à paixão, não hesitavam em ilustrar suas colocações com
experiências pessoais – como Antoinette, advogada de ofício, cuja franqueza impunha respeito a
todos. De uma semana para outra, o grupo era diferente, posto que ninguém tinha a obrigação de
comparecer. Mas estava dado o impulso e, ao ocupar suas instalações de inverno, o Sol não fez o
debate do Café des Phares entrar em hibernação.

Ao contrário! O grupinho refugiado na sala dos fundos do café não parava de acolher os
recém-chegados. Vez por outra, freqüentadores habituais do balcão na hora do aperitivo vinham
misturar-se ao debate em andamento. A princípio escutando distraidamente, decerto surpresos por
ouvir aquelas colocações num lugar tão pouco adequado, eles iam chegando e, quando não
agüentavam mais, pediam a palavra. Hei de me lembrar por muito tempo dos quatro blacks que um
dia pediram para entrar na brincadeira, um após outro, num impressionante crescendo de referências
de alto nível. Eram músicos, tinham tocado a noite inteira e, nesse começo de manhã, queriam
apenas tomar um último trago antes de dormir… Qual era mesmo o assunto? “O poder das palavras”,
creio; ainda revejo muito bem a cena, a sucessão daqueles quatro peritos no reggae, esgotados, mas
radiantes por intervirem no debate, por improvisarem um discurso carregado de densas referências
clássicas – uma espécie de “improviso” sobre o conceito.
Não obstante, a perenidade do debate nada tinha de certo. Sua forma livre e ingênua dava
margem a muitas tentações, as quais, caso se houvessem imposto, logo o teriam condenado. Em
primeiro lugar, o intelectualismo: a tendência ao exagero no registro da “seriedade”. Dado que se
tratava de “filosofia”, era importante, pensavam alguns, lidar apenas com os conceitos próprios dessa
disciplina, rechear o discurso de referências apropriadas e invocar Kant, Hegel e Heidegger, sob pena
de cair na trivialidade da discussão de botequim. Daí a só conceder a palavra aos que dominassem
esse tipo de saber seria apenas um passo, que eles se apressariam alegremente a dar. Diversos
oradores intervieram cronicamente nesse sentido, censurando-me por deixar que qualquer um
dissesse qualquer coisa…

Assim, foi preciso frustrar esse clã para dar aos outros o gosto pela filosofia. Os assuntos
eram escolhidos na hora, sem consulta prévia, e eu não tinha intenção nem vontade de propô-los eu
mesmo. Vinham me pedir para refletir de improviso, portanto estava fora de questão eu saber
antecipadamente do que deveria falar. A morte, a arte efêmera, o narcisismo, o poder das palavras,
nada disso tinha sido previsto e era muito melhor assim. Em pouco tempo, diversos temas
começaram a entrar em concorrência e realmente tivemos que decidir, que escolher um em
detrimento dos outros. Pois bem, esse foi um excelente meio de rechaçar a tendência de alguns
participantes a “elevar” subitamente o debate, sem que os preocupasse a idéia de verem seus
vizinhos confundirem-se rapidamente. Bastava eu escolher aquele dentre os temas que menos desse
margem a esse tipo de situação. Correndo o risco de enfurecer os “intelectuais” de visita ao lhes pedir
que se expressassem com palavras do dia-a-dia, era freqüente eu optar por um tema incomum na
esfera da filosofia clássica: uma frase banal, que a priori desse pouca margem à reflexão, ou uma
expressão corriqueira. Daí o debate sobre “A primeira vez”.

A primeira vez! No dia em que essa expressão foi proposta, senti-me um tanto
desconcertado, sem saber espontaneamente o que dizer. Mas, confesso, senti um certo prazer ao
observar o desamparo dos que tinham vindo para que falássemos do “Bem”, do “Direito”, do
“Estado”… Percebendo o pudor de uns e de outros, enquanto me vinham à mente ínfimas lembranças,
dei-me conta de que havia algo de paradoxal nessa formulação. De fato, à primeira vista, nada é mais
emocionante do que uma primeira experiência: é um momento importante e que, como tal, confere
interesse à vida – o primeiro dia de aula, o primeiro beijo, a primeira viagem ao exterior… Que
emoções! Quantas batidas do coração por conter, quanto desejo por temperar, quanta espera a
suportar, quanto medo a vencer, quanta angústia a sufocar, quanta repugnância a superar! Pois bem,
essa denominação, “primeira”, traz em germe a condenação do que ela mesma sugere, já que,
passada a primeira vez, vem a segunda, depois a terceira, e por fim não se conta mais; é a vida…
Perfila-se assim uma perspectiva desoladora: através da repetição da primeira vez, a experiência se
banaliza e, no final das contas, a morte se apodera do vivo, pois, afinal, o que é uma vez que já não
tem importância? A vida, portanto, torna insignificante aquilo que importava da primeira vez: a
repetição mata o interesse da vida. Por conseguinte, a vida é a morte!

Paradoxal em seu desenvolvimento, essa expressão revela-se ainda por cima contraditória. A
bem da verdade, o que acontece uma primeira vez é único. Assim, o primeiro beijo que se deu foi
dado uma vez só: longe de inaugurar uma série de experiências análogas, ele constitui um momento
de exceção que só tem sentido em relação ao passado e nenhum em relação ao futuro. Fez-se o que
não se fizera até então. A história divide-se em duas. Existem um antes e um depois. Logo, trata-se
de uma experiência que não pode se repetir; não pode haver uma “segunda vez”. Não se pode dar
um primeiro beijo duas vezes, assim como não se pode caminhar duas vezes na Lua pela primeira
vez. Por isso, stricto sensu, “a primeira vez” é uma formulação absurda, uma vez que dá a entender
que pode ser sucedida por aquilo que ela tornou impossível.

Tal constatação, estabelecida enquanto caminhávamos pelas lembranças de cada um, bastou
para me alegrar nesse dia. Os que participaram do debate perceberam que, partindo de uma
expressão anódina, era possível chegar a reflexões surpreendentes. De minha parte, fiquei perturbado
e radiante: perturbado por esbarrar naquele impasse, até então insuspeitado, e radiante por ter sido
levado a descobri-lo ao falar de improviso num café. Ainda mais que, remoendo essas idéias, percebi
que elas teriam divertido os antigos. Pelo menos alguns deles, com certeza, teriam sabido sair
prontamente do impasse. Como? Supondo que tudo o que acontece aqui já teria ocorrido uma
infinidade de vezes. Era o que pensavam sobretudo certos estóicos. Segundo eles, o cosmo, em seu
conjunto, nascia, desdobrava-se e desaparecia numa conflagração que era prelúdio de um novo
nascimento: na face da Terra, portanto, tudo estava fadado a reviver exatamente as mesmas coisas
do ciclo anterior. E isso deveria repetir-se sem parar. Para eles, esse era o melhor meio de não
afundar no desespero por ocasião de um infortúnio ou de não cantar vitória cedo demais quando o
destino era auspicioso – em suma, de conservar o sangue-frio perante o curso dos acontecimentos:
se tudo se repete eternamente e nos mínimos detalhes, nenhuma perda é irreparável, nenhuma
vitória é definitiva. A primeira vez? Para os estóicos, ela não existe, pois o tempo não é linear: qual
um círculo, ele passa e volta a passar ininterruptamente pelos mesmos pontos, de modo que, na
opinião deles, sem dúvida alguma, ninguém jamais deu um primeiro beijo…

Mas nem por isso a partida estava ganha. É que, uma vez abertas as comportas da
experiência pessoal – uma experiência necessária para justificar uma afirmação e atestar que se está
progredindo de maneira a obter a adesão dos outros ou, ao contrário, sua objeção em nome de uma
experiência inversa -, o debate do Café des Phares poderia mergulhar rapidamente num desabafo de
problemas pessoais: a fórmula “no que me diz respeito” poderia se tornar a lei, o que seria uma
calamidade tão fatal quanto a tendência ao cenáculo por parte dos adoradores do conceito. O debate
sobre “A dependência” permitiu encontrarmos a resposta para o problema.

Com esse tema, evidentemente, a fórmula “no que me diz respeito” tinha caminho livre. A
pessoa que o levantara sofria flagrantemente por não ter sabido libertar-se do domínio do “outro”.
Havia uma comoção no ar e o clima era intensamente psi. Para a maioria dos participantes, era óbvio
que a “dependência” estava ligada à patologia: significava que o eu não havia atingido a maturidade
ou que se refugiava numa relação mórbida com o outro, por medo de sua liberdade. Sem dúvida,
havia uma multiplicidade de razões para isso e uma infinidade de casos ilustrativos, mas, se havia
uma coisa certa, era que se tratava de uma doença, cujo tratamento entrava na alçada da corporação
dos médicos e psicólogos!

Pareceu-me oportuno, nesse dia, fazer referência a Hegel, a fim de abalar esse consenso. Já é
fácil observar que a dependência de um ser humano em relação a outro pode ser considerada uma
fase durante a qual se prepara a emancipação do “dependente”, o qual, sem esse momento de
subordinação, não poderia acumular as forças necessárias a sua autonomia. Podemos pensar, nesse
ponto, na relação da criança com os pais: a criança tem que passar pela obediência e pela submissão
para, um dia, por sua vez, tornar-se adulta. Foi essa evidência que Kant utilizou para levar seus
contemporâneos a ouvirem a mensagem do Iluminismo: é chegado o momento de os povos modernos
se tornarem adultos, pois faz séculos que estão sob a autoridade da Igreja e da monarquia… Hegel,
porém, vai ainda mais longe. Mostra que até a relação entre senhor e escravo é “dialética”, ou seja,
constitui em si mesma um fator de progresso, é uma força motriz da evolução das relações sociais. O
que equivale a dizer que ele faz o imperativo moral de Kant passar para a condição de lei inerente à
história humana: não apenas é hora de os povos subjugados se livrarem de qualquer tutela, como
também o curso dos acontecimentos lhes é favorável.

A referência a Hegel permite sair do terreno da patologia clínica, em prol de uma visão
histórica do destino das coletividades humanas. Há momentos em que a dependência é realmente
uma coisa boa, de vez que, num confronto, mesmo intenso, ela permite preservar a vida: quando o
vencido, fazendo pouco de sua honra, concorda em se colocar a serviço do vencedor, ele tem todas as
possibilidades de ser poupado. É esse o cenário celebrizado da “dialética do senhor e do escravo”,
exposta por Hegel em 1807 na Fenomenologia do espírito, no livro I, capítulo II, sob o título de
“Independência e dependência da consciência de si”. Ali vemos “aquele cuja vida foi preservada”
preferir esta última à liberdade e se tornar escravo daquele que o venceu; inversamente, vemos o
vencedor tornar-se senhor daquele a quem preferiu não matar. Pois bem, as coisas não param por aí.
Conforme o combinado, o escravo passa a trabalhar para seu senhor e, com isso, a se afirmar
indispensável, dentro de pouco tempo, enquanto vai adquirindo o controle das coisas. Sem trabalhar
para viver, o senhor logo se torna dependente do trabalho do escravo, no momento mesmo em que
este, havendo partido do nada, torna-se o criador das condições de vida do senhor e das suas
próprias, uma vez que é ele quem as assegura. Chega o dia em que o escravo pode considerar que o
senhor é supérfluo – e se livrar dele…

A questão da dependência, portanto, é muito mais rica e muito mais complexa do que a
psicologia clínica nos permite apreender. Ademais, a história não se deteve por aí: não somente essa
teoria teve imenso sucesso na época do próprio Hegel, pois deu ao Aufklärung – ao Esclarecimento –
uma legitimidade decuplicada, como também foi incorporada por outros pensadores, pouco depois,
para que justificassem sua própria visão da história. Assim foi que Marx serviu-se dela para anunciar
a emancipação do proletariado: sendo a classe trabalhadora a classe operária por definição, aquela
que garante as condições de vida de seu senhor (o burguês, o capital), o esquema hegeliano deveria
ser-lhe aplicado em primeiríssimo lugar. Em muito pouco tempo, isso fez com que um bom número de
pessoas que haviam aplaudido Hegel mudasse de idéia. Pautados na identificação do “progresso” com
o trabalho, os socialistas se apropriaram da dialética hegeliana em detrimento dos abastados e dos
novos-ricos, que haviam acreditado que ela os protegia de qualquer crítica conservadora e que, por
conseguinte, sentiram-se desde então fortemente tentados a mergulhar no pessimismo. Levantar o
problema da dependência, portanto, é passar do singular para o universal, de meu uso pessoal da
liberdade para o da humanidade inteira. Nessa mudança do centro de gravidade, a interrogação passa
por uma fase histórica: trata-se de indagar se existe na história dos homens um momento em que a
humanidade inteira possa considerar-se adulta e se esse momento já ficou para trás ou se ainda
estamos à sua espera. E, nessa investigação de grande envergadura, convém delimitar o exame por
partes, para saber se o que importa é o “momento” de Hegel ou o que foi designado por Marx.

Vê-se que estamos redondamente enganados quando nos comprazemos com a fórmula “no
que me diz respeito” e verificamos que o livre exercício da fala num debate de bar não implica a
ditadura da comoção, por menos atenta que esteja a razão. No entanto, isso não obriga a uma
confissão pública de culpa quanto ao conteúdo “teórico” requerido das intervenções. Não é pelo fato
de eu conhecer Hegel que aqueles que não o conhecem devem ficar calados e se contentar em ouvir.
Citar Hegel não é bloquear o outro, mas, ao contrário, é sugerir-lhe uma pista, convidá-lo a uma
leitura pessoal desse autor, a entrar na Fenomenologia, porém com simplicidade, da maneira
adequada, isto é, formulando ao filósofo a questão debatida no café naquela manhã. Citar Hegel
tampouco é fazer uma alusão, deitar um olhar significativo aos conhecedores, marcar que se pertence
a um clã. Ainda mais que, no caso, não existe consenso. A alusão não basta. A maioria dos
professores de filosofia acompanha Marx, sem torcer o nariz, quando ele traduz “senhor” por
“burguês” e “escravo” por “trabalhador”, fazendo da fábula hegeliana o relato codificado da história
moderna; outros vêem nisso uma falta de discernimento e tentam restituir a essa história um sentido
muito menos histórico, chegando até a sugerir que, a rigor, ela não tem nada a ver com as categorias
sociais e que tudo se passa no “espírito”, cujas metamorfoses Hegel expõe. Quando nos servimos
dessa “dialética”, portanto, não podemos agir como se sua significação fosse uma evidência.

Tristes das piscadelas entendidas! Esse debate sobre a dependência ofereceu-me, pela
primeira vez, a oportunidade de testar em público a maneira como eu mesmo encarava essa coisa.
Lembrei que Hegel se exprimira na língua alemã… Aquilo que traduzimos por “mestre” é designado
por Hegel através da palavra Herr, que significa, antes de qualquer coisa, “senhor”; o que traduzimos
por “escravo” é o que Hegel chama de Knecht, ou seja, “criado” ou “servo”. Portanto, achamo-nos
numa configuração ainda muito mais histórica do que a proposta por Marx: a meu ver, Hegel designa
na Fenomenologia a passagem do feudalismo para o capitalismo. O “senhor”, aquele que dirige a vida
do vencido, é o senhor feudal, saído das grandes invasões e que se apropriou da terra e dos que nela
trabalhavam; o “escravo” é o servo, o vencido naquele caos gigantesco, que perdeu sua liberdade sob
o impacto das hordas germânicas: assim, o servo colocou-se a serviço do senhor feudal, que em troca
passou a protegê-lo do risco de novas invasões (escandinavas, ao norte, mouras, ao sul, e hunas, a
leste). O que chamamos “dialética do senhor e do escravo”, portanto, é o processo pelo qual o servo
ocidental veio a se emancipar do jugo do seu protetor, o senhor germânico.

Esse processo passou pelo trabalho e, acima de tudo, pela circulação das mercadorias
provenientes do trabalho. A princípio incondicionalmente restrito à gleba e às muralhas do senhor
feudal, o servo, com efeito, aos poucos passou a dispor dos meios para conquistar sua liberdade. Isso
porque, no correr dos séculos, o dinheiro voltou a circular. O comércio, por muito tempo estagnado
em ponto morto, reativou a circulação das mercadorias e da moeda; os comerciantes, a princípio
desprovidos de poder, beneficiaram-se da ordem (bastante precária) gerada pelo feudalismo para
enriquecer e se proteger autonomamente nos burgos, cercados por muralhas, e a eles foram juntar-
se ali os servos fugitivos, que se tornaram artesãos e, por sua vez, aumentaram o volume das trocas.
Em suma, o trabalho prevaleceu sobre a força. O centro de gravidade das relações entre os homens
passou imperceptivelmente do castelo (do senhor feudal) para a cidade (dos burgueses), até o dia em
que o senhor, aos olhos de seu antigo servo, tornou-se um parasita inútil do qual foi preciso livrar-se
para chegar à prosperidade.
Prova para o filósofo, esse debate no café é um teste para a filosofia. Trata-se de uma
situação experimental que permite saber se a filosofia serve para aquilo que pretende. Ela pretende
alçar seus adeptos acima dos preconceitos. Para além do desafio pessoal a que o filósofo se vê
submetido, essa é sua oportunidade de comprovar que sua disciplina é boa e que convém seguir-lhe o
caminho, que é melhor fazer isso do que se contentar com as opiniões dominantes. Imerso no banho
das preocupações de todos, o método filosófico deve mostrar que pode efetivamente vencer a doxa, a
opinião, pública ou não, mesmo ataviada com os adornos da ética.

Isso não implica que a filosofia esteja ininterruptamente na defensiva, que tenha de
responder incessantemente por sabe-se lá que pretensão à supremacia sobre os intelectos. Ao
contrário! Filosofar é, antes de tudo, escutar. O filósofo não é aquele que detém a resposta para todas
as perguntas. É aquele a quem as respostas já dadas, as respostas que predominam, ou as rivais
delas, intrigam. É aquele que interroga, aquele que, stricto sensu, repõe em questão o que se faz
passar por solução. A bem da verdade, quando realmente exerce sua arte, ele tem de estar, antes de
tudo, à escuta do que é dito. Por isso é que, pensando bem, ele tem pouca probabilidade de ser
realmente apanhado desprevenido, pois funciona como um ajudante. O filósofo põe em dúvida aquilo
que parece evidente, indubitável, ou que se afirma como mais eficaz, que exibe sua superioridade em
relação à opinião dominante, à opção mais comum. Mesmo ultrapassado pelos acontecimentos,
mesmo submetido à pressão dos meios de comunicação, ele consegue, sem grande dificuldade,
recolocar o sentido da troca de idéias a seu favor, uma vez que não pretende ser o detentor pessoal
da verdade. Ele não jura nada. Não tem certezas. Ou então, é provocador – e, nesse caso, é ele quem
lança o desafio. Assim, mesmo quando sou apanhado na armadilha de minha confusão, como na
história da defasagem, mesmo quando sou confrontado com a urgência, como no caso da ingerência,
com isso me arriscando a fazer um papel triste, as contribuições dos “outros”, de todos aqueles que
freqüentam os debates, permitem que eu me recoloque numa posição conveniente. Pois a boa posição
do filósofo não está em afirmar, mas consiste em interrogar.

Sucede que, a propósito de todos os assuntos, muita gente tem muitas coisas a dizer. No bar
como noutros locais ou talvez mais do que em outros locais. Portanto, trata-se de um lugar ideal para
submeter ao crivo da razão as opiniões mais difundidas e mais variadas; ao solicitá-las, posiciono-me
da maneira adequada. Esse é o “momento” pelo qual é preciso passar, imperativamente, para que a
reflexão prepondere sobre a crença. Filosofar é tomar distância em relação ao que se faz e ao que se
diz. Assim, é bem mais natural para o filósofo intervir em segundo lugar do que em primeiro. Sua
intervenção requer o já feito e o já dito. E é por isso que ajo de maneira a que aqueles que propõem
um tema sejam os primeiros a falar e, por assim dizer, solicito outros defensores. No que concerne a
um assunto, há sempre ao menos uma causa a defender, amiúde muitas mais. Tantas quantas são
expressas, por conseguinte, por seus defensores. Assim, muitas vezes as dificuldades emergem por
si, com os oradores entrando inevitavelmente em conflito uns com os outros. Cabe-me então
evidenciar essas posições, torná-las patentes, colocar a assembléia em sintonia com isso e requerer
dela uma solução ou a admissão de que há ali uma contradição irredutível, pelo menos até aquele
ponto, ou seja, dentro dos limites do nosso debate.

Julguemos nós mesmos, com a ajuda de alguns exemplos.

Debate de 9 de maio de 1993: “Tomamos decisões ou somos tomados por elas?”

Eis um verdadeiro problema. Talvez nos iludamos ao acreditar que tomamos decisões. Decidir
é, aparentemente, fazer uma escolha entre diversas possibilidades de ação e fazê-la com
conhecimento de causa, isto é, ter boas razões para isso: decidimos ir votar (ou ir pescar), casar-nos
(ou não), ter filhos (ou não), matar (ou nos refrear para não fazê-lo). Mas, que garantia temos de que
a decisão já não foi tomada antes que a tomássemos em plena consciência? Não será ela, mais
propriamente, o resultado do trabalho de nossa intuição, nossos desejos, nossas pulsões e nossos
instintos, como já sugeria o dr. Freud? Não somos nós, na verdade, tomados por nossas decisões? A
autonomia decisória é ainda mais problemática, na medida em que uma multiplicidade de forças
externas nos mantém sob seu jugo desde a mais tenra infância: nosso lugar na família, nossa
educação, nossa história coletiva; como podemos ter a pretensão de usar nosso livre-arbítrio ao
tomar decisões? Acrescentemos a isso algumas forças mais obscuras, que, sob nomes variados –
“acaso”, “fatalidade”, “vontade divina” -, são passíveis de agir sobre o curso de nosso destino sem
que o saibamos! O que resta, no final das contas, da capacidade de decidirmos por nós mesmos?

Nesse ponto, Sartre protestaria. E teria toda a razão: sem dúvida é importante que nosso
livre-arbítrio não seja um engodo, se não quisermos mergulhar na irresponsabilidade, na superstição
e na animalidade. Mas qual é a consistência dessa preciosa faculdade? Haverá em nós um arbítrio que
preserve a razão, no confronto das forças que estão presentes dentro e fora de nós? Os maiores
nomes da tradição cristã contestam isso: Paulo, Agostinho e Lutero negam o livre-arbítrio, a tal ponto
se revelaram inúteis os seus esforços de resistir a suas pulsões, em particular as sexuais, sem o
auxílio da “graça” divina. Quanto à tradição grega, ela veicula, por intermédio de seus poetas, a
convicção de que o homem nada pode contra o destino que os deuses e as moiras lhe reservam.
Não nos apressemos, pois, em decidir a questão: conviria, previamente, fazermos uma
comparação com essas antigas crenças. Filosofar não é outra coisa. Mesmo que, nesse processo,
sejamos “decididos” por pulsões animais ou pela pressão da transcendência, tomemos ao menos esta
decisão!

Debate de 16 de maio: “Temos o direito de negar as evidências?”

“Eppur si muove!”, diria Galileu à saída de seu primeiro processo: “Ainda assim, ela gira!”

Estava falando da Terra e de seu movimento – seus movimentos – no espaço. Sob a demanda
premente da cúria romana, acabava de renegar a doutrina heliocêntrica, segundo a qual a Terra,
longe de ser o centro do mundo, não passa de um planeta como outro qualquer, em rotação diuturna
em torno de seu eixo e em rotação anual em torno do Sol.

Galileu negava a evidência. A evidência é que a Terra não gira. Deixemos de lado as
referências bíblicas, das quais a Inquisição fez um uso implacável (tendo sido reveladas pelo próprio
Deus, como poderiam elas enganar-nos?). Resta a experiência incontestável, ao alcance dos comuns
mortais: não vemos a Terra se mexer. Na trilha de Copérnico, portanto, Galileu precisava não apenas
opor-se à palavra divina, mas também… à evidência. Era-lhe preciso opor-se ao testemunho direto
dos sentidos, em particular do sentido favorito dos seres humanos, a visão. Ele tinha que negar o que
todo o mundo vê, ou seja, que o Sol se move, como os demais astros, e que a Terra permanece
imóvel.

Ora, a história não é tão simples assim! Se às vezes é preciso negar a evidência para sair da
ignorância, acaso esse direito (que pode ser um dever) é absoluto? Será que sempre convém negar a
evidência? Se devo desconfiar da tradição, devo negar que 2 e 2 são 4? Se devo rejeitar o
testemunho da visão, porventura posso negar que, neste momento, estou trabalhando diante de uma
janela que dá para um pátio? No primeiro caso, tornar-se-ia impossível eu entrar em acordo com
meus semelhantes quanto ao cálculo mais ínfimo; no segundo, eu não desfrutaria por muito tempo do
prazer da companhia deles, se, morando no sexto andar, fosse tomado pela fantasia de declarar que
minha janela é uma porta…
Aliás, quando, cessando qualquer operação e qualquer movimento, eu quisesse duvidar de
tudo, não conseguiria duvidar do fato de que duvido. Há nele uma evidência propriamente
indubitável. Não posso duvidar que duvido, pelo menos no exato momento em que duvido. Faz muito
tempo que Descartes nos convida a essa experiência em suas Meditações metafísicas: trata-se da
descoberta do cogito. Coisa que restitui à evidência seu sentido mais simples e mais forte: é evidente
aquilo que não pode ser negado.

Na verdade, na experiência da própria ilusão há alguma coisa dessa ordem. Quando vejo o
Sol se pôr, por mais que eu saiba que é a rotação da Terra que me dá essa impressão, não posso
impedir-me de vê-lo pôr-se. Estamos todos no mesmo barco: nem mesmo Galileu e Descartes viam
com seus olhos aquilo que sabiam, ou seja, que é a Terra que gira.

O que equivale a dizer que nossos problemas ainda não acabaram. Claro, é preciso saber
negar a evidência para chegar à verdade, mas não se pode erigir essa máxima numa exigência
absoluta. Para a experiência, isso se revela impossível: não posso negar que vejo o que vejo. Numa
lógica rigorosa, aliás, isso seria uma contradição em termos: não posso negar o que não pode ser
negado. E, de quebra – se nos detivermos nisso por mais um instante -, isso autorizaria qualquer
imbecil de má-fé a contestar peremptoriamente que a Terra se move.

Debate de 30 de maio: “Existe o dever de irar-se?”

Nada é menos moral, aparentemente, do que um homem irado. Ele age como um cego,
dando livre curso a sua violência. Isso é ainda mais patente quando se trata de uma multidão: ao se
irar, ela esquece qualquer noção do bem e do mal, enfurecendo-se até fazer emergir a bestialidade
que habitualmente dormita no ser humano. Assim, parece fora de questão pensar em fazer da ira um
“dever”. Ainda mais que a ira é uma paixão: nada a domina. Quando fico irado, é porque alguma
coisa me deixa fora de mim; Descartes diria que isso acontece no tocante ao corpo e não ao espírito.
As paixões atestam que pertencemos ao mundo animal: ficar encolerizado nada tem de humano,
literalmente, e, portanto, não pode ser objeto de uma ordem moral.

Resta saber em que nos transformaríamos se conseguíssemos dominar sistematicamente


nossas cóleras. É sumamente provável, na verdade, que não mais fôssemos dignos do nome de seres
humanos. Dissimular a ira quando a injustiça prolifera, quando impera a burrice, quando o absurdo
impõe sua lei, é colocar-se aquém do limiar de tolerância: em nome do autodomínio, portanto, corre-
se o risco de ser transformado num covarde ou num impotente. Nesse caso, já não é aquele que solta
as rédeas de sua ira – nem que seja para agir mal, ser cruel e imoral – que é “cego”, mas aquele que
as refreia.

Debate de 6 de junho: “É possível escapar à ambigüidade?”

Existem palavras sábias e palavras sabão. Umas servem para que ganhemos visibilidade,
outras, para esfregarmos os olhos até enxergar com mais clareza. Ambivalência é uma palavra sábia
e uma palavra sabão. Basta nos molharmos um pouco para, graças a ela, decodificarmos a condição
humana, uma vez que, como se sabe perfeitamente, todos somos a um tempo homem e mulher – os
chineses dizem yin e yang – e oscilamos sem parar entre esses dois pólos do ser. O problema é que
essa ambivalência tem seus concorrentes e muitas outras tensões se revelam quando procuramos
direito. De fato, o ser humano também se dilacera entre o instinto e a razão ou entre o corpo e o
espírito, no dizer de alguns. Oscila entre abstrair-se da natureza e retornar ao seio dela. Mais ainda, a
ambigüidade manifesta-se em algumas fases da história, como no Antigo Regime, quando o
capitalismo enfrentou o feudalismo. Aliás, toda a história dos homens poderia ser interpretada dessa
maneira. E também a própria natureza: afinal, não é ela que é ambígua? Não foi ela que criou o
homem à sua imagem? Tanto que, quanto mais nos servimos dela, menos controle temos da palavra
“ambigüidade”. Chega então um momento em que, como um sabonete, o conceito acaba por… nos
escapar.

Debate de 20 de junho: “Como reconhecer a sombra de uma dúvida?”

Muitas vezes, os jurados de um processo não têm a menor sombra de dúvida: o réu é
declarado culpado… Quantas vezes já se proferiu essa sentença? Quantas vezes por dia ela é
proferida? Para tomarmos apenas as nações democráticas, onde o réu tem todas as probabilidades de
poder defender sua causa, que há de mais normal do que condenar aquele contra quem se acumulam
as provas? Quer ele seja culpado de uma simples malversação ou de um crime, a sentença é proferida
quando as provas do delito se fazem presentes.

A dúvida surge (infelizmente, na opinião dos jurados) com igual freqüência. Nem todo réu é
culpado: as aparências podem ter-lhe pregado uma peça; nesse caso, um advogado comum já terá
tratado de deslindar a história. Mas, mesmo sendo realmente culpado, um réu pode ser inocentado
pelo benefício da dúvida, por menos complexo que seja o caso, por mais escabrosas que sejam as
provas e mais esplêndido o promotor. A dúvida depõe a favor do réu. Na dúvida, os jurados devem
declará-lo inocente.

A pergunta, portanto, sob seu véu de poesia furtiva, levanta um problema de justiça. Mas
será que isso faz dela uma questão exclusiva dos juristas? É lícito duvidar. Bastaram três ou quatro
séculos para que a lenda de Adão e Eva constituísse, aos olhos dos romanos, a prova mais
convincente da culpa do homem. O cristianismo fez tais e tantos progressos que sua doutrina do
pecado se impôs e a causa dela se fez entender: a natureza humana foi considerada má, a “carne” foi
tida como fonte de todos os pecados e os infortúnios que se abatiam sobre os povos do Ocidente
passaram por uma expiação. Foi preciso aguardar o Renascimento para que esse processo fosse
reaberto: surgiu então uma dúvida sobre o crime e a investigação foi retomada com seriedade. Desde
então, tantos filósofos do Iluminismo fizeram a defesa do homem que, em pouco tempo, sua
inocência foi gritante: “A humanidade é inocente!”, clamamos nós, por nossa vez. Mas uma sombra
tão escabrosa invade nosso planeta que ainda hoje estamos por comprovar nossa “impecabilidade”…
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

PRIMEIRA PARTE
ONDE ESTAMOS?

III
O consultório

Que futuro tem esse debate? Será que é um fenômeno fugaz, tão limitado no espaço quanto
no tempo? Cem, 120 ou 150 pessoas são muita coisa num bar. Mas são muito pouco em termos
absolutos, em comparação às missas da Notre-Dame ou aos concertos de Bercy. Aliás, qualquer ofício
religioso e o menor dos concertos de subúrbio atraem um número incomparavelmente maior de
pessoas do que a filosofia no Café des Phares.

Por isso, alguns jornalistas, intrigados com esse fenômeno, não hesitaram em classificá-lo na
categoria das novidades divertidas, sem conter sua ironia em relação aos que sentiam necessidade de
participar dele. “Marc Sautet lançou uma nova moda: a da ginástica de cerebelo”, lia-se numa fonte.
“Depois do esporte na calçada e do amor na alcova, é chegada a hora da filosofia de balcão”,
esclarecia o artigo dedicado ao “Sócrates de brim”. “Que pensar dessas reuniões discretas?”, lia-se na
coluna de “moda” de um semanário. “Testemunham uma revanche das letras, uma espécie de
antídoto racional contra o consumismo dos índices de audiência? Ou serão igrejinhas na moda para
privilegiados perdidos? Ou, o que seria ainda mais triste, uma terapia de grupo nos banquinhos e sem
dor?” Evocando algumas iniciativas análogas a “essa conversa filosófica semanal”, como a taberna La
Victoire, em Estrasburgo, a jornalista pareceu hesitar: “É um pouco de tudo isso, com certeza.” E
depois, no fim das contas, abriu o jogo sem rodeios, como que saindo de banda: “É o advento da
cultura ‘self-service’. Sem outra serventia senão a que é ditada por suas próprias questões sobre a
vida. Frescura.”

Como se refletir em comum sobre os destinos de nossa civilização fosse um crime contra a
cultura! Como se a cultura já não fosse um self-service! Como se a conversa inovasse alguma coisa
nesse aspecto! O que é ir ao teatro, ao cinema ou ao museu senão efetuar uma escolha em meio à
incontável oferta de fragmentos de respostas produzidos para dar sentido ao destino humano? Mesmo
quando a multidão se comprime na Notre-Dame, não escapa do auto-serviço, pelo menos desde a
vitória das Luzes sobre o obscurantismo medieval. E, quando milhares de fãs se inflamam em Bercy à
passagem do seu deus vivo, se acreditam estar fugindo do velho mundo é justamente por estarem no
auto-serviço. Qualquer missa comum de província, qualquer concerto modesto, qualquer sessão de
terapia de grupo e até qualquer programa de televisão faz parte do auto-serviço da cultura: quer eu
me apóie num rebanho de fiéis, num cortejo de bacantes ou num grupinho de iniciados, quer ingira a
domicílio minha pilulazinha, quer vá ao Café des Phares ou me contente em ler uma revista, estou
utilizando em serviço próprio a cultura que me é oferecida. A menos que ir verificar o que conversam
as pessoas bem informadas e ficar seguramente submetido à moda não seja “agir como todo o
mundo”; mas, nesse caso, em que é que as novas “conversas” constituiriam um “advento”, uma vez
que todas as formas de cultura conhecem essa mania? Na verdade, o simples fato de se comprar um
livro, de se comprar o livro preferido, ficaria exposto a essa crítica perniciosa; quando compro, estou
servindo a mim mesmo, em função de minhas necessidades do momento. Ou será que devo esperar
que o vendedor me indique o que devo comprar? Que nostalgia de feirante foi encontrar palavras para
denegrir a saída da filosofia das lojas finas em que ela era vendida até aqui?

No procedimento daqueles que intervêm no bar costuma haver uma vontade de expor um
ponto de vista e saber que valor ele tem. Minha presença é uma oportunidade de submeter a opinião
deles à veemência de uma crítica que dispõe à vontade dos recursos da tradição filosófica. Reputam-
me como tendo a capacidade de testar convicções e faço o melhor possível para cumprir minha
tarefa. Esse debate, portanto, constitui uma operação através da qual a filosofia resgata sua função
inicial: aquém do ensino ex cathedra, ela contribui para expor às claras as contradições veiculadas na
opinião pública. Por conseguinte, os jornalistas mais teriam a ganhar passando a intervir na
discussão, eles mesmos, do que procurando denegri-la.

Ainda mais que essa operação de expor às claras comporta um verdadeiro suspense. O que
está em jogo é simples e exato, porém de importância capital: trata-se de saber se ainda convém ou
se já não convém confiar na razão. Se ainda convém ou se não mais convém apostar na democracia.
Na postura das pessoas que vêm refletir juntas no café, estou convencido, existe essa interrogação.
Paira uma dúvida sobre nossa capacidade de atingir a prosperidade prometida e é marcante a
tentação de renunciar. Como falar de modismo, nesse caso? Também eu me interrogo. Também eu
estou carente. Também eu preciso saber. Também eu preciso pôr as coisas em pratos limpos. E a
“conversa filosófica semanal” me permite enxergar com mais clareza. Obviamente, a resignação ainda
não levou a melhor. E, vez por outra, quando ela envereda por caminhos deturpados, ainda me
parece possível impor-lhe o respeito.
Assim, tomemos a ironia e a apologia de que tem sido objeto, em caráter quase unânime.
Para meu grande espanto, a maioria das pessoas presentes nesse dia via na ironia um meio
excelente, senão o único, de sair da tristeza da época – decerto na esteira dos “espetáculos tipo
besteirol” e dos “patetas da informática”. É fato que, quando nos aborrecem ou nos magoam,
gostaríamos de ficar sempre impassíveis, agir como se nada houvesse e tratar o impudente com
desprezo. Quando muito, soltar uma frase espirituosa, dita com convicção, para fulminá-lo com nossa
ironia, como certo estóico da Antiguidade: enquanto lhe torciam o braço, ele avisou a seu verdugo
que o braço ia quebrar-se – o que de fato aconteceu; então, simplesmente acrescentou: “Está vendo,
bem que o avisei!” Não há dúvida de que o carrasco sai perdendo e a vítima sai moralmente vitoriosa
nesse tipo de confronto: ao ridicularizar o uso da violência a que é submetido, ao transformá-lo em
escárnio, o estóico nos faz confiar na superioridade do homem sobre a besta. A ironia, portanto, com
seu cortejo de sarcasmos e sua corrente de humor, poderia, se dela nos tornássemos adeptos, abrir
caminho para a supremacia da inteligência sobre a estupidez.

Apesar de uma antiga ternura pelo estoicismo, porém, permito-me enunciar certas reservas.
Nem por um instante duvidei que todos estivéssemos dispostos a deixar que nos picassem em
pedacinhos para dar uma lição de humanidade aos brutos grosseiros que nos cercam, mas gostaria de
reexaminar as condições desse confronto. Quem recorre à ironia fica numa posição de fraqueza: a
relação de forças não lhe é favorável – provisoriamente ou em longo prazo. O filósofo evocado há
pouco era escravo: seu senhor detinha sobre ele um poder de vida e morte. Mais próximo de nós, o
mestre da ironia, Voltaire, era súdito do rei da França e tinha de se submeter à onipotência da
“infame” igreja católica; Victor Hugo teve que esperar quase vinte anos pela queda do Segundo
Império. A ironia, portanto, queiramos ou não, é a arma dos fracos. Não que ela não implique uma
certa coragem, mas é uma forma de luta adotada por quem está sob o jugo da lei de outrem.

Para que eu exclame incondicionalmente “Viva a ironia!”, é preciso, pois, que me mostrem
que essa arma é passível de inverter a relação de forças. Porque da fraqueza à capitulação há apenas
um passo. Ora, a ironia me parece ser utilizada, em geral, por quem não espera inverter a relação de
forças, a curto ou médio prazo, a seu favor, ou a favor da “justiça” ou do “bem comum” – por quem
está de fato reduzido à impotência e, para manifestar sua convicção de ser superior, dispõe apenas da
mordacidade das palavras. Assim, pode ser que ele se console, mas as coisas continuarão como
estão: uma vez quebrado seu braço, nosso filósofo grego continuou a ser escravo como antes.
Resignara-se a isso de antemão, como Voltaire à perpetuação do Antigo Regime e Hugo ao império de
Napoleão, “o pequeno”.
Admitamos que a burrice ou até a brutalidade imperem hoje como mestras. Fazer uso da
ironia como arma por excelência, portanto, seria admitir a supremacia delas. Com isso
preservaríamos, é claro, a herança da inteligência e da humanidade, a fim de transmiti-las às futuras
gerações. Mas, no plano imediato, teríamos de contentar-nos em fustigar as duas primeiras
verbalmente. Numa palavra, capitularíamos. Ora, não tenho certeza de que seja preciso chegar a
tanto. Designar como hegemonia da burrice e da brutalidade todos os flagelos que nos são infligidos
pelo sistema dominante já me parece ser uma resignação: uma espécie de esgotamento, de cansaço,
justo ali onde o trabalho de análise é mais importante do que nunca – uma resignação que a ironia
talvez torne sublime, mas que, a meu ver (até segunda ordem), continua a ser prematura.

Por certo haverá quem diga que a ironia merece mais consideração, que raríssimos são os
que a praticam com o virtuosismo necessário e que é preciso defendê-los incondicionalmente. Mas
isso seria pura e simplesmente contraditório. Como? – assumir a defesa dos virtuoses da ironia? Dar-
lhes razão? Impossível: isso equivaleria a levar a ironia… a sério.

Frente a tal desafio, portanto, “a filosofia de balcão” pode ter uma certa virtude. De fato,
muitos jornalistas perceberam isso. Frente aos céticos, muitos chegaram até a demonstrar um
autêntico entusiasmo por esse aparecimento e contribuíram amplamente para a continuação da
aventura. Alguns comentários no rádio, um artigo na Télérama, uma página inteira do Nouvel
Observateur e estava criada a reputação do Café des Phares: compararam-no ao Café de Flore, uma
vez que ele retomou a tradição da filosofia no bistrô. A maioria dos jornais, das mais variadas
tendências, deu seu palpite sobre o assunto. Uns se regozijaram: “A filosofia deixa as esferas etéreas
da universidade e desce à rua”: boa notícia, existe um lugar onde os “universitários admitem ser
contestados por interlocutores que não estudaram filosofia!” Noutro, sob o título “Paris descobre os
tratamentos de Platão”, não hesitaram em anunciar: “Aí está, portanto, a aprendizagem da sabedoria
de volta à praça pública.”

Resta saber por que essa abordagem não foi unânime. Embora os jornalistas sejam os
primeiros a deplorar a “perda de referenciais deste final do século 20”, como foi que alguns sentiram
necessidade de empanar uma tentativa que oferece ao cidadão da rua o meio de “se formular as
perguntas certas” e que dá à filosofia uma oportunidade de resgatar sua vocação?

É provável que a resposta esteja menos no medo de uma nova forma de esnobismo do que
no de um desvio mercantilista. Mesmo nos meios de comunicação, há quem não queira ser enganado
pelas aparências. Enganado por uma nova moda, é claro, mas sobretudo enganado por uma
manipulação. Isso porque, para falar com toda a clareza, havia quem desconfiasse da existência, por
trás da fachada desinteressada do debate, de um “bom negócio”. Assim, num encarte inteiramente
dedicado a minha pessoa, a jornalista do Point julgou poder descerrar os véus do mistério: primeiro,
lembrou que eu havia esperado em vão por um cargo na universidade; que, em 1989, “o prestigioso
Instituto de Estudos Políticos de Paris” me confiara “um curso do terceiro ciclo ‘sobre os grandes
desafios do debate político’”; que, por ocasião desse “encontro com os servidores do poder”, ali onde
eu esperava deparar com “mentes empanturradas de referências mas pouco habituadas a escutar”,
eu pudera, ao contrário, estabelecer “um diálogo fabuloso, graças ao qual havia descoberto algumas
cabeças totalmente desarvoradas, à procura de um sentido”; e então, sem rodeios, ela acrescentou:
“E, como professor de filosofia também tem tino comercial, além de alguns colegas na publicidade e
um amigo no marketing, ele disse a si mesmo que, se até no [Instituto de] Ciências Políticas as
pessoas se fazem perguntas, talvez houvesse nisso um filão a ser explorado.” O que vem em seguida
é uma advertência – o Café des Phares mascara, na realidade, uma iniciativa decididamente
comercial! Com efeito, existe uma loja nos fundos, o consultório de filosofia, onde os clientes se
acotovelam para me consultar e, acima de tudo, para encher minha conta bancária, “a tal ponto
[minha] agenda está abarrotada de horas marcadas”.

Sob esse ponto de vista, os meios de comunicação, que se contentavam em apreciar a


novidade do debate no café, assim como as pessoas que dele participavam, só podiam ser
considerados como ingênuos que se estavam deixando tapear. Não percebiam que toda aquela
operação não tinha outro intuito senão formar uma clientela para o consultório. Prova disso é que eu
cobrava 300 francos por minhas consultas particulares: um negócio da China, num filão inteiramente
novo! Aliás, a tramóia já tinha sido farejada. Muito antes de a maioria dos periódicos cair na
esparrela, L’Autre Journal, que não nasceu ontem, tinha descoberto o golpe, logo em seus primeiros
artigos, em outubro de 1992, e havia denunciado “os mercadores da filosofia”: depois de lembrar
minha “amargura por ainda não ter sido nomeado para a universidade”, o artigo apresentou a
consulta como “um novo instrumento, passível de levar em conta a maioria das interrogações de
vocês; [ela] promete ao consultório um futuro garantido”. Mas a matéria não deixou o leitor
desconhecer por muito tempo o registro em que se inscrevia essa nova forma de diálogo: “Quando
sairá o Gault-Millau das discussões apaixonantes, o melhor debate qualidade-preço?”, fingiu
interrogar-se nosso articulista. Pois ele, por sua vez, havia compreendido que o consultório fabricava
ouro com palavras. Os alquimistas tinham tentado transformar chumbo em ouro. Pelo menos, haviam
precisado de um metal primário, de uma matéria-prima para consegui-lo. O consultório fazia melhor:
produzia ouro a partir do nada.
“Alucinante!” – exagerou pouco depois o animador, na época, do “Círculo da Meia-Noite”. De
microfone em punho, ele me apresentou declarando-se, antes de qualquer coisa, intrigado – o que
não chegou a me causar grande surpresa – e em seguida, depois de brincar com a idéia de que abrir
um consultório de filosofia fora de casa poderia “renovar a prática da filosofia, tirá-la, quem sabe, de
seu marasmo universitário”, perguntou-me, com toda a franqueza (sic): “… Será que a filosofia não
está sendo vítima, talvez uma das últimas, da economia de mercado, da qual estivera isenta até
hoje?” Eu poderia ter tomado isso por uma simples introdução do assunto se ele me houvesse dado
tempo para responder, para expor meu ponto de vista, apresentar minha atividade, só que ele não
parou de tocar, volta e meia, na questão dos honorários e de insistir nela, como se isso fosse o supra-
sumo do escândalo. Tentou conquistar para sua causa os convidados ilustres do programa, André
Comte-Sponville e Jean-Marie Straub, e acabou me comparando aos sofistas gregos, que, como todos
sabem, faziam um comércio vergonhoso de sua pretensa sabedoria, acumulando fortunas colossais,
em vez de, como Sócrates, praticarem a arte da filosofia como busca da verdade… Era o golpe de
misericórdia!

Uma coisa, pelo menos, era verdade nisso tudo. Sim, eu tinha realmente aberto um
consultório de filosofia na cidade. Começara a dar consultas, vinha preparando um seminário sobre o
tema “autenticidade” e estava prestes a promover uma viagem a Atenas, nas pegadas de Sócrates.
Essa iniciativa se beneficiava do apoio entusiástico de um certo número de defensores da idéia, dentre
os quais um grupinho de adeptos incondicionais com que eu fazia um balanço da situação toda a
semana. E foi na divulgação dessa iniciativa na mídia que nasceu o debate no bar… Na verdade, desde
o início se associaram à inauguração do consultório alguns companheiros que iriam servir de interface
com o mundo externo: um fotógrafo, Eric, muito “parisiense” (freqüentador habitual de coquetéis e
vernissages); um advogado, Bertrand, “viciado” em filosofia (e que estava preparando um ensaio
virulento contra a apatia das “massas”, na linha de O último homem, de Nietzsche); e Pascal, que
trabalhava como consultor numa empresa de assessoria de informática (também ele estava
preparando um ensaio, mas de maneira muito mais ponderada, sobre o conceito de
“desenvolvimento”), e que logo passou a desempenhar o papel central na organização das
apresentações externas. Com eles, muitos de seus conhecidos passaram a gravitar em torno do
consultório: Florence, que escrevia para revistas de arte e estava preparando uma tese de estética na
Sorbonne; Kris, projetista gráfico, a quem devo o logotipo do consultório, e toda uma geração de
jovens filósofos em potencial: Alix, que em seu mestrado acabara de descobrir para Hegel um
ancestral até então desprezado, na pessoa de Charles de Bovelles, e que havia começado a lecionar;
Fleur, mais jovem ainda e também mais hesitante, porém promissora; uma outra Florence, ainda
mais diletante, porém mais voltada para o trabalho editorial e que se encarregou dos primeiros
contatos com a imprensa; e Caroline, que nos viera diretamente de Nice, depois de haver obtido seu
DEA com uma dissertação sobre O homem sem qualidades, de Musil, e que assumiu o papel de
assistente. Pouco depois, Anne associou-se ao grupo; fazia muitos anos que lecionava e sua
experiência, assim como seu dinamismo, permitiram que ela me substituísse vez por outra no bistrô.
E muitos mais… com os quais eu esperava poder lançar as bases de uma nova profissão: filósofo
praticante.

Pois então era verdade! Por trás da fachada do café havia outra coisa, já que eu também
praticava num velho prédio do Marais, onde recebia – e continuo a receber, mais do que nunca, aliás
– clientes em consulta. Resta saber se isso é um escândalo, se é “alucinante”, se faz de mim a
vergonha de minha classe, se o debate no Café des Phares não passa de um artifício de marketing, se
nas consultas não acontece nada que justifique esse preço por hora, ou se, pelo contrário, não seria
hora de multiplicar os locais desse tipo, para de fato restituir à filosofia a vocação que lhe é própria.

Avaliemos por mais um instante os ataques de que essa iniciativa foi alvo. “Entramos na ‘era
da dúvida’ e essa dúvida se transforma, através do consultório, num objeto comercial eficaz”, afirmou
o farejador sutil de L’Autre Journal, seguro de sua presa. E tratou de denunciar a habilidade retórica
de minha intervenção sob o doce nome de “fast philosophie”, sem dúvida por analogia com a fast food
que tanto agrada às crianças mas que tem pouquíssima consistência e muito pouco valor nutritivo –
sem falar da rapidez com que é engolida – “pois, com seu alto rendimento, a consulta se assemelha a
um jogo onde sempre se sai ganhando”. Com efeito, dado que atendo à demanda, em vez de impor
aquilo de que se irá tratar – como acontece em qualquer outro lugar onde se ministre o ensino da
filosofia -, o indivíduo que não nasceu ontem julgou-se no dever de alertar seus leitores contra a
vacuidade dos serviços do consultório. Já que “o consultor [ou seja, aquele que se beneficia do
pagamento] esposa a causa do cliente”, é evidente que “se entra desde logo numa reflexão de
encomenda”, da qual não se sairá tão cedo, pois o filósofo de gabinete “vende seu saber-duvidar” e se
orgulha de “não ter nenhuma mensagem”. Um sofista, portanto, e nada mais…

Essa crítica muito me surpreendeu, pois, no decorrer de sua pesquisa, o jornalista havia
manifestado um entusiasmo autêntico, do qual não restou nenhum vestígio escrito. Ele estivera
diversas vezes no consultório, em todas elas me formulara com amplo vagar todas as perguntas que
julgava importantes, havia conhecido e feito indagações a alguns de meu clientes, travado
conhecimento e simpatizado com a maioria dos membros do grupo, assistido com freqüência ao
debate do Café des Phares etc. É certo que guardara uma certa reserva, em particular quanto ao
papel que o dinheiro poderia desempenhar em minha iniciativa, mas isso, aparentemente, era apenas
um detalhe, a tal ponto lhe parecia importante que um novo sopro enfim se manifestasse pelos lados
da filosofia. Confesso que, quando seu artigo foi publicado, custei a crer que um jornalista tão
consciencioso pudesse ter escrito aquelas linhas… Vá lá que o escrevinhador do Quotidien du médecin
– que, sem sair do lugar, sem sequer me dar um telefonema, se autorizara a qualificar o consultório
de uma “alcova” onde se podia ouvir “uma linguagem erótico-mística, mais perto (sic) de Pierre Dac
que de Zaratustra” – acabasse por se declarar “assombrado e consternado diante de um projeto tão
pernicioso, onde a filosofia fica reduzida a seu sentido mais estúpido: uma vaga sabedoria-resposta
para todos os grandes problemas”, mas como podia alguém, mesmo sem ser no ato inteiramente
conquistado pela causa da filosofia na rua, nem que fosse pelo fato de a experiência ainda estar
apenas em seus primórdios, renegar grosseiramente aquilo que havia declarado enquanto fazia sua
pesquisa, e depois destilar tamanho veneno?

Tenho apenas um fragmento de explicação. No caso, sei que o artigo de L’Autre Journal foi
reescrito – “editado”, como se diz. A intenção do repórter era inserir o surgimento do consultório na
crise do pensamento moderno e tentar avaliar suas chances de contribuir para resolvê-la. Talvez ele
não dispusesse dos meios para realizar sua ambição ou talvez não tenha encontrado as palavras
adequadas para fazê-lo. O certo é que seu redator-chefe encontrou um “gancho” num momento de
ceticismo de seu pesquisador de campo, nas ligeiras reservas emitidas por ele sobre a remuneração
dos serviços que eu prestava, e fez de suas reticências o centro de gravidade do artigo. Daí o título,
muito chamativo, “Os vendedores de ética”, que deixava poucas probabilidades à perspectiva inicial e
fez gorar no nascedouro – perdão, no “oeuffset” – a alegria do leitor: bem, não, meu caro leitor, o
surgimento da filosofia na rua não é uma boa notícia: é nova, mas não é boa; isso acaba de ser
lançado, mas não nos tira do círculo vicioso do mercado… “Sautet? ‘Aí está a nova emboscada da
filosofia!’” Despojado de seu texto, o redator inicial não pôde fazer mais nada. No máximo, pôde
mandar me informar que o artigo publicado com sua assinatura não era o dele.

Estranha moral a desses pregadores de lições! Um se ergue contra a vitória do mercado


sobre o pensamento, ao mesmo tempo em que edita sem o menor pudor – por não despertar
interesse suficiente – o artigo que é submetido a seu imprimatur; o outro, que teme uma espécie de
prostituição da filosofia, concorda em prostituir sua assinatura – para garantir seu cachê.

Passemos ao âmago da questão, pois desvendar o espantoso modo de produção dessas


análises contundentes não basta para restituir à iniciativa que elas tentam desacreditar todo o sentido
que ela tem. Ora, acaso a abertura de um consultório de filosofia é uma “prostituição” da filosofia?
Será que é a exploração descarada de um bom filão, num período de desnorteamento coletivo?
Porventura é inadmissível, ou mesmo escandaloso, que um filósofo seja remunerado pelas consultas
que lhe fazem? É ou não a gratuidade do debate do Café des Phares algo diferente de um artifício
para formar uma clientela?

André Comte-Sponville, no “Círculo da Meia-Noite”, parece-me ter situado corretamente o


problema. Em síntese, ele avaliou que ser pago para dar aulas em classe ou para dar aulas
particulares não alterava nada; o problema era o que se oferecia em troca… Interrogou-se sobre o
produto: ele valia o preço pedido? Continha trabalho suficiente para ser vendido por aquele preço? De
sua parte, temia não ser esse o caso, posto que a consulta, a seu ver, apresentava-se menos como
uma aula preparada com cuidado pelo professor do que como uma “discussão sem cerimônia”, que
obviamente não exigia nenhum trabalho prévio e fazia fumaça sem fogo. Ora, em sua opinião, o
exercício da filosofia passava por um trabalho com os textos, que exigia muito do professor e muito
do aluno: muita aplicação, paciência, tenacidade, acuidade intelectual, desvios por referências que
muitas vezes se sucedem em cascata etc.

Sou grato a André Comte-Sponville por ele não ter procurado bancar o puritano. Admitir que
ser pago pelo Estado como professor não é uma garantia de pureza moral já é dar mostras de lucidez;
porque, das duas, uma: quando se está diante de uma turma, ou é preciso avalizar a ordem das
coisas – ou seja, a ordem estabelecida entre as gerações, entre os sexos, entre as classes, entre as
nações, entre os “parceiros” das trocas comerciais em escala planetária, entre o homem e a natureza,
entre a espécie humana e as outras espécies – ou é preciso questioná-la. Quando ele não questiona,
para mim é difícil ver em que sentido o professor de filosofia merece esse nome. E, quando o faz, sua
retidão moral é passível de suspeita, já que ele respeita suficientemente a ordem estabelecida para
dela extrair seu salário. Por outro lado, muitos professores vendem seus serviços não em
estabelecimentos de ensino público, mas em estabelecimentos particulares – quando não atuam nas
duas áreas. Quando leciona num estabelecimento particular, o professor de filosofia fica numa
situação ainda mais problemática: uma vez que a maioria desses estabelecimentos, pelo menos na
França, segue o credo católico mas é contratada pelo Estado, abre-se uma nova alternativa: ou os
professores são devotos e, nesse caso, deveriam sentir certa repugnância por receber a remuneração
de seus serviços do Estado leigo, herdeiro da Revolução que aboliu a tutela da Igreja sobre as almas
dos filhos de Deus, ou então são descrentes e, nesse caso, têm de poupar enormemente a
susceptibilidade de seus empregadores, quando não ensinar coisas em que não acreditam. Em todos
os casos ilustrativos, para mim é difícil ver em que sentido os serviços remunerados dos professores
de filosofia seriam mais “morais” do que minhas consultas particulares.

Passemos à universidade! É claro, o destino dos universitários parece mais invejável. Sem
sequer falar das condições de trabalho como tais (número de horas de trabalho, montante do salário,
“população” a formar etc.), parece-me que o professor universitário acha-se numa situação menos
delicada no plano ético, já que sua liberdade de ação é nitidamente maior que a do professor
secundário: os programas são menos coercitivos, ele pode dispor seu ensino em torno de um eixo de
investigação pessoal, não tem de prestar contas a ninguém do que diz… Mas, na realidade, sua
relação com o Estado, seu empregador, não se altera: ele continua a vender seus serviços. Querendo
ou não, está vendendo seu ensino e, a menos que se recuse a qualificá-lo de filosófico, deve admitir
que está vendendo filosofia e que, por conseguinte, faz da filosofia uma mercadoria.

Nem por isso se trata de uma prostituição, decerto hão de dizer: o professor não atende à
demanda; leciona para alunos que estão obrigados a cursar uma disciplina e não subordina a
atividade de seu pensamento ao desejo de um cliente. Ou seja, vamos admitir – por enquanto – que
ele não atende a uma demanda, nem explícita nem implícita. Mas, ainda assim, resta saber por quais
caminhos obteve seu cargo. Portanto, interroguemos os que conseguiram ser aceitos no grupo dos
professores titulares universitários! Interroguemos, antes de tudo, aqueles que ainda não foram
admitidos, os que continuam a ocupar o cargo subalterno de conferencistas, e, acima de tudo,
aqueles que cobiçam uma posição, os que não agüentam mais esperar por uma promoção, depois de
anos de bons e leais serviços prestados no curso secundário, ou aqueles que, recém saídos da Escola
Normal Superior, são atormentados pela perspectiva de ter que lecionar ali! Interroguemos a todos e
veremos o tratamento que eles têm que infligir a sua ética para superar esse obstáculo. Quantas
visitas é preciso fazer para preparar uma candidatura! Que cortesia é preciso demonstrar! Quanta
diplomacia se tem que exercer! Que concessões é preciso fazer para entrar nos planos daqueles que
dispõem de algum poder! Não há dúvida de que o fim, nesse caso, justifica os meios.

Mas entendamo-nos. Isso não significa, em absoluto, que os felizes eleitos sejam os mais
medíocres. O número de cargos de poder a cada ano é tão irrisório, comparado ao número de
candidatos de valor, que, salvo raríssimas exceções, os escolhidos situam-se entre os melhores. A
questão não é essa. Mas não vamos fingir que é moralmente mais apropriado lecionar na universidade
do que dar consultas.

Resta saber, é claro, que valor têm essas consultas – o que vem a ser o âmago da questão.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

PRIMEIRA PARTE
ONDE ESTAMOS?

IV
Em consulta

Eis-nos às portas de uma experiência inédita: a consulta filosófica. Antes de tudo, note-se
que, apesar de nova na França, ela nada tem de nova em si. De fato, o primeiro “consultório de
filosofia” foi aberto na Alemanha em 1981 e, ao que parece, existe hoje uma centena deles no
mundo.

O primeiro filósofo a propor seus serviços práticos chama-se Gerd Achenbach. Acabava de
defender uma tese sobre “O prazer e a necessidade”. Doutor em filosofia, mas convencido de que
tinha coisa melhor a fazer do que perpetuar a tradição da filosofia universitária e seus eternos
“seminários” para conhecedores, instalou sua praxis (esse é o termo alemão) perto de Colônia, em
Bergisch-Gladbach. Surpreso por ver os filósofos profissionais passarem sistematicamente ao largo
daquilo que concerne à maioria dos seres humanos, ele apostou em restituir ao exercício da filosofia
um impacto pelo menos igual ao das ciências humanas, em particular a psicologia. Retomando a seu
modo a figura de Édipo como aquele que quer chegar à verdade a qualquer preço, Achenbach propôs
um método de entrevistas particulares ao longo das quais a filosofia recuperou seu direito de
cidadania. Condição sine qua non: não sobrecarregar o discurso de conceitos inacessíveis aos comuns
mortais e não desprezar o bom senso; deixar surgir a experiência pessoal, até favorecendo sua
evocação, e incentivar o “cliente” a se aventurar por terras desconhecidas, utilizando ao máximo a
linguagem que lhe é familiar. O que equivale a dizer que, nessas entrevistas, o filósofo escuta mais do
que fala e só introduz referências para fazer seu interlocutor progredir em seu próprio ritmo.

Profunda sabedoria! Na consulta, o importante não é o que sabe aquele que é consultado,
mas o que pode dizer seu cliente. De que adianta, com efeito, transmitir conhecimentos, quando eles
não “dizem” nada? De que serve falar sem ser entendido? O que as más línguas chamam de
“prostituição” é, antes de tudo, essa disponibilidade, essa receptividade do filósofo. Isso de modo
algum implica o abandono de todo o rigor e de todos os referenciais em benefício do prazer do cliente.
Significa apenas que a transmissão da tradição filosófica não é uma precondição, uma passagem
obrigatória para se “formularem corretamente os problemas”. Para tanto, é preciso, antes de tudo,
exprimir-se, ainda que mal, ainda que sem jeito, mesmo empregando termos no sentido errado e
mesmo dando excessiva margem ao vazio. E, se o problema é enunciado sem balbucios, com precisão
e destreza, mas sem empréstimos retirados da esfera dos conceitos que são habituais nos
“seminários” em voga, por que reclamar?

Tomemos um exemplo, o de meu primeiro cliente. Vamos chamá-lo de Phil. Era um homem
próximo da casa dos 50. Dirigente de uma pequena empresa, tinha tudo para ser feliz: um “bom
emprego”, uma mulher adorável que, por maior que fosse suas independência de espírito, não
deixava de ser imensamente apegada a ele, dois belos filhos… Que mais desejar? Pois ele se
entediava. Mortalmente. Para ser mais exato: a ponto de querer morrer. E era esse o objetivo de sua
visita: ele vinha me perguntar se eu via alguma objeção a seu desaparecimento. Desculpava-se com
freqüência por não dispor de termos adequados a minha disciplina. Mas que poderia ter dito de mais
preciso? E, por ser formulada em termos corriqueiros, porventura sua pergunta era menos filosófica?
Quem teria o atrevimento de afirmá-lo? Ah! Havia a vivência, é claro. Mas em que isso comprometia o
teor de sua interrogação?

Um doente, talvez digam alguns. É fato que podemos nos sentir tentados a ver em sua
insatisfação algo de patológico. Ainda mais que ele comparava a vida a uma sala de espera… - sala de
espera da morte – e vinha me perguntar, justamente, se eu poderia dizer-lhe em nome de que
impedi-lo de abrir a porta. No entanto, não convém nos apressarmos em fazer tal diagnóstico. É que,
nesse caso, teremos de considerar “doentes” pessoas como Pascal, que tinha a mesma concepção da
vida, ou Schopenhauer, o terrível pessimista do século 19… O caso de Pascal é discutível, já que ele
era mesmo doente e, ao que parece, morreu em sofrimento atroz, após uma espera tão longa que
podemos compreender por que seus Pensamentos foram tão hostis à vida. Mas e Schopenhauer? Ele
era cheio de vigor e transbordante de energia, o que não o impediu, desde os 20 anos de idade, de
declarar guerra à vontade de viver que havia nele, num livro assombroso – O mundo como vontade e
como representação – que ele não parou de complementar durante quarenta anos, até morrer de
fato. Terá sido um doente? Caberá imputarmos a essa doença os quatro livros que constituem o cerne
de sua obra, a começar por suas notáveis elaborações do pensamento de Kant sobre o tempo, o
espaço e o princípio de causalidade, incluindo todas as suas análises sobre o corpo, o desejo e a
vontade? Que fazer dos dois livros seguintes, da crítica exaustiva da filosofia kantiana e da pletora de
suplementos que duplicam o volume do texto, aprimorando o conteúdo de cada capítulo? Sem falar
de seus outros ensaios, sobre o fundamento da moral ou a vontade na natureza…
Se chamarmos de doentes aqueles que não apreciam o fato de viver, é melhor nos
prevenirmos: será preciso incluir nessa categoria não só um bom número de românticos, mas
também todos os filósofos do absurdo, que, a exemplo do Eclesiastes, destacam a futilidade da vida.
E além deles, não nos esqueçamos, o próprio Sócrates. Pois Sócrates era o primeiro a afirmar que a
vida era um erro! A acreditarmos em Platão, no momento em que bebeu a cicuta, Sócrates convidou
seus companheiros a segui-lo assim que possível! Isso se encontra com todas as letras no Fédon. Um
companheiro, Cebes, traz-lhe um recado de outro amigo, Eveno; depois de pedir a Cebes que
transmita a Eveno uma resposta exata, Sócrates acrescenta, como se nada houvesse: “… e irás
aconselhá-lo, se de fato ele é sábio, a seguir minhas pegadas o mais depressa possível.” Tanto que
Cebes, desconcertado, retruca: “Como podes dizer, Sócrates (…), que o filósofo consentiria em
acompanhar aquele que morre?” Daí a seqüência do diálogo, no qual Sócrates tenta convencer seus
companheiros da justeza do que disse, formulando uma dupla demonstração: a dos limites que o
corpo inflige ao prazer de aceder à verdade e a da imortalidade da alma…

Sem dúvida, o psicólogo ou o psiquiatra podem tirar partido da idéia de que alguns dos
maiores filósofos eram doentes… Mas quem, dentre os filósofos de ofício, concordará em pagar esse
preço? Declarar que Phil é doente é declarar como tais Pascal, Schopenhauer, Camus, Cioran… Pior, é
declarar doente a filosofia inteira, já que ela começa, segundo a mais notória tradição universitária,
com Sócrates. E, se realmente começa com ele, é através de um convite para morrer. “Quem é sábio
nada terá de melhor a fazer do que me seguir”, declara ele no instante da morte. Como poderiam os
filósofos profissionais considerar que o mal-estar de Phil é apenas um sintoma patológico? Phil não leu
o Fédon; não emprega exatamente os mesmos termos do fundador da filosofia ocidental. Mas
porventura não é ao menos tão filósofo quanto ele? Acaso seu mal-estar não é um autêntico mal de
ser, que questiona de maneira muito pertinente a evidência que a todos nos autoriza a considerar a
vida como uma coisa boa e que permite aos filósofos profissionais, em particular, justificar seu
salário? Sócrates considera o corpo uma prisão e se rejubila por enfim escapar dela. Já Phil fala da
vida como de uma “sala de espera”. Que há de mais filosófico do que se perguntar se não convém
abrir a porta?

Hão de convir comigo que, se as consultas filosóficas fossem apenas, na melhor das
hipóteses, uma discussão sem cerimônia, e na pior, uma forma velada de prostituição, a coisa teria
começado um bocado mal. Phil – meu primeiro cliente – vinha me perguntar se eu fazia alguma
objeção a seu desaparecimento. Na verdade, eu não fazia nenhuma – pelo menos à queima-roupa -,
mas não era tão simples saber se isso realmente lhe dava prazer. A primeira conversa permitiu
esclarecer que ele já tinha revirado essa questão em todos os sentidos. Tinha alguns escrúpulos:
sabia que, morrendo, penalizaria duramente seus filhos e a mulher. Mas não via nenhuma “razão” de
outra ordem que fosse capaz de contê-lo. Tivera experiências suficientes para não se apegar mais aos
bens deste mundo e conhecera tantos prazeres que estava cansado deles e já não tinha nenhuma
vontade de encenar a comédia de sua repetição; sem nenhuma esperança de vê-los se renovarem,
mergulhava no tédio e se julgava no direito de pôr fim a isso. Se algo de novo podia acontecer-lhe na
vida, não seria isso ficar sabendo o que haveria depois – aquilo que chamava de “atrás da porta”?
Mesmo sem a menor vontade de corroborar sua opinião, eu não estaria em boas condições de
contradizê-lo – pelo menos de imediato -, dado que ele manifestava diante de mim a mesma
curiosidade pelo Além de que Sócrates dera mostras em sua época. Na hora de morrer, Sócrates,
mestre de todos nós – de nós que temos o ofício de filósofos -, tentou convencer seus companheiros
de que nada poderia equivaler ao instante em que cruzaria aquela porta e de que, longe de chorar sua
morte, mais lhes valeria invejar seu destino. Não buscara ele, durante toda a vida, atingir a verdade?
E não era seu invólucro material, seu corpo, um obstáculo a essa busca, não impunha ele um limite
considerável a seus desempenhos, e não era seu espírito refreado pelo peso daquela estorvante
carapaça?

Acusado de não crer nos deuses da cidade e de corromper a juventude de Atenas, Sócrates
fora julgado, condenado e encarcerado; seus amigos haviam então organizado sua fuga, mas ele a
recusara. Naturalmente, essa recusa podia ser motivada pelo desejo de mostrar a seus concidadãos
que, longe de desprezar sua pátria e suas leis, ele preferia chegar ao sacrifício de sua vida a
desobedecê-las, como explica no Críton; no Fédon, contudo, Platão propõe uma outra explicação,
mostrando a que ponto Sócrates estava radiante por morrer. Não se tratava, em absoluto, de uma
resignação, como quando o sujeito se conforma com o inevitável, mas de uma felicidade real, ou até
de uma impaciência para chegar ao momento em que tudo ficaria claro… Assim, pareceu-me legítimo
informar a Phil que sua postura me parecia muito próxima da de Sócrates, tal como revelada por
Platão no Fédon, e pedir-lhe que lesse esse texto, para verificar se era realmente isso: estava ele tão
sedento de verdade quanto Sócrates? Porventura estava também convencido de que o corpo era um
obstáculo no caminho que leva à satisfação desse desejo? Deveria a “sala de espera” de que ele
falava ser qualificada como uma “prisão”, como sugeria Sócrates, da qual seria bom poder enfim
escapar? Phil aceitou minha proposta. Assim, entregou-se ao trabalho – para usar a terminologia de
Comte-Sponville – ou, em outras palavras, a ler o Fédon, confrontando seu cansaço da vida, seu
“tédio”, com o prazer manifestado por Sócrates ante a aproximação da morte. Pois bem, não lhe foi
preciso muito tempo para entrar em conflito com o modelo com que o convidei a se comparar. A
discordância foi na questão da imortalidade da alma. É nesse ponto, é claro, que Sócrates insiste: se
ele é tão entusiástico, é por ter certeza de que a alma sobrevive ao corpo; as hesitações de seus
amigos obrigam-no a se explicar. Por isso, ele começa por confessar que de fato espera encontrar no
Hades mortos ilustres, uma boa companhia, e, se não for esse o caso, ao menos ficar na dos deuses.
Pois, afinal, que maneira melhor haveria de se aproximar da verdade do que afastando-se do corpo,
das ilusões que ele produz e dos erros que ele provoca? Quanto mais livre uma alma estiver, por
conseguinte, mais estará na verdade… Naturalmente, como a maioria das pessoas, pode-se temer
que, uma vez separada do corpo, a alma não subsista em parte alguma, “como um sopro ou uma
nuvem de fumaça”, como sublinha Cebes com firmeza. Sócrates lembra então “uma antiga lenda”,
segundo a qual “as almas que se foram daqui subsistem lá embaixo”. E acrescenta que elas estão
apenas em trânsito e que “voltam para cá e renascem dos mortos”. Toda a seqüência do diálogo tem
por objetivo corroborar essa tradição, atribuída pelos gregos a Orfeu, adotada pelos pitagóricos e
enraizada nas mais variáveis culturas, no Egito e na Índia. Para esse fim, ele utiliza o argumento da
rememoração, que consiste em mostrar que não poderíamos aprender nada se não dispuséssemos, já
ao nascer, dos elementos que nos permitem efetuar distinções entre as coisas, compará-las ou
identificá-las; daí conclui que “nossas almas existiam antes de existirem em forma humana”, que
eram perfeitamente “separadas do corpo” e “dotadas de consciência”. Em seguida, mostra que elas
pertencem ao mundo divino, isto é, à esfera dos seres imperecíveis, e que, por conseguinte, não há
por que temer que a alma, “depois de haver deixado o corpo, se disperse e se aniquile”.

Phil não estava convencido. A exemplo de Símias, um dos protagonistas do diálogo, não via
como a natureza sutil da alma, comparada ao corpo, pudesse implicar sua eternidade. Supondo-se
que a alma fosse distinta do corpo, de onde vem a idéia de que sua diferença não é a mesma, por
exemplo, que a existente entre a harmonia e a lira ou a melodia e a flauta? Pois bem, que acontece
quando a lira se quebra? Ora, a harmonia cessa! Quando a flauta se quebra, a melodia se interrompe.
Se a alma pode ser considerada a harmonia do corpo, é evidente que ela perece com o corpo. Perece
até mesmo antes do corpo, pois este leva mais tempo para se decompor do que a harmonia para
desaparecer… Assim, Phil encontrou no próprio texto argumentos para contradizer Sócrates. É
verdade que os argumentos de Cebes e Símias não produzem o efeito esperado, no Fédon, diante da
retórica implacável de Sócrates, que logo se empenha em mostrar que a alma não pode ser
assemelhada a um sopro nem a uma harmonia. Mas isso foi o bastante para que Phil desenvolvesse,
por sua vez, uma contra-argumentação de sua própria autoria, de inspiração claramente materialista:
segundo ele, a alma era apenas um termo para designar a animação do corpo; quando penso, não é
um princípio autônomo, uma força independente que pensa em mim, mas meu corpo. Se eu morrer,
dizia ele, paro de perceber, de sentir, de distinguir as formas, as densidades, os cheiros, os sabores,
obviamente paro de me lembrar e, a fortiriori, de pensar. Em suma, Phil não podia aceitar o convite
de Sócrates.

O que equivale a dizer que, logo de saída, graças a esse cliente, minha ambição de praticar a
filosofia em público justificou-se plenamente. Sem perderem por um instante sua dimensão
dramática, já que Phil poderia desaparecer da noite para o dia, nossas conversas haviam tomado um
bom rumo. Por um lado, desenrolavam-se com base num verdadeiro confronto com um dos textos
mais vigorosos da tradição filosófica e, por outro, davam a Phil um meio de se aperceber de algo
inesperado: mesmo que continuasse a achar ruins as suas razões para viver, ao menos tinha que
admitir que não dispunha de nenhuma boa razão para morrer! Sócrates a tinha: permitir que sua
alma atingisse a Verdade, livrando-se do corpo. Se rejeitava a perspectiva inaugurada por Sócrates,
se não sentia nenhum prazer ante a evocação do Além, Phil tinha que reconhecer que sua curiosidade
de “abrir a porta” não era tão grande assim. Ele não conseguia convencer-se da idéia de uma vida
após a morte e, desse modo, tinha que considerar que na “sala de espera” não se esperava nada.
Atrás da porta ele tinha certeza de que não haveria coisa alguma e, com isso, não podia rejubilar-se
com a idéia de abri-la para “enfim pôr as coisas em pratos limpos”. Restava saber se seu cansaço
poderia ser suficiente para justificar um ato tão inútil ou se a banalidade de sua vida cotidiana e a
pobreza de suas relações humanas eram inevitáveis e, no final das contas, se isso podia servir de
critério para julgar a condição humana.

Em geral, só deparamos com perguntas filosóficas por ocasião dos preparativos para o bac,
na passagem para a última série: fazemos um percurso por alguns conceitos, alguns textos, algumas
doutrinas, aprendemos de cor algumas citações, redigimos algumas dissertações e, por fim,
enfrentamos o exame. Ora, as “perguntas de filosofia” não se parecem nem um pouco com as
demais: que estamos fazendo na Terra, de onde viemos, para onde vamos, se existe outra vida, se a
alma morre ou sobrevive ao corpo, se o Universo teve um começo ou terá um fim, se a história dos
homens tem sentido, se a espécie humana deve dominar as outras, se a justiça pode imperar entre os
homens, se o mal pode ser abolido, se é preciso nos curvarmos diante da força, se o dinheiro deve
reger o mundo, se é melhor ser vítima do que carrasco, se mais vale ser sensato do que louco – essas
perguntas não são como as outras, porque, por um lado, ao contrário das demais perguntas do curso,
põem em jogo a pertinência de nossas convicções, o sentido de nossos atos, a justeza de nossas
relações com os outros, ou seja, nossa vida inteira, e, por outro lado, as respostas a elas, ao contrário
das de outras disciplinas, não são passíveis de um consenso, a tal ponto escapam do âmbito da
experiência, isto é, do observável e do verificável.

Na verdade, a maioria delas nos atormenta desde nossa mais tenra infância e encontramos
um prazer sádico em formulá-las a nossos pais, que logo ficam desconcertados. Quando a religião não
se encarrega de aplacar com histórias encantadoras nossa sede metafísica de sentido, acabamos por
recalcá-las. O ano do bac, portanto, vem reativá-las. Mas o tratamento que elas recebem nessa
ocasião é, na maioria das vezes, frustrante: quando o “professor de filosofia” é bom, o ano passa
depressa demais; quando é ruim, a filosofia transforma-se numa punição tal que sentimos inveja dos
que são dispensados dela. Depois, ingressamos na vida adulta e a névoa torna-se mais densa. Os
anos passam. Esquecemos… Até o dia em que é preciso dar respostas a nossos filhos, que fazem
perguntas incômodas…

Uma morte, um acidente, um rompimento, a perda de um emprego, a atualidade, seus


horrores e escândalos, as ameaças que pairam sobre o planeta: muitos golpes duros pessoais e
muitas loucuras coletivas fazem ressurgir aos poucos essas interrogações ocultas pelo curso da vida
cotidiana. Não raro saímos em busca de um psicoterapeuta, às vezes consultamos um vidente ou
então encontramos um guru. Se nos interrogamos sobre o que acontece, é porque o sentido conferido
até então já não serve ou se tornou suspeito. Talvez haja um conceito ou uma doutrina em questão:
mas é preciso identificá-los e submetê-los ao exame que se impõe.

