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Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura

Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128


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FRONTEIRAS E TRINCHEIRAS NA CASA DE CORNÉLIO PENNA1

Luiz Eduardo da Silva Andrade (PICVOL/UFS)2

O ser no romance moderno é mostrado vacilante em meio ao caos da realidade, é

solitário e dividido, características percebidas no modo como os espaços são ocupados.

Nesse período há uma predileção à representação de temas que abordam a transitoriedade,

ou seja, a representação do deslocamento é mais significativa que a fixação em um ponto,

como a discussão acerca de maniqueísmos, por exemplo. A manifestação da escrita,

enquanto descontinuidade, compõe-se de fragmentos impossíveis de serem fundidos em

uma totalidade. Há, na vida e na escrita, uma intermitência que deixa lacunas como rastros,

numa busca do ser pela libertação dos ideais de ordem e perfeição. Argumenta Walter

Benjamin (1993, p. 226) que o gosto pelo aspecto fragmentário, pelo não-pleno e por tudo

que mostra a morte através da arte, cumpre a tarefa de reconhecer a ação corrosiva do

tempo, a decadência e a desfiguração das coisas.

Essa ruína acumulada pela história é recuperada em A menina morta (1954), de

Cornélio Penna (1896-1958), que representa a queda do regime patriarcal, juntamente com

a libertação dos escravos. O fato de ser uma narrativa ambientada na segunda metade do

século XIX e publicada na década de 1950 é uma mostra do silenciamento de alguns

problemas do Brasil. Essa “mudez histórica” dialoga com o conflito tratado no presente

trabalho: através da representação espacial na obra objetivamos explicitar o combate

silencioso entre o Comendador, patriarca da fazenda do Grotão, e a sua esposa, D.

Mariana, estendendo-se também aos respectivos parentes de ambos.

Embora não seja muito conhecido, Cornélio Penna configura-se para os críticos

como escritor de qualidade peculiar na literatura brasileira. A repercussão dos seus livros foi
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pequena, legada a alguns artigos publicados em revista e jornais da época – como os de

Adonias Filho, Tristão de Ataíde, Mário de Andrade, Sérgio Milliet e Augusto Frederico

Schmidt. O primeiro estudo completo foi feito por Luiz Costa Lima no livro A perversão do

trapezista (1976), talvez o maior responsável por Cornélio não ter caído no esquecimento.

Além de Costa Lima, nos serviremos das ideias de Josalba Fabiana dos Santos (2004;

2010), estudiosa que tem publicado recentemente inúmeros trabalhos sobre a obra

corneliana.

A menina morta é uma narrativa em que o tema central é a queda da estrutura

patriarcalista. Desenvolve-se em uma grande fazenda de café no Vale do Rio Paraíba, na

fronteira entre as províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. A casa-grande é imensa e

a produção está no auge quando a filha mais nova do Comendador e de D. Mariana morre,

eis a “menina morta”. Há inúmeros agregados e três centenas de escravos. A narrativa inicia

com os preparativos para o sepultamento da menina. Ela, um ser cujo nome nunca é

proferido, arrasta consigo todas as virtudes da fazenda, aludidas pela sensação de perda

que todos sentem, inclusive os escravos. As únicas personagens que não lamentam em

palavras a morte dela são os pais, os quais sofrem um drama íntimo encoberto pelo orgulho

e pela individualidade reinante. O clima de mistério é constante, não se sabe qual o