Admito que, a priori, não é fácil discernir de que modo a filosofia pode ser profissionalmente
exercida fora do contexto habitual do ensino. Admito até que temamos que essa prática se aparente
com a dos sofistas da Antiguidade. E suponho que o exemplo de Phil, por si só, não baste para vencer
todas as hesitações com que pode deparar a idéia das consultas filosóficas, para não falar das críticas
mesquinhas que ela provoca. Assim, não me parece inútil destacar outros exemplos, para mostrar
como as coisas se passam. Tomarei mais dois, que atestam que uma consulta não é uma simples
conversa, na qual as pessoas se entretêm polidamente sobre este ou aquele assunto e na qual o
filósofo se coloca a serviço do cliente para confirmá-lo em suas opções. Caro leitor ou leitora, se você
ainda tem alguma desconfiança a esse respeito, queira dar-se o tempo de ler o que se segue.

Primeiro, a história de uma consulta que poderia ter acabado na mesma hora. Certo dia,
recebi no consultório uma mulher extremamente dinâmica. Gabrielle G. Vivaz, com seus 40 anos, de
pequeno porte mais muito enérgica, era a glória de uma pequena firma de comunicação institucional,
filial de um grande grupo de empresas distribuidoras de água. Era temida em suas negociações, a tal
ponto sabia usar seus encantos, aliados ao entusiasmo comunicativo e a uma malícia que parecia
inocente. Mas havia uma sombra nesse panorama. Nas programações noturnas para as quais era
convidada ou que organizava em sua casa, essas qualidades não bastavam para lhe garantir a
supremacia, tão logo as conversas triviais passavam para os debates de peso. Fazia algum tempo que
ela vinha esbarrando em convivas particularmente arrogantes, sempre os mesmos, que flertavam
com o racismo. Por isso, vinha pedir que eu a ajudasse a levar a melhor nessas disputas improvisadas
mas fatais.

Essa solicitação nada tinha de aberrante, a meu ver, e o deal era bastante prazeroso:
permitir que aquela mulher miúda fizesse alguns pretensos dominadores fecharem o bico – ali estava
algo que dava um sabor picante à minha proposta de oferecer a filosofia à la carte. Foi por isso que,
já na primeira sessão, pedi a Gabrielle que dissesse exatamente quais eram os argumentos em que
tropeçava. Grosso modo, tratava-se da superioridade do Ocidente em relação ao Sul. A questão do
direito de voto dos imigrantes estava em pauta na ocasião e essa perspectiva escandalizava os tais
senhores, que só viam nas pessoas de cor uma gente incapaz e parasita, que, se fosse honesta, só
deveria reivindicar um direito: o direito à preguiça. Para se opor a esses ataques baixos, que lhe
provocavam náuseas, Gabrielle se enredava em disputas intermináveis sobre os méritos comparativos
dos povos. Assim, pareceu-me oportuno sugerir-lhe que fizesse um pequeno recuo histórico. Para
isso, bastar-lhe-ia lembrar quanto tempo o Ocidente tinha levado para sair da Idade Média, para
passar da era feudal à era mercantil ou, se preferirmos, do feudalismo ao capitalismo. Verifica-se que,
na época em que a Europa ainda não passava de uma imensa e sombria floresta, onde as populações,
agarradas às glebas, ainda passavam a maior parte do tempo desmatando a terra sob a proteção de
seus senhores feudais oriundos das hordas de bárbaros germânicos, a civilização árabe florescia a tal
ponto que foi nos confins meridionais do Ocidente cristão, em contato com os infiéis, que despontou a
aurora do Renascimento. O fato de essa relação ter-se invertido posteriormente merecia reflexão,
mas de maneira alguma autorizava alguém a falar da superioridade congênita dos povos do Norte!

Caso se fizesse absoluta questão de destacar no Ocidente uma superioridade étnica em


relação às outras regiões do globo, não convinha ser mais realista do que o rei. Com isso eu me
referia a Gobineau, o defensor da desigualdade entre as raças, que, em seu Ensaio na década de
1850, renunciava espontaneamente a fazer a apologia da Europa moderna. Muito pelo contrário!
Gobineau, convencido da superioridade da “raça branca” sobre a “raça negra” e a “raça amarela”,
havia perdido a esperança na modernidade. Com efeito, via na hegemonia da sociedade mercantil a
exacerbação da mistura de raças e, por conseguinte, o derradeiro fim: já não era possível, segundo
ele, voltar atrás, retornar à época abençoada em que a raça branca ainda não tinha seu sangue
misturado ao das raças inferiores. Esse tempo havia existido. Os bárbaros germânicos, que tinham
invadido a Europa dez séculos antes, assim como seus primos distantes, os dórios, que se haviam
apossado das penínsulas grega e italiana, ainda tinham estado próximos do tronco principal, o dos
indo-europeus, provenientes dos planaltos do Irã, que, lá pelo Leste, haviam deixado sua marca
dominadora na Índia, instaurando o regime das castas sob o jugo infalível do código de Manu. Mas
aquele tempo ficara para trás, desde que as povoações dominadas, incomensuravelmente mais
numerosas, tinham contaminado os dórios através de casamentos antinaturais: eles foram
semitizados pelo afluxo de sangue negro, o sangue dos escravos, cada vez mais numerosos, e a plebe
acabou saindo vencedora em toda a bacia do Mediterrâneo; quando, mais tarde, os germânicos se
tornaram senhores das populações do Norte, também eles não tardaram a sucumbir à semitização.
Ora, assim sendo, o advento da sociedade de mercado e da democracia não deixava nenhuma
esperança de retorno à supremacia da cepa ariana. Em outras palavras, por menos atentamente lido
que seja, aquilo que poderia passar a priori pela melhor das ratificações do discurso sobre a
superioridade do Ocidente inverte-se, na verdade, em seu oposto.

Nas disputas que a opunham aos neo-racistas, por conseguinte, Gabrielle poderia cercar a
questão pelos dois lados: sem o contato com a civilização árabe, talvez ainda estivéssemos caçando
javalis com lanças e portanto temos para com ela uma dívida histórica; mas, se fizermos questão de
destacar alguma superioridade racial, teremos de rejeitar a sociedade de mercado, sem o que
estaremos enaltecendo, inadvertidamente, aqueles mesmos que tomamos por inferiores: os “árabes”,
isto é, stricto sensu, os “semitas”, os grandes mercadores aos olhos do Eterno… Achei que Gabrielle
estava satisfeita com nossa entrevista e lhe recomendei consultar duas obras ad hoc: O Ensaio sobre
a desigualdade das raças humanas, de Gobineau, que reserva inúmeras surpresas ao leitor carregado
de preconceitos, e o volume I do Capital, de Marx, que refresca a memória sobre o advento do
império da mercadoria no Ocidente. Qual não foi minha surpresa ao constatar, na consulta seguinte,
que ela não fizera praticamente nada disso! Não que não tivesse tido a oportunidade, mas é que o
que eu lhe dissera tinha bastado e, já que ela não tinha tempo de entrar nos textos em si, sua
retórica servia de paliativo à falta de aprofundamento nos textos evocados. Aliás, esse funcionamento
lhe convinha muito bem e, a partir desse momento, ela tencionava proceder da seguinte maneira: ela
me proporia o tema do dia, eu lhe forneceria argumentos “sólidos” e ela, por sua vez, os retomaria
em seus confrontos crônicos. Aliás, já me havia trazido material para essa sessão: constatando que o
jornal Les Échos vinha fazendo grande alarde de um novo filósofo que estava na moda, ela me
trouxera os artigos que falavam de seu último livro e me pedia que lhe dissesse mais alguma coisa
sobre o assunto. Tratava-se de Gilles Lipovestsky, autor de L’Ère du vide [A era do vazio],
transformado no defensor de um individualismo inteligente, que pregava, em seu novo livro, não o
egoísmo radical e sem limites, que cedo ou tarde beira o cinismo, mas o “primeiro eu”, naquele
sentido amiúde esquecido da fórmula cristã: Ama a teu próximo como a ti mesmo, que significa, se
prestarmos atenção: Se eu não amar a mim mesmo, não poderei amar os outros.

Que mal-estar! Eu bem que gostaria de falar de ética e de levar em conta suas mais recentes
transformações, ou até de me interessar pelos modismos, mas a idéia não era eu tomar o lugar de
meus clientes e lhes fornecer um pensamento pronto para uso. Eu me atribuía a missão de iniciar o
diálogo, de permitir que o cliente se exprimisse tão bem e tão completamente quanto possível, que se
apropriasse das referências… mas não, certamente, a de pensar em seu lugar. Assim, estava fora de
questão eu entrar nesse jogo. Eu havia aberto um consultório para oferecer um serviço e não para
ficar a serviço de alguém. Comuniquei isso a Gabrielle. E nosso “trabalho” teria parado por aí se,
notando em minha biblioteca muitos livros de Nietzsche, ela não tivesse feito uma alusão a seu
passado estudantil e a uma pequena dissertação que havia redigido, na época, sobre o “Super-
homem”. Revolvendo com mais acuidade suas lembranças, falou-me dessa época e – que coisa
incrível! – constatamos que já nos conhecíamos. De fato, ela era da Haute-Saône e fizera seus
estudos no Franco-Condado, na universidade de Besançon, havendo iniciado um curso de filosofia sob
a égide do diretor desse departamento na época, André Vergèz. Ora, ocorre que eu mesmo havia
passado por aquela universidade na década de 70, depois de deixar a Sorbonne e Paris. Em 1973,
tinha defendido minha tese de mestrado sobre Nietzsche e me encaminhava para o doutorado sob a
orientação de… André Vergèz. Ao chegar a Besançon, eu não tinha grande estima por esse cavalheiro,
autor (co-autor, com Denis Huismann) do incontornável manual de filosofia do terceiro ano
secundário, o qual me havia parecido, em meus tempos de liceu, uma monstruosidade: parecia-me
uma aberração que alguém pudesse ter a pretensão de colocar a filosofia na camisa-de-força de um
“manual”! Mas, no contato direto com ele, havia aprendido a apreciar esse personagem, seu rigor,
sua capacidade de trabalho, sua honestidade e seu senso de humor, insuspeitável à primeira vista.

Pois ali estávamos nós, Gabrielle e eu, no instante de um rompimento, tomados por uma
emoção singular e tentando reconstituir o quebra-cabeça de nossas lembranças estudantis. Ela estava
certa de se lembrar de mim, de meu jeito de diletante e até de uma sessão de trabalho que fizéramos
juntos! E, é claro, poderíamos ter parado por aí em matéria de consulta e restabelecido as relações de
camaradagem com vinte anos de intervalo, deixando de nos ver numa relação de trabalho
profissional. No entanto, foi o inverso que se deu. Não que não nos tornássemos camaradas (o que, a
bem da verdade, não tínhamos realmente sido na época), mas é que se abriu quase que naturalmente
uma outra perspectiva: a de uma genealogia do pensamento de Gabrielle. Parecia-me realmente
espantoso que essa mulher, com sua vivacidade, sua verve e sua perspicácia, pudesse ter
abandonado a meio caminho seus estudos de filosofia. Em sua dissertação sobre Nietzsche, dera
mostras de uma bela insolência ao afirmar que, na verdade, o Super-homem era uma mulher – A
Mulher. Não tive nenhuma dificuldade em reconhecer que essa idéia deveria ter seduzido o velho
Vergèz, que, sob a carapaça do velho pedagogo capaz de convencer um regimento inteiro de que os
partidários do livre-arbítrio nada mais fizeram ao longo dos séculos que girar num círculo vicioso
(esse era o tema de sua própria tese), adorava as idéias novas e as boas piadas (na época, estava
fazendo um ciclo de conferências públicas sobre as casas de tolerância e a prostituição, sem nunca
deixar de comunicar, na presença de sua encantadora esposa, sua experiência pessoal mais recente).
No exato momento em que recusei o pedido de um digest cultural que me formulara Gabrielle, meu
assombro traduziu-se nela numa verdadeira interrogação. Ou seja, ela me narrou a seqüência dos
acontecimentos, sua passagem pela psicologia e as diversas etapas que a tinham levado a se lançar
na “vida ativa”. Confessou seu desejo de dinheiro e até de poder, o que correspondia bem ao que
estava vivendo no momento: um bom emprego, contratos importantes para negociar, grandes somas
de dinheiro para administrar, comissões respeitáveis e mais a consideração. Gostava de negociar, de
fazer os interlocutores recuarem em suas pretensões, e também de inovar, lançar idéias, “produtos”,
defendê-los e levar seus projetos a termo. Tendo vindo de baixo, do cargo de simples arquivista,
abrira caminho sozinha e se orgulhava um bocado disso. Faltava-lhe apenas brilhantismo nas já
citadas ocasiões, razão por que fora me procurar.

Não tinha nenhuma intenção de desequilibrá-la. Teria sequer tido meios para tanto? Mas me
parecia que ela mentia demais para si mesma para realmente atingir seus objetivos e, mais do que
isso, para conservar suas conquistas num período em que, a meu ver, no plano social, econômico e
político, o pior ainda estava por vir. É presumível que ela também tenha intuído isso, já que sentiu
necessidade de voltar, na condição de cliente, para fazer um balanço de seu passado. Queria que eu a
ajudasse a reconquistar o que havia abandonado, a recuperar a posse de seus referenciais de então;
dois ou três autores tinham-lhe sido caros na universidade – Roland Barthes, Vance Packard e Karl
Marx. O que me intrigava era a pouca importância que ela havia atribuído, em sua própria vida, ao
caráter subversivo desses textos. Chegava mesmo a se comprazer, em suas próprias palavras, na
companhia daqueles que eram denunciados por esses autores – os membros das classes
exploradoras. Era-me difícil entender como lhe tinha sido possível, na esteira dos acontecimentos de
1968, não desejar, acima de qualquer coisa, acabar com a injustiça social, fustigada acima de tudo
por aqueles textos. Parecia-me impossível que alguém levasse uns a sério e se acumpliciasse com os
outros.

Assim começou uma longa série de sessões, nas quais Gabrielle tratou de retornar às
origens. Sua infância, as relações de seus pais, seu lugar na família, seus bloqueios, suas emoções,
suas aflições. De conversa em conversa, reencontramos suas primeiras leituras, seus primeiros livros;
isso não se deu sem dificuldade nem dor; muitas lembranças foram trazidas à tona, muitas feridas
foram reabertas – como todo aquele período em que ela jurara a si mesma nunca mais voltar à escola
e, de fato, agüentara firme por quase um ano! A doença do pai e os cuidados que ela lhe prestara,
como se fosse a dona da casa, e depois a morte dele. A tensão do conflito crônico com a mãe, a luta
contra a mediocridade da pequena-burguesia provinciana, pela qual sentia tanto desprezo. Dos
“textos” era freqüente deslizarmos para os acontecimentos, o contexto e, muitas vezes, o curso da
reconstituição foi inundado pelas cheias da emoção. Um dia, porém, ela voltou triunfante da Haute-
Saône, com toda uma carga de livros infantis, dos quais o mais importante, sem sombra de dúvida,
era O baile das doze princesas. Que prazer indescritível! Que privilégio grandioso poder abrir as
páginas de um livro que se tivera nas mãos quarenta anos antes! Numa outra ocasião, fui brindado
com seus próprios textos: os que ela havia redigido na época de seus estudos em Besançon. E, em
alguns meses, conseguimos aos poucos estabelecer toda a sua genealogia intelectual.
Uma outra história, muito menos “sofisticada”, mas igualmente emocionante para mim, foi a
de uma interiorana ainda jovem, que criava os filhos sem trabalhar fora, porque o marido supria as
necessidades da família. Tinha leituras notáveis (Teilhard de Chardin, Camus, Cioran, Tresmontant) e
veio procurar-me a conselho de um amigo psiquiatra, sem um pedido claramente formulado; mal
bastou uma sessão para discernir o que a “atormentava”; como suas leituras gravitavam em torno da
“questão da salvação” – ao menos esse me pareceu o fio condutor -, pedi-lhe que me definisse em
algumas frases o que entendia por “cristianismo”. Ela se aborreceu. Chegou até a protestar. Não
estava ali para isso, aquilo era história antiga, que é que estava acontecendo comigo? Em suma, não
tinha cabimento eu pedir essa definição. De mais a mais, ela não estava à altura de fornecê-la. Não
sabia o que tinha ido fazer ali, não sabia se expressar, era inútil eu esperar um discurso elaborado…

Agüentei firme. Jacqueline tinha feito o mais difícil: comparecer ao encontro, ao contrário de
todas as pessoas que, no início de minha prática, desmarcavam na última hora. Por isso, logo de
saída, eu sentia muito respeito por uma pessoa que, apesar de sua flagrante timidez, ousava
enfrentar o que ela mesma qualificava de ignorância e encarar o que considerava um poço de
conhecimentos, ou seja, eu. Estava fora de dúvida que, em suas reticências para me falar mais do
assunto, havia uma boa parcela de verdadeira humildade. Mas eu teria que passar por cima disso ou
então fechar para balanço, a menos que me resignasse ao destino do dono do posto de gasolina em
pleno coração do deserto, lá onde só passa um veículo por semana. Assim, quando ela se despediu,
propus-lhe que estudasse o texto do Gênese, sem me iludir muito quanto a minhas possibilidades de
revê-la. Jacqueline voltou ao cabo de três semanas, trazendo A queda, de Camus. Isso, é claro,
confirmava minha suspeita, mas, para que ela passasse de bom grado à queda narrada na Bíblia, era
preciso, primeiro, passarmos por uma visão mais moderna…

Jacqueline entendia perfeitamente o herói de A queda. Lembrou que, ao atravessar uma


ponte, ele foi testemunha passiva da queda de um corpo no Sena. O que não era lá muito nobre. Mas,
pensando bem, em nome de que deveria ele atirar-se na água para salvar um ser humano que
resolvera se suicidar? Ela não atribuía a passividade do herói a uma covardia qualquer, a um desejo
pequeno-burguês de “não se molhar”, mas a seu respeito metafísico pela liberdade de outrem. Ela
mesma, no passado, tinha-se visto numa situação análoga. Julgara estar fazendo um bem ao
dissuadir uma amiga de pôr fim à vida. Depois, tinha-se arrependido, tão dolorosa fora a vida dessa
mulher.

Assim, estávamos no terreno previsto: se a vida era só um vale de lágrimas, de que


adiantava viver? Com que direito podia alguém se opor àquele – ou àquela – que quisesse deixá-la
antes da hora? Com Phil, eu já havia tocado de perto nesse debate. Ainda assim, tinha certeza que a
“demanda” não era a mesma. O que faltara a Phil, na verdade, era sofrimento; o que a seu ver
banalizava a vida, a ponto de lhe dar vontade de ir procurar alguma coisa noutro lugar, era o fato de
ele ter sido por demais protegido na infância (“superprotegido”, dizem os psicoterapeutas), depois na
adolescência e, por fim, quando adulto, de não ter passado por nenhum golpe duro (e, portanto, não
saber apreciar os bons momentos) e, por conseguinte, de não ter amigos (o que constitui, segundo
Epicuro, o maior bem deste mundo). Com Jacqueline não era nada disso. Ao contrário! O sofrimento
aflorava a cada sílaba arrancada da força de atração de seu mutismo. Em sua “demanda”, portanto,
não havia um “Não vejo razão para viver”, mas: “Vejo muitas razões para viver e gostaria de
recuperar o tempo perdido, mas não quero ser vítima de uma ilusão de óptica, porque o sofrimento
está sempre presente, intolerável.” Nesse sofrimento bastante palpável, havia, evidentemente, aquele
que lhe fora infligido, mas havia também o que ela infligia aos seus. Jacqueline se tornara mãe –
depois de um casamento libertador – e sabia que suas torturas de outrora a impediam de ficar
realmente à altura de sua tarefa. Não estar à altura! No começo, não percebi a que ponto essa
autocrítica dizia respeito à relação com sua prole. E foi por isso, sem dúvida, que insisti sem muito
escrúpulo em que atacássemos a leitura do Gênese.

Ela acabou cedendo, a partir desse dia deixando comigo a direção de tudo. Morando na
Normandia, não podia vir toda semana, de modo que adotamos um ritmo quinzenal flexível, que
variava em função do calendário escolar. Jacqueline tinha três filhos, dois meninos com mais de dez
anos e uma menina menor. Mas estava decidida a vencer o que considerava, por seu lado, sua
principal deficiência: não conseguir pôr em ordem a tempestade de seus pensamentos, não poder
expressá-los de maneira clara e distinta, nem sequer conseguir escrevê-los. Confiou-me ter tido,
quando menina, uma relação lúdica muito intensa com o pai: era sua pequena gueixa. E então, um
dia – estava com sete anos -, ao voltar da escola, vira-o deitado, à beira da morte; fora até sua
cabeceira e estendera a mão para ele… quando a mãe se precipitou para impedi-la, gritando: “Se
encostar a mão nele, vai matá-lo!” Desse dia em diante, ela fora incapaz de trabalhar corretamente
na escola, privada do contato com o pai e atormentada por idéias terríveis: “Se ele morrer, será culpa
minha! Se eu tocar nele, ele vai morrer, minha mão vai matá-lo!” Por isso, deixou que anos se
passassem na angústia e na rejeição da própria mão, sem progredir minimamente, portanto, na
escrita. E também sem falar e sem aprender de cor, pois que coração colocar na fala quando se é
uma assassina em potencial, quando se pode fazer tanto mal com toda a inocência? Bloqueio!

A morte do pai, quando já era adulta, viera libertá-la. Compreende-se: ela não tivera nada a
ver com isso… Desde então, lia muito, e livros difíceis, mas, não dispondo das conquistas elementares
da escolaridade, ficava com a cabeça girando em círculos. Quanto a escrever, qual! Isso lhe era quase
impossível. Ela havia, é claro, feito uma sólida terapia, que lhe permitira enfim encontrar um ouvido
atento e aberturas inesperadas para seu passado, e graças a isso pudera identificar a fonte de sua
deficiência. Mas o que lhe faltava não poderia ser-lhe dado pelo mesmo caminho, e ela apostava na
filosofia – e em minha paciência – para consegui-lo. Era isso mesmo. Eu realmente sentia que, em
suas confidências, muitas peças faltavam no quebra-cabeça. No entanto, não sendo terapeuta, não
tinha a menor vontade de me empenhar em descobri-las, sob pena de substituir minha tarefa por um
trabalho que não era o meu e, por isso mesmo, arruinar a idéia fundadora de meu consultório:
permitir que meus clientes retomassem a reflexão filosófica, cuja interrupção ou ausência, a meu ver,
podia ser uma calamidade. O intelecto tem sua própria lógica, que não é redutível às vicissitudes das
instâncias com que trabalham as diversas escolas de psicoterapia. Com ele, o universal entra
imediatamente em pauta. Ele tem sede do Todo. Essa sede tem que ser saciada. Antes tarde do que
nunca. Em Jacqueline, a sede do universal me parecia ter sido muito intensa, mas não pudera obter
nenhuma satisfação e essa frustração me parecia ter tido conseqüências particularmente graves; por
isso, era preciso distingui-la dos traumas diretamente ligados a suas relações familiares.

Eu estava convencido de que Jacqueline tinha contas a acertar com o cristianismo. Em seus
momentos de confidência em que a emoção derrotava a razão, ela me havia confessado que, na
escola, passava por uma “peste”. Não perante os colegas, pelos quais manifestava pouco interesse e,
portanto, nenhuma maldade, mas perante as religiosas. Pois sua escola era dirigida por freiras.
Menina ainda, Jacqueline percebia uma defasagem entre o ideal pregado nas salas de aula e o
comportamento real das irmãs, que, em suas palavras, forneciam uma esplêndida amostra de todos
os defeitos humanos: hipocrisia, ciúme, sadismo etc. Do ponto de vista delas, Jacqueline, por sua vez,
tinha um defeito capital: era uma “questionadora”. Não aceitava, como a maioria dos colegas,
aprender o catecismo sem compreendê-lo, recitá-lo de cor e acreditar naquilo que contradizia seu
bom senso. Por insistência minha, em várias ocasiões ela fez um enorme esforço na tentativa de
lembrar um dos pontos que a revoltavam e que eram alvo de seus comentários em aula. Em vão! Era
tudo muito fugidio e doloroso demais, talvez, para emergir mediante uma ordem. Sugeri a
“Santíssima Trindade” ou a “virgindade de Maria” ou a “encarnação do Redentor”, ou ainda sua
“Ressurreição depois de três dias”, todos esses artigos de fé em que repousa a doutrina cristã e aos
quais deve aderir, em princípio, a criança de uma escola católica. Mas de nada adiantou. Nada de
questionadoras na aula! – dissera a professora na quarta série primária e isso continuava a
funcionar…

Restou-me, pois, retomar o dossiê pela base, fazendo-a percorrer um itinerário análogo ao
de sua infância católica, apostólica, romana, de maneira a fazê-la pôr o dedo na legitimidade de sua
revolta de então. Na verdade, tropeça-se muito depressa em dificuldades imensas, do próprio ponto
de vista cristão, quando se procura restabelecer a coerência da colocação messiânica. À primeira
vista, a doutrina se sustenta. Deus, Criador do Céu e da Terra, enviou Seu Filho à Terra, dois mil anos
atrás, para redimir os pecados dos homens; na verdade, mal fora criado, o homem Lhe havia
desobedecido, comendo do fruto proibido, o que obrigara Deus a puni-lo severamente: expulso do
paraíso terrestre, o primeiro homem passou desde então a ter que trabalhar arduamente para
garantir sua subsistência e sua companheira, a mulher, foi condenada a parir com dor. Pois bem, em
seguida as coisas não se haviam arranjado, longe disso! De geração em geração, a espécie humana
não parara de cometer as piores infâmias, de modo que, em diversas ocasiões, Deus não hesitara em
destruí-la, no todo ou em parte. É claro que, em cada oportunidade, refizera uma aliança com um ou
outro de Seus representantes e depois experimentara essa operação com um povo inteiro: o povo
judeu. Mas em cada uma dessas ocasiões decepcionara-se em Suas expectativas; os homens,
inclusive Seu Povo Eleito, não paravam de descumprir sua palavra, seu compromisso de considerá-Lo,
a Ele, o único Deus: como não perder a esperança numa gentalha assim? Pois bem, Ele não a
perdera! Continuava a amá-la e a depositar nela Sua esperança. E, para mostrar isso a todos,
enviara-lhes Seu Filho: quando a dívida deles já ultrapassava qualquer possibilidade de redenção, Ele
a redimira; em vez de destruí-los, como poderia ter feito e como teria que fazer mais uma vez, Ele
sacrificara Seu Filho. Assim, sem mais, para lhes provar a imensidão do Seu Amor.

O problema está na incoerência do próprio texto do Gênese. Aos trancos e barrancos,


Jacqueline acabou reencontrando a lógica da doutrina que haviam tentado impingir à força a seu
espírito de menina. Ficou então em condições de ir ao texto verificar a legitimidade da referência
usada no cristianismo. E qual não foi sua surpresa! Realmente se tratava, no Gênese, da Criação do
Céu e da Terra por Deus e, depois, do pecado original, mas os dois relatos não eram compatíveis. Ela
mal podia acreditar no que via. No entanto, estava escrito… De fato, passa-se muito apressadamente
por um verdadeiro hiato nesse texto, entre um primeiro escrito, onde Deus cria o mundo em seis dias,
e uma segunda narrativa, onde Adão, a convite de Eva, ela mesma seduzida pela serpente, comete o
irreparável. No primeiro relato, Deus separa as águas superiores das inferiores, faz emergirem os
continentes na superfície da Terra, cria os astros para iluminá-la (o Sol e a Lua, assim como as
estrelas), e faz proliferarem as espécies vegetais e animais, dentre elas o homem. Fica contente
consigo mesmo e, no sétimo dia, pára para descansar. Estranhamente, o texto prossegue então com
um segundo relato, que retoma a história da Criação. Nesse segundo relato, a Criação não se dá na
mesma ordem. Dessa vez, o homem, Adão, aparece de imediato, antes de qualquer vegetação, antes
de qualquer outra espécie, ao passo que, no relato em seis dias, era o último a surgir. Ainda mais
estranho é ele ter que esperar pela criação de todas as outras espécies para que apareça a mulher,
quando, no primeiro relato, ela é criada ao mesmo tempo em que o homem. E, dessa vez, as coisas
correm mal.
É claro que, em certo sentido, os cristãos têm razão de se servir do Gênese para dar peso à
idéia do pecado original. A história está realmente ali. Vemos a mulher deixar-se tentar pela serpente
e o homem comer do fruto proibido. O problema é que essa história é incompatível com a da Criação
– pelo menos a da Criação em seis dias, com a qual a associam. Não é nessa criação que as coisas
correm mal: nela, tudo transcorre muito bem. E com razão, pois não há proibição alguma. Como
poderia haver desobediência? Deus fica muito satisfeito com Ele mesmo e com Suas criaturas, em
particular com aquela pela qual termina: o homem, ou seja, o homem e a mulher, que Ele criou ao
mesmo tempo e à Sua imagem; fica tão satisfeito com eles que lhes concede reinarem sobre todo
aquele mundo e desfrutarem de todas as árvores, sem exceção. O ambiente é totalmente diverso na
segunda narrativa: para começar, Deus modela o homem; depois, planta-lhe um jardim no Éden, mas
supõe-se que o homem deva guardá-lo para Ele. Isso já é um bocado esquisito! E, acima de tudo,
recomenda não comer do fruto da Árvore do Conhecimento (antigamente, dizia-se do conhecimento
do bem e do mal; agora se diz do conhecimento da felicidade e da infelicidade). Vendo que o homem
se entedia, Ele cria os animais (o que não é, de modo algum, idêntico à primeira narrativa, onde Deus
cria os animais para Seu próprio prazer e remata esse prazer com o homem). E, como Adão não se
contenta com isso, Ele o faz adormecer e retira de sua costela uma companheira. Esse Deus é cheio
de atenções, mas podemos senti-Lo febril, inquieto. Aliás, o irreparável não tarda. Ele desconfia de
Adão, persegue-o pelo jardim e o intima a se explicar. Acabou-se! Para que o homem não se iguale
aos deuses (espantoso plural!), Ele o expulsa do jardim do Éden, que coloca sob a guarda dos
querubins.

Dando tempo ao tempo, Jacqueline acabou reconhecendo a divergência entre os dois relatos.
Começou esfregando os olhos, “mas isso é uma barbaridade: como é que se pôde passar por cima
disso? Por que nos escondem isso há tanto tempo?” Depois, tentou conciliar os dois momentos do
texto: não seria possível supormos que a segunda narrativa entra em minúcias em relação à primeira,
concentrando-se na aventura humana? Mas não havia jeito: oposição das duas cronologias,
formulação de uma proibição somente na segunda narrativa… Não era fácil aparar as arestas dessa
maneira! E, acima de tudo, de que adiantava, a não ser para ocultar aquilo que a havia chocado
quando menina? No primeiro relato, pelo menos, Deus não impele Sua criatura favorita ao crime: é
onipotente e nada teme dela. No segundo, verifica-se o contrário: se Ele é onipotente, Ele determina
o curso das coisas. Se determina o curso das coisas, Ele é onisciente e, portanto, sabe que o homem
irá desobedecer-Lhe; nesse caso, é Ele o culpado. Onde está a culpa do homem? Dizem que ele foi
criado livre – portanto, o homem seria culpado, apesar de tudo, porque poderia não ter desobedecido;
e será que sua punição deve fazê-lo compreender o preço de sua liberdade? Mas o que é ser livre se
tudo está decidido de antemão?
Voltando a mergulhar no texto de referência, Jacqueline resgatou inúmeras de suas
perguntas de menina, inúmeras objeções formuladas furtivamente na sala de aula e, depois,
definitivamente sufocada por causa da “peste”. Empesteada: foi esse o destino de uma
“questionadora” que tinha sede de compreender o que queriam fazê-la aprender: se a Queda fazia
parte do roteiro, não podia Deus abreviar a história? Ele sabia perfeitamente que o homem não se
safaria sozinho, que Ele teria de lhe enviar Seu Filho para liquidar a conta. Não haveria um modo mais
simples? E sobretudo menos cruel? Para Seu Filho, pelo menos, a coisa não era tão grave, já que ele
tinha certeza de recuperar seu lugar à direita do Pai, mas, e os homens? Para todos os homens, cegos
de desejos e medos que os ultrapassam, a começar pela curiosidade, a qual, como se sabe muito
bem, é mais forte que tudo… para todos os seres humanos que tiveram que pagar e que ainda teriam
que pagar na carne o desvirtuamento de seu antepassado, não era o preço exorbitante? Como podiam
tantos inocentes pagar por um erro em que não tinham tido nenhuma participação? Aliás, o próprio
Adão não sabia estar agindo mal ao desobedecer, já que ainda não havia comido o fruto da árvore
que lhe abriria os olhos…

Dá para acreditar? Aquela jovem mulher, que me procurara balbuciando, que se declarara
incapaz de dizer três palavras seguidas sobre a religião de sua infância, finalmente caiu em suas
próprias graças. Não surpreende que se houvesse revoltado, na época, contra o que já então percebia
como incoerências. Também não surpreende que houvesse renunciado a fazer seu intelecto funcionar,
já que ele fora sistematicamente violentado na escola, justamente no lugar onde deveria ter sido
cercado de carinhos, cultivado e desenvolvido. Não surpreende que seu espírito se houvesse tornado
frígido! Agora, no decorrer de nossas sessões, ela se atirou em verdadeiras meditações metafísicas e,
em pouco tempo (e sozinha), descobriu o cogito. Por isso nos lançamos nas meditações de Descartes.
Atualmente, estamos na terceira – aquela em que ele tenta laboriosamente provar a existência de
Deus.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

PRIMEIRA PARTE
ONDE ESTAMOS?

V
Sessões coletivas

O consultório de filosofia é um local onde nos interrogamos sobre a validade do sentido que
damos ao palco da vida e ao papel que desempenhamos nele. Fazemos as referências surgirem
quando estão apenas latentes e as analisamos quando são explícitas. Um conceito, uma doutrina, um
texto, uma obra ou um autor vêm então facilitar o caminho da conversa. O contrato pode ser
curtíssimo. Lembro-me de um senhor idoso que queria um comentário preciso sobre a primeira frase
dos Fundamentos da metafísica dos costumes, de Kant, mas essa tarefa teria que ser executada no
prazo de uma hora. Como a maioria de meus clientes, ele marcara o encontro por telefone,
perguntando, muito aborrecido, se poderia ter apenas uma consulta. Eu o tranqüilizara quanto a isso
e ele viera logo depois, uma vez que tinha urgência: com efeito, precisava fazer uma apresentação
em um curso que iniciara na terceira idade na universidade de Nanterre. Já não tinha muita certeza
de sua competência, disse, em vista da idade, e precisava de meus esclarecimentos para não fazer
fiasco. Seu problema era simples: ele não entendia como Kant podia fundamentar a moral na “boa
vontade”. Isso não lhe parecia sério. A seu ver, era preciso apoiar-se na ciência para encontrar um
fundamento sólido para a moral – no saber acumulado pelas gerações, na verdade sobre a natureza
humana, em suma, no conhecimento. Ora, Kant parecia dizer que se devia prescindir disso: como
compreender essa negação por parte de um dos mais famosos partidários da filosofia do Iluminismo,
que tanto contava com os avanços da ciência para acabar com as superstições do passado? Nesse dia,
fazia um tempo esplêndido. Por isso, mal ele chegou ao consultório, antes mesmo que pudesse se
acomodar, pedi-lhe que me acompanhasse e o levei até a praça dos Vosges. E o contrato foi
cumprido.

Com freqüência, a coisa é muito mais demorada. Quando se quer aprender ou reaprender a
pensar por si, um ano não é demais. Os dois casos precedentes mostram isso. E há muitos outros.
Como o de Eric Z., um jovem diretor e roteirista que estava farto de escrever para novelas de
televisão e queria trabalhar em profundidade, na trilha do romance noir norte-americano; por isso
“atacamos” A náusea, de Sartre – o que leva tempo. Lembro também de H. M., jornalista da área
científica, especializado em biologia, que, alertado para os possíveis desvios das pesquisas em
genética, estava procurando fazer uma ponte entre a genética e a ética… Penso ainda em Huguette,
que voltava a Paris depois de décadas de opulência em Roma e queria a todo custo fazer seu bac! Pois
bem, Nietzsche, no programa de filosofia, barrou-lhe o caminho… Em cada situação, não apenas a
demanda é diferente, mas também a disponibilidade, o vigor mental, a motivação. Ademais, o
trabalho pode ser interrompido e retomado. Se nos ativermos a uma comparação gastronômica, não é
de lanches ligeiros que se deve falar a propósito da filosofia de consultório, mas de filosofia à la carte.

Além do número e do ritmo das sessões, o número de participantes também pode variar. Em
vez de ir sozinho, pode-se ir a dois ou até em grupos de três; quando se teme o cara a cara e se
compartilha o desejo de “filosofar” com um amigo ou um conhecido, por que não passar uma hora
juntos no consultório de filosofia? Desde que iniciei minha atividade, tive amiúde a oportunidade de
receber duas pessoas ao mesmo tempo, tanto para uma única sessão quanto para mais. Na primeira
vez foi um psiquiatra de Marselha, de passagem por Paris, que veio com a companheira e queria
minha opinião sobre o caso de um adolescente com problemas. Depois, uma jovem me perguntou se
poderia oferecer uma consulta ao namorado como presente de aniversário: achei esplêndida a idéia e
recebi os dois. Noutra ocasião, foi um casal já casado. Dessa entrevista não posso me esquecer.

No telefone, a mulher me afirmou que o marido e ela se faziam exatamente a mesma


pergunta, nos mesmos termos; assim, perguntou se poderia vir com ele para que a debatessem.
Confirmei-lhe que, mesmo a dois, os honorários cobrados por hora não mudavam e então me informei
sobre “a” pergunta. Sem se apressar, ela anunciou solenemente: “Por que cumular-se de objetos
inúteis?” Acrescentou que cada um deles tinha sua opinião sobre o assunto, mas, como as opiniões
eram radicalmente opostas, queriam encontrar-se comigo para saber quem tinha razão. Aceitei.
Nunca tendo refletido sobre esse problema, do qual não discernia os pormenores nem as
generalidades (através de qual filósofo seria possível abordá-lo?), recebi-os sem nenhuma
preparação. Em poucos minutos, a controvérsia ganhou corpo. O marido era de opinião que não se
devia deixar-se invadir por objetos que não servem para nada, nem mesmo se tivessem valor
sentimental, porque isso paralisava a ação: tomando por modelo sua escrivaninha, superfície de
trabalho que ele se empenhava em manter sistematicamente vazia, deplorava a mania da mulher de
encher a casa de toda sorte de objetos, a ponto de comprometer a circulação pelos aposentos. De sua
parte, preferia enfurnar no porão tudo o que era supérfluo. A mulher, ao contrário, considerava que a
eficácia imediata não devia conduzir ao vazio impessoal de um espaço estritamente funcional e
preferia viver em meio aos objetos que lhe eram caros, mesmo estorvada em sua movimentação; ao
que ele retrucou que isso não fazia sentido e que, mesmo no porão, conservar as coisas antigas era
uma tolice, não apenas porque coisas novas as tornavam supérfluas, mas também porque ele não se
sentia no direito de infligir a seus filhos, mais tarde, todo aquele entulho; sim, porque, afinal, que
fariam eles com tal patrimônio, com todos aqueles bibelôs e móveis fora de moda?

A controvérsia daria bons motivos de riso se não revelasse uma dor dilacerante, da qual era
óbvio que ambos sofriam há muito tempo e que tomara aquele rumo espantoso. Com muita rapidez,
de fato, ouvindo-os exporem alternadamente argumentos existenciais, combinados com críticas
acerbas em defesa própria, pareceu-me que o cavalheiro, o marido, considerava que a mulher
tornava sua vida impossível em casa e que, pensando bem, o estorvava: que não apenas entulhava a
casa de objetos inúteis, mas fazia parte desses objetos inúteis. Por seu lado, aludindo discretamente à
infidelidade do marido, a mulher não escondeu que sua mania de acumular objetos nos aposentos
comuns e até de entupir “o escritório dele” decorria essencialmente do desejo de lhe recordar “sua
própria existência”, de tanto que ele acabara por esquecê-la, a ponto de agir como se já não a visse:
“É como se eu fosse transparente!”, deixou escapar com um sorriso melancólico.

Lá estava eu em maus lençóis! Haveria de servir de álibi para um acerto de contas? Ou será
que deveria transformar-me, para a ocasião, em conselheiro matrimonial? Vislumbrei uma terceira
alternativa, mais conforme ao papel que eu pretendia desempenhar em meu consultório. O patético
daquela disputa tinha algo de universal. Na luta entre os dois membros do casal eu via o conflito da
coletividade com o indivíduo e a luta do futuro com o passado. A posição do marido me fazia lembrar
a intransigência dos revolucionários: a de um Robespierre, decidido a subordinar os caprichos de cada
um ao bem de todos, arrasando com as instituições e códigos acumulados pelo Antigo Regime: os
privilégios da aristocracia, do clero, os direitos das corporações, os pedágios, as tarifas aduaneiras,
toda sorte de impostos, os decretos do monarca, que aprisionavam o povo numa trama inextricável
de leis, era preciso acabar com tudo aquilo, fazer uma limpeza na superfície e em profundidade, pois
todo aquele entulho refreava o avanço da sociedade moderna. Assim, perguntei a esse homem se ele
escolhia o partido da coletividade contra o do indivíduo, se reconhecia a si mesmo no ato
revolucionário, se além disso aspirava a ele e se avaliava as conseqüências dessa opção. Seu
problema, com efeito, era aquele em que a Revolução Francesa – qualquer revolução, talvez – nos
obrigava a refletir: considerando-se que a parte é menos importante que o todo, que fazer com a
herança do passado? Jogá-la fora ou conservá-la? Jogar tudo fora? Não conservar nada? Ao se livrar
dos entraves do Antigo Regime, o “povo” francês julgou instaurar o império da igualdade e da
fraternidade; pois bem, no “entulho” das instituições rejeitadas achavam-se medidas destinadas a não
deixar com rédeas soltas os demônios furiosos do comércio e da indústria… Sabemos o que veio
depois. Por isso, sugeri ao cavalheiro em questão que estudasse de perto esse período, sobretudo que
mergulhasse por um instante nos esplêndidos discursos de Robespierre e que depois fizesse um
pequeno recuo e os cotejasse, por exemplo, com o ensaio de Tocqueville sobre O Antigo Regime e a
Revolução.

Quanto a ela, propus-lhe prestar atenção ao que motivava sua oposição. Não havia por que,
com efeito, situá-la no campo dos conservadores e lhe propor uma continuação do debate nesse nível.
Sua resistência ao marido, pareceu-me, não tinha uma base política nem tão cedo teria como eixo o
destino da coletividade. Provinha de sua humilhação pessoal e de sua obsessão com a idéia de uma
separação. Ela acabara não existindo mais aos olhos do marido; parecia-me urgente, pois, que se
indagasse por quê. Ele a achava “transparente”: quanto tempo ela iria esperar para recuperar sua
densidade? Ela parecia existir apenas para o marido; não deveria, antes, procurar existir por si
mesma?

Minha sugestão nada tinha de enigmática. Deixar de se submeter ao olhar do outro é a


própria vocação da prática filosófica. Quando crianças, aprendemos a ver o mundo através dos olhos
dos outros, nossos pais, nossos professores; na maioria das vezes, submetemo-nos à imagem que
eles nos querem fornecer do mundo – uma imagem feita para nos guiar pelo bom caminho. Mas de
que vale tal visão do mundo? Os fatos logo se encarregam de comprometê-la. Raramente ela é
confirmada por nossa experiência. Muitas vezes, outros discursos vêm desacreditá-la, como os de
nossos autores favoritos, que solapam – como que por acaso – a sabedoria de nossos mestres. Aos
poucos se instala a dúvida. Ela se impõe. Penetra a fundo. Um dia, é imperativo reconhecê-la. Por
outro lado, quem sou eu se não penso por mim? Quem sou eu, se não sou um sujeito pensante? Um
objeto. Uma coisa que não pensa. Que há de surpreendente em que eu faça “parte dos móveis” se
aqueles que pensam não se dão conta de mim? Terei ao menos certeza de existir? Para me certificar
disso, só há uma solução: duvidar; e, a partir daí, é me aperceber de que, se duvido, bem, ao menos
é porque existo!

Foi assim que procedeu Descartes no passado. Oriunda de sua educação solidamente cristã, a
imagem que ele tinha do mundo foi aos poucos corroída pela dúvida. Um dia, ele acabou pegando o
touro pelos chifres, chegando até a pôr em questão a própria existência do mundo e em seguida a
dele mesmo. Donde a experiência do cogito. Ali estava algo que poderia servir de lição para aquela
mulher tão “transparente”. A transparência não é uma falha, quando fornece a primeira certeza
àquele que duvida de tudo. Mas resta poder pensar por si: ninguém pode me garantir que existo a
não ser eu mesmo, em minha transparência diante de mim mesmo. Ninguém pode pensar em meu
lugar. Assim, o status da transparência se transforma: de negativa, se sofro por não existir pelo
outro, para ele e através dele, ela se torna, ao contrário, positiva, a partir do momento em que me
assumo como sujeito pensante, pois nada é mais claro do que esta idéia: “Se duvido, é porque
existo.” Certo, continuo a ser transparente, mas, desta vez, isso é um trunfo para mim, pois é a prova
de que existo – por menos que eu pense por conta própria.

Por fim, de um modo patético, esse casal vivia em pequena escala uma tensão absolutamente
espantosa: de um lado, o pólo coletivo, o da história humana, onde é o “nós” que constitui a lei e, de
outro, o pólo individual, o do sujeito que diz “eu”. Cada qual tendia para um dos pólos, mas a sorte
não estava lançada. Nenhum dos dois fizera realmente uma escolha. Assim, tinham um trabalho pela
frente, a fim de decidir com conhecimento de causa: ele, em favor do pólo coletivo, num sentido
revolucionário, e ela, em favor do pólo individual, no sentido do cogito cartesiano. Estariam ambos
dispostos a assumir suas tarefas? Poderiam levá-las a termo juntos? Continuo até hoje sem saber. Eu
os teria ajudado de bom grado, porém nunca mais voltei a vê-los. Teria sido uma bela aventura. Mas
eles decidiram de outra maneira. Não foram adiante.

Convém dizer que não foram os únicos. Por diversas vezes sucedeu-me não rever clientes
cujo projeto, ao término da primeira sessão, era promissor; outros pararam pelo caminho, sem ir “até
o fim”. Alguns renunciam por lhes faltar coragem para aprofundar sua problemática e entusiasmo
para trabalhar com os textos, outros por lhes faltar tempo e outros, ainda, evidentemente, por lhes
faltar dinheiro. Entretanto, a fórmula das duplas funciona bem, justamente por resolver de fato uma
boa parte das dificuldades há pouco evocadas; primeiro, sai menos caro para cada um; depois, a
angústia frente à pessoa do “filósofo” também é dividida por dois; e, por último, estabelece-se muito
depressa uma dialética fecunda entre várias pessoas.

Testemunha disso são duas moças, que chamarei de J. e D., com quem trabalho com afinco
há mais de um ano. À razão de cerca de duas sessões por mês, elas avançam por um itinerário que
vai sendo decidido ao longo do percurso, sem uma programação pré-estabelecida, ao sabor das
recorrências – e das lacunas. Assim, partindo da República de Platão, passamos pelo Gênese e fomos
bater, saltando sobre séculos, no Cândido de Voltaire; detendo-nos por um instante na Teodicéia de
Leibniz, aproximamo-nos de Nietzsche, para acompanhar sua Genealogia da moral; dali voltamos
para o Manifesto de Marx e Engels, antes de nos colocarmos à escuta das reflexões de João Paulo II
sobre as “coisas novas”, em sua encíclica Rerum novarum. A lógica desse percurso? Decorre da
interrogação inicial de J. e D. Havendo fundado juntas, há mais de dez anos, sua empresa de
comunicação publicitária, especializada em som, viveram em dupla a grande era da “propaganda” – e
a viveram bem, mas trabalharam imensamente. Como a maioria dos profissionais desse ramo,
ressentem-se hoje dos efeitos da crise que afeta o mundo dos negócios. Assim, perguntam-se não
apenas se ainda vale a pena “mergulhar no batente”, se a verdadeira vida não está noutro lugar, se
esse investimento de tempo e energia é o que lhes convém pelo resto da vida, mas também, em
termos mais gerais, como evoluirá a situação: será que a crise vai durar? A Europa é a solução
adequada? Que conseqüências pode ter o fim da aventura socialista nos países do Leste? O Ocidente
ainda é a locomotiva da civilização? Estão os países pobres no caminho certo? Em suma, para onde
vai o mundo moderno?

Posto que moderno se opõe a antigo, propus a J. e D. fincarem um primeiro marco de


reflexão, começando por Platão. Isso é muito prático, já que na República ele traça um quadro
impressionante da situação da cidade em sua época. Naturalmente, no intuito de reavivar as emoções
ocultas e fugidias da última série secundária, fi-las mergulharem na caverna. Elas puderam passar por
aquele momento (às vezes traumático) em que sentimos, a exemplo de outros prisioneiros, o
pescoço, os pés e as mãos atados desde a infância, vítimas que somos das aparências que desfilam
na parede do fundo e incapazes de alterar o curso dos acontecimentos. Momento em que invejamos
aquele que os deuses libertam de seus grilhões e empurram para a saída, para o ar livre, mesmo que
ele sofra por um momento com a intensidade da luz do dia, pois “é o verdadeiro sol que ele pode
contemplar, em seu lugar verdadeiro”, e não “as vãs imagens refletidas no fundo da caverna”!

Percebe-se de imediato que Platão tem muito a nos ensinar. Sua alegoria já provocou um
bocado de rugas. Não é a vida um embuste no qual, na maior parte do tempo, não temos papel
algum a desempenhar senão o de espectadores? Porventura não ficamos, na maioria das vezes, numa
passividade pueril frente a um jogo de sombras chinês, sobretudo desde a era da televisão? Já com o
advento do cinema, esse texto havia recuperado uma espantosa modernidade; sala escura, cada um
colado em sua poltrona, fascinado pela tela onde tudo acontece, e a fonte luminosa situada atrás da
multidão… É como se Platão se houvesse antecipado a essa invenção. Mas que dizer da tevê? Mais do
que nunca, não somos nós prisioneiros desses “grilhões”? O poder de fascínio da televisão decuplica-
se. Quer se trate de “ficções” ou “realidades”, temos cada vez menos condição de nos afastarmos do
que se passa diante de nós. Além disso, é freqüente a realidade superar a ficção e a apresentação da
atualidade nos “noticiários” passa por inúmeras manipulações, esfumando-se a tal ponto a diferença
entre o verdadeiro e o falso que teríamos muita dificuldade de separar com certeza um do outro.
Ainda por cima, o espectador está agora “ligado a cabos” e a oferta de espetáculos é tão vasta que se
tornou possível viver permanentemente por procuração. Por conseguinte, de que serve dar
importância ao real? Uma vez que o paraíso passa pelo artificial, por que lutar contra a banalidade do
cotidiano? Isso já fora bem percebido por Platão: os prisioneiros não sofrem mais com seus grilhões –
chegam até a se rejubilar com eles.
A pertinência do início do livro VII da República produz, é claro, um efeito ambíguo. É que,
desde Platão, as coisas praticamente não mudaram. É como se a espécie humana não pudesse
escapar à mediocridade de seu destino! Ora, era justamente esse o âmago do problema de J. e D.!
Que fazer contra isso? Não caberá ao sujeito resignar-se, nem que seja para tirar o corpo fora no que
lhe diz respeito, sendo menos “nulo” do que os outros, menos passivo, menos gregário, menos
ruminante, menos adormecido? Para os (as) agentes da esfera publicitária, que fazem parte dos
“manipuladores” que Platão põe em cena como “operadores de fantoches”, que agem sem o
conhecimento dos espectadores, agitando os objetos cuja sombra é projetada no fundo da caverna,
isso significa “safar-se”. O que não exclui todo e qualquer escrúpulo. Mas, pensando bem, não é
melhor perder a alma dessa maneira?

O problema é o fim do roteiro. Um fim calamitoso! Calamitoso, num primeiro momento, para
o “herói” da história, aquele que escapa ao destino comum ao sair da caverna. Uma vez liberto do
“mundo da aparência”, ele acede ao “mundo do verdadeiro, do bom e do belo”. Está tão bem nele
agora que já não convém falar-lhe do prazer que extraía de seus grilhões, lá embaixo com os outros,
na ignorância e na ilusão. Por seus ex-companheiros, só consegue sentir compaixão; quanto a ele,
seu gozo é inominável. Mas e se seus libertadores lhe pedirem que retorne à caverna, apostando
justamente em sua compaixão, e se o mandarem para lá a fim de “esclarecer” os ignorantes, para
lhes abrir os olhos, e se ele se resignar a isso, em detrimento de sua felicidade pessoal, que
acontecerá? Fazendo uma alusão mal disfarçada ao destino reservado a Sócrates por seus
concidadãos, Platão interroga: Porventura não o matarão? E a resposta é óbvia: em vez de escutá-lo,
eles o tomarão por louco e, se ele insistir, se tentar cumprir sua ordem, mata-lo-ão.

Nesse ponto, a situação dos publicitários, membros da corporação dos operadores de


fantoches, torna-se mais delicada. É que Sócrates, no caso, revela as manipulações deles e, portanto,
eles têm todo o interesse em seu desaparecimento. Em que o façam calar-se, antes de tudo para que
ele pare de impedi-los de fazerem seu trabalho e em que o eliminem, se vier a se obstinar. No
entanto, de certa maneira, o discurso de Sócrates pode comover-lhes diretamente o coração, uma vez
que eles não se resignam, nem que seja no que lhes diz respeito, a “suportar” a ilusão coletiva; se
eles se tornarem cínicos, não terá sido por despeito? Se passaram para o lado dos fabricantes de
ilusões, não terá sido por não haverem encontrado a saída certa? Quem sabe se seu cinismo compete
à sua cegueira? Ao se tornarem cúmplices do processo contra Sócrates, não ratificam eles sua própria
mediocridade? Ao fazerem Sócrates passar por nocivo, ao ratificarem sua condenação, não estão eles
destruindo sua própria justificativa para fazer o que fazem? Se eles se tornaram mercadores de
sonhos, foi, de certa maneira, por falta de coisa melhor; mas, se houver algo melhor…
Só que é preciso que haja algo melhor. Daí a passagem pela Bíblia, uma vez que ali a
maldição é atuante. Por Cândido, já que o herói de Voltaire, convencido por seu mestre Pangloss da
benevolência da Providência para com a aventura humana, acredita durante muito tempo que o
império do mal na Terra preludia o do bem e que a idéia de fatalidade é uma interpretação
equivocada do curso dos acontecimentos. Pela Teodicéia, já que a doutrina de Pangloss é extraída
dessa (grande) obra em que Leibniz, como bom advogado, tenta inocentar Deus do mal que reina
sobre a Terra. Pela Genealogia da moral, já que nela Nietzsche retoma a seu modo a intuição
platônica da fatalidade da decadência da democracia. Pelo Manifesto, que serve de contraste para
Nietzsche e permite reformular, com conhecimento de causa, as aspirações à justiça e à igualdade
das massas trabalhadoras do século 19, das quais Marx e Engels se tornariam os profetas. E por fim,
pela penúltima encíclica papal, posto que João Paulo II, depois de lembrar o interesse pedagógico da
experiência socialista, tenta, com Centesimus Annus, destacar o papel da Providência na queda do
muro de Berlim.

Estamos nesse ponto. No caso, as posições se decantaram. J. revelou-se nitidamente mais


“realista” do que D., isto é, mais resignada quanto à capacidade da espécie humana de triunfar sobre
sua “natureza” intrinsecamente egoísta. D. continua “um tanto” idealista, ou seja, menos segura da
irrevogabilidade da burrice humana, chegando mesmo a admitir a possibilidade de um mundo em que
o dinheiro não mais constitua a lei. Essa oposição tem-se corroborado regularmente. A estimulação
tem funcionado a pleno vapor, cada qual desafiando a outra, alternadamente, a fundamentar sua
posição e colocando-a na defensiva. Às vezes, é verdade, elas procuram me fazer falar – e
conseguem.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

PRIMEIRA PARTE
ONDE ESTAMOS?

VI
Em seminário sobre a autenticidade

Sozinhas, aos pares ou em grupos de três, as pessoas que fazem consultas beneficiam-se da
disponibilidade máxima do filósofo que se coloca a seu serviço. Tanto assim que, quando é difícil
funcionar de outra maneira, não me recuso a me deslocar: com J. e D., por exemplo, já não é no
consultório que se desenrolam as sessões, mas no escritório delas. Para essas clientes, trata-se, antes
de tudo, de uma pausa: existe seu trabalho e, a cada quinze dias, a “pausa para a filosofia”. Para
mim é também uma pausa. Gosto dessa sensação. Chegar ao escritório delas, vê-las se alegrarem,
trocarem um olhar cúmplice, desviarem suas linhas telefônicas para um serviço ad hoc, colocarem o
livro do momento em sua mesa de trabalho, com cara de ginasianas que temem ser submetidas a um
questionário, embora sabendo que a única sanção existente, se não tiverem feito seu dever de casa,
será uma diminuição do prazer… Seja no horário de almoço ou em plena tarde, elas oferecem a si
mesmas um momento de intervalo, uma pausa para respirar.

Esse tipo de trabalho, entretanto, não pode ultrapassar o número de três participantes. Para
além desse limite, o trabalho de cada um, suas colocações, suas conquistas, suas motivações, seus
sentimentos – em suma, sua evolução – não podem ser acompanhados nem estimulados como
convém. A bem da verdade, é extremamente raro mais de três pessoas precisarem de uma consulta
sobre o mesmo assunto num mesmo momento. Além disso, existe uma forma adaptada para os
números mais elevados: o seminário. Aliás, foi nessa forma de intervenção que pensei inicialmente,
ao abrir o consultório, e não em consultas. Parecia-me que esse era um bom meio de informar sobre
a existência dele e inaugurar uma série de novos serviços. Bastaria que eles fossem introduzidos
numa forma bastante conhecida e muito praticada, quer na vida profissional, no âmbito (ou sob a
égide) das empresas, quer nos fins de semana, com fins de “desenvolvimento pessoal”.

Na imprensa do mundo dos negócios, nas convenções e nos foros profissionais, já se vinha
falando muito num “retorno aos valores fundamentais”. Nas empresas médias ou grandes, os setores
de “recursos humanos” começavam a ser solicitados a fornecer ao pessoal um “código de ética”
passível de devolver aos empregados e dirigentes o senso de responsabilidade e o orgulho de
pertencerem a sua firma. Efeito de moda ou manipulação? Que havia de autêntico nesse agito
cerebral?

A questão continua a ser atual. Muitos dirigentes de empresa sentiram-se tentados a utilizar
a ética para exorcizar um mal sobre o qual nenhuma das técnicas empregadas até aqui, nenhuma das
ciências solicitadas, ofereceu qualquer tipo de controle. Ora, na maioria das vezes não se trata de as
pessoas se interrogarem em comum sobre o caráter pernicioso assumido pelo curso dos
acontecimentos, mas de nada mais nada menos do que devolver aos empregados o gosto pela
batalha e permitir que a empresa recupere o dinamismo necessário para salvaguardar o futuro.
Oriunda da América, essa onde de ética não tem tido nenhuma dificuldade de penetrar numa Europa
tomada pela dúvida, assaltada pela angústia quanto ao amanhã, num mundo de negócios em crise,
sacudido por escândalos em série. Em que, em quem ainda é possível confiar? A interrogação é
carregada de sentido. No recurso à ética, portanto, há algo de íntegro: a recusa a um resignar-se à
corrupção e à fatalidade. Mas há também um processo de anestesia da reflexão: refletir sobre a
origem do mal implica o risco de incomodar demais, de fazer surgirem revelações dolorosas e, por
conseguinte, de desmotivar, em vez de mobilizar outra vez. Do ponto de vista da eficácia imediata,
mais vale fazer o sintoma desaparecer!

Não tenho certeza de que essa seja uma boa medida. O fantasma do desemprego assombra
todos os empregados, assim como muitos dirigentes; o da falência atormenta muitos empresários,
enquanto o espectro de um craque financeiro assombra a maioria dos economistas, até os mais
otimistas. Ninguém recobra a serenidade desviando os olhos do perigo. Quem pode se beneficiar
dessa atitude? Por quanto tempo? Se a moral ainda pode ser de alguma serventia, isso passa pelo
inverso do que se pratica sob o nome de “ética”. Sua condição primordial é a autenticidade. Daí a
escolha desse tema como objeto de meu primeiro seminário.

Mas era preciso não cair em certas ciladas características desse tipo de trabalho em grupo.
Que há de mais aflitivo do que aqueles “seminários” em que um orador vem expor o fruto de seus
trabalhos pessoais, sem que seus ouvintes jamais sejam realmente solicitados a fazer alguma
contribuição? Tomam-se notas com docilidade, formula-se polidamente uma pergunta e (quando as
“intervenções” são boas) volta-se para casa (ou para o quarto de hotel) com a sensação de ter ficado
mais inteligente – o que dura tão-somente o tempo de um sonho. No extremo oposto está o
seminário ativo, aquele em que as pessoas se investem: elas tiram a máscara, entregam-se, fazem
confidências, revoltam-se, apostrofam umas às outras ou então trocam de papéis, “soltam-se”,
relaxam, libertam-se do jugo do logos, deixam seus desejos se externarem, soltam as rédeas de sua
“criatividade” – mesmo que depois tenham de arcar com as conseqüências; melhor ainda, elas se
superam, apanham ar, aspiram a brisa, roçam-se nas árvores, caminham sobre brasas, atiram-se no
vazio…

Com seus “seminários de pesquisa”, os universitários podem passar ao largo dessas


aberrações, mas, em que contribuem eles para elevar o nível de reflexão daqueles que estão presos,
justamente, na armadilha das formas comuns de “seminário”? Eles não são dirigidos ao mundo
empresarial, nem tampouco à multidão de pessoas que querem viver melhor, fazer um uso melhor de
sua passagem pela Terra. Quase sempre movidos por imperativos estratégicos e táticos, definidos a
partir de seu plano de carreira, em geral eles só atraem universitários (doutorandos e colegas) e, se
há entre eles alguns que são movidos por uma verdadeira sede de saber, quantos estão procurando
apenas tornar-se conhecidos, para construir seu futuro?

Meu seminário tinha que evitar todos esses perigos. Para dizer a verdade, o risco era
limitado. Lecionando no Instituto de Estudos Políticos havia algum tempo, eu me abria para um
universo diferente do da universidade. Não tinha a menor vontade de reproduzir o modelo da casta.
Devia haver algo muito melhor para fazer. O retorno à ética se transformara num leitmotiv: por que
não sondar sua profundidade? O fato de as instâncias dirigentes das empresas se haverem
sensibilizado para um saneamento dos comportamentos na esfera das finanças, do comércio e da
produção teve o efeito de permitir que muitos fornecedores de formação propusessem a ética como
um novo “produto”, cuja promoção era garantida por pensadores de renome. Ora, esse tipo de
serviço quase não se diferencia do espetáculo televisivo, no qual, até segunda ordem, o público é tão
maciço quanto passivo. A esse estrelismo da intervenção prefiro o retorno aos textos fundadores. O
objetivo desse primeiro seminário, sobre as origens da moral ocidental, era fazer cada um dos
participantes retroceder da vazante do seu discurso para o montante de suas referências. Cada um,
portanto, deveria implicar-se. Mas esse processo nem por isso abria as portas às gesticulações de
vocação terapêutica. Tratava-se de um seminário de reflexão, não de ação. Se eu formulava um
convite para que se fizesse uma pausa no frenesi da luta pelo poder – ou pela sobrevivência -, não
era para permitir que o corpo levasse a melhor sobre a mente e que a loucura preponderasse sobre a
razão. Ao contrário, era para restituir ao espírito e à razão suas prerrogativas, para permitir que os
participantes sondassem o teor de seu desejo mais ou menos oculto e mais ou menos latente de se
tornarem novamente autênticos e que definissem suas condições com conhecimento de causa. Era
preciso que cada um se implicasse explicando-se.
Pois que todos nos servimos de conceitos com “bem” e “mal” e todos (ou quase todos)
tratamos de agir de acordo com esses conceitos: por exemplo, (em geral) resistimos à tentação de
mentir, roubar ou matar. Quando não resistimos, dizemos estar cometendo, senão um pecado, ao
menos um “erro”. Mas esses conceitos, assim como essa resistência, retiram sua legitimidade de uma
doutrina que em nossa época já caiu em desuso: são pouquíssimos os que ainda “acreditam”
seriamente nos dogmas cristãos… No entanto, agimos como se eles preservassem toda a sua
pertinência, uma vez que, tanto em nossas palavras quanto em nossos atos, referimo-nos a eles. Na
maioria das vezes, é claro, essa referência é apenas implícita e teríamos um bocado de dificuldades
para apontar sua verdadeira fonte. De fato, quem sabe precisar espontaneamente de onde a doutrina
cristã extrai sua coerência? O que equivale a dizer que não estamos em condições de justificar nossas
palavras nem nossos atos. Seria muito fácil, para um imoralista, deduzir disso que não sabemos o que
dizemos nem o que fazemos…

Esse seminário tinha como objetivo primordial avaliar as lacunas de seus participantes e
preenchê-las mediante o acesso a alguns textos decisivos. No caso, era preciso voltar à epístola do
apóstolo Paulo aos romanos, onde se estabelece a relação da vinda do “Salvador” com sua morte e
com o “pecado original”. Uma vez tornado (novamente) familiar esse texto, seria preciso remontar a
outro no qual Paulo se apóia: o relato do “pecado”, que se encontra no Gênese e constitui o início do
que os cristãos chamam de Velho Testamento. Nessa etapa, que já leva algumas horas, é chegado o
momento de indagar sobre a validade da referência em que se apóia o conjunto do edifício doutrinal.
Esse exame reserva muitas surpresas, a tal ponto revela ignorância, cegueira e complacência.

Num segundo momento, retorna-se à tradição grega. Isso porque, não nos esqueçamos, a
corrente cristã inundou por completo a cultura greco-romana. Ao fazê-lo, dela retirou de empréstimo
muitos elementos. Obviamente, nossos conceitos de bem e mal provêm de Platão. Com efeito,
encontramos em sua obra um convite à sabedoria, no qual se inspiraram todas as correntes
posteriores. Na República, em particular, vemos o que significa atingir a autenticidade e o cristianismo
inspirou-se largamente nela para justificar sua própria revelação. É possível que a fonte tenha secado
o que o que ainda bebemos nela esteja poluído, na verdade. Pode ser que tenhamos de inventar
novos valores e um novo código de conduta. Mas, para evitar mal-entendidos e equívocos, resta saber
do que estamos falando. E se é preciso, para retornar à caverna de Platão, enfrentar torrentes e
precipícios, ao menos podemos acalentar a esperança de, mais cedo ou mais tarde, reencontrar o
verdadeiro sol.
Assim demarcado, esse itinerário reduz ao mínimo o risco da passividade, onde nada
acontece, e também o do happening, onde tudo pode acontecer. As pessoas podem tomar notas, mas
acima de tudo devem se expressar. Devem pisar em brasas, mas nas brasas da tradição; devem
saltar no vazio, mas no vazio de suas referências.

Não obstante, logo tive que me render às evidências: esse seminário não atingia o alvo
inicialmente previsto. Não “colava” onde eu havia esperado: na população afetada pela onda de ética
nas empresas, em particular os dirigentes. Todos aqueles a quem o propus declararam-se muito
entusiasmados e me asseguraram que logo reservariam dois dias para fazer a “pausa” necessária.
Nenhum, ou quase nenhum, manteve a palavra… Foi uma grande decepção para mim, mas uma
experiência importante. Ainda mais que, inversamente, ali onde eu não esperava, ou seja, entre os
particulares, as coisas puseram-se quase que naturalmente em andamento. Por particulares refiro-me
a todos aqueles que conheci “na rua”, em sua vida de cidadãos, fora de seu meio profissional, em
especial no Café des Phares, e que, de um modo ou de outro, tinham ouvido falar do consultório. Não
apenas comecei a ter clientes regulares em consulta, como muitos dos que não ousavam
comprometer-se de imediato com essa aventura encontraram no seminário um meio de praticar
filosofia conforme suas necessidades.

Até hoje, seis grupos completaram o percurso previsto: em cada ocasião isso durou um fim
de semana, com um efetivo que variou de seis a quatorze pessoas; um seminário por trimestre!
Quando digo que isso se deu “quase que naturalmente”, há que nos entendermos. Por pouco o
primeiro seminário não foi por água abaixo. Aliás, eu não encontrara nada melhor do que fazê-lo num
barco: uma lancha que subiria o Sena. A idéia era incontestavelmente esplêndida: dado que se
tratava de voltar às origens da moral, que havia de mais adequado do que subir o curso de um rio? O
barco fornecia o modelo do esforço exigido de cada um: lutar contra a corrente, contra o curso do
tempo e o curso dos acontecimentos, não se deixar impressionar pela resistência da água – e se
aproximar lentamente da fonte… É claro que o barulho do motor a diesel corria o risco de nos
incomodar, mas esse inconveniente seria facilmente compensado pelo prazer de um deslocamento
rápido e pela alegria de ver desfilarem margens aprazíveis. De quebra, o barco chamava-se Blue
Note, de modo que contávamos com o marinheiro para neutralizar sutilmente o zumbido surdo de seu
motor graças à boa música. Infelizmente, na véspera do embarque, o Sena resolveu entrar em cheia!
O nível da água subiu de maneira tão violenta que a passagem sob as pontes ficou comprometida e,
para obtermos autorização para navegar, seria preciso contarmos com um piloto especializado em
cheias! Assim, tive que renunciar ao Blue Note. Foi Pascal (cujo papel de organizador já evoquei
antes) que me tirou desse apuro, fechando um acordo de última hora com um pavilhão de caça na
floresta…
Havia seis pessoas nesse dia. Seis cobaias, por assim dizer, já que eu nunca tivera nenhuma
experiência com aquilo até então. Era chegada a hora da verdade. No começo eu estava com medo –
o que era uma maneira de ser “autêntico”. Ao meu redor havia seis mulheres de bom nível cultural:
Bernadette, uma advogada com longa carreira atrás de si; Claudine, professora de letras meio
esgotada; Micheline, uma “simples” mãe de família que cumprira sua tarefa num meio abastado,
amante da arte e grande leitora de Paul Léautaud; Chantal, ex-enfermeira que se tornara
psicoterapeuta; Laurence, diretora de uma agência de publicidade; e Martine, produtora de filmes e
eventos empresariais (de quem já falei a propósito do café). Seis mulheres, portanto, às quais se
juntava a jovem Alix, que vinha me auxiliar – e ver se o exercício lhe convinha.

Perguntei ao grupo se a preocupação de não mentir, de não camuflar, de ser autêntico(a)


tinha fundamento: não seria isso, no fundo, uma relíquia do ensino religioso, sem razão de ser na
vida moderna, um resto de consciência pesada infantil, sem pertinência para a vida de adulto? Seria
ao menos possível ser verdadeiramente autêntico? Não era isso um doce sonho juvenil? Um ideal
inacessível, reservado a seres excepcionais, como o Jesus dos Evangelhos? Se ele o havia atingido,
não era por ser de origem divina? Ou seria o caso de não nos resignarmos? Caberia continuarmos a
crer? Mas porventura dependia apenas de nós viver de maneira autêntica?

A discussão se travou sem choques, mas a emoção suplantou a reflexão. Emergiram


experiências pessoais dolorosas. Constatou-se que velhas feridas continuavam abertas e que outras
estavam muito mal cicatrizadas. Algumas delas remontavam aos primórdios da juventude. Assim,
uma das participantes, voltando a suas primeiras lembranças, evocou a época do catecismo como a
que lhe parecia menos autêntica, tamanha era a defasagem entre os preceitos e os atos: falava-se da
retidão como um princípio evidente, mas era inútil para a menina que ela era na época procurá-la nos
adultos – e em seus mestres -, ao passo que se via forçada a dizer tudo no confessionário sobre seus
pecados e maus pensamentos. Para outra participante, essa época fora a hitlerista, com o imenso
cortejo de flagelos que se abateram sobre os que lhe eram próximos, quando os judeus foram mais
uma vez tomados por bodes expiatórios: quanta crueldade, quanta loucura nos carrascos! Quanta
covardia nos que não se arriscavam a nada! E, muitas vezes, quanta cumplicidade! Quanta hipocrisia!
Assim, como acreditar no gênero humano? Como apostar numa sinceridade qualquer no outro? Para
ela, a autenticidade não era um imperativo, mas um engodo!

Desenvolvendo-se a partir desses depoimentos, a sessão poderia facilmente enveredar para


a terapia de grupo. Mas nada disso se deu. Passado o momento intenso da comoção, a controvérsia
foi-se configurando lentamente. Aos poucos se destacaram alguns pontos de vista claros e distintos:
para uma, a autenticidade tinha como condição a rejeição de tudo o que fora aprendido sem espírito
crítico; para sua vizinha, a recusa a mentir para o outro e, acima de tudo, a mentir para si mesma;
para a terceira, a autenticidade era o valor supremo, aquele que era importante partilhar com uma
alma gêmea; para a quarta, ser autêntica significava, ao contrário, estar de acordo com seu eu
profundo, sem consideração para com quem quer que fosse; para a quinta, consistia em viver em
harmonia com a natureza; e para a última, viver apenas no essencial, isto é, obedecer ao apelo do
coração… Até que ficou patente para todo o mundo que, ao empregar a mesma palavra, ninguém
estava falando da mesma coisa.

Por isso tornou-se necessário saber de onde provinha essa idéia. Meu programa previa
começarmos pela figura cristã do Messias, o que oferecia muitas vantagens. Primeiro, porque o
cristianismo fornecia um modelo incontornável e mais valia ir diretamente ao original do que passar
por suas cópias para tentar discernir o essencial; segundo, porque esse modelo era passível de
continuar a ser objeto de um consenso, de um modelo a ser seguido, mesmo sem nosso
conhecimento; e por fim, porque convinha tirar isso em pratos limpos, explicitar o que pudesse estar
latente. O inconveniente é que, no instante mesmo em que procuramos discernir a figura de Cristo,
ela nos escapa e quanto mais nos empenhamos nisso, mais ela se apaga. Das seis pessoas presentes
nesse dia, não houve uma que não se surpreendesse com essa constatação. Não que faltem relatos
de onde se possa extrair um retrato de Jesus de Nazaré: os quatro Evangelhos os fornecem em
abundância. Podemos ter uma idéia de sua pessoa, seu temperamento, sua maneira de ser, sua
bondade, sua retidão e seu rigor – na paciência e na cólera -, graças às narrativas de seus atos e
palavras apresentadas por Mateus, Marcos, Lucas e João. Só que aí é que está o problema! De um
lado, a origem desses relatos é mais do que duvidosa e, de outro, na doutrina cristã o que importa é
menos a vida de Jesus do que sua morte.

Os Evangelhos foram canonizados como testemunhos diretos sobre a vida de Jesus. Mas o
Novo Testamento contém outros textos pouco compatíveis com essa afirmação. É o caso das cartas
de Paulo. Este nunca evoca os Evangelhos em suas cartas. É claro que anuncia a “boa nova”,
proclama a quem quiser ouvi-lo que o Messias chegou, mas nunca se refere aos textos que
designamos por esse nome. Em sua epístola aos tessalonicenses, por exemplo, ele faz referência à
Escritura, mas trata-se das Escrituras judaicas – no caso, os Salmos de Davi. Quando lhes fala do
“Evangelho” (em 1.V, 2.II, 2.IX, 3.II), não se trata de um texto, mas de uma mensagem, uma
notícia: em grego, o termo euaggelion designava, no sentido estrito, a recompensa que se dava ao
mensageiro; depois, a palavra passou a designar a mensagem em si, quando boa; podemos encontrá-
la na tradução grega das Escrituras Sagradas judaicas (a chamada tradução “dos Setenta”) para
indicar as mensagens que trazem felicidade. Foi preciso esperar até meados do século II de nossa era
para que esse termo se aplicasse aos escritos atribuídos a Mateus, Marcos e consortes.

É claro que a inautenticidade dos Evangelhos não destrói toda e qualquer possibilidade de
irmos beber diretamente na fonte do cristianismo, mas isso se dá em detrimento do “modelo” de vida
que Jesus seria. Pois o que importa então é seu papel excepcional de Salvador. É isso que dá
coerência ao cristianismo. Sua fonte não é Jesus, mas Paulo. Não é na vida de Jesus que se assenta a
fé cristã, mas em sua morte. O importante não é que ele tenha vivido de maneira exemplar, que
tenha dado provas de grande probidade, extrema bondade e profunda sabedoria, mas que se haja
sacrificado para redimir os pecados no mundo, que tenha sido crucificado e, portanto, que tenha
morrido. É claro que, para isso, também era preciso que ele nascesse e “cumprisse as Escrituras”, ou
seja, que tivesse o perfil do Messias esperado pelos judeus e sobretudo que fosse descendente da
tribo do rei Davi; era preciso que se distinguisse de todos por seus dons e suas maneiras. Mas, se ele
tinha realmente o perfil requerido pelos textos sagrados e se havia realmente cumprido as Escrituras,
é lícito nos perguntarmos por que os judeus não o reconheceram como seu Messias. Pois os judeus de
fato esperavam um Messias. Esperavam por Aquele que restauraria a realeza de Israel, perdida por
séculos. Esperavam por Aquele que os livraria do jugo romano, instalado havia séculos. E, se Jesus
era esse Messias, será possível acreditarmos que eles não o tivessem visto?

Quando ainda se chamava Saulo, Paulo sustentava esse raciocínio. E foi por isso que se
tornou um dos adversários mais ferrenhos da seita que apelava para a autoridade desse personagem,
que se deixara aprisionar no bosque como um vadio. Paulo não assistira ao suplício e nunca vira o
homem em questão, mas não podia admitir que fosse esse o destino reservado ao Salvador da nação
judaica. Como seus partidários fizeram correr os boatos mais loucos a respeito do Mestre, que
afirmavam ser o Filho de Deus, que havia de mais necessário do que silenciar aquela gente, nem que
fosse destruindo-a? Foi durante uma missão de repressão que a luz brotou em sua mente. E foi ele
quem, pela primeira vez, estabeleceu uma ligação entre a missão do Messias e a morte de Jesus. Ele
compreendeu, no trajeto para Damasco, que estava no caminho errado. A verdade cegou-o: não era
por sua vida que o Messias deveria realizar a promessa de libertação contida nos textos da tradição
judaica, mas por sua morte. Toda a história do povo judeu mostrava sua propensão a desobedecer a
seu Deus: de que adiantaria um novo gesto por parte desse Deus? De que serviria restabelecer o
poder da nação? Não iria ela, tão logo se cumprisse a promessa, voltar novamente as costas a sua
resolução? Seria Deus tapeado mais uma vez? Não! Devia haver algo mais na promessa. A vinda do
Messias devia ter outra significação, muito menos trivial e muito mais universal! Posto que nem a
desobediência à lei divina nem os sofrimentos dela resultantes eram específicos da nação judaica, por
que estaria reservada a esta a vinda do Salvador? Um texto do Pentateuco, logo um dos primeiros,
atribuído a Moisés e narrando a criação do mundo, contava como o primeiro homem havia
desobedecido a Deus. Por força de suas sucessivas alianças com Deus, por intermédio de seus
patriarcas, os judeus quase não prestavam atenção a essa primeira falha: não seria esse o seu erro?
Como não ver que, desde sua criação, o homem estava fadado ao pecado? Em várias ocasiões, aliás,
Deus não hesitara em destruir toda ou parte de Sua criação. Em vez de ajudar a nação judaica a
recuperar sua soberania, que é que O impediria de usar de severidade mais uma vez?

Resta saber se tal “revelação” é capaz de saciar, ainda hoje, nossa sede de autenticidade. Se
assim é, se em sua fase fundadora o cristianismo realmente se apresenta sob esses auspícios, como
nos reconhecermos nisso quando estamos em busca de um modelo de conduta? Quando procuramos
aproximar-nos da figura de Jesus como um exemplo a ser seguido, para levar uma vida digna desse
nome, vemo-nos rapidamente forçados a penetrar numa região sumamente árida, onde é mais
comum termos o ensejo de cair nas areias movediças do que saciar nossa sede: trata-se do campo da
verificação das fontes, que leva à temível região das pesquisas filológicas, a qual não tem fim. E,
quando preferimos poupar-nos esse incômodo e esses dissabores, em nome do fato de que o
cristianismo começa realmente com Paulo, vemo-nos diante de uma figura que já não é a de um
homem cujo caminho possamos seguir, mas a do Filho de Deus, que por certo é salvadora, mas não
pode servir de modelo, a menos que consideremos a morte a melhor maneira de viver.

E não é só isso. Essa massa de dificuldades decuplica-se quando atentamos para a referência
que serve de ponto de partida para o “essencial”. Apoiando-se no relato do pecado original, Paulo (e,
depois dele, toda a tradição cristã) estabelece um vínculo que, por sua vez, também dá o que pensar.
Isso porque, como evoquei anteriormente a propósito de uma consulta particular, o texto do Gênese
contém dois relatos da Criação que são incompatíveis. É fato que, no segundo relato, encontramos
realmente a história do pecado de Adão, mas, dado que o relato da Criação em que ele se insere não
é compatível com a primeira narrativa, a da Criação em seis dias, não é possível invocarmos ambas.
Paulo (e todos os que o seguiram) deveria, se tivesse uma preocupação com a coerência, escolher
entre as duas: rejeitar a primeira, aquela em que o homem é criado em último lugar e ao mesmo
tempo em que a mulher, e na qual Deus, radiante com sua obra, concede ao casal humano o domínio
sobre todas as criaturas, sem mencionar nenhuma proibição referente a qualquer animal, qualquer
planta ou qualquer árvore. Essa narrativa não poderia levar o primeiro homem à desobediência; por
conseguinte, não pode explicar a origem do mal na Terra e, portanto, Paulo não pode servir-se dela.

Ah, se ao menos fosse possível conversar com Paulo! Caberia perguntar-lhe como foi que ele
se arranjou com isso. Sabia ele que, ao querer revelar as razões da necessidade da morte do Messias,
ocultou fraudulentamente a incoerência do Gênese? Para explicar o caráter insolúvel da dívida da
espécie humana para com Deus, ele optou deliberadamente pela segunda narrativa. Mas, ao optar por
esta, deveria admitir que a primeira estava errada, renunciando, por conseguinte, ao caráter sagrado
do texto do Gênese de um modo geral e, em conseqüência disso, ao próprio discurso dele, a sua
própria revelação. Sua alternativa era cruel: ou admitir o primeiro relato e se privar do meio de
fundamentar sua intuição sobre a missão do Messias ou então rejeitá-lo e fazer com que se perdesse
toda a confiança em sua palavra. Assim, ele precisava fazer isso sem dizer nada… Aí reside, sem
dúvida, a marca do gênio, da inspiração – daquelas que tornam supérflua a probidade intelectual -,
mas, podemos nós ainda hoje nos deixar enganar? Há de causar grande surpresa que, também
quanto a esse aspecto, a maioria das autoridades cristãs se mantenha muito discreta. Durante séculos
elas apresentaram a história do pecado como sendo idêntica à da Criação. Examinando bem, verifica-
se que isso é impossível. Hoje em dia, a maior parte dos eclesiásticos sabe que esses relatos não têm
a mesma origem, que a “colagem” é mais do que aproximativa e que, por conseguinte, a “boa nova”
de Paulo não pode ser tomada ao pé da letra. Isso não impede que eles se abstenham de chamar a
atenção de suas ovelhas para as dificuldades intrínsecas da operação. A verdade é que não têm por
vocação educar o espírito crítico das massas.

Nesse seminário, empenho o tempo necessário para que o grupo em seu conjunto, por si
mesmo, ponha o dedo nas dificuldades da referência aos textos decisivos e para que cada um aquilate
sua própria cegueira. Em cada ocasião, devo reconhecer, o assombro é imenso. Durante o primeiro
seminário, em particular, a emoção foi fortíssima. Ninguém estava preparado para essa “revelação”.
Algumas participantes, entretanto, estavam familiarizadas com os textos sagrados. Não obstante,
nenhuma tivera até então uma experiência dessa ordem: a de constatar que os textos mais
conhecidos e, quem sabe, mais importantes da cultura ocidental, pelo menos os que desempenharam
o papel mais considerável, eram tão “problemáticos” assim e, ainda por cima, que elas mesmas
estavam em condições de ver o que não convencia. O que elas menos compreendiam era por que isso
era tão pouco sabido e como havíamos podido ficar cegos para isso por tanto tempo.

Elas não haviam, no entanto, chegado ao fim de suas dificuldades. O seminário chegou a
essa etapa no correr do primeiro dia: para concluí-lo, faltava travar um pouco de conhecimento com
as doutrinas a que se impôs o cristianismo dos primeiros tempos, aquelas que ele venceu e das quais,
a despeito de suas incoerências, de sua falta de probidade e de sua morbidez, tomou o lugar no
coração do Império Romano: o paganismo, o estoicismo e o epicurismo. Se registrarmos as falhas do
cristianismo, convém realmente dar uma oportunidade, nem que seja por um instante, aos que
tinham o cristianismo na conta de uma superstição detestável. O que nos leva a nos indagarmos se o
opróbrio com que foram cobertas essas doutrinas e seus partidários foi realmente merecido. A
começar pelo opróbrio com que foram cobertos o paganismo e… Nero.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

PRIMEIRA PARTE
ONDE ESTAMOS?

VII
Em viagem

Invadida pelo cristianismo no fim do Império Romano, a tradição grega pode ser encontrada
remontando-se à nascente do grande rio da história ocidental. Já no cristianismo, tal como chegou até
nós e tal como tem reinado há séculos, encontram-se algumas das correntes com que ele teve de se
haver: o paganismo, o epicurismo e o estoicismo. Existe paganismo, muito paganismo, na religião
que acabou por se impor a Roma sob a égide de Constantino no século IV de nossa era (o Deus
encarnado, a virgindade da mãe, a festa de Natal, o culto aos santos, por exemplo); há uma boa dose
de estoicismo (a aceitação das provações, do sofrimento aqui na Terra, o papel do céu nos
acontecimentos) e há também epicurismo (isso mesmo, porque o epicurismo não é o que Paulo disse
dele, “uma moral de pândegos, de porcos”, mas, antes, o culto da frugalidade, a arte de contentar-se
com pouco e apreciar esse pouco como uma bênção). Em outras palavras, o cristianismo contém
muito da cultura grega.

Além disso, o Novo Testamento foi redigido em grego. O “cidadão romano” Paulo, apesar de
instruído pelos fariseus, redigia suas cartas em grego e, apesar das construções hebraizantes,
verifica-se que todos os relatos evangélicos foram escritos nessa língua, cujo uso era predominante
em toda a bacia mediterrânea. A própria palavra “cristianismo” é grega, pois provém de “Cristo”,
palavra grega que corresponde a “messias”: “messias”, com efeito, vem-nos de messias, forma grega
do hebraico masiah, em aramaico mesiha, que significa “ungido”, abençoado com óleo. Quanto à
doutrina, em seus recônditos mais profundos, como separá-la do platonismo? Muitos dos elementos
estóicos e epicuristas assimilados pelo cristianismo são diretamente oriundos de Platão (a dicotomia
mundo das aparências/mundo real, a unidade do poder criador do mundo, a revelação da verdadeira
luz por meio de um homem inspirado pelos deuses, a desconfiança para com os sentidos, para com os
desejos cegos, as paixões desenfreadas, o desprezo pelas leis estabelecidas pela maioria, a felicidade
proporcionada pela virtude): será que se avalia a dívida do cristianismo para com o pensamento
platônico?
Na verdade, é lícito nos perguntarmos até que ponto a figura judaico-cristã de Jesus não
encobre a de Sócrates. É a essa suspeita que convido os participantes do seminário sobre a
autenticidade. Dado que Jesus nos escapa ao nos aproximarmos dele, é igualmente vantajoso
retroceder mais à fonte. Também Sócrates foi perseguido pelos seus; também ele se apresentava
como um libertador; também ele apostava na autenticidade. Costuma-se dizer que a figura de
Sócrates antecipa (“prepara”) a do Messias. E se isso fosse um abuso de poder? E se o cristianismo se
houvesse apropriado dos traços mais marcantes da figura de Sócrates para introduzir a de seu
Salvador num mundo helenizado? E se ele houvesse como que insinuado uma silhueta sobre a outra?

Essa interrogação serve de fio condutor para o segundo dia do seminário, que nos faz
remontar à origem grega da moral ocidental. Hão de me permitir não dizer aqui mais do que isso.
Primeiro porque o suspense merece ser poupado e segundo porque Sócrates é objeto de outro
processo que eu gostaria de expor agora, de maneira a encerrar este longo relato sobre a instauração
dos serviços do consultório: o da viagem filosófica.

Dentre as poucas pessoas que ainda conferem algum crédito ao pensamento filosófico,
muitas acham que as obras dos grandes filósofos estão fora de seu alcance. O “respeito” que se tem
pelos “textos clássicos” é tão intenso que há quem se abstenha de se aproximar deles: “Isso não é
para mim”, costuma-se pensar, mesmo nos meios mais “cultos”. Quando se admite que é preciso ler
livros, não é no corpus filosófico que se investe: para ampliar os conhecimentos, em geral se prefere
um bom livro de divulgação científica; para vibrar ao ritmo da aventura humana, mergulha-se numa
obra literária e, nem que seja para torturar a cabeça, há quem se dedique às palavras cruzadas, o
que, afinal, é mais gratificante do que se sentir incapaz de compreender a incontornável Crítica da
razão pura. Quanto à cultura que convém adquirir, ela naturalmente passa pelas exposições, pelos
museus – e pelas viagens. Sim, também se parte em viagem para adquirir cultura. A peregrinação
laicizou-se. Agora nos dirigimos aos lugares que convém conhecer por terem marcado a história. E,
tal como os fiéis de Santiago de Compostela, de Jerusalém ou de Meca, em busca de absolvição,
multidões sedentas de saber partem com destino a locais que é preciso conhecer: Veneza, Florença,
Roma, Atenas, Delfos…

A aposta da “viagem filosófica” consiste em tornar acessíveis os textos mais herméticos. É


verdade que muitos autores são obscuros, a ponto de a prática da filosofia implicar um “trabalho”
árduo, metódico e paciente, que por muito tempo proporciona mais dor do que prazer. No entanto,
não somente o prazer um dia acaba chegando, como também, na maioria dos casos, se é tamanha a
dificuldade que se tem para penetrar na obra de um filósofo, é por não se entrar nela pela porta
certa. É fato que os conceitos, o estilo e a tecnicidade da maioria dos textos estritamente filosóficos
costumam comprometer a adesão que eles seriam passíveis de granjear por parte do leitor. Mas basta
partir para os lugares onde eles foram redigidos, entrar aos poucos em contato com seu contexto
histórico, com a vida de cada autor, com sua silhueta, seus hábitos, suas manias, passear pelos
lugares de sua vida, visitar os prédios que então eram importantes e aos poucos vemos apequenar-se
uma distância que parecia intransponível. Uma vez estando lá, cria-se uma intimidade carregada de
anedotas e emoções. Que nos desloquemos, pois, até Königsberg, esse porto dos confins do Báltico
onde Kant passou sua vida – a vida inteira (nunca saiu de lá). Gastemos o tempo de passear pelas
ruelas da velha cidade, de percorrer (a pé) o trajeto que Kant fazia todos os dias no mesmo horário,
de nos inteirarmos dos conhecimentos que ele tinha da situação política (surgimento da potência
prussiana entre a Inglaterra, a França, a Áustria e a Rússia), de avaliar a intensidade do conflito entre
a ciência e a religião (Newton e sua lei da atração universal chocavam-se com a crença na letra da
revelação bíblica sobre a gênese do mundo). Pois bem, aposto que não ficaremos alheios por muito
tempo à preocupação kantiana de servir de árbitro entre as duas posições!

No que concerne a Kant, ainda se trata de uma aposta, uma vez que a viagem só existe em
estado de projeto. Mas, no tocante a Sócrates, a experiência já foi feita. Seja no fundo, seja na
forma, o Fédon pouco fica a dever, em termos de dificuldade, à Crítica da razão pura. Pois bem, em
poucos dias (quatro, para ser exato), seu conteúdo tornou-se cristalino para os primeiros
participantes da primeira viagem. Como acontecera no primeiro seminário, minhas “cobaias”
somavam um pequeno número: duas jovens advogadas, uma mãe de família, um segurador e a
diretora de um centro cultural. Eles partiram para Atenas sem nenhum conhecimento particular de
filosofia, nem tampouco da figura de Sócrates, com motivações diversas: a vontade de saber mais a
esse respeito, é claro, mas também a necessidade de fazer uma pausa, um break.

E estava ótimo! Alguns me haviam perguntado se deveriam preparar a viagem, lendo


“coisas”. Disse-lhes que não. Isso não era proibido, mas não era nem um pouco necessário: a viagem
tinha justamente por objetivo oferecer in loco aquilo que faltasse. Naturalmente, eu não deixava de
estar inquieto. Essa viagem constituía uma estréia: que eu soubesse, nunca se tentara dar acesso aos
diálogos de Platão perambulando pela Ágora. Por outro lado, a não ser simbolicamente, nunca em
minha pedagogia eu servira de “guia”: nas consultas e nos seminários, é claro que essa idéia estava
presente, mas desta vez eu deveria liderar um grupo no espaço para fazê-lo viajar no tempo – e
ressuscitar um morto. Ainda assim, estava confiante. Quem consegue o mais difícil consegue o mais
fácil. Eu tinha certeza de que me seria mais fácil obter esse resultado – presentificar Sócrates a ponto
de fazer dele um interlocutor – percorrendo a Acrópole, sob a proteção de Atena, do que numa
pensão normanda ou num apartamento parisiense; em duas ocasiões eu fora a Atenas sondar o
terreno e havia marcado os lugares e testado o programa em função de sua topografia… O conceito
merecia ser posto à prova.

Ah! Sim, havia o metrô, é claro! O “metrô” de Atenas! A linha que parte do Pireu para chegar
ao centro da cidade: nossos amigos atenienses não encontraram nada melhor para fazer do que levá-
la a atravessar a Ágora… Inacreditável! A Ágora de Atenas – a Ágora por excelência, o local onde
nasceu, como modelo para toda a civilização ocidental (e talvez, em pouco tempo, para todo o
planeta), a democracia, esse lugar decisivo dentre todos, que se estende com ostentação aos pés da
Acrópole, com suas galerias comerciais, seu tribunal, sua assembléia a dois passos dali, suas ruínas
preciosas, suas colunas, suas lajes, suas ruas, suas casas – a Ágora foi cortada, amputada pela
passagem da única e exclusiva linha de metrô de Atenas! Como se eles não pudessem fazer seus
vagões passarem por outro lugar, nem que fosse a dez passos dali, não é? Mas não, tinha de ser ali. E
o cúmulo é que, a acreditarmos nos arqueólogos, a linha divide em duas a galeria comercial onde
Sócrates tinha o hábito de se instalar para interpelar seus concidadãos. E eu que tanto contava
instalar-me nas ruínas do pórtico de Sócrates!

Essa constatação me consternou a ponto de eu me dispor a renunciar a meu projeto. Como


levar pessoas a Atenas, prometendo-lhes um encontro com Sócrates, se o lugar mais pertinente para
esse encontro fora destruído? Além do que, esse metrô funciona com um trem a cada cinco minutos,
nos dois sentidos. Uma vez que fica a céu aberto, aquilo fazia um barulho infernal: não seria uma
tolice apostar na serenidade do local para se conseguir refletir, ler, meditar? Tive que passar muito
tempo in loco para avaliar os estragos. Na realidade, o pedaço da Ágora devorado pelos transportes
públicos (nos anos 30) é muito modesto e, ao nos afastarmos da entrada pelo centro, aproximando-
nos da Pnyx, o pesadelo do mundo moderno desaparece rapidamente. Minha idéia, portanto,
preservava seu sentido.

Em médio prazo, eu previa uma versão longa da viagem: primeiro e segundo dias em
Atenas, terceiro dia no Pireu e no cabo Súnio, quarto dia em Atenas, quinto e sexto dias em Delfos e
sétimo dia em Atenas. Para testar esse programa, entretanto, preferi uma versão curta, que
correspondia aos quatro primeiros dias da longa. E assim foi. No primeiro dia, após três horas de vôo,
vimo-nos no coração de Plaka, a velha cidade pendurada nas encostas da colina da Acrópole. Foi só o
tempo de nos instalarmos e de adaptarmos nossos trajes às novas condições, para que cada um
subisse ao terraço do hotel: vale a pena dar uma olhada, pois a Acrópole, em toda a sua majestade,
oferece seu flanco ocidental aos recém-chegados (adivinha-se o Pártenon, bem como a série das
cariátides). Além do prazer dos olhos, essa proximidade é decisiva, pois permite circular a pé pelos
sítios antigos, passeando, longe da fúria da cidade moderna. E foi assim que partimos para a colina
das Musas. Tínhamos que atravessar uma parte de Plaka, o bairro dos mercados, que ladeia a Ágora.
Nesse horário, infelizmente, o local estava fechado (até hoje não consegui compreender a lógica que
rege os horários dos vigias). Pois, não fosse por isso! Margeamos o lugar pelo lado ocidental (onde
passa o fatídico metrô), desembocamos na larga avenida que sobe em direção à Acrópole,
contornamos a Pnyx, que prolonga a Ágora num desvio, mas que também não estava acessível (um
dia, quem sabe, todos esses locais compartimentados serão um só) e, em vez de nos dirigirmos à
Acrópole, como todo o mundo, rumamos para a colina das Musas.

Essa colina é mágica. Em poucas dezenas de metros, perde-se qualquer contato com o
presente (a avenida). Quando mais enveredamos pelo bosque que cobre a vertente, mais nos
aproximamos da civilização grega. A coisa é muito rápida, cada século equivalendo a uns dez metros,
sem dúvida, pois de repente, à esquerda, no desvio de uma curva do caminho, num espaço que as
árvores deixaram vazio, vemos surgir o rochedo que sustenta a Acrópole, como há dois mil e
quinhentos anos. Que visão! Àquela distância, avalia-se esplendidamente a audácia dos atenienses do
século de Péricles e se compreende seu orgulho. É bom parar em meio à subida, sob as copas das
árvores da colina, para escutar a mensagem transmitida pela harmonia da rocha íngreme, dos
Propileus, do Pártenon e dos teatros encostados nos contrafortes: “Vejam essa força, aliada a essa
elegância! Ela não existiria sem a concordância dos deuses. Foi no Olimpo que esta cidade e seu povo
encontraram seus protetores: a rocha eleva-se da terra, mas os edifícios foram colocados pelos
deuses.”

O tempo está lindo, nem é preciso dizer: é contra o azul que se destaca a orgulhosa
construção. Os grilos acompanham o reinício de nossa subida. Em mais alguns minutos, eis-nos no
topo. A rocha ficou a descoberto. Como na época de Sócrates, sem dúvida. Desta vez, vista mais do
alto, a Acrópole parece cercada pela cidade. Daqui, no entanto, por mais que essa cidade seja
tentacular e poluída, parece antiga. É branca, densa e, embora se estenda a perder de vista, não
choca. Dir-se-ia que sente remorso, que se apaga ou se molda a seu passado. Do outro lado, lá pelo
sudoeste, ao longe, vê-se o porto do Pireu; mais adiante, ao sul, o Peloponeso; e em algum ponto do
oeste, Corinto vela por seu istmo.

O sol ainda vai alto no céu. Dispomos de todo o tempo para nos instalarmos. E ficaremos até
o cair da noite, pois há muito que dizer. Muito a dizer sobre esta cidade, que inventou a democracia;
muito a dizer sobre Sócrates, que ela condenou a beber cicuta. Não o escondo: esse episódio levanta
um problema para mim. Vou expô-lo em poucas palavras, depois de haver observado um longo
silêncio. Há que dizer que foi a lei da maioria que levou o mais sábio dos gregos à morte. A lei da
maioria era a lei que regia os destinos de Atenas desde que o povo passou a dispor do poder, isto é,
desde o início do século V a.C. A democracia foi instaurada após as Guerras Médicas, em meio ao
entusiasmo com as vitórias dos gregos sobre o invasor persa. Atenas teve então um avanço
prodigioso. Sob a égide de Péricles, o coração da cidade adornou-se de prédios suntuosos e seu
renome tornou-se ímpar entre as cidades gregas. As coisas se deterioraram na segunda metade do
século: uma guerra endêmica a opôs às cidades que não aceitavam sua supremacia, em particular
Esparta. A situação voltou a se agravar no fim do século: militarmente derrotados pelos espartanos,
os atenienses tiveram que destruir todas as suas muralhas, inclusive as Longas Muralhas que
protegiam o acesso ao porto do Pireu; tiveram até que suportar a “ditadura dos Trinta”, um grupo de
pessoas ilustres colocadas no poder sob o controle dos vencedores. O episódio foi breve, mas deixou
marcas profundas.

Foi nesse momento fatídico que processaram Sócrates. Acusaram-no de não ser fiel aos
deuses da cidade, de ter os seus próprios e de corromper a juventude com seus discursos. Ora, se
havia alguém que não merecia ser condenado, era ele. A acreditarmos no depoimento de Platão – um
dos jovens “corrompidos”, que dedicaria o resto de sua vida a reabilitar a memória do mestre -, não
havia a mais leve sombra de fundamento nessas acusações. Ainda mais que ele fora objeto de um
oráculo da pitonisa de Delfos, que havia declarado, a pedido de um de seus amigos, que não existia
grego mais sábio do que Sócrates. É o quanto basta dizer! O deus Apolo, pela boca de sua
sacerdotisa, fizera de Sócrates o mais sábio de todos os gregos e o tribunal de Atenas, composto em
sua imensa maioria de pessoas modestas, que respeitavam piamente os decretos desse oráculo, não
encontrou nada melhor para fazer, usando de suas prerrogativas, do que condenar Sócrates à morte.

Depois de haver assim relatado o episódio, portanto, confidenciei a meu grupinho que para
mim havia nisso um verdadeiro mistério e que não ficaria triste se um deles pudesse ajudar-me a
resolvê-lo. As horas que se seguiram mal chegaram para que cada um começasse a apreender
seriamente essa dificuldade. A uns, até então, faltavam dados para que se comovessem com justa
razão; de outros a história era conhecida, mas era tão patente que havia um escândalo nela que a
indignação sempre triunfou sobre a interrogação: os atenienses tinham errado em massa, ponto final,
só isso; invocava-se então a calamidade do efeito de massa, que perturba o julgamento dos
indivíduos, e o processo se invertia. Aliás, e isso era um fato conhecido, logo depois os atenienses
haviam-se arrependido: tinham reconhecido que a condenação fora injusta. Se mistério havia, era o
da insondável estupidez humana…
Tive que me fazer de advogado do diabo, tão complexas me pareciam as coisas. Condenar
inapelavelmente os juízes de Sócrates é nos expormos, por nosso turno, a ser injustos. Os
atenienses, pelo menos os democratas, acabavam de sofrer uma humilhação terrível, a sensibilidade
dos cidadãos estava à flor da pele e, se era certo que Sócrates não tinha nada por que ser censurado,
não estava provado que não se expusesse ao risco de provocar a vendeta popular. A começar por sua
atitude cotidiana, a perseguir sem descanso seus concidadãos, justamente num momento em que
eles precisavam recuperar a calma e a confiança: pois não foi um deles, democrata entre os
democratas e vítima designada dos Trinta, que se encarregou da acusação principal, o chamado
Anytos? Ele era dono de um curtume que dispunha de certo número de escravos. O que censurava
em Sócrates era, acima de tudo, o fato de ele desestabilizar a cidade, com seus ataques incessantes
aos membros mais convencidos da solidez dos fundamentos do poder do povo. Isso é o que se pode
deduzir dos autos do processo, tal como narrados por Platão na Apologia de Sócrates. Não haveria
nisso algo de justo? Pelo menos, não deu Sócrates mostras de uma total falta de tato, ao se recusar a
levar em conta o “momento” e ao retomar, após a derrota, como se nada houvesse, seus requisitórios
permanentes? Porventura isso era ser sábio?

Ademais, ao ler com atenção a Apologia, percebe-se que a hostilidade dos atenienses estava
longe de ser tão maciça quanto parece. O julgamento desenrolou-se em duas etapas, como era praxe
entre os heliastas, os juízes que tinham assento no tribunal de Heliéia. Num primeiro momento,
tratou-se de deliberar sobre a culpa ou inocência do réu e, na segunda etapa, de decidir sobre sua
pena. Pois bem, no primeiro momento, apenas uma pequena maioria manifestou-se a favor da culpa.
E Sócrates poderia ter-se livrado, como todos esperavam, com uma pena irrisória, uma simples multa
para marcar a decisão. Foi então que se deu um acontecimento absolutamente espantoso: em vez de
confessar seu erro publicamente, Sócrates endureceu sua posição e, longe de aceitar qualquer
sanção, pediu para ser alimentado no pritaneu. Alimentado no pritaneu! Ora vejam só! Onde é que ele
estava com a cabeça? Ele sabia, como era mister, que essa proposta funcionaria como uma
provocação, já que os prítanes constituíam o corpo dos cinqüenta eleitos, os buleutas ou senadores,
que zelavam pelo bom andamento das instituições. A conseqüência foi óbvia. Uma grande maioria dos
juízes voltou-se contra o réu, dando-lhe uma opção entre o exílio e a cicuta.

Esse afluxo de novos dados deixou meus interlocutores perplexos. Mas caía a noite. A
primeira fase de nosso “trabalho” estava chegando ao fim. Era hora de deixar os rochedos da colina
das Musas. O sol desaparecia por trás dos relevos da Ática. Tomamos por um momento a direção sul,
rumo ao Pireu. O mar alisava-se ao longe, nostálgico. Estaria, como nós, pensando nesse estranho
comportamento do mais sábio dos gregos? Uma vereda serpenteava por entre as moitas e arbustos.
Havia cães ladrando. Nossa solidão era completa. Era preciso voltar para a Acrópole. Lá embaixo, a
cidade tornava a estremecer. Disporá ela hoje, essa cidade monstruosa, de um novo sábio? E, se ele
existe, será que passa o tempo atormentando seus compatriotas? Ou será que se esconde entre seus
muros?

De novo no hotel. Há que jantar e descansar. O dia foi longo. E amanhã também o será.
Ágora pela manhã, Acrópole à tarde. Com dois “complementos”: primeiro, a nosso lado, a presença
de uma guia diplomada em arqueologia, apta a nos ajudar a decifrar o sentido das ruínas, a
reconstituir o clima da antiga cidade, a agitação do mercado, o culto no rochedo sagrado, a
significação das festas e também a intensidade e a crueldade das guerras; depois, o texto da Apologia
de Sócrates, redigido por Platão, para nos fazer mergulhar para valer no drama esboçado na véspera.
A explicação da guia e os momentos de leitura se alternarão ao sabor das necessidades, das vontades
– e de meu humor -, mas uma coisa é certa: à noite, cada um começará a ruminar por sua própria
conta.

A guia, vá lá, talvez digam alguns, mas e o texto? Não é o que fora anunciado, é verdade,
mas cada coisa a seu tempo! O Fédon nós só abordaremos dentro de dois dias. Pela manhã, depois de
margearmos a parede ocidental da Acrópole, de contornarmos a Pnyx e nos acomodarmos, com a
Ágora bem à vista abaixo de nós, faremos a leitura do Críton, um diálogo bem curtinho, onde
encontramos Sócrates na prisão. Já então poremos o dedo num fato extremamente perturbador. É
que Sócrates, embora tivesse essa oportunidade, não quis fugir e esperou pacificamente o dia de sua
morte. Esse dia estava subordinado a um acontecimento relativamente aleatório: o retorno do navio
que partira, como todos os anos, para a ilha de Delos, para celebrar a vitória de Teseu sobre o
Minotauro; e eis que esse navio – Críton vem anunciá-lo a Sócrates – está à vista, uma vez que
contornou o cabo Súnio. Não obstante, essa notícia não altera minimamente a resolução de Sócrates.

Ao meio-dia, almoçaremos no Pireu, em contato com o mar Egeu, e depois iremos até a
ponta sudeste da Ática, o cabo Súnio, nem que seja para aspirar a brisa marinha. Lá, sobre a relva
desse esplêndido promontório, que cai verticalmente num mar nacarado, sob as colunas de um dos
templos mais bem conservados da civilização grega, registraremos o que talvez seja o fato mais
perturbador de todos. É que, não satisfeito em aguardar serenamente a aplicação da pena, Sócrates
rejubilou-se por morrer. É esse o tema do Fédon. Enquanto todos os seus companheiros choram, pois,
desta vez, é chegada a hora de beber a cicuta, Sócrates rejubila-se: está feliz por acabar com a vida.
Para justificar a alegria que o move, ele tenta convencer seus amigos da idéia da imortalidade da
alma. Tem início a discussão. Os argumentos se entrechocam. De sua parte, Sócrates declara-se
convencido de encontrar, para além da morte física, a beatitude com que sua alma já o regala de
tempos em tempos. Terá razão? Estará errado? O cabo Súnio, convém dizê-lo, depõe em seu favor:
ao longo de nossa leitura, o sol declinará e depois se porá. Aqui, é no mar Egeu que ele cai, deixando
de sua passagem no horizonte chamas languescentes. Mas, como adivinhamos, para além dos
esplendores que nos deixa, uma vez desaparecido, ele continua a brilhar.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

I
Derrota do pensamento?

Para que servem os filósofos? – perguntava-se antigamente. A resposta mais óbvia era que
não serviam para nada! Para ter certeza disso, bastava a alguém se debruçar sobre a prática
dominante da filosofia (a transmissão de um corpus de textos clássicos) e cotejá-la com os
desempenhos das ciências naturais (astronomia, física, química, biologia) e das ciências humanas
(psicologia, antropologia, sociologia, economia política). Como não reconhecê-lo? Fazia muito tempo
que os filósofos profissionais voltavam-se para si mesmos e, de fato, já não serviam para nada (a não
ser para se reproduzir) nem para ninguém (exceto para seus sucessores). E, como o fulgurante
desenvolvimento do saber sobre a matéria, a psique e a vida em grupo permitiam supor que não
tardaríamos a desvendar os mistérios mais íntimos do Universo, da vida e da consciência, deixávamo-
nos acalentar pela esperança de encontrar soluções técnicas para todos os problemas com que a
humanidade deparasse em seu caminho. Que haveria de mais inútil, portanto, que a “filosofia”?

Hoje em dia, esse tom já não é aceito. Ainda que as ciências exatas, como a astrofísica e a
genética, continuem a voar de sucesso em sucesso, o ceticismo vai recuperando terreno. É como se, a
exemplo das galáxias mais longínquas, as respostas últimas não parassem de nos escapar a uma
velocidade crescente. Do mesmo modo, a esperança depositada na resolução dos problemas
humanos, graças às ciências e técnicas, vai diminuindo a cada dia. Malgrado o prodigioso avanço de
toda sorte de descobertas, parecemos estar em menos condições do que nunca de dominar o curso
dos acontecimentos. E as famosas ciências humanas, de que tanto nos orgulhávamos, foram
lamentavelmente apanhadas desprevenidas pelo rumo dos acontecimentos. Nem a economia política
nem a sociologia, nem tampouco a psicologia, mostram-se à altura de sua tarefa. Pois a espécie
humana vê-se agora arrastada em tamanha tormenta, em escala tal e com tamanha velocidade, que
nenhuma delas é capaz de conservar a sua credibilidade. Apesar do desmoronamento dos chamados
regimes “socialistas”, a “ciência” dos economistas acha-se submetida a uma dura prova; longe de
reforçar a confiança na economia de mercado, ela consegue apenas, na melhor das hipóteses,
evidenciar perigos cada vez mais alarmantes: a exacerbação da concorrência em escala mundial, o
endividamento colossal dos países pobres, a disparada da dívida pública nos países ricos, a
substituição do trabalho humano pelo dos robôs, a perda das raízes, a desmaterialização das trocas,
os limites do ecossistema… Por seu lado, a ciência dos sociólogos vai sendo ultrapassada pela
explosão demográfica nas nações mais pobres, pelo nascimento de megalópoles aqui e ali e pela
deterioração das áreas periféricas nos países ricos, os quais provocam tensões tão grandes entre os
hemisférios, as etnias e os cidadãos que todos os velhos demônios ressurgem. Quanto à ciência dos
psicólogos, ela se revela realmente irrisória frente aos estragos produzidos pelo desemprego, tanto na
base quanto no topo da escala social, frente à proliferação das redes de venda de narcóticos, à onda
de ódio, violência e fanatismo desencadeada em todos os continentes, ao tráfico de órgãos e às
tentações da genética de laboratório…

Seria impossível concluirmos o inventário dos flagelos que se abatem sobre a humanidade
em escala planetária, de modo que a maioria dos especialistas vem esgotando seu latim, enquanto os
leigos, que não têm a qualificação dos peritos, não estão longe de perder a cabeça. E é esse o perigo
supremo! Sob esse ponto de vista, parece-me um bom sinal que alguns cidadãos deste mundo em
vias de enlouquecimento passem a fazer filosofia por uma decisão própria. Isso significa que eles se
interrogam sobre a capacidade das ciências, sejam elas da natureza ou do homem, de dar sentido ao
que acontece, sem no entanto renunciarem a confiar na razão, isto é, sem recaírem no campo do
irracional. Dado que essa interrogação é exercida em comum e em praça pública, isso significa, ao
mesmo tempo, que eles param de agir como se o melhor meio de compreender a evolução do mundo
num regime democrático fosse esperar que o partido instalado no poder cuide disso ou, então, colocar
o próprio destino nas mãos da oposição. Assim, recuperar a posse do pensamento é começar a
retomar o controle dos assuntos da cidade. É, portanto, restituir todo o sentido não apenas à
“cultura”, mas também à “democracia”. Se os especialistas estão no limite do uso de seu latim e se os
representantes do povo já não sabem para que santo apelar, não será hora de eles passarem para o
grego? Entregando-se livremente ao exercício da filosofia na praça, no coração da cidade, a exemplo
dos atenienses da Antiguidade, as pessoas comuns lhes abrem o caminho de volta às origens, à fonte
do logos – a razão. Na maioria das vezes, a razão é apresentada como uma “faculdade” individual, da
qual cada um poderia dispor à vontade na solidão: mas quem sabe se ela não é mais uma resultante
do que uma aptidão, se não se encontra, a rigor, numa busca comum da verdade, em praça pública?

Foi assim, pelo menos, que nasceu a filosofia. Ela não nasceu, como hoje se gosta de dizer,
no seio dos sistemas dos pré-socráticos, mas em oposição a eles. As especulações dos pensadores
gregos sobre o cosmo correspondem às de nossos doutores. Não correspondem à vocação da filosofia.
Opõem-se às crenças religiosas populares, aos preconceitos e superstições alimentados pelos padres,
mas não questionam: respondem. Os sistemas dos pré-socráticos são modelos que tentam explicar
melhor o real do que o fazem os mitos tradicionais. Mas situam-se, por sua vez, do lado da resposta.
Já a filosofia situa-se, antes de tudo, do lado da pergunta. Sócrates começa sendo discípulo do sábio
Anaxágoras, amigo de Péricles, o maior político de sua época. Tinha sede de saber, e a magnífica
teoria de seu mestre saciou essa sede por algum tempo. Com efeito, Anaxágoras explicava a
formação do Universo pela movimentação de um imenso turbilhão de matéria, impulsionado pela
Inteligência, o Novo. Prodigiosa vitória do espírito humano sobre o obscurantismo religioso da época,
que passava pela narrativa dos combates entre deuses e titãs, encenados numa teogonia arcaica!

Mas, qual! Essa vitória teórica da razão sobre a crença não impediu de modo algum que o
cosmo humano, na prática, caísse presa das mais cegas paixões. A guerra provocava devastações: a
guerra fratricida entre as cidades gregas, cujo fim não parecia estar à vista. A bela construção de
Anaxágoras decerto permitia encontrar uma coerência no balé caótico da matéria estelar, mas não
permitia discernir no mundo dos homens a causa da loucura que se apoderara dos gregos. Com
respeito às coisas mais longínquas, mais fora de seu alcance, menos apreensíveis, a razão humana
fazia milagres, suplantava sem dificuldade os antigos relatos míticos através da simplicidade de sua
exposição, mas era incapaz de dominar os objetos que lhe eram mais próximos, aquilo que concernia
ao homem e a suas paixões. Sócrates não aceitou essa defasagem. Recusou-se a considerar normal
essa aberração. Recusou-se a se resignar. Apostou na interrogação em comum para apreender e,
quem sabe, talvez até dominar o futuro da cidade. Foi assim que nasceu o que desde então recebeu o
nome de “filosofia”. A filosofia constitui um questionamento do que acontece, no intuito de fornecer
uma boa resposta. Não confia nem nos preconceitos religiosos, que oferecem explicações mágicas
para aquilo que ultrapassa o entendimento comum, nem nos modelos científicos, que pretendem
superá-las. Coloca-se inteiramente na pergunta e nunca na resposta. As respostas são abundantes. O
problema está em saber que valor têm.

Por conseguinte, considerar a filosofia ultrapassada, a pretexto de que ela não pode resistir à
concorrência das ciências naturais, é não compreender nada de sua vocação. Não apenas a filosofia
não tem como objetivo ser mais eficaz do que a ciência, no que tange ao desvelamento dos segredos
da natureza, como também foi pelo fato de os desempenhos da ciência em relação à natureza só
serem igualados por sua impotência frente ao destino da cidade que ela ganhou impulso. Foi assim na
Grécia e o mesmo acontece hoje em dia. A filosofia poderia ser considerada ultrapassada se a ciência
moderna tivesse feito melhor do que a ciência grega, se houvesse não apenas eclipsado a religião no
entendimento das coisas celestes, mas também permitido aos políticos terem maior domínio sobre os
destinos de sua cidade do que teve Péricles em Atenas. Por um momento, chegamos a acreditar
nisso. Mas justamente essa idéia torna-se tão difícil de sustentar que a filosofia encontra-se de novo
na posição em que estava em seu nascimento.
O objetivo das “ciências naturais”, bem como das “ciências humanas”, é fornecer uma
resposta teórica sobre os segredos do Universo e uma resposta prática quanto ao curso dos
acontecimentos humanos, respostas estas que sejam mais eficazes que as da religião. Ora, essa
pretensão, hoje como na época de Sócrates, é sumamente duvidosa. Não há de surpreender, visto
por esse prisma, o insolente sucesso das “ciências ocultas” (fala-se em 50 mil consultórios apenas na
cidade de Paris), tanto nas camadas mais populares quanto no topo da escala social: quem não
consulta seu horóscopo cotidiano enquanto percorre um trajeto nos transportes coletivos? Quem, na
classe política, não visita seu astrólogo antes de uma data importante? Não há de causar grande
surpresa o vigoroso retorno do fanatismo religioso (cada uma das três religiões monoteístas tem sua
corrente integrista), que nos ameaça com os piores raios divinos se não voltarmos ao caminho da
retidão revelado no Livro. Por fim, não há de surpreender-nos o crescente impacto das concepções
“holísticas” da new age, que nos promete um homem plenamente humano, desde que ele
simplesmente “se solte”, esqueça o egoísmo e a agressividade como paixões ultrapassadas.

A distância entre as promessas feitas pela ciência (complementada na ação pela técnica) e o
que ocorre nas “cidades” atuais alimenta, incontestavelmente, um intenso ressentimento religioso.
Isso é um grande risco para o futuro da razão. Mas é, ao mesmo tempo, uma oportunidade a ser
aproveitada. Pois esse abalo das consciências, que pode fazer a cidade pender para a loucura, devolve
à filosofia sua vocação primordial: a da busca em comum da verdade. Sem dúvida é por essa razão
que seu exercício é acompanhado por um visível júbilo. Sim, júbilo! Ao menos isso é o que tenho
podido observar desde que comecei a exercer minha atividade. Mesmo quando reina a frustração ao
término de um debate no café, mesmo quando um trabalho ingrato é pedido na consulta, mesmo
quando se exacerba a tensão entre os participantes dos seminários, ou quando, em viagem, uns
querem continuar, enquanto outros se dão por satisfeitos, o prazer está presente. É um prazer muito
particular, mas obviamente intenso, que faz as pessoas parecerem sobreviventes: elas parecem
saídas de um coma. A origem de seu prazer deve estar próxima do sentimento experimentado por
quem se dá conta de ainda estar vivo, de haver escapado da morte. Há nisso uma felicidade simples:
a de viver depois de haver roçado o pior, e saber disso. Donde, segundo desconfio, a gratidão
expressa por minha maneira de praticar a filosofia.

Mas talvez já seja tarde demais, não é? Talvez essa iniciativa seja inútil. Talvez a causa disso
seja sabida, pois não? A acreditarmos nos gritos de alerta dados no fim dos anos 80, a propósito do
destino da cultura ocidental, seria esse o caso, infelizmente. Sem negar que a filosofia tem por
vocação a preocupação com as questões humanas, nem que é capaz de proporcionar prazer, uma
plêiade de pensadores bem informados pôs-se então a soar o dobre de finados da era das Luzes. Uma
verdadeira corrente de pessimismo passou a atravessar a intelectualidade, trazendo uma notícia
muito ruim: as trevas apoderavam-se do mundo. Reexplorando mais ou menos a metáfora que fizera
a fortuna dos enciclopedistas, todos condescenderam em lembrar que o dia alvoreceu alguns séculos
atrás, quando o pensamento racional se impôs à fé. E em constatar, consternados, que agora caía a
noite, pois a “subcultura” triunfava sobre a razão, caracterizando-se o fim de nosso século, segundo
eles, por um obscurecimento inexorável. Em nome da tolerância, da mescla das culturas, do direito à
diferença, não estaríamos entrando na noite em que todos os gatos são pardos? A resposta parece
evidente: agora o fanatismo tem a faca e o queijo na mão, já que, diante dele, a “subcultura”
desarma o mundo ocidental. Assim, vencidas pelas Luzes no fim do Renascimento, as trevas
conseguem hoje sua revanche, precipitando o mundo mais uma vez nos pavores da barbárie.

Tal pessimismo parece legítimo. Mas, de que serve, na verdade? Sem pretender que minha
modesta experiência compense fatos tão maciços e que a vitória sobre a “barbárie” esteja a nosso
alcance assim que as conversas no Café des Phares passem a se elevar até os ouvidos do Gênio da
praça da Bastilha, peço que se tome nota delas antes de mergulhar definitivamente no derrotismo…
Quem sabe se essa experiência, por mais modesta que seja, não corresponde a um desejo de
resistência diante do retorno do irracional? Ora, ela está apenas começando: é possível que se revele
prenhe de futuro. Para os filósofos em potencial, ela oferece uma perspectiva promissora, que pode
ampliar-se rapidamente. Já mencionei consultórios surgidos noutros lugares: desde que fique provado
que um filósofo pode viver decentemente dando consultas particulares, animando grupos, não duvido
que muitos dos que renunciam a ensinar filosofia, por medo de perderem o rumo ou por cansaço,
encontrem uma verdadeira saída na abertura de um consultório.

Acima de tudo, a receptividade encontrada até aqui também dá uma pálida medida do futuro
da filosofia. Um certo número de pessoas que não a têm como ofício abraçou a tal ponto sua causa
que pressinto uma onda profunda. De minha parte, tudo começou com as reprimendas de alguém que
eu mal conhecia, Jean-Pierre Cagnat, um ilustrador famoso: quando me queixei da sorte, num aparte,
durante uma excursão pelo campo, ele registrou minhas reclamações quase sem dizer palavra; dias
depois, entretanto, ao telefone, fez chover sobre mim tal dilúvio de desaforos, intimou-me tão bem a
parar de esperar fosse lá o que fosse das instituições (e dos outros em geral) que me convenceu a
tentar minha sorte sozinho. Fazia algum tempo que eu vinha pensando nisso. Imaginava iniciar
alguma coisa, mas com um amigo que lecionava arte do comércio nas séries superiores e deplorava a
ausência da filosofia no mundo dos negócios, Hervé K. Tratava-se de um dândi, muito high school,
cujo olhar só se iluminava realmente quando ele falava do último livro de Baudrillard. Convencido de
que era a minha disciplina e não a sua que tinha o melhor futuro pela frente, vez por outra ele me
incitava a conceber novas formas de ensino filosófico… Por sua vez, infelizmente, tinha trabalho
demais para realmente passar à ação. Quando eu o fiz, ficou radiante, mas não estava disponível.
Mas não faltou quem me desse apoio. Assim como Cagnat, os que se declararam dispostos a ajudar
não provinham do meio universitário: Éric era fotógrafo, Bertrand, advogado, e Pascal, consultor de
informática. Já os mencionei antes: foram eles que me ajudaram a me lançar, a defender minha
causa e a estabelecer meu projeto.

Quanto caminho já percorrido! Paralelamente ao consultório, fundou-se uma associação. Por


algum tempo mais virtual do que real, agora ela segue um bom caminho. Recebeu a adesão de vários
habitués de domingo, alguns dos quais tomaram a enérgica resolução de promover uma nova prática
da filosofia na cidade. Para citar apenas dois exemplos, temos primeiramente Sylvie Antona,
professora de educação física em Meudon, que passou a anotar quase por extenso os debates do Café
des Phares, a fim de guardar um “vestígio” deles antes de fornecer regularmente resumos que são
publicados na Carta da associação. É verdade que ela devia ter a nostalgia da Ágora, já que há anos
acompanha turmas de seu liceu em viagem à Grécia. Lembro-me também de Gunter Gohran. De
origem austríaca, jurista por profissão, ele é professor assistente de direito na Sorbonne, o que não o
impede de ter um leque de preocupações muito mais amplo. Julguemos por nós mesmos: condutor de
seminários em empresas, viaja com freqüência em missões culturais; germanista (o alemão é sua
língua materna), é tradutor de Freud. Mas faltava-lhe algo que o debate do café lhe revelou (segundo
suas palavras): a controvérsia filosófica, livre e sem concessões, mas também sem argumentos
autoritários. Foi por isso que, após uma longa fase de “consumo”, ele resolveu participar, na medida
de suas possibilidades, da promoção desse tipo de iniciativa, concordando em presidir a associação.

Admito que esses poucos exemplos ainda não derrubam as ameaças que pesam sobre a
civilização. Não refutam de fato as previsões fatais dos indignados detratores da “subcultura”. Não
estou cantando vitória, longe disso. Apenas digo que o “pensamento” ainda dispõe de um enorme
potencial e tenho certas reservas quanto a sua “derrota”. O que equivale a dizer que desejo que o
processo seja reaberto. Com efeito, parece-me que, nesse caso, queimaram-se etapas com muita
precipitação. Um aspecto decisivo foi elidido, “mal pensado” nesse processo: o centro de gravidade. O
das advertências feitas contra a aproximação da barbárie cultural não me parece ser o mais
adequado. Se é verdade que estamos vivendo uma grande crise, que um mal inexorável nos corrói,
temo que o diagnóstico certo ainda não tenha sido formulado.

É bem possível que as análises dos pessimistas se alicercem em fatos reais. Mas sua
abordagem desses fatos constitui em si mesma um problema. Supondo-se que o “pensamento”
descreva uma curva análoga ao percurso do Sol, numa duração equivalente à do dia, que ele tenha
conhecido sua aurora, seu apogeu e seu crepúsculo e que agora a noite se anuncie, a aproximação
dessa noite – da barbárie, se preferirmos – seria tão inevitável, portanto, quanto foi o raiar do dia no
Renascimento. Nesse caso, seria justificável o dobre lúgubre que anuncia uma barbárie equivalente
àquela de que o Renascimento nos fez sair. Se fosse realmente esse o caso, de fato conviria
esperarmos por uma nova noite, com a duração de vários séculos, repleta de imensas catástrofes e
de sofrimentos terríveis. Ao anunciar o fim dos letrados, o dobre de finados da humanidade soaria a
“derrota do pensamento”.

Mas, será que é isso mesmo? Convirá acreditarmos no som desses sinos? Note-se em
primeiro lugar que o drama, tal como encenado ali, concerne apenas à atividade do espírito. É o
“pensamento” que é derrotado, é a “subcultura” que o vence, deixando as rédeas livres para o
“fanatismo”. Quererá isso dizer que o destino do Ocidente, senão da humanidade inteira, decide-se
unicamente nas idéias? Que, no processo em curso, apenas esse campo tem importância? Que o resto
deve ser desprezado? Será que é porque os letrados traem, porque se submetem ao Volkgeist, ao
espírito de seu povo, porque renunciam a sua missão, que a subcultura vai ganhando e a barbárie se
anuncia? Em outras palavras, seria o pensamento o motor da história? Como é que sabemos que não
existem outras forças motrizes? E se o pensamento, longe de ser o motor da história, estivesse
submetido a outras forças, forças que lhe impusessem sua lei enquanto ele não as reconhecesse? Ao
apostarmos na onipotência do espírito, favorecemos, quando esse espírito se revela impotente, o
culto das forças ocultas.

Observe-se em seguida que a maioria desses autores ratifica, a sua maneira, a vitória da
barbárie. Se a barbárie está se apossando do mundo moderno tal como as trevas se apoderam da
superfície do globo no fim do dia, é desnecessário dizer que qualquer resistência é inútil, que é preciso
renunciar a toda e qualquer esperança de melhorar o mundo, que convém nos conformarmos com o
inevitável, nos resignarmos ao curso dos acontecimentos, deixarmos o mundo arruinar-se e
guardarmos para nós, conforme o caso, o pouco de lucidez que ainda tivermos. É inútil, nesse caso,
recriminarmos a capitulação dos doutos: no final das contas, nós mesmos capitulamos. Pior ainda:
convidamos os outros a capitularem. A não ser que não acreditemos realmente no que estamos
dizendo. Que o digamos apenas para amedrontar, para alertar, para advertir e, enfim, para provocar
um sobressalto, um despertar, uma mobilização. Mas, nesse caso, que sucede com a analogia em que
nos apoiamos? Essa vitória sobre o obscurantismo, esse dia que raiou sobre as trevas medievais, em
suma, a história do pensamento ocidental, que acontece com eles? Se o pensamento não está
acabando, se a noite não chegou, que horas são? Quanto tempo transcorreu? Quanto tempo resta?
Note-se, por fim, que esse tipo de análise situa-se inteiramente numa perspectiva
geocêntrica. É desse ponto de vista, e unicamente desse ponto de vista, que se vê o Sol “levantar-
se”, que se o vê alçar-se até o zênite, para depois declinar e, finalmente, “se pôr”. Ora, isso não
corresponde ao movimento real. Quando cremos que o Sol se põe, estamos enganados. O que
dizemos baseia-se em algo verdadeiro, é claro, já que com nossos olhos podemos vê-lo desaparecer
lá na linha do horizonte. Mas essa verdade não reside em nossa fórmula: o movimento do Sol é
apenas aparente; na verdade, é a Terra que se move, não ele. Dizer que o Sol se põe é confiar no
testemunho direto de nossos olhos e, por conseguinte, é sermos vítimas dele. Não será uma ilusão
análoga dizer que a noite vem caindo sobre o mundo moderno? Não é tão falso dizer que a barbárie
está se apossando do mundo quanto dizer que o Sol se põe?

A noite cai, sem dúvida, quando o Sol desaparece. Mas se há uma coisa que as Luzes nos
ensinaram é que o Sol não se põe: na realidade, é a Terra que gira em torno de seu eixo. Por
conseguinte, é pelo menos discutível deplorar o desaparecimento do Iluminismo, com base numa
metáfora que as próprias Luzes tornaram obsoleta. Antes de nos resignarmos, portanto, convém
examinarmos a coisa mais de perto.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

II
O Iluminismo

Nada é mais normal do que ver no advento do Iluminismo a vitória da razão sobre o
preconceito e a ignorância. A ofensiva conjunta dos enciclopedistas contra as prerrogativas dos
homens da Igreja, em meados do século 18, provou de maneira incontestável a derrota do
obscurantismo: à hegemonia do dogma, fundamentada na Revelação, enfim se impuseram
maciçamente os desempenhos da técnica, da ciência e do trabalho humanos. O clero resistiu, é
verdade, com vigor ainda maior, mas ficou na defensiva, enquanto o “espírito de iniciativa” avançou.
Não importa a que igreja pertencessem, os mentores espirituais recuaram, muito embora
continuassem a impressionar. Diante deles, os espíritos livres chegaram ao limiar do poder. O novo
espírito levaria a melhor.

Basta evocar Voltaire para dar corpo a esse espírito. É certo que Voltaire se dizia deísta e que
lhe sucedeu clamar sua fé até mesmo no topo de uma certa montanha; mas seu Deus era o Ser
supremo e não o Deus dos cristãos; quando muito, era o Pai: “Quanto ao Senhor Filho e à Senhora
sua Mãe”, acrescentou, a acreditarmos na lenda, “isso é uma história inteiramente diferente.” Voltaire
é o espírito livre, a liberdade feita homem, que não se adapta a nenhuma tutela, sobretudo não da
religião. Seu Deus não é o Deus que vigia, condena e castiga: não é preciso nenhum redentor para
redimir o pecado de Adão, nenhuma Virgem que o traga ao mundo. Isso não passa de futilidades,
conversas para boi dormir, feitas para embrutecer o mundo. E quem se beneficia desse
embrutecimento? Os déspotas e seus servos, guardiães dos livros “sagrados”! Contra esse
aviltamento do povo, Voltaire debateu-se incessantemente. E conheceu a glória: encarnava o clima de
sua época.

Todas essas coisas são bastante conhecidas. Mas não serão conhecidas demais? Ao nos
contentarmos com esses fatos, porventura não ficamos na superfície? Se “Iluminismo” opõe-se a
“obscurantismo”, não será num sentido mais profundo? Se os preconceitos foram vencidos, terá sido
unicamente pela “razão”? Se a ignorância recuou, terá sido por um avanço do “pensamento”? A bem
da verdade, por que falar em “luzes”? Por que essa metáfora? A luz como tal, aquela que nos vem do
Sol, não terá realmente servido aos contemporâneos, aos que designaram por esse termo o fenômeno
cultural, apenas como um termo de comparação? Será que o despontar das luzes do espírito, o
advento da razão, que eles saudaram dessa maneira, mantém com o aparecimento do dia, com a
passagem da noite para o dia, com o surgimento do Sol físico, dessa majestosa bola de fogo celeste,
com essa fonte benéfica de luz, apenas uma simples relação de analogia? Não terá tido a vitória do
Iluminismo realmente nada a ver com o processo físico e a força material que provocaram a
iluminação da superfície de nosso globo?

Ao conquistar a Prússia, o Iluminismo assumiu o nome de Aufklärung. Sob o reinado de


Frederico II, a Prússia de fato se abriu ao espírito novo, a ponto de saudar Voltaire como um herói. A
“vitória” não estava assegurada, o povo não estava “esclarecido”, mas o processo estava em
andamento. E encontrou em Kant seu arauto. “O que é o Iluminismo, afinal?”, escreveu um dia,
provocadoramente, um pastor hostil. Kant retrucou prontamente num opúsculo: o Iluminismo,
afirmou ele, é em essência o fim do período em que o homem não tinha coragem de se servir do seu
entendimento. Até agora o homem era menor, já que recebia instruções de um outro e as aplicava. O
cuidado com seu espírito, sua alma e seu corpo não era uma incumbência dele. De certa maneira, ele
se beneficiava com isso, já que ser responsável por si implica uma grande parcela de riscos; mas que
proveito tiravam seus tutores! Dirigiam-no a seu gosto, como se dirigissem as bestas de carga, e
podiam usufruir impunemente dos frutos do seu trabalho…

Por isso, não convém entender a “luz” trazida pelo “Iluminismo” como uma simples questão
de “cultura”. O espírito das Luzes prende-se tanto a uma audácia nova quanto a um novo saber.
“Sapere aude!”, essa é a palavra de ordem de Kant: “Tem coragem de te servir de teu próprio
entendimento!” Kant não hesita em retomá-la e em gritar ainda mais forte. Reivindica a absoluta
liberdade de expressão para os sábios e os eruditos, é claro, pois esta é a condição necessária para
que os “dogmas” e as “fórmulas feitas” deixem de agrilhoar o espírito dos indivíduos. Mas é preciso
também que se realize o processo de auto-educação do público. O que equivale a dizer que a vitória
das Luzes não é a vitória de um universal, alcançada de uma vez por todas, a qual portanto se
trataria apenas de transmitir, de “cultivar” a partir desse momento, mas sim a vitória da audácia, da
coragem de pensar por si.

Kant sabe do que está falando. Talvez convenha relembrá-lo. Conhecemos bem o Kant
“crítico”, inimigo de qualquer dogmatismo, religioso ou filosófico, conhecemos seu gosto pela moral e
seu desejo de uma paz perpétua e podemos vê-lo passear, qual um pêndulo bem regulado, como um
homem tranqüilo de Königsberg, nos confins do mar Báltico. Mas desprezamos um traço decisivo. A
ambição primordial de Kant é descrever a gênese do mundo. Nada mais, nada menos… Admitamos
que isso não é nada: em 1754, aos 30 anos de idade, ele redige uma História geral da natureza que
tem de fornecer uma resposta à pergunta: como se constituiu o Universo? Trata-se de uma Teoria do
céu (essa é a segunda parte do título), ou seja (e esse é o subtítulo), de um Ensaio sobre a
constituição e a origem mecânica do conjunto do edifício do mundo, elaborado segundo os princípios
newtonianos. Em outras palavras, suas preocupações concernem, em primeiro lugar… ao Sol e sua
luz.

Jovem, não falta ousadia a Kant. Ele afirma ser possível descrever a gênese do mundo
graças à teoria de Newton: “Apenas dai-me matéria e eu vos construirei um mundo!” Visto que a
força de atração reina universalmente em todo o Universo, que todos os astros e todos os corpúsculos
possuem a propriedade de se atrair mutuamente, Kant se encarrega de mostrar, etapa por etapa,
como se construiu o edifício. Numa primeira parte, propõe uma nova “constituição” do Universo,
agrupando as “estrelas fixas” em “figuras elípticas”, segundo a idéia que faz da forma da Via Láctea;
depois, passa à gênese propriamente dita de um desses sistemas, no qual se situa o “mundo” que nos
concerne: o sistema solar.

Seria um erro sorrirmos. É num momento que antecede Laplace em mais de quarenta anos
que Immanuel Kant anuncia a hipótese da “nebulosa original”, em termos e com um rigor que nos
deixam atônitos. Naturalmente, ele não tem ilusões sobre a acolhida que será reservada a seu ensaio
nas chamadas esferas “superiores”: irão acusá-lo de impiedade, ateísmo e epicurismo. Por isso é que
tenta de antemão neutralizar as reações que possam ser-lhe funestas. Sabe perfeitamente que os
preconceitos dos doutos e dos religiosos se opõem a sua iniciativa: por isso, ele anuncia que sua
tentativa enfim repele a “obscuridade” que reinava sobre a gênese do mundo, sem no entanto
comprometer a soberania do Ser supremo. No fundo, porém, ele é irredutível: movida por uma força
de atração, a matéria engendra os mundos. É só deixarem que ele o demonstre, sem prevenções!

Assim, vemos claramente a relação privilegiada que Kant mantém com a luz do dia: aquele
que em 1784 se faz porta-voz das “Luzes” é o mesmo que ousou, nos primórdios de sua carreira,
propor uma “teoria do céu”, extraída dos princípios newtonianos. O mesmo acontece com Voltaire. De
fato, é a ele que devemos a notoriedade de Newton na França. É claro que ele não foi o primeiro a
enaltecer os Princípios, mas os “popularizou”. Fontenelle e Maupertuis o haviam precedido, não há
como contestar, mas tinham um público restrito. Foi Voltaire quem fez o grande alarde. Ele tinha 32
anos quando embarcou para a Inglaterra. Na ocasião, era apenas “Voltaire”. De sua carreira de
“letrado”, de advogado do pensamento, da razão universal e das novas “Luzes” tinha ainda pouco a
dizer. Saíra diretamente da Bastilha, mas por uma altercação obscura com o príncipe de Rohan,
depois de uma troca de bastonadas sob o pórtico do hotel Sully. Levava na bagagem duas tragédias,
uma das quais fora promissora e outra, desanimadora, duas comédias, que tinham sido dois
fracassos, e uma epopéia ainda não editada. Na Corte, conheciam-se suas impertinências e seus
talentos eram reconhecidos mediante a concessão de uma pequena pensão, sem dúvida para poupá-
lo de conviver com os irmãos Pâris, ricos banqueiros muito pouco escrupulosos. Voltaire? O grande
público o desconhecia, e não se pode dizer que já fosse um “pensador”. “Letrado” o jovem Arouet já o
era aos 20 anos, mas como escrevente… de tabelião.

Sua viagem à Inglaterra modificaria tudo. De repente, ele se tornou “grande”. Como?
Tornando-se newtoniano. É claro que, do outro lado da Mancha, Voltaire encontrou muitas razões
para se entusiasmar. Ali se respirava um ar mais puro, ao menos do ponto de vista político, do que o
respirado na França: nada de monarquia absoluta, mas um regime parlamentar em que o poder do rei
era limitado pelos representantes do povo; nada de Inquisição jesuítica, mas tolerância religiosa.
Entre os ingleses, ele se sentiu em casa. A partir daí, não parou de dar lições aos franceses e
começou a redigir as “cartas” que subitamente o celebrizariam. Mas, justamente, em que é que mais
insistiam as Cartas filosóficas? – Na maravilhosa descoberta das leis da gravitação universal. Em
Londres, Voltaire tornou-se o defensor de Newton. Das 25 cartas publicadas, quatro foram dedicadas
a ele. Somente os quacres, que inauguravam a obra, tiveram direito a tamanha honra, enquanto
todos os outros temas foram tratados em uma ou duas cartas, inclusive o “governo”. Ora, os quacres,
como seria de se esperar, ficaram longe de receber um tratamento tão favorável quanto o conferido
pelo autor a Newton.

Voltaire esteve na Inglaterra no ano de 1726. Restava ainda um ano de vida a Newton: ele
morreria em 1727. Inúmeros eram seus adversários, mas sua glória já era imensa. Seus Princípios
matemáticos de filosofia natural, publicados quarenta anos antes, conquistavam a cada dia mais
adeptos nas altas esferas da sociedade. De fato, pela primeira vez na história da humanidade, o
conjunto do sistema do mundo, desde os corpúsculos até as estrelas fixas, submetia-se ao jugo de
um princípio, de uma lei simples e única, matematicamente verificável, chamada de “atração
universal”. As cabeças bem formadas estavam convencidas dela e espalhavam a boa notícia. Recém-
chegado a Londres, Voltaire lhes seguiu a trilha, antes de se tornar, de volta à França, o
propagandista dessas idéias. A “décima quinta carta” teve por objetivo expor o desempenho da teoria
de Newton na explicação dos mistérios que ainda obscureciam a imagem que convinha ter do mundo.
Voltaire resumiu em algumas páginas o modo como Newton chegara a definir “a causa que faz
girarem e que retém em suas órbitas todos os planetas”. Mostrou que era preciso considerar como
uma única e mesma causa o que provocava a rotação dos planetas e o “que faz com que, aqui
embaixo, todos os corpos caiam na superfície da Terra”. Daí a historieta da maçã, que passaria para a
posteridade, bem como certos raciocínios muito condensados, que não são muito fáceis de
acompanhar…

De maneira bastante abrupta, estamos muito longe do poeta fantástico e cáustico,


representado pelo cortesão. Foi com a mais extrema seriedade que Voltaire se preocupou em
“propagar” a doutrina do grande Newton. E sobretudo não se vá supor que se tenha tratado de uma
fantasia, de um capricho, favorecendo uma moda ainda desconhecida na França. Isso porque as
poucas páginas das cartas logo foram substituídas por um livro com umas quatrocentas delas! Cinco
anos depois, em 1738, Voltaire publicou um trabalho completo de física, para colocar “ao alcance de
todos” os Elementos da filosofia de Newton. Em seu prefácio, reconheceu que aquela filosofia sublime
“pareceu a muitas pessoas, até o momento, tão ininteligível quanto a dos Antigos”, o que bem
poderia servir de autocrítica indireta às quatro “cartas inglesas” que ele lhes dedicara. Por isso, dessa
vez ele se empenhou em destrinçar as dificuldades e expor as coisas de maneira sistemática:
começou por analisar o fenômeno da luz solar “e de que modo ela chega até nós”, o que o ocupou por
oito capítulos; depois, extraiu disso as “provas de que existem átomos indivisíveis”, a fim de concluir
pela existência da atração e de sua universalidade. No capítulo XXIII, tudo estava enfim consumado e
só restava formular a “teoria de nosso mundo planetário”.

Talvez caiba repetir aqui que estamos falando de Voltaire e esclarecer que d’Alembert,
Diderot e companhia ainda estavam apenas engatinhando sua luta contra o obscurantismo: seria
preciso esperar mais quatro anos pela publicação do Tratado de dinâmica e nove para que a grande
Enciclopédia fosse realmente iniciada. Assim, seria absolutamente injusto e, acima de tudo,
perfeitamente falso desprezar a contribuição de Voltaire para a propagação das “luzes” fornecidas
pela obra de Newton. Mas, sendo assim, como falar do Iluminismo sem falar da luz como tal?

Resumindo, tornou-se banal falar da era das Luzes como um fenômeno “cultural”. Diz-se que
um “espírito” se apossou da Europa no século 18 e repeliu para os confins dela os dogmas e os
preconceitos: quer o chamemos de “razão” ou de “pensamento”, vemos esse espírito encarnar-se
num Voltaire ou num Kant. Pois bem, essa maneira habitual de falar oculta (não há outra palavra) o
papel desempenhado pela teoria de Newton. Quando evocamos Voltaire ou Kant como porta-vozes do
Iluminismo, é comum deixarmos de esclarecer que eles foram adeptos dos Princípios e se fizeram
ardorosos apóstolos deles. Em outras palavras, os termos habitualmente utilizados para qualificar o
advento do Iluminismo escondem-nos que ele esteve diretamente ligado à descoberta da atração
universal, da força que rege o mundo e rege, portanto, o nosso sistema solar. O universal esconde o
Universo.

Não é espantoso?
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

III
A revolução heliocêntrica

A esta altura, alguns doutos decerto estarão franzindo o cenho. A história das ciências é uma
disciplina exigente, que não admite o diletantismo. Um fará ressalvas quanto à importância da teoria
de Newton: perguntará se convém reduzir o conjunto a um de seus elementos. Outro formulará
dúvidas sobre o caráter luminoso da doutrina da atração, pois muito se discutia, na ocasião, a
natureza da força assim denominada por Newton; para muitos sábios da época, Newton estava
fazendo a ciência regredir, na medida em que recaía no velho defeito de Aristóteles, o das qualidades
ocultas; ao atribuir à matéria esse poder de atrair à distância, a cosmologia newtoniana introduzia
sub-repticiamente aquilo que Descartes acabava de rechaçar: a crença dos alquimistas num poder
obscuro dos corpos. Além disso, Newton era alquimista, esclareceria um terceiro: manipulava o
antimônio para obter uma substância sublime – o mercúrio filosófico, cujos poderes deveriam ser, a
acreditarmos em seus numerosos colegas, fascinantes e prodigiosos… Podemos realmente considerá-
lo o principal promotor das Luzes? Será mesmo por ele que elas passam?

Algum estudioso de orientação clerical impedirá qualquer tentativa de vermos na lei da


atração universal uma derrota da fé, pois tem absoluta certeza de que o atomismo newtoniano
revestiu-se de uma crença inabalável no poder de um Deus criador: para Newton, o mundo exprimia
o poder de Deus, isto é, Sua inteligência; quanto à matéria, ele a concebia como “expressão” dessa
inteligência e não como sua substância. Ela estava submetida aos “princípios matemáticos” e, por
conseguinte, ao mundo das idéias. Se Newton privilegiava os “átomos” e as “forças” que
determinavam as relações entre eles, de modo algum fez triunfar o materialismo, caso contrário
teremos de admitir que este não é nada além do modo de descrição a que o homem tem que se
resignar, considerando-se os estreitos limites que determinam seu pensamento. Newton, por sua vez,
não considerava a “matéria” como a essência da verdadeira natureza do cosmo: sabia que sua
abordagem estava sujeita às fraquezas do pensamento humano…

Quanto a Voltaire, haverá quem afirme que ele não merece tamanho crédito. Que é um
excelente contista, mas um filósofo medíocre. Que, se é realmente preciso encontrar um promotor da
vitória do Iluminismo, não se pode enaltecer Voltaire e silenciar sobre Descartes. O que foi Kant para
o Aufklärung, não é isso o que foi Descartes para o Iluminismo? Comparado a René Descartes,
Voltaire não passa de um diletante. Pois, se alguém eliminou todos os preconceitos escolásticos sobre
os quais repousavam os dogmas da Igreja, é para Descartes que temos de apontar: o cuidado de não
admitir nada que não fosse duramente submetido à prova da evidência, a confiança nos poderes da
razão natural, a elaboração de um método para destrinçar as dificuldades apresentadas pelos enigmas
da “matéria” em relação à extensão, porventura não é isso muito mais decisivo do que o entusiasmo
voltairiano? Newton não deve nada a Voltaire, mas quanto não deverá a Descartes?

Por mais numerosos e bem informados que sejam esses bons doutos, eles não nos devem
confundir. As leis estabelecidas por Newton tinham por objetivo fornecer a solução para um problema
que se colocava em termos muito simples. Esse problema provinha de uma mudança de perspectiva
na observação do céu, proposta por Copérnico em seu tratado Sobre as revoluções das orbes
celestes. Copérnico afirmava que, apesar das aparências, não era o Sol que girava em torno da Terra,
mas a Terra em torno do Sol. Para explicar a alternância entre o dia e a noite não era preciso,
segundo ele, supor nada além de uma rotação da Terra em torno de seu eixo. E para compreender a
alternância das estações era só fazer a Terra girar em torno do Sol: isso decerto lhe tomaria um ano!
O problema, por conseguinte, é que nesse caso era preciso admitir que a Terra se mantinha em
movimento no espaço. No plano geométrico, a coisa era bastante concebível, mas e no plano físico?
Como era possível que aquela massa colossal se movesse com tanta facilidade no espaço, com
tamanha regularidade e sem que tivéssemos a menor impressão disso? Como é que não éramos
expulsos da superfície da Terra pela força centrífuga? Como se vê, Newton não se empenhou noutra
coisa senão simples questões de bom senso…

Naturalmente, essas questões, que não poderiam ser mais simples, repousavam em
controvérsias mais complexas. O modelo esboçado por Copérnico, o heliocentrismo, concorria desde
1543 com o modelo de Ptolomeu, que vigorou durante toda a Idade Média. Nele, a Terra era
concebida como uma esfera imóvel no centro do mundo, estando os outros corpos celestes em
rotação ao redor dela, segundo uma hierarquia sutil que ia da Lua às “estrelas fixas”, passando pelo
Sol e pelos planetas. Esse modelo explicava admiravelmente a maioria dos fenômenos observados,
mas tinha dois grandes inconvenientes. O primeiro era que o tamanho do Sol era gigantesco e sua
distância da Terra era colossal, de modo que, para explicar seu reaparecimento a cada manhã, era
preciso supor que ele teria uma velocidade vertiginosa: se amarrarmos uma pedra na ponta de uma
corda e a fazermos girar, quanto maior for a corda, mais depressa será preciso fazer girar a pedra
para fazê-la descrever uma rotação num tempo invariável. O mesmo se dava com o Sol; enquanto se
pôde crer que ele era pequeno, sua distância da Terra pôde ser modesta e sua rotação não implicava
uma velocidade prodigiosa; mas, quando se veio a avaliar seu tamanho real e se alongou igualmente
sua distância da Terra, foi necessário, levando em conta as 24 horas atribuídas a sua rotação,
atribuir-lhe uma velocidade tão grande que beirava o inacreditável…
O segundo grande defeito do sistema é que não permitia prever as posições exatas dos
planetas. De um mês para o outro, eles escapavam a todas as previsões. Enquanto a imensa maioria
dos astros mantinha posições fixas no céu e, por isso mesmo, guardava as mesmas distâncias entre si
(a ponto de se poder considerar que estavam presos à abóbada celeste), pois todos se moviam ao
mesmo tempo num movimento único de rotação, os planetas não paravam de vagar. Por isso é que
eram chamados de “errantes”. Seu nome provinha do grego planetés, que significa “cabra”, pois, tal
como cabras indo e vindo de um rochedo para outro na montanha, de maneira imprevisível, eles
erravam contra o pano de fundo dos astros fixos, ora se dirigindo para o oeste, como a totalidade da
abóbada celestial, ora se movendo para trás e com toda a independência, obedecendo tão-somente a
seu “capricho” – como um bando de caprinos. Ao cabo de catorze séculos de paciência e montagem
de armadilhas, os astrônomos “geocentristas” não se confessavam derrotados: continuavam a
procurar captá-los com a ajuda de figuras geométricas sofisticadas, como os “epiciclos”.

Vãos subterfúgios! Copérnico estava farto. Mesmo que se conseguisse domesticar os


planetas, que fazer com aquele Sol incômodo e sua ronda infernal? Não seria muito mais razoável
colocar o maior dos astros no centro do mundo do que instalar ali uma Terra minúscula, à qual ele
supostamente se submeteria? Não seria melhor supor o inverso e subordinar a Terra ao Sol, como um
súdito a seu monarca? Uma volta da Terra em torno de seu eixo e se pouparia a Sua Majestade uma
corrida absurda! Com isso, matavam-se dois coelhos de uma só cajadada. Supondo-se que a Terra
estivesse não no centro do mundo, mas na periferia do Sol, tudo se tornava muito mais claro com
respeito aos planetas. Eles paravam de agir de maneira caprichosa e se ordenavam com toda a
regularidade, também eles, em torno do Sol. As irregularidades provinham apenas do fato de
observarmos sua órbita a partir da Terra e de nos obstinarmos em fazer da Terra o centro de sua
rotação. Fazendo-os gravitar em torno do Sol, tudo se esclarecia num instante. Tudo se tornava
simples e harmonioso. De um só golpe, graças a essa simples mudança de perspectiva, o mundo
tornava-se muito mais sensato.

Mas nem tudo se resolvia com isso. Antes de tudo porque, apesar de sua maravilhosa
harmonia, apesar da soberba ordenação de seus planetas em rotação em torno do astro solar, o
sistema ainda deixava muito a desejar em seus pormenores; alguma coisa não funcionava no tempo
de rotação de cada planeta em torno do centro, assim como na distância em relação a esse centro: o
cálculo de sua órbita circular não correspondia ao que se observava da posição deles (a não ser
trapaceando, como antes); assim, o astrônomo Tycho Brahe, que duvidava da posição excêntrica da
Terra, fez por seu turno tantas observações sérias que comprometeu a tese de Copérnico num
aspecto: a Terra não podia mover-se circularmente, com uma velocidade uniforme, em torno do Sol.
Além disso, era-se apanhado desprevenido para fornecer a razão física dessas rotações no espaço:
Copérnico supunha que elas eram fixadas numa espécie de esfera em movimento, os “orbes celestes”
(no que se contentava em retomar a hipótese de Ptolomeu). Por isso, os partidários do geocentrismo
não haviam entregado os pontos. Continuavam a defender Ptolomeu e censurar Copérnico.

No ano do nascimento de Newton morreu um certo Galileu. Graças a ele, o debate havia
tomado um rumo decisivo: é que, para estupefação geral, Galileu tivera a audácia de afirmar que era
possível ter uma imagem do sistema do mundo observando o planeta Júpiter! Por mais incongruente
que isso nos possa parecer hoje em dia, esse convite de Galileu transtornou os dados da questão do
cosmo. De fato, Galileu apontara uma luneta para o céu e observara minuciosamente a ronda de
satélites minúsculos em torno daquele esplêndido planeta. Não havia parado por aí, é claro; mas
anotara escrupulosamente os horários de suas observações do astro, voltara sua luneta para a Lua,
como convinha, e destacara os impressionantes relevos que desfiguravam sua superfície, em seguida
deixando a luneta varrer o céu, o que tivera por efeito decuplicar o número de estrelas, que se
supunha conhecer com exatidão, e comprometer definitivamente a “imagem” que se tinha do “céu”.

Nem todo o mundo apreciou isso. As autoridades religiosas começaram a ranger os dentes.
Copérnico, durante sua vida, tivera pavor dessa reação. Por isso é que se colocara sob a proteção do
papa da época e por isso é que seu editor houvera por bem acrescentar um prólogo em que
apresentava o trabalho do autor como uma hipótese de trabalho, um modelo matemático, que
sobretudo não devia ser levado ao pé da letra e considerado como um modelo físico do mundo – ele
era uma espécie de visão mental. Copérnico sabia perfeitamente que punha as Escrituras em xeque
num ponto muito sensível, o da ordem do mundo. Logo nas primeiras páginas da Bíblia, no relato da
Criação do mundo, podemos ler com todas as letras que os “luminares”, o “grande” e o “pequeno” –
em outras palavras, o Sol e a Lua –, foram feitos para iluminar a Terra, um de dia e outro de noite.
Não se pode supor outra relação senão a de subordinação desses astros à Terra, a qual fica muito
difícil não conceber como estando no centro da Criação – e imóvel. São os astros que se movem,
inclusive o Sol, como mostram as evidências. Qualquer outra perspectiva comprometeria o interesse
teológico desse texto. Deus faz com que a vegetação cresça, os animais proliferem e, ao criar o
homem e a mulher, concede-lhes prontamente o domínio de toda a natureza, o que equivale a dizer
que faz tudo pelo bem deles e que a rotação do Sol em torno da Terra tem por intuito contribuir para
isso. Não há como ver as coisas de outra maneira. Tanto assim que essa narrativa é tida como sendo
de Moisés, que a teria recebido diretamente de Deus. É a chamada Revelação. Através de Moisés, foi
o próprio Deus quem falou.
Pouco confiante na acolhida que a Igreja daria a seu trabalho, Copérnico havia esperado o
máximo possível, até o ano de sua morte, para publicar sua Revolução. Estava errado. Convém dizer
e sublinhar: durante décadas, a cúria romana estivera muito seduzida pela idéia de que o Sol, e não a
Terra, estivesse no centro do mundo. A reação de hostilidade foi tardia. Foi preciso esperar pelo ano
de 1600 para ver a Igreja mudar de atitude. E, mesmo assim, isso foi essencialmente obra da
Inquisição. Começaram por apontar o dedo para as Escrituras e a gritar blasfêmia, sacrilégio, e
Galileu arcou com as conseqüências. Processaram-no pela primeira vez em 1606, para levá-lo a
renegar o detestável sistema de que acabara de se fazer defensor. A todas as suas esplêndidas
observações opôs-se não somente o texto do Gênese, mas também a passagem do Livro de Josué em
que Deus detém o Sol sobre o vale de Aijalom enquanto Josué trava uma batalha, o que prova
perfeitamente que não é a Terra e sim o Sol que se mexe… E, como isso não bastasse, como Galileu
continuasse a comunicar suas descobertas ao mundo erudito, aprisionaram-no em 1633 pelo resto da
vida.

Assim, os méritos do sistema heliocêntrico não foram reconhecidos por toda parte…
Entretanto, a coisa tomou um bom rumo. Aqui e ali, na Europa, enfim se puderam formular as
perguntas nos termos certos: não estavam os planetas em rotação em torno do Sol, como os satélites
em torno de Júpiter? Não era a relação da Terra com a Lua idêntica à de Júpiter com sua pequena
família celeste? Esses satélites não eram “luas”? Havia mesmo necessidade de presumir “orbes”,
esferas sólidas, para compreender a rotação dos planetas em torno do Sol? Nessa época remataram-
se as especulações do grande Johannes Kepler. Adepto convicto da teoria de Copérnico, mas aluno de
Tycho Brahe, Kepler tivera que enfrentar por muito tempo a crítica mordaz de um mestre a quem
venerava mas que não compartia de sua fé. Tivera que admitir que a órbita da Terra não podia ser
perfeitamente circular e que, nesse ponto, a tese de Copérnico, que via círculos por toda parte, estava
refutada; mas, em vez de se resignar e rejeitar o sistema inteiro, ele acabara descobrindo que, se não
se movia num círculo, a Terra se movia numa elipse. O que comprometia a tese de Copérnico eram as
irregularidades do movimento eventual de rotação: em sua órbita, a Terra tinha que ter velocidades
diferentes em momentos diferentes. Kepler conseguiu descobrir uma lei que satisfazia as exigências
de Tycho: a das áreas iguais percorridas em tempos iguais. Imaginemos uma rotação numa elipse da
qual o Sol ocupe um dos focos e compreenderemos como a Terra pode se mover mais depressa em
alguns momentos e menos depressa noutros! Kepler fez mais do que isso. Depois de colocar os
planetas em rotação elíptica em torno do Sol, ele forneceu a lei de sua distância em relação a este.
Constatando que, quanto mais distantes eles estão do Sol mais longo é seu tempo de rotação, ele
procurou uma fórmula que fornecesse a relação entre todas as distâncias e todas as velocidades – e a
encontrou.
O que era o bastante, sem dúvida, para confundir os adversários mais acerbos do
heliocentrismo. No entanto, nada estava resolvido ainda, pois persistia a questão física. Aliás, ela se
tornava mais lancinante do que nunca. Se os adeptos de Copérnico tinham razão, como funcionava o
sistema do mundo? Por que milagre podia a Terra “sustentar-se” no ar? Como podia mover-se no
vazio? E por que não tínhamos a menor sensação disso? Por que não éramos arremetidos no espaço
pela força centrífuga provocada por sua rotação, que era muito rápida, levando-se em conta sua
circunferência? E os outros planetas, como se sustentavam no espaço? E como podiam mover-se com
aquela regularidade? Numa palavra, que força constante os animava? Era esse o enigma. E foi a esse
enigma que Newton respondeu. Para mostrar que Copérnico tinha razão, ele combinou as descobertas
de Galileu com as de Kepler. Partiu do princípio de que “todo corpo permanece em estado de repouso
ou de movimento retilíneo uniforme em que se encontra, a menos que alguma força atue sobre ele e
o obrigue a mudar de estado” – o princípio da inércia. Levando-o em conta, é de surpreender que a
Lua não fuja da Terra em linha reta, o que seria o mínimo, uma vez que é dotada de um “movimento
uniforme”, ou seja, corre no espaço numa velocidade regular; e temos de constatar que o mesmo se
dá com todos os outros corpos celestes; é o caso das “luas” de Júpiter: por que os satélites de Júpiter
não seguem seu curso em linha reta? Por que são “mantidos” em órbita? Que força os obriga a saírem
repetidamente da tangente? Se levarmos em conta as leis estabelecidas por Kepler sobre as relações
entre a distância que vai dos planetas ao Sol e a velocidade de rotação deles, poderemos calcular as
forças necessárias a sua gravitação a partir do conjunto do sistema. O modelo correto, portanto, não
é aquele em que a Terra faz as vezes de centro, pois ela não dispõe de massa suficiente para atrair os
astros de maneira a que eles permaneçam em suas órbitas. O modelo certo é aquele em que o centro
é o Sol…

Como sabemos, Newton não foi o primeiro a formular a hipótese da atração universal. Antes
dele, já Francis Bacon enunciara a idéia de uma força de atração entre os corpos celestes; o próprio
Kepler pensara nisso; e, durante a vida de Newton, a idéia estava no ar: Hook, seu grande rival na
corrida pela solução do enigma, fornecera uma formulação exata dessa doutrina. Mas Newton não se
contentou com uma formulação hipotética: ofereceu as fórmulas matemáticas que a confirmavam. Foi
essa a vocação dos Princípios matemáticos da filosofia natural, que rapidamente lhe valeram a glória
– e a admiração de um jovem poeta, carente de um centro de gravidade, que se chamava Voltaire.

Dieu parle et le chaos se dissipe à as voix;


Vers um centre commun tout gravite à la fois,
Ce ressort si puissant, l’âme de la nature,
Était enseveli dans une nuit obscure,
Le compas de Newton mesurant l’Univers
Leve enfin le grand voile et lês cieux sont ouverts.
Não há dúvida de que temos de insistir. Se Newton provocou esse acontecimento, foi por
demonstrar que o problema cosmológico encontrava sua resposta no sistema heliocêntrico. E por isso
é que ele foi celebrado, por ter resolvido o funcionamento do sistema do mundo, por ter encerrado de
maneira decisiva o debate sobre a ordem do Universo, por ter feito os partidários do geocentrismo lhe
darem razão.

Para caracterizar o Iluminismo, portanto, não basta mencionar o despontar da razão frente à
crença. Ainda mais que a razão se opunha à razão. Newton se opôs a Descartes. A razão cartesiana,
no caso, opunha-se à atração universal. A geometria de Descartes foi, incontestavelmente, um
instrumento matemático preciosíssimo na batalha, mas, quanto a sua razão… Apesar de sua razão,
sua clareza e sua evidência, Descartes se perdera no estudo dos corpos celestes. Vista por esse
prisma, sua contribuição para a propagação do Iluminismo é problemática. Se Descartes foi um
pioneiro, foi também um obstáculo. Isso porque, no caminho do problema decisivo – a questão do
“como funciona isso?” -, ele semeou dificuldades. Na verdade, havia começado por adotar o
heliocentrismo e foi por essa perspectiva que abordou seu Tratado do mundo, mas, além de haver
renunciado a publicar seu livro, por medo da Inquisição, ele não formulou de maneira alguma as
perguntas que se impunham na época: a que figura geométrica obedece o movimento dos corpos
celestes em órbita em torno do Sol? Qual é sua velocidade de rotação? Qual é sua distância do
centro? Que relação existe entre sua distância do Sol e sua velocidade de rotação? Ao invés disso,
Descartes precipitou-se na busca das causas dos movimentos e da gênese do sistema – e se perdeu.
Ao negar a possibilidade do vazio na natureza, foi obrigado a inventar um motor mecânico para
explicar os movimentos dos corpos – os “turbilhões”. Assim, não foram apenas Aristóteles e o
dogmatismo ptolomaico que Newton teve que superar, mas também a precipitação cartesiana.
Enquanto isso, após a publicação póstuma do tratado de Descartes, a negação do vácuo e seus
turbilhões sutis tinham acabado por granjear adeptos e se impor na Inglaterra. Ora, o mundo assim
concebido se opunha às leis de Kepler e o fazia em nome da razão, pois o vazio era “inconcebível” e a
ação à distância era proibida. Seria necessária, justamente, toda a potência dos Princípios
matemáticos para derrubar o Tratado do mundo. Newton se encarregaria de demonstrar detidamente
a inutilidade dos turbilhões cartesianos (desde que levadas em conta as leis estabelecidas por Kepler
e a necessidade do vazio) quando se pretende compreender o fenômeno dos cometas. Nesse sentido,
é evidente que a vitória de Newton passou pela derrota de Descartes. É bem possível que, com
Descartes, a “França” tenha sido derrotada: sendo muito pouco patriótico e pouco afetado pelo
Volksgeist, Voltaire tomou o partido, já em 1727, de Isaac Newton. Não desprezou Descartes e
reconheceu seus méritos, mas percebeu nos Princípios a solução do enigma que Descartes não
soubera resolver. Terá sido isso realmente o sinal de uma filosofia medíocre?
Por fim, se é fato que Newton foi alquimista e se entregou a extravagâncias obscuras, como
a de criar uma nova cronologia para a história humana, quem sabe se esses trabalhos de aparência
arriscada não tinham sua lógica e não mantinham uma afinidade particular com a intuição da atração
universal? Da alquimia ao magnetismo haverá tanta distância assim? Do magnetismo à construção
dos templos e pirâmides acaso não existe uma certa relação? Uma coisa é certa: essas pesquisas
ocultas não comprometeram as luzes que Newton fez surgir na ordenação do cosmo, ao contrário dos
caprichos de Descartes, ainda que nascidos do livre exercício de sua razão pura. De resto, o próprio
Newton soube responder bem às objeções que o conceito de atração fez surgir. “Até o momento”,
disse, “expus os fenômenos dos céus e de nossa mãe por meio da força da gravidade, mas ainda não
atribuí nenhuma causa à gravidade.” Presumir a ação à distância dos corpos celestes e dos
corpúsculos, reconheceu ele no fim de seu livro, era uma exigência do conjunto das observações.
“Agora poderíamos acrescentar”, disse, “algo como aquele espírito sutil que penetra nos corpos
sólidos e se oculta neles […], mas isso não pode ser exposto em poucas palavras e, ademais, as
experiências que devem tornar conhecidas e determinar com exatidão as leis das ações desse espírito
não existem em número suficiente.” Essa atração por essa propriedade da matéria ele confessou
ignorar, deixando a seus sucessores a preocupação de descobri-la.

Partindo de uma visão heliocêntrica, Descartes produziu uma grande obscuridade – e se


perdeu nela. O que mostra que a razão também pode produzir idéias confusas e indistintas.
Felizmente, com a ajuda de uma intuição condenável a priori, Newton desmontou essa armadilha. E,
como Fontenelle, como Maupertuis, Voltaire não se enganou:

Déjà ces tourbillons, l’un par l’autre presses


Se mouvant sans espace et sans règle entassés
Ces fantômes à mês yeux disparaissent.
Um jour plus pur me luit; lês mouvements renaissent
L’espace qui de Dieu contient l’immensité
Voit rouler dans son sein l’univers limité,
Cet univers si vaste à notre faible vue,
Et qui n’est qu’un atome, un point dans l’étendue.

Voltaire, filósofo medíocre? Mas foi ele quem enxergou com clareza: compreendeu, ele sim,
que a vitória da razão sobre o obscurantismo passava pela vitória do heliocentrismo sobre o
geocentrismo.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

IV
Revolução mercantil

Que coisa estranha! Primeiro, a maneira como se costuma entender a vitória das Luzes sobre
o obscurantismo medieval oculta o fato de que ela passa pela instalação do Sol em seu verdadeiro
lugar, ou seja, no centro do mundo, e por isso mesmo despreza o papel decisivo de Newton na
confirmação da pertinência do modelo heliocêntrico elaborado por Copérnico. E, agora, eis que o
exame revela que o sucesso de Newton baseou-se numa intuição que nada tinha de “racional”, mas
que decorreu de uma dessas idéias ocultas que o pensamento cartesiano, do qual costumamos fazer o
protótipo do pensamento iluminista, considerava obscurantista; é de não se entender nada!

Aquilo a que chamamos vitória das Luzes, esse momento em que a “luz” finalmente triunfou
sobre as “trevas”, foi a genial confirmação fornecida por Isaac Newton da exatidão da doutrina
heliocêntrica. Fazia muito tempo que essa confirmação era esperada pelos partidários da revolução
cosmológica. Os adeptos da Revelação cristã estavam reduzidos à defensiva, pois a única tentativa
séria que se fizera de reforçar a tese geocêntrica, a do grande Tycho Brahe, logo se invertera a favor
da tese rival, graças ao zelo ardoroso de seu melhor aluno, Johannes Kepler: e as observações com a
luneta, inauguradas por Galileu, tornavam enorme a probabilidade da rotação da Terra. Mas a vitória
não foi conquistada enquanto ainda faltava a explicação física para essa rotação e todas as demais.
Ora, o cartesianismo criou obstáculos a essa vitória, rejeitando a possibilidade do vazio e inventando
turbilhões de matéria que, por assim dizer, “carregariam” os astros em sua órbita e os impeliriam na
direção certa e com a velocidade certa. A vitória do heliocentrismo passou pela adoção de uma idéia
obscura, que pressupunha a ação à distância de um corpo sobre outro: a idéia de atração de todos os
corpos entre si, desde os corpúsculos até os corpos celestes. Foi ao presumir que os planetas e seus
satélites, a Terra e a Lua, o Sol e a luz possuíam essa propriedade que Newton conseguiu sintetizar
todos os dados fornecidos pelos seguidores de Copérnico e fazer seus adversários capitularem…

Tal paradoxo justifica que nos detenhamos. O próprio Newton reconhecia que a idéia da
atração universal não era clara nem distinta e que dava margem a críticas, a tal ponto se aproximava
das forças ocultas que eram caras aos astrólogos e aos alquimistas. Mas resta saber de onde ela lhe
veio. Considerando que ele não se vangloriou disso, a questão permanece em aberto. Pois que me
permitam fazer uma sugestão. Em vez de procurar pela vertente do passado, da cultura anterior, da
escolástica medieval, da alquimia, da astrologia e de assim remontar aos mesopotâmicos e aos
egípcios da mais Alta Antiguidade, sugiro abrir os olhos para um fenômeno do qual Newton foi
contemporâneo, que ele pôde ver com seus próprios olhos, cuja extraordinária eficácia pôde apreciar
e que era perfeitamente capaz de colocá-lo na trilha certa. Refiro-me à vitória da burguesia mercantil.

Que a vitória do heliocentrismo coincidiu com a hegemonia das relações mercantis na vida
das nações, isso é patente. Em alguns séculos, de maneira inexorável, a burguesia mercantil da
Europa havia-se afirmado como a classe mais importante da sociedade: a proteção que a nobreza
oferecia ao trabalho dos servos nos campos dos senhores feudais tornou-se irrisória e acabou
desaparecendo no movimento desencadeado na vida dos seres humanos pelo comércio em escala
mundial. O trabalho paciente e assíduo, bem como a audácia e a tenacidade dos comerciantes,
empresários e banqueiros, aos poucos acabaram compensando: eles souberam transformar sua
posição medíocre e subalterna numa posição de poder. Daí por diante, foi deles que passou a
depender o destino das nações. Eram eles que davam aos Estados os recursos para sua política e, em
pouco tempo, seria a eles que os Estados teriam que obedecer…

Ora, convém realmente falar em revolução, pois nem sempre o comércio, a indústria e os
bancos dominaram as relações sociais. No Ocidente, eles tiveram que se impor ao poder dos senhores
feudais, o que não foi uma tarefa nada simples. Os fidalgos eram predadores. Quando cobiçavam um
bem, apossavam-se dele ou pelo menos tentavam fazê-lo. Seu modo favorito de apropriação era a
guerra e não a troca. Eles conheciam o intercâmbio, naturalmente. Mas trocavam sobretudo serviços:
seu sustento em troca de proteção. Essa troca, esse contrato, remontava à instalação dos
conquistadores germânicos por ocasião das grandes invasões, conquistadores estes que tinham
dividido os feudos entre si e, desse modo, permitido às populações campesinas, cansadas de caírem
presa do primeiro bárbaro que aparecesse, finalmente trabalhassem a terra sem o medo permanente
de se verem despojadas de tudo; embora presos à gleba e sujeitos à corvéia, os camponeses se
beneficiavam de sacrificar sua liberdade e ceder parte de seu tempo de trabalho a seus senhores:
aceitar o jugo de um amo era ser defendido dos demais; ceder parte da colheita ao senhor feudal era
alimentar o próprio protetor, seus animais de montaria e, conforme o caso, seus braços-de-ferro; era
erguer muralhas em volta da casa, cavar fossos e construir torres: era, quando chegado o momento,
poder refugiar-se neles. Assim, de bom grado os camponeses fabricavam as armas de seus senhores
e cuidavam de seus cavalos. Não vendiam seu tempo de trabalho, mas davam-no a ele – “em troca”
de sua proteção. Quanto ao senhor, ele não comprava, tomava. Ao fazê-lo, comprometia-se a colocar
seu vigor, seu cavalo, suas armas e suas muralhas a serviço de seus servos: para lhes salvar a vida,
comprometia-se a arriscar a sua. O mesmo se aplicava a seu suserano, isto é, ao senhor a quem,
levando em conta sua genealogia e a origem da presença de sua família na terra, ele era
subordinado: do suserano, em princípio, o senhor feudal não comprova nada, nem tampouco lhe
vendia. Devia-lhe um serviço, essencialmente militar, e o prestava pagando com sua própria pessoa.
De modo que a compra e a venda, no sistema feudal, não passavam de atividades subalternas, de
modo algum eram o centro de gravidade da vida.

O que equivale a dizer que a emergência do comércio na Europa do Renascimento e, depois,


sua hegemonia crescente constituíram uma verdadeira revolução. Com ele, o predador teve que ceder
lugar ao mercador. Já não se roubava, comprava-se; já não se dava, vendia-se. O que se trocava já
não eram serviços, com valor impossível de calcular, mas mercadorias, cujo preço era conhecido. Para
que ninguém saísse lesado, fazia-se uso de um meio eqüitativo, cujo valor era reconhecido por todos:
a moeda. Quem dispunha de moeda suficiente podia comprar tudo o que quisesse, desde que
estivesse disponível no mercado. Era a moeda que servia de equivalente geral para todas as
transações necessárias. Anteriormente, quando muito, compravam-se aqui e ali algumas mercadorias
vindas de fora, com meia dúzia de moedas cunhadas meio ao acaso com a efígie do senhor local. Mas,
desse momento em diante, a maioria dos bens passou a ser comprada: para dispor da terra era
preciso comprá-la, o mesmo se aplicando aos animais e ao trabalho alheio; e para trabalhar era
preciso vender o que se produzia ou, na maioria das vezes, simplesmente o próprio tempo de trabalho
(as pessoas tornavam-se assalariadas); quando não se tinha essa oportunidade (quando não havia
compradores de tempo de trabalho no mercado) ou quando não se queria trabalhar, podia-se vender
a própria vida, para isso recebendo um soldo (e se passava a ter o nome de soldado): ao voltar de
uma guerra, quem sabe não se conseguiria comprar terras ou tempo de trabalho? Assim, a própria
predação entrou no circuito mercantil.

O nec plus ultra do mercado era que nele se podia ganhar muito sem trocar nenhuma
mercadoria. Isso porque eram inúmeros os novos comerciantes que se lançavam em empreitadas que
exigiam cada vez mais dinheiro: quer partissem para as Índias ou para a América, quer construíssem
fábricas ou vias de comunicação, quer edificassem castelos ou cidades, o dinheiro estava sempre lhes
faltando e eles tinham que tomar empréstimos repetidamente. Assim, os bancos proliferaram como
cogumelos, ao ritmo de toda sorte de “companhias”, que em pouco tempo sulcaram todo o planeta.
Quanto maiores eram os lucros esperados, maior era a receita dos que lhes adiantavam os recursos.
Daí para a especulação a distância não é grande e, com certeza, esse foi o jogo favorito de uma nova
raça de aventureiros. Ao lado dos aventureiros do comércio e da fábrica, ali estavam os aventureiros
do capital!
Seria um erro crasso reservarmos apenas à Revolução Francesa o mérito de haver derrubado
o regime feudal. Na verdade, não somente na França, mas em alguns outros países da Europa, as
relações sociais haviam-se transformado muito antes disso. O “modelo” feudal foi combatido muito
mais cedo. Desde a época do Renascimento, a burguesia havia conquistado posições importantes ou
até dominantes, por exemplo, na Holanda – bem como na Inglaterra, Alemanha, Polônia, Áustria,
Itália, Espanha e Portugal. Nos pormenores do destino de cada nação, a rapidez da ascensão da
burguesia ao poder revelou-se desigual: assim, a despeito da fortuna de seus banqueiros mais
famosos, os Fugger, esse processo estagnou na Alemanha, que estava como que paralisada pela
Reforma e pelos conflitos armados que ela provocou; a Itália vegetou, incapaz de explorar o impulso
dado pelos Médici e refreada pela Contra-Reforma, impulsionada pelo Vaticano. Na Polônia, os nobres
recuperaram o poder. Quanto à Rússia e aos outros países eslavos, mal pareciam saídos de seu
torpor. Mas não nos deixemos enganar: de um modo geral, o movimento era irrevogável – o dinheiro
impunha sua lei.

Será possível falarmos de acaso, por terem sido os defensores do Iluminismo os primeiros a
se rejubilar com isso? Quando Voltaire cantou vitória em 1733, em suas Cartas Inglesas, quando
aclamou Newton, podemos apostar que o especulador regozijava-se nele, pois ele era perito, esse
tratante, em jogar com a moeda para acumular fortunas! De que adiantava possuir terras, como se
obstinavam em fazer os grandes senhores, quando a questão era enriquecer? Era só saber “aplicar”
os recursos no lugar certo, na hora certa, e o ouro produzia ouro, cada vez mais ouro: reproduzia-se
de forma exponencial, como que num passe de mágica. Sem ser alquimista, Voltaire sabia
transformar uma pequena quantidade num pecúlio enorme. Naturalmente, isso era uma arte; às
vezes havia fiascos, mas quem estudasse seriamente o assunto disporia de uma ciência que, apesar
de ser relativamente menos misteriosa, nada ficava a dever à dos egípcios. Por outro lado, era muito
menos desgastante, exigia muito menos trabalho e permitia gozar mais a vida… Essa foi a época dos
“escritores felizes”.

Não é preciso ser um grande especialista para ler nas entrelinhas dos enciclopedistas o júbilo
da burguesia vitoriosa. D’Alembert, Diderot e companhia, em seu fascínio pelas máquinas,
regozijavam-se por sentir ao alcance de seu bolso, ou do bolso da nação, possibilidades ilimitadas de
exploração da energia da natureza e da força de trabalho humana. Todos, portanto, expressavam à
sua maneira o seu entusiasmo pela subordinação das forças produtivas da nação ao mercado. Haverá
por que nos surpreendermos com o fato de a monarquia de um Luís XIV ter-lhes dado tamanho
impulso? O rei, que outrora fora apenas um senhor como outro qualquer, impôs a todos os senhores
feudais uma lei única em todo o território nacional, em detrimento do poder absoluto que cada senhor
possuía sobre suas terras e seus vassalos. Assim, os fidalgos tornaram-se súditos do rei. Ora, este,
por sua vez, em nome da prosperidade de seu reino, obedecia a novas leis, que não estavam
forçosamente codificadas, mas que funcionavam na prática: as leis do comércio, da troca, nas quais
for preciso instruí-lo com seriedade. Foi graças a ele, a partir desse momento, que o comércio, a
indústria e os bancos prosperaram. Que há de surpreendente em que aquele que reinava como
monarca sobre a nação inteira, aquele que tinha a virtude de iluminá-la e de fazê-la crescer ainda
mais, fosse chamado de… Rei Sol?

Um fenômeno análogo ocorreu na Prússia. Na época de Frederico II, que era chamado
“déspota esclarecido”, a Prússia tornou-se enfim o centro de gravidade de uma multidão de pequenos
Estados. A exemplo do Rei Sol, Frederico esforçou-se por criar uma nação moderna, favorecendo o
desenvolvimento do mercado. Assim, Kant viu em ação uma força de atração superpoderosa: a
exercida nos homens pela sede de enriquecer, a ponto de fazê-los gravitar em torno de um único
centro. Esse centro tinha sua sede numa capital e se encarnava no monarca. Revelava-se monarca
esclarecido não apenas aquele que estava apto a conversar sobre as últimas novidades das “coisas do
espírito”, mas aquele que sabia submeter os senhores feudais à razão, atraí-los para a corte, esvaziar
os preconceitos religiosos, monetarizar os privilégios e romper os entraves à liberdade de circulação
das mercadorias – inclusive da mercadoria constituída pelo tempo de trabalho humano!

Conviria relermos sob esse prisma o primeiro tratado de Kant, no qual ele lançou no mercado
das idéias sua Teoria do céu. Ao colocar na origem do mundo a força de atração de Newton, quem
sabe ele não estava traduzindo em termos cosmológicos o espetáculo que tinha diante dos olhos: o da
transformação do reino dos Hohenzollern numa nação submetida à lei de atração do mercado? E
quando, passados alguns anos, ele assumiu explicitamente a defesa das Luzes contra a reação
clerical, quando reivindicou o direito do homem de tomar o destino em suas mãos, não se trataria,
para ele, de conservar o que fora conquistado? Kant não combateu apenas as idéias reacionárias e
“obscurantistas”: combateu os resquícios da Idade Média, tornados caducos pelo progresso do
mercado na escala das nações modernas – depreciou a sujeição dos servos ao senhor. É claro que ele
rejeitou o jugo do clero e do exército nobiliárquico, é claro que condenou o despotismo, mas o que
estava em jogo na luta entre a burguesia e a aristocracia rural era, acima de tudo, a “liberdade” da
força de trabalho: ao reivindicar para todo homem o direito de se servir de sua própria razão, Kant
militou em favor da abolição da escravatura, ainda dominante na Europa Central (para não falar da
Rússia) e que subsistia – oh, escândalo! – na Prússia. Fazer a defesa das “Luzes” era defender o “livre
comércio”.
A tese que desponta aqui é a de que a lei descoberta por Newton deveu muito à ascensão da
burguesia mercantil. Um pouco de história decerto nos ajudará a decidir. Newton foi contemporâneo
de Cromwell: nasceu no mesmo ano em que começou a guerra civil. A burguesia puritana,
representada pelos “cabeças redondas”, reclamava sua parcela de poder, o que a nobreza anglicana,
que contra ela lançou seus “Cavaleiros”, não parecia apreciar nem um pouco. Esse episódio é
freqüentemente negligenciado: esquece-se que, muito antes da Revolução Francesa, a guerra civil
correu solta na Inglaterra, teve as mesmas questões em jogo e também se traduziu num regicídio. A
revolução liderada por Cromwell faria rolar a cabeça de Carlos I. Isaac Newton tinha então sete anos.
Não era tão pequeno que não fosse perturbado pelos acontecimentos. A paz civil decerto seria
restabelecida: Cromwell, que conduzira o país com mão de ferro, por sua vez seria executado e a
realeza se restabeleceria, porém nada mais seria como antes. A nobreza conservaria o poder, mas em
detrimento de seu novo rei, que ela mesma destituiria sob pressão da burguesia, unida em apoio ao
partido dos Whigs. No ano seguinte a essa segunda revolução, 1689, Newton publicou seus Princípios.

Uma cabeça real que cai, qual maçã bem madura ao pé da árvore, eis uma coisa que deve
deixar um menino bem pensativo. Por que terá caído? E por que não caem todas as outras cabeças?
Que força derrubou a principal? Que força sustenta as outras no lugar? Se esse menino fosse ao
mercado de Woolthorp, haveria de se formular outras perguntas: por que toda aquela gente? Que é
que a atraía? De onde vinha aquela força de atração? E aquelas mercadorias, de onde provinham? Por
menos que freqüentasse o cais do porto, ele ficaria sabendo que algumas vinham do extremo oposto,
do outro lado da esfera terrestre, e que outras seriam vendidas no mundo inteiro. Deixem esse
menino crescer na Inglaterra puritana mas atarefada do século 17, orgulhosa do império que seu
comércio vai edificando pelo mundo, e, ao mesmo tempo, deixem-no observar o céu, ensinem-lhe a
não se deixar enganar pelas aparências, familiarizem-no com o princípio da relatividade do
movimento – aquele que permite compreender por que pensamos estar vendo a paisagem se mexer
quando, na verdade, nós é que estamos em movimento -, deixem-no ouvir que há toda probabilidade
de que a Terra se mova e o Sol seja imóvel, mas que ainda não sabemos como isso funciona, e vocês
verão que ele ficará tentado a aplicar aos corpos celestes aquilo que observa no mundo dos homens,
tentado a ver o cosmo à imagem da ordem mercantil. Afinal, a força que subordinava todas as forças
da nação inglesa era tão misteriosa quanto a que forçava os planetas a gravitarem em torno do Sol.
Como este, ela agia à distância, uma vez que não havia nenhuma intervenção mecânica:
essencialmente, tudo funcionava sem contato direto, sem pressão, sem apertos. Malgrado sua derrota
política, foi a burguesia mercantil, mais do que nunca, que impôs ao novo mundo sua ordem: tudo já
gravitava, de fato, em torno do resplandecente poder do ouro, que prodigalizava de longe seus
benefícios, por intermédio do comércio. Ninguém sabia de onde vinha seu poder, mas uma coisa era
certa: aquilo funcionava! Era dele que vinha a riqueza e não do trabalho da terra.
Chegando à maturidade, Newton expôs sua descoberta de um modo que dá margem a essa
conjectura. Os próprios termos em que resolveu o problema do cosmo são análogos aos que se
aplicam ao mundo mercantil. Depois de enunciar suas oito “definições”, desenvolveu seu “escólio”
sobre o tempo, o espaço, o lugar e o movimento, e relembrar as “leis do movimento” que tomara de
Galileu, dedicou seu primeiro livro dos Princípios matemáticos ao “movimento dos corpos”. Ora,
estamos longe de qualquer matemática pura, como o título poderia fazer supor. A matemática não
impera no trabalho de Newton como uma rainha em relação a seus súditos. Se há que falar numa
rainha, esta seria a física, pois o reino em que Newton nos faz penetrar é o dos corpos, dos
movimentos e das forças: nesse reino, a matemática é conselheira, se quisermos, ou administradora,
mas está a serviço da física. Por outro lado, não nos deixemos enganar! A física de Newton não é a
soberana indiferente e inacessível cuja imagem guardamos desde a escola primária. Antes de tudo,
ela se preocupa em saber como funciona o sistema heliocêntrico.

A forma “matemática” a que Newton submete sua demonstração destina-se a destrinçar as


dificuldades: não nos deve fazer esquecer seu objetivo. Não é pelo fato de os Princípios esperarem
pelo “livro terceiro” para tratar explicitamente do problema cosmológico que esse problema deixa de
ser o centro de gravidade da exposição inteira. Muito pelo contrário, Newton só se torna “físico”, no
sentido estrito, para preparar os elementos da solução desse problema. Pois bem, os termos em que
o formula, no começo do terceiro livro, coincidem com o problema da natureza do sistema social que
passara a vigorar na Inglaterra e que tendia a conquistar o mundo. O vazio enigmático de que se
compõe o cosmo, se o Sol ocupa seu centro, é regido pela força que passa a reinar como mestra no
mundo moderno. Assim como o ouro exerce sua dominação à distância sobre uma multiplicidade de
seres em movimento, também uma força de atração central, a do Sol, retém em seu reino todo um
cortejo de “planetas” e seus satélites. E, assim como o poder de fascinação do ouro é exercido sobre
cada indivíduo (cada átomo do grande corpo social) que gravita no interior do mercado, pois bem,
essa força também se exerce dentro de cada corpo celeste, sobre cada uma de suas partículas, de tal
modo que esses corpos se mantêm consistentes, isto é, sólidos.

Se Newton conseguiu elaborar sua teoria da atração universal, podemos apostar que a vitória
da burguesia mercantil ofereceu-lhe, no cosmo humano, a lei que faltara aos seguidores de Copérnico
para explicar os fenômenos celestes. Aliás, a monarquia inglesa não se deixou enganar: como Isaac
Newton havia honrado a Inglaterra ao ser o primeiro a fornecer a resposta para o mistério do
funcionamento do mundo, a Inglaterra honrou Isaac Newton concedendo-lhe reinar como senhor no
centro de gravidade das atividades da nação. Será que podemos adivinhar? Era um cargo muito
atraente: em 1699, Newton tornou-se diretor da Casa da Moeda.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

V
Galileu

Não faltarão eruditos para se elevar contra estas novas elucubrações. A maioria dos
historiadores da revolução de Copérnico postula que as reviravoltas no pensamento científico
precederam as reviravoltas na sociedade, tal como o pensamento precede a ação. No caso, eles
destacariam aqui a anterioridade dos trabalhos de Copérnico e Galileu em relação às conquistas do
comércio inglês.

Galileu, em particular, figura como o homem-chave nessa história: sem ele, não haveria
ciência moderna e, por conseguinte, nada de mundo moderno! Nisso existe um consenso. A
acreditarmos na tradição universitária na história das ciências, o nascimento do mundo moderno
passa pela lei da queda dos corpos, mais pela física do que pela cosmologia, pois passa pelo primado
da medida.

De fato, enquanto permanecemos na física aristotélica, a qualidade é mais importante do que


a quantidade. Uma pedra cai porque volta a seu lugar natural, isto é, àquele com que tem afinidade;
a chama se eleva pela mesma razão: seu lugar natural é o mundo supralunar, onde a esperam todos
os corpos luminosos. De resto, o deslocamento de um corpo no espaço não é mais do que um caso
particular de “movimento” e, sem dúvida, isso é o menos importante: o crescimento de um vegetal,
por exemplo, é também um movimento e é infinitamente mais importante para se conhecer a
natureza. A quantidade não é o centro de interesse do pensamento escolástico, em conseqüência do
que a medida não é uma obsessão dele. Tanto assim que acima da física (inclusive dos corpos
celestes) existe a metafísica, a ciência do Ser, que justamente não tem medida, pois é o que não se
pode conceber de maior. Ora, sem medida não há trocas realmente confiáveis de mercadorias, não há
garantia de eqüidade, não há mercado importante. E sem mercado importante não há moeda digna
desse nome. Por conseguinte, nada de modernidade. Sem Galileu, portanto, nada de mundo
moderno… mas isso é algo que caberia demonstrar!
E é um ponto em que eu gostaria de me deter, com o risco de parecer redundante, senão
aborrecido. Pois o que está em jogo aqui é o status da ciência. É ela tão autônoma quanto se diz?
Será que tem a virtude de produzir a si mesma, de despertar por si a consciência dos homens? Temo
que essa idéia esteja mais próxima do sono dogmático que do despertar do espírito e que, em vez de
qualquer virtude explicativa, tenha apenas uma virtude soporífera. O fato de Galileu haver precedido
em um século o avanço prodigioso do comércio inglês não prova a primazia do pensamento da época
sobre a evolução das relações sociais. Existe aí uma afirmação que ressegura os letrados em seu
sentimento de autoridade sobre os outros atores sociais, mas que nem por isso tem fundamento. Os
burgueses tiveram que esperar por Voltaire para enfim cantar sua vitória, mas sua luta já era longa:
remontava a uns três séculos antes! Falam-nos do Renascimento, do “espírito” renascentista, como se
ele tivesse a ver apenas com a “cultura”! Se o Renascimento merece ser comparado à “aurora”, se foi
o momento em que se encerrou a longa noite que reinara sobre os espíritos europeus durante toda a
Idade Média, resta ainda levar em conta o que se passava na vida cotidiana e não somente na esfera
das idéias. Verifica-se que as relações mercantis fizeram então estréias promissoras em direção ao
Levante, partindo de Gênova e de Veneza! O triunfo que elas tiveram na Inglaterra do século 17 fora
iniciado três séculos antes, na Itália…

Em geral, Galileu é apresentado como o primeiro a atacar o pensamento aristotélico, ao cabo


de uma espécie de corpo a corpo com a física do mestre; ele é mostrado enfrentando sozinho os
dogmas peripatéticos e revisitando com audácia todos os que dizem respeito ao movimento, aos
pesos e à queda dos corpos; louva-se sua engenhosidade, sua arte de fazer experiências; e se insiste
em sua “diligência”, fadada a tão grande futuro. Na melhor das hipóteses, leva-se em conta o estágio
atingido pela “técnica” na Itália da época e se sublinha que Galileu (a exemplo de Leonardo da Vinci)
gostava de observar as novas máquinas, então em plena expansão. Na pior das hipóteses, exprime-se
uma indignação escandalizada, denunciando as fraudes de que ele seria reconhecidamente culpado,
falseando a seu bel-prazer suas “experiências”. Mas nunca se considera a idéia de dar corpo a esse
espírito. No entanto, se tomarmos uma boa distância, poderemos visualizar o bom sábio bem no meio
de uma luta de morte, na qual duas classes, e não apenas “dois sistemas de mundo”, enfrentavam-se
pela supremacia.

Com efeito, a empreitada de Galileu apoiou-se no desenvolvimento das técnicas e das


máquinas. Ora, esse próprio desenvolvimento era apenas um dos elementos do drama que se
desenrolava no palco da História. O que estava em jogo era saber quem deveria dispor do poder
sobre as forças de produção, os nobres ou os burgueses. Na Itália, essa luta passou por algumas
concessões, como uma espécie de diálogo em que as pessoas procuravam se entender; uma fusão
parcial tendeu a se efetuar entre as duas classes antagônicas. Essa fusão se deu nas cidades em que
o comércio havia recobrado o vigor, onde a indústria renascia e onde os bancos prosperavam, após
séculos de estagnação durante a maior parte da Idade Média. O renascimento das letras e do espírito
da Antiguidade foi, antes de tudo, o renascimento do comércio, por intermédio do intercâmbio com o
mundo árabe! Mas, enquanto a retomada do comércio enriquecia consideravelmente uma nova classe,
à qual se associou uma fração dos senhores locais, que por outro lado eram vassalos do imperador,
essa fusão em torno do comércio e da indústria nas cidades empobreceu os senhores que
permaneceram em suas terras e em pouco tempo destruiu o essencial: a velha tradição feudal! O que
chamamos de Renascimento foi a morte da era feudal. Quanto mais o comércio e a indústria
prosperavam, menos a tradição podia se manter, menos o nobre podia prevalecer-se de seu sangue
para conservar seu status: menos uma coisa podia justificar a outra. Quanto mais as cidades
contratavam soldados, menos os senhores feudais podiam ter a pretensão de ser sua defesa última
contra o perigo externo. E quanto menos eles podiam ter essa pretensão, mais se tornavam parasitas
– a não ser que entrassem eles mesmos no comércio. O processo era irreversível! A nobreza como tal
estava realmente condenada.

Sua queda estava na ordem do dia, pois a doença se alastrara pela Europa. A rotação da
Terra em torno de seu eixo é apenas a expressão cosmológica adequada dessa reviravolta colossal,
que abalou todas as consciências. Galileu a tinha diante dos olhos. Assim, não é de surpreender que
rapidamente se tornasse adepto da tese de Copérnico, ao ver, por um lado, desaparecer o corpo
celeste da nobreza e ao discernir, por outro, a ascensão prodigiosa do ouro. O poder da aristocracia
declinava, enquanto o da burguesia entreva em ascensão. No começo do século 17, se o “sol” ainda
não era totalmente vencedor, se o ouro ainda não “ganhara” completamente a partida, se o mercado
ainda não se havia apoderado de todas as forças produtivas do Ocidente inteiro, o modo de produção
burguês ganhava terreno sem parar. E essa era, em seus primórdios, a mesma revolução de que
Voltaire e Kant, depois dele, se fariam arautos! O que havia funcionado até então como centro de
atividade dos homens foi pouco a pouco rebaixado a uma categoria absolutamente subalterna,
enquanto o que parecia subalterno revelou-se o verdadeiro centro.

O que se aplicaria a Newton, algumas décadas depois, já se aplicava a Galileu! Também ele
tinha diante dos olhos, no espetáculo que lhe era apresentado por seus contemporâneos, meios de
compreender a verdadeira ordenação dos céus. A mudança efetuada na ordem das coisas humanas
permitiu-lhe compreender a lógica do balé a que se entregavam os corpos celestes. A revolução
consumada nas relações sociais teve dois aspectos decisivos: tornou a terra móbil e a subordinou a
um centro em torno do qual gravitava toda a atividade do novo sistema. De fato, considerada até
então inalienável, transmitida de geração em geração aos descendentes dos senhores germânicos, a
terra tornou-se uma mercadoria da qual se apropriavam os beneficiários do grande comércio com o
Oriente – e com as Américas. Assim, o comércio começou a violar as leis seculares da propriedade
feudal e, por sua vez, tornou-se o motor da atividade dos homens. Com os grandes descobrimentos, o
afluxo de ouro decuplicou seu poder: os negociantes estenderam sobre a superfície do globo uma
rede cada vez mais densa de trocas e, em pouco tempo, subordinaram o campo à cidade, a
propriedade à produção, a produção ao mercado e a terra ao ouro. Galileu foi testemunha disso. A
antiga ordem fora abalada: dentro em pouco, não mais seria a Terra que constituiria o centro de
gravidade do sistema…

É verdade que Galileu começou sua carreira “revolucionária” como físico. Mas será realmente
fato que suas “descobertas” na física é que fizeram dele um seguidor de Copérnico? Não terá sido,
antes, o inverso? Não terá sido, antes, por estar intimamente convencido da exatidão da doutrina de
Copérnico que ele tratou de estabelecer a lei da “queda dos corpos”? Segundo os melhores
especialistas na história das ciências, Galileu teria chegado ao heliocentrismo depois de haver
elaborado sua dinâmica. Ter-se-ia convertido à doutrina de Copérnico sobre o movimento da Terra
após ter descoberto, ele mesmo, as “provas” de sua dupla rotação, que publicou em 1610 no Sidereus
Nuncius, o “Mensageiro Sideral”. Ora, a mim me parece que foi exatamente o contrário.

Para começar, observa-se que todos os problemas de física pura de que ele se ocupou antes
do Sidereus Nuncius correspondiam, realmente, àqueles que a polêmica entre os seguidores de
Ptolomeu e de Copérnico havia aguçado. É o caso dos três “princípios” essenciais, o da “composição
dos movimentos”, o da “inércia” e o da “relatividade”.

1. O princípio da composição é a possibilidade de um móbil ser sede de dois movimentos de


natureza diferente ao mesmo tempo, contrariando a afirmação de Aristóteles; seria o caso da Terra,
sem dúvida, se Copérnico tivesse razão: ela estaria em rotação em torno de seu eixo e descreveria
uma órbita em torno do Sol.

2. O princípio da inércia afirma que, na ausência de qualquer intervenção externa, um corpo


em repouso se mantém em repouso e um corpo em movimento se mantém em movimento: se
Copérnico tinha razão, portanto, não era de surpreender que a Terra não parasse de girar
uniformemente no espaço e não “caísse”.
3. O princípio da relatividade enuncia a impossibilidade, dentro de um sistema dado, de
discernir se esse sistema está em movimento ou em repouso, o que responde perfeitamente à velha
objeção dos peripatéticos, segundo a qual, se a Terra estivesse em movimento, isso acarretaria uma
multiplicidade de conseqüências em sua superfície e nós perceberíamos alguma coisa…

Assim, se bem examinada, toda a dinâmica de Galileu inscreve-se como um momento


anterior à confirmação da exatidão do heliocentrismo. Mais uma vez, é nos deixarmos iludir pela
forma de sua colocação ver nele um físico antes de tudo. No que se refere a Newton, como vimos, a
trajetória do físico inscreve-se numa problemática que tem a ver com Copérnico; pois bem, isso já se
aplica a Galileu.

E mais, é ele mesmo quem o afirma. Que não esperou pela elaboração de sua dinâmica para
se reconhecer na doutrina de Copérnico, eis o que confidencia numa carta a Kepler, em 4 de agosto
de 1597! Sabemos que foi em 1602 que ele expôs suas leis sobre o pêndulo, em 1604 as leis sobre a
queda dos corpos, que somente em 1609 construiu sua luneta e iniciou suas observações
astronômicas e que por fim, em 1610, anunciou publicamente no Sidereus Nuncius que suas
observações confirmavam o heliocentrismo. É nessa sucessão cronológica que se costuma buscar
apoio para demonstrar o caráter tardio da confiança de Galileu no sistema de Copérnico. Ora, Galileu
era partidário do heliocentrismo muito antes de 1602. Para nos certificarmos disso, basta que
consultemos sua correspondência… Com efeito, na carta a Kepler de agosto de 1597, ele afirma ter
“chegado à concepção de Copérnico há muitos anos”! Kepler acabara de fazer chegar às suas mãos
seu livro sobre o Mistério cosmográfico. Galileu lhe agradece calorosamente e promete lê-lo com
atenção “tanto maior”, uma vez que Kepler partilha de sua antiga confiança em Copérnico e que esse
“ponto de vista” lhe “permitiu descobrir muitas coisas que são inexplicáveis segundo a hipótese
comumente aceita”. Como se poderia ser mais claro?

Galileu nasceu em 1564. Portanto, tinha 33 anos quando fez essa confidência ao grande
Kepler. Fazia oito anos que era professor de matemática na universidade de Pisa, inicialmente, e
depois na universidade de Veneza, no burgo de Pádua. Tinha vários trabalhos na bagagem: uma
balança hidrostática, um estudo sobre o centro de gravidade dos sólidos, trabalhos literários (em
especial sobre Dante) e um livro Sobre o movimento. Acabara de compor um livro Sobre os
mecanismos e outro Sobre a esfera. A crer nele, já fazia vários anos que tinha o hábito de enunciar os
problemas do ponto de vista de Copérnico, e fora a partir desse ponto de vista que resolvera mais de
um deles. Portanto, não é certo que foi como adepto do sistema de Copérnico que Galileu se tornou
físico? É claro que ele não aparentava nada disso. Tanto em Pisa quanto em Pádua, ensinava o
geocentrismo e somente em 1610 foi que se decidiu a ensinar o inverso. Mas não será, muito
simplesmente, que a essa altura ele havia adquirido a certeza de convencer os mais relutantes? Não
foi a falta de convicção pessoal, em absoluto, que o fez guardar silêncio durante tantos anos. Como
escreveu a Kepler, a convicção não bastava: era preciso haver provas convincentes! A resistência à
“verdade” era tamanha, Copérnico era tão “ridicularizado” e seus partidários eram tão pouco
numerosos que lhe pareceu preferível esperar.

Kepler, ao contrário, achava que era preciso cruzar armas de imediato e, em 13 de outubro
seguinte, pressionou Galileu a fazê-lo; de sua parte, tencionava constituir uma rede de defensores do
sistema de Copérnico e tornar impotentes os doutores que se opusessem à verdade, isolando os que
cometessem o erro de se expor em demasia. Como se vê, a discordância era tática. Kepler queria
bater forte e depressa; já Galileu preferia esperar. E era o que faria, aliás, com o risco de provocar a
impaciência deste ou daquele “companheiro”. Ainda precisou de doze anos para completar seu arsenal
antes de entrar em guerra. Doze anos depois, entretanto, não mais hesitou. Estimou dispor de
“provas” suficientes para demonstrar o movimento da Terra, isto é, sua qualidade de planeta e sua
subordinação ao Sol. Desencadeou então uma tempestade de protestos por parte dos obscurantistas
e logo se viu no banco dos réus, provocando, de quebra, a inclusão da obra de Copérnico no Index do
Vaticano. Em 1597, Galileu preferira calar-se. Mas não estava menos convencido da justeza do
heliocentrismo: quando o físico Galileu apontou pela primeira vez uma luneta de longo alcance para a
pálida face da Lua, fazia muito tempo que sabia que a Terra se movia no espaço. O que estava
procurando não era convencer a si mesmo, mas convencer os outros.

Através de suas duas lentes, Galileu distinguiu aquilo que não era visível: divisou montanhas
na Lua, viu inúmeras estrelas novas, viu até nebulosas e avistou manchas no Sol – muitas coisas,
portanto, passíveis de comprometer a visão do Universo definida pelos escolásticos. Porém viu algo
mais. O fato de a Lua ter um relevo era algo que por certo comprometia a concepção imaculada que
se fazia dos corpos celestes, concepção esta que garantia a diferença de natureza entre eles e a Terra
e em nome da qual havia quem se opusesse a fazer da Terra um planeta, um corpo celeste como
outro qualquer. Que o número de estrelas era bem maior do que então se acreditava, que sua
densidade, em certos pontos, era extrema e que a Via Láctea não era outra coisa, justamente, senão
“uma coleção de inúmeras estrelas, agrupadas aos montes”, cuja intensidade podia decrescer a ponto
de se tornar ínfima, tudo isso comprometia a idéia de um mundo limitado pelo que se chamava
abóbada celeste. Não só havia toda a probabilidade de que as estrelas também fossem sóis, análogos
ao nosso, e de que se encontrassem a distâncias prodigiosas umas das outras, como também seu
agrupamento em verdadeiras nuvens, aqui e ali, permitia pressagiar que não haveria apenas uma Via
Láctea, o que fazia recuar para profundezas consideráveis os limites do Universo, se é que ele não era
infinito.

Todos esses fatos eram perturbadores. E Galileu reservou a elaboração de todas as


conseqüências deles para um livro exaustivo, que teria como título De Systemate mundi. Mas isso não
era o mais “importante”, segundo sua própria expressão. Para sua “empreitada atual”, o que mais
importava era aquilo pelo qual se concluía a mensagem: a descoberta de satélites em torno do maior
dos planetas, o planeta Júpiter. Podemos surpreender-nos com a importância atribuída por ele a esses
pequenos corpos celestes, depois de ter aberto de um só golpe um campo extraordinário à exploração
científica do “céu”. Embora, de um só fôlego, houvesse acabado de descortinar o mundo até o infinito,
ali estava ele a exigir que nos concentrássemos em três ou quatro pontos irrisórios, em órbita ao
redor de um simples planeta. Pois, afinal, embora se chamasse Júpiter, que importava aquele planeta
frente à galáxia que ele acabara de nos descrever? Enfim, que bicho havia mordido Galileu? Ele levou
a coisa tão a sério que pressionou “todos os astrônomos a se dedicarem à pesquisa e à determinação
das órbitas” daqueles satélites minúsculos e encheu páginas e páginas para apresentar seus primeiros
resultados e fornecer todos os esquemas de todas as configurações levantadas durante suas noites de
vigília.

A razão dessa exigência é muito simples, na verdade. É fácil compreendê-la, se nos


voltarmos para o que Galileu estava buscando ao utilizar sua luneta. Ele procurava um meio de
convencer o público da correção do heliocentrismo. O que “descobriu” logo de início comprometia,
sem dúvida, o cosmo dos escolásticos, mas não provava realmente que Copérnico tivesse razão; em
certo sentido, Copérnico saía até prejudicado, pois seu cosmo era limitado (como o de seus
adversários) à esfera das estrelas fixas: ao fazê-la explodir, Galileu desmentira tanto uns quanto o
outro, ou seja, tanto comprometera o heliocentrismo em sentido estrito quanto o velho geocentrismo,
uma vez que se tornava impossível fazer meramente do Sol o centro de todo o Universo… Mas Zeus
(Júpiter) veio em seu socorro. Mesmo que o cosmo explodisse, mesmo que o Sol não fosse o único,
mesmo que, dentre milhões de estrelas que eram tantos outros sóis, o Sol não fosse o centro, isso
não impedia que ele fosse o centro da rotação dos planetas e da rotação da Terra. Se negassem que
era assim, que fossem observar Júpiter, e então veriam com os próprios olhos o que acontecia com a
Terra! Júpiter também tinha luas gravitando a seu redor: acaso isso o impedia, por sua vez, de estar
subordinado a um outro centro? Ser o centro de suas luas não o impedia de estar em rotação em
torno do Sol. E mais! Constatava-se que o tempo de rotação de cada um de seus satélites variava de
acordo com a distância: o mais próximo era o mais rápido, o mais distante, o mais lento. Em outras
palavras, eles se comportavam como os planetas em torno do Sol, segundo o grande Copérnico:
Mercúrio era o mais próximo e também o mais rápido; Saturno era o mais distante e também o mais
lento. Logo, porventura não se tinha diante dos olhos uma imagem do próprio sistema do qual o Sol
era o centro? Que se supusesse, ao menos por um instante, que Júpiter era o Sol: não era
exatamente assim que se apresentava todo o sistema? Não estavam os planetas, do mesmo modo,
girando em torno do Sol? E acaso a Terra fazia outra coisa senão o que faziam aqueles satélites?
Galileu julgou ter nisso o meio de acabar com “todas as reticências” dos adversários do “sistema de
Copérnico”. E foi simplesmente por isso que deu livre curso a sua alegria, anunciando a boa nova…

O que equivale a dizer que conviria pararmos de inverter a realidade. Claro, não é muito fácil
encontrar a distância certa, a tal ponto tudo se agita ao redor dele; talvez, aliás, mais valha
apresentá-lo como “físico” do que perpetuar certas lendas escabrosas. Mas já é hora de acabarmos
com a idéia, cômoda demais, do “nascimento” da ciência moderna no cérebro de Galileu. Galileu não
foi apenas um cérebro. Não serviu de receptáculo para um “novo espírito científico”. Esse novo
espírito que soprou, corresponde às transformações que vinham ocorrendo nas relações sociais, ele o
captou; não o inventou, assim como não o antecedeu. Não existe “defasagem” entre o nascimento da
ciência moderna e o da sociedade de mercado, no sentido pretendido pelos doutos: o “pensamento”
do Renascimento não precedeu a ação de seus mercadores. Se ainda não tinha vencido o feudalismo,
o mercado já estava bem presente. Longe de servir à autoridade dos doutos, a “defasagem”
percebida entre o surgimento do novo espírito científico e a vitória das relações mercantis só pode ser
resultado de um erro de perspectiva.

Ou será que se pretende supor que, se o comércio ocupou em sua época, na vida do dia-a-
dia, o lugar ocupado pela terra na Idade Média, ou seja, o lugar central, se os “negócios” se tornaram
a essência da vida das cidades, se a burguesia se apoderou cada vez mais do poder, foi por ser esse
espírito o motor da história? Será que foi porque esse espírito soprou que a nobreza entrou em queda
livre e que o edifício medieval veio abaixo? Esse “espírito” é tão-somente a expressão do entusiasmo
que acompanhou o processo de subordinação do Ocidente à lei do mercado. Foi esse processo que fez
surgir o Iluminismo. Ver em ação apenas um “espírito” é nos deixarmos cair na armadilha das
aparências. E essa ilusão, há que conseguir vencê-la, sob pena de nos deixarmos cair numa cilada ao
procurar compreender a seqüência dos acontecimentos – até hoje.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

VI
Copérnico

Resta o caso de Copérnico. Pois foi ele o promotor do heliocentrismo. E se é possível,


levando em conta a biografia dos defensores do novo sistema, arrolá-los no processo que transtornou
o mundo dos homens, que expôs o Ocidente aos raios cada vez mais poderosos dos negócios, não
estará isso fora de questão no que diz respeito a seu inventor? Não nasceu Nicolau Copérnico cedo
demais para sofrer os efeitos dessa corrente? Acima de tudo, não viveu ele totalmente afastado dessa
“modernidade”, cerca de um século antes da época de Galileu? Ele viveu na Polônia, nos confins da
Prússia Oriental, longe de tudo, nas brumas do Báltico. Ainda por cima, era um homem da Igreja…
Por isso, supondo-se que convenha situar a obra de Galileu, Kepler e Newton na trilha dos avanços do
comércio, quid de Nicolau Copérnico? Se é verdade que é muito difícil dissociar o pensamento de seus
sucessores do progresso da burguesia mercantil a partir do fim do século 16, em que isso prova que o
dele, que impulsionou a revolução na astronomia, tenha estado ligado a tal progresso, uma vez que
Copérnico o precedeu, estava a mil léguas do centro de gravidade dos acontecimentos e seu status
eclesiástico permite supor que suas “especulações” fossem de ordem totalmente diversa?

Trata-se de um obstáculo de peso: mesmo que convenha levarmos em conta as profundas


mudanças econômicas, sociais e políticas para explicar a vitória da revolução de Copérnico, sua
concepção em si poderia lhes permanecer alheia. Assim, apesar de tudo, o pensamento conservaria a
primazia sobre a ação e, conseqüentemente, sobre o curso dos acontecimentos. Aliás, é fácil
imaginarmos Copérnico meditando, solitário, em alguma sombria cela de clausura e depois, com o
cair da noite, contemplando até o alvorecer o céu estrelado – e, qual um Tales moderno, andando
sempre com o nariz voltado para o alto, para usufruir o espetáculo dos corpos celestes, com o risco
de cair em algum poço por descuido, sob a caçoada de uma criada qualquer.

Portanto, esse ponto também merece um exame. Ora, como veremos, essa imagem não
resiste à verificação. Primeira surpresa: Copérnico era filho de um comerciante. Sim, leitor, você leu
direito: “comerciante”! Seu pai era um negociante – para não dizer especulador – que, vindo de
Cracóvia, fora se instalar em Thorn, pois contava com o novo acesso da Polônia ao mar Báltico para
enriquecer em larga escala. Pouco se fala disso, mas a Polônia teve, nessa época, um avanço
econômico sem precedentes. Entre a Alemanha, dilacerada pela guerra civil que opunha os católicos
aos protestantes, e a Rússia, obcecada com a reconquista do Bósforo, a monarquia polonesa
beneficiou-se inesperadamente do crescimento do comércio entre o norte (a Suécia) e o sul (a Itália).
Assim, o jovem Nicolau banhou-se desde cedo na corrente de trocas que então transformou a Polônia
numa verdadeira nação moderna, tal como a Espanha, Portugal e Holanda.

Infelizmente, seus pais tiveram morte prematura. Não obstante, esse golpe do destino
precipitou-o ainda mais na reviravolta que se processou no coração do Estado polonês; seu tutor
mandou-o estudar em Cracóvia, centro de uma nação em pleno desenvolvimento, que vibrava ao
ritmo do Renascimento italiano. E não se trata de simples imaginação; seu professor de filosofia vinha
de Pádua… De repente, o próprio Copérnico partiu para a Itália: em duas ocasiões, passou
temporadas na cidade de Pádua, a dois passos de Veneza, ambas bastante longas. Assim, teve
contato direto com o extraordinário dinamismo da Itália dos séculos 15 e 16 – a dos Médici, de
Maquiavel, de Rafael e de Leonardo da Vinci, com suas inovações espantosas e suas lutas ferozes pelo
poder.

De volta a Warmia, será que alguém pensa que Copérnico se encerrou na solidão e na
meditação? Nada disso. Claro, ele fez carreira na Igreja Católica, mas tinha por incumbência cuidar da
gestão financeira do clero. Longe de dedicar seus dias e noites, como se espera quando as coisas são
consideradas de trás para frente, à observação meticulosa dos movimentos dos planetas, ele se
confrontava permanentemente com as dificuldades e benefícios do dinheiro. Por isso, não foi por
acaso que redigiu um tratado sobre a moeda, o De monete cunende ratio. Nova surpresa! Esse
homem da Igreja, em vez de fugir do mundo leigo, empunhou sua mais bela pluma para discorrer
sobre o que ele oferecia de mais escabroso: a moeda. E não para condená-la, como se poderia
esperar, para denunciá-la como um instrumento de Satã, a exemplo de seu contemporâneo Lutero,
para lembrar aos ricos que eles não tinham maior probabilidade de aceder ao paraíso do que tinha um
camelo de passar pelo buraco de uma agulha, ou para consolar os pobres, afirmando que os últimos
seriam os primeiros etc. Não, ao contrário, para militar a favor dela! Se havia alguma coisa que
Copérnico condenava, não era em absoluto a prosperidade facultada pela riqueza e, se censurava
certos costumes, não era a sede de lucro dos comerciantes que atacava. O que ele condenava eram
os costumes perversos dos príncipes poloneses quanto à cunhagem da moeda. Seu tratado teve como
principal objetivo libertar a circulação da moeda de sua pátria da arbitrariedade dos grandes
senhores.
Talvez digam que, apesar de efetivamente surpreendente, a existência desse tratado não
esclarece em absoluto a razão por que Copérnico passou para a posteridade, isto é, a inversão de
perspectiva que ele efetuou na abordagem dos fenômenos celestes. Se houvesse alguma relação, isso
seria sabido. Ora, dentre os especialistas no assunto, embora alguns saibam que Copérnico também
se interessou pela moeda, ninguém, até hoje, estabeleceu um vínculo entre essas duas atividades;
aliás, Copérnico exerceu também a função de médico e quem sabe não terá tido outras ocupações?

Tal relutância me parece fútil. Há uma relação profunda entre a postura adotada por
Copérnico a respeito da circulação da moeda e a que ele adotou a propósito da trajetória dos astros.
Como não ver, de fato, que ele defendeu a mesma coisa em ambos os casos? Em seu tratado sobre a
moeda, ele combateu a prática que consistia em deixar sua cunhagem a cargo do senhor local, como
era costume na época do feudalismo; o que ele deplorava era a falta de sensatez, de racionalidade, a
loucura, a irresponsabilidade e a arbitrariedade que imperavam nessa questão da mais alta
importância: submetia-se o valor da moeda aos caprichos de simples vassalos. Sabe-se que os nobres
eram hábeis em modificar a seu critério o peso das peças e sua composição, em ouro, prata ou cobre;
para reabastecer seus cofres ou pagar suas dívidas, eles faziam variar à vontade, sem declará-lo, o
teor das moedas, diminuindo a quantidade de ouro ou prata das ligas ou trapaceando no peso de cada
peça… Era isso que deixava Copérnico fora de si! Essa era, segundo o audacioso cônego, uma das
principais causas do caos da economia da província prussiana, que criava obstáculos a sua renovação
sob a égide da realeza polonesa.

De fato, Copérnico foi um dos primeiros autores modernos a afirmar a necessidade da


“fixidez” da moeda para o bom andamento dos negócios. A boa ordem da sociedade só poderia ser
estabelecida, segundo ele, se a deplorável tradição da Idade Média nessa matéria fosse revogada;
cabia ao rei e somente a ele cunhar a moeda com sua efígie, como garantia de sua composição e
peso. Era preciso haver uma moeda única e digna de confiança. E esse próprio soberano, que deveria
dispor do monopólio da cunhagem, não mais devia “brincar” com esse poder. Na verdade, não lhe
competia decidir arbitrariamente sobre o valor da moeda nem variá-lo conforme seus interesses do
momento: só deveria fazê-lo se o bem da nação o exigisse. Numa palavra, Copérnico subordinou a
atividade do príncipe à estabilidade da moeda; tentou eliminar o obstáculo que constituía para o
progresso econômico a errância da moeda em torno do senhor da terra.

Em outras palavras, ele tentou remediar as relações entre as esferas da vida polonesa, da
mesma maneira que logo procuraria remediar as relações entre as esferas celestes. Assim como o
caos dos céus e as dificuldades matemáticas do geocentrismo se resolveriam através da imobilização
do Sol no centro do mundo, o caos da sociedade e os cálculos atrapalhados dos parceiros comerciais
deveriam resolver-se pela imobilização da moeda. A seu ver, a moeda ocupava a posição que logo
seria ocupada pelo Sol: a posição central. Todo o resto ficava na periferia… No mundo dos homens,
havia o monarca, o garante da estabilidade da moeda – fonte de prosperidade para todos os que a
mereciam. No cosmo havia “o Sol que no meio de todos repousa”, distribuindo majestosamente, mas
de maneira equânime, a luz de seus raios.

A rigor, pode-se contestar que o pensamento de Copérnico tenha funcionado nesse sentido,
isto é, indo da questão econômica para a questão cosmológica, e afirmar o contrário: que ele aplicou
ao mundo dos negócios sua visão do mundo celeste. In extremis, isso talvez permitisse manter a idéia
da anterioridade do pensamento em relação à ação. Mas as datas de redação de cada uma das obras
não favorecem esta última linha de defesa. O tratado sobre a moeda foi publicado em 1526, o tratado
sobre o cosmo, em 1543. Claro, sabe-se perfeitamente que esse livro foi mantido em segredo, ou
quase, durante muito tempo. Mas, além de não sabermos se o outro também tinha sido redigido
muito antes de ser publicado, porventura não é certo que, por sua própria função de intendente e
levando-se em conta seus antecedentes familiares, Copérnico devia inclinar-se a considerar o mundo
dos astros a partir das práticas que lhe eram conhecidas? Não foi a incumbência de acabar com os
caprichos dos planetas e com o absurdo da rotação vertiginosa do enorme Sol que ele recebeu, mas a
de pôr em ordem as finanças da Igreja e de seus domínios…

De resto, Copérnico não teve nenhum escrúpulo em fazer da boa e velha Terra um planeta
como os demais, ladeado por Vênus e Marte, as divindades tutelares do amor e do ódio, da paz e da
guerra, portadoras da vida e da morte. O que seu “espírito” concebeu já era uma realidade: a virada
estava em andamento. Começara na Itália, já um século antes, mas toda a Europa tinha sido afetada.
O império do dinheiro tivera início. A Itália tinha seus Médici, a Alemanha, seus Fugger. E a hierarquia
católica, a exemplo de Sua Santidade, o papa, já se deixara tentar pelo comércio: o das indulgências.
O que desencadeou a fúria de Lutero (embora ele ainda fizesse parte da mesma igreja, já que só seria
excomungado em 1521) foi o fato de os bispos, seduzidos pela astúcia do papa, terem cravado os
dentes no fruto do conhecimento… do que era bom e ruim para os negócios, a ponto de o Vaticano
ter-se transformado num dos maiores bancos da Europa!

Sim, o dinheiro havia invertido os papéis! Mas, se tinha o poder de fazer Satã reinar no trono
de Pedro, segundo a expressão do terrível monge de Wittenberg, teve também o de iluminar o
espírito do cônego de Thorn, que então publicou seu arrazoado em defesa da cunhagem centralizada
da moeda. E teve até o poder de lhe dar meios de protestar, por sua vez, contra um ataque
igualmente reacionário: e se o céu fosse feito à imagem do novo mundo? Se, em vez de ser satânico,
o dinheiro fosse divino, benéfico? E se, ao invés de ser um simples auxiliar do poder dos senhores,
esse poder benéfico fosse muito mais poderoso do que qualquer potentado? Os bancos estavam
submetendo a Europa a sua lei. Copérnico vira isso com seus próprios olhos na Itália. E o vira em sua
pátria desde que tinha voltado. Eles lhe tinham dado a intuição do remédio a ser administrado aqui
embaixo. Como supor que não tivessem o poder de lhe dar a intuição do remédio a administrar à
desordem, ao absurdo do mundo dos astros?

Resta o fato de que Copérnico tinha que ser prudente, a tal ponto suas teses sobre o dinheiro
comprometiam o poder temporal da nobreza germânica, numa de cujas terras ele morava (uma das
mais ligadas à tradição feudal), e a tal ponto suas teses sobre o cosmo abalavam a autoridade
espiritual da Igreja a que ele pertencia (já fortemente sacudida pela Reforma). Mas Copérnico
também podia ser otimista. Com efeito, apesar do protesto dos reformadores, a hierarquia católica
poderia deixar-se conquistar em definitivo pela idéia de que a posição central do Sol aumentava
magnificamente o poder de Deus. Quanto aos senhores germânicos da Prússia Oriental, eles estavam
prestes a ser atraídos para a órbita da Polônia, que tinha uma esplêndida oportunidade de sair da
estreiteza e da arbitrariedade da vida medieval. Esse momento foi único na história polonesa. Foi por
essa razão, sem dúvida, que passou para a posteridade com um nome muito eloqüente: é designado
pelos historiadores como o mais belo século da história da Polônia. É comum esquecer-se esse fato,
mas o século 16 foi, para a Polônia, o “século de ouro”.

Assim, a aventura de Nicolau Copérnico constituiu o prelúdio ao aparecimento do Iluminismo.


Mas, sendo assim, podemos compreender cada vez melhor por que a reviravolta que iria receber esse
nome não se daria essencialmente no pensamento, entre a razão e a fé, entre “espíritos livres” (os
filósofos enciclopedistas) e o clero (o famoso “Esmague-se o infame!”, de Voltaire); na realidade, se
não nos fiarmos nas aparências, veremos que, antes de tudo, ela engajou numa luta de morte a
aristocracia feudal, de cepa germânica, e a burguesia mercantil, de origem humilde. Na verdade, por
conseguinte, a vitória das Luzes consagrou a vitória da classe que havia enriquecido em alguns
séculos através do comércio e passou por uma derrota da nobreza consangüínea.

Infelizmente para Copérnico, a reação da nobreza em seu país seria mais vigorosa do que a
ação da burguesia mercantil e seu projeto, destinado a assegurar a prosperidade da Prússia polonesa,
estrangulando a arbitrariedade feudal, fracassaria. A Polônia deixaria escapar sua oportunidade e
mergulharia no reacionarismo. Como nação, desapareceria de cena por muito tempo. E outras
ocupariam seu lugar. Triste consolo: apesar de seu Kepler, a Alemanha não o faria, pelo menos tão
cedo. A própria Itália, apesar de seu Galileu, não conseguiria constituir um centro único em torno do
qual gravitassem todas as suas províncias, rechaçando para o passado a sombra de seus nobres e do
seu clero. A monarquia espanhola, graças ao ouro extraído da América, e a França, sob a égide do Rei
Sol, conseguiriam domesticar sua aristocracia, atraindo-a para a corte. Mas essa vitória só faria
preparar a da monarquia inglesa. Era para esse lado que a história penderia de verdade. Era lá que o
sistema de Copérnico se sagraria definitivamente vencedor. Lá – sob os olhos de Newton.

Haverá por que nos surpreendermos com o fato de ter sido na Inglaterra que se encontrou
mais bem formulado o projeto antifeudal de Copérnico, na própria época de Newton? Vamos
encontrá-lo na pena de um autor hoje esquecido, mas muito louvável. Chamava-se William Petty.
Com a mesma firmeza do cônego de Thorn, com efeito, Petty formulou sua doutrina da moeda “fixa”.
Certamente, não era astrônomo e não parecia comprazer-se com as alegrias da observação do céu.
Petty era médico e pouco se interessava pela trajetória dos astros, a não ser, talvez, por sua
“influência” no corpo humano. Mas, em se tratando da circulação da moeda, ele retomou por sua
conta e com determinação a doutrina heliocêntrica. Como Copérnico, aliás, Petty queria cuidar de seu
país. Inicialmente a serviço de Cromwell, que se tornara soberano sem coroa, resignou-se à
restauração da dinastia defendida pelos Cavaleiros. Monarquia por monarquia… É que ele sabia que a
sorte estava lançada e que, a despeito de sua derrota política, só a burguesia estava em condições de
tirar para sempre a Inglaterra da barbárie.

Exatamente como Copérnico, William Petty exigiu do rei que ele não se deixasse levar pela
facilidade, brincando com o teor de metal precioso da moeda: em seu pequeno Tratado dos impostos
e contribuições, de 1662, exortou os responsáveis pelas finanças a resistirem à tentação de depreciar
a moeda inglesa, cunhando novas peças que contivessem menos ouro ou prata do que era indicado
por seu valor nominal. Se o Estado precisasse de dinheiro para enfrentar alguma situação difícil, que
se abstivesse de falsificar a moeda! Que se abstivesse de “fazê-la passar por maior do que é”. Isso
porque “essa operação se reduz a nada mais, nada menos do que uma taxação sobre a parcela do
povo perante o qual o Estado é devedor”, o que “de fato e na verdade”, comprometia o progresso do
comércio.

De passagem, Petty comentou, maliciosamente, que essa prática também penalizava os que
viviam de renda, muito embora, se a questão fosse apenas essa, ele certamente não levantasse um
dedo. O problema é que essa prática empobrecia a classe da sociedade a que o Estado devia sua
prosperidade, a classe dos comerciantes, e prejudicava a confiança universal na moeda inglesa. Como
Copérnico, Petty insistiu na absoluta necessidade de considerar a moeda como o centro imóvel em
torno do qual gravitava qualquer atividade econômica bem regulamentada. E tratou de propor outros
meios de sanear a situação dos gastos públicos… Como soia acontecer, o único verdadeiro remédio só
poderia ser administrado se os governantes fossem homens de negócios. Petty não se cansaria de
passar sermões no monarca. A moeda não era um brinquedo que o príncipe pudesse usar a seu bel-
prazer; ela se vingava muito severamente quando suas leis eram desconhecidas. Sua natureza era
misteriosa e suas reações, temíveis. Quando se cuidava bem dela, podia-se desvendar seu mistério,
mas que é que se descobria então? Que uma dada moeda valia tanto quanto o trabalho que fora
necessário para produzi-la: se podia ser trocada por uma certa quantidade de trigo, era por ser
preciso um intervalo de tempo de trabalho equivalente para produzir aquela quantidade de trigo e
aquela moeda em particular.

Uma vez revelada a natureza da moeda, não convinha extrair disso, corajosamente, todas as
conseqüências? Em 1660, ainda deve ter faltado coragem a Petty, pois ele não pôs seu nome na capa
de seu livro. Essa coragem parece ter ainda lhe faltado no tratado seguinte, o Verbum Sapienti, que
só foi publicado após sua morte. Mas suas intenções ficaram ainda mais claras. Considerando-se que
o que estava em jogo era a prosperidade da Inglaterra, pois bem, ele indicaria a medida do esforço a
empenhar! Partindo de um balanço numérico da “riqueza do reino”, Petty chegou à definição dos
meios que seriam passíveis de permitir que a Inglaterra retomasse a iniciativa no mercado mundial:
era forçoso constatar que os holandeses faziam sombra aos ingleses e lhes haviam roubado, por
exemplo, seu “comércio de tecidos”. Para reconquistar a hegemonia, era preciso produzir “mais
barato” do que eles e, para produzir mais barato, era preciso, por um lado, diminuir o tempo de
trabalho necessário à produção de tecidos e, por outro, diminuir o número de braços necessários à
produção de trigo. Em outras palavras, era preciso aumentar a produtividade do trabalho, tanto na
indústria quanto na agricultura, “introduzindo melhores métodos de trabalho”. Ou seja, se quisesse
realmente contribuir para a prosperidade da Inglaterra, a aristocracia rural teria que se submeter – ou
se demitir.

Um projeto de espantosa simplicidade!


Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

VII
Petty & Smith

Em sua Aritmética política, redigida em 1671, Petty bateu-se contra a ilusão que consistia em
atribuir o milagre holandês à inteligência superior ou mesmo à “genialidade” desse povo. Seu capítulo
I declarou, logo de saída, que “um pequeno país e uma população pouco numerosa, por sua situação,
seu comércio e sua política, conseguem igualar em riqueza e poder um povo e um território muito
maiores, e tanto mais que suas vantagens, do ponto de vista de marinha e de navegação, conduzem
a isso de maneira eminente e fundamental”. Assim, a prosperidade dos holandeses provinha tão-
somente, na realidade, de seu trabalho persistente como comerciantes e navegadores, favorecido por
sua situação geográfica. Não apenas seu sucesso não era um milagre, como era sobretudo um
exemplo a ser seguido: “Ganha-se muito mais com a indústria do que com a agricultura e mais com o
comércio do que com a indústria.” Que isso ficasse claro!

Nesse ponto, Petty não se conteve mais: “os verdadeiros pilares da fortuna pública” não eram
aqueles que se agarravam a seus privilégios, a suas rendas e às rédeas do Estado, mas “os
agricultores, os marinheiros, os soldados, os artesãos e os mercadores”. Se a Inglaterra queria
derrubar a supremacia holandesa, se queria enfrentar a ameaça da França, cujas ambições não
tinham limites, se queria, em suma, obter um lugar ao sol, era com as profissões trabalhadoras que
devia contar: “Todas as outras grandes profissões vêm apenas das imperfeições e insucessos que as
primeiras podem comportar.” Que melhor maneira haveria de dizer umas verdades à nobreza?

Mais uma vez, é fato, Petty teve de guardar para si a verdade que havia constatado: foi ainda
postumamente que esse livro veio a público. No entanto, quando Shelburne, filho mais velho de Petty,
o fez chegar às mãos de “Sua Mui Gentil Majestade, o Rei”, no ano de 1690, Petty já era “reconhecido
por todos como o inventor” de uma teoria muito eficaz do cosmo dos assuntos humanos. À parte a
censura e a autocensura, portanto, ele se transformara no “inventor do método de investigação pelo
qual os acontecimentos complexos e confusos do mundo são explicados por meio de uma pequena
soma de ciência”. Como dizer melhor que com Petty se havia operado satisfatoriamente, na
apreensão das questões humanas, a reviravolta efetuada por Copérnico na apreensão dos assuntos
celestes? Ao fazer o problema da prosperidade gravitar em torno do comércio, ao submeter todas as
esferas da produção à estabilidade da moeda, isto é, ao tempo de trabalho necessário para a
produção das mercadorias, Petty descobriu o verdadeiro centro do mundo e devolveu à terra sua
liberdade de movimento! Que a nobreza continuasse a gravitar em torno da terra, à maneira da Lua
ao redor da Terra, era próprio da ordem das coisas, mas não podia impedir que seu próprio centro de
gravidade girasse, tal como a Terra ao redor de seu eixo, e ficasse entregue ao poder do comércio,
como a Terra aos raios do Sol! Isso não deveria impedi-la de mudar de dono! Copérnico fizera da
Terra um planeta como os demais e Petty fez da terra uma mercadoria como outra qualquer.

Tal como a teoria de Copérnico a respeito da ordenação do céu, a teoria de Petty exprimia às
mil maravilhas a realidade das questões humanas. Desde o descobrimento da América, o comércio
mundial progredia ao ritmo do afluxo do ouro e nada era mais legítimo do que tomar por um fato
consumado a subordinação dos assuntos humanos a esse astro fascinante. Desde que despontara no
horizonte do Ocidente, o ouro era tido, de facto, como a fonte de riqueza por excelência. Ora, agora
se podia calcular sua massa e, em sua relação com a terra, ele levava tamanha vantagem que a terra
se tornava irrisória. Portanto, não era sensato considerá-lo como estando a serviço dela, vê-lo em
rotação ao redor da terra e dos aristocratas rurais: o ouro só “circulava” na aparência; na realidade,
era o centro em torno do qual tudo se organizava. A questão, justamente, era saber por que tudo se
ordenava em torno dele, e Petty deu essa resposta. Tudo se ordenava em torno do ouro porque ele
servia de equivalente universal do trabalho humano necessário para a produção das mercadorias.

Nessa ronda das esferas de produção, a terra, isto é, a agricultura, não podia aspirar à
hegemonia. Era apenas uma esfera entre outras, mais próxima do centro, com certeza, porém sem
sombra de dúvida menos importante do que outras esferas da produção, como a indústria
manufatureira, por exemplo. Se a agricultura continuava a ter importância, seu destino nem por isso
deixava de estar diretamente ligado aos desempenhos obtidos na indústria e, na verdade, era menos
conveniente aumentar o número de braços na agricultura do que reduzi-lo, aumentando a
produtividade do trabalho agrícola. Abaixo todo fetichismo! Em último caso, se uma nação estrangeira
produzisse trigo por um custo mais baixo, não se devia hesitar em comprá-lo dela (isto é, “importá-
lo”), para lhe vender produtos manufaturados.

Como seria de esperar, esse sistema absolutamente espantoso não tinha apenas partidários.
A reação não foi imediata, mas foi ainda mais vigorosa. Veio da França e foi obra dos “fisiocratas”.
Seguindo François Quesnay, os seriíssimos “economistas” obstinaram-se em demonstrar que somente
a terra era “produtiva”, que estava no centro das atividades humanas e que ali devia permanecer!
Como Ticho Brahe, de certo modo, eles se agarraram ao geocentrismo… Mas aqui, como todos podem
adivinhar, Petty teve seu Galileu.

Esse papel foi desempenhado por um escocês, professor de filosofia, chamado Adam Smith. A
todos os que alegavam que o sistema de Petty era puramente teórico, que decerto era sedutor mas
não podia ser “verdadeiro”, Smith contrapôs “provas” desconcertantes: foi esse o objeto de sua
Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, publicada em 1776. Para “provar” a
correção das concepções de Petty, no entanto, Smith tomou certas precauções. Como quem não
quisesse nada, começou estabelecendo a lei da “divisão do trabalho”, que, por intermédio da
máquina, fazia aumentar em razão direta a prosperidade das nações: experiência quase anódina,
pautada num princípio bastante conhecido – o da redução do esforço necessário à produção de uma
mercadoria qualquer graças à introdução de um processo mecânico no trabalho do operário. Smith
discorre profusamente sobre as vantagens da mecanização do trabalho; usou o exemplo dos pregos,
que cem dos melhores ferreiros não conseguiriam produzir tão bem, tão depressa e em tamanha
quantidade diária quanto um único reles trabalhador numa oficina especializada.

Tranqüilizado pelo equacionamento de uma experiência tão comum, o leitor “geocêntrico”


tinha que admitir o que ela implicava. Isso porque, uma vez aceito o princípio da divisão do trabalho,
era forçoso concluir que o que parecia natural já não podia servir de critério de julgamento. Com o
“progresso da opulência” em escala global, “a ordem natural das coisas” fora totalmente invertida em
todos os países da Europa. O progresso da opulência estava em relação direta com a subordinação da
produção das mercadorias à encomenda de trabalho por quem dispunha de capital. O capital era,
muito simplesmente, a soma de dinheiro que permitia comprar o trabalho. Em geral, essa soma de
dinheiro provinha da acumulação realizada nas negociações comerciais, que se vinham intensificando
havia alguns séculos na superfície do globo. Ao comprar trabalho, o comerciante se tornava
manufator e tendia a conquistar um mercado cada vez mais vasto para vender quantidades sempre
maiores; assim, tendia a mandar produzir cada vez mais num período de tempo progressivamente
menor e por isso é que introduzia de bom grado todos os processos mecânicos desejados por Petty,
que diminuíam os custos de produção e permitiam que a nação se tornasse mais próspera. Simples
lição de vida…

Ora, por mais imperceptível que fosse, esse processo tinha invertido o curso aparente das
coisas: “a ação lenta e imperceptível do comércio exterior e das manufaturas” submetera o trabalho
da terra a um novo princípio, que não era outro senão o do lucro. Ao adquirir terras e em seguida
melhorar seu rendimento pela introdução de processos adequados, os capitalistas haviam obrigado os
antigos proprietários a se adaptarem ou desaparecerem. Fora para extrair delas o “salário” do capital,
o lucro, que os comerciantes as haviam comprado. Tinham subordinado a terra ao ouro, profanando
sem escrúpulos os vínculos sagrados que uniam o homem ao homem, o servo a seu senhor e o
vassalo a seu suserano; mas quem podia resistir ao novo deus, que a seu redor espalhava benefícios
abundantemente? Fazia séculos que o espírito de iniciativa dos comerciantes contribuía para o bem-
estar de todos, pois “o comércio e as manufaturas introduziram gradativamente um governo regular e
a boa ordem”. Não era por ter sido o menos observado até então que esse efeito deixava de ser o
mais importante, uma vez que ele evidenciava o sentido em que a História deveria continuar a se
desenrolar, de modo a acabar com a insegurança permanente e os horrores da “ordem” anterior.
Numa palavra, que Smith acabou proferindo, a “revolução” realizada pelos comerciantes havia
contribuído de maneira decisiva para a “felicidade do povo”…

Uma “revolução” em surdina! Enquanto os comerciantes adquiriam terras para delas extrair
lucro, a nobreza dispensava sua criadagem e, por sua vez, submetia-se ao culto do ouro onipotente.
“Continuando a mesma causa a ser atuante”, ela começou a trocar o excedente do trabalho dos
servos por qualquer objeto de valor, depois passou a firmar contratos de arrendamento para tirar
dinheiro dos “agricultores”, a conceder prazos de arrendamento cada vez mais longos e acabou
perdendo todo o direito às terras de seus ancestrais. Perdidos os seus direitos, os antigos senhores da
terra “tornaram-se tão pouco importantes quanto um bom burguês ou um bom artesão de uma
cidade”. No lugar deles e em suas terras passou então a reinar a mesma lei para todos: a lei do
capital, isto é, a lei do lucro!

Quem podia negar a realidade desse processo? Que mudança trouxe, na verdade, o fato de
essa revolução ter-se dado sem que as pessoas tivessem consciência dela? Certamente, nem os
nobres nem os burgueses pensavam no que estava acontecendo ao perseguirem seus objetivos:
“Nenhum deles sentia nem previa a grande revolução que a extravagância de uns e a industriosidade
de outros iam imperceptivelmente levando a cabo.” Agora, porém, basta-nos um mínimo de esforço
para constatar que foi isso mesmo que se deu. À maneira de Galileu defendendo Copérnico, portanto,
Adam Smith procurou “confundir” os que tinham lido Petty apressadamente, os que o consideravam
um esteta irresponsável, um poeta da aritmética, e que se recusavam a levar a sério, a considerar
com “gravidade” a rotação da história humana em torno de seu eixo, que fez emergir o verdadeiro
centro do mundo dos negócios: o padrão-ouro.

Isso equivale a dizer que sem dúvida negligencia-se o essencial ao se apresentar Smith como
o fundador da “economia política”, quando, a rigor, ele queria defender Petty. Fazer disso um ponto
de partida, em vez de mostrar que ele seguiu a trilha aberta por seu audacioso predecessor, é falsear
a perspectiva. Ainda mais que essa filiação teve um aspecto implicitamente político: à semelhança de
Petty logo após o regicídio, Smith deu seu aval à queda da nobreza feudal e se esforçou por assumir
todas as conseqüências disso. É pura ilusão tomar sua reflexão como independente do processo que a
possibilitou. Se prestarmos atenção, perceberemos que Smith, tal como Galileu, tomou um partido na
luta que opôs a burguesia mercantil à nobreza consangüínea. Como a “física” de Galileu, a ciência
“fundada” por Adam Smith teorizou o processo real que provocou uma reviravolta na história a partir
do Renascimento italiano – a abertura decisiva do Ocidente para o mercado mundial. E, assim como a
pesquisa de Galileu, as investigações de Smith desenrolaram-se como uma iniciativa de justificação
dessa reviravolta.

Se desprezarmos esse aspecto da história das idéias, é muito provável que percamos de vista
o essencial. Pois o essencial só se apresenta por esse ângulo. O essencial é a promessa implicada por
tal inversão dos valores. Naturalmente, é difícil ver no aparecimento do Iluminismo outra coisa que
não a vitória da razão, mas essa evidência oculta o otimismo em que repousaram os trabalhos de
Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Petty e Smith. O que estava em jogo era a prosperidade das
nações. Todos estavam convencidos de que a antiga ordem devia ser derrubada, pois impedia o
desenvolvimento do comércio e, com isso, o das forças produtivas humanas. Na época das Luzes, não
apenas não foi a razão em geral que levou a melhor sobre seus adversários, não apenas essa vitória
da razão passou por uma teoria cosmológica que suplantou as outras e não apenas foi uma prática, a
do mercado, que permitiu uma inversão de perspectiva, como também essa inversão implicou para os
homens a promessa de passarem da penúria para a abundância, trocando a guerra de “todos contra
todos” pelo comércio de “todos com todos”. O negócio foi fechado.

A expansão do Iluminismo foi, com efeito, a da burguesia mercantil. Assim como a rotação da
Terra sobre seu eixo nos fez sair da noite para a aurora e “impulsionou” o Sol para o zênite, houve
uma revolução nas relações sociais: da dominação da aristocracia rural passou-se para a dos
comerciantes e industriais. Foi um processo imperceptível, que só se concluiu após vários séculos,
porém não menos real do que a rotação de nosso planeta, igualmente imperceptível, e que deixou
despontar o dia que arrancou os seres humanos da imobilidade e do torpor da noite. Ora, justamente
por sua irresistibilidade, esse processo implicou a garantia, no final, de se chegar à paz e à fartura.

Era uma boa notícia, uma ótima notícia, a anunciada por todos esses poderosos trabalhadores
do espírito. Estava terminada, com certeza, a maldição que pesava sobre a humanidade. Pelo menos
aquela que o clero fazia pesar sobre ela. Ganharás o pão com o suor de teu rosto, está escrito no
Gênese. No Ocidente, durante séculos, os homens se haviam resignado a isso. Era difícil acreditar no
contrário, a não ser para uma minoria, liberada do trabalho graças ao de outros, mas que, por outro
lado, pagava um preço altíssimo para gozar desse privilégio, já que, de uma hora para outra, tinha
que pôr sua vida em jogo para proteger seus subordinados. Quantos desses valentes tombaram ao
fazer de seu corpo uma muralha para defender os humildes! E quantos, dentre esses humildes,
continuavam a preferir a servidão à idéia de ter que pagar com a vida pelo prazer de não trabalhar!

Mas chegou o momento em que a sentença fatal começou a perder sua pertinência. De
maneira imperceptível, a vida dos homens continuou a girar em torno de seu eixo. Esse movimento
foi proporcionando cada vez mais luz e calor. A progressiva dependência em que foram ficando as
forças de produção em relação ao mercado anunciou a hora da tomada do poder pela burguesia. Por
“forças de produção” convém entendermos os homens, os animais, as fontes naturais de energia e as
máquinas. Durante muito, muito tempo, elas tinham estado a serviço quase exclusivo dos senhores
feudais. Isso havia durado por toda a Idade Média. Durante esse período, não importa o que se diga
hoje em dia, a circulação de mercadorias, pelo menos no Ocidente, ficou reduzida ao mínimo. Para
que os comerciantes se descobrissem os donos da situação, foi-lhes preciso ter muita paciência: de
uma geração para outra, nada parecia mudar. No coração das atividades da maioria dos homens
havia o trabalho no campo; na periferia, os mercadores ambulantes e sua moeda. Para que a troca de
mercadorias se transformasse na lei das relações humanas e o mercado, no centro de gravidade de
sua vida – ou seja, de seu trabalho, da maneira como eles ganham a vida -, para que o dinheiro
passasse a desempenhar um papel decisivo em seu destino, foi preciso correr muita água embaixo
das pontes dos senhores e muito suor da fronte de seus servos e muito sangue em seus campos. Foi
um movimento lento, imperceptível, um movimento de vários séculos.

Para a imensa maioria dos seres que vivem sobre sua superfície, a Terra parece imóvel e é
“no céu” que as coisas se mexem. O Sol “levanta-se” no leste e descreve uma longa curva em direção
ao oeste, antes de “se deitar” atrás do horizonte. A Lua, vez por outra, vem substituí-lo à noite, mas
sua luz é irrisória e suas aparições são caprichosas; apesar disso, ela descreve a mesma curva e
desaparece quase no mesmo lugar. Quanto às estrelas, é inútil contar com elas para ver seja lá o que
for na Terra: coladas à abóbada celeste, parecem existir apenas para o prazer ou para incitar o
homem a ser mais humilde; isso não impede que também elas descrevam uma curva e, quando as
observamos no poente, às vezes também podemos vê-las mergulhar. O que nunca percebemos é que,
na realidade, a Terra se move e que nenhum desses astros se desloca, ao menos não dessa maneira.
Na superfície de nosso planeta, não percebemos que é a rotação de nosso astro que nos dá a
impressão de que os outros planetas estão-se movendo. É extremamente difícil para nós restabelecer
a verdadeira relação entre os outros corpos celestes e o nosso e perceber a revolução diuturna da
Terra sobre seu eixo. A dificuldade é igualmente grande no que se refere à revolução mercantil. É
preciso que se tenha sido adepto de Copérnico de longa data para percebê-la corretamente.
O movimento de rotação efetuado pela História levou o Ocidente dos moinhos de vento às
máquinas a vapor. Que progresso no uso das forças da natureza! Quanta energia humana poupada!
Assim, como não contemplar a mecanização geral da produção de bens e, por esse caminho, ter a
esperança de acabar com a maldição cristã? Naturalmente, restava saber como fazer isso em detalhe.
Mas, depois de Copérnico, as coisas pareceram claras: a hegemonia da nobreza era um obstáculo à
prosperidade das nações. Fora necessária a dissolução das relações feudais para emancipar o trabalho
humano. Sob a égide das relações mercantis, a maldição transformava-se em providência.

Verdade seja dita, a nobreza feudal havia desempenhado um papel libertário em sua época.
Livrara os povos do Ocidente dos terrores inomináveis das invasões bárbaras. Hoje em dia é difícil
imaginar o que terão sido os primeiros séculos da chamada Idade Média e, sem o distanciamento
necessário, não percebemos os benefícios proporcionados pelo aparecimento do Estado feudal às
massas de camponeses mergulhadas nos horrores das “grandes invasões”. Pensemos, pois, na noite
mais tenebrosa, onde vagavam os mais terríveis monstros vindos de terras distantes, sem lei nem rei,
sem compaixão nem remorso! Quando, nesse caos sombrio, surgiu lentamente a Lua, como não lhe
render graças? Por mais tênue que fosse sua luz, que consolo para as vítimas! No coração do caos
medieval, as instituições feudais assemelharam-se à Lua em meio às mais sombrias trevas. Através
de uma hierarquia completa, desde o imperador até o mais humilde servo, instaurou-se uma ordem,
com direitos e deveres para senhores e vassalos, dominadores e dominados.

Mas o astro benfeitor empalideceu com o despontar da verdadeira fonte de luz. A proteção
que a nobreza fornecia aos camponeses aterrorizados tornou-se totalmente supérflua, pois, além de
uma luz mais intensa, o ouro proporcionava um calor do qual não se fazia idéia. Quando o comércio
tornou a se pôr em movimento nos céus do Ocidente, portanto, as instituições feudais perderam toda
a sua razão de ser. Aliás, era sabido que elas retiravam seu brilho do astro que vinha do Oriente e
que a luz que prodigalizavam não provinha delas mesmas. Portanto, era preciso que elas abrissem
espaço, que se fizesse um vazio, pois nesse vazio dançava-se um balé tão promissor que todos os
males do passado seriam definitivamente esquecidos. Palavra de economista esclarecido!
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

VIII
Marx

Smith era otimista, mas não ingênuo. Seu pai fora interventor alfandegário e, sem dúvida,
ele aprendera a seu lado que a classe dos comerciantes e manufatores dispunha-se a toda sorte de
malversações para atingir seus fins. Por ocasião de sua primeira investigação, que teve por objeto “a
origem dos sentimentos morais”, ele se dera conta da importância decisiva do egoísmo no
comportamento dos homens. Não tinha ilusões a esse respeito e era sem complacência quanto às
motivações dos homens de negócios que apostava neles para promoverem avanços no caminho certo.
Quanto à natureza humana, Smith não era mais ingênuo que Voltaire, a quem aliás conheceu pouco
depois. Com efeito, deixou a universidade para viajar pelo continente europeu, como preceptor do
jovem duque de Buccleugh, durante três anos. Em sua temporada em Paris, freqüentou os
enciclopedistas, os fisiocratas e Voltaire. De volta à Grã-Bretanha em 1767, levou quase dez anos
para concluir sua obra-prima. Dez anos para mostrar aos nobres que o novo contrato os colocava
diante de novas lutas!

Smith sabia que a subordinação das relações sociais à lei do mercado acarretava uma luta
feroz entre as classes. Observara a luta que os “trabalhadores” tinham começado a travar contra os
“patrões” na Inglaterra. Essa luta tinha por pivô os salários e só podia ser encarniçada, já que “os
trabalhadores desejam ganhar o máximo possível e os patrões, dar o mínimo possível”. Smith deixou
claro que não devia causar surpresa a disposição dos primeiros “de entrar em acordo para elevar os
salários” e a dos últimos de entrar em acordo para reduzi-los. O que ele entendia por contrato não
excluía essa luta de classes, mas, ao contrário, a incluía: era justamente esse o sentido do “pacto”
feito entre “o trabalhador e o dono do capital”. Esse pacto não poderia ser formal, já que “entre essas
duas pessoas o interesse de modo algum é o mesmo”. Adam Smith, por seu lado, julgava que essa
luta fazia parte do jogo e devia desenrolar-se livremente. Essa era, sem dúvida, a base do seu credo:
ele acreditava que a burguesia era capaz de criar tantas riquezas que o proletariado acabaria por
alcançar sua felicidade. Chegava mesmo a deplorar que a luta fosse desigual e que os trabalhadores
não tivessem, a exemplo dos proprietários, o direito de coalizão! Protestava contra a falta de
“nobreza” de espírito da burguesia, que continuava a triunfar sem glória, graças aos complôs que
tramava em silêncio contra os trabalhadores presentes no mercado e aos acordos que seus membros
firmavam entre si e que eram “conduzidos dentro do máximo sigilo”… Não apenas Smith enxergava
muito bem a luta, como queria que ela se desse às claras!

Restava saber se o capitalismo poderia fazer aumentar o bem-estar das duas partes de
maneira eqüitativa. Ora, os fatos provaram muito depressa o contrário: os ricos enriqueciam cada vez
mais e os pobres tornavam-se cada vez mais pobres. Entretanto, mal sua mensagem se fez ouvir, mal
a Terra girou o bastante para que o conjunto do povo inglês enfim tirasse proveito do Sol e não mais
apenas da Lua, mal as Luzes inundaram vitoriosamente a superfície do globo, ao menos onde afluía o
ouro, mal tudo isso se deu e a invenção da “máquina de fogo” mergulhou o “proletariado” na
escuridão, nas entranhas da Terra, nas minas onde o Sol nunca brilha e nas oficinas sombrias onde
ele não penetra. Mal a gente do povo ouviu dizer que sua servidão tinha acabado, que o homem
nascia livre e que cabia a ele livrar-se de seus grilhões, mal ela provou o doce mel dos raios do dia,
mal começou a gozar a doçura da vida, mal se reaqueceu ao calor generoso do astro em torno do
qual tudo gravita e já teve de mergulhar numa condição mais obscura do que a condição servil.

É fácil fazer de Marx um mau profeta e de Smith um observador bem informado. Mas as
coisas não são tão simples. É fato que Smith foi um observador atento, mas foi um péssimo profeta;
quanto a Marx, se foi mau profeta, foi também um observador muito sagaz. Por mais paradoxal que
pareça, não é a seus predecessores mas a ele que cabe o mérito de ter descoberto a força que
garante a vitória da economia de mercado. Petty efetuara a inversão decisiva das concepções
referentes ao cosmo humano e Smith havia refutado as objeções que visavam a manter o trabalho da
terra como fonte principal das riquezas, mas foi por Marx que tivemos de esperar para saber por que
isso se dava. Se Petty foi o Copérnico da economia mercantil e Smith o seu Galileu, Marx foi o seu
Newton.

Petty, como estamos lembrados, ensinou a seus contemporâneos que a prosperidade do


comércio dependia do tempo de trabalho dedicado à produção das mercadorias. Mas isso não
explicava por que milagre sucedia ao dinheiro produzir dinheiro, ao ouro produzir ouro e ao lucro
gerar lucro. Petty mostrara muito bem que os senhores eram parasitas e que a riqueza dos
holandeses vinha de sua “industriosidade”, mas, no fim das contas, faltava a razão última do
“milagre” realizado. Por mais que Smith esclarecesse que o lucro do “capitalista” era um salário, ele
reforçou o enigma. Tal como Petty, presumiu a autoprodução do capital: ao considerar o trabalho
humano como a medida do valor de troca das mercadorias, tanto um quanto o outro permitiram que
se visse o sistema funcionar no sentido correto, em torno de um centro que não era ilusório, e
remeteram os senhores a seu lugar, ou seja, à periferia, subordinando-os, por sua vez, ao mercado;
contudo, tornaram ainda mais necessário responder à pergunta incontornável: como funcionava isso?
Falar do “direito” que o capital tinha de comprar o trabalho humano e considerar o lucro como o
“salário” do capital, uma vez realizado o trabalho e vendida a mercadoria, não fornecia a resposta.
Isso porque, se a mercadoria era vendida por seu valor, era vendida pelo preço correspondente ao
custo dos gêneros alimentícios necessários à manutenção das forças do trabalhador pelo tempo
necessário à produção da mercadoria. Assim, de onde podia surgir o “lucro”? Vá lá que um
comerciante vendesse sua mercadoria acima de seu valor de troca, mas isso se dava em detrimento
do comprador; esse artifício não conferia um valor maior à mercadoria. Ora, para que o capitalista
pudesse outorgar-se um “salário”, precisava realmente existir um excedente de valor.

Tal como Adam Smith, Karl Marx não parecia predestinado a abordar essas questões. Não há
dúvida de que sua precocidade tornou-se lendária. Mas sua vocação era, como no caso de Smith,
acima de tudo filosófica. Ainda jovem, havia tapeado o pai, advogado por profissão, estudando direito
e história. Entretanto, enquanto ficava noivo de Jenny Von Wesphalen em segredo, já aos 18 anos de
idade, tornara-se hegeliano e não sossegou enquanto não defendeu sua tese… sobre o clinâmen em
Epicuro e Demócrito. Se alguém lhe tivesse dito, na época dessa defesa de tese, que seu gosto pelos
prazeres da vida e sua afeição pronunciada pelo materialismo da Antiguidade um dia o levariam a se
debruçar sobre o enigma levantado pela economia política inglesa, sem dúvida ele teria dado uma
colossal gargalhada. Estava se preparando para lecionar na universidade e não para bancar o
adivinho! Aliás, tamanha era sua capacidade intelectual que os familiares logo viram nele a estrela
ascendente da filosofia alemã. Embora ainda não tivesse 24 anos, um de seus admiradores afirmava
que Marx possuía, sozinho, todos os talentos de “Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e
Hegel”. Para que esse homem viesse a escrever o primeiro livro do Capital, foi preciso os deuses
disporem de um grande número de cúmplices: em Berlim, para lhe barrar o caminho da carreira
universitária; em Bonn, para censurar a revista que ele fundou com Bruno Bauer, A Gazeta Renana, e
obrigá-lo a atravessar o Reno; em Paris, para espionar suas relações iniciais com Engels e alguns
proletários esclarecidos, antes de expulsá-lo para a Bélgica; em Bruxelas, para expulsá-lo novamente,
em seguida à publicação do Manifesto do partido comunista; e em Colônia, para impedi-lo de se
beneficiar da revolução de 1848 e arrastá-lo para o banco dos réus, antes de condená-lo ao exílio.
Depois disso, para que seu destino se consumasse, foi preciso ainda que esses cúmplices dos deuses
fizessem Marx se instalar em Londres. Em Londres, sede do Banco da Inglaterra e pátria do
capitalismo industrial. Pois foi ali, em contato direto com o capital e o trabalho modernos, que Marx
acabou avaliando a importância de uma crítica da economia política. E foi nos bancos do British
Museum, com a constante ajuda financeira e o apoio moral permanente de Engels, que acabou dando
sua “contribuição” para a elucidação do funcionamento do sistema.
Aliás, a solução fornecida por Marx é tão simples quanto a queda de uma maçã. A força que
atua na produção da riqueza não é a perceptível no momento da troca, explicou ele: não é depois da
venda da mercadoria produzida que o capitalista se remunera, mas antes. No mercado, ele compra
uma força de trabalho que lhe custa o equivalente a sua manutenção e que ele tem o “direito” de
utilizar enquanto quiser. Marx insistiu muito nesse ponto: não é trabalho, uma certa quantidade de
trabalho, que o empregador compra, mas a utilização de uma força, a colocação a seu dispor, durante
um certo prazo, de uma força de trabalho. Marx nos pediu para estabelecer claramente a distinção
entre o tempo necessário à reprodução da força de trabalho (que é efetivamente pago pelo
“mercador”, pelo comprador dessa “mercadoria”) e o tempo de produção da referida força (que pode
ultrapassar em muito o tempo necessário a sua reprodução)! Ao consumir sua “mercadoria”, o
capitalista faz com que ela acrescente valor às mercadorias que transforma através do seu trabalho,
mas paga apenas uma parte desse valor agregado e é essa a fonte do lucro.

Não é tolice dizer que Marx deu uma solução de tipo newtoniano ao enigma que Petty e
Smith haviam tornado lancinante. Pois esclareceu o novo pelo velho. Newton retomara a velha idéia
medieval da atração dos corpos, tal como a alquimia supunha que funcionasse entre os corpúsculos
que compunham os metais; essa idéia, apesar de inaceitável para os cartesianos, lhe permitira
estabelecer as leis que regem o funcionamento físico do sistema solar, graças à idéia de uma ação à
distância entre os corpos celestes. Marx não fez nada mais, nada menos que isso: voltou à relação de
trabalho que, na era feudal, unia o trabalhador e aquele que lhe assegurava proteção, para esclarecer
o funcionamento do sistema dos assuntos humanos tal como elaborado por Petty. Retomou a idéia do
“trabalho suplementar” ou “sobretrabalho”, muito conhecida dos atores da época. Naqueles tempos, o
servo “devia” a seu senhor uma certa quantidade de trabalho diário e semanal, pois tinha que
fornecer sua quota-parte para a manutenção de seu protetor. Ora, ele sabia muito bem que o
trabalho era tempo que estava retirando de seu dia, além do que lhe era necessário para garantir sua
própria sobrevivência e a de sua família. E o senhor também sabia disso: fosse sob a forma de
víveres, fosse indiretamente, como “corvéia”, os dois signatários do contrato conheciam a medida real
do serviço prestado por aquele que trabalhava. O servo conhecia a extensão de seu dever e o senhor
não ignorava até que ponto tinha direito à utilização da força servil. Daí a derrapagem do sistema
quando o senhor procurou “lucrar” com ele.

Aliás, tal como Newton, Marx foi acusado por seus contemporâneos de fazer a ciência
econômica regredir ao se servir de uma noção totalmente ultrapassada pelo progresso das relações
sociais e pela razão. Ele retornara à idéia da exploração do homem pelo homem quando,
aparentemente, o mercado tornava supérflua qualquer injustiça desse tipo: que havia de mais
equânime do que a lei da oferta e da procura? Que havia de mais límpido do que uma transação
monetária? Que havia de mais absurdo e mais injusto do que considerar os empregadores como
exploradores? Além disso, o que impedia seus adversários de aderirem a sua descoberta era que as
coisas pareciam poder explicar-se de outra maneira, por uma espécie de turbilhões da moeda cuja
circulação fora acelerada pelo progresso do comércio e que permitiam ver como se passava de uma
troca primária, “mercadoria vendida/dinheiro/mercadoria comprada”, para um círculo muito mais sutil
e muito mais interessante, “dinheiro/mercadoria/dinheiro”. Porque o maravilhoso, com o crescimento
da massa e da velocidade de circulação das mercadorias, era que isso possibilitava o enriquecimento
fabuloso daqueles que se contentavam em exercer o papel de intermediários e que, sem mexer uma
palha, desempenhavam a função de motor no fluxo dos negócios…

Esse turbilhão dos negócios, em pouco tempo centralizado em bancos e “especuladores”, não
facilitava a tarefa de quem tentava enxergar com clareza o funcionamento do heliocentrismo
comercial. Por seu turno, ocultava a verdadeira relação entre quem trabalha e quem “lucra”. Em
nome da racionalidade das operações bancárias, havia uma recusa a se considerar o caráter arcaico
da força motriz do sistema. Para perceber convenientemente o sistema de Copérnico, Newton havia
comparado a Lua a uma maçã. Marx teve uma “intuição” análoga. Para compreender o capitalismo, a
pálida luz da Lua era conveniente: cegos pelo brilho do ouro e da moeda, os economistas clássicos
não conseguiam levar em conta a qualidade oculta da força de trabalho que consiste em produzir mais
do que é exigido por sua reprodução. Assim como fora preciso esperar por Newton para esclarecer
definitivamente a revolução efetuada pela Terra sobre o seu eixo, foi preciso esperar por Marx para
esclarecer em definitivo a revolução efetuada desde o Renascimento italiano.

Entretanto, as coisas tomavam um rumo tal que já não era possível esclarecê-la sem criticá-
la. Assim como fora impossível a Newton avalizar os “orbes” de Copérnico e tampouco as órbitas
circulares em que Galileu teimava em fazer girar os planetas, também foi impossível a Marx defender
o otimismo um tanto primário de seus antecessores. Por um lado, certamente, era preciso acabar com
os reacionários, pois, decorridas várias décadas desde Smith, a burguesia estava longe de dirigir
como pretendia as questões mundiais: com a Restauração na França e a Santa Aliança na Europa
Central, a aristocracia rural continuava de fato agarrada ao poder, enquanto a indústria capitalista só
ganhava terreno muito lentamente no continente. Por outro lado, entretanto, já se perfilavam
tamanhas perturbações na esfera da produção e das trocas que nem a simples “rotação” do capital
nem as loucuras da especulação bancária eram defensáveis.
Smith morreu cedo demais para ver que, a partir de 1825, a produção foi tomada por crises
terríveis. No Manifesto, já em 1847, Marx constatou, por sua vez, que “cada crise destrói
sistematicamente não apenas uma massa de produtos já criados, mas também uma grande parte das
forças produtivas já existentes”. O absurdo dessa situação já saltava aos olhos: “Nas crises, vemos
alastrar-se uma epidemia social que em qualquer outra época pareceria absurda: a epidemia da
superprodução.” Não era por sofrer de penúria que a sociedade via-se “subitamente reduzida a um
estado de barbárie momentânea”, mas, ao contrário, por ter “civilização em excesso, meios
demasiados de subsistência, indústria demais, comércio demais”… Marx, portanto, extraiu disso a
conclusão de que havia coisa muito melhor a fazer: sugeriu que a classe trabalhadora tomasse os
negócios em suas mãos, que realizasse a revolução, ou seja, que levasse a termo de maneira
coerente as promessas da revolução mercantil.

Essa sugestão, é verdade, foi formulada de maneira categórica, como um imperativo. E esse
imperativo combinou-se com um prognóstico: o do desmoronamento do sistema numa crise de
amplitude ímpar. Profecia que os fatos, segundo dizem, desmentiram. Se quisermos medir a validade
de uma teoria por sua capacidade de previsão, aí está, ao que parece, a prova da nulidade da teoria
marxista. Newton permitira a Halley prognosticar o retorno de seu cometa; também permitira a Lexell
fazer Urano atingir a dignidade de planeta e ao bom Leverrier descobrir o planeta Netuno. Esses são
alguns dos sucessos da teoria newtoniana. E, visto por esse prisma, talvez pareça impertinente
comparar Marx a Newton. Mas, será que é isso mesmo? Terão todas as suas previsões falhado?
Quando se recrimina Marx por ter sido um mau profeta, porventura se sabe que, nesse caso, foi isso
que aconteceu?

O erro principal de Marx foi um erro da juventude: sobre o ritmo com que deveriam
desenvolver-se, de um lado, a crise do capitalismo mundial e, de outro, a nação alemã. Sabemos que
em 1847 Marx julgava iminente a abertura da Alemanha ao mercado mundial, sentia estar a seu
alcance o desencadeamento do processo que conduziria o proletariado ao poder – e que essa dupla
esperança foi frustrada. Mas, se quisermos julgar o poder de previsão de sua teoria, será também
preciso levarmos em conta sua forma mais acabada. Acaso alguém julga Newton por seus primórdios?
Admitindo-se que Marx tenha continuado a se “enganar” nos anos subseqüentes ao Manifesto, é
preciso julgá-lo com base no Capital e não no que o precedeu. O próprio Newton levou todo o tempo
que julgou necessário para aperfeiçoar seus Princípios: quando saiu de Londres em 1655, já sabia que
sua teoria era capaz de resolver o enigma deixado pelos predecessores, mas esperou mais de vinte
anos para publicar sua obra; seria o caso de o censurarmos por isso? Quem contestaria os Princípios
em nome de seus trabalhos provisórios? Exigir-se-ia dele que esses trabalhos fossem tão “eficazes”
quanto a obra acabada?
Marx também precisou de vinte anos. Também ele recuou para sua intuição primordial.
Também ele procurou proteger-se de uma febre que promovia devastações: a febre do frenesi, da
revolução a qualquer preço, da ação a qualquer custo, pela qual muitos de seus amigos de luta foram
afetados logo depois do fracasso da revolução democrática. Marx temia as recaídas dessa excitação
vã: sabia que nos sobreviventes, naqueles que não mergulhassem no mais soturno desespero, essa
febre deixaria vestígios que os transformariam em oportunistas, dispostos a flertar com o poder ou a
se vender à burguesia. Assim, aceitou de muito bom grado esse afastamento forçado e se dedicou a
seus queridos estudos. Se quisermos fazer-lhe justiça, teremos de partir do momento em que sua
teoria afigurou-se mais acabada e, portanto, nos reportarmos à década de 1870. Ora, se partirmos
daí para exigir um poder de previsão equivalente ao de Newton, tudo se modifica. Com efeito,
verifica-se que Marx previra o desencadeamento do mais violento craque financeiro do século 19.
Essa “proeza” é pouco conhecida, já que o assunto é página virada, mas nem por isso é menos
verificável por quem se der a esse trabalho. Prisioneiros que somos da perspectiva geocêntrica,
perdemos toda a consideração por esse acontecimento decisivo aos olhos dos contemporâneos que foi
o craque de Viena em 8 de maio de 1873.

Tudo começara bem para Viena a 1º de maio daquele ano, quando a cidade recebia no Prater
a quinta Exposição Universal, após as de Londres e Paris. A capital estava em festa: transformara-se
no centro do mundo, ainda que por algumas semanas; era o lugar onde as técnicas do Ocidente
ofereciam seus serviços ao Oriente. E não foi pequeno o orgulho da multidão quando o kaiser
Francisco José declarou aberta a Exposição! Só que essa alegria durou pouco, pois, passados oito
dias, a Bolsa desmoronou: à queda vertiginosa das cotações somou-se a insolvência de um número
considerável de sociedades anônimas. Em 9 de maio deu-se o pânico. A imprensa européia foi avisada
por despacho telegráfico às 12h30; às três da tarde anunciou-se o fechamento da Bolsa. Foi o pior
craque de toda a história financeira até aquela data. E era apenas o começo: o pior ainda estava por
vir. Podemos acompanhar esse drama dia a dia, semana após semana, nos jornais da época, como se
fosse hoje. Enquanto as perdas ocorridas estritamente nas bolsas já eram medidas “em milhões e
milhões” e enquanto o tumulto e a violência tomavam conta dos acionistas, o governo austríaco
recebia os empresários para decidir que medidas tomar para evitar que a crise se propagasse pela
indústria e o comércio. De nada adiantou. Em pouco tempo, sociedades de renome abriam falência e,
quando todos supunham que já se havia chegado ao fundo do poço, a Bolsa desmoronou em Nova
York. De fato, cinco meses depois chegou a vez de Nova York conhecer o pânico, com seu cortejo de
falências: as cotações despencaram com a mesma brusquidão e as bancarrotas se sucederam. Em
todos os mercados financeiros prendia-se a respiração… Tornaria a soar o dobre de finados? Em
meados de outubro, a angústia oprimiu Berlim. E com razão, pois as cotações despencaram
subitamente na Bolsa e em pouco tempo as colunas que todos os jornais dedicavam à indústria, ao
comércio e aos bancos transformaram-se em páginas de obituário.

Viena, Nova York, Berlim: três mercados financeiros desmoronaram de maio a outubro! Isso
foi esquecido, pois desde então houve coisa pior: o craque de 1929, que apagou da memória coletiva
o de 1873. E não sem razão; por um lado, está mais perto de nós e, por outro, foi ainda mais grave e
de conseqüências imediatas mais vertiginosas… Contudo, se quisermos colocar Marx à prova, será
preciso tentar esquecer o século 20 e lembrar do século 19. Perceberemos então que Marx “previra”
esse craque e que essa previsão nada deveu ao acaso. Em 24 de janeiro de 1873, quando a euforia
das Bolsas estava no auge em todos os mercados financeiros, Marx, com efeito, concluiu o posfácio
que deveria acompanhar a segunda edição do Capital em Hamburgo. Ora, não apenas denunciou ali,
como seria de supor, os malefícios do sistema em geral, como também anunciou iminente “retorno da
crise generalizada”! A todos os que nada quiseram ouvir por ocasião da primeira edição prometeu que
“ela fará a dialética penetrar até mesmo na cabeça dos especuladores que proliferaram como
cogumelos no Sacro Império prussiano-germânico”. Logo, podemos constatar que Marx não foi tão
mau profeta assim.

Se quisermos pôr à prova O Capital, há que submetê-lo ao teste dos fatos que se seguiram a
sua publicação. A condição a ser satisfeita não está do lado de Marx, mas daquilo que o põe à prova.
É fato que Marx não foi o único a predizer a catástrofe e que, nas classes burguesas, o alerta fora
lançado. Podemos ouvir isso nitidamente ao longo dos debates no Parlamento alemão. Se
acompanharmos de perto as deliberações do Reichstag, perceberemos que um certo Lasker, que era
tido como “justiceiro”, já fazia soar o alarme. Deputado do partido liberal, mas inquieto com o odor
nauseabundo de inúmeras “transações” entre “iniciados”, Lasker havia denunciado as práticas
escandalosas dos “fundadores” de sociedades anônimas que abusavam da confiança pública, emitindo
ações sem nenhum valor real e fechando negócios em sigilo com o Estado. Durante vários meses, a
partir de janeiro de 1873, ele fez intervenções no sentido de pôr fim a esses escândalos, que, a seu
ver, punham em perigo a saúde da própria Bolsa. E tinha razão! O mal já havia atingido o coração do
sistema…

Para cada Lasker, todavia, quantos cegos e irresponsáveis! Ele era chamado de ave de mau
agouro, de desmancha-prazeres dos negócios. Nas fileiras de seu próprio partido, censuravam-no por
estar promovendo a desconfiança, por comprometer a serenidade do mercado e por provocar o que
alegava querer evitar. Em suma, rogavam-lhe que se calasse. Quanto mais mergulhamos nos
primeiros anos do Reich, mais percebemos o frenesi, o júbilo dos liberais. Sucede que, após décadas
de paciência, o liberalismo enfim levara a melhor na Alemanha. Mas não nos fiemos demais no
aspecto dinástico dessa reviravolta. Foi sob a égide da Prússia que se adotou a lei que livrou as
sociedades anônimas do controle estatal. Ao esmagar a França e permitir que a Alemanha se
unificasse, Bismarck enfim permitiu que os múltiplos Estados alemães constituíssem um só mercado
e, ao mesmo tempo, se ligassem diretamente, por intermédio da Bolsa de Berlim, ao conjunto do
mercado mundial. O bastante para apagar um bocado de humilhações!

Essa euforia durou exatamente três anos. Três anos depois, os partidários da livre circulação
de mercadorias, homens e capitais tiveram que sofrer uma súbita decepção. Ao grito de alegria dos
filisteus sucedeu-se o grito de aflição das vítimas. Por toda parte ergueram-se lamentos contra a
especulação financeira. Se é preciso encostar O Capital de Marx na parede, há que encostá-lo no
muro das lamentações.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

IX
A revolução operária

A “crise” descrita por Marx nada teve de “final”, é verdade. Se a opinião mais difundida fosse
dotada de fala, ela se expressaria mais ou menos assim:

“Em termos globais, o prognóstico de Marx foi desmentido pelos fatos: no fim do século, o
capitalismo havia superado sua crise e os proletários não se haviam apoderado do poder. Durante o
século seguinte, que é o nosso [século 20], a burguesia não cedeu mais espaço aos proletários.
Entrementes, estes atingiram um padrão de vida antes inigualado, e sua luta, longe de levar a melhor
sobre a lei do lucro, teve como único resultado apenas reconciliá-los com ela. De revolução, nisso
tudo, não houve coisa alguma. Pelo menos não onde Marx a esperava. Ela se produziu, certamente,
mas onde não era esperada: na Rússia, um país pobre, grande, sem dúvida, mas periférico, quando
Marx previa que ela se daria na Europa. Num país subdesenvolvido, num país ainda atrasado, foi lá
que a Revolução teve lugar! Num país onde os proletários eram minoria! Belo sucesso da teoria do
sobretrabalho! E, ainda por cima, para chegar a que resultado? À pior das ditaduras, que mais do que
nunca privou os proletários de sua liberdade, sem jamais lhes permitir que atingissem o bem-estar
dos trabalhadores dos países capitalistas…”

É difícil, nessas condições, atribuir um crédito realmente duradouro à idéia de que Marx possa
ser considerado o Newton da economia política…

Mas essa opinião apóia-se em fatos. Resta saber se não é, apesar dos pesares, vítima das
aparências. De manhã, acreditamos que o Sol se levanta e esquecemos que é a Terra que gira. À
noite, cremos ver constelações no céu e muitas vezes desconhecemos que a configuração desses
astros não leva minimamente em conta as diferentes profundidades de campo, que as “estrelas”
assim reunidas não se acham de modo algum no mesmo plano e que, na maioria dos casos, longe de
serem simples estrelas, são galáxias inteiras, tão grandes quanto toda a Via Láctea. Ora, sendo
assim, acaso a opinião pública conhece as distâncias reais entre os fatos que evoca? De que valem as
figuras que ela descreve? Não continua seu ponto de vista a ser… geocêntrico? Examinando-a, vemos
que ela comete pelo menos dois erros: o que consiste em atribuir a Marx um prognóstico “final” sobre
o capitalismo e o que consiste em acreditar que a Revolução Russa não entrava em seu “esquema”.

Se é fato que, aqui ou ali, Marx deixou seu otimismo se manifestar quanto à vitória do
proletariado, nem por isso considerou que o capital não pudesse recuperar-se das crises cíclicas que o
abalam. Nem mesmo no Manifesto, onde, com o companheiro Engels, deixou transparecer da maneira
mais evidente sua impaciência de ver o proletariado vitorioso, Marx apresentou essas crises como
insuperáveis. Muito pelo contrário, elas são superáveis e é justamente esse o verdadeiro drama!
Depois de haverem diagnosticado o mal e descrito as devastações que provoca, Marx e Engels
formularam, eles mesmos, a pergunta: De que modo a burguesia supera essas crises? Ou seja,
sabiam muito bem que o capital não desmorona de uma vez por todas, por força da eclosão de uma
crise! O drama, a seu ver, era que a crise podia ser superada, pois isso servia de prelúdio para crises
mais profundas. Com efeito, ela só podia ser superada à custa das forças produtivas e através da
conquista de novos mercados ou por uma exploração maior dos mercados antigos. E qual a
conseqüência dessa “solução”? A preparação de crises mais generalizadas e mais poderosas! É assim
que o capitalismo encontra remédio para as crises que o abalam: através da concentração do capital e
da ampliação de seu poder, o que acaba provocando crises cada vez mais graves.

Nesse ponto, O Capital não corrige o veredicto do Manifesto. Às vésperas da crise


generalizada que se anuncia, Marx não exclui de modo algum a possibilidade de que ela seja
superada. Já no livro I, em particular quando analisa a “produção crescente de uma superpopulação
relativa ou de um exército industrial de reserva”, ele repete, ao contrário, que a “crise geral é, ao
mesmo tempo, o fim de um ciclo e o ponto de partida de outro”. Qual um cometa, a crise retorna a
intervalos regulares: como ele, que parte novamente depois de contornar o Sol, a crise torna a partir
depois de percorrer o circuito de seu proprietário – o mercado das forças de trabalho. A crise,
segundo Marx, é o resultado de uma diferença de velocidade de crescimento entre as forças
produtivas e a capacidade de absorção do mercado: sendo o aumento da produção muito mais rápido
que o do mercado, é preciso que, periodicamente, esse atraso seja compensado, pois, de maneira
sistemática, as mercadorias acabam não mais encontrando compradores; levando-se em conta a
relativa estreiteza do mercado, vemo-nos regularmente em períodos de superprodução: é o retorno
do cometa, uma vez a cada dez anos, com seu cortejo de calamidades. Para “aplicar” seus lucros
(supérfluos no circuito das mercadorias) ou, ao contrário, para organizar suas finanças
(comprometidas pela falta de vendas), as empresas vão tentar a sorte na Bolsa: a especulação se
exacerba; atraídos pela chama das cotações, os pequenos poupadores atiram-se com arroubo na
aventura mirabolante. Até o dia em que as cotações desmoronam, pois a confiança desaparece
quando se descobre que tudo não passa de papel.

Nesse aspecto, seria preciso seguir Marx em seu livro III, por exemplo, no capítulo XXX, sobre
o “capital-dinheiro”, para avaliar até que ponto sua análise é eloqüente. Mas algum douto, dando
seguimento à opinião pública, sem dúvida nos impediria de fazê-lo, com um sorriso perverso nos
lábios: “Flagrante delito!”, diria. “Flagrante delito de fraude! Não vá saindo com toda essa pressa do
livro I do Capital! A própria página que você citou contém uma ‘profecia’ que destrói seu belo
discurso. Porque Marx escreve ali, com todas as letras, que o ciclo das crises deverá se encurtar e
que, dos ‘dez a onze anos’ habituais, deverá diminuir ‘gradualmente’. Esse prognóstico era sua
obsessão: ele o levava absolutamente a sério (como prova sua correspondência). Ora, se a princípio
ele teve razão ao prever o craque seguinte, a seqüência dos acontecimentos mostrou que estava
errado, pois foi preciso esperarmos 56 anos (pelo famoso craque de Wall Street). Para seu Newton da
economia, esse fato não é constrangedor? Claro, o cometa voltou, mas com que atraso!”

Sempre existem fatos perturbadores. Apostamos que esse douto, a menos que se contente
com o prazer da polêmica, admitirá que esse ponto merece ser examinado! Se é verdade que,
durante muito tempo, a Bolsa não tornaria a passar por uma quebra tão memorável quanto a de
1873, seria no mínimo desonesto caracterizar o fim do século 19 como um período de prosperidade.
Na época, a opinião pública via-se numa “grande depressão”: foi assim que ela denominou todo o
final do século… Que dizer dessa “depressão” que durou quase trinta anos senão que ela foi uma crise
crônica? E como é que foi superada senão destruindo uma massa colossal de mercadorias produzidas,
imobilizando uma proporção considerável das forças produtivas e militarizando exageradamente a
produção? Como foi que isso acabou? Da maneira mais lógica que há: através do maior conflito de
todos os tempos – conhecido pelo nome de Primeira Guerra Mundial.

Se a história dessa “depressão” já não está por fazer, resta ao menos lembrar à opinião
pública de hoje a amplitude dos estragos da época: quantos especuladores arruinados se mataram!
Quantos pequenos poupadores viram desmoronar num relâmpago as economias de uma vida inteira e
ficaram totalmente desamparados pelo resto de seus dias! A que preço a grande massa dos
trabalhadores teve que pagar a conta, perdendo seus empregos em parte ou por completo, obrigada a
aceitar reduções draconianas de salário! E, para coroar tudo, por que meios os capitalistas
conseguiram salvar sua posição! Para eles, foi a hora dos acertos de contas internos, que tiveram
como resultado a concentração, num número de mãos cada vez menor, de um capital cada vez maior.
Restou ao Estado soar o alarme do retorno ao protecionismo e das grandes encomendas de armas,
pagas com o aumento da dívida pública… Se fosse possível fazer esse balanço, então poderíamos
decidir se Marx errou ao ver os ciclos se aproximarem a ponto de não mais se sair deles… a não ser
por uma guerra mundial. É por esse padrão que convém julgá-lo!

Aliás, a guerra mundial figurava no “esquema” de Marx. Assim como Smith não se
deslumbrara com a futura grandeza da Inglaterra a ponto de não ver que ela já era palco de uma luta
entre as classes que prometiam esse futuro, Marx não se deixou cegar pela união dos proletários de
todos os países a ponto de não ver que o mundo ainda era palco de guerras entre as nações.
Certamente, sucedeu-lhe, “frente à maré romântica, retrucar, com verdadeiro fervor lírico, que a
nação era uma forma condenada” pelo próprio curso da história moderna. Mas não nos deixemos
enganar: sua vigilância era extrema no tocante à evolução das relações entre as nações e ele
observava muito de perto qualquer sinal de conflito militar.

Procuremos nos entender. Marx nunca renegou sua idéia inicial de que as nações modernas
eram apenas formas provisórias de agrupamentos da humanidade e de que, tal como o capitalismo,
deveriam dar lugar a uma forma superior de organização. Mas isso não quer dizer que tenha
esquecido essa questão. Já no Manifesto, a importância da nação não era anedótica; se, na segunda
parte, Marx prognosticou seu desaparecimento de maneira tão descontraída, foi pelo menos tanto por
astúcia polêmica quanto por convicção: tratava-se de mostrar à opinião burguesa, em poucas
páginas, que ela não tinha o direito de acusar os comunistas de não terem pátria, porquanto o
capitalismo, no fundo, tende a abolir as fronteiras nacionais no seio do mercado mundial. Não
obstante, Marx não se esqueceu de que, historicamente, o capitalismo se desenvolvera em caráter
nacional; o objetivo da primeira parte do Manifesto é traçar o esquema desse processo e ali vemos
que a burguesia alcança o poder no contexto da nação. Se, por um lado, “através da exploração do
mercado mundial, a burguesia confere um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os
países”, minando, no caso, a “base nacional” da indústria, por outro ela só consegue fazê-lo através
da “centralização política”.

Ao centralizar a produção e concentrar a propriedade num pequeno número de mãos, ela


favorece a criação de mercados únicos: assim foi que “províncias independentes, apenas
confederadas entre si, com interesses, leis, governos e tarifas alfandegárias diferentes, reuniram-se
numa única nação, com um só governo, uma só lei e um só interesse nacional de classe, por trás de
um único cordão alfandegário”.

Esse estágio ainda não fora atingido pela Alemanha, por exemplo, em meados do século 19.
Ao presumirmos que em algum momento Marx se sentira tentado a desprezar o contexto da nação, é
evidente que o fracasso da revolução de 1848 o impediu de fazê-lo. Pois esse fracasso comprometeu
a unificação da Alemanha, com a qual ele contava para ver realizar-se sua esperança revolucionária,
isto é, a tomada do poder pela classe trabalhadora. Ora, isso não é insignificante. Durante vinte anos,
Marx (tal como Engels) não sossegou enquanto não viu realizar-se a unificação da nação alemã. Essa,
para ele, era a condição sine qua non do desenvolvimento completo do capitalismo industrial no
continente e, portanto, da revolução proletária. E foi por isso que, ao contrário do que se pode supor
à distância, durante vinte anos ele acompanhou “com verdadeiro fervor lírico” os progressos dessa
unificação.

O obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo eram os freios impostos à livre circulação das


mercadorias através da dominação exercida pela nobreza: (1) a existência de alfândegas para
permitir que elas entrassem ou saíssem de cada “reino”, por mais minúsculo que fosse; (2) a
existência das corporações, que regulamentavam rigidamente a utilização da mão-de-obra. Nesses
pontos, a Alemanha exibia um enorme atraso em relação à Inglaterra e à França quando Marx entrou
no circuito. Para dizer a verdade, estava tão fragmentada num número tão grande de Estados, todos
tão minúsculos, que, em sentido estrito, não existia como “nação”. Seus progressos foi à Prússia e a
Bismarck que os deveu. Depois de, à maneira do turbilhão kantiano, o reino prussiano ter atraído
para seu núcleo a maioria dos pequenos Estados no norte, através da Zollverein; depois de os haver
arrancado do controle da dinastia dos Habsburgo, instaurando sob sua proteção a liberdade de
circulação das “mercadorias”; depois de ter livrado de seus grilhões a mercadoria representada pela
força de trabalho, ao abolir a “propriedade” senhorial sobre os servos e (o que não foi nada simples)
os privilégios das corporações urbanas; e depois de haver enfrentado a Áustria, de armas em punho,
para acabar com seu jugo, esse reino ficou em condições de atrair a Baviera e a Renânia para seu
regaço, de fazer com que elas invejassem seu “cordão alfandegário” e de levá-las a assinarem um
pacto em prol da unificação nacional. Por fim, o reino prussiano ficou em condições de impor à
“nação” francesa seu reconhecimento como nação.

O momento decisivo chegou em 1866, quando Bismarck lançou von Moltke contra von
Benedek. Haverá quem suponha que Marx estava totalmente absorto no sonho de um proletariado
que desprezasse as fronteiras nacionais? A vitória da Prússia sobre a Áustria deveria ter provocado
uma reação imediata da França bonapartista (era o que todos esperavam na época): quando
finalmente “a” França atacou, após quatro anos de hesitação, porventura alguém presume que os
antolhos tenham caído dos olhos de Marx e que ele tenha descoberto nos jornais que existia uma
nação alemã?
Todavia, é muito pouco dizer que Marx apostava na Alemanha. Se realmente lhe quisermos
fazer justiça, será preciso pararmos de acreditar – e de levar a crer – que ele não previra a revolução
na Rússia. Digam hoje o que disserem os ignorantes, era de lá que ele esperava o impulso. De
Londres, onde presidia desde 1864 os destinos do Conselho Geral da Internacional, Marx
acompanhava muito de perto a evolução da situação na Rússia. Havendo sempre encarado o czarismo
como o guarda da Europa, ele não acreditava nas probabilidades de uma revolução no continente
enquanto o poder do czar não fosse abalado. Por isso é que, em 1871, quando a Comuna eclodiu na
França, considerou prematura a tentativa de acabar com a ordem burguesa. E enquanto em toda
parte lhe imputavam a responsabilidade pela insurreição, no momento mesmo em que a repressão de
Versalhes se abatia sobre Paris, graças à conivência do exército alemão, Marx, por sua vez, começava
a esperar uma sublevação em curto prazo na Rússia: “Na própria Rússia, forças sociais vulcânicas
ameaçam sacudir as bases mais profundas da autocracia.” Marx desejava, é claro, que a Europa
inteira se tornasse socialista, mas havia adquirido a convicção de que esse processo teria início na
Rússia.

Nesse plano, mais do que em qualquer outro, convém evocarmos a lucidez do alter ego de
Marx, Friedrich Engels. Muitas vezes já se disse que, sem ele, Marx não teria conseguido redigir O
Capital. E é isso mesmo. Dois anos mais moço, Engels, filho de um industrial radicado em
Manchester, debruçara-se muito antes de Marx sobre a situação do operariado. Em Paris, Bruxelas,
Colônia e, por último, Londres, foi graças a ele, incontestavelmente, que Marx percebeu a importância
decisiva da economia política em qualquer tentativa de erradicar a miséria, a penúria e a injustiça da
face da Terra; como se sabe, foi Engels quem incentivou, por todos os meios, o trabalho teórico do
amigo. O que não é tão sabido é que Engels era um notável observador do panorama internacional.
Bom conhecedor de Clausewitz, era um estrategista requintado, que acompanhava dia a dia a
evolução de toda sorte de conflitos entre as nações e entre as classes. Assim, pouco depois da guerra
franco-prussiana e tão logo ocorreu o esmagamento da Comuna, ele afirmou que o czar precisava de
uma guerra de conquista para restabelecer a tranqüilidade no plano interno, mas que em caso de
fracasso sua situação ficaria pior do que nunca. Em 1875, Engels lembrou que o czar continuava a ser
“o árbitro da Europa: nenhuma revolução poderá triunfar definitivamente na Europa Ocidental
enquanto subsistir ao lado dela o atual Estado russo”. Ora, explicou, era a Alemanha “que teria de
suportar o primeiro impacto dos exércitos russos de reação”, donde concluiu que “a queda do Estado
czarista (…) é uma das condições primordiais da vitória final do proletariado alemão”. Essa queda era
passível de ser freada por qualquer conflito da Rússia com uma potência estrangeira, pois uma vitória
do czar aplacaria o descontentamento de todas as camadas do povo e as faria cerrar fileiras em torno
da “nação”. Ao mesmo tempo, entretanto, a guerra trazia o risco de precipitar essa queda desde que
impulsionasse alianças fatais, porque um fracasso militar deixaria o czar incapaz de conter a
“explosão”. Em setembro de 1877, Engels chegou a se entregar ao otimismo: “Desta vez, a revolução
começará no Leste”, escreveu a F. A. Sorge, “lá onde até hoje se encontravam a fortaleza inviolável e
o exército de reserva da contra-revolução”. Otimismo desmedido? Será que sabem que esse esquema
esteve a dois passos de se realizar?

Temos hoje a impressão de que nada tem importância na história das nações senão nossas
duas guerras mundiais deste século. Como a primeira eclodiu em 1914, não nos vem à cabeça que ela
poderia ter ameaçado antes disso a paz estabelecida na Europa. Desde a guerra franco-prussiana de
1870 até a Primeira Guerra Mundial, discernimos apenas um grande vazio no cenário internacional.
Ora, isso é um erro grave, pois faltou pouquíssimo para que a guerra eclodisse muito antes, já em
1875! Apesar de coletiva, a memória é curta. Os franceses já não pensam nem por um instante que,
depois de perder a guerra de 1870, a França esteve a ponto de sofrer uma segunda derrota, ainda
mais contundente. E que, acima de tudo, era iminente a guerra mundial. No entanto, aí estão os
fatos. Engels, de sua parte, foi taxativo: mais cedo ou mais tarde, a guerra seria inevitável. Essa
opinião foi formulada pelo Conselho Geral da Internacional já em 10 de setembro de 1870, quando a
França mal acabara de perder a guerra! E com razão: se a tensão vinha aumentando na Europa e se a
paz era muito frágil, isso não se dava apenas no Ocidente, porém mais ainda no Leste Europeu. Se a
guerra era inevitável, não era porque a França pudesse provocá-la novamente, mas porque a Rússia a
desejava.

Já naquela ocasião o Conselho lembrou que o czar havia apostado numa guerra longa e
desgastante entre a França e a Alemanha: qual não devia ter sido o seu despeito ao ver a Alemanha
derrotar a França num piscar de olhos! Isso porque, de uma hora para outra, emergia na Europa uma
Alemanha unida e poderosa, o que se chocava frontalmente com a política czarista secular no
continente. Como era inevitável, afirmou o Conselho, seria preciso pegar em armas para decidir, entre
o Kaiser ou o czar, quem iria ditar a lei na Europa. Quando se daria o confronto? Engels revelou, no
início de março de 1874, um plano de guerra já preparado em Berlim (inclusive com o plano de
campanha) para que se desferisse o ataque contra Moscou! Um plano de 1872, segundo o qual, como
podemos verificar, Bismarck se preparava para tomar a dianteira! É de se presumir que tivesse
renunciado a ele, porém, por mais quanto tempo? E, se não tomasse a iniciativa, não estaria correndo
o risco de perdê-la? Não acabaria a França se aliando à Rússia, quando estivesse suficientemente
forte?

A decisão do confronto, segundo Engels, tinha que passar por outro lugar: pelo ataque que o
citado czar da Rússia estava preparando contra o velho império turco. Tão inevitáveis eram a guerra
franco-germânica e a guerra germano-russa, no devido tempo, quanto era iminente a guerra entre
russos e turcos: o czar estava com tudo preparado e daria o sinal. Esse ataque foi deduzido por
Engels da renovação da Aliança entre os três imperadores. Dessa valsa diplomática, Engels extraiu a
convicção de que a guerra estava na ordem do dia: Alexandre fora buscar garantias junto a seus
“aliados” naturais, isto é, rogara-lhes que o deixassem livre para agir…

Por que os turcos? – talvez perguntem alguns. Na época, essa pergunta teria provocado
sorrisos, pois ninguém ignorava que o czar de todas as Rússias cobiçava Constantinopla. Esta era
para os russos o que fora Jerusalém para os cristãos: era preciso reconquistá-la para expulsar os
infiéis dos Lugares Santos! Talvez ainda haja quem diga que essa guerra não teria sido tão dramática
assim… Um confronto entre russos e turcos nos confins da Europa, como é que isso poderia levar a
uma guerra mundial? Pois que se dê uma espiada num mapa da região (levando em conta as posições
inglesas na Índia!). Verifica-se que o estreito dos Dardanelos dá acesso à Índia, de um lado, e ao
Mediterrâneo, de outro… Naquela época, a Inglaterra não podia ter nenhuma ilusão quanto às
intenções do czar; ora, ver os russos dominarem o estreito seria absolutamente intolerável. Quanto à
Áustria, que aconteceria se os turcos fossem expulsos dos Bálcãs? Ela mesma não conseguiria manter
por muito tempo seu controle sobre os povos eslavos: de seu ponto de vista, portanto, a ofensiva
russa seria igualmente inadmissível.

O que equivale a dizer que o ataque russo a Constantinopla criaria uma situação explosiva: os
ingleses se oporiam a ele, assim como os austríacos; mas os franceses o apoiariam e isso já seria o
bastante para fazer surgir um conflito mundial. Que faria o império alemão? Se deixasse os russos
com as mãos livres, correria o risco de perder a oportunidade de liquidá-los de uma vez por todas;
mas, caso se lançasse na guerra, deixaria a descoberto sua fronteira com a França… Como vemos, tal
como nos é apresentada por Engels, a situação nada tinha de muito animador. “Pura imaginação!”,
dirão enfim, “não aconteceu nada disso.” O que equivale a esquecer que, em julho de 1875, uma
frota russa concentrou-se no mar Cáspio, uma insurreição eslava eclodiu na Bósnia e na Herzegovina,
a Sérvia se declarou em guerra um ano depois e, para “defender” seus irmãos cristãos, a Rússia, em
24 de abril de 1877, declarou guerra à Turquia…
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

SEGUNDA PARTE
DE ONDE VIEMOS?

X
Totalitarismos

É verdade: o “proletariado” não tomou o poder onde o desejava Marx. E, onde o tomou, o
sonho transformou-se em pesadelo… A acreditarmos nas aventuras do pensamento narradas por Alain
Finkielkraut, podemos interpretar isso como uma vitória do Volksgeist. Como estamos lembrados, o
Volksgeist, ou “espírito do povo”, teria nascido na Alemanha no fim do século 18, juntamente com o
Sturm und Drang, sob a égide de Herder. Não satisfeito em se tornar predominante no governo de
Bismarck, no século 19, causaria devastações com Hitler, no século 20; vencido pelas pesadas armas
da coalizão democrático-soviética na Segunda Guerra Mundial, acabou, no entanto, conquistando
insidiosamente o mundo ocidental inteiro através da subcultura. Mas, antes de chegar a isso, não foi
ele que soprou sobre os trabalhadores de todos os países em 1914? Não foi esse Geist que impeliu o
povo alemão e, portanto, o próprio proletariado a pegar em armas contra os outros povos? Isso
porque, quando eclodiu a guerra, aquela que Marx havia anunciado, seu partido alinhou-se em apoio
à bandeira da grande nação alemã! No Reichstag, os deputados social-democratas, em vez de
respeitarem seu mandato (que os comprometia com o empenho de todos os esforços para impedir a
guerra), aprovaram em votação o confronto com a Rússia e a França! Um século depois de Goethe,
não foi Marx derrotado, por sua vez, pelo Volksgeist?

Essa idéia talvez seduza por um momento. Sobretudo porque a derrota militar da Alemanha
não quebrou o ímpeto desse espírito, capaz, como Proteu, de assumir todas as formas, em especial as
mais monstruosas. Abandonando a democracia, a fraternidade e a razão, o “povo” italiano logo
escolheu uma via belicosa, balizada pelos “feixes” [fascii] do Duce. Ao mesmo tempo, o “povo” russo
outorgou-se a supremacia sobre todas as nações da União dita “soviética”: seu líder, Djugashvili,
conhecido como Stalin, tornou-se em poucos anos o “paizinho dos povos”. Estávamos entrando na
década de 1930…

Mas, seduzir por um momento não é um desempenho lá muito pertinente. O espírito que
soprou na Alemanha na época de Goethe, no início do século 19, foi muito hesitante, muito
tempestuoso e muito contraditório! É mesmo muito inteligente quem consegue dar-lhe nome de um
só fôlego! Em contrapartida, a coisa é muito mais fácil no que diz respeito às décadas que se
seguiram. Havia o liberalismo econômico, que ia de vento em popa, e foi ele que fez da Alemanha
uma nação, protegida por um só cordão alfandegário e aberta às finanças internacionais. Não foi o
Volksgeist que empurrou os alemães para os braços de Bismarck, mas as provas de eficiência dadas
pela Prússia como a primeira a liquidar os obstáculos feudais à liberdade de circulação das
mercadorias, dos homens e dos capitais! Se fizermos questão de falar de espírito, não é do chamado
“espírito do povo” que convirá falarmos, porém, no sentido muito clássico do termo, do espírito de
iniciativa.

A partir dessa época, o que esteve em questão na seqüência dos acontecimentos foi ele. Se é
verdade que o sonho de Marx não se realizou e se o Volksgeist não é o motor da história, que causa
devemos atribuir aos horrores que nosso século [20] conheceu a não ser o poder desse “espírito”? Se
o confronto entre a Rússia, a Alemanha e a França se deu em 1914, se o mundo ocidental passou por
um novo craque em 1929, e se, depois de uma militarização ainda mais frenética do aparelho de
produção do que durante a Grande Depressão do século 19, veio a eclodir a Segunda Guerra Mundial,
não terá sido porque “a mesma força continuou a atuar no mesmo sentido”? Não terá sido porque o
capitalismo mostrou-se incapaz de resolver sua crise a não ser através de uma crise ainda mais
grave? Na impossibilidade de ser regida por uma força superior, será que não foi a lei do lucro que se
impôs de maneira assustadora?

Pensando bem, é possível que nada pudesse evitar os horrores desencadeados em 1914 a não
ser a substituição da lei do “capital” pela lei do “trabalho”. O capital podia adiar o confronto, mas
tinha necessidade dele. Estava programado para essa “solução”. Precisava dela para sair da Grande
Depressão. Por esse ponto de vista, era fatal que houvesse a catástrofe. Mas, se tivessem tido um
pouquinho de tempo para cerrar fileiras acima das fronteiras, os trabalhadores teriam conseguido
evitá-la. Pelo menos, com toda a certeza era essa a razão pela qual, por volta de 1877-1878, Marx e
Engels temiam o desencadeamento da guerra. Para eles, era um tormento ver a guerra eclodir antes
que o proletariado estivesse suficientemente forte, se não para impedi-la, ao menos para limitar suas
conseqüências. Em fevereiro de 1877, pouco antes de o czar lançar suas tropas contra
Constantinopla, o sucesso do partido social-democrata nas eleições legislativas provou, na visão
deles, que a classe trabalhadora estava no caminho certo: “Mais alguns anos desse tipo de
progresso”, escreveu Engels em La Plèbe, “a reserva e o Landwehr, ou seja, três quartos do exército
de guerra, estarão conosco…” Será que as pessoas entendem por que Engels se regozijava tanto com
essa perspectiva? É que isso “permitirá desorganizar totalmente o sistema oficial e impossibilitar
qualquer guerra ofensiva”! Engels e Marx não desejavam outra coisa, na época, senão a paz entre
as… “nações”.
Acaso avaliamos o que isso significa? No mesmo artigo, Engels respondeu a todos os que
censuravam o partido alemão por não precipitar os acontecimentos, fazendo “imediatamente a
revolução”: tamanha era a credibilidade moral dos socialistas junto às massas, desde o
desenvolvimento da crise, que de fato isso podia ser contemplado. Mas quais seriam as chances de
vitória? Engels respondeu que elas ainda eram muito pequenas, pois até então o Partido dispunha
apenas de “seiscentos mil votos em cinco milhões e meio” e, nessas condições, o mais provável seria
a derrota, aliada à ruína do movimento. Que conclusão extrair disso senão a de que, ao contrário do
que prevalecera nos anos da juventude, Marx e Engels não tinham pressa, após o craque de Viena, de
ver a revolução eclodir? Calma! Paciência! – Era isso que eles aconselhavam aos trabalhadores, a
despeito da crise e dos estragos que ela provocava…

Essa calma e essa paciência eram ainda mais necessárias na medida em que a repressão
golpeava com violência crescente o movimento operário alemão. Em 1878, a guerra entre a Rússia e
a Inglaterra foi evitada por um triz, graças a Bismarck, que, ao término de negociações conduzidas
com mão de mestre no congresso de Berlim, conseguiu convencer o czar de que ele teria tudo a
perder se mantivesse suas posições (isto é, muito perto de Constantinopla). Ao mesmo tempo,
entretanto, o Kanzler desferiu um grande golpe contra os socialistas alemães: o partido social-
democrata foi cassado! Sob o pretexto falacioso de repetidos atentados contra a pessoa do imperador,
os socialistas foram proibidos de se reunir, publicar jornais, distribuir folhetos, em suma, de se
manifestar, não importava de que maneira, sob sua bandeira e com seu programa. Levando-se em
conta o dinamismo da propaganda dos social-democratas, essa lei de exceção foi aplicada com
extrema diligência e, na maioria das grandes cidades industriais, como Leipzig e Berlim, deu margem
a um verdadeiro “estado de sítio”. Foi prorrogada por diversas vezes, tanto que o “partido” de Marx
ficou privado de qualquer liberdade de ação até 1890! Foi assim, mediante uma certa compensação
financeira dada à Rússia, para que ela reconvocasse suas tropas (mesmo com o risco de deixar os
“irmãos” eslavos expostos à revanche turca), e através de uma legislação muito progressista para
com os trabalhadores (seguro-saúde, seguro-velhice), que a situação se “estabilizou”, tanto entre as
classes quanto entre as nações.

Será que isso refuta o prognóstico de Marx? Segundo ele, o único meio de acabar com as
crises (e com sua “solução”, isto é, a guerra) era expropriar o capital em escala mundial. A seu ver, o
capitalismo não deixava de ter méritos, uma vez que permitira à história humana entrar numa fase
em que a fartura se tornara possível e que, além disso, esse sistema havia criado as condições de sua
superação, já em seu curso internacionalizando em tal escala as forças produtivas que o contexto
nacional tornava-se um entrave a qualquer progresso histórico. Assim, não nos apressemos em
desprezar as previsões de Marx e Engels em nome do fato de a revolução não haver ocorrido após a
guerra. Talvez mais valha indagarmos se, de fato, enquanto ela não ocorre, a guerra não continua
suspensa sobre a vida das nações como a espada de Dâmocles.

No roteiro deles, a revolução na Rússia só poderia ser um prelúdio à revolução na Europa! A


seu ver, era absurdo acreditar que essa revolução poderia, fosse de que modo fosse, permitir a
instauração do “socialismo” na Rússia, uma vez que socialismo implicava a coletivização das forças
produtivas nos países em que o capital já fizera seu “trabalho”. Eles contavam com a revolução russa
não para instaurar o socialismo na Rússia, mas para libertar a classe trabalhadora alemã de seu
“guarda” e lhe permitir bater-se livremente com o Reich. Atendendo ao desejo da imperatriz alemã de
obter maiores informações sobre Marx, cujo nome fora repetidamente evocado nos debates do
Reichstag e na imprensa quando da adoção da lei de exceção contra os socialistas, um aristocrata
inglês, Sir Mounstuart Elphinstone Grant Duff, aproveitou a oportunidade de um almoço londrino para
conhecê-lo. No dia seguinte, fez seu relatório numa carta endereçada a Sua Majestade, assim
resumindo a síntese das colocações do temível líder do movimento operário: “Ele espera, não sem
razão, uma reviravolta na Rússia num futuro bem próximo e acha que ela começará por reformas
vindas de cima, que não impedirão o velho edifício de ruir e que levarão a sua completa destruição. O
que surgirá no lugar dele não está muito claro, mas o certo é que a Rússia não mais ficará em
condições de exercer a menor influência sobre a Europa durante muito tempo.” Era óbvio que isso o
satisfazia perfeitamente. De fato, Duff prosseguiu: “Depois disso, ele crê que o movimento se
estenderá à Alemanha, para se transformar numa revolta contra o sistema militarista que aí impera.”
Da revolução russa, portanto, ele realmente não esperava outra coisa senão o impulso para a
revolução alemã…

A revolução se deu na Rússia, conforme o previsto, mas não ocorreu na Alemanha. Podemos
contentar-nos em constatar que o “esquema” de Marx e Engels não foi respeitado e que seu
prognóstico foi derrotado, como se tornou costume fazer. Mas isso equivale a ter uma visão bastante
míope. Parar nesse ponto é não ver que, na impossibilidade de se submeter às forças revolucionárias,
a Europa continuou presa do belicismo. Afora os “trabalhadores de todos os países”, quem poderia
impedir o desencadear irrestrito da guerra durante décadas? Sir Mounstuart Elphinstone Grant Duff
nutria suspeitas quanto a essa alternativa. Considerava Marx “um sonhador”, mas reconhecia sua
perspicácia num ponto: o perigo da submersão no impasse da corrida armamentista, que espreitava
as dinastias reinantes. Por isso, concluiu: “Vossa Majestade imperial terá, portanto, um pequeno
apanhado do modo como [Marx] visualiza o futuro da Europa. Ele é por demais sonhador para ser
perigoso, a não ser no que tange ao fato de que a situação, com suas despesas enlouquecidas com
armamentos, é incontestavelmente perigosa.” E não pôde impedir-se de acrescentar: “Se os senhores
da Europa não encontrarem, nos próximos dez anos, um meio de acabar com esse flagelo, sem levar
minimamente em consideração a advertência dos revolucionários, eu, de minha parte, acabarei
perdendo a esperança no futuro da humanidade, sobretudo nesta parte do mundo.” Entre dois males,
a revolução e a guerra, o nobre amigo inglês da imperatriz da Alemanha recusava-se a escolher, mas
reconhecia que o futuro era sombrio.

Não basta constatar que os trabalhadores não tomaram o poder na Alemanha. É também
preciso saber por que e em seguida avaliar as conseqüências disso. É que o destino de todo o século
20 talvez tenha sido jogado nesse encontro perdido de uma geração de militantes revolucionários com
a História. E, afinal, como não constatar que essa derrota arrastou todas as gerações seguintes num
cortejo de calamidades, dos quais a guerra de 1914-1918 foi apenas um modesto “prelúdio”?

Retomemos sucintamente o filme dos acontecimentos. Conforme o previsto, a carnificina sem


precedentes da guerra mundial provocou uma onda revolucionária em todos os países da Europa. E,
conforme o previsto, foi na Rússia que a revolução começou. Mas a seqüência não veio. Por quê?
Porque isso estava escrito? Ou, quem sabe, porque o partido social-democrata alemão não aproveitou
sua oportunidade? Basta nos determos nisso por um instante para ver a direção do partido
contemporizar e, em seguida, solapar sistematicamente o ímpeto revolucionário na Alemanha. Por
mais aberrante que pareça, é difícil não imputar ao estado-maior social-democrata uma
responsabilidade colossal no que costuma passar por “erro de prognóstico” de Marx tanto no destino
da Rússia dos sovietes quanto no da república de Weimar. Com efeito, se tivermos em mente a
estratégia preconizada por Marx e Engels alguns anos antes (transformar a guerra que a Rússia
provocaria numa revolução em escala européia), ficaremos pasmos ao ver que os líderes do partido
alemão dos trabalhadores, depois de renegarem seu compromisso (o de recusar apoio a qualquer
desencadear de hostilidades), ao avalizar a adoção dos créditos de guerra no Parlamento, em 1914, e
não satisfeitos em não fazer nenhum uso revolucionário da maioria de que dispunham no Reichstag
em 1919, contribuíram, ainda por cima, para sufocar qualquer movimento de insurreição através de
represálias sangrentas.

A partir de então, estava selado o destino da Rússia. Isolada pela guerra dos brancos e
separada de seu prolongamento natural na Alemanha, que poder tinha a revolução russa? Estava
condenada de antemão a “esperar” que a situação se esclarecesse na Alemanha e no resto da Europa.
Vitoriosa no plano militar, mas totalmente esgotada, a “revolução bolchevista” só podia degenerar.
Posto que a instauração do socialismo na Rússia tinha como condição a revolução na Europa, é
evidente que, quanto mais durava esse período de espera, menos se tornava possível “construir o
socialismo”. A exemplo da revolução de 1792, considerando-se a eliminação dos homens mais
valentes e mais desinteressados no campo de batalha e a penúria provocada pela guerra e pelo bloco
dos Estados ocidentais, a “ditadura do proletariado” na Rússia tinha todas as probabilidades de não
gerar outra coisa senão um novo período do Terror, antes de preparar o terreno… para uma nova
Restauração.

Entende-se, portanto, a tomada do poder por Stalin. A partir do momento em que a


perspectiva de revolução na Alemanha se distanciou, a situação tornou-se absurda: os sovietes
tinham tido forças para rechaçar a agressão militar das nações coligadas, porém a maioria deles
estava exangue e o país se achava no limite de suas forças. Se Stalin se transformou no monstro que
logo se veio a denunciar, foi por ter assumido o absurdo dessa situação.

Apresentar a política então adotada como uma readaptação justificada, tanto no plano teórico
quanto no prático, diante da “persistência” das nações, talvez pareça sensato, mas equivale a ratificar
um absurdo. Que houve de mais aberrante do que essa tentativa de fazer nascer um novo mundo em
tais condições? Que houve de mais monstruoso do que esse regime que o aborto da revolução alemã
fez nascer na Rússia? Será sequer possível falarmos de nascimento? Como qualificar o “pragmatismo”
de Stalin senão de aberração histórica? Entrementes, enquanto a repressão se abatia sobre Trotski,
Zinoviev, Kamenev e todos os velhos bolchevistas, todos os sobreviventes do czarismo tiraram sua
carteira no Partido, e foram essas pessoas que instauraram sobre milhões de homens à espera de
“dias melhores” uma das mais sangrentas ditaduras da história – e tudo, como se costuma dizer, em
nome de Marx!

Do lado alemão a coisa não foi melhor. A social-democracia pagaria muito caro por sua
traição. Diretamente responsável pela ascensão de Stalin ao poder na URSS, ela também o foi,
indiretamente, pela de Hitler em seu próprio país. De fato, assim como não teria havido stalinismo se
a revolução tivesse sido vitoriosa na Alemanha, sem Stalin não teria havido uma vitória do nazismo.
Foi graças a Stalin que Hitler se apossou do poder nos anos 30. Talvez este resumo seja chocante.
Assim, que me permitam uma breve recapitulação. O nacional-socialismo alimentou-se – podemos ler
isso nos manuais de história – do rancor nascido na Alemanha pela derrota de 1918. O que não
encontramos ou só raramente lemos nos manuais é que essa derrota foi a sanção infligida pelas
nações que competiam com as pretensões da Alemanha de assumir um lugar hegemônico no
“mercado mundial”, violando um pouco as instruções de Adam Smith, isto é, apostando demais na
força. Antes de tudo, portanto, essa derrota foi uma derrota da grande burguesia alemã. Haverá
quem acredite que essa burguesia enfim aprendeu a lição? Que confessou seu erro publicamente?
Que prometeu ficar bem quietinha? É claro que ela estava anêmica e sem dúvida teria sucumbido se o
estado-maior socialista não a houvesse poupado, a ponto de sacrificar parte de suas tropas… Mas, tão
logo ficou a seu alcance voltar a tomar a iniciativa, porventura ela se absteve disso? Por seu caráter
nacionalista, o nazismo lhe convinha. Ora, não podemos ignorar que Hitler se candidatava, antes de
tudo, a destruir o movimento dos trabalhadores. Bismarck havia neutralizado os socialistas, mas o
combate de Hitler consistia em destruí-los. O nome russo de seu inimigo era “bolchevismo”, mas seu
nome alemão era “marxismo”. Era preciso acabar com aquele vírus e devolver ao trabalhador alemão
o gosto pelo trabalho em favor da pátria – o que combinava esplendidamente com o que era
desejado, por sua vez, pelos srs. Krupp e similares. Por isso eles financiaram de bom grado um
partido tão promissor…

Resta saber se essa aliança fortuita entre um aventureiro austríaco e os vendedores de


canhões alemães teria conseguido, por suas próprias forças, atingir seus objetivos. Em geral, isso é o
que se supõe (voltando aos manuais), como se a vitória de Hitler fosse uma evidência. Ora, mesmo
que evocássemos o craque de Wall Street (o que certamente conviria fazer, para explicar a influência
do nazismo no “povo” alemão), de modo algum provaríamos que o que aconteceu tinha que
acontecer. É que a crise de 1929 atirou pelo menos um número igual de membros da “nação” alemã
nos braços dos partidos dos trabalhadores e nos braços dos nazistas. O que explica o sucesso do
NSDAP é menos o seu impacto na base da escala social, conjugado com o apoio que ele recebeu das
altas esferas, do que a cisão entre seus inimigos.

Apesar de seu sucesso na rua e nos comícios, de sua “influência sobre as massas” e de se
formar a opção das classes dirigentes, é provável que ele não tivesse conseguido levar a melhor se as
fileiras dos trabalhadores não estivessem divididas. Essa divisão tinha uma certa razão de ser: os
comunistas alemães podiam, justificadamente, censurar os socialistas de seu país por repetidas
“traições” (1914, 1919, 1924); os socialistas alemães podiam, justificadamente, censurar os
comunistas por apoiarem a ditadura de Stalin. Mas a maioria dos trabalhadores e militantes aspirava
à união, pois sabia quem era seu verdadeiro inimigo: o “grande capital” e seu braço armado, as
tropas paramilitares nazistas. Será que alguém se lembra disso? No estado-maior do partido
comunista alemão, complicou-se a comunicação nas esferas dirigentes. Os militantes receberam
ordens de considerar não os nazistas, mas os socialistas, como seu inimigo número 1; a unidade de
combate do movimento dos trabalhadores foi paralisada, eliminaram-se sistematicamente os que
rejeitavam essa aberração etc.

Mas isso é ignorado ou, então, ninguém se lembra mais. Permito-me lembrar que a direção
do partido comunista alemão, na pessoa de Thaelman, impôs a seus “camaradas” a ordem de rejeitar
qualquer colaboração com os membros do outro partido dos trabalhadores! Qualquer um que
desconsiderasse essa diretriz seria expulso. Portanto, que confusão no partido nessa época, que
desgraça, e quanto tempo perdido no momento mais importante! Como cometer equívoco mais
grosseiro? Mas terá sido mesmo um equívoco? Se investigarmos por um momento essa fatal tomada
de posição, remontaremos com muita facilidade a… Stalin. Pois era Stalin o verdadeiro “patrão”. Era
ele o único comandante a bordo. Era ele quem comandava pessoalmente todos os partidos
comunistas, por intermédio da III Internacional, verdadeira “correia de transmissão” das ordens
vindas do Kremlin! Os historiadores desse período acabariam informando isso em seus manuais: foi
Stalin quem ordenou à seção alemã da Internacional, isto é, ao partido comunista alemão, que não se
aliasse aos social-democratas para combater Hitler. Basta pensarmos na paralisia das fileiras do
operariado quando Hitler se tornou o Kanzler! É só pensarmos nessa incrível derrota sem combate
(inexplicável de outra maneira, tão forte era a vontade de combater os nazistas), na cascata de
assassinatos de líderes dos trabalhadores (sem distinção de legenda) e nos campos de concentração
improvisados, onde milhares de quadros políticos e sindicais (idiotizados) da classe trabalhadora se
deixaram encerrar, e talvez compreendamos a ajuda prodigiosa que Hitler recebeu de Stalin.

Sabemos o que veio depois. Impressionados com a capacidade do regime nazista de resolver
a questão dos trabalhadores, os democratas deixaram o Terceiro Reich armar-se até os dentes,
anexar a Áustria e, logo em seguida, fazer o mesmo com a Tchecoslováquia. Assim, ninguém ficou
realmente surpreso com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Mas, hoje, será que já não é hora de
fazermos essas contas? Grudar o fantasma de Hitler no pelourinho não é o bastante. Ele não se
sagrou vencedor sozinho e não foi por loucura que se lançou na conquista da Europa. Toda a sua
aventura inscreveu-se na alternativa que Marx queria conjurar, impedindo o sistema de levar até o
fim sua lógica belicista. Fazer troça dos “erros” de prognóstico de Marx é não apenas não lhe fazer
justiça, mas também prescindir do exame das conseqüências que teve para a Europa, assim como
para o mundo inteiro, o fato de sua opção não ter sido aplicada. Por não ter realizado o sonho de
Marx na Alemanha, o século 20 transformou-se num pesadelo. Nossos avós e nossos pais o viveram.
Todos desempenharam algum papel, nem que tenha sido o de figurante, nesse filme de terror.

Se a finalidade do capitalismo é realmente o máximo bem-estar da maioria, é de se temer


que os meios que ele emprega entrem irrevogavelmente em contradição com seus fins. Que ao menos
se admita que, para chegar ao bem-estar e à prosperidade de todos, haveria um roteiro mais simples.
Muito mais simples! É fato que ele pressuporia acabar com a lógica de guerra implicada pela lei do
lucro. Não obstante, não teria sido melhor acabar com ela em tempo hábil? Na esteira da revolução
russa, nossos avós dispuseram de uma verdadeira oportunidade de se tornarem coletivamente
senhores de seu destino, em vez de continuarem, em sua maioria, a ser vítimas dele. Uma vez
perdido o encontro, Stalin permitiu que Hitler acertasse o passo da nação alemã e levasse a cabo a
preparação de um novo confronto militar, tornado necessário em decorrência de uma nova depressão
no mercado mundial.

Além disso, as contas não devem parar por aí. Pois a história continuou a correr mal. Passou
por aberrações igualmente deploráveis. Depois do confronto, Stalin permitiu que as democracias
cambaleantes recuperassem uma certa legitimidade. Com efeito, vencido Hitler, a monstruosidade do
regime “comunista” deu ao liberalismo uma nova chance de dar novo polimento em seu brasão,
fazendo com que fossem esquecidas as calamidades que ele gera. Todas as pistas para o acesso a um
mundo melhor estavam embaralhadas. Os adversários do totalitarismo puderam fazer o capitalismo
tirar proveito da desconfiança inspirada pela revolução. Ao concordar com a divisão do mundo em
Yalta, Stalin autorizou os aliados a fazerem o campo de sua ditadura passar por “socialista”: um
achado para todos os que eram atormentados pelo espectro do comunismo. Como se o socialismo
fosse possível em apenas uma parte do mundo, isto é, numa escala inferior à do mercado mundial! O
capitalismo, naturalmente, tirou proveito da confusão desonesta que consiste em apresentar o campo
do Leste Europeu como o socialismo posto em prática, pois pôde apresentar-se como o único meio de
evitar o desvio totalitário do qual, como “comprovaram os fatos”, o socialismo seria apenas uma
variedade.

Assim, a despeito do prognóstico de Marx, o capitalismo sobreviveu. Mas em que


circunstâncias e a que preço! E para oferecer que perspectiva? Depois da guerra, todas as frentes de
colocação de mercadorias já estavam prontas, uma vez que a Europa se encontrava em ruínas – e
parte da Ásia, em cinzas. Assim, o otimismo pôde renascer. Mas por quanto tempo? Com meios de
produção de potência ímpar, algumas décadas bastaram para que a oferta novamente ultrapassasse a
procura. Só podendo o mercado mundial absorver uma parcela limitada da produção, determinada
não apenas pela demanda potencial (o número de consumidores) mas também e sobretudo pela
demanda solvente (o poder de compra dos empresários e dos assalariados), o endividamento dos
Estados ricos e das nações pobres atingiu cifras vertiginosas, enquanto massas consideráveis de
capital à procura de investimentos passaram a “flutuar” acima dos mercados financeiros, o que
provoca uma especulação cada vez mais perigosa… Depois de oferecer a si mesmo uma guerra ainda
mais mundial do que a precedente e muito mais destrutiva, o sistema gozou de uma certa trégua – o
tempo necessário para reconstruir tudo. Mas caminha diretamente para um novo craque, ainda muito
mais mundial do que o anterior e muito mais violento.

Assim sobrevive o capitalismo. Essa sobrevivência é incontestável. Resta saber para quem ela
constitui um bom negócio.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

I
Vitória da lei do lucro?

Uma reflexão parece haver escapado a todos os que deploram há algum tempo a derrota do
pensamento. É que o pensamento a que se referem provém da vitória da economia mercantil sobre as
relações feudais de homem para homem. O que o Iluminismo pôs em jogo não foi apenas a vitória da
razão sobre a fé e a superstição. Foi a vitória sobre a penúria, a miséria, a precariedade da vida da
imensa maioria dos homens. Se sairmos vencedores, prometeram os espíritos esclarecidos,
afastaremos a maldição que pesa sobre o destino da espécie humana.

Foi somente graças a essa promessa que a ciência moderna pôde vencer a Revelação cristã.
Quer se interessassem pelos movimentos dos corpos celestes ou pela circulação de mercadorias,
todos os pensadores que importaram, desde o Renascimento, foram buscar inspiração na inversão
das relações sociais provocada pela revolução mercantil: já não era a posse da terra que tinha valor,
mas a posse do ouro.

Antes de constituir a vitória de um novo pensamento, o advento do Iluminismo passou por


uma nova prática. Essa prática é a da troca de mercadorias, que veio substituir a da prestação de
serviços.

Por mais desagradável que isso possa afigurar-se a qualquer espírito culto, há que
reconhecer que a vitória da razão passa pela subordinação das forças de produção – homens,
animais, fontes de energia naturais e máquinas – ao mercado. Para que a troca de mercadorias se
tornasse a lei das relações humanas, para que o dinheiro passasse a desempenhar um papel decisivo
no destino dos homens, foi preciso muito tempo, além de muito sangue derramado.

E também muita loucura. A de D. Quixote, por exemplo, o chamado Cavaleiro da Triste


Figura. Imbuído das façanhas dos cavaleiros da Távola Redonda e de outros cavaleiros do Graal, o
fidalgo da Mancha decidiu-se a fazer o mesmo: selou seu Rocinante, ordenou a seu criado, Sancho
Pança, que montasse em sua mula e lá se foi a proteger viúvas e órfãos, para tornar a justiça
respeitada entre os homens. Não sabia – ou não queria saber – que os tempos haviam mudado e que
as ações cavalheirescas já não tinham curso como na época dos heróis de seus romances favoritos.
Por isso, teve de inventar adversários e criar situações dos quais pudesse ser digno – o que teve
como único resultado ser moído de pancada pelos campônios, para quem seus pretensos títulos de
nobreza não tinham qualquer serventia e que não entendiam nada de seus discursos. Na visão deles,
o que tinha valor era a moeda e não a bravura. Com desconcertante naturalidade, D. Quixote começa
por tomar uma estalagem por um castelo e considerar que lhe são devidos casa e comida, “dada a
sua condição”, isto é, os perigos que ele enfrenta ininterruptamente, a vida arriscada que leva, com o
único intuito de defender o direito dos fracos contra a injustiça dos fortes; mas o estalajadeiro tenta
chamá-lo de volta à razão, lembrando-lhe que vive “do dinheiro dele e dos outros”. Mal sagrado
cavaleiro, que enfrenta ele num combate singular? Mercadores – um pequeno grupo de negociantes
que quer levar a admitirem uma verdade impossível de confirmar, como se eles tivessem que tomar a
mais ínfima de suas palavras por moeda sonante.

E eis que logo se lança contra moinhos de vento… Vê gigantes terríveis, de braços
prodigiosos, ali onde qualquer ser humano dotado de bom senso, inclusive seu fiel Sancho, vê apenas
instalações “modernas”, cuja vocação é moer o grão destinado à cidade. Obviamente, D. Quixote
perdeu a razão! A não ser que compreenda perfeitamente bem a significação daquilo. Porque, para
dizer a verdade, de um ponto de vista estritamente feudal, aqueles moinhos são uma
monstruosidade. Que um moinho triture a farinha nas terras de um senhor, que transforme em pó o
trigo cultivado pelos servos deste e que essa operação permita a todo esse mundinho, aos que
cultivam o solo e àquele que os protege, se alimentarem do mesmo pão, que há de mais normal do
que isso? Mas que trinta a quarenta moinhos sejam construídos em série, numa terra que obviamente
não tem nenhum senhor, e que suas asas gigantescas trabalhem para pessoas que moram num burgo
e já não têm o menor respeito pela hierarquia, aí está algo que significa que as coisas estão todas de
pernas para o ar.

Se o herdeiro espiritual dos companheiros do rei Arthur – os Lancelotes do lago e outros


Amadís de Gaula – se lança ao ataque contra esses moinhos, é porque rejeita a idéia de que a
nobreza já esteja ultrapassada. Se solta tamanhos gritos de fúria e crava tão profundamente as
esporas nos flancos de seu pobre rocim, é para conjurar o destino. E, se faz uma triste figura, é por
saber perfeitamente, no fundo, que a batalha está perdida de antemão. Naqueles moinhos existem
moleiros, artesãos que não devem mais nada a ninguém, a não ser aos que estão sempre inventando
novas astúcias para captar melhor as forças do vento, para moer cada vez mais farinha, para produzir
com rapidez cada vez maior, num intervalo de tempo sempre menor e fazendo o trabalhador
despender cada vez menos energia muscular. Entre o moinho e a cidade firmam-se contratos como
manda o figurino, que se traduzem em moeda corrente e sonante. O moinho, outrora voltado para a
terra, que lhe conferia todo o seu sentido, volta-se agora para a cidade, ou seja, para os que têm
dinheiro.

Ou ouro! Cervantes sabia muito bem que a roda da história havia girado e que, como a
inexorável mó de pedra, triturara as façanhas dos bravos. Ele fora prisioneiro dos Estados Barbáricos.
Sabia como a Espanha tinha sido contaminada pela sede de ouro. Claro, a invasão árabe fora
reprimida, mas com que benefício? Os dias da nobreza espanhola, pelo menos de sua liberdade de
ação, estavam contados. A monarquia lhe impunha sua lei e ela a suportava. De senhores onipotentes
da terra os nobres transformaram-se em cortesãos, submetidos ao bel-prazer do monarca. E esse
monarca, que fazia? Governava em prol da prosperidade de seu povo. Chamava-se a isso a grandeza
da Espanha, mas que outra coisa era senão sua riqueza? Quando Isabel de Castela armou as três
naus de Cristóvão Colombo, quem se deixou enganar? Ouro, ouro, era isso que ela queria! Colombo o
encontrou e soltou esta exclamação: “O ouro é uma coisa excelente!”

Terrível confissão. Foi uma exclamação que Cristóvão Colombo soltou com conhecimento de
causa. Naturalmente, seu sucesso lhe permitiu alçar-se ao topo da hierarquia social. Possuir ouro era
dispor do poder de que outros dispunham por nascimento. Mas significava, justamente, que todos os
homens, até os mais bem nascidos, eram-lhe agora devedores de seu poder: “O ouro é coisa
excelente, com ele se constituem tesouros. Quem possui ouro pode fazer no mundo tudo o que lhe
aprouver; com ouro pode-se até levar as almas ao paraíso.” Por não ter alcançado as Índias, Colombo
encontrou menos ouro do que o previsto, mas encontrou o bastante para se “enobrecer” e dar a seus
sucessores o gosto pelas Américas. Falava-se de um país em que a quantidade de ouro era tamanha
que só se podia chamá-lo de Eldorado. Massacrando sem escrúpulos os índios que se recusavam a
lhes confessar onde ficava esse país, os espanhóis, inclusive os mais nobres, ali perderam sua alma,
contrariando o prognóstico de Colombo. Mas o genovês só fez contribuir para um processo inexorável.
Desejando inverter o sentido do comércio com o Levante, ele tivera a “honra” de abrir caminho para
um comércio fabuloso. Mas era preciso passar pelo Poente. A nobreza havia consentido nisso,
curvando-se ainda mais diante de um dos seus, que se curvava cada vez mais perante o ouro. O
bastante para enlouquecer de dor o pobre Quixote.

De Cervantes a Schiller vão-se dois séculos, mas há apenas um passo. Ouçamos, pois,
Amália, a noiva do mais famoso dos bandoleiros, a quem Schiller deu o nome de Karl Moor. A ação se
passa no século 15. Amália clama sua revolta perante o novo mundo: “Pois eis que o mundo está de
pernas para o ar! Os mendigos são reis e os reis são mendigos!” Como o fidalgo da Mancha, Karl Moor
nasceu tarde demais, pois um novo poder domina todos os homens. A nobreza deixou-se corromper:
“Malditos sejais vós, ricos e poderosos, com vosso ouro, vossa prata e vossas jóias!” O único que não
se sujeita ao novo senhor, pelo menos o único que Amália conhece, é o homem a quem ama, Karl
Moor. Ele é pobre, mas não vendeu sua alma. Mesmo vestido de mendigo, sua nobreza natural
transparece. “Eu não trocaria os andrajos com que se cobre pela púrpura das cabeças coroadas”,
clama ela para quem quiser ouvir. “Tão grandioso é o olhar com que ele mendiga, tão nobre”, insiste
a moça, “que aniquila a magnificência, a pompa e os triunfos dos ricos e poderosos.” Pura loucura
essa revolta contra o curso irreversível das coisas! Pura loucura a obstinação de Karl Moor: ei-lo
transformado em salteador. Por terem seus ancestrais recebido pessoalmente de Frederico Barba
Roxa suas terras e seus títulos de nobreza, Karl prefere colocar-se fora da lei a se curvar à nova
ordem. Para sobreviver, assalta os ricos e, abrigado em seu esconderijo inexpugnável, mergulha sem
esperança num impasse. Perseguido por todos e traído por seu irmão Franz, que se passou para o
lado dos vencedores, exclama: “As leis do mundo já não passam de um jogo de dados, rompeu-se o
elo da natureza, a ancestral discórdia desencadeou-se, o filho matou seu pai…” Está acabado! A sorte
está lançada. Os nobres submeteram-se aos mercadores. “O mundo inteiro desmorona.” A ver sua
noiva cair em mãos ignóbeis, antes matá-la com as próprias mãos. Enlouquecido de dor, Karl Moor já
não deseja senão adormecer “o doce sono da morte”.

Loucura na Espanha, loucura na Alemanha: é o inverso da vitória da lei do lucro na época do


Renascimento. Pois então, esfreguemos os olhos com empenho, pois, se assim é, se a “vitória do
pensamento” é, antes de tudo, a da revolução mercantil, resta-nos ainda saber o essencial: em que
momento nos encontramos.

Dois séculos depois das promessas feitas por Adam Smith, que proclamou a boa nova da
prosperidade para todos sob o império da lei do lucro, é possível continuarmos otimistas? A revolução
mercantil seguiu seu curso; terá ela espalhado seus benefícios, como se previra, por toda a superfície
do planeta? Alguns afirmam que sim, exibindo sem pestanejar uma confiança inabalável na evolução
do mercado mundial. Em nosso fim de século 20, o balanço, na visão deles, é “globalmente positivo”.
A espécie humana atingiu um estágio de desenvolvimento ímpar em sua história: a produtividade do
trabalho humano nunca foi tão alta, a vida humana nunca foi tão longa, a instrução nunca foi tão
generalizada, a higiene, tão difundida. Em suma, o gênero humano nunca se saiu tão bem. Como não
nos rejubilarmos com esse progresso? Sem falar em todas as inovações que decorrem dele e que
vemos despontarem na aurora do terceiro milênio, na utilização das fontes de energia, na
transformação dos materiais, no transporte de mercadorias e na transmissão de informações em
benefício de uma humanidade cada vez mais homogênea e mais inventiva.
Certo, admitem eles, ainda existem disparidades! Dos seis bilhões de seres humanos que
hoje povoam o planeta, a maioria vive na miséria, lá nos inúmeros países do sul onde o poder de
compra ainda é irrisório, enquanto a população passa por um intenso crescimento, a precariedade da
vida rural impele milhões de seres humanos para as cidades, num ritmo tal que eles se descobrem
presos na armadilha de condições amiúde ainda piores, sem higiene, sem alimento suficiente e sem
trabalho, trazendo ao mundo um número excessivo de filhos, os quais ficam entregues a toda sorte
de tráficos, seja o das drogas, seja o do corpo, seja até o de seus órgãos. Essa realidade é ainda mais
acabrunhante na medida em que, diante dessa miséria assustadora, os países do norte consomem
demais, produzem demais e às vezes até obtêm lucros demais. Não há nenhuma razão para
apresentar a Terra como um paraíso, reconhecem essas pessoas. Mas isso também não é razão, na
opinião delas, para apresentar o mundo moderno como um inferno e continuar a crer que a maioria
dos homens está fadada à maldição. Acima de tudo, a situação atual não é muito diferente da que a
própria Europa conheceu desde seu Renascimento.

Ouçamos por mais um instante esse discurso.

“Fortemente hierarquizada durante a era feudal”, dão a entender os herdeiros de Adam


Smith, “a sociedade ocidental só se tornou igualitária, ipso facto, ao se submeter à lei do mercado. O
descrédito dos privilégios da aristocracia, sob o efeito do poder do dinheiro, não provocou o
desaparecimento das disparidades sociais. Frente aos novos-ricos, vimos proliferarem nos povoados
novos pobres, expulsos pela precariedade da vida no campo e atraídos pelo aumento do comércio.
Após a invenção da máquina a vapor, a revolução industrial concentrou as massas trabalhadoras nas
fábricas e minas e, enquanto uma ínfima minoria de favorecidos viu-se locupletada de bens, a miséria
atraiu para um poço sem fundo milhões de homens que só dispunham de sua força de trabalho para
vender. Além disso, nem todos os povos entraram na roda no mesmo ritmo: o capitalismo industrial
começou a se impor na Inglaterra, conquistando em seguida a França e depois a Alemanha, mas
ainda deixando para trás nações que haviam desempenhado um papel eminente na revolução
comercial, como a Espanha e a Itália…

“Pois bem, de lá para cá, não é evidente que essas disparidades desapareceram, que todas
as camadas da sociedade e todas as nações da Europa superaram essa prova? Que o mais difícil já foi
feito? E, por conseguinte, não convirá considerarmos o que hoje observamos em escala planetária à
luz dessa experiência? Decerto haveria uma solução muito simples: uma vez que os países ricos
dispõem de um excesso de mercadorias e capitais e que os países pobres não os têm em quantidade
suficiente, bastaria que uns dessem aos outros aquilo que têm em excesso para que tudo se
ajeitasse.”

“Mas é claro que, embora a humanidade pudesse beneficiar-se momentaneamente dessa


operação, isso não seria viável em longo prazo, uma vez que aconteceria em detrimento da lei do
lucro pessoal e, por conseguinte, do esforço necessário para inovar. Por isso, é preferível emprestar
capitais aos países pobres para que estes comprem dos países ricos sua superprodução e diminuir a
quantidade de mercadorias que estes últimos produzem, pelo menos enquanto o poder de compra dos
primeiros não for suficiente para absorver tudo. Isso nada tem de ideal, não tem nenhum efeito
mágico, mas, pelo menos, é realista e segue a linha dos remédios que permitiram aos países ricos
conseguir cruzar o abismo que se cavara entre eles, em seu próprio seio.”

Há quem pense assim nas altas esferas. Ainda existem adeptos fiéis de Adam Smith nos
postos de comando, pessoas que, sem fechar os olhos para a realidade, não perdem o sangue-frio e,
ao contrário de um bom número de intelectuais, enlouquecidos pelos sintomas de decadência de sua
cultura, encaram de frente as verdadeiras calamidades da época atual, mantendo-se otimistas. O fato
de que o “regime” que elas preconizam conduz a uma exacerbação da concorrência entre os “países
ricos”, de que a concorrência provoca nestes um crescimento irreversível do desemprego, da dívida
pública e do consumo de drogas, de que isso exacerba a tensão entre o norte e o sul do planeta, de
que o pagamento da dívida e a explosão da demografia obrigam os países pobres a produzir
quantidades crescentes de narcóticos e a destruir o tapete vegetal do planeta, nada disso faz essas
pessoas perderem a calma, pois lhes basta voltar um pouco os olhos para trás para terem certeza de
que o capitalismo sempre soube encontrar meios de superar suas crises.

Resta saber se elas sabem o que estão dizendo. O pessimismo dos profetas da barbárie
fundamenta-se num ponto de vista geocêntrico, segundo o qual as luzes do espírito, a exemplo do
astro solar, descrevem uma curva no céu da civilização: depois da alva vêm a aurora, o meio-dia, o
crepúsculo e, por fim, a noite. É impossível avalizar essas jeremiadas, uma vez que elas repousam em
aparências e não na realidade. Mas porventura é mais confiável o otimismo daqueles que conservam a
fé no modelo inaugurado pela civilização ocidental? É claro, esses senhores não se deixam enganar
pelas aparências: sabem que não é na esfera do espírito, mas na das relações comerciais, que se joga
o futuro, assim como o passado. Mas isso também não implica que se confie neles, pois eles não
vêem para onde o modelo certo os está levando. Com efeito, não é por ser ilusório o movimento do
Sol que a Terra não se move; ao contrário: é justamente por ela se mover que o Sol parece levantar-
se, descrever sua curva diurna sobre nossas cabeças e enfim se pôr; assim, é bem possível que a
revolução mercantil já esteja ultrapassada e que o mundo moderno, continuando a girar em torno do
eixo dela, mergulhe inexoravelmente nas trevas.

Talvez digam que, se a questão é saber como anda essa rotação, a resposta decerto não
competirá à filosofia, definitivamente fora de combate, tão complexa tornou-se a situação. Que, em
se tratando de compreender para que mundo estamos indo, mais vale apostar nas novas ciências,
como a prospectiva ou a futurologia, que começam a ganhar renome. Que, se as ciências humanas se
mostram deficientes, é pelo fato de cada uma ter a pretensão de fornecer a análise certa, quando
todas deveriam colaborar, levando em conta o ineditismo da situação. Que se impõe uma
interdisciplinaridade que englobe todas as vertentes, que é preciso inclusive acabar com o abismo que
separa as chamadas ciências “humanas” das ciências da natureza, e que já existe uma teoria recente,
a teoria do caos, passível de estabelecer uma ponte muito eficaz entre o mundo das partículas
elementares da física e o dos agentes econômicos. Eis a abordagem certa do futuro! Uma abordagem
muito mais indicada do que o retorno à filosofia, cujo exercício, na melhor das hipóteses, nos faria
retroceder a dois mil e quinhentos anos atrás…

É até uma questão de bom senso! Entretanto, vimos de que serviu o bom senso na
compreensão do passado. Veremos agora que, para compreender o que nos espera, teríamos tudo a
ganhar se, justamente, recuássemos dois mil e quinhentos anos – por mais absurdo que isso pareça…
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

II
O nascimento do demos

Adquiriu-se o hábito, ao evocar os gregos da Antiguidade, de considerar que eles


desprezavam o comércio, o dinheiro e o trabalho, e isso basta, por si só, para nos impedir, de um
modo geral, de comparar a situação deles com a nossa. “Comparar” no sentido banal do termo:
“identificar”. Proibimo-nos de “comparar” o mundo moderno com o mundo grego porque, entre os
gregos, o comércio era coisa dos metecos, o dinheiro não tinha grande importância em sua opinião e
os cidadãos não trabalhavam, enquanto entre nós ocorre o inverso. Para eles, segundo se acredita,
entregar-se a tais atividades era uma decadência. Para nós, sem comércio, sem dinheiro e sem
trabalho não há meio de alcançar o bem-estar, a prosperidade – e a dignidade, pois não ter um
emprego bem remunerado é estragar a probabilidade de chegar à abastança e ver-se excluído do
mercado de trabalho é perder a própria dignidade.

Essa diferença autoriza o homem culto de hoje a prevenir os ignorantes contra qualquer
identificação entre a situação dos cidadãos gregos e a nossa. É claro, admite-se que foram os gregos
que inventaram a democracia e que foram eles que deram ao povo os meios de se governar, embora
apenas uma minoria dos cidadãos se beneficiasse disso, aquela que constituía o “povo”; em Atenas,
por exemplo, na época de Platão, de cada 300 mil habitantes, apenas 30 mil eram considerados
atenienses de origem e dispunham do direito de cidadania; os demais eram estrangeiros – os famosos
“metecos” – e depois vinha a massa dos escravos. Finalmente, há quem se compraza em dizer que,
dado que a grande maioria dos que viviam sob o sol ateniense era desprovida de direitos, os cidadãos
gregos constituíam uma espécie de aristocracia.

Isso é um enorme mal-entendido. Há uma confusão nos termos e nos períodos. Quando
qualificamos de elite a população “livre” de Atenas – o demos -, comparando-o à massa, e quando
nos deixamos levar a classificá-la de aristocracia, não percebemos que a democracia foi um processo
histórico ao longo do qual o povo, ou seja, “a plebe”, obrigou a nobreza grega, a “aristocracia
consangüínea”, a dos eupátridas, a renunciar a seus privilégios e compartir seu poder. Com todo o
respeito que possamos dever à cultura dos homens de bem, convém, de qualquer modo, denunciar a
tendência a enfatizar as diferenças em detrimento das semelhanças. É verdade que essa cultura se
apóia em trabalhos eruditos, abalizados, e que muitos historiadores de ofício se comprazem em isolar
o campo de suas investigações em nome de sua “especificidade” e inevitavelmente alimentam essa
velhíssima tendência dos homens modernos a se convencerem de que na Antiguidade “não era
assim”…

Mas não convém tomar como dinheiro sonante as afirmações dos profissionais da área. Tudo
é específico. Nada é mais fácil do que evocar as diferenças entre a democracia grega e a nossa para
mostrar que elas não têm “nada em comum”. Ora, elas têm muito em comum. Por exemplo, é notável
constatar a identidade de sua gênese – por menor que seja o recuo adotado. Em ambos os casos, o
período democrático sucedeu a um período aristocrático, que podemos qualificar de “feudal”, o qual,
por sua vez, proveio de um período de grandes invasões: na Grécia, os conquistadores levavam o
nome de dórios; provinham das hordas indo-germânicas, como os germânicos que invadiram o
Ocidente cerca de dois mil anos depois. À conquista germânica, prelúdio de nossa Idade Média,
corresponde a conquista dórica, que permite falar de uma “Idade Média grega”. Na Grécia como no
Ocidente, nasceu desse período conturbado e cruel uma aristocracia guerreira, que aos poucos fez
emergir uma ordem na desordem: a ordem feudal, onde o senhor protege os servos que o alimentam.
E foi justamente da desarticulação desse sistema que nasceu a democracia.

Tal analogia já não é “aceitável” atualmente, uma vez que repousa num procedimento
anticientífico: não se esclarece o passado através do presente sem fazer “projeções” e, portanto, sem
promover deturpações, como fez Fustel de Coulanges há pouco mais de um século… Todavia, parece-
me que isso constitui um erro, pois nos privamos de um esquema sólido que permite nos orientarmos
convenientemente. Partir da gênese do mundo moderno para esclarecer a da Antiguidade grega
permite aproximações luminosas, mesmo que não deixem de ter riscos. Pois que se releia A cidade
antiga! Que sigamos sua pista por um momento. Podemos fazê-lo com toda a serenidade, já que
Fustel foi o primeiro a nos advertir contra a identificação da democracia grega com a democracia
moderna. Não obstante, isso não o impediu de captar com mão firme a similitude da gênese das
duas. “Há uma certa analogia entre o cliente das épocas antigas e o servo da Idade Média”, propõe
Fustel. “No cliente e no servo a subordinação é a mesma; um está tão ligado a seu patrono quanto o
outro a seu senhor; o cliente tem tão pouca possibilidade de deixar a criadagem quanto o servo pode
sair da gleba. Tanto o cliente quanto o servo permanecem submetidos a um senhor, de geração em
geração.” Em troca de sua servidão, o “cliente” se beneficia, é claro, da proteção permanente do seu
“patrono”, exatamente como no curso de nossa Idade Média. Ora, tal como no nosso Renascimento, o
desenvolvimento das forças produtivas sob o efeito da intensificação do comércio transformaria essas
relações humanas fundamentadas na prestação de serviços: “A classe inferior aos poucos vai
crescendo. Há avanços que se realizam de modo obscuro e transformam uma sociedade.” Assim,
aproximamo-nos da revolução mercantil: “A indústria e o comércio tornaram-se necessários. Formou-
se, pouco a pouco, uma riqueza mobiliária; cunharam-se moedas; surgiu o dinheiro. Ora, o
aparecimento do dinheiro foi uma grande revolução. O dinheiro não estava sujeito às mesmas
condições que a posse da terra.” Portanto, eis o povo grego prestes a conceber o mundo… de maneira
heliocêntrica.

Então, como nasceu o demos? Através da emancipação progressiva dos criados. E como se
deu essa emancipação? Em virtude do dinheiro: “Ele podia passar de mão em mão, sem nenhuma
formalidade religiosa, e chegar sem obstáculos ao plebeu. A religião, que imprimira no solo sua
marca, não tinha poder algum sobre o dinheiro.” Assim, tal como no alvorecer dos tempos modernos,
homens do povo elevaram-se até o nível dos nobres: “Logo começou a haver ricos entre eles. Que
novidade singular! Até então, os patronos dos clientes eram os únicos que podiam ser proprietários e
eis que surgiam ex-clientes ou plebeus ricos e que exibiam sua opulência.” Aos poucos, os senhores
foram cedendo terras àqueles que as trabalhavam: “De quanto tempo e esforço eles precisaram para
chegar a isso só podemos conjecturar. Talvez haja ocorrido na Antiguidade a mesma sucessão de
mudanças sociais que a Europa viu se produzirem na Idade Média, quando os escravos do campo
tornaram-se servos da gleba, estes, de servos sujeitos à talha e à corvéia, transformaram-se em
servos libertos e, por fim, no correr do tempo, em proprietários rurais.” Como no Ocidente, a
emancipação dos servos da Antiguidade passou pelo dinheiro; foi a monetarização da corvéia e dos
tributos que aos poucos lhes permitiu comprarem sua liberdade. Em outras palavras, foi o
ressurgimento das trocas comerciais que favoreceu o nascimento de uma plebe autônoma e a
derrubada progressiva do feudalismo grego.

Quase não se valoriza esse esquema atualmente, embora ele funcione muito bem. Por que
haveríamos de nos privar dele? Aproximamo-nos do desconhecido a partir do conhecido, para avaliar
identidades e diferenças. O renascimento do comércio desempenhou um papel decisivo na Europa;
podemos supor que o mesmo tenha sucedido na Antiguidade. As grandes invasões tinham
interrompido as trocas de mercadorias. Restabelecendo a ordem, os conquistadores permitiram que
os negócios dos comerciantes retomassem seu curso. Ao pé dos castelos fortificados, nos vales, nos
rios e ao longo dos litorais, o comércio readquiriu vida. A moeda, meio de troca por excelência,
ressurgiu em massa. Acumulou-se nos alforjes dos mercadores. Uma lição para a nobreza! Para
adquirir bens, a aristocracia guerreira só conhecia a apropriação direta, o butim arrancado aos
vencidos. Os comerciantes faziam melhor: não roubavam os bens de terceiros, trocavam mercadorias
– e tiravam lucro disso. A aristocracia deixou-se contaminar pela sede de riquezas: em pouco tempo,
passou a preferir que seus servos pagassem suas obrigações em moeda e não em tempo de trabalho.
E foi assim que cavou sua sepultura. É que, substituindo o tempo de trabalho por moeda, o camponês
libertou-se das obrigações que tinha para com o senhor feudal. E foi a classe dos comerciantes que
aos poucos impôs sua lei. Já não era mais o dono da terra, mas o possuidor de ouro que dispunha da
verdadeira fonte da prosperidade. Assim, do solo e de seu cultivo, o centro de gravidade do corpo
social deslocou-se para o mercado e a cidade. E foi em torno do ouro que passaram a gravitar todas
as classes da sociedade – acabara-se o tempo dos heróis.

Daí a cólera de Aquiles na Ilíada. Pois Aquiles adivinha esse destino fatal. Sem dúvida, isso
não é evidente. Assim, proponho uma breve releitura. Aquiles terá vida breve e sabe disso, mas será
uma vida gloriosa. Filho de Peleu, de ilustre linhagem, sabe que morrerá diante das portas de Tróia,
mas sabe também que sem ele a cidade não será tomada, pois é defendida por Heitor, a quem
somente ele pode vencer em combate. Se Aquiles concorda em morrer na flor da idade, é porque sua
bravura será celebrada em toda a Grécia e transporá os limites do tempo e ele passará à posteridade
como o mais forte de todos os guerreiros que a Terra já abrigou. No entanto, nas fileiras aquéias não
faltam homens valentes e reis. Aquiles está em boa companhia, a começar por Agamêmnon, rei dos
reis, “protetor de seu povo”, aquele que tem por missão reconduzir Helena ao lar, em Esparta, a
qualquer preço, e que comanda todo o exército dos helenos. Esparta, onde reina seu irmão Menelau,
humilhado pelo belo Páris (que lhe raptou a esposa), mas soberano poderoso. Há também os dois
Ajax, cuja força faz lembrar a de Hércules, o rei de Ítaca, o famoso Ulisses de mil artifícios, e ainda
muitos outros heróis. Em suma, toda a nobreza aquéia está ali, com seus cavalos, seus carros e seus
inúmeros soldados.

Mas eis que Aquiles se aborrece. A ponto de se recusar a combater e se recolher a sua
tenda! Isso é o que motiva todo o poema da Ilíada. A ação começa após nove anos de guerra. Até
então, os troianos vêm resistindo. Os gregos têm de fazer saques nas redondezas para atender a suas
necessidades e manter o sítio. Às vezes, porém, perdem a paciência e são muitos os que aspiram a
voltar. Afinal, que brincadeira estão os deuses fazendo com eles? Prometeram-lhes a vitória, mas não
terão zombado de sua credulidade? Pouco falta para os soldados desanimarem: um novo ataque
desferido em vão, uma investida audaciosa dos sitiados, um mau presságio revelado pelo adivinho
Calcas, uma discórdia nascida entre os comandantes… E eis que Aquiles renuncia ao combate, retira
seus mirmídones da luta e se mantém obstinadamente afastado! Aquiles, o mais forte de todos os
guerreiros, aquele com quem se conta para derrotar o grande Heitor, de quem todos os gregos têm
medo e fogem. Não irá o curso dos acontecimentos se inverter? Sem Aquiles, de que adianta entrar
em combate? Aliás, isso se comprova bem depressa. A derrota vem sancionar os ataques desferidos
por Agamêmnon sem o filho de Peleu. Nem mesmo o rei dos reis agüenta mais e, ainda por cima,
sofre um ferimento. Súbito, o medo muda de campo. Homero faz nascer o suspense…
Resta saber por que Aquiles se aborrece. Constata-se que é a história de um butim. Talvez
haja quem ache que isso tem pouca importância, que é um artifício de poeta e que não merece que
nos detenhamos. Duvido. Retomemos os fatos. O conselho dos aqueus está reunido porque um
terrível flagelo abateu-se sobre o exército: Apolo, com seus dardos envenenados (a peste), vem
dizimando as fileiras de guerreiros. Consultado, o adivinho revela que o deus exige que se faça justiça
a um de seus sacerdotes, cuja filha, Criseís, foi raptada numa das últimas pilhagens a que os helenos
se entregaram. Agamêmnon fica sumamente mortificado, pois foi ele quem reservou essa virgem para
si. Ela faz parte de sua parcela dos despojos, a que lhe cabe por direito em qualquer operação desse
tipo. O conselho fica embaraçado. Somente Aquiles dispõe-se a definir a questão: que o rei devolva
ao sacerdote sua filha! Que há de mais simples? Porém Agamêmnon não lhe dá ouvidos. Está
interessado em Criseís e não se dispõe a deixá-la partir de novo – a não ser em troca de uma
“parcela” equivalente. E, uma vez que Aquiles está tão decidido a aplacar o deus, não há de se opor a
doar a sua parte. De fato, sucede que, como muitos outros bravos, Aquiles também tem uma jovem
em seu butim. A dele se chama Briseís. Basta que a ceda ao rei dos reis e o assunto estará resolvido!

O plano de Agamêmnon deixa Aquiles fora de si. Não apenas ele recusa, pois também faz
questão de sua parte do butim, como acusa o rei de ser um aproveitador. Briseís foi conquistada por
ele, Aquiles, durante a invasão do território inimigo, enquanto Agamêmnon se contentara em receber
Criseís quando os guerreiros retornaram para o acampamento. “Alma despida de pejo, que só de
interesse se ocupa!”, exclama ele com ímpeto. E acrescenta de imediato: “A parte mais dura dos
prélios sangrentos a estes meus braços compete, mas, quando se passa à partilha, sempre o quinhão
mais valioso te cabe.” Nem pensar em ceder Briseís! Agamêmnon, mesmo sem Criseís, conserva uma
parte dos despojos maior que a de todos, embora nem sequer participe das expedições! É hora de
denunciar essa aberração, que em nada corresponde à lei aquéia. Todos os reis têm direitos iguais,
pois todos têm ascendência divina. Se Agamêmnon dispõe do cetro, é com o assentimento do
Conselho. Essa decisão é conjuntural: na guerra, é preciso haver um chefe. Mas é também preciso
que o chefe mereça a estima de seus pares; ora, essa avidez a compromete. Para Aquiles, isso é um
mau sinal, que corrói insidiosamente a tropa: “Como é possível que algum dos aqueus a teu mando
obedeça?”, conclui. Falando claramente: que o rei caia em si e seja digno de comandar, parando de
tirar proveito da bravura de seus companheiros, pois não é para ele que estes combatem e sim com
ele…

Portanto, Aquiles tende a apresentar a intervenção de Apolo como um chamamento à ordem,


em prol do bem-estar da casta dos guerreiros: os nobres não têm de se submeter a um chefe e esse
chefe não deve tornar-se cúpido. Sem isso, outro líder é que se imporá a todos. O butim, afinal, é
apenas um estímulo. Que importam, no fundo, os objetos de luxo, que importa o dinheiro, que
importa o ouro? Eles são troféus, provas de coragem, de valentia, de vigor no combate. Se a sede do
butim triunfar sobre a bravura, ele passará de um móbil que incita às façanhas a centro das cobiças e
dará margem à covardia. Pois o mais rico não será o mais corajoso e sim o mais ardiloso. Este se
manterá afastado, saberá poupar-se no combate e colherá os frutos do ardor dos demais. A eqüidade
será atacada e a conquista de riquezas prevalecerá sobre a da glória. Em última instância, acabará a
verdadeira nobreza, aquela que só guerreia pela honra e que, no fundo, despreza os bens materiais.
Se Agamêmnon quiser arrancar Briseís de Aquiles, para levá-la como a Criseís para seu leito, não será
apenas para com Aquiles que se revelará injusto, mas para com toda a nobreza guerreira.

Agamêmnon não percebe, nesse instante, o pivô da acusação que Aquiles lhe faz. Para se
defender, apóia-se nos excessos de bravura de Aquiles e tenta desacreditá-lo através disso: “És, dos
monarcas alunos de Zeus, aquele a quem mais ódio tenho. Sempre encontraste prazer em contendas,
combates e lutas. Se de robusto te orgulhas, porém, é de um deus que tua força é presente.” Em
outras palavras, Aquiles se excede e não tem nenhum mérito em ser bravo, já que este é seu destino.
Essa réplica é sumamente perigosa, pois se aplica a todos os reis gregos. Todos provieram de uma
linhagem divina e todos recebem seu poder dos deuses. Se a bravura é desprovida de mérito por ser
um dom do Olimpo, que rei merece governar? Ao censurar Aquiles por seu ardor no combate, por sua
sede de se bater com o adversário de armas em punho, Agamêmnon envereda por um caminho que
compromete a ordem da qual ele proveio. Para justificar seu abuso do poder, ele amplia a fenda em
que logo poderá precipitar-se qualquer revés do “acaso”. Em última instância, não será necessário ser
bravo para reinar, nem, por conseguinte, ser nobre. Para se tornar “protetor do povo” nem sequer
será preciso ser “rei”: bastará, um dia, ser “rico”.

A partir daí, os deuses são transformados em juízes. De Aquiles e de Agamêmnon, um dos


quais é menos digno de sua posição do que o outro. Valerá mais a pena ser tentado pelo excesso de
riqueza do que pelo excesso de belicosidade, como sugere o rei dos reis, ou será que só se deve
julgar a vida digna de ser vivida de armas em punho? Sede de riqueza ou sede de glória, uma dessas
duas paixões deve prevalecer sobre a outra. Mas qual? O poema dá a resposta. Os deuses dão seu
veredicto. De momento, é Agamêmnon quem parece vencer. Quando Aquiles se prepara para erguer
seu gládio para atingi-lo, Atena, que desceu do Olimpo em grande velocidade, detém-lhe o braço e
consegue acalmá-lo com estas palavras aladas: “Para acalmar-te o furor, tão-somente, ora venho do
alto Olimpo; para que me atendas, enviada por Hera, a de braços muito alvos, que por igual a ambos
preza e que dos dois, cuidadosa, se ocupa. Vamos, refreia tua cólera, deixa em repouso essa espada.
Mas, quanto o queiras, com termos violentos cobre-o de injúrias. Ora te digo com toda a clareza o
que vai realizar-se: prêmios três vezes mais belos virás muito em breve a alcançar, por esse insulto
de agora. Contém-te, portanto, e obedece.” Aquiles obedece à ordem da deusa. Retira-se do
Conselho, para grande alívio de todos. Retorna a sua barraca, levando a morte na alma e fazendo um
esforço sobre-humano para aceitar que lhe retirem Briseís.

Para Agamêmnon, tudo volta a seu lugar. Ele liberta sua virgem e manda buscar a de
Aquiles. Apolo repõe seus dardos cruéis na aljava. O rei dos reis julga poder triunfar. Que erro!
Quantas humilhações o esperam! A Ilíada é a descrição paciente desse revés. Em pouco tempo, ele
porá em perigo os navios de sua armada, aquelas naus velozes que deveriam assegurar-lhe um
retorno glorioso, e assim comprometerá o desfecho de um sítio que já dura nove anos. Pois Zeus o
leva a crer, em sonho, que a ofensiva é oportuna. E ele vê nisso uma boa oportunidade de dar uma
lição a Aquiles, mostrando-lhe que os helenos não precisam dele, e que ele pode ficar “amuado” em
seu canto. Então, Agamêmnon lança a ofensiva. Mas Zeus, que queria apanhá-lo na armadilha,
concede aos troianos tamanho ímpeto que, não satisfeitos em semear a derrota no campo dos
aqueus, chegam até as naus dos invasores, prontamente incendiadas…

Compreendendo aos poucos seu erro, Agamêmnon suplica então a Aquiles que retome o
combate. Mas terá que beber seu cálice até o fim. Aquiles tão cedo não se erguerá. Indiferente às
súplicas do rei e até ao desastre em seu próprio campo, murado em sua reprovação, o filho de Peleu
esperará até o limite último para sair de seu torpor. Será preciso que Pátroclo, seu mais fiel
companheiro, encontre a morte em combate, sob os golpes de Heitor (que julga estar enfrentando
Aquiles, pois Pátroclo carregava as armas deste), para que Aquiles ponha fim a sua greve. Dura lição
para o rei dos reis! O trunfo com que pensara rebaixar o soberbo Aquiles voltou-se contra ele: se só
se é grande com os deuses, somos muito pequenos sem eles. Sem a intervenção de Aquiles, estaria
acabada a glória aquéia. Cabe a Agamêmnon humilhar-se, por sua vez, ainda que seja sob seu
“comando” que se cumprirão as sentenças do destino. Aquiles matará Heitor antes de encontrar sua
própria morte. Privada de sua melhor defesa, Tróia entregará os pontos, deixando-se tapear por um
ardil do sutil Ulisses. Mas de que glória poderá o “protetor de seu povo” retirar algum orgulho? Se
tiver suficiente lucidez, terá de admitir que errou. No conflito que o opôs a Aquiles, não ficou do lado
certo.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

III
O nascimento do logos

Se levarmos em conta a agitação provocada pelo surgimento da moeda na história da Grécia


antiga, veremos que a Ilíada assume uma dimensão dramática que ultrapassa em muito o destino da
luta entre os aqueus e os troianos. Para além do suspense organizado pelo poeta, joga-se o destino
da nobreza guerreira – e o de seus protegidos. Como um prelúdio ao advento do poder do demos na
Grécia, essa epopéia utiliza as forças que determinam o destino dos senhores da terra: a honra e a
cobiça. Essas duas forças entraram em conflito. No devido tempo, o desfecho será fatal. Sob o
impulso dos negociantes, as cidades se organizarão em torno da praça do mercado, a plebe irá
proliferar e a multiplicação das tarefas artesanais dará aos camponeses que vegetaram no campo um
ganha-pão autônomo. Alguns até se tornarão hoplitas: serão guerreiros sem montaria e aprenderão o
ofício da guerra para defender a cidade, conquanto isso desagrade àqueles de quem esse sempre foi o
papel e o privilégio. Então, despojada de suas terras, a aristocracia não mais poderá justificar sua
dominação. E só restará aos descendentes da nobreza fundiária a amargura da derrota.

Quando a Ilíada era cantada pelos aedos, decerto isso só tinha por intuito, a exemplo das
apresentações de nossos trovadores, distrair a própria nobreza, narrando as façanhas de ancestrais
fabulosos que remontavam a um passado já distante. Mas, incessantemente enriquecida por novas
improvisações, quem sabe se essa epopéia não terá acabado por refletir a realidade do momento?
Posso perfeitamente imaginar um poeta épico a fazer de seu canto uma advertência e dizer a seus
ouvintes que eles estão agindo como Agamêmnon. Sim, imagino um Homero lúcido ou inspirado o
bastante para advertir os “senhores” do que os esperava caso eles se deixassem seduzir pela atração
do ouro. Se é que Homero existiu e que a ele devemos a versão atual do imenso poema que é a
Ilíada, ele teria nascido numa das ilhas próximas do litoral onde se localiza Tróia. Passaram-se muitos
séculos desde a famosa guerra, porém muito poucos a separam do império do demos. O progresso
ainda era “obscuro”, mas estava efetivamente em curso e em pouco tempo se revelaria às claras.
Dizem que Homero era cego. Talvez pressentisse ainda melhor o destino dos senhores, a ponto de dar
a um ciclo lendário, transmitido desde tempos imemoriais, uma dimensão visionária. Ou quereria ele
frear o curso do tempo?
Como quer que fosse, de nada adiantou. Aquela terra, transmitida desde longa data pela via
consangüínea, passando de um senhor para seus descendentes, aos poucos encontraria outros
senhores. A princípio, aqueles que a trabalhavam, como sugeriu Fustel, evocando o novo estatuto do
“cliente”: “Ele não mais cultiva para o Patrono, mas para si mesmo. Sob a condição do pagamento de
uma taxa [o que equivale a dizer que o dinheiro circula], ele usufrui a colheita. Seu suor, portanto,
encontra uma certa recompensa, e sua vida é a um tempo mais livre e mais orgulhosa.” E, à medida
que o camponês se emancipava, que alguns membros da plebe atingiam a opulência, que surgiam
novos ricos, que a terra se tornava móvel e que a história girava em torno de seu eixo, a situação
inverteu-se a tal ponto que – novidade igualmente incrível – alguns nobres empobreceram: “O luxo
que enriquecia o homem do povo empobrecia o eupátrida; em muitas cidades, especialmente em
Atenas, viu-se parte dos membros do corpo aristocrático ficar na miséria.” Decadência de um corpo
celeste, que outrora passara por divino! Como a Lua declinando quando o Sol aparece, eis que a
nobreza grega, que antes assegurava em todo o seu esplendor a proteção de seu “povo”, começou a
viver à sombra dele…

Eis uma coisa que dava o que pensar! “Como é possível isso”, indagava-se aqui e ali. Que
força era aquela que não se via claramente em ação e que assim zombava dos poderosos? Que
faziam os deuses nesse meio tempo? Como puderam deixar que sucedesse tal coisa? Teriam dormido
demais? Teriam sido embriagados? Teriam ingerido alguma droga? Então, os descendentes de seus
descendentes ficavam sem saber o que fazer, a dois passos do Olimpo, sem lhes receber o auxílio?
Não ouviam eles um dos seus clamar: “Os que outrora não conheciam direito nem lei, bons apenas
para se embrulhar em suas peles de cabra e pastar fora da cidade como cervos, são agora os bons;
os homens de bem de outrora estão transformados em gentalha. Quem pode suportar esse
espetáculo?” Essa é a voz de Teógnis. Sabemos que ele nasceu em Mégara, na época das Guerras
Médicas, isto é, na passagem do século 6 para o século 5 antes de nossa era. Tratava-se de um
membro da aristocracia, despojado de seus bens por uma insurreição popular e que teve de se
refugiar no exílio. Era um inimigo ferrenho do poder do demos, porém reduzido a gritar sua revolta
em versos e a pedir contas aos deuses, ou seja, reduzido à impotência.

Da coletânea de seus poemas os gregos retiraram inúmeras máximas “edificantes”: das


Elegias, repletas de rancor, cólera, raiva e desespero, fez-se um manual para aulas de moral (pondo
cuidadosamente entre parênteses seus elogios à embriaguez e aos prazeres do sexo, que ficaram
reservados para os banquetes dos adultos). Que ironia da história! Quando Teógnis declara que “é
esforço inútil obsequiar os maus, seria o mesmo que semear campos no deserto”, já não sabemos
quem são para ele os maus. Ora, os maus são os kakoi, aqueles que têm a alma negra – mas, afinal,
por que têm eles a alma negra? Têm a alma negra porque sua vida é medíocre, obscura, mesquinha,
porque são medrosos, covardes e vivem ao rés do chão, porque passam pela vida como sombras
furtivas, porque nunca erguem os olhos para os esplendores do céu, porque fazem contas, calculam,
agem por interesse, porque têm medo da morte, do que os espera no Hades, sem ver que já se
encontram nele, porque não têm honradez e porque para eles só importam as riquezas, porque não
têm outro deus senão Pluto, o mais negro dos deuses, o da fortuna. Pluto é o deus dos ricos, daqueles
que vendem pai e mãe para saciar sua sede de ouro, dispostos a qualquer crime, a qualquer
corrupção, desde que lhes traga lucros: a antítese dos aristoi, dos “bons”, ou antes, dos “melhores”.
Se é um esforço inútil querer fazer bons dos “maus”, é porque eles foram cegados pelo ouro.

A sorte, portanto, está lançada. Teógnis não terá ganho de causa. Os bons tempos não vão
voltar. Os filhos dos deuses perderão seu poder. Mas quem decide dessa maneira? Quem, a não ser
os deuses? Não são os “bons” castigados pelos erros de seus antepassados? Porventura eles mesmos
não traíram sua casta ao se deixarem seduzir por Pluto? Em suas fileiras, não têm muitos deles a
alma negra? Quando a Fortuna sorri para outros, não é porque Zeus assim o quer? Quem sabe, no
fundo, o que quer Zeus? Para cada Teógnis que se queixa, quantos sábios se regozijam? Assim, Sólon
em pessoa teria outrora composto um hino em homenagem às novas classes. A acreditarmos na
tradição, foi ele quem começou a inverter a ordem social. Mas, como teria podido fazê-lo sem a ajuda
de uma potência divina? “Foi uma obra inesperada”, exclama ele, “realizei-a com o auxílio dos deuses.
Tomo por testemunha a deusa mãe, a Terra negra, de quem em muitos locais arranquei os marcos, a
terra que era escrava e que hoje é livre.” Se, com o crescimento do comércio, os nobres se deixaram
seduzir pelo ouro e se perderam seus privilégios, se os camponeses se emanciparam e se tornaram
senhores do solo que cultivavam, se a terra transformou-se em mercadoria e caiu nas mãos dos que a
compravam, se o mercado tornou-se o centro de gravidade dos habitantes da Grécia, não terá sido
porque Zeus assim o quis?

Ao menos a pergunta é formulada. Nesse ponto, a epopéia esbarra em seus limites. Seu
poder de encantamento se esvai. Ao poeta da antiga ordem já nenhum deus se digna responder.
Talvez lhe convenha falar-lhes de outra maneira. Ou talvez eles tenham perdido seu poder. Ou talvez
nunca o tenham possuído. Talvez nem sequer existam. De uma pergunta surgem outras mil. E destas,
mil suspeitas. Dessas suspeitas surge o logos – a razão. O que está em jogo na história é a
constituição do mundo, a força que o determina, a possibilidade de fazer oposição a ela. Portanto, é a
ordem do Universo, a natureza de seus elementos, e também sua hierarquia, o princípio que os anima
a todos, tanto homens quanto animais, o vento, o mar, os corpos celestes. É chegada a hora de parar
de esperar dos deuses a resposta a todas essas perguntas. Doravante, é preciso pensar por si.
Responder pessoalmente às perguntas a que os deuses não mais respondem.
E as respostas começam a se fundir. É a época dos “pensadores” da Grécia. No arquipélago
ou no continente, eles pedem alternadamente a palavra, para fornecer sua versão dos fatos. Para um,
o princípio primordial é a água, para outro, ao contrário, o fogo. Um terceiro vê em toda parte a lei
dos números, outro ainda lhe opõe o choque dos átomos. Entramos na era da “ciência”, que se eleva
acima das crenças religiosas. Às narrativas míticas das origens, que os sacerdotes transmitiam ao
povo, agregando tradições vindas de todos os cantos, as quais se procurava mais ou menos colocar
sob a égide unificadora de Zeus, opõem-se as “explicações racionais”: o mythos, veiculado pelos
aedos e, mais tarde, pelos sacerdotes da cidade, é substituído pelo logos. Em vez da obscuridade dos
relatos míticos, as “Luzes” da razão. Posto que os deuses fazem ouvidos moucos, eis que nasce o
entendimento. De Sólon a Tales há apenas um passo, mas é o passo que desliga os homens dos
deuses. Sólon pretendia ter o aval de Zeus: Tales pretende prescindir dele. Nesse caminho, todos os
outros o seguirão com entusiasmo: lá estão, portanto, Parmênides e a idéia do Um, Heráclito e a do
Múltiplo, Empédocles com sua Discórdia (que rivaliza em ardor com a Concórdia), Pitágoras, para
quem somente o Número importa, Demócrito, para quem tudo se reduz a corpúsculos de matéria, e
por fim Anaxágoras, que atribui tão-somente ao Nous, ao Espírito, o impulso inicial da gênese do
mundo… Uma plêiade inaudita de “pensadores” rivaliza em engenhosidade, mas todos prescindem dos
deuses. Porque o pensamento humano pode tomar-lhes o lugar.

Com dois mil e seiscentos anos de intervalo, decerto não é muito fácil ver as coisas com
clareza no aparecimento do Iluminismo grego. Um contingente respeitável de especialistas continua
empenhado nisso e a prudência nunca é demais na reconstituição de seu desdobramento. Antes de
tudo porque nos resta pouquíssima coisa dos autores, porque a maioria de suas obras chegou até nós
sob a forma de fragmentos, míseros farrapos como os de Heráclito, e porque, em geral, só podemos
tomar conhecimento delas através de obras de autores nitidamente posteriores, muitas vezes
separados dos primeiros por longos séculos – isso quando não são deturpadas ou falsificadas. E,
enfim, porque praticamente todos os pensadores dessa época são herdeiros de saberes vindos de
outras paragens: Anaxágoras, por exemplo, é tributário da distinção entre os planetas e as estrelas,
da determinação dos tempos de rotação dos corpos celestes, isto é, do saber astronômico dos
caldeus, e da idéia de que a inteligência está espalhada por todo o Universo, como é sugerido pela
cosmogonia egípcia de Heliópolis. E por outro lado porque, longe de se contentarem em elaborar cada
um o seu sistema, que não deveria nada aos dos demais, cada recém-chegado confrontava os outros,
tal como Demócrito, reduzindo a uma poeira de átomos de número infinito a inalterável unidade do
Ser de Parmênides.
Pois não seja por isso! Se o aparecimento da “ciência” grega aparenta-se com nosso
Iluminismo, cultivemos essa analogia. Tomemos Demócrito justamente! Ele é originário da Trácia,
cidadão de Abdera, ao norte do mar Egeu. Não sabemos ao certo se nasceu entre 500 e 450 a.C., isto
é, no momento das Guerras Médicas, ou pouco antes da Guerra do Peloponeso. O que sabemos, ou
julgamos saber, é que sua doutrina se opõe à dos eleatas, que neutralizavam os movimentos do
mundo para conseguir pensá-lo. Parmênides, seu representante principal, dava mostras de
incomensurável desprezo pelas pessoas comuns, que conferiam crédito ao que seus sentidos lhes
permitiam perceber das coisas: “Ora, muito bem! Falarei eu; quanto a ti, escuta e grava minhas
palavras, que te ensinarão quais são os únicos caminhos de investigação que podemos conceber. O
primeiro diz que o Ser é e que não é possível que não seja. Esse é o caminho da certeza, pois
acompanha a Verdade. O outro é: o Ser não é e, necessariamente, o não-ser é. Esse caminho é uma
vereda estreita onde nada se pode aprender.” As pessoas comuns acreditam no que vêem, no que
ouvem, no que tocam, muito embora, de um instante para outro, aquilo que percebem se modifique
por completo; em suma, são vítimas do “pré-conceito”. Para pôr ordem nesse caos das percepções, é
preciso eliminar as contradições e, por conseguinte, não admitir simultaneamente uma coisa e seu
contrário. Ao cabo desse processo de expulsão das contradições, Parmênides consegue identificar o
Ser com uma esfera única, imóvel, eterna e “acabada”.

Ora, apesar de admirável, essa esfera não explica nada do que é preciso explicar. Vejo de
longe uma acrópole e, quando me aproximo, verifica-se que é uma cidade; ou então, sou tomado de
terror ao ouvir um carro ruidoso conduzido por um homem enorme e assustador e puxado por
poderosos cavalos, até que, seguindo seu curso, ele não pára de se apequenar, a ponto de
desaparecer numa nuvem de poeira. Terei sonhado? Terei sido vítima de alucinações? Pode ser que
tenha sonhado. Mas e quando todo o mundo vê e ouve a mesma coisa que eu? Pois bem, é
justamente isso o que acontece na Grécia. Entre o que narram os poemas, o que é também contado
por inúmeros aedos, o que relatam muitos cidadãos sobre um passado ainda bastante próximo e o
que qualquer um pode agora enxergar, há grandes diferenças. A mudança é tão imensa que nem se
pode falar em ilusão. Antes, dependia-se de um só e somente ele era poderoso: a bem da verdade, só
ele tinha importância e continha o todo, sem que nada lhe faltasse – como a esfera de Parmênides,
em suma. Agora, isso já não acontece: essa dependência não existe mais e cada um pode contar
apenas consigo mesmo: “Um turbilhão de toda sorte de átomos separou-se do todo.”

A bela ordenação passada é substituída por uma seqüência ininterrupta de choques entre
elementos ínfimos. Ah! O átomo não é nada se comparado ao Todo, mas o Todo não é nada sem os
átomos. Sem átomos, haveria apenas o vazio e o nada. É a liberdade de movimento dos átomos que
cria toda sorte de agregados e são essas agregações de átomos que dão origem a novos mundos.
Se assim não fosse, de onde sairia a cidade? Antigamente, os senhores habitavam as colinas
chamadas “acrópoles”. Elas eram ninhos de águia, amiúde inexpugnáveis. Seus servos ali buscavam
refúgio, na eventualidade de invasões do feudo. Mas onde estão esses antigos senhores? De longe,
continuamos a ver essas colinas, que continuam a dar a mesma impressão, mas hoje elas estão
desertas. Ali circulam apenas alguns sacerdotes; a vida desenrola-se a seus pés, num espaço muito
mais amplo, onde fervilha a multidão atarefada ao redor da praça do mercado. Convirá negar essa
realidade? Caberá tomá-la por uma ilusão? Mas quem terá a petulância de fingir que tudo aquilo é
nada? Esse desprezo pode provir de uma alma aristocrática, despeitada com o curso dos
acontecimentos, mas, nesse caso, que pertinência pode conservar sua “ciência”? “Da realidade nada
apreendemos de absolutamente verdadeiro, mas apenas o que sucede fortuitamente, conforme as
disposições momentâneas de nosso corpo e as influências que nos atingem ou nos abalam.” Negando
a realidade da cidade, qualificando de ilusão o processo que a gerou, os eleatas pretendem atingir a
verdade absoluta. Não vêem que essa pretensão, longe de destruir a experiência vivida com gratidão
pela maioria dos homens, pode, por seu turno, ser considerada como o resultado do curso da história,
do impacto dos átomos de um mundo que se decompôs em benefício de outro. No cômputo final, sua
arrogância prova apenas uma coisa: sua impotência.

Nessa polêmica sobre a natureza do Ser, Demócrito alia-se a um “pensador”


geograficamente mais próximo dele, mas que, muito provavelmente, não partilhava do entusiasmo da
plebe pela atomização do mundo grego. Refiro-me a Heráclito. Nascido numa família sacerdotal de
Éfeso, do lado da costa da Ásia Menor que fica em frente à ilha de Samos, era cognominado de “o
obscuro”… No campo da arrogância, Heráclito é um mestre rematado. Seu desdém pelas massas é
tamanho que ele não hesita em disparar: “Um homem vale, a meu ver, dez mil pessoas quando é o
melhor” – o que rejeita incondicionalmente qualquer regime democrático, fundamentado na lei do
número. Na democracia, um homem vale uma voz e nenhuma voz vale mais do que outra: portanto,
é a maioria que faz a lei, mesmo que a maioria se engane. Heráclito rejeita esse nivelamento
inapelável. No entanto, não foge à realidade, mas a enfrenta. Em vez de negar o curso das coisas, ele
o pensa. Guardando sempre uma altiva distância, reflete sobre a emergência do demos: “Há uma
coisa que os melhores preferem a tudo: preferem a glória eterna ao que é perecível; mas a multidão
sacia-se qual gado vil.” Os melhores são os aristoi, o que nos leva diretamente ao mundo homérico e
às proezas de Aquiles, favorito dos deuses. Só que esse mundo já não existe e, se não mais existe, é
porque o ouro acabou por contaminá-lo e, em seguida, arruiná-lo. Sim, são as ruínas que
testemunham o poder passado dos melhores! E é esse absurdo inexorável que é preciso
compreender. Que há de mais absurdo de que ver desmoronar o regime dos melhores? Os melhores
nunca deveriam cair, posto que eram os melhores. Ou caberá admitir que os mercadores são
“melhores” do que os melhores? Isso não faz sentido! Os mercadores são oriundos da plebe, não dos
aristoi. Existe algo mais, portanto.

Existe o poder do fogo. O que arruinou o poder dos guerreiros foi o fogo. Ou, pelo menos,
seu reaparecimento: “Este mundo, o mesmo para todos os seres, nenhum dos deuses ou dos homens
o criou; mas ele sempre foi e é e será um fogo sempre vivo, iluminando-se moderadamente e se
extinguindo com moderação.” Esse ponto é decisivo. O mundo não tem começo nem fim, mas passa
por fases em que o fogo ora desaparece, ora reaparece, numa alternância sem fim. Heráclito não
extrai esse modelo de sua fantasia, mas do que tem diante dos olhos. Outrora protegida de seus raios
ardentes e destrutivos, a nobreza guerreira não pôde resistir ao ressurgimento do ouro. Sim, do ouro!
Do ouro como valor supremo, como meio de tomar posse, melhor que por qualquer outro meio, dos
bens alheios, e de suplantar todas as riquezas existentes, criando novas riquezas: “Todas as coisas
são trocadas por fogo e o fogo por todas as coisas, como o são as mercadorias por ouro e o ouro por
mercadorias.” É a subordinação da terra ao poder do ouro que fornece a Heráclito a chave do tantinho
de sentido que pode haver no desaparecimento do governo dos melhores. O fogo está no centro do
mundo, tal como está o ouro no centro dos assuntos humanos.

Os que saíram vitoriosos, contudo, não têm razão para se rejubilar. Pois não existe razão
nessa história. Ela continua a ser absurda. Nada garante aos afortunados de hoje a perenidade de sua
fortuna: “O tempo é uma criança que brinca com dados. A realeza de uma criança.” O que ele edificou
pode destruí-lo a seu critério. Por prazer, qual uma criança. Essa é a fala de um sacerdote. Ele tanto
pode deplorar a perda do tempo passado quanto prever o tempo futuro: “Tudo será julgado e
devorado pelo fogo que virá.” Se os deuses ficaram surdos à aflição dos que descendem dos
melhores, também ensurdecerão perante a dos senhores do momento. Esse ouro, que tudo submete
a sua lei, dentro em breve queimará os dedos daqueles a quem enriquece. Para se chegar a isso,
bastará que a febre se apodere da multidão, quando ela houver compreendido que foi iludida pelos
novos-ricos.

Essa profecia por certo justificou o apelido dado a Heráclito. Na euforia da vitória da
economia mercantil, muitos acreditaram enxergar com mais clareza do que ele. A exemplo de
Demócrito, porém com sucesso muito maior que o dele, Anaxágoras desenvolveu uma gênese do
mundo que eliminava a fatalidade heraclitiana. Tratava-se quase de um vizinho, visto que Anaxágoras
nascera em Clazômena. Mas ele aceitou o desafio. O espírito era mais forte do que o fogo, afirmou,
pois era mais forte do que tudo: “É, dentre todas as coisas, a mais leve e a mais pura; possui toda
espécie de conhecimentos acerca de tudo e a mais gigantesca força. Tudo aquilo que tem alma, tanto
o maior quanto o menor, está sob o poder do Nous.” O ouro era menos leve e menos sutil do que o
fogo, mas o fogo era menos leve e menos sutil do que o espírito. Menos sutil! Assim, o espírito podia
triunfar sobre o fogo – a fortiriori, sobre o ouro, ainda que o tempo estivesse em revolução. Indo além
do sacerdote de Éfeso, Anaxágoras inspirou-se nos sacerdotes de Heliópolis para afirmar que não era
o fogo que movia as coisas, porém o Espírito: “Seu poder tem-se exercido sobre a revolução inteira e
foi ele quem deu impulso a essa revolução. Esta, a princípio, incidiu apenas sobre uma parte
minúscula, depois se estendeu mais, e continuará a se alastrar ainda mais.” Seria impossível ser mais
otimista. E Anaxágoras tinha uma excelente razão para sê-lo: passava sua vida em Atenas, na
companhia de um certo Péricles, no momento de seu apogeu.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

IV
A lucidez de Sófocles

Será que o povo se beneficiava das especulações de seus pensadores? É pouco provável. Com
respeito ao destino, ao “progresso” rumo à liberdade, ao assentimento ou à ira dos deuses, ele tinha
sua própria maneira de ver as coisas. E, quando os sacerdotes não lhe traziam satisfação, encontrava
meios de levá-los a inovar. Talvez resida nisso a explicação do prodigioso sucesso que conheceria, no
século 5 a.C., uma forma muito especial de cerimônia religiosa: a tragédia ática.

A origem da tragédia grega ainda é um mistério. Seu apogeu coincidiu com o da democracia
em Atenas, logo depois das Guerras Médicas. Mas como nasceu? Isso se mantém como um enigma
sobre o qual inúmeros eruditos continuam a se debruçar. Não podemos duvidar de sua natureza
simultaneamente religiosa e popular. “Tragédia” significa “o canto do bode” e sugere uma filiação
direta com as cerimônias em que se realizava o culto de Dioniso nas festas que lhe eram dedicadas.
Dioniso, o deus da vinha, trazia aos homens tamanha alegria de viver, arrebatava-os em tal
embriaguez, superava tantas misérias que era impossível louvá-lo em demasia… Por isso, longos
cortejos celebravam com alegria a pujança desse deus de poder singular, cantando ditirambos e
dançando até cada um se esquecer de si. Acompanhados pelos servos de Dioniso, os silenos e os
sátiros de pés de bode, o povo afirmava sua convicção de ser invulnerável diante da dor. Dessas
festividades à tragédia, em sua forma clássica, a distância parece muito curta à primeira vista,
considerando-se que ela deu margem a um espetáculo encenado por ocasião dos festejos das
“Grandes Dionisíacas”. A tragédia sempre põe em cena um “coro” que canta e dança… O problema é
que esse coro não mostra o menor júbilo; ao contrário, passa o tempo a se queixar. E tem uma boa
razão para isso. De fato, o que sucede diante de seus olhos nada tem de alegrador: os heróis não
param de matar uns aos outros, de cometer perjúrio, de praticar ignomínias terríveis. Pior que isso:
na maior parte do tempo, os crimes são perpetrados no seio de uma mesma família; seja em Ésquilo,
em Sófocles ou em Eurípides, só se vêem assassinatos, incestos, torturas entre pais, mães e filhos.
Tudo corre tão mal que, na verdade, apesar de ser uma seqüência natural do ditirambo dionisíaco, a
tragédia é realmente… trágica demais.
Sem dúvida nos aproximamos da solução ao esmiuçarmos a personalidade de Dioniso. Ele
era, ao que parece, um deus “tardio” do Olimpo, uma espécie de agregado da família dos deuses.
Aliás, Zeus em pessoa foi-lhe atribuído por pai e ele foi levado a desempenhar um papel nada
insignificante na resistência dos deuses aos Titãs. Na batalha, aliás, Dioniso perdeu a vida, pois os
Titãs o esquartejaram: dessa terrível provação, dessa “paixão” ao cabo da qual seus membros foram
arrancados e dispersos, ele conservou o nome de Zagreu. Mas, na verdade, Dioniso estava mais
próximo dos deuses da terra que dos deuses do céu. Tal como o deus egípcio Osíris – o deus dos
mortos, cujo corpo também fora desmembrado e, depois, com grande paciência, reconstituído por
Ísis, sua mulher, enlouquecida de dor e de amor -, Dioniso inscrevia-se com facilidade no ciclo da
vegetação, que morre no inverno para melhor renascer na primavera. Ao lado da deusa Deméter,
deusa das colheitas, Dioniso regia o crescimento exuberante das espécies vivas, a subida da seiva
pelos caules – todos os caules -, e nele se adorava o mistério da reprodução dos seres. Assim, não
deve causar surpresa que o júbilo provocado pela celebração de seu culto possa ter-se traduzido, nas
Grandes Dionisíacas, nos lamentos de um coro solene e na recordação mimética de crueldades
inomináveis. A essas crueldades, justamente, conferiam-se nomes, utilizando os ciclos de lendas
concernentes aos antigos heróis, como que para dar sentido a todos os sofrimentos da vida: eles
ocorriam no “ciclo” da vida, graças ao qual tinham que dar lugar ao júbilo, pois, tal como a morte do
deus, eram o prelúdio de uma vida nova, de uma regeneração dos corpos e dos corações.

Podemos dar um passo a mais. Com efeito, se está profundamente ligado ao culto de
Deméter e se, como tal, desempenhou um papel decisivo nos “mistérios”, a exemplo dos de Elêusis
(cuja localização fica a uma distância muito pequena de Atenas), Dioniso tem um longo passado.
Deus das videiras e da embriaguez, deus do sexo e da reprodução, esse Dioniso, longe de ser um
deus “recente”, parece particularmente arcaico. Se é recente, é como hóspede do Olimpo e filho de
Zeus. Mas encontramos traços dele em cultos claramente anteriores ao do famoso “mundo olímpico”.
Sejamos prudentes, mas sem ser timoratos! Se assim é, isso significa que Dioniso teve o destino das
populações que ocupavam o solo da Ática, ou mesmo da Grécia inteira, antes do período das grandes
invasões. Muitas vezes se fala nos pelasgos para designar esses povos. E atribui-se a eles um estilo
de vida comunitário, parecido com o que era levado pelas tribos celtas da Europa antes das invasões
germânicas: criação de animais e cultivo da terra praticados em comum, sem propriedade privada do
solo. Assim, eles tinham toda razão de homenagear um deus que fazia renascerem ininterruptamente
suas forças vivas. Mas, suponhamos que esses pelasgos tivessem tido que agüentar as ondas de
invasores arianos vindos da Ásia Central durante séculos e que o caos houvesse reinado em suas
terras, reduzindo a nada a bela união de sua comunidade: eles teriam sofrido o suplício infligido a
Dioniso… Suponhamos que esses bárbaros houvessem permanecido na memória sob o nome de
“Titãs”. Segundo as crenças populares, foi tarefa dos deuses do Olimpo introduzir ordem nesse caos
provocado pelos Titãs. Ora, foram os conquistadores dórios que desempenharam esse papel na
história, com a ajuda de seus próprios deuses. Uma vez vencidos os Titãs pelos novos deuses, o povo
encontrou proteção nesses últimos. Mas não recuperou sua unidade. Sua vida, antes livre e
comunitária, teve que ser dedicada ao sustento de seus senhores, aos quais ele devia o fim de seu
pesadelo. Assim, podemos imaginar que o povo camponês, que sobreviveu, apesar de despedaçado
pelos bárbaros e, mais tarde, dividido entre os vencedores e submetido à gleba, tenha aos poucos
aspirado a resgatar sua unidade, sua vida sem entraves, sua liberdade de ação, e que tenha sonhado
abolir as fronteiras entre os domínios pelos quais estava disseminado, eliminar as demarcações que
perpetuavam seu suplício, já agora sem razão de ser, posto que os bárbaros tinham sido repelidos
muito tempo antes. Por força da saudade de um passado longínquo (e consoantemente mais
embelezado), o culto de Dioniso pôde então carregar-se de um conteúdo subversivo.

Muitas vezes se observou que o culto dionisíaco foi obra das mulheres. Para explicar sua
prodigiosa vitória no coração do povo grego na época democrática – o entusiasmo que seu culto
passou a despertar nas cidades -, essa mudança decerto foi decisiva. Johann Jacob Bachofen,
contemporâneo helvécio de Fustel de Coulanges, já pôde escrever sem rodeios, num poderoso estudo
sobre o matriarcado: “Dioniso é, na plena acepção da palavra, o deus das mulheres. Inicialmente
reconhecido e aceito por elas em toda a sua magnificência, tornou-se a fonte de suas esperanças
carnais e espirituais, o centro em torno do qual a vida delas gravita. Sua religião, revelada às
mulheres e propagada por elas, a elas deve seu triunfo.” Como bom jurista, Bachofen identificou
nessa adesão feminina uma saudade provocada pela submissão ao “sexo forte”: “Imagens mortais de
Deméter, deusa da terra, todas as mulheres trariam ao mundo filhos que seriam irmãos e irmãs. Essa
igualdade perdurou até que o patriarcado veio destruir a unidade dessa massa, substituindo-a pelo
grupo comum.” Esse aspecto feminino do culto de Dioniso serviu de motor não apenas para o
combate pela emancipação da mulher, mas também pela de todas as vítimas da ordem estabelecida.
Ao conservar em toda a sua força a lembrança devota do deus dilacerado, as mulheres alimentaram
em seu seio a força moral de que todos os oprimidos, não apenas elas, necessitam para derrubar o
poder dominante. Pois o patriarcado assinou a sentença de morte da vida comunitária, da vida
naturalmente livre, onde imperava a igualdade entre os homens: “O patriarcado é a limitação; o
matriarcado é a comunhão sem limites. O patriarcado restringe o círculo das relações; o matriarcado,
como a natureza, não impõe limites. Diante da fecundidade materna, todos os homens são irmãos. O
patriarcado, ao contrário, isola-os uns dos outros.” A religião dionisíaca tornou-se, como era natural,
uma relação das classes subjugadas, que aspirava a “substituir a diversidade das castas pela
uniformidade da democracia”. Essa, aliás, é a tese de Bachofen. Portanto, não devemos ficar
surpresos ao ver coincidirem a longa luta dos países submetidos aos dórios e o retorno maciço do
culto de Dioniso, por intermédio do ditirambo dionisíaco.
Tampouco nos surpreenderemos ao ver coincidir no tempo o advento da democracia com o da
tragédia. A hora da verdade desse confronto secular chegou no momento em que a Pérsia tornou-se
ameaçadora. No início do século 5 a.C., Xerxes, o rei dos reis, não mais escondeu suas intenções de
pôr as mãos na Grécia e invadiu a Ática. Foi então que se deu o inacreditável: onde se esperava a
aristocracia guerreira, que tinha a guerra por ofício, foi a plebe a primeira a pegar em armas e foi ela
que repeliu o invasor. Maratona e Salamina foram os pontos altos desse rasgo de bravura inaudito.
Foi o povo que defendeu a cidade! A partir daí, a antiga ordem não mais teve razão de ser e os
privilégios tiveram de ser abolidos. Uma vez que fora o povo em armas que repelira o invasor, estava
provado que os eupátridas eram supérfluos ou, pelo menos, que não tinham maior importância do
que os outros habitantes da cidade. Todos gregos, todos cidadãos! Fora o demos quem vencera o
inimigo externo e, portanto, era o povo que devia fazer a lei do lado de dentro.

Se assim se deu, foi porque os próprios deuses assim o decidiram. Foi com sua ajuda que a
plebe venceu. Pelo menos com a de Dioniso. Que se festejasse! Que se celebrasse! Evoé! Ele
(juntamente com Deméter) é quem outrora ajudara Sólon a eliminar dos campos as demarcações,
ele, sem sombra de dúvida, é quem dera ao povo forças para repelir Xerxes, o rebento degenerado
dos Titãs, e ele é quem permitia ao demos acabar com o império dos eupátridas. Mas como se podia
ter certeza disso senão na solenidade? O teatro levou à plebe de Atenas o aval dessa reviravolta
prodigiosa. A primeira das grandes tragédias (cujo texto foi preservado) cumpriu essa função às mil
maravilhas. Seu autor foi Ésquilo e ela se intitulou – terá sido por acaso? – Os persas. Do papel que
sua peça devia desempenhar, Ésquilo não fez segredo. Ele cantou a glória do povo de Atenas. A ação
se passa na Corte do Grande Rei, onde se espera o desfecho da batalha, até que um mensageiro
anuncia a derrota. O coro (persa) desata então em soluços: “Sim, Atenas é para mim, miserável, um
nome detestado. Ah! Razões tenho eu de me lembrar dela; foi por ela que milhares de mulheres
persas perderam, a troco de nada, seus filhos e seus maridos.” A rainha, por seu lado, indaga: “Que
senhor lhes está à testa e comanda seu exército?” E o corifeu responde: “Eles não são escravos sem
súditos de homem algum.” Cidadãos iguais entre si! – assim são os vencedores do rei dos reis e de
seu incontável exército! O frêmito de orgulho e júbilo que se apodera dos espectadores, nos degraus
do teatro de Atenas, sela o fim do império da aristocracia na Grécia.

Fortalecido em sua audácia por poetas da têmpera de Ésquilo, cuja corporação outrora
estivera a serviço da aristocracia, o povo ateniense podia prescindir dos esclarecimentos dos
“pensadores” para compreender o curso dos acontecimentos e a ordenação do mundo: indo ao teatro
durante as Grandes Dionisíacas, distribuindo-se pelos degraus do semicírculo escavado no flanco da
Acrópole, ele aprendia mais do que dando ouvidos às especulações dos adeptos do logos. E de
maneira muito mais agradável. É que, logo nos primeiros momentos, enquanto a embriaguez da
vitória ainda surtia seu efeito, é lícito supormos que o aspecto solene da cerimônia trágica, a
dignidade do coro, a lentidão de seus movimentos, a elevação do tom do corifeu, o porte dos atores,
calçando coturnos altos e tendo o rosto encoberto por máscaras imponentes, a contrição que reinava
na platéia incontável, onde cada um devia honrar sua condição de cidadão integral, nada disso devia
impedir os membros do demos de experimentar uma imensa alegria íntima.

Para começar, pelo simples fato de eles estarem de novo reunidos: a disposição das
instalações devia permitir que o povo inteiro não fosse mais do que um só. Aquilo em que o sumo das
vinhas permite acreditar, nos primeiros momentos de seu consumo, aquele sentimento de
fraternidade vivenciado pelo homem em estado de ligeira embriaguez, ainda muito próximo da idéia
de que todos os homens são livres e iguais, de que pertencem a uma única e mesma família, esse
sentimento, digo eu, os atenienses puderam experimentar nos primórdios da tragédia. De quebra,
que prazer não devem ter sentido ante o espetáculo do sofrimento de seus inimigos! Isso se aplica
aos persas, é claro, mas se aplica igualmente, se não mais, aos eupátridas. Com efeito, a maioria dos
heróis das peças encenadas no palco desde então seriam reis, rainhas, príncipes e princesas.
Justamente aqueles cujas façanhas os aedos costumavam narrar eram os que os poetas trágicos
convocaram para o palco. E o que eles exibiam eram sofrimentos, já que não paravam de fazer mal
uns aos outros. Ora, esses eram os ancestrais reivindicados para si, em linha mais ou menos direta,
pelos eupátridas. Se tivermos em mente o tempo de que os oprimidos precisaram para superar o
poder de seus senhores, o suor, o sangue e as lágrimas que lhes custou a derrubada da hierarquia,
poderemos imaginar o deleite proporcionado à plebe através do espetáculo trágico.

Tomemos Agamêmnon. Sabemos da provação que os deuses o fizeram suportar no auge de


seu poder. A Ilíada narra isso muito bem. Mas o que a Ilíada não diz é que ele ainda não havia
acabado de pagar. O poema não conta sua volta. Pois bem, sabemos que esta transcorreu muito mal.
Uma morte ignominiosa o esperava: tão logo pôs os pés no solo pátrio, sua mulher o matou com as
próprias mãos, com a ajuda de seu amante. Clitemnestra teve uma boa razão para derramar o
sangue do marido: queria vingar a morte da filha. Já se iam dez anos que esperava por esse
momento! Isso remontava aos primórdios da expedição a Tróia: quando a esquadra estava reunida
em Áulis, os deuses lhe haviam recusado o vento necessário para a travessia. Para lhes granjear o
favor e oferecer garantias aos soldados, Agamêmnon mandara trazer Ifigênia ao acampamento e a
sacrificara no altar do adivinho Calcas. Tal crime não podia ficar impune. Pelo menos, isso é o que
enuncia Clitemnestra como justificativa de seu gesto, pois, se examinarmos mais de perto,
perceberemos que ela também tinha de vingar o assassinato de seu pai. De fato, Agamêmnon
obtivera seu cetro mediante uma usurpação: seu reino, ele o conquistara depois de matar o rei de
quem Clitemnestra era filha. Um assassinato recente encobria outro, muito antigo, e o culpado era o
mesmo homem: o que fizera dela sua esposa. Assim, ao matar Agamêmnon, ela matara dois coelhos
de uma só cajadada. Um tema favorito dos poetas trágicos. Uma fonte de gozo inaudito para os novos
senhores. Ainda mais que Agamêmnon tivera três outros filhos com sua mulher, que se
encarregariam de vingar o pai…

Essa maneira de rejubilar-se duraria apenas um certo tempo. Somente algumas décadas. É
claro, Atenas atingiu então seu apogeu e conseguiu até mesmo impor sua supremacia a todas as
outras cidades. Tinha a liderá-la o melhor dos estrategistas, Péricles. Nele o demos encontrara o líder
de que precisava para se impor a todos os seus inimigos, tanto no exterior quanto no interior da
cidade. Construíram-se as Longas Muralhas, que protegiam a rota de Atenas até o Pireu, seu porto
principal, e seu arsenal; edificou-se o Pártenon, de esplêndida colunata; cercou-se a Ágora de
suntuosas galerias de comércio, os Pórticos; e, sob o cinzel de Fídias, Atena, Zeus, Apolo e Dioniso
ganharam forma humana e se instalaram para ficar! Mas os atenienses pagariam muito caro por esse
momento abençoado pelos deuses. Preço? – Uma guerra infindável com as outras cidades,
incessantemente reacendida pela eterna cidade rival, Esparta, paralela a uma nova guerra intestina
entre aristocratas e democratas. Aproximava-se a hora da amargura. Das atrocidades com que os
atenienses se deleitavam no teatro, na condição de espectadores, eles iriam tornar-se os agentes.

De modo que, no ápice de sua carreira de dramaturgo, Sófocles pôde servir-se da cena
trágica como se fora um espelho estendido aos espectadores. É desse modo, pelo menos, que
compreendo uma de suas tragédias mais famosas, Édipo rei. Parece-me, com efeito, que Sófocles não
teve outro objetivo ao colocar Édipo em cena. Ainda não se atentou para isso: até aqui, o foco tem
incidido sobre os crimes cometidos por Édipo, o parricídio e o incesto, e em geral se concorda em ver
neles o que Freud ali descobriu, ou seja, a expressão de “fantasias” individuais que atormentam nosso
inconsciente. Certamente essas fantasias são universais, dizem respeito a todos os seres humanos,
mas só concernem a eles em caráter pessoal: cabe a cada um “haver-se com elas”, isto é, superá-las.
Todo homem, quando menino, desejou possuir sua mãe e tomar o lugar do pai. Esse é um estágio
pelo qual o sujeito tem que passar para se tornar adolescente e, mais tarde, adulto, Mas é também
preciso encontrar as resistências adequadas, sobretudo no pai e na mãe, para que não haja, de um
modo ou de outro, uma passagem ao ato, sem o que é de se temer que o sujeito em questão jamais
leve uma vida normal.

Vez por outra, essa interpretação tem sido rejeitada em nome da existência de outras versões
do mito, nas quais tudo corre muito bem, o que compromete o caráter universal da proibição do
incesto e do parricídio; nesse caso, tenta-se fazer uma leitura antropológica, atribuindo mais
importância à questão do regicídio e apostando na substituição de um direito cívico por um direito
arcaico. Esse trabalho crítico em relação à abordagem psicanalítica tem ao menos o mérito de
considerar a questão por um ângulo coletivo e não apenas individual. Além disso, permite uma
reflexão histórico-jurídica que não deixa de ter interesse. Mas é maculado pela mesma falha da
tradição freudiana: não leva absolutamente em conta a tensão dos acontecimentos, a adequação
entre aqueles que se desenrolam na cidade e os que se desenrolam no palco. Até o presente,
ninguém prestou atenção, em particular, à “peste” que preludia o drama inteiro, a esse flagelo que
devasta a cidade a ponto de forçar aquele que a lidera, pouco a pouco, a abrir os olhos para sua
responsabilidade. Nunca se percebeu que o roteiro da peça coincidia perfeitamente com o que os
próprios espectadores estavam vivendo fora do recinto do teatro, no seio de sua cidade, sob a égide
de Péricles. Nunca se assinalou que Sófocles devolveu aos atenienses a imagem de sua própria
torpeza, refletindo no círculo luminoso do palco o mal que corroia a cidade.

Pois pensemos nisso! Édipo livrou Tebas da Esfinge, que comprometia seu futuro. Sob seu
reinado iniciou-se então um longo período de prosperidade. Depois abateu-se a peste: “Tebas, de
fato, como podes ver tu mesmo”, declara logo no prólogo um sacerdote a Édipo, “hoje se encontra
totalmente transtornada e nem consegue erguer do abismo ingente de ondas sanguinolentas a
desalentada fronte; ela se extingue nos germes antes fecundos da terra, morre nos rebanhos antes
múltiplos e nos abortos das mulheres, tudo estéril. A divindade portadora do flagelo da febre
flamejante ataca esta cidade; é a pavorosa peste que dizima a gente e a terra de Cadmos antigo, e o
Hades lúgubre transborda de nossos gemidos e soluços.” Ora, tal como o reino de Édipo, o de Péricles
começou sob augúrios magníficos. Foi com ele que Atenas, depois de vencer os persas, ergueu-se
acima das outras cidades e chegou à máxima prosperidade. Mas fundamentada em quê? No parricídio
e no incesto.

Parricídio? Esse é o objeto principal desta revelação. Aquele que reina está reinando por conta
da plebe, da multidão, da massa, uma vez que se está na democracia. Logo, ele tomou o lugar do
soberano legítimo, daquele a quem os deuses haviam outrora confiado a tarefa de introduzir a ordem:
o rei, representante supremo da nobreza guerreira, despojada de seus privilégios mediante a
violência. Portanto, houve um regicídio. O povo deu a si mesmo um novo soberano, o estrategista,
que sabemos ter saído, na maioria das vezes, das fileiras dos eupátridas, os descendentes da
aristocracia consangüínea. Assim, mesmo que o ignore, Péricles tem nas mãos o sangue de seus
“pais”. Quanto ao incesto, ele é patente: foi a causa do povo que o tirano esposou. No passado, o
povo estivera entregue aos conquistadores dóricos; há pouco tempo, a plebe deu a si mesma um
novo senhor, que antes ela havia parido e que agora divide seu leito.
Ninguém, a não ser Sófocles, parece ver que a prosperidade de Atenas repousa sobre essas
perversidades. Por isso, ele recorda aos atenienses uma história que, como todas as demais, é
retirada do fundo épico. Esta se encontra na Odisséia, que a tradição atribui a Homero. Trata-se de
um episódio particularmente impressionante, uma vez que está ligado a uma evocação dos espíritos
dos mortos. Ao sair da mágica Circe, Ulisses vai ao país dos cimérios consultar o adivinho Tirésias.
Para isso, entretanto, tem que entrar em contato com o reino do Hades, onde passa uma temporada
na companhia de inúmeros mortos, dentre eles alguns de seus pares, como Aquiles e Agamêmnon.
Édipo encontra-se entre as sombras esquivas e o poeta evoca sua história. É verdade que, em sua
versão, Sófocles inova um pouco: na Odisséia, a peste não atingia Tebas e Édipo não se saía mal.
Dessa vez, o salvador de Tebas atinge os limites de seu reino. Sua cidade está ameaçada de morte:
se quiser que a peste desapareça, ele precisará compreender que é culpado, renunciar ao poder – e
vazar seus próprios olhos.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

V
O cansaço de Sócrates

Ao pôr em cena as vicissitudes de Édipo rei, Sófocles estava advertindo seus concidadãos
contra a morbidez da situação em que se achavam. Ébrios de alegria depois das Guerras Médicas,
orgulhosos de sua supremacia sobre todos os gregos, os atenienses não viam que o infortúnio pairava
sobre suas cabeças. Cegos… Sim, a terra da Ática estava livre! Sim, os atenienses tinham igualdade
de direitos sobre o solo de seus ancestrais. Mas a que preço, já que, segundo Sófocles, a instauração
da democracia equivalia a um parricídio e a um incesto! Sim, eles haviam atingido uma prosperidade
inaudita, da qual o esplendor de suas construções era o reflexo perfeito! Mas, por quanto tempo? O
tempo de a peste se declarar… E esse tempo havia chegado! A hegemonia de Atenas sobre as outras
cidades fazia renascerem ódios mortais entre os gregos e um certo mal obscuro corroia a cidade por
dentro. Agora, os atenienses precisavam reconhecer seu erro e expiar os crimes infames a que
deviam sua prosperidade – sob pena de mergulharem na decadência.

Restava saber se o poeta tinha razão, no fundo e na forma. Na forma, Sófocles dera mostras
de grande habilidade, apanhando o povo inteiro na armadilha, no momento propício e no lugar dos
seus festejos. Em vez do prazer esperado, do júbilo até então proporcionado pelo espetáculo dos
infortúnios alheios, era de sua própria torpeza que se tratava na peça. Édipo era, sem dúvida, o
lendário rei de Tebas, mas era uma máscara de seus sucessivos líderes, desde o “sábio” Sólon até o
grande Péricles. A aflição do coro era a deles. E era a eles que se dirigia Tirésias, para lhes revelar o
sentido dos flagelos que se abatiam sobre a cidade. Ao darem a si mesmos tal regime, eles supunham
contar com o assentimento dos deuses. Sófocles mostrou que estavam redondamente enganados e
que, muito pelo contrário, haviam-lhes provocado a cólera. Certamente não a do deus Dioniso, que
exultava na subversão, mas a de Apolo, o deus dos eupátridas achincalhados. Quando se
encolerizava, Apolo crivava suas vítimas de dardos. Por certo atingia inocentes em seu desejo de
vingança. Mas nunca era sem razão, o que era preciso era adivinhá-la. Recordemos o começo da
Ilíada. O deus feroz esperava uma reparação. Fora necessária a intervenção do adivinho Calcas.
Também desta vez cabia a um adivinho revelar a razão da cólera de Apolo. Na época do rei Laio, pai
de Édipo e marido de Jocasta, Tirésias tinha ficado cego, mas enxergava melhor do que qualquer um,
pois não vivia na ilusão, proporcionada pela luz do ouro, das riquezas e dos objetos preciosos.
Protegido de seus raios nefastos, ele era dentre todos o mais clarividente. Era a ele que cabia a tarefa
de dizer a verdade sem rodeios aos atenienses.

E bem no meio da festa! Aparentemente, Sófocles inverte a função da tragédia. Toma às


avessas o que os adeptos fervorosos das Grandes Dionisíacas esperavam do espetáculo trágico. Mas é
para que ela funcione de maneira mais profunda, de acordo com uma dimensão que seus adeptos
utilizavam sem saber. Isso porque, antes de chegarmos ao júbilo que ele provoca, o espetáculo
trágico se enraíza – a palavra é essa – na técnica sumamente arcaica da evocação dos mortos. À
celebração do culto da vinha e à embriaguez que ela proporciona corresponde uma antiqüíssima
crença que liga os vivos aos mortos. É da morte que renasce a vida, do solo, ou melhor, de suas
profundezas. É ali que germinam os grãos afundados na gleba, é ali que mergulham as raízes das
plantas e das árvores. É dali que sobe a seiva. O solo, portanto, contém o futuro. A vida está
potencialmente na morte. É esse o sentido dos mistérios de que Dioniso participa, e cujo segredo os
sacerdotes de Elêusis conheciam. Desde que o povo havia assumido o poder, a celebração desses
mistérios era feita inteiramente às claras, à vista e com o conhecimento de todos. O espetáculo
trágico oferecia à cidade inteira o contato com os defuntos. Ora, alguns deles conheciam o futuro.
Eram as almas dos adivinhos.

A escolha do episódio da Odisséia em que Ulisses vai consultar a sombra de Tirésias, portanto,
coloca Sófocles numa ótima situação para dar à mensagem sua plena força, todo o seu patos. Essa é,
com efeito, a passagem da epopéia que devia tocar o povo mais profundamente, fazê-lo estremecer
nos recônditos da alma. Ainda mais que aquilo que o herói precisava saber coincidia às mil maravilhas
com o que o povo de Atenas estava confusamente procurando. O herói Ulisses tinha uma razão muito
clara para entrar em contato com o reino do Hades. Se estava tentando falar com o espírito de
Tirésias, era porque somente o adivinho podia apontar-lhe o caminho de volta a Ítaca. Já se iam dez
anos desde que a guerra havia terminado, dez anos desde que Tróia fora tomada – e saqueada – e
ele, em vez de reencontrar prontamente sua mulher, Penélope, seu filho Telêmaco, sua casa, seus
criados e seus rebanhos, continuava desde então vagando pelos mares, longe da pátria, vítima do
deus Posêidon. É claro, aqui e ali a sorte lhe havia sorrido e ele conhecera alguns momentos muito
agradáveis. Mas estava cansado de Ítaca. Quase todos os seus companheiros haviam perecido. Queria
voltar o mais depressa possível. Daí o encontro com o adivinho morto. Uma busca partilhada pela
massa dos espectadores atenienses. Isso porque, como Ulisses, os espectadores atenienses tinham
saudades de sua terra. Sendo em sua maioria de origem camponesa, era da terra que seus ancestrais
tinham vivido e era para a terra que eles queriam voltar. Mas haviam perdido o caminho. Agora a
terra era comprada e muito poucos dispunham dos meios para isso. Tinha havido um tempo em que
tudo era comum, em que o dinheiro nem sequer existia; por que não haveria esse tempo de retorno?
Dioniso lhes prometera isso: um dia a unidade seria restabelecida. Restava saber como. Mais uma
vez, Dioniso podia interceder nisso. Ele havia passado pelo reino dos mortos. Devia saber como fazer
as sombras falarem. Na verdade, não era esse o papel da tragédia? Tal como Ulisses, o povo realizava
um sacrifício, por ocasião dos festejos do deus, para evocar os espíritos dos mortos. A multidão se
curvava sobre uma cova semelhante à que Ulisses havia cavado no chão e, tal como Ulisses acima
das sombras, tentava fazer com que aquela que era sábia falasse. Nessa evocação coletiva dos
mortos, a plebe só tinha a ganhar. Ela se comprazia com a alegria de ser reconhecida como heróica,
uma vez que se achava na posição de Ulisses, o que satisfazia seu desejo de reconhecimento por
parte dos deuses, bem como seu espírito de vingança contra os favoritos deles. Mas, acima de tudo,
ela se proporcionava um meio de reencontrar o caminho certo, o caminho do passado.

Notável intuição de Sófocles! Ele não poderia ter acertado mais diretamente no alvo ao retirar
Édipo do reino das sombras, já que, como “reino”, o do Hades era o único em que o povo ateniense
ainda acreditava. E como acreditava! Desde sempre, o povo da Ática fora apegado ao culto dos
mortos. A gente humilde vivia perto do solo. E era do solo que esperava a vida, ao contrário do
aristocrata, próximo do céu, que, à semelhança das águias, agarrava suas presas em vôo. Por isso é
que um tinha estado subjugado ao outro. E talvez também fosse por isso que os camponeses
enterravam os cadáveres, enquanto os guerreiros os queimavam. Aquiles fizera uma fogueira para
Pátroclo: fizera dele luz e cinzas, que foram espalhadas pelos quatro ventos; assim ele teria mais
probabilidade de chegar ao firmamento. Mas, para os que trabalhavam a terra, era evidente que os
mortos tinham lugar no solo que eles calcavam. Daí a idéia de que podiam sobreviver a eles e de que
era sempre possível fazê-los falar… A plebe apreciaria isso. Essa relação dos vivos com os mortos era
a sua. Ela admitia que os defuntos podiam conhecer o futuro. Teria espichado um ouvido atento aos
ditos do adivinho Tirésias, tal como Sófocles os colocou em versos…

Terá sido esse o caso? Podiam os atenienses ouvir essa mensagem? Decerto eles estavam
afundando nos horrores de uma guerra injusta com as outras cidades, das quais exigiam um
verdadeiro imposto. Mas, porventura podiam renunciar a sua liberdade, a sua igualdade tão
duramente conquistada? Podiam renunciar à fonte de receitas que sua hegemonia lhes assegurava?
Podiam concordar em assemelhar a instauração da democracia às monstruosidades evocadas por
Sófocles? Enfim, teria razão o poeta? Atenas estava mergulhando na infelicidade, isso era certo: havia
algo de mórbido em ação no coração da cidade. Mas o quê? A linguagem poética continuava obscura.
Para explicar o agravamento das ameaças que pesavam sobre Atenas, seria realmente o bastante
invocar a cólera de Apolo? Foi ao se formular essas perguntas que Sócrates, segundo me parece,
inventou a filosofia.
Nascido no ano de 468 a.C., Sócrates tinha dez anos quando Péricles iniciou sua carreira de
político a serviço dos democratas, mal chegara aos 20 quando Atenas subjugou a ilha de Eubéia e
ainda não contava 30 anos quando sua cidade se engajou na Guerra do Peloponeso (data em que,
como todos os atenienses, deve ter assistido à representação de Édipo). Sócrates, portanto, foi
testemunha de toda a guerra, do começo ao fim, em 404 a.C. Participou dela em diversas ocasiões,
para cumprir seu dever de cidadão, como na expedição contra a cidade de Potidéia, que se recusava a
pagar o tributo exigido por Atenas de seus “aliados”. Ele era de origem plebéia. Seu pai era
entalhador de pedras. Há quem afirme que era escultor, mas eu o vejo, mais simplesmente, como um
artesão encarregado de talhar, segundo as normas, os blocos de pedra destinados às grandes
construções de que a cidade era dotada. Como quer que fosse, Sócrates, ainda jovem, participou
plenamente do crescimento de sua cidade, tanto em seu impulso de urbanização quanto em sua sede
de expansão – sem fazer o mais ínfimo protesto.

Foi preciso que Atenas se instalasse na guerra para que começassem a falar dele. E, se
começaram a falar dele, foi porque ele começou a falar. Em vez de entalhar pedras, ele perambulava
de manhã à noite pela Ágora, apostrofando os passantes. Que bicho o tinha mordido de repente? De
onde vinha aquele zelo de retor? E aquela sede insaciável de diálogo? De onde vinha aquele desejo de
atormentar os outros? Em sua Apologia, Platão o faz dizer que ele fora obrigado a isso por um
oráculo, que havia declarado a seu respeito que ele era o mais sábio dos gregos. Assim, Sócrates
queria saber de que lhe adiantava essa honra e não encontrou nada melhor a fazer do que interrogar
ininterruptamente seus concidadãos, assim como todos os que estavam de passagem pela cidade,
para ver o que tinha a mais do que eles. Ora, por mais que multiplicasse os contatos e renovasse as
tentativas dia após dia, não descobria em sua pessoa nenhuma superioridade flagrante. A única coisa
que o distinguia (nas palavras de Platão, mais uma vez) era sua falta de ilusões quanto a seu próprio
saber. Não se tratava de um mais, porém de um menos: ele tinha menos ilusões do que os outros
quanto ao que julgava saber, justamente na medida em que não tinha certeza de nada, ao passo que
os outros acreditavam saber alguma coisa sobre um assunto, um campo, uma questão de direito, de
moral, de política ou de religião.

Infelizmente, há que emitir certas reservas quanto a essa maneira de narrar os


acontecimentos. Primeiro porque não a encontramos em Xenofonte, outro “discípulo” de Sócrates, da
mesma idade de Platão, e que também escreveu muito sobre seu mestre; com Xenofonte, a vocação
de Sócrates assume um ar muito mais íntimo e parece bem menos incômoda para os estranhos.
Sobretudo porque um terceiro testemunho contradiz radicalmente os dois precedentes: o testemunho
de Aristófanes.
A acreditarmos em Xenofonte, Sócrates era, acima de tudo, um moralista. Pouco inclinado à
retórica, comprazia-se em identificar o justo e o injusto nos atos de que era testemunha. Tanto que
houve quem adquirisse o hábito de lhe submeter os “casos” difíceis, nem que fosse para se deleitar
com a maneira como ele os resolvia. Convidado com freqüência para os banquetes dos ricos, ele sabia
dar mostras de moderação, tanto nas palavras quanto na bebida. Mas era preciso não provocá-lo,
porque, nesse caso, revelava-se assustador – tanto num terreno quanto no outro. Sem jamais se
embriagar e sempre senhor de si, tanto nas palavras quanto nos atos, era sobretudo por seu estilo de
vida que se Sócrates se distinguia. No curso de sua vida, nada tendia para a inquietação que
identificamos em Platão, para essa preocupação de buscar a “verdade”: segundo Xenofonte, Sócrates
vivia para o “bem”, dando o primeiro exemplo do que seria a vida de um justo. Esse, ademais, era o
único meio de fazer com que ressurgisse verdadeiramente na cidade o gosto pela virtude, tão
freqüentemente achincalhada.

Xenofonte nos deixa atrapalhados, pois, se seu retrato é fiel, fica bem difícil saber o que teria
provocado contra tal sábio a cólera de uma cidade inteira – a não ser a própria maldade dela. Ora,
quando mergulhamos em Aristófanes, percebemos que as censuras crepitavam como chamas em
madeira seca. É claro que, sendo autor de sátiras, Aristófanes é meio “malvado”. Mas que crédito
teriam merecido seus ataques se não tivessem algum fundamento? Em As nuvens, ele coloca
Sócrates numa pequena nave que domina do alto a situação. Um acólito, Querofonte (o mesmo de
quem Platão faz o mensageiro do oráculo referente a Sócrates), finca a cabeça no chão para medir-
lhe a profundidade, enquanto seu traseiro fica numa posição perfeita para estudar a trajetória dos
astros. Mas o que é recriminado nele não deixa de ter importância: trata-se de nada mais, nada
menos, do que a coesão interna da cidade e a permanência de sua proteção pelos deuses. Segundo
Aristófanes, Sócrates merecia o opróbrio porque ensinava a arte de não manter os compromissos.
Graças a raciocínios ad hoc, era possível aprender a fazer o preto passar por branco, a neutralizar
qualquer afirmação e a fazer brotar a incerteza à vontade, o que, vez por outra, proporcionava
sobretudo a vantagem de rechaçar os credores, quando chegava o momento, e, por conseguinte, de
nunca pagar as dívidas, ao mesmo tempo em que outras eram contraídas…

Terrível acusação! Isso porque, se tais atos se multiplicassem, a confiança desapareceria entre
os cidadãos, entre as gerações, entre os homens e os deuses. Se ninguém mais pagasse suas dívidas,
se ninguém mais cumprisse seu dever – o cidadão para com seus pares, o pai para com seus filhos (e
os filhos para com os pais e os cônjuges para com seus cônjuges) e os atenienses para com os deuses
do Olimpo -, Sócrates estaria exercendo uma profissão criminosa: uma profissão, pois ele dava aulas
pelas quais recebia dinheiro. Portanto, era preciso eliminá-lo. Aliás, é assim que termina a peça:
ateiam fogo à casa de Sócrates… “Essa acusação é injustificada, por certo hão de dizer. Entre um
Aristófanes que, antes de tudo, queria fazer rir, que lançava mão de todos os meios, e um Xenofonte
ou um Platão, porventura não é fácil a escolha?” Bem, isso não é tão certo. É que, vinte anos depois,
encontraríamos acusações desse tipo no processo movido contra Sócrates: impiedade perante os
deuses da cidade e corrupção da juventude, eis por que ele seria censurado! Ora, esses são (em
outras palavras) exatamente os erros de que As nuvens o acusavam.

E de resto, será que é realmente preciso escolher? O fato de Sócrates ter ensinado a arte do
sofisma, de ter cobrado por suas aulas, isso não chega a ser compatível com a imagem que seus
discípulos fornecem dele. Mas o fato de haver contribuído para desestabilizar a democracia,
importunando seus concidadãos, num período em que Atenas estava particularmente vulnerável, isso
é algo que aproxima todos os pontos de vista. Xenofonte pretende nos levar a crer que Sócrates era
sábio, mas para tanto tem que excluir qualquer desejo de saber. Mas Aristófanes e Platão concordam
em nos apresentar em Sócrates alguém que procurava compreender. Na pequena nave das Nuvens,
ele invoca divindades que se assemelham muito de perto às forças evocadas na Apologia, sob a égide
de Anaxágoras, de quem se tornara discípulo. Quando? Como? Por quanto tempo? Isso nós não
sabemos, mas o que parece certo é que Sócrates fez sua a teoria de que o mundo nascera do Nous,
que dera impulso ao turbilhão de matéria sutil do caos a fim de formar o cosmo tal como o vemos
“girar”. Das “nuvens” ao céu é pequena a distância. E tudo isso poupa os deuses.

Dessa sede de compreender a ordem das coisas até a busca de justiça entre os homens
também não é muito grande a distância. Assim, especulemos um pouco mais! Ao adotar a teoria
“científica” posta em voga por Anaxágoras, Sócrates podia usufruir o poder do espírito humano, capaz
de reconstruir o mundo sem ceder à chantagem dos sacerdotes: finalmente o logos suplantava o
patos! Mas, afinal, para quê? Aquela bela ordem do mundo celeste, por que é que ela faltava na
terra? Por que se dilaceravam as cidades gregas entre si? E qual a razão dessas divisões em seu seio?
Por que aquela guerra interminável? E que poder tinha Anaxágoras, com sua bela teoria, para
modificar a desordem das coisas? Péricles era seu amigo. Seu sistema de governo poderia ter-lhe
servido de modelo para elaborar a imagem do cosmo. Mas não fora Péricles quem fizera Atenas
enveredar pelo caminho da guerra permanente? Sócrates tinha 40 anos quando Péricles morreu,
deixando Atenas às voltas com um funesto turbilhão de problemas intermináveis. A idade certa para
se tornar… filósofo.

Obviamente, Péricles dera a sua cidade um brilho ímpar, mas, para isso, tivera que desviar o
tesouro da Liga de Delos. Esse tesouro era reservado, desde o começo do século, para garantir a
defesa de todas as cidades gregas em caso de necessidade. Usando como argumento o papel decisivo
desempenhado pelos hoplitas e pelos navios de guerra atenienses na vitória contra os persas, a
estratégia de Péricles consistira numa apropriação cada vez mais patente dos tributos pagos por todas
as cidades ao tesouro de guerra. Isso era lógico, porém inadmissível para as outras cidades e injusto.
Sócrates o vira de perto em Potidéia. Vira a determinação feroz dos que eram forçados a pagar
tributos. Assim, a democracia ateniense se autorizava a fazer com as cidades irmãs aquilo que havia
combatido em seu seio: explorava em benefício próprio seu papel de protetora, em absoluta
contradição com seus próprios princípios! Portanto, na verdade, de que adiantava o sistema de
Anaxágoras?

Nesse rompimento com a abordagem “científica” da vida por uma frustração moral, podemos
ver o momento em que Sócrates saiu de sua condição de entalhador de pedras para ingressar na
“carreira” de filósofo, por vergonha do flagrante imperialismo de Atenas. Como filho de entalhador, e
entalhador ele mesmo, Sócrates pudera aderir a uma teoria do mundo em que o conceito precedia a
forma assumida pela matéria; como soldado, porém, ele vira de perto o processo pelo qual se
efetuava o embelezamento da cidade. E esse preço não era um preço justo. Sófocles tinha razão:
havia algo de criminoso na prosperidade de Atenas. Restava saber exatamente o quê e, em especial,
como fazer para reencontrar o caminho da justiça. A cidade estava contaminada por um erro, mas
qual exatamente? A captação do tesouro de Delos correspondia a uma lógica cujo fundamento era
preciso identificar: quem o conhecia? Ele maculava a beleza das linhas do Pártenon, templo da nova
supremacia; quem poderia restituir às pedras da Acrópole sua pureza?

Terá sido nesse momento, quem sabe, que o oráculo de Delfos declarou que Sócrates era o
mais sábio dos gregos? Sócrates suspeitava da malignidade do regime ateniense: em Delfos, era o
deus Apolo quem falava, o deus dos conquistadores dóricos, cujos descendentes conservavam o poder
em Esparta, mas tinham sido expulsos de Atenas. Quem sabe se Querofonte, ao fazer sua pergunta à
pítia, não teria tudo isso em mente? De qualquer modo, Sócrates fora impulsionado: tinha de
descobrir o que não funcionava, o que impelia seus concidadãos para o mau caminho. Tinha de
interrogá-los a todos, adverti-los a todos, buscar com eles uma solução. Tinha de indagar sobre as
motivações de uns e de outros, questionar os mercadores, os generais, os soldados, os marinheiros,
os sacerdotes, os poetas, os professores, os sofistas, os ricos, os pobres, os democratas, os
aristocratas, e, se eles de nada quisessem saber, Sócrates se empenharia em lhes dar aulas
reiteradamente. É que o destino da cidade estava em jogo. A catástrofe era iminente…
E ela se produziu antes que Sócrates encontrasse a resposta, ao que me parece. A derrocada
se deu em 404 a.C. Nessa ocasião, o partido democrata foi tão humilhado pelos espartanos que,
pouco tempo depois, descontou sua irritação no filósofo. Num primeiro momento, os atenienses
tiveram de se submeter às decisões das trinta pessoas avalizadas pelos vencedores. Isso durou
apenas um ano, mas o trauma não passou tão depressa. A democracia se recompôs, mas tinha sido
profundamente ferida. E, como Sócrates continuava a picar como uma vespa seus concidadãos, como
continuava a zumbir em seus ouvidos, buscou-se e se encontrou um meio de esmagá-lo de um só
golpe. Considerado culpado, ele foi condenado a beber cicuta – e a bebeu. Não mais se ouviu na
Ágora nem nos banquetes o som de sua voz, a voz do primeiro filósofo, daquele que foi o primeiro a
partir em busca da verdade, e não apenas do saber ou da virtude.

Mais uma vez, porém, há que desconfiar dos julgamentos apressados. Em sua defesa
(reproduzida por Platão), Sócrates evoca a afirmação do oráculo. Mas ter-lhe-ia bastado um pouco de
“sabedoria” para admitir que ele havia passado seu tempo irritando os atenienses, num período de
extrema susceptibilidade. Sócrates não podia ignorar que estava criando para si algumas inimizades
mortais, em particular entre as fileiras dos democratas. Devia esperar que se voltassem contra ele as
desconfianças que ele manifestava em relação aos outros. Nada é mais fácil, em particular, do que
censurá-lo por fazer o jogo dos lacedemônios, que desde sempre haviam procurado abater seus rivais
e que, uma vez alcançada a vitória, tentavam agir de maneira a que eles nunca mais reerguessem a
cabeça. Por conseguinte, seria fácil demais colocar todos os erros do lado dos acusadores, assim
como dos juízes.

Tamanha falta de discernimento por parte de um homem como Sócrates, sobretudo durante
seu processo, é, devemos confessar, mais do que surpreendente. Tanto Xenofonte quanto Platão, ao
narrarem seus últimos momentos, mostram-nos um Sócrates responsável, um Sócrates bem-
disposto, um Sócrates feliz. Para ele, nem há como cogitar de ceder às propostas que seus amigos lhe
fazem de fugir da prisão: seu respeito pela lei lhe proíbe isso. Tampouco há por que se afligir diante
da perspectiva da morte que se aproxima: primeiro, sua dignidade o impede; segundo, sua força de
caráter lhe permite conservar o sangue-frio (por assim dizer); terceiro, sua mais dileta doutrina faz o
restante, uma vez que ele está convencido da imortalidade da alma. Não estou perfeitamente
convencido de que todas essas razões bastem para explicar sua atitude, antes, durante e depois do
processo. Se Sócrates sabia que não sabia nada, como podia ter certeza da vida eterna de sua alma?
Por isso é que me vem à cabeça uma outra explicação, muito mais simples. Ela não invalida as
anteriores, mas pode questioná-las, como tanto gostava de fazer o próprio Sócrates. Ao ser acusado
de prejudicar sua cidade, ele se transformara num velho. Havia chegado aos 70 anos de idade. Desde
seus 30 anos, isto é, de quarenta anos antes, a guerra havia dilacerado seu país. E, nesses quarenta
anos, em vão ele procurara compreender o porquê. Se Sócrates não se “desarmou” depois da derrota,
se chegou até mesmo a provocar os juízes de Heliéia, por não esperar mais nada de seus
concidadãos, e se se recusou a partir para o exílio, a abandonar sua prisão, e se alegrou em morrer,
não terá sido simplesmente por cansaço? Doce é a morte para o homem fatigado.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

VI
A vingança de Platão

Para definir a condição humana, Platão não encontrou nada melhor do que comparar os
homens a prisioneiros agrilhoados no fundo de uma caverna. Encontramos essa alegoria no começo
do livro VII da República. Triste destino, do qual as vítimas, no entanto, não têm consciência, pois
vivem na ilusão: elas não têm outro referencial senão as sombras que divisam no fundo de seu covil!
Isso equivale a dizer que os seres humanos vivos mal chegam a ser superiores aos mortos, pelo
menos na concepção que deles faz a maioria dos gregos. Segundo Platão, ao subordinar sua vida à
satisfação de seus apetites, o ser humano não pode sair do reino das trevas e, longe de emancipá-lo,
a vida em comunidade o encerra cada vez mais nele. Para se libertar, só existe uma saída: sair da
caverna, o que implica dar as costas à multidão.

Dificilmente se poderia exprimir maior desprezo pelos concidadãos. Reconhecemos que


Platão tinha algumas boas razões para isso. Estava com 20 anos quando Atenas capitulou frente à
coalizão das cidades rivais. Viu os atenienses serem forçados a destruir as Longas Muralhas e a
renunciar ao regime democrático: tiveram que aceitar ser governados por trinta cidadãos habilitados
para essa tarefa pelos representantes de Esparta, ou seja, pelos aristocratas que tinham do que se
vingar. Os “Trinta Tiranos” foram rapidamente derrubados, mas Atenas continuou abatida por muito
tempo, senão para sempre, e, para expiar suas faltas, não encontrou nada melhor do que atacar
Sócrates e sacrificá-lo, como um inocente cuja morte pudesse aplacar a ira dos deuses.

Platão, sem sombra de dúvida, foi muito afetado por tudo isso. Mas, de que maneira? A
aventura da Guerra do Peloponeso lhe permitira reconhecer desde muito cedo os limites da
democracia. De origem aristocrática, ele não precisava fazer muito esforço para detestar o poder da
plebe. Na luta que opôs Atenas a Esparta, podemos facilmente imaginá-lo tomando partido, em seu
foro íntimo, dos lacedemônios, que haviam conservado uma constituição muito hierarquizada, capaz
de resistir a todas as rebeliões das classes inferiores. Ali, Dioniso não tinha direito de cidadania.
Esparta crispara-se em torno das leis de Licurgo: somente a casta dos nobres portava armas e só ela
deliberava, como na época dos conquistadores dóricos. Não é absurdo supor que Platão, desde a sua
mais tenra infância, sentisse saudade da supremacia de seus ancestrais. Ele era um atleta e amava os
exercícios do corpo: não teria nascido com alguns séculos de atraso – ou na cidade errada? Que terá
experimentado quando Esparta pôs Atenas de joelhos e quando seu tio Crítias foi designado para
fazer parte dos Trinta? Talvez, como ele, Platão acalentasse fugidiamente o sonho de restabelecer o
“governo dos melhores”.

Mas sonhar não era o bastante. Não devia ser muito fácil fazer retrocederem os atenienses,
bravamente apegados a sua democracia. Aliás, terá sido possível algum dia dar marcha à ré? Isso
seria o mesmo que ter esperança de fazer um rio refluir para sua origem ou esperança de inverter o
curso do tempo! Aliás, os Trinta fracassaram em seu objetivo. Atenas estava humilhada, vencida,
abatida, arruinada, mas continuava a ser democrata. E não havia por que procurar humilhá-la mais.
Sócrates empregara em vão suas forças. Nem mesmo a ele, um homem do povo, os atenienses
tinham seguido. De modo incansável, aquele homem humilde, mas assustadoramente hábil, tentara
obter uma reação de lucidez por parte dos seus. E havia fracassado. Portanto, o que fazer?

Compreender! Sócrates havia suspeitado haver uma grande parcela de verdade no


diagnóstico feito por Sófocles em sua época. Mas não conseguira apropriar-se dela, definir com toda a
clareza a verdade encerrada em sua mensagem. No entanto, aquele era o caminho certo. Era preciso
tentar traduzir em prosa os cantos de Sófocles para obter a resposta ao questionamento de Sócrates:
que força impelia à sua ruína a cidade que prosperava? Quando adolescente, Platão sentira uma
vocação de dramaturgo. Infelizmente, nada nos restou de seus poemas. Dizem que, depois de se
encontrar com Sócrates pela primeira vez, seu primeiro gesto foi queimar todas as suas peças. Não
tenho certeza de que a ironia mordaz do ancião possa ter bastado para impeli-lo a esse gesto. Ele
mesmo devia saber, já havia algum tempo, que aquela vocação era um impasse. Poderia sair-se
melhor do que Sófocles? Se tinha em mente o drama de sua cidade, se queria mostrar aos atenienses
seus erros, como poderia ter a esperança de mostrar a seus concidadãos um espelho melhor que o da
aventura de Édipo?

Ora, a advertência de Sófocles fora ignorada. A voz de Tirésias não tinha sido ouvida. Atenas
se precipitara no abismo. De que adiantava escrever novas tragédias, acrescentar lamentações a
lamentações? Não seria melhor acabar com a poesia? A tragédia não surtia o efeito que convinha
nessa tarefa. Ela abrandava os corações. Legitimava a covardia e a fraqueza. Se convinha conservá-
la, era preciso purgá-la de tudo aquilo que favorecia o abandono das virtudes viris: “Teremos razão,
portanto”, é o que Platão faz Sócrates dizer no começo da República, “em retirar dos homens ilustres
as lamentações, em deixá-las por conta das mulheres e das mulheres comuns e dos homens
covardes.” Explorar tal e qual o fundo poético homérico, dirigindo-se ao povo através do espetáculo
trágico, era homenagear Dioniso, o deus do patos, aquele que, mais do que tudo, era preciso expulsar
da cidade, aquele que havia provocado a embriaguez dos atenienses, que os levara às piores
loucuras, que desconsiderava os limites da conveniência e restituíra às mulheres o poder: ao torná-las
lascivas, o deus fadara os homens ao esquecimento de seus deveres; a devassidão báquica havia
desembocado, em última instância, no fim do patriarcado, rematando sua obra fatal. Mas isso era
algo que Apolo não podia suportar.

Era preciso falar em nome de Apolo. Não convinha mais apostar no registro trágico e
permanecer, ainda e sempre, na base cultural da epopéia. Era preciso renunciar a isso de uma vez
por todas e falar uma nova linguagem, nem que fosse para conservar uma forma dramática. Era
possível conservar a forma solene do diálogo, na esteira das controvérsias da tragédia, onde os heróis
se confrontam, cada qual justificando seus atos, mas, justamente, era preciso apostar no logos e não
mais no patos. Era hora de um balanço. Fazia-se necessário levantá-lo sem desvios. Começar a dizer
por que as coisas tinham corrido mal, por que aquilo tinha sido fatal. Dizê-lo sem escrever versos,
nem que fosse traduzindo os de Sófocles. Fazer uma descrição sem rodeios do mal que levara a
cidade à perdição. A alegria que lhes proporcionara a vitória sobre os persas e a vingança que eles
haviam praticado contra a aristocracia tinham durado pouco. Era preciso descobrir a razão disso. O
novíssimo princípio da igualdade entre cidadãos originários de uma mesma cidade encobria uma
calamidade nova e sem nome, que já entrara em ação à revelia de todos e que revelaria seu poder e
sua crueldade nas décadas seguintes: era preciso desvendar-lhe a causa.

Esse é o objeto de A República. Comparando seus concidadãos a prisioneiros agrilhoados no


fundo de uma caverna, que preferem matar a seguir aquele que quer retirá-los de seu torpor, de suas
ilusões e de suas lutas fratricidas, Platão traduz em prosa a sublime poesia de Sófocles: “Quando os
mendigos e os famintos de bens particulares chegam aos assuntos públicos”, explica ele na
continuação do livro VII, “(…) há uma luta pela obtenção do poder e essa guerra doméstica e intestina
arruína tanto os que a ela se entregam quanto o resto da cidade.” Uma razão imperiosa impele os
cidadãos com igualdade de direitos a matarem uns aos outros. Uma força invencível, inexorável, que
sela o destino dos homens desde sempre. É aquela que Sócrates em vão procurara definir. Qual é
essa força assustadora? Nos livros VII e VIII da obra, Platão fornece-nos a chave desse enigma.
Segundo ele, o mal começa a partir do momento em que a aristocracia perde seus privilégios
em favor dos comerciantes ricos: passa-se então à oligarquia. Mas esse regime não é sustentável por
muito tempo, pois conduz rapidamente a uma depauperação da plebe, o que leva esta última, de
maneira inevitável, a reivindicar a divisão dos bens: “É necessário que tal cidade não seja una, mas
dupla, a dos pobres e a dos ricos, habitando no mesmo solo e conspirando incessantemente uns
contra os outros.” E, como os ricos deixam cegar-se por seu desejo de enriquecer, resistem e
provocam a revolta dos pobres, o que leva à democracia. Esta, em vez de curar a doença, só faz
exacerbá-la, pois implica por princípio uma liberdade total para todos, o que permite aos mais ricos
enriquecerem ainda mais e torna os pobres cada vez mais pobres. É isso que conduz a cidade a sua
ruína: “A liberdade, conferida a qualquer um, de vender todos os seus bens ou de adquirir os de
outrem e, depois de ter vendido tudo, permanecer na cidade, sem exercer nela nenhuma função, nem
de comerciante, nem de artesão, nem de cavaleiro, nem de hoplita, sem outro título senão o de pobre
e indigente.” Enquanto Atenas explora sua hegemonia sobre as outras cidades, essa massa crescente
de indigentes ainda pode ser mantida às expensas do Estado, mas, nesse processo, exporta sua
doença para as outras cidades e, ainda por cima, provoca-lhes a cólera, o que conduz à guerra de
todos contra todos…

Ora, naturalmente, a escravidão continua a se ampliar e os cidadãos desfavorecidos ficam


mais excluídos do que nunca da produção. O que fazer? Se ainda houvesse tempo, seria preciso
acabar com a economia mercantil, retornar a uma divisão do trabalho em que cada um tivesse seu
lugar. Mas será que ainda há tempo? Ao esboçar o plano de uma cidade ideal, Platão propõe um
modelo em que a maioria dos cidadãos trabalha. Isso demonstra a que ponto ele rejeita a escravidão.
Por mais espantoso que pareça, Platão, apesar de “grego” e “antigo”, exclui da cidade o trabalho
servil. Basta que nos reportemos ao livro II: ali se encontram operários, pedreiros, tecelões e
sapateiros, mas todos são cidadãos! Ali descobrimos carpinteiros, ferreiros, boiadeiros e pastores
(ofícios, todos eles, que não provocam o mais ínfimo resquício de desprezo), e vemos ainda
comerciantes atarefados na Ágora e “uma multidão de pessoas versadas na navegação”, bem como
assalariados, “aptos para o trabalho pesado” e que “vendem o emprego de sua força” – mas nada de
escravos!

Poderíamos supor que essa omissão se prende ao caráter evidente da necessidade do


trabalho servil. Mas não é esse o caso. Platão afirma explicitamente que se deve evitar recorrer a
este. Para ele, a cidade só pode manter-se saudável se limitar rigorosamente a quantidade de bens
produzidos e resistir ao desejo do luxo. Caso contrário, ela é tomada por uma inflamação que dá início
ao processo pelo qual, mais cedo ou mais tarde, mergulha na guerra, a princípio com outras cidades
e, depois, intestina. Idealmente, conviria evitar, segundo Sócrates (de quem Platão se faz porta-voz),
dar rédeas soltas ao desejo de preguiça, que leva à proliferação dos criados, justifica a conquista de
mercados cada vez maiores e mais distantes e autoriza a classe dos comerciantes a transformar o
trabalho dos outros em fonte de lucro pessoal. Quer aprovemos ou não o seu remédio, há que
reconhecer que nos enganamos totalmente a respeito de Platão quando desprezamos o fato de que
ele tem por objetivo central pôr fim ao progresso da economia mercantil e abolir o trabalho servil.

Reconsideremos. O estabelecimento da democracia repousou, na Grécia como na Europa, na


derrubada da classe nobre. Ora, essa derrubada só se operou sob o efeito da expansão do comércio,
da intensificação das trocas de mercadorias e do aumento considerável da quantidade de moeda. Uma
nova classe, a dos comerciantes, acumulou os benefícios dessa revolução prodigiosa, que fez o centro
de gravidade das relações sociais deslocar-se do campo para a cidade, da Acrópole para a Ágora, das
colinas fortificadas da aristocracia, com suas defesas e suas armadilhas, para a praça do mercado,
com suas estalagens – e seus bancos. E é ali que se tece o drama. É que, frente a essa classe de
negociantes ricos, desenvolve-se uma classe de cidadãos livres, sem dúvida, mas pobres. Razão
disso? Eles foram despojados de seus meios de subsistência. Deixados por sua própria conta desde
que se libertaram do jugo dos senhores, poderiam ter-se tornado agricultores ou artesãos. Mas muito
poucos resistem à concorrência de uma forma de trabalho muito mais rentável: o trabalho servil. Com
efeito, dentre as mercadorias propostas na Ágora, há uma que convém particularmente bem aos que
possuem oficinas: os escravos.

Uma vez comprados, podem-se fazer os escravos trabalharem o que bem se desejar. Seu
sustento é barato: custa apenas o que está implicado na reprodução elementar de sua força de
trabalho. Não tendo família, eles não têm outras necessidades senão as suas e ficam muito felizes
com sua sorte quando conseguem manterem-se vivos. Por isso, o trabalho dos cidadãos livres fica
muito seriamente comprometido pelo dos escravos vendidos no mercado: “Sabemos”, lembra Fustel
de Coulanges em A Cidade antiga, “que o rico de Atenas (…) tinha em sua casa oficinas de tecelões,
cinzeladores e armeiros, todos escravos. Até mesmo as profissões liberais ficavam mais ou menos
vedadas aos cidadãos. O médico, muitas vezes, era um escravo que curava as doenças em benefício
de seu senhor. Os escriturários de bancos, muitos arquitetos, os construtores de navios e os
funcionários subalternos do Estado eram escravos.” Um terrível mal, portanto, corroia a cidade grega
no século 5 a.C.: ela se libertara do jugo dos conquistadores dóricos, mas cindia-se irrevogavelmente
em dois campos inimigos – os ricos e os pobres -, o que levava de modo infalível para a guerra civil.

Esta interpretação não é evidente, admito. Temos dificuldade em considerar a proliferação da


escravatura na Grécia como o flagelo principal que arruinou a democracia, porque nossa abordagem
da vida dos gregos implica espontaneamente a escravidão como natural aos olhos deles, do mesmo
modo que seu “desprezo pelo trabalho”. Ora, se prestarmos atenção, veremos que não é bem assim.
Supondo-se que isso se aplique à aristocracia, no que diz respeito à massa do povo as coisas não são
tão simples. Para começar, existe uma velha tradição segundo a qual trabalhar, e particularmente
trabalhar a terra, é tido como uma ocupação muito honrosa: assim, Hesíodo, tanto em sua vida
quanto em seus poemas, não hesitava em entoar louvores ao trabalho. Depois, se olharmos mais de
perto, constataremos que não é por prazer, mas antes por força, que as pessoas do povo, na própria
época em que impera a democracia, vêem-se num estado ocioso. Se o povo não trabalha, não é,
acima de qualquer outra coisa, por desprezar o trabalho, mas porque os escravos o retiram dele. No
processo de produção, o trabalho servil substitui o trabalho livre, tanto na cidade quanto no campo. A
lei cega do mercado impele os fabricantes a preferirem os escravos aos homens livres e é sob o efeito
dessa exclusão do processo de produção que o demos modifica sua visão das coisas. Ouçamos Fustel
mais uma vez: “A escravidão era um flagelo com que a própria sociedade livre sofria. O cidadão
encontrava poucos empregos, pouco trabalho. A falta de ocupação logo o tornava preguiçoso. Como
só via os escravos trabalharem, ele desprezava o trabalho.” Mas, sendo assim, o que temos aí é um
processo e não um traço de caráter próprio dos gregos.

Platão é testemunha disso. Ele sabe que, uma vez tendo chegado a esse nível, a mentalidade
popular só pode alimentar a luta entre ricos e pobres. É que uma pergunta ganha curso rapidamente
entre a plebe: dado que a riqueza é produzida pelos escravos, não conviria fazê-los trabalhar em
benefício de todos e não apenas de alguns? Não será justo dividir eqüitativamente entre todos os
cidadãos os produtos de seu trabalho, em vez de deixar que uma ínfima minoria se aproprie deles?
Quando ninguém intervém para servir de árbitro nesse conflito e fazer estes e aqueles usarem de
bom senso, a cidade está perdida. Na melhor das hipóteses, então, a democracia conduz à tirania: um
tirano restabelece a paz – privando os cidadãos de seu poder de decisão e de sua liberdade de ação.
O governo do demos, fundamentado no amor à liberdade, à igualdade e à fraternidade, acaba
sempre, por conseguinte, gerando o seu oposto – fatalmente.

Essa análise, da qual Sófocles foi o primeiro a ter a intuição, pôde ter sua exposição atribuída
por Platão a Sócrates. Isso lhe trouxe diversas vantagens. A primeira foi reabilitar a ação de Sócrates
no seio da cidade, oferecendo uma versão tão luminosa de seu pensamento que todos os ataques de
que ele fora objeto teriam que desaparecer para sempre. A segunda foi dar uma lição nos autores de
comédias, apresentando como verdadeiro adivinho um personagem outrora ridicularizado. A terceira,
e sem dúvida a mais importante, foi oferecer aos atenienses um meio de se questionarem.
A metáfora da caverna constitui, por esse ponto de vista, uma arma simbólica de peso
extraordinário. Aristófanes havia situado Sócrates entre o céu e a terra, numa pequena nave de onde
ele se dirigia às nuvens. Isso permitia que o público ateniense se proporcionasse um bom momento
de relaxamento, o que, na época em que a peça foi lançada, ou seja, em plena Guerra do Peloponeso,
era um prazer nada desprezível. Mas a base desse riso era a convicção dos espectadores de terem
eles próprios os pés no chão e, portanto, de serem superiores em muito àquele pretenso pensador.
Por conseguinte, o mecanismo da hilaridade reforçava o público em sua crença num mundo real,
constituído de coisas tangíveis e palpáveis, superior a um mundo irreal, o das idéias, dos argumentos
e dos raciocínios. Daí a vingança de Platão. Calcando os homens sob a terra, A República apanhou os
humoristas em sua própria armadilha. Por não ter dado ouvidos às colocações de Sócrates, o público
não pudera observar qual era a hierarquia conveniente dos mundos. Porque era prisioneiro de seus
sentidos.

A maioria dos homens não se apercebe de estar vivendo no reino das sombras, pelo simples
fato de que se subordina às necessidades de seu corpo. E o que os faz mergulhar ainda mais nisso é
que eles não conhecem as leis da história. O povo acredita poder satisfazer seus apetites ao dispor do
poder de governar a si mesmo. Não compreende que está numa situação que compromete o objetivo
que ele estabelece para si. Enquanto se acredita livre, ele é mais prisioneiro do que nunca de uma
fatalidade que o massacra. Tamanha é a sede de enriquecer em alguns que nada detém sua avidez
enquanto impera a “liberdade”. Para a grande massa, os grilhões da necessidade, por isso mesmo,
tornam-se mais apertados do que nunca, sem que no entanto se faça a luz: manipulados durante
algum tempo pelos que enriquecem em detrimento deles, em seguida eles o são pelos que lhes
prometem dividir tudo. E quando essas promessas deixam de ter valor, ainda é possível distraí-los.
Daí os exibidores de marionetes, dentre eles os autores de comédias.

Por mais difícil que seja admiti-lo, a condição humana é tal que a maioria dos homens jamais
sairá dessa caverna. Visto por esse prisma, seu destino é tão pouco invejável quanto o dos mortos.
Ao menos o da maioria dos mortos. É que também quanto a isso há um mal-entendido. Costuma-se
imaginar que a vida provém do solo. Mas esse é um ponto de vista de lavrador. Essa convicção
repousa numa prática camponesa milenar. Mas há uma outra prática, um outro estilo de vida que
indica que a vida vem do céu. Trata-se da prática dos guerreiros, do estilo de vida dos predadores,
dos homens que, do alto de seu covil ou de seu carro de guerra, baixam sobre o inimigo ou sobre a
presa. Estes sempre habitam acima do solo calcado pelos mortais comuns. São os conquistadores, os
nobres, os aristocratas. Eles têm da morte uma visão oposta. Quando morrem e quando seu corpo
desce a terra, sua alma não desce com ele. Ela não o acompanha, mas se eleva. Eleva-se o mais alto
possível e muito além das nuvens úmidas. Tendo vindo do céu, ela retorna para ele. Ao abandonar a
matéria que animou, não se enterra no solo, mas levanta vôo.

E não pode fugir disso. Sua natureza a proíbe de fazê-lo. Já dentro do corpo ela está sempre
aspirando a se elevar. Não há dúvida de que existem almas rasteiras, almas glaciais, almas úmidas e,
certamente, a maioria dos homens é provida destas. Nesse caso, é de fato possível que essas almas,
mais matéria do que espírito, mais desejo do que vontade, mais cobiça do que intrepidez, mais
artimanha do que coragem, afundem-se nos lençóis d’água subterrâneos em que as espera um triste
destino. Mas e as outras, as almas de elite? Como duvidar que elas se elevam? Por isso é que seus
“descendentes” não devem presumir que o reino das trevas lhes esteja destinado. Quando um homem
dessa raça se extingue, sua alma não desce ao Hades, mas vai inscrever-se no firmamento, na poeira
das estrelas que a precederam.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

VII
A traição de Aristóteles

Cremos que nossa época é profundamente diferente da de Sócrates, porque nossa


democracia não se baseia na escravidão e porque a história já não se desenrola na escala das
cidades. Supomo-nos protegidos de uma decadência idêntica à da civilização grega porque o processo
de produção inclui, desde a Revolução Industrial, uma enorme parcela de trabalho mecânico, ao passo
que a essência do trabalho na Grécia era realizada por homens, o que nos permite contemplar
soluções técnicas que estavam fora do alcance deles. Mas, na verdade, o que é que isso modifica?
Teremos de fato razões tão boas para acreditar que a história não se repita e que as democracias
modernas não venham a ser devastadas pelos mesmos flagelos que as cidades gregas?

Temo que estejamos cometendo um erro. Nós, os modernos, podemos ler nosso futuro no
passado dos antigos, pois o que sucedeu à democracia grega, em particular a Atenas, é algo que
estamos começando a viver. A prosperidade das democracias modernas decorre do tributo que
cobram das nações a que “protegem”. Quanto ao empobrecimento que grassa no seio dos países
ricos, não está ligado à subordinação do homem à máquina, mas à sua substituição pela máquina.
Ora, foi exatamente esse o cenário que a Grécia antiga conheceu: foi a hegemonia escandalosa da
substituição generalizada do trabalho livre pelo trabalho servil que levou a democracia grega a sua
perdição, ao cabo de décadas de guerra civil.

Apesar das aparências, como vimos, a democracia grega saiu de um processo análogo ao da
democracia moderna: ela proveio, tal como aquela de que somos herdeiros, da desarticulação de um
edifício feudal que se baseava na apropriação das forças produtivas por hordas de guerreiros
conquistadores, de origem indo-européia, ao cabo de séculos de invasões bárbaras. Essa
desarticulação, por sua vez, resultou de uma transformação das relações de serviço senhor/vassalo
em relações mercantis vendedor/comprador. Esse processo revolucionário permitiu o surgimento de
novas “luzes” no Universo e no lugar que a espécie humana ocupa nele: levou uma massa de
“pensadores” a romperem com a abordagem mitológica da realidade (como na Europa, a partir do
Renascimento), ainda que a própria massa, o demos, tenha preferido retroceder para aquém dos
mitos de seus antigos senhores, a fim de dar um sentido comunitário às promessas de prosperidade
contidas no advento da democracia.

Análoga em sua gênese à democracia grega, como não o seria a democracia moderna em
seu destino? Desde que saiu vencedora das ameaças que sobre ela faziam pairar certas potências
bárbaras, algumas décadas atrás, ela atribuiu a si mesma a missão de garantir a união de todas as
nações e, por conseguinte, tem-se permitido desviar em proveito próprio o tesouro comum. Tal como
Atenas sob o governo de Péricles, as potências ocidentais cobram um tributo dos povos a que
afirmam proteger. Esse tributo não leva seu nome verdadeiro: chama-se “contribuição para o
desenvolvimento” e, usando esse rótulo, conseguiu enganar por algum tempo. Mas esse dreno se
revela intolerável, pelo tanto que penaliza esses povos, e é contrário às suas motivações oficiais. Não
pára de se aprofundar o abismo entre os países ricos e os países que eles supostamente auxiliam,
outorgando-lhes meios técnicos e financeiros para que se reposicionem no espaço do mercado
mundial. De resto, as cifras estão aí, desanimadoras: o fluxo de capitais oriundos do simples
pagamento dos juros da dívida dos “países em desenvolvimento” supera em muito as somas, cada
vez mais reduzidas, que transitam em sentido inverso. São os países pobres que estão ajudando os
países ricos!

Mas não nos deixemos enganar: essa “ajuda” dos pobres aos ricos não é supérflua. A
prosperidade tem seus limites. Tal como a peste que devastou a cidade de Édipo, um estranho flagelo
abateu-se de fato sobre as paragens do “norte”. Um mal implacável vem infligindo às nações mais
modernas uma esterilidade aflitiva! Sócrates em vão procurou conhecer-lhe a natureza. Platão o
designou nominalmente, em sua época: era a proliferação do número de escravos, sob o efeito da lei
da livre circulação das mercadorias. O magnífico turbilhão dos átomos de Demócrito e a prodigiosa
inteligência do Nous de Anaxágoras viram-se confrontados com uma fase da “revolução” que o grande
estrategista Péricles decerto pensava poder dominar. Pois bem, ele perdeu a batalha: a prodigiosa
“mercadoria” constituída pela mão-de-obra escrava, cujo número crescente assegurava uma
prosperidade cada vez maior a seus proprietários, foi substituindo inexoravelmente a mão-de-obra
dos cidadãos, muito menos rentável, a tal ponto que a maioria deles viu-se expulsa do processo de
produção e empobrecida. Estamos hoje atingindo esse estágio nas “democracias” modernas – tanto
assim que não repugna a nossos Péricles ver entrar nos cofres bancários aquilo que lhes dá motivo
para respeitar suas vítimas.

Em escala planetária, todos os homens são hoje iguais perante a lei, mas, na verdade,
nossas democracias serviram-se de seu papel emancipatório para estabelecer sua hegemonia com
base nos povos que se apresentaram como modelo. Além disso, em seu próprio território elas tendem
a cindir-se em duas, de um modo que faz lembrar estranhamente a dicotomia que se instaurou nas
cidades gregas entre ricos e pobres. Pensamos haver ultrapassado os gregos há muito tempo, mas
eis-nos trilhando seus passos, repetindo os mesmos erros…

Ainda não estamos exatamente no ponto em que a quase totalidade dos cidadãos é
substituída por escravos. Mas essa é uma tendência generalizada. Naturalmente, não se trata de
escravos, de seres humanos que tomem o lugar dos trabalhadores livres, mas de máquinas, de robôs,
de autômatos. No entanto, o processo é o mesmo: a mão-de-obra livre assalariada é maciçamente
eliminada pelos autômatos, que executam todas as tarefas antes executadas pelos trabalhadores.
Quer se trate de tarefas em que a força física é predominante, daquelas em que convém usar de
delicadeza, de precisão e de atenção, ou ainda daquelas em que é preciso “refletir”, as máquinas vão
substituindo os homens. Os robôs são os escravos de hoje. Eles concorrem com os assalariados
modernos com o mesmo sucesso com que os escravos competiram com os cidadãos livres da Grécia.
Uma vez que a lei do lucro continua hoje a exercer sua hegemonia e já que uma mesma causa produz
os mesmos efeitos, porventura estaremos tão longe do caso exemplar que Platão descreveu tão bem
no livro IX da República?

O que nos impede de ler Platão como convém é acreditarmos que a escravidão não constituía
nenhum problema para os gregos, em particular porque eles a consideravam natural. Ora, esse ponto
é muito discutível. Afora Aristóteles, quem defendia a idéia do caráter natural da escravidão? Embora
fosse discípulo de Platão e sem dúvida seu favorito, foi Aristóteles quem deu a essa idéia toda a sua
autoridade. Ou melhor, foi com base em Aristóteles que se adquiriu o hábito de considerar que os
gregos julgavam natural a escravidão. E realmente há que se admitir que, quando ele se debruça
sobre a questão política, Aristóteles põe os pingos nos ii. Segundo ele, o escravo pertence
integralmente a seu senhor e é escravo por natureza: “Pois aquele que por natureza não pertence a si
mesmo, mas é homem de um outro, este é escravo por natureza.” Todo o começo de seu tratado,
que se celebrizou sob o título de A política, é consagrado ao caráter fundamental que tem para a
cidade a existência dos escravos. Mas o que não se destaca, em geral, ou que se costuma esquecer
quando isso é sabido, é que Aristóteles está elaborando uma reflexão e que, por conseguinte, nada
prova que seu ponto de vista seja comum, longe disso.

Deixemos de lado a dificuldade de atribuir ao próprio Aristóteles o tratado que leva seu
nome. Ele poderia ser um apanhado de anotações feitas por alunos de seu Liceu e posteriormente
agregadas, a tal ponto é deplorável e caótico o estilo e a tal ponto de repetem certas páginas. Antes
de qualquer outra coisa, observe-se que o mestre, longe de expor em relação à escravatura uma
doutrina evidente, opõe-se a uma tese que considera que ela nada tem de natural. Ele não nomeia as
pessoas que pensam dessa maneira, mas podemos cogitar de Platão, cujas aulas Aristóteles (que com
isso confirma nossa conclusão) acompanhou por muito tempo na Academia. Nesse ponto, ele trai seu
próprio mestre. Segundo os adversários da escravidão, comenta Aristóteles, “é por convenção que um
é escravo e o outro é livre, mas, por natureza, não existe diferença entre eles”. Para que um homem
seja senhor e proprietário de outro, afirmam esses opositores, é preciso que ele tenha empregado a
“força”. Isso tem por conseqüência autorizá-los a proclamar que a escravidão não é justa. E é contra
essa idéia de injustiça que Aristóteles expõe sua argumentação.

Trata-se menos de uma tese que de uma antítese. E quantos rodeios para defendê-la! A
natureza faz do homem um escravo em dois níveis: no nível da alma e no nível do corpo. “Com efeito,
é escravo por natureza aquele que pertence potencialmente a um outro (e é por isso que [pertence de
fato] a um outro) e que só dispõe de uma quota de razão na medida em que a percebe [nos outros],
mas não a possui [ele mesmo]”; em outras palavras, escravo é aquele que tem apenas o
discernimento suficiente para saber que mais lhe convém ser escravo. Na verdade, isso é melhor
porque ele não dispõe de razão suficiente para não ser escravo, de modo que tira proveito de sua
servidão. É o quanto basta dizer no tocante à alma! E também no tocante ao corpo, pois “a natureza
pretende marcar nos corpos a diferença entre os homens livres e os escravos. Os que figuram entre
estes são robustos, aptos para os [trabalhos] indispensáveis, e os que figuram entre aqueles são
esguios e inaptos para tais tarefas, porém adaptados à vida política (que se divide entre as tarefas da
guerra e as da paz)”! À alma desprovida de razão suficiente corresponde um corpo robusto,
semelhante ao dos animais domésticos, dos quais o escravo é o alter ego. Alegação bastante lógica,
mas que corre o risco de ser vivamente desmentida pela observação, tanto ao termos diante dos
olhos a delicadeza física dos escravos instruídos que trabalham em instituições como as escolas,
quanto ao constatarmos a aparência bestial que têm muitos cidadãos “livres”. E isso a tal ponto que
Aristóteles sente necessidade de acrescentar de imediato: “No entanto, também o contrário se
constata com freqüência…” O que basta para nos mostrar o quanto ele se sente mal – e o quanto
devemos surpreender-nos com o fato de tais afirmações terem chegado à posteridade como um fato
evidente! Quem sabe se o mal-estar de Aristóteles não proviria do sentimento que tem o discípulo de
estar traindo seu mestre e, por isso mesmo, de estar avalizando covardemente os “valores” que este
mais odiava, os da sociedade mercantil?

Persiste o fato de que, por seu turno, permanecer nessa confusão seria uma traição a
Aristóteles. Isso porque, com respeito ao cerne da questão, sua análise é de uma pertinência notável.
O que é ocultado pela tradição justifica, com efeito, uma consideração inversamente proporcional a
esse imbróglio de argumentos que se tornaram “clássicos”. Para qualificar o escravo, Aristóteles
emprega a expressão “instrumento animado”. Essa fórmula, ao que me parece, merece melhor
destino. Ela nos permite compreender melhor o ponto de vista aristotélico e, ao mesmo tempo, tomar
uma certa distância para refletir melhor sobre a situação com que nós estamos hoje confrontados,
pois, afinal, ela mecaniza o escravo, em vez de animalizá-lo. Ficamos tentados a atribuir aos gregos a
idéia de que o escravo não é mais do que uma besta de carga, mais próximo do animal que do
homem. E é verdade que o texto de Aristóteles dá margem a essa convicção. Mas esse texto vai
muito mais longe. Segundo Aristóteles, o escravo é um bem adquirido pelo senhor para seu uso:
portanto, é um instrumento, exatamente como um “leme”, já que tem uma função instrumental; só
que o leme é “inanimado”: é preciso um piloto para manobrá-lo. Esse piloto, por sua vez, é animado:
caso pertença a um senhor, esse piloto será um escravo e, portanto, será um instrumento, porém um
instrumento animado.

Essa definição pode ter enorme valor. Se o que importa no trabalho servil não é a “natureza”
daquilo que desempenha essa função, mas sua “natureza” instrumental, isto é, sua função, pouco
importa que se trate de homens ou de… máquinas. Escravo é o nome que se dá àquele que cumpre
esse papel. Ora, as máquinas modernas cumprem o papel dos homens que antes (ou outrora) eram
vendidos como escravos. Durante muito tempo, elas não ultrapassaram o nível de instrumentos
inanimados, como o leme do navio ou as pás do moinho, que exigiam uma força externa ou alguma
inteligência para fazê-los cumprir seu papel, mas e agora? Porventura não chegamos ao estágio em
que o leme é ao mesmo tempo o piloto? Todos os navegadores (tanto do mar quanto do ar)
conhecem os “pilotos automáticos”. Sem dúvida, nossos robôs modernos ainda não são “animados”,
no sentido em que isso costuma ser entendido, isto é, não são “vivos”, aptos a se alimentar e a se
reproduzir sozinhos, mas, por um lado, não é esse o propósito de Aristóteles (ele efetivamente diz
“animado” e não “vivo”) e, por outro, quando o escravo se impôs, substituindo o trabalho do cidadão
de Atenas, ele não tinha mulher e não podia ter descendentes. Ou seja, a analogia só faz ser mais
reforçada, em vez de enfraquecer.

Enquanto não existiam robôs, não era flagrante o interesse dessa comparação. Enquanto a
máquina exigia a presença do homem para realizar sua tarefa produtiva, qualquer referência à Grécia
poderia parecer estéril; enquanto a essência do trabalho no campo, nas fábricas, nos transportes, nos
escritórios, nos guichês dos bancos etc. era assumida por assalariados, a cidade grega podia servir de
objeto de desdém aos olhos de uma “verdadeira” democracia, que exclui o trabalho servil. Hoje em
dia, entretanto, isso salta aos olhos: por toda parte o instrumento vai assumindo o lugar do homem
livre! Sob a égide das leis do mercado, o trabalho humano vai desaparecendo, não apenas nas tarefas
manuais, porém na operação das máquinas, e não apenas na operação das máquinas, mas também
na administração das mercadorias, nos contatos com os clientes etc. O robô é isso: uma máquina que
prescinde de operador, um instrumento que trabalha sozinho e, portanto, um instrumento animado.
E, tal como na Antiguidade grega, esse processo vai conquistando os setores mais sutis de atividade:
longe de substituírem apenas os “assalariados aptos para o trabalho pesado, por seu vigor corporal”,
os escravos de Atenas, como faço questão de lembrar, tornavam-se médicos, escriturários de bancos,
arquitetos, construtores de navios, supervisores, pedagogos, funcionários públicos etc. Sabiam
refletir, calcular, imaginar, projetar, prever, julgar e, por fim… decidir. Tal como nossos robôs! Graças
à informática, eles põem no chinelo a maioria dos cérebros humanos. A quem haverão de poupar?
Acaso não se anda dizendo que alguns “programas” de computador já estão inventando programas de
computador? Onde irão parar esses escravos, que proliferam inelutavelmente sob o efeito da lei da
concorrência? Que setor deixarão entregue ao “homem”, ao trabalho humano?

Preferiremos continuar a fechar os olhos para o curso dos acontecimentos, até atingirmos o
estado extremo desse processo? Haveremos de querer ir até a confrontação, que é a conseqüência
dele? Esse confronto, desta vez, se desenrolará em escala planetária, uma vez que agora o mercado é
mundial, mas será inexoravelmente gerado pela mesma razão de outrora: a recusa das nações pobres
a continuar a pagar um tributo injusto para a prosperidade das nações ricas, tal como as cidades da
Liga de Delos revoltando-se contra Atenas; ele será provocado pelas exigências das nações prósperas
em relação às carentes (receber o que consideram que lhes é devido) e por seus métodos rápidos e
até punitivos, a exemplo de Atenas, de organizar uma expedição após outra para pôr de joelhos esses
maus pagadores; e será alimentado, qual um incêndio por um vento forte, pelo ciúme de uma
potência rival qualquer que tenha conservado intactas as suas virtudes militares, apesar de sua
caducidade, de seu anacronismo, e que esteja esperando a sua hora, tal como Esparta a soprar as
brasas sob as cinzas para manter vivo o fogo…

E, então, será tarde demais. O mal estará feito. Com que conseqüências? É difícil detalhar a
devastação que será provocada. Mas, se tudo o que foi dito até aqui tem alguma pertinência, é
preciso levar em conta que, nessa ocasião, o confronto tomará conta da própria “cidade”, como
ocorreu com Atenas no passado. As nações ricas não escaparão a uma guerra intestina entre ricos e
pobres. Quer chamemos a uns de “aristocratas” e a outros de “democratas”, como em Atenas, quer
os dois campos tragam outros nomes, isso em nada alterará o conflito. Pois o processo de
empobrecimento da massa dos cidadãos leva à guerra civil. Tendo uma “igualdade de direitos”,
segundo a Constituição, os cidadãos das nações modernas não serão eternamente levados pelo beiço
por seu orgulho de pertencerem à elite das nações. Sua passividade não durará muito mais que a dos
cidadãos de Atenas: momentaneamente satisfeito com as migalhas do imperialismo ateniense e
voltando seu desprezo e seu ódio contra os escravos, o demos acabou compreendendo que estava
sendo tapeado, quando foi então obrigado a admitir que subsistia à custa dos cidadãos de outras
cidades e que tinha de enfrentá-los para preservar seus privilégios. E então, em meio à confusão,
despertou o instinto adormecido dos ancestrais: o ódio pelos ricos e o desejo irresistível de fazê-los
pagar. E nós, portanto, também passaremos por isso.

Dessa mixórdia infame, com seu desfecho fatal, é possível que alguns extraiam algumas
vantagens. Mas quem? A prosseguirmos na comparação com a Grécia, podemos presumir que surja
uma nova potência, que venha a colocar sua pata sobre o incêndio ininterruptamente reavivado, para
apagá-lo. Na Antiguidade, essa potência foi a Macedônia, cujo soberano era Filipe. Filipe era rei. Os
gregos nutriam por ele apenas desprezo, uma vez que ele pertencia às regiões do norte, que haviam
permanecido “bárbaras” – mas quando o bárbaro, seguro de seu golpe, apoderou-se da Grécia inteira,
foi o fim da democracia. Naturalmente, Atenas não foi sua única vítima: nenhuma cidade lhe escapou.
E a Grécia perdeu para sempre sua arrogância: tornou-se uma simples província do reino da
Macedônia. Um frêmito de orgulho abateu o monarca, mas em vão: ele foi prontamente substituído
por seu filho, Alexandre, que submeteu as cidades gregas ainda mais duramente a seu jugo, antes de
edificar um verdadeiro império, fazendo seus exércitos avançarem cada vez mais para o Oriente.

Esse Alexandre tivera como preceptor, é verdade, um filósofo de grande


renome, nascido na Macedônia, em Estagira, em 384 a.C. Antes de ser escolhido
para essa tarefa pelo rei Filipe, esse homem passara sua juventude em Atenas,
no seio da Academia de Platão. Pudera observar com todo o vagar os
sobressaltos em que se debatiam as cidades gregas, em especial Atenas. Tal
como seu mestre, tinha uma idéia precisa sobre a origem da crise da
democracia. E era a mesma idéia, exceto pelo fato de que ele a chamava de
“crematística”, denominação moderna demais para a época. Tratava-se da arte
de adquirir riquezas ilimitadas. Essa arte fundamentava-se no uso corrente da
moeda nas transações comerciais, mas, em vez de fazer com que a moeda
desempenhasse um simples papel de intermediária, agia-se de maneira a que
ela ficasse no começo e no fim da transação. Em outras palavras, invertia-se o
uso corrente. Nessa prática, “a moeda é princípio e fim da troca”, observava o
estagirita. “Ela não dispõe de uma meta que possa limitá-la, pois sua meta é a
riqueza e a posse de valores.” Totalmente antinatural, essa maneira de
enriquecer por enriquecer constituía a lei na Ágora, o que levou a Grécia
diretamente à loucura coletiva. Esse observador bem informado, portanto, não
teve escrúpulos em trair sua pátria adotiva, em favor de sua pátria de origem,
tornando-se preceptor de Alexandre. No entanto, passou por traidor. Chamava-
se Aristóteles.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

VIII
Os instrumentos animados

Abordada no sentido adequado, a história da democracia grega apresenta-se como o resumo


de nosso destino coletivo. À esperança de uma prosperidade sem limites sucede a realidade: um
empobrecimento maciço dos cidadãos, excluídos do mercado pelo trabalho servil, transformados em
parasitas de outros povos e que acabam tentando sair desse impasse fazendo com que os ricos
proprietários de escravos paguem o preço. Se este modelo tem alguma consistência, isso significa
que, ao contrário do que poderíamos acreditar, estamos muito longe da verdade ao considerar
ultrapassadas as lutas entre ricos e pobres, tanto na escala das nações quanto no interior de cada
uma delas.

A filosofia nasceu do desejo de desvendar o segredo dessa tendência fatal enquanto ainda
havia tempo. É assim que entendo o surgimento da figura de Sócrates. Mas as coisas caminharam
muito depressa. Depressa demais! Já na geração seguinte, a sorte estava lançada. Platão teve de
constatar os estragos provocados pelo livre funcionamento da lei do lucro: que podia ser feito ainda?
Voltar atrás, eliminando a escravidão? Mais uma geração e essa dúvida já não seria possível, não
tendo Aristóteles nenhuma ilusão. O mal estava feito e era preciso render-se à realidade. O
irreparável fora cometido. Não era possível voltar ao trabalho assalariado. Restava saber de que modo
a cidade poderia gerir seu destino. Evidentemente, o homem é um “animal político”, porém já não se
podia apostar na democracia para conseguir a paz em meio ao rebanho. Os acontecimentos decidiram
em favor da monarquia…

Seria conveniente, a propósito, salientar que Aristóteles teve muito trabalho para convencer
seus concidadãos. Primeiro, porque ele era naturalmente propenso a uma solução política impensável
para a maioria dos atenienses, o que, aliás, valeu ser tomado por agente de Filipe. Segundo, porque
não era o único a pensar sobre a situação. Certamente, ao inaugurar seu Liceu, teve um sucesso nada
desprezível, que lhe permitiu viver muito bem, a exemplo de Platão com sua Academia, sem subsídios
macedônicos. Não obstante, no mercado das idéias a concorrência era pesada. Conviria aqui falar dos
sofistas, cuja reputação, após um intervalo de dois mil e quinhentos anos, tornou-se calamitosa, mas
que provavelmente são vítimas de mal-entendidos. Assim, quando Aristóteles atacava aqueles que
qualificavam a utilização dos escravos como uma instituição contrária à natureza, podemos apostar
que, além de Platão, ele visava os sofistas. Mas esse ponto, por si só, justificaria um longo
desenvolvimento, porquanto transtorna a abordagem tradicional desses personagens. Trata-se de
uma questão delicada, já que deles não nos chegou nenhum escrito e só os conhecemos por
intermédio de Platão ou por fontes tardias; aliás, era tão freqüente eles se oporem uns aos outros que
é difícil saber qual dentre eles defendia essa causa. Todavia, essa é uma boa oportunidade de
assinalar que seus ensinamentos – dos quais, em geral, só se retém o aspecto demagógico e o
aspecto lucrativo (ao fazê-lo, costumamos apoiar-nos ao mesmo tempo em Platão e… Aristófanes) –
podiam resultar numa resistência à venda e à compra de escravos. Quem sabe se também os sofistas
não haviam percebido o perigo?

Costuma ser bom tom tachá-los de cínicos. O que equivale a cometer dois erros num só. Os
discípulos de Protágoras, por exemplo, ensinavam, a acreditarmos em Platão, que o homem é a
medida de todas as coisas. Logo se entendeu o que isso significava: não existe valor transcendental;
é o homem quem decide o que tem e o que não tem valor e, como o homem é uma noção
transcendental em si mesma, ele próprio não tem nenhum valor. Por último, só tem valor o que cada
um decide adotar como tal. “Aí está um belo sofisma”, indignam-se as pessoas, “que traz em germe a
destruição de todos os valores morais! Não surpreende que Sócrates etc. etc.” Desse “sofisma” ao
“cinismo”, entretanto, existe mais do que um passo. Muito pelo contrário, podemos supor que
Protágoras e seus discípulos tinham em vista algo completamente diferente de uma refutação tão
niilista quanto lucrativa de qualquer forma de ética. Com efeito, afirmar que o homem é a medida de
todas as coisas – a única – pode querer dizer que somente o homem de valor faz coisas quem têm
valor (pensemos em Aquiles) e, nesse caso, podemos considerar os sofistas como saudosos da antiga
ordem, cujo brilho fora conservado na epopéia homérica e que resistia razoavelmente em Esparta.
Mas isso também pode querer dizer que, apesar das aparências, não é o dinheiro que constitui a
medida de todas as coisas e sim o trabalho humano. Quem sabe se os sofistas não tinham a intuição
de que o equivalente universal que permite às mercadorias serem trocadas e que lhes confere um
valor de mercado não é uma quantidade de moeda mas o tempo de trabalho despendido para
produzi-las…

Nada prova tal afirmação, é claro. Proponho-a apenas como uma pista para a reflexão. O que
se constata, em contrapartida, é que nos equivocamos totalmente a respeito do cinismo ao associá-lo
à arte dos sofistas que depreciamos. O cinismo realmente tem seu lugar na aventura grega, mas em
que momento? Na época de Platão e Aristóteles, certamente, mas por quê? Se Aristóteles tinha de
ceder o terreno da Ágora aos sofistas, preferindo ensinar não como comerciante mas como
caminhante, era-lhe preciso levar seus discípulos para algum lugar afastado, talvez para a colina das
Musas ou para o vale do Ilissos. Ora, ao reingressar na cidade, ele tinha de cruzar com Diógenes,
sentado diante de seu tonel. Diógenes, dizem, vivia como um cão. Mas, assim mesmo, ao ver passar
Aristóteles, o antigo discípulo de Platão, por sua vez cercado de alunos, qual não devia ser o seu
despeito! Na cidade, as pessoas se resignavam à dominação macedônica: ninguém mais tinha orgulho
suficiente para defender até o fim o espírito da democracia. Pois Diógenes, ele, sim, teve a coragem
de pedir a Alexandre, o novo senhor da Grécia, que parasse de lhe fazer sombra…

É inútil especular sobre o lugar de onde poderia surgir um novo Alexandre no mundo
moderno… É que, antes de chegar a esse ponto, seria preciso passarmos pelos horrores do confronto
fatal. Será que é isso que queremos? Queremos realmente chegar a tanto? É vocação da filosofia
socrática alertar a cidade para que ela procure saber de onde vem o mal. Parece-me que, hoje em
dia, ainda é tempo de fazê-la desempenhar mais uma vez esse papel, que a sorte ainda não está
lançada e que a vingança de um Platão ou a traição de um Aristóteles ainda não são a norma. Nem
tampouco o desespero de um Diógenes.

Mas talvez essa “fatalidade” ainda não pareça ter fundamento suficiente, não é? Talvez a
idéia de identificar os robôs modernos com os escravos da Antiguidade ainda desperte muitas
reticências. Sem dúvida, a diferença de escala dos dois “mercados” ainda permitiria uma esperança
de escapar à peste. Em escala mundial, não têm os males e os remédios, forçosamente, uma medida
inteiramente diversa? Não continuará a haver tarefas que os homens tenham de assumir? De resto,
acaso o desenraizamento das empresas não é uma tendência tão acentuada quanto a mecanização?
Portanto, o que se compra não é trabalho humano, mesmo que o lugar se modifique? Esse
deslocamento geográfico faz com que nasça ali o que ele compromete aqui, mas, no conjunto,
porventura a quantidade de assalariados não aumenta? Assim, voltemos ao mundo atual e a seus
otimistas, para lhes perguntar se, quando eles falam de máquinas, realmente sabem o que supõem
saber.

Eles hão de concordar em que, no fim do século 18, a mensagem de Smith espalhou-se por
toda a Europa ao ritmo da mecanização do trabalho, da eliminação das barreiras aduaneiras para as
mercadorias importadas e da eliminação das subvenções das mercadorias exportadas. As máquinas
de fogo começavam a entrar nas fábricas, multiplicando a força dos trabalhadores; por conseguinte, o
tempo de trabalho necessário à produção dos bens não parava de diminuir e podia-se esperar que
esse progresso permitisse a todos se beneficiar: vendendo cada vez mais, não ficava o “comerciante”
em condições de comprar cada vez mais trabalho e, portanto, de fazer a felicidade dos trabalhadores?
A nação inglesa não tardou a perceber que a livre circulação dos grãos arruinava a maioria dos
agricultores, que sofria a concorrência da produção das novas colônias, mas a cidade precisava de
mão-de-obra: não estava o capital em condições de comprar o trabalho das massas camponesas
proletarizadas? A máquina a vapor emancipava a produção de sua dependência da força motriz dos
cursos d’água e dos cavalos; a concentração urbana certamente provocava uma assustadora miséria
entre os novos pobres, mas não era esse empobrecimento provisório?

Meio século depois da publicação da Investigação…, um discípulo de Smith que fizera fortuna
especulando, David Ricardo, fez um balanço: e sua resposta foi negativa! Segundo ele, aquilo para
que se dirigia a história, aquilo que esperava a humanidade, o que o capitalismo iria produzir, o que
seria provocado pela mecanização do trabalho não seria a harmonia! Seria a riqueza, de um lado, e a
miséria, do outro. Sua resposta não é tão simples assim, é claro. Discípulo de Malthus, Ricardo
começo fazendo a defesa do liberalismo. Seu primeiro alvo foram as leis em favor… dos pobres. O
Estado inglês provera-se delas mais de trinta anos antes para remediar os problemas mais urgentes
diante das conseqüências da modernização da economia: essas leis previam, em especial, uma ajuda
financeira para os trabalhadores que não podiam vender sua força de trabalho mas tinham muitos
filhos. Pitt fizera a apologia desses pais e havia reivindicado para eles os meios de criarem suas
famílias. Malthus, porém, não tardara a partir em cruzada contra essa filantropia irresponsável, que
ameaçava a Terra inteira de um rápido superpovoamento. Ricardo precipitou-se por essa brecha e
tentou mostrar que a renda nacional seria absorvida por essa tributação, tão logo o crescimento
industrial diminuísse, o que não era uma hipótese a ser descartada.

Observe-se que sua linhagem é exatamente a dos “seguidores de Copérnico”. Foi em nome
das “leis da gravitação” que Ricardo formulou sua advertência! Foi em oposição à “tendência” (e à
força) que tinham essas leis de “transformar a riqueza e o poder em miséria e fraqueza” que ele
colocou seus contemporâneos em guarda no começo de sua carreira (e no começo dos Princípios…).
De certo modo, portanto, ele o fez em nome da forma mais evidente e mais perniciosa do princípio da
inércia (que atrai os homens para o ócio). No entanto, Ricardo tinha medo. Tinha medo de ver o
capital paralisado pela tributação; temia uma redução do crescimento; e era para prevenir essa
situação que ele preconizava a eliminação da ajuda aos pobres e da “benemerência”. Com isso, no
entanto, não imaginava comprometer o bem-estar dos trabalhadores. Muito pelo contrário, porque as
coisas deveriam se arranjar de uma outra maneira. Retirando-se do mercado um certo número de
braços, que sob o efeito da concorrência pesavam sobre os salários, era possível acreditar que se
melhoraria a situação dos trabalhadores restantes, uma vez que com isso se faria elevar o nível dos
salários e seria proporcionalmente diminuído o lucro dos que compravam a mão-de-obra. Mas isso era
pura ilusão, porque, na verdade, os próprios trabalhadores eram penalizados, dado que o aumento
dos salários tendia a promover o aumento dos gêneros de primeira necessidade. Assim, mais valia
deixar que a livre concorrência entrasse em ação.

Hostil à “intervenção do governante”, Ricardo defendia “a franca e livre concorrência do


mercado”. Como qualquer outra mercadoria, o trabalho deveria “ser liberado” e não melindrosamente
protegido pelo Estado. Não se deveria nem mesmo temer a queda dos salários! Esse era o resultado
da “marcha natural das sociedades” regidas “pela oferta e pela demanda” e era a essa marcha natural
que convinha voltar. Nossos liberais de hoje, portanto, dificilmente encontrariam um apóstolo mais
convencido do “capitalismo selvagem” e, até esse ponto, é difícil imaginarmos por que haveriam de
renegá-lo. Ricardo certamente temia que os “pobres” não apreciassem ser privados de todo e
qualquer apoio e ser obrigados a pagar tão duramente “o preço da independência”, isto é, da
revolução efetuada nas relações sociais, do declínio da nobreza e do desaparecimento dos escravos…
Ele sabia muito bem que era preciso proceder “gradualmente”. No fundo, entretanto, não transigia: a
desvinculação do Estado dos “contratos” mercantis se impunha de maneira urgente e definitiva.

E, no entanto, essa postura não resistiu a reflexões mais aprofundadas. Ricardo acabou
avaliando que, no império da lei do lucro, “a imensa maioria” não ganharia acesso ao paraíso
terrestre. Por que razão? Esta não é muito simples de apreender, mas é ainda menos simples de
refutar. Sob o império da lei do lucro, “a marcha natural das sociedades” não pode ser tão favorável
aos trabalhadores quanto aos proprietários do capital, porque a “mecanização do trabalho” tende a
expulsar os trabalhadores do processo de produção. Essa mecanização seria favorável aos
trabalhadores se o aumento da produção e a diminuição de seu valor, resultante desse aumento,
provocassem necessariamente um aumento da “demanda de trabalho” humano. Ora, não é
necessariamente isso o que acontece, como reconheceu Ricardo no capítulo que dedicou às máquinas
no fim de seus Princípios… O inverso seria muito mais provável.

À primeira vista, poderíamos supor que a mecanização do trabalho seria mais favorável aos
trabalhadores do que aos burgueses: ao reduzir o tempo de trabalho necessário à produção das
mercadorias, a introdução da máquina a vapor diminuía seu valor de troca: de um lado, o lucro do
capitalista era reduzido, uma vez que a relação entre o capital investido e o lucro retirado ficava
menor; de outro, o salário dos trabalhadores se elevava, uma vez que a relação entre o que eles
recebiam em dinheiro e o que esse dinheiro podia comprar era superior. Só que essa constatação era
uma falácia. Para começar, o capitalismo podia se recuperar com a venda de uma quantidade maior
de mercadorias e também podia se beneficiar, como consumidor, da queda de preço destas; já o
trabalhador não podia se alegrar por muito tempo, pois o livre funcionamento da oferta e da procura
no mercado mundial obrigava o capitalista a introduzir novas máquinas incessantemente; ora, era
infalível que essa concorrência generalizada em todas as esferas de produção forçasse os capitalistas
a reduzirem seus custos e, muito embora a “demanda de trabalho” continuasse a crescer, ela seria
cada vez menos uma demanda de trabalho humano e cada vez mais uma demanda de trabalho
mecânico. No final das contas, o deixarmos funcionar em sua plenitude a lei da concorrência, da qual
Adam Smith tanto esperava, haveria todas as probabilidades de que as “forças mecânicas”
substituíssem por completo as forças de trabalho humanas…

Ricardo enxergava longe. É fácil imaginarmos o sarcasmo a que seus colegas, como bons e
probos discípulos de Smith, devem ter submetido esse renegado. Na época, eram freqüentes as
revoltas dos trabalhadores hostis à introdução de novas máquinas e eis que Ricardo se fez seu porta-
voz, ao mostrar que eles tinham tudo a perder com a “perpétua concorrência” que as máquinas os
levaram a suportar! Não era isso pura tolice? Diante da generalização sistemática do trabalho
mecânico que atualmente se impõe, inclusive nas tarefas intelectuais, os êmulos conservados por
Adam Smith sustentam o mesmo discurso. Que dizem os liberais? Que não devemos enlouquecer, que
não convém nos refugiarmos atrás de novas leis para os pobres, que é preciso parar de sustentar a
fundo perdido os trabalhadores e as nações depauperados, que se deve preferir a dívida à tributação,
que o capitalismo é jovem, que o mercado mundial é novo, que, sobretudo, não convém nos
retrairmos atrás das velhas fronteiras e que os desafios foram feitos para ser aceitos. Essas
afirmações podem tapear quanto às intenções, mas será que estão à altura do que pretendem? Será
que as pessoas sabem que o próprio Ricardo as sustentava antes de fazer sua autocrítica?

Muito bem se sairiam os que fizessem de Ricardo apenas um profeta de mau agouro. Seria o
mesmo que negar a Kepler a descoberta da trajetória real dos planetas. Mas, a menos que se
suponha que, quando teve a revelação do destino com que o capital ameaçava o trabalho humano,
Ricardo estava fora de si, tem-se de admitir que ele aprimorou o modelo anteriormente elaborado,
segundo o qual o valor de uma mercadoria dependeria apenas do tempo de trabalho necessário a sua
produção. Esse modelo, é claro, parece muito distinto: sob o efeito da concorrência, o tal tempo
necessário diminui, por intermédio da introdução da força mecânica sob formas cada vez mais
eficazes, e, com isso, diminui correspondentemente o valor de troca dos bens. É o reino da harmonia
das esferas! Pena que essa aparência não presta e que todos os cálculos são falsos. Na realidade, o
que se aplica a cada mercadoria é válido para o conjunto das mercadorias e, desse modo, a “marcha
natural” do capitalismo mercantil tende para a queda do valor de troca do conjunto das mercadorias.
Essa queda beneficia momentaneamente aquele que inova na hora certa, de modo a obter custos de
produção inferiores aos de seus concorrentes, mas, no cômputo final, ela leva o conjunto do mercado
à eliminação do homem. É um problema…
Inicialmente, Ricardo censurou Smith por acreditar que a renda da terra, entregue pelo
agricultor ao proprietário rural, acrescentava um valor aos gêneros alimentícios produzidos, e o
censurou em seguida por considerar o lucro do capitalista como um salário. Assim, Ricardo deu início
a uma retificação do modelo liberal que permitiria a Marx “descobrir” o segredo do capital, assim
como Kepler permitiu a Newton descobrir o segredo do funcionamento do sistema heliocêntrico. Ao
fazê-lo, Ricardo enveredou por um caminho que o levaria a passar, perante seus pares, por um
iluminado, um astrólogo, um renegado: ao fornecer uma fórmula rigorosa da tendência à queda da
margem de lucro (conseqüente ao aumento do número de máquinas em relação ao número de
trabalhadores, o que tende a fazer com que se reduza a quantidade do excedente de trabalho
humano), ele favoreceu a introdução do vazio ao sistema defendido por Smith. Sem chegar a esse
ponto, entretanto, acabou reconhecendo que se havia enganado a respeito das máquinas. De fato, o
capítulo que hoje aparece no final de seu Princípios… é um acréscimo à terceira edição, a de 1821,
como indica o prefácio: “Nesta edição, esforcei-me por explicar com mais clareza do que nas
anteriores minha opinião sobre o importante e difícil problema do valor: assim, fiz alguns acréscimos
ao primeiro capítulo. Também introduzi um novo capítulo sobre a questão da maquinaria, assim
investigando o efeito que os aperfeiçoamentos mecânicos produzem na situação das diferentes
classes da sociedade.” O valor e a maquinaria, eis o que Ricardo revisou. Suas opiniões “sobre essa
grave matéria”, a maquinaria, “sofreram”, confessa no início do capítulo em questão, “modificações
consideráveis, sob o império de meditações profundas”. E Ricardo trata de expor sua primeira
doutrina: “Desde o momento em que comecei a estudar as questões econômicas, acreditei que
qualquer máquina que tivesse o efeito de introduzir, num ramo qualquer da produção, uma economia
de mão-de-obra produziria um bem geral, alterado tão-somente pelas crises que, na maioria dos
casos, costumam acompanhar os deslocamentos de capital e de trabalho de uma atividade para
outra.” Nessa época, portanto, um otimista! “Eu acreditava também que as máquinas eram uma
instituição eminentemente favorável às classes trabalhadoras, na medida em que com isso elas
adquiriam uma massa maior de mercadorias com os mesmos salários em espécie.” Uma vez que os
inconvenientes passageiros (crises, desemprego) eram (em tese) fatores de vantagens posteriores
(aumento do consumo e, portanto, do bem-estar para todos), David Ricardo nada tinha a objetar, em
seus primórdios, à mecanização sistemática do trabalho.

O que veio a comprometer seu belo otimismo foram não apenas as queixas “das classes
trabalhadoras em relação às máquinas, que elas consideram fatais para seus interesses”, mas
também a verificação da hipótese aceita por seus colegas mais progressistas: “Meu erro proveio da
suposição de que sempre que aumenta o rendimento líquido da sociedade aumenta paralelamente seu
rendimento bruto, quando tudo prova, ao contrário, que o rendimento dos proprietários e dos
capitalistas pode aumentar, enquanto o que serve para manter a classe trabalhadora diminui.” Para
os ricos, nada de preocupações, a não ser as passageiras! Para os trabalhadores, entretanto, nada
garante a manutenção do nível de vida conquistado. É certo que ele pode se elevar, mas o inverso é
perfeitamente possível. Isso porque à concorrência que os trabalhadores fazem uns aos outros,
acrescenta-se aquela que lhes é inexoravelmente feita, cada vez mais, pela máquina.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

IX
A fatalidade

Será que se avaliou bem o peso da autocrítica de Ricardo? Certamente não em sua época, uma
vez que a situação que ele imaginou, a substituição total do trabalho humano pelo trabalho mecânico,
só podia passar por uma fantasia. Essa avaliação também não foi feita após sua morte, uma vez que
a liderança assumida pela Inglaterra na Revolução Industrial garantiu a essa nação uma prosperidade
que lhe permitiu superar todos os momentos difíceis, sem parar de aumentar o bem-estar de sua
classe trabalhadora. A tal ponto que essa classe trabalhadora, que estivera na vanguarda da revolta
contra as máquinas, aos poucos tomou o partido destas e não mais prestou nenhuma atenção à
profecia daquele especulador rico que, apesar disso, partira em defesa dos interesses dela,
contrariando os de sua própria classe. Para os membros da classe a que ele pertencia, para os
proprietários e os capitalistas, segundo suas próprias palavras, aquela fora, portanto, quando muito,
uma advertência sem nenhum ônus.

Mas e depois? A metamorfose mais recente do processo de produção confirma plenamente o


prognóstico de Ricardo. Vemos sua profecia realizar-se diante de nossos olhos. A pressão da
concorrência impele os compradores de mão-de-obra a comprarem cada vez mais trabalho mecânico,
de preferência ao trabalho humano. Não apenas há um número cada vez maior de instrumentos
animados nas fábricas e não apenas eles desempenham ali funções cada vez mais “sofisticadas”,
como também fora das fábricas, nos escritórios e no setor de serviços, no famoso “setor terciário” em
que os governos de todas as orientações apostavam para a criação de novos empregos, esses
escravos modernos tendem a realizar tarefas até aqui desempenhadas por assalariados: todas as
tarefas.

Não havemos de pretender que a globalização das trocas modifique esse panorama. Pois foi
precisamente na dimensão internacional da revolução mercantil que Ricardo baseou o caráter
inexorável do “progresso” da mecanização do trabalho humano. Mesmo deplorando seus
inconvenientes para os trabalhadores, ele continuou a considerar que não havia como agir de outra
maneira. E, se assim era, isso se devia a que, sem mecanização, os fabricantes ingleses perderiam o
que hoje se denomina de “fatias de mercado” em benefício de outras nações: “A partir do momento
em que se emprega um equipamento aperfeiçoado, diminuem os custos da produção de mercadorias
e, por conseguinte, é possível vendê-las nos mercados estrangeiros a um preço mais baixo.” Nos
mercados estrangeiros! Ricardo, portanto, não tinha nenhuma dúvida quanto ao fato de que a
capacidade produtiva das fábricas inglesas era amplamente superior à capacidade de absorção do
mercado interno. Sob esse prisma, em última instância, não era dramático para os fabricantes
ingleses que o poder de compra dos trabalhadores do país diminuísse ou até se anulasse. O
importante era propor no mercado (mundial) produtos cujos custos de produção fossem inferiores aos
dos outros. O que “importava” era exportar…

Até o fim, sob esse ponto de vista, Ricardo se manteve um otimista. Ele confiava na
capacidade da nação inglesa de conservar sua liderança. Mas isso implicava justamente não renunciar
à mecanização do aparelho produtivo. Fossem quais fossem as conseqüências para os trabalhadores,
era preciso prosseguir nessa direção: “Se, entretanto, rejeitarmos o emprego da maquinaria, seremos
obrigados a exportar moeda em troca de mercadorias estrangeiras, até que a escassez de numerário
reduza o preço de nossos produtos ao nível dos preços de outros países.” Isso aparentemente
restabelece o equilíbrio, mas está longe de ser um bom negócio, pois o “preço” de uma mercadoria
não deve ser confundido com seu valor. O preço oscila de acordo com a oferta e a procura, mas não o
valor. O valor de uma mercadoria depende do tempo de trabalho necessário à sua produção. “Em
nossas relações com esses outros países”, conclui Ricardo, “poderemos ser levados a entregar uma
mercadoria que nos tenha custado dois dias de trabalho em troca de um produto que tenha exigido
apenas um lá fora; e no entanto, esse negócio desastroso seria apenas conseqüência de nossos
próprios atos. Com efeito, a mercadoria que exportamos e que nos custou dois dias de trabalho não
nos teria custado mais do que um se não rejeitássemos as máquinas cujas forças foram tão
habilmente utilizadas por nossos vizinhos.” Que há de mais evidente? E que há de mais irrevogável?

Ricardo talvez se decepcionasse ao ver que a nação inglesa não soube conservar a liderança
que tinha na competição que a opunha às outras nações modernas de sua época. Mas nada o
surpreenderia menos do que ver todas as nações industrializadas de hoje darem um passo em direção
à automatização da produção, pois essa é a própria lógica da modernização, que não poupa profissão
alguma. A alternativa é simples: ou se leva adiante o processo de mecanização ou se é ultrapassado
pela concorrência e, portanto, arruinado: “É sempre perigoso criar entraves à utilização da
maquinaria”, advertia ele em sua época, “pois, num dado país, quando não se confere ao capital a
faculdade de auferir todos os lucros que as forças mecânicas aperfeiçoadas podem gerar, ele é
impelido para o exterior e essa deserção dos capitais é muito mais fatal para o trabalhador do que a
propagação da maquinaria.” Quando a mecanização não ocorre, o assalariado conserva
provisoriamente seu trabalho, mas perde qualquer probabilidade de conservá-lo em longo prazo.
Quando, ao contrário, faz-se essa mecanização, o assalariado perde seu trabalho em curto prazo, mas
preserva suas probabilidades em relação ao futuro: “Com efeito”, esclareceu Ricardo, “a partir do
momento em que um capital é empregado num país, ele solicita ali uma certa soma de trabalho; e as
máquinas não podem funcionar sem que haja homens que as supervisionem, operem e consertem.
Portanto, se reservarmos um capital para a compra de máquinas aperfeiçoadas, estaremos limitando
a demanda de mão-de-obra, mas, se o exportarmos, estaremos anulando completamente essa
demanda.” O trabalhador deve entender que lhe compete aceitar a mecanização, sem o quê
provocará a fuga dos capitais e sua própria infelicidade…

Não há dúvida de que essa chantagem contribuiu intensamente para moderar, em diversas
ocasiões, a revolta dos trabalhadores contra a introdução de equipamentos cada vez mais
aperfeiçoados. E hoje, mais do que nunca, continua contribuindo para isso. Assim, Ricardo não apenas
explica a fatalidade das perdas do emprego, como fornece aos empresários o argumento passível de
aplacar a cólera de suas vítimas, invocando as novas tarefas suscitadas pelo próprio aperfeiçoamento
das máquinas. Só que essa justificação tem limites. A lógica da modernização traz em germe a
condenação de qualquer esperança, em longo prazo, para os assalariados das nações ricas, seja qual
for sua função. Enquanto durar a concorrência no mercado mundial, o trabalho humano, nesses
países, não deixará de ser cada vez mais expulso do processo de produção. Isso porque as máquinas
foram aperfeiçoadas a tal ponto que funcionam sozinhas. O panorama que Ricardo imaginava em
longo prazo, o de uma maioria de cidadãos inteiramente inúteis, está na ordem do dia. Sem dúvida,
ainda existem muitas tarefas de supervisão, manutenção e reparos e, de fato, é preciso inventar,
conceber e testar as novas máquinas e também instruir, formar, alimentar e cuidar do pessoal
adequado. Mas quem pode continuar se enganando? O número de novas tarefas não tem nenhuma
possibilidade de compensar o número das tarefas suprimidas. Pior ainda, a maior parte dessas
próprias funções é objeto do processo de mecanização, dado que elas se reduzem a cálculos que
certas máquinas novas, os computadores, efetuam melhor do que a mão e o cérebro humanos. No
futuro, portanto, não haverá mais lugar no mercado de trabalho para a imensa maioria dos que hoje
ainda trabalham. Tanto nas fábricas como no setor de serviços, tanto na base quanto no topo da
hierarquia, os microprocessadores fazem estragos de tal ordem que a realidade ultrapassa a ficção.

Para “os proprietários e os capitalistas”, o fato de o estágio da completa mecanização do


trabalho estar à vista não é forçosamente um drama. Por menos que o mercado mundial absorva em
quantidade suficiente o que seus computadores produzem, eles podem continuar otimistas. Que o
artificial se torne natural, que as máquinas comecem a sentir ou até a pensar, isso é algo
perturbador, mas é o progresso, o despontar de uma nova era! Que os assalariados dos países ricos
percam seu poder de compra é um fato incômodo, mas só é realmente catastrófico se nenhuma outra
pessoa, em escala planetária, puder compensar essa falta. Ora, o planeta é vasto é há de ser possível
encontrar novos “mercados” nas zonas densamente populosas, como inúmeros países do sul. Se
nesses países é possível comprar mão-de-obra humana por um preço inferior ao dos países ricos,
deve ser possível reproduzir o esquema que funcionou no passado nos países industrializados:
promover o nascimento de uma demanda de consumo dos bens produzidos. Mesmo que seja preciso
transplantar as empresas para as quais o emprego de mão-de-obra a um custo baixo continua a ser
ainda mais rentável do que a mecanização, realmente vai se acabar dando um jeito. E isso é o quanto
basta para alimentar o otimismo daqueles que são “obrigados” pela concorrência internacional a
prescindir, em seus próprios países, da força de trabalho humana.

Mas para os assalariados dos países “ricos” o impasse é total. Outrora indispensáveis, em
condições de negociar no mesmo pé com seus empregadores, eles agora se tornaram supérfluos. Sua
força de trabalho é inútil e sua capacidade de consumir as mercadorias produzidas tem cada vez
menos importância. Tudo o que podem esperar é vender seus serviços com abatimento: que algum
empregador aceite utilizá-los por uma remuneração equivalente à dos trabalhadores dos países
pobres. É isso que os espera! Esse é o seu destino! Será que eles vão se dar por satisfeitos? Acaso
assistirão, sem reagir, ao desaparecimento do lampejo de esperança de recuperação em que
depositavam sua confiança e que aqui e ali ainda lhes sucede vislumbrar no horizonte? Irão mergulhar
num desespero sem revolta, inspirados na inutilidade das revoluções anteriores? Não faltam na
história boas razões para levar os derrotados a se resignarem. Elas são abundantes no mercado das
idéias, onde as mais antigas doutrinas religiosas e as mais arcaicas técnicas de auscultação do futuro
disputam com as mais modernas a conservação do privilégio de convencer os mais decididos a não
fazerem nada, permitindo aos donos do jogo ganharem um tempo precioso.

Em termos imediatos, de fato, a inércia não está fora de questão. Atendo-me ao exemplo de
Atenas, a margem de manobra dos estrategistas de hoje, apesar de muito estreita, não é
inteiramente desprezível. O desarvoramento provocado pelo processo fatal de que os trabalhadores
são vítimas proporciona um intervalo que favorece a liberdade de circulação das mercadorias, dos
capitais e dos homens. Basta que, de um modo ou de outro, a plebe moderna disponha de meios de
se comprazer com sua situação, que lhe seja fornecido material para sonhar à vontade, que ela seja
narcotizada, insensibilizada para a dor e que lhe dêem a ilusão de que seu poder está intacto, ou até
multiplicado, para que ela perca o sentimento do real e a consciência de sua perda. Basta que ela
encontre prazer em vegetar.
Ora, esse meio existe. Existe sob forma vegetal, é claro: recebe o nome de “drogas leves”, as
quais não parecem ser prejudiciais, já que não acarretam vício nem seqüelas orgânicas. Ademais, ela
existe sob forma química: aí os riscos já são maiores, mas, muitas vezes, o desempenho é melhor; o
obstáculo é o preço, quase sempre exorbitante, o que não combina muito com a clientela em questão;
a vantagem é que isso faz com que as populações dos países pobres trabalhem, processo esse que
entra na estratégia de renovação de clientela exigida para o escoamento dos produtos manufaturados
– e ainda por cima progride-se no terreno do custo líquido, uma vez que não param de sair novos
“produtos” dos bolsos dos traficantes… Por último, há uma terceira forma de narcotização maciça, que
faz lembrar estranhamente uma inovação ateniense: o espetáculo eletrônico.

Qualquer que possa ter sido a verdadeira origem do teatro grego, há que reconhecer uma
certa pertinência na tese proposta por Nietzsche logo no início de sua obra, quando ele tenta mostrar,
em O nascimento da tragédia, sua função de narcótico. Segundo ele, o espetáculo trágico constitui o
meio que os gregos se proporcionaram de suportar o caráter intolerável da vida – da vida deles, em
particular, e da vida em geral: “O grego conhecia os terrores e os horrores da existência, mas os
mascarava para poder viver.” Não era por ser capaz de júbilo que o povo grego desconhecia a dor.
Pelo contrário, ele sofria muito, afirma Nietzsche, e esse excesso de sofrimento o ameaçava
ininterruptamente de só experimentar desânimo pela vida, a ponto de já não desejar senão uma
coisa: morrer. Supremo perigo! “A vontade helênica lutou contra a propensão para o sofrimento e
para a sabedoria do sofrimento, correlata do talento artístico. A tragédia nasceu dessa luta, como um
monumento dessa vitória.” Vitoriosa sobre o desejo de renunciar a viver, sobre o desejo de parar de
sofrer, a tragédia grega oferece o exemplo singular de uma reconciliação com a vida, na escala da
cidade inteira, através de uma mediação estética.

Seguindo a exposição de Nietzsche, podemos presumir que ela é uma construção teórica, de
fundamento puramente metafísico. Com efeito, sua explicação apóia-se na doutrina de Schopenhauer,
seu mestre, seu mentor espiritual da época, segundo a qual viver significa sofrer. Há nisso um
fatalismo, na medida em que o indivíduo é uma presa perpétua do desejo e, por conseguinte, está em
permanente carência: mal encontra satisfação por um instante, esse desejo volta a se apossar dele ou
é sucedido por um outro. Quando, em caráter excepcional, um ser consegue satisfazer todas as suas
carências, ele não tarda a mergulhar no tédio – o que não constitui uma melhora, de vez que ele
então aspira à morte. Para Schopenhauer, o ser humano, como todos os outros seres, é vítima de
uma ilusão ao crer que suas dores possam chegar ao fim. Pois o que ele desconhece é que vive
apenas para a reprodução de sua espécie, ela mesma em luta incessante com todas as demais. Uma
vez cumprida a sua tarefa (depois de milhares e milhares de provações), a natureza o faz desaparecer
sem o menor escrúpulo. Por isso, sem sombra de dúvida, a vida é um péssimo negócio. Melhor seria
nem sequer nascer…

Nietzsche, retomando à sua maneira as premissas dessa doutrina, rejeitou as conclusões dela.
Julgava poder provar que os gregos haviam encontrado um meio de transcender a dor de viver e,
com isso, de justificar a existência. Pois, se é verdade que viver é sofrer, isso não impede que o viver
passe pelo desejo e que esse desejo experimente momentos de satisfação. Como na contemplação
estética. A conclusão de Schopenhauer só é válida quando não se consegue fazer com que essa
satisfação seja compartilhada por todos nem tampouco eternizá-la. Mas e quando isso é conseguido?
E quando, em vez de ficar reservado a uma elite, esse prazer inunda a comunidade? E quando, em
vez de ser fugaz, a satisfação que se extrai da contemplação é capaz de perdurar? E quando se
encontram meios de renová-la? Nesses casos, em vez de desaparecer como uma calamidade, o
sofrimento passa a ser fonte de gozo, pois vem a ser o prelúdio, o anúncio, a promessa dele:
“Ampliação e transfiguração das fontes de assombro e dos terrores da vida como fonte de cura da
vida! Vida alegre, no desprezo pela vida! Vitória da vontade em sua negação!” Em vez de sofrer sem
saber por quê, portanto, o homem moderno, a exemplo dos gregos, poderia extrair de um remédio
semelhante um prazer análogo.

Considerada com atenção, essa historicização não é anódina. Por mais metafísica que possa
parecer, a colocação de Nietzsche vai beber diretamente nas fontes do rio da história grega. O mundo
olímpico já havia fornecido ao povo grego, segundo ele, uma primeira forma de consolo: a beleza de
seus deuses o salvara do dissabor da vida. Nisso se reconhece a operação realizada pela nobreza
dórica em sua época. Mas esse sucesso foi precário, porque essa própria nobreza desapareceu. Foi
preciso esperar pela época das Guerras Médicas para que o povo se tornasse senhor de seus terrores:
“Indaguemo-nos qual foi o remédio que permitiu aos gregos, em sua era grandiosa, apesar do vigor
extraordinário de seus instintos dionisíacos e de seus instintos políticos, não se esgotarem nem na
meditação estática nem numa necessidade devoradora de dominação universal, mas chegarem à
dosagem admirável de um nobre vinho que, ao mesmo tempo, inflama e leva à meditação; nesse
caso, teremos que pensar no poder excitante, purificador e portador de alívio da tragédia.” Oriunda do
culto de Dioniso, o deus da vinha, a tragédia é uma forma particular de embriaguez. Ela escapa à
regra da embriaguez comum, cujo efeito não é outra coisa senão o embrutecimento. Trata-se de uma
forma sutil que, como um vinho nobre, tempera os desejos, aplaca as frustrações, consola e restitui a
vontade de viver.
A seguirmos de perto essa tese, perceberemos que Nietzsche associa o surgimento da tragédia
à alternativa diante da qual se encontrava Atenas: de um lado, o desencadeamento dos instintos do
povo, reivindicando a igualdade na pura tradição dionisíaca, isto é, na violência da revolta seguida
pela mais total apatia, que podemos comparar à embriaguez grosseira, capaz de destruir tudo,
inclusive o bêbado; de outro, a pretensão de conquistar o mundo inteiro através das armas, com um
furor que não conhecia limites. Segundo ele, o espetáculo trágico constituiu a formação ideal de
compromisso entre essas duas tentações, que traziam, ambas, o risco de levar a cidade muito
rapidamente, por si mesma, à perdição. Esse compromisso foi obtido através da “reconciliação” das
duas potências a que o livro inicialmente dá os nomes de Dioniso e Apolo. Apolo é apresentado como
o deus do sonho, mas também como o da ordem, do limite e da conveniência; é o deus que
estabelece os limites e é ele, seguramente, que conduz os passos dos conquistadores dóricos. Já
Dioniso, ao contrário, é o deus que abole as fronteiras entre os indivíduos, os sexos e as classes;
portanto, é o deus que derruba os limites instaurados pelos conquistadores e que impele os homens,
em sua embriaguez, a se confraternizarem, como na época da comunidade primeva – até o dissabor
que se segue inelutavelmente ao fracasso… Sem a tragédia, o povo de Atenas ter-se-ia entregue, sem
sombra de dúvida, a essa embriaguez brutal. Graças a ela, isso não aconteceu. Servindo de
“anteparo” para o drama real, o drama fictício adiou os confrontos. Em vez de mergulhar
imediatamente na guerra civil, Atenas continuou a se rejubilar: o tempo interrompeu seu vôo, como
num devaneio.

Na situação em que nos encontramos, essa análise não deixa de ter interesse. Ela nos coloca
na pista do papel que devem vir desempenhando, ultimamente, as telas de televisão. Estágio
supremo do culto de Dioniso, momento de êxtase coletivo depois das Guerras Médicas, celebração do
advento da democracia, evocação dos mortos, o espetáculo trágico acabou provocando a hipnotização
do demos ateniense diante de sua própria imagem. Poderíamos falar de uma narcotização por auto-
hipnose! Ora, esse tipo de anestesia permitiu que o processo de substituição do trabalho livre pelo
trabalho servil se efetuasse sem dor e sem que ninguém o percebesse, embora todos estivessem com
os olhos bem abertos. Melhor ainda, essa operação proporcionava prazer. A grande arte! O mesmo se
pode dizer da televisão. Digna descendente do êxtase dionisíaco, a televisão faz com que a massa dos
cidadãos entre em hipnose, como no devaneio de um ébrio. Esse sonho teleguiado não deixa de ter
suas virtudes, uma vez que oferece os préstimos de um veículo com desempenhos que, em princípio,
estão fora do alcance dos simples mortais. Sem dúvida esse veículo se justificou, a princípio, como
uma celebração da vitória sobre a barbárie, na saída do pesadelo dos anos 30 e 40 deste século.
Instrumento incomparável na difusão da cultura de massa, ele assegurou, de quebra, a vitória dos
valores populares sobre os da elite. Grande júbilo! Mas que aconteceu nesse meio tempo? Por trás da
tela, as máquinas levaram a melhor sobre os homens.
Resta agora saber o que acontecerá. Irá o demos dos países ricos acordar ou irá afundar-se
ainda mais em seu sonho? Em Atenas, na época de Sócrates, o despertar foi tardio e cruel. Custou à
gente do povo seu trabalho e custou à Grécia inteira sua liberdade. Com seus derivados de toda sorte,
o poder narcotizante do espetáculo televisivo tem sido mais promissor do que nunca. Perfilam-se
opções incontáveis. Anuncia-se o estoque de uma quantidade infinita de programas, aos quais o cabo
que liga cada casa ao distribuidor permitirá o acesso por baixo custo. Fala-se em fundir o telefone, o
computador e a televisão (chama-se a isso “multimídia”), de modo a que o espectador possa não
apenas determinar seu programa a seu critério mas também intervir no espetáculo (o que é chamado
“interatividade”). Doravante se fabricam, de maneira “numérica”, espaços e objetos ainda
desconhecidos (chama-se a isso “mundos virtuais”). Estendem-se redes que “conectam” entre si
cidadãos de todos os pontos do planeta… Tudo isso pode adiar ainda mais o confronto dos cidadãos
dos países ricos com a realidade. O despertar será correspondentemente mais duro. Porque também
ele é fatal.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

TERCEIRA PARTE
PARA ONDE VAMOS?

X
A repetição

Nietzsche, por sua vez, sem dúvida não desejaria esse despertar. Tal como Heráclito, ele
deplorava a derrubada dos valores nobres em favor dos da plebe através da fatal subordinação do
mundo moderno às leis do mercado. Nascido uma geração depois de Marx, ele se viu imediatamente
confrontado com a luta entre as classes modernas. É claro que, na Alemanha, a aristocracia fundiária
ainda existia, mas estava irrevogavelmente comprometida por suas ligações com as altas finanças, ao
passo que, bem na base da escala social, o proletariado crescia com extremo vigor. Nietzsche foi
testemunha direta do vigoroso crescimento das reivindicações operárias e cedo lhe pareceu que a
vitória dos trabalhadores seria inevitável. Ao contrário de Marx, entretanto, essa perspectiva o
assustava, pois, a seu ver, representava um perigo mortal para a civilização: “Não há nada mais
terrível do que uma classe servil que passou a considerar seu estilo de vida uma injustiça e que se
dispõe a desafrontar seu direito, não apenas por ela mas por todas as gerações”, escreveu ele,
exatamente na época da Comuna de Paris, em 1871. Sua convicção profunda – quando ele conseguia
exprimi-la sem estremecer – era que a escravidão das massas era a condição sine qua non de
qualquer civilização digna desse nome. O problema era que, desde a época do Renascimento, a
dominação do homem pelo homem havia aos poucos perdido toda a legitimidade, as Luzes tinham
justificado a emancipação dos “súditos” e, enquanto isso, a lei do mercado não parava de contradizer
a promessa de abundância para todos, o que levava as classes inferiores a derrubarem seus novos
senhores, simultaneamente incapazes de manter a palavra e de fazer com que sua dominação fosse
aceita: “As imensas misérias sociais do presente nasceram da pieguice do homem moderno e não da
comiseração verdadeira e profunda que essas misérias inspiram; e se é verdade que os gregos
pereceram pela escravidão, é ainda muito mais certo que nós pereceremos por já não haver
escravidão.” A negação da maldição pela qual o homem foi atingido na Terra teve como único
resultado fazer os explorados acreditarem que seu sofrimento não era inevitável e passarem então a
se voltar contra os que a promoviam, como a negação da negação. O que vinha confirmar o império
do mal…
Desde os 20 anos de idade, Nietzsche estimava que seria preciso um milagre para evitar
essa “vingança” operária. E quando, aos 25 anos, travou conhecimento com Richard Wagner,
acreditou por um instante no milagre. É justamente esse o sentido de seu primeiro livro, O
nascimento da tragédia, publicado logo depois da guerra de 1870 e da Comuna. Nietzsche via em
Wagner um novo Ésquilo, passível de acalmar, de um lado, os ardores de conquista da caserna
prussiana e, de outro, a embriaguez revolucionária do proletariado. Ao captar essas duas tendências
contraditórias por intermédio do espetáculo dramático, a arte de Wagner deveria surtir sobre a
Alemanha de Bismarck o mesmo efeito da tragédia grega na cidade de Péricles. Infelizmente, apesar
de sua bela construção estético-metafísico-histórico-política, nada disso se deu. Em conseqüência da
terrível crise nascida do craque de Viena, a tensão não parou de aumentar, tanto entre as nações, em
escala mundial, como entre as classes. Nietzsche perdeu seu tempo. Wagner, é claro, conseguiu
montar em Bayreuth a íntegra de sua Tetralogia (que resgatou o perfil das festividades dramáticas
dos gregos), intitulada O Anel dos Nibelungos, atraindo para o festival a nata da sociedade. Todavia,
no exato momento da inauguração, em julho de 1876, enquanto ele recebia a visita do imperador, o
canhão trovejava nos Bálcãs: era o sinal do conflito esperado por todos entre a Rússia e a Inglaterra,
que tinha todas as probabilidades de precipitar a Europa inteira na guerra – e os trabalhadores de
todos os países na revolução.

Nietzsche, então com 32 anos de idade, aprendeu sua lição: rompeu com Wagner, cuja arte
não podia ter nenhum “efeito” terapêutico na escala necessária, renunciou por muito tempo a
qualquer “metafísica artística” e tentou recuperar a calma. Decidiu não mais carregar nas costas todos
os sofrimentos do mundo e tentou curar-se de sua própria necessidade de encontrar um narcótico
proporcional à sua obsessão. Entrou em tratamento, tornando-se seu próprio terapeuta, e, na solidão,
acabou encontrando sua melhor companhia: sua sombra. Essa sombra o seguia por toda parte, tanto
assim que ele lhe deu um nome: Zaratustra. Zaratustra, como Nietzsche, se manteve solitário por
muito tempo: já não queria comportar-se como um camelo, atravessando o deserto do mundo
moderno, vergado sob o fardo que seus donos o tinham feito carregar. Não queria mais nenhum
senhor. Queria tornar-se seu próprio senhor – tornar-se um leão. E assim fez. Tornou-se tão forte que
não se colocou mais a serviço de ninguém, para não mais experimentar piedade pelos homens, para
deixar que nele se expressassem a natureza, a crueldade da natureza e também sua doçura. Para não
mais se sentir “culpado” pelo mal que seus instintos podiam causar. Para se sentir inocente. Perder
toda a consciência pesada, como uma criança que brinca. Também conseguiu fazê-lo. Assim, tornou-
se criança. Tinha envelhecido expressivamente, mas se tornou criança. Saiu então de sua toca para
se dirigir aos homens, para deixar que a natureza se exprimisse, com toda a inocência, por sua boca.
Zaratustra começou a falar.
Primeiro se dirigiu à multidão, reunida na praça do mercado, na primeira cidade que
apareceu. Em vão. Ele falou do “Super-homem”, da necessidade de o homem superar a si mesmo, de
estabelecer uma ponte entre o homem e algo que lhe fosse superior, de não se resignar à
mediocridade, de não sucumbir à tentação de se tornar o “último homem”, de não regredir a esse
ponto, e de não se enroscar como um verme, afundando-se no comodismo, rejeitando a dor, o
sofrimento, a crueldade das coisas, e se refugiando na tepidez de um buraco tenebroso mas seguro.
Não foi ouvido. Ou melhor, a multidão “piscou o olho” ao ouvir Zaratustra falar do último homem e
lhe perguntou, com ardor, como atingir esse estágio, como se transformar no último homem.

Essa, portanto, foi a primeira e última tentativa de Zaratustra de falar com uma multidão,
com um rebanho, com o povo. A partir daí, ele não mais falou senão para alguns discípulos seletos. É
que tinha um segredo a transmitir, o segredo de seu sucesso, o segredo de sua vitória sobre a
consciência pesada, de seu acesso à inocência da criança, àquele poder que, segundo Heráclito, faz
com que a criança seja rei.

Se narro essa história, se esboço em linhas gerais o espantoso percurso de Nietzsche, é


porque ele nos obriga a refletir pausadamente sobre a seqüência dos acontecimentos, de nossos
acontecimentos. É certo que Nietzsche não foi um profeta melhor do que Marx, uma vez que, embora
a temesse, considerava inevitável a transformação da revolução mercantil numa revolução operária.
Ao contrário de tudo o que se possa ter afirmado a esse respeito, diga-se de passagem, Nietzsche não
ignorava nada nesse plano. Há algumas décadas, passou a ser de bom tom não tomar “em grau
absoluto” sua apologia da escravidão, a pretexto de que ele não sabia o que estava dizendo, não tinha
nenhum conhecimento das realidades sociais de sua época e era vítima dos preconceitos de sua casta
de intelectuais burgueses. Desse modo se acredita render-lhe homenagem, mas isso equivale a lhe
fazer uma afronta. A tese da “ignorância” é eficaz, certamente, para livrar Nietzsche da suspeita que
pesou sobre a idéia do Super-homem desde que o nazismo se serviu dela, mas contradiz a tal ponto a
realidade que se mostra insustentável. Tanto a correspondência quanto as palestras de Nietzsche
provam o contrário. Ele sabia muito bem como proceder. E é justamente isso o que melhor explica a
gênese de sua obra, assim como de suas reformulações – aquilo a que ele mesmo chamava suas
traições.

É nisso, aliás, que ele nos importa. Isso porque, tal como Heráclito, o altivo sacerdote do
templo de Ártemis, em Éfeso, que só sentia desprezo pela multidão, Nietzsche lançou um desafio ao
regime democrático: segundo ele, toda a história do mundo moderno levava o povo a tomar o poder,
mas com isso o conduzia ao nada. O último homem seria o fim da civilização, o momento em que a
“moral dos escravos” daria o remate final na reviravolta iniciada no Renascimento e precipitaria o
crepúsculo. Por moral dos escravos convém entendermos a vontade de parar de sofrer, em oposição à
vontade dos melhores, dos aristói, que amam o confronto, com tudo o que ele comporta de risco: os
ferimentos e a morte. Os valores nobres já não vigoravam desde que o capital se sagrara vencedor,
mas o que é que seu desaparecimento implicava? O desaparecimento da felicidade. Era um engano,
segundo Nietzsche, supor que a felicidade viria da abolição da dor. É que sem dor não há prazer e
sem prazer não há felicidade. Ao procurar diminuir cada vez mais seus sofrimentos, o povo tende,
sem saber, a fazer secar a fonte de suas alegrias. A paz entre os homens, a igualdade entre os
cidadãos, a abundância para os produtores, tudo isso é um belo projeto, que soa muito bem na praça
do mercado. É só ele se realizar, porém, e a vida está acabada, pelo menos uma vida digna desse
nome.

Se Nietzsche tinha razão, de que adianta alguém se rebelar contra o estado de coisas
vigente? De que adianta, para o demos, sair de sua letargia atual, se a passagem da ficção de seu
poder para a realidade o narcotiza ainda mais? Já em relação a sua época, Nietzsche tinha uma visão
sombria e, naturalmente, zombava da esperança “ingênua” dos trabalhadores e encontrar a felicidade
na expropriação de seus senhores. Assim, tal como o discurso de Heráclito na época do surgimento do
demos grego, seu discurso opunha uma recusa à pretensão da plebe de se sair melhor do que os
melhores. Essa recusa continua a ser válida. E mais do que nunca, talvez. A pergunta persiste, de
fato: irá a eliminação dos ricos dar felicidade aos pobres? A tese central de Nietzsche é que a
derrubada do senhor pelo escravo não significa forçosamente um progresso. Aquilo que “progride” no
tempo e no espaço pode muito bem tornar a declinar numa profunda decadência. Basta que o
percurso seja circular (ou elíptico, não importa) para que o “progresso”, ao avançar, transmude-se
em seu contrário e para que uma civilização luminosa se redescubra na escuridão, pelo simples fato
de que uma mesma força age sempre no mesmo sentido. Isso, ao que parece, é válido com respeito à
civilização grega, uma vez que, em última instância, o que a esperava era o crepúsculo: depois de ter
luzido com um brilho ímpar, ela tornara a imergir na noite, perseguindo sua rotação a ponto de fazer
o Sol fugir de seu horizonte. E, conforme a boa lógica, se dermos à emergência da sociedade
mercantil no mundo moderno o nome de “Luzes”, é esse o destino que nos espera… Na melhor das
hipóteses, ao rematar a revolução mercantil, o despertar do demos moderno terá como único efeito
prosseguir em sua decadência.

Assim, façamos uma pausa para refletir. Antes de tudo, observemos que, para Nietzsche,
essa “decadência” não seria uma calamidade completa. Isso porque, ao mergulhar na noite, o mundo
moderno mais uma vez seguiria o exemplo da Antiguidade e permitiria, num prazo mais longo, o
retorno daquilo que Nietzsche, por sua vez, considerava uma civilização digna desse nome. Refiro-me,
com isso, a uma civilização aristocrática, onde a casta dos melhores reina sobre uma massa que lhe
reconhece a superioridade: em troca de sua proteção, essa casta se beneficia do “sobretrabalho” dos
humildes, daqueles que não ousam arriscar sua vida e que preferem a servidão à morte. Isso não
constitui pura especulação, dado que foi o que aconteceu entre o momento em que a Grécia entrou
em decadência e o momento em que o mercado reapareceu na Europa. “O caminho superior e o
caminho inferior são um só”, dizia Heráclito. E tinha razão. Levou tempo, mas a nobreza dórica
acabou recuperando, sob as feições da nobreza germânica, sua posição predominante. A exemplo da
Lua, que desaparece no poente quando o Sol se eleva, ela enveredou pelo caminho inferior para
reencontrar o caminho superior. Nesse jogo, é claro, é preciso ter muita paciência. No caso, foram
necessários uns dois mil anos para vermos Apolo ressurgir no horizonte. Mas que são dois mil anos
para um deus? Também foi preciso, previamente, enfrentar novos Titãs, ou seja, as hordas de
bárbaros vindas de toda parte e que, durante séculos, fizeram devastações no Ocidente. Mas não é a
isso que mais aspira um guerreiro? Enfrentar os monstros que fazem da noite dos povos um
aterrorizante pesadelo, abatê-los, com o risco da própria vida, pôr ordem nesse caos, fazer dele um
cosmo onde um líder guerreiro disponha em boa ordem seus “satélites”, isto é, seus vassalos, seus
subordinados, a fim de realizar façanhas que permaneçam na memória e que os aedos possam cantar
através dos séculos?…

Essa repetição da história grega requereu vinte séculos, mas aconteceu. Para Nietzsche, isso
é o essencial. Aliás, é essa a razão por que é inútil despolitizar seu pensamento, a fim de inocentá-lo
dos crimes nazistas. Ele não tem nenhuma necessidade disso. O retorno de seu Super-homem, visto
por esse prisma, nada tem em comum com a instauração do regime hitlerista. Seu combate não era
esse (como seria o de Heidegger e de muitos outros). Mesmo que lhe tenha sucedido perder a
paciência (não há deus que agüente), Nietzsche não vislumbrava nenhuma solução em curto prazo.
Seriam necessários milênios para que o senhor da terra a que ele aspirava pudesse novamente se
impor, para que a plebe, esgotada por seu pesadelo, encontrasse de novo uma felicidade indizível em
sua servidão e novamente se entregasse a um senhor: embrutecida por seu culto da igualdade e
paralisada por seus sonhos paradisíacos, anestesiada, sem vida, seria preciso uma soma colossal de
sofrimentos, impostos pelo curso dos acontecimentos, para que ela reencontrasse o caminho do
verdadeiro gozo. “Despolitizar” o pensamento de Nietzsche é privá-lo de seu fundamento. Como se
ele se houvesse debruçado por acaso sobre o destino da polis e isso não tivesse a menor importância!
Como praticar um contra-senso pior? O que ele esperava de Wagner já continha, em germe, o desejo
de tal repetição. O meio não era o que convinha, mas o próprio Heráclito também deve ter cometido
algum erro.
Resta o fato de que sua idéia da polis, justamente, é falha em pelo menos um aspecto. E
esse aspecto pode ser decisivo. Nietzsche não viu que o demos, sob o reino de Péricles – que se
convencionou chamar de “a grande época” da civilização grega -, foi sistematicamente despojado de
seus meios de subsistência. Ele não viu que o povo foi expulso do processo de produção e que, por
conseguinte, o que levou a cidade à ruína não foi a revolta dos escravos, mas a dos cidadãos livres
empobrecidos, justamente a massa dos cidadãos que não eram escravos. Ele não viu que a droga a
que o povo inteiro se entregava, por intermédio da tragédia, consolava-o desse processo fatal.
Heráclito também não viu isso, ou pelo menos não encontramos nenhum vestígio dessa percepção em
seus fragmentos. De Éfeso, isso não devia ser muito visível. Ele sabia muito bem que, cedo ou tarde,
a multidão pagaria por sua aliança antinatural com os novos-ricos e que, como a Jocasta de Sófocles,
acabaria por se enforcar; ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, os próprios novos-ricos teriam de
pagar por sua perversidade, que Apolo jamais reconheceria a legitimidade da vitória deles sobre a
nobreza consangüínea, e que, vendo o corpo inerte do povo, eles acabariam vazando seus próprios
olhos e renunciando ao poder… Mas as palavras de Heráclito, no momento mesmo em que ele
anunciou que tudo pereceria pelo fogo, continuaram, como muitos dos oráculos que o deus enunciou
em Delfos, obscuras.

Nietzsche não se saiu melhor no que disse. Sem dúvida por não ter enxergado com mais
clareza. E se não enxergou com mais clareza a história da cidade grega, naquele exato momento, foi
– como duvidar disso? – por não enxergar o que tinha diante dos olhos. Quem haveria de censurá-lo?
Aquele cenário era muito pouco provável! Ricardo, meio século antes, o havia descrito. Vira que a
plebe seria despojada, pelo menos nos países industrializados, de seus meios de subsistência. Vira o
proletariado ser expulso do processo de produção. Porém, quem mais além dele? Ricardo fora
ridicularizado pelos economistas sérios. Reconhecia-se que o capital tendia a “expropriar” as antigas
classes dominantes, mas isso se dava em benefício das novas classes trabalhadoras, uma vez que
aumentava consideravelmente a “encomenda de trabalho”. Via-se perfeitamente o quanto essa
encomenda despovoava os campos, mas era em benefício das cidades. Assim, não se percebia muito
bem de que modo essa encomenda crescente de trabalho assalariado nas cidades poderia levar à
dicotomia prevista por Ricardo! Diante disso, havia um outro cenário, o de Marx, que encarregara a
classe trabalhadora de expropriar os expropriadores, mas nem por um instante ele havia considerado
que a classe trabalhadora pudesse ser expulsa do mercado antes de realizar sua missão. Marx não
poderia acreditar que o proletariado sofresse tal destino, que se deixasse embotar a esse ponto e que,
no final da história, o cenário imaginado por David Ricardo é que viesse a se impor. Poderia Nietzsche
fazê-lo? Seus conhecimentos de economia política, embora mais do que louváveis, não tinham esse
sentido, mas o inverso. Sem querer levar em conta as publicações que provinham do campo social-
democrata, todos os seus “manuais”, todas as suas fontes o levaram a crer que o proletariado
disporia, em curto prazo, de meios de romper com a lei do capital e se apoderar dos meios de
produção, para resolver de uma vez por todas essa questão do trabalho, que tanta tinta fazia correr
desde sua mais tenra meninice. Aliás, quando esse assunto foi debatido no Reichstag, em 1878, em
seguida aos atentados contra o imperador atribuídos aos socialistas, quando Bismarck apresentou sua
lei de exceção e quando o autor do Capital, que se fazia chamar de Carl Moor na juventude, tornou-se
o centro de todas as discussões e de todas as polêmicas, nunca se evocou a idéia de que o curso dos
acontecimentos pudesse enveredar por esse caminho.

O que significaria hoje o desfecho da tendência à derrubada dos valores nobres pela moral
dos escravos? O escravo é a máquina! Isso não significaria, portanto, a derrubada dos cidadãos ricos
pelos cidadãos desfavorecidos, mas a derrubada do proprietário das máquinas pelas máquinas, pois
as máquinas é que são os escravos, e não os cidadãos, os quais, justamente, são despojados de seus
meios de subsistência pelos robôs, como o foi o demos grego pelos escravos. Será que já chegamos a
esse ponto?

Na Grécia, os escravos não assumiram o poder e não foi sua revolta que levou a nação à
ruína e sim o empobrecimento da massa dos cidadãos livres. Os escravos não tiveram nada a ver com
isso, pelo menos na condição de atores. É claro que, aqui e ali, houve algumas insurreições – como
nas minas de Láurio, em particular, onde a concentração de escravos era imensa. E alguns destes
aproveitaram o conflito para fugir ou então para se emancipar. No entanto, parece-me, é um
completo erro imputar-lhes a decadência da Grécia. O fim da democracia grega obedeceu a uma outra
luta: a dos pobres contra os ricos e a dos ricos contra os pobres. Os pobres, tão cidadãos quanto os
ricos, recusaram-se a se deixar tapear por mais tempo e exigiram dos ricos que essa situação tivesse
fim. Cegos por sua prosperidade, como mostra Sófocles, enlouquecidos por sua sede inesgotável de
riqueza, como revela Platão, fascinados pelo poder que tem o lucro de gerar lucro, como explica
Aristóteles, os ricos continuaram surdos à queixa dos pobres. Apostando numa solidariedade da
fortuna que ultrapassaria as fronteiras de sua cidade, optaram pela guerra, preferindo a arbitragem
das armas à da razão. Divertidos com esse espetáculo, muitos aristocratas de berço decerto
encontraram uma certa recuperação do interesse pela vida na insustentável exacerbação da tensão e
a luta foi travada.

Quando os pobres dos países ricos saírem de seu torpor, é exatamente isso o que nos
espera.
Um Café para Sócrates
De Marc Sautet
Livraria José Olympio Editora S.A.
Tradução de Vera Ribeiro

À guisa de conclusão

Pode ser que os escravos tomem o poder. Na Grécia, governados por Alexandre, eles
começaram a se vingar dos cidadãos livres que, de tanto combaterem uns aos outros sem chegar a
nenhuma decisão, foram aos poucos perdendo o controle da situação. Os escravos começaram a se
reproduzir entre si. Mas foi preciso esperar pela hegemonia romana para que essa tendência atingisse
o paroxismo, sob a égide de uma nova religião, o cristianismo. O que, afinal, levou alguns séculos…

Hoje em dia, poucas pessoas crêem na capacidade das “máquinas” se tornarem autônomas,
inteligentes, de sentirem, decidirem e um dia disporem, tal como seu inventor, o ser humano, da
capacidade de reprodução. Eu teria muita dificuldade de fingir que a situação já está nesse pé. Este
livro é um testemunho disso. Ele não foi escrito por um computador. Recorri ao serviço de uma
máquina para “captar” meus pensamentos, tal como antigamente me servia de uma caneta e folhas
de papel. Justamente, no entanto, fui eu que me servi dela: ela foi minha humilde criada, dedicada às
tarefas ingratas de execução, e não pensou em meu lugar. De um modo geral, isso é o que acontece
com a maioria das tarefas que confiamos às máquinas.

Entretanto, temo que essa fase da relação entre a nossa espécie e a delas seja apenas muito
provisória. Atualmente, para conseguir do meu computador o que antigamente minha mão fazia sem
reclamar, quanto já não me foi preciso aceitar dele! – sua instalação, seu funcionamento, seus
caprichos. Aliás, ele não parou de me dar ordens. E quantas vezes não me disse não! Quantas vezes
não me obrigou a recomeçar! De resto, devo confessar que exploro apenas uma parcela ínfima de
suas possibilidades. Ora, trata-se de um computador bastante comum. Já existem outros muito mais
eficientes. O meu é portátil. Outros vão nascendo, cheios de microprocessadores cada vez mais
potentes, e alguns dispõem de uma lógica fluente e de programas que criam programas que já
nenhum cérebro humano é capaz de controlar. Estes, ou os da geração seguinte, já não terão de ser
carregados, pois se carregarão sozinhos. Eles supervisionarão, consertarão e entreterão uns aos
outros. Em pouco tempo, não há por que duvidar, irão reproduzir-se entre si. Nesse momento, o
problema já não será saber como deveremos nos portar com eles, mas como eles se portarão
conosco.
É claro que ainda não chegamos a isso! Se minha analogia está certa, o momento que
vivemos equivale ao momento em que Sócrates se lançou à procura da verdade, ao momento em que
ele procurou decodificar a advertência de Sófocles aos atenienses; mal entramos, portanto, na fase
em que os escravos tomam o lugar dos cidadãos livres no mercado de trabalho. A sorte ainda não foi
lançada. Por conseguinte, ainda deve ser possível evitar o pior e, se não a guerra civil em si, pelo
menos seu desfecho fatal.

Esse ponto justifica que nos detenhamos. No fundo, do que se tratava a guerra que devastou
a Grécia? Da apropriação, por parte de Atenas, do tributo destinado à proteção de todas as cidades e
não de uma só, é claro. Acima de tudo, porém, da apropriação do trabalho dos escravos. Foi isso que
dilacerou a nação e a levou a sua ruína. Serem os cidadãos excluídos do processo de produção é uma
coisa; não poderem eles beneficiar-se do trabalho dos escravos é outra. Na realidade, o que estavam
procurando os cidadãos empobrecidos? Apropriar-se, por sua vez, dos meios de produção da época,
das forças de trabalho servis, a fim de fazer com que elas trabalhassem a seu serviço. Não era
nenhum absurdo. Os proprietários se opuseram a isso até o fim, apostando na desmoralização do
povo. É isso que nos espera, portanto, a partir do momento em que a maior parte dos cidadãos for
substituída por máquinas nos países ricos: um confronto pela posse desses escravos modernos, as
máquinas de toda sorte que vão proliferando.

Assim, resta saber o que queremos: se os proprietários de nossos escravos atuais se


recusarem a fazer os instrumentos animados trabalharem em prol do conjunto da coletividade – o
que, em pouco tempo, pela simples lógica, será exigido pelos cidadãos que forem privados do
trabalho -, eles precipitarão as nações ricas num confronto fatal para a democracia. Talvez já
acreditem que as coisas não podem correr de outra maneira, dado que a concorrência os obrigará a
não ceder. Mas a questão toda é saber se essa argumentação tem algum sentido. É que, tal como os
escravos da Antiguidade, os robôs produzem muito mais riqueza do que o necessário para sua
manutenção e a de seus proprietários. É possível que, naqueles tempos idos, o trabalho dos escravos
não fosse suficiente para garantir o bem-estar de todos os cidadãos. Mas será esse o caso hoje em
dia? Ao que parece, há aí uma diferença notável entre o mundo moderno e as cidades gregas, a única
que importa: a produtividade dos atuais instrumentos animados parece tão superior à dos
instrumentos animados daquela época que se afigura perfeitamente concebível que a maioria dos
cidadãos modernos possa não trabalhar, sem, no entanto, conhecer a miséria.

O que está acontecendo? Se a capacidade de produção de nossos escravos é realmente tão


notável quanto se diz, temos razão de nos orgulhar de nossa superioridade em relação aos gregos,
pois dispomos do meio para não precipitar a democracia num confronto sem saída. Isso, é claro,
implica que o demos esteja ciente desse fato e que os proprietários dos escravos modernos
reconheçam que não têm nenhuma razão para levar o conflito até o fim. Tudo poderia arranjar-se da
melhor maneira possível. Os escravos ficariam à disposição da cidade e cada um de seus
aperfeiçoamentos contribuiria para a melhoria da situação de todos. Ao renunciar ao seu monopólio
sobre as forças de trabalho servis, remetendo-as à coletividade, os atuais proprietários sairiam
ganhando, pois se poupariam os cruéis revezes da sorte que toda guerra civil implica, como aconteceu
durante a Guerra do Peloponeso.

Parece-me oportuno, desse modo, fazer algumas sugestões. A primeira concerne aos
proprietários de escravos: que eles consigam tempo para se aprofundar em seus direitos e seus
deveres; reler Platão poderia ajudá-los. A segunda diz respeito a suas vítimas: aqueles que já não
têm trabalho e os que ainda o têm; que eles perguntem a si mesmos se o conhecimento de suas
condições de vida é realmente superior ao da maioria dos prisioneiros da caverna. A terceira concerne
a meus colegas e, mais particularmente, a todos os que pensam em fazer da filosofia sua profissão:
em vez de se encerrarem num plano de carreira, em vez de subordinarem sua prática à transmissão
de um corpus autônomo, de verem as nações mergulharem no ódio (o que não constitui um conceito
operacional, é verdade) e os povos mergulharem na miséria (mesma observação), que eles se
instalem no seio da cidade, que contribuam para tirar essa disciplina de seu solilóquio e que
aprendam a torná-la acessível a todos os cidadãos, formulando a pergunta das perguntas: não são
nossos escravos incomensuravelmente mais “eficientes” que os escravos dos gregos? Que eles a
formulem em particular e em público, nas instituições e nas empresas, nos consultórios, no debate
público, em seminários, no jantar, nas viagens e até – por que não? – nos cruzeiros. Que a formulem
aos adultos, aos velhos, às crianças, aos peritos, aos responsáveis e aos irresponsáveis.

O que parece certo é que essa pergunta tem futuro. Estamos em hora de balanço. E ele é
pesado. O progresso da sociedade mercantil cobra um preço muito alto. Nada garante que ele
prossiga em sua marcha em benefício de todos, muito pelo contrário. Quanto mais as coisas
“progridem”, mais se explicitam as ameaças: é desnecessário retomar a lista aqui. Como na época da
prosperidade dos antigos gregos, há em funcionamento um mal que se assemelha furiosamente ao
flagelo invisível pelo qual eles foram atingidos. Mobilizados pelas queixas que se elevam de toda
parte, os chefes de Estado dos países ricos, que respondem pelo destino de seus povos, prometem
tomar as providências que se impõem tão logo conheçam com clareza a causa primordial do flagelo.
Mas parece que têm tido muita dificuldade de encontrar o oráculo certo. Daí minha última sugestão,
dirigida a eles: se não tiverem tempo de reler Platão, que mandem seus emissários a Delfos – para ali
consultar a pítia!

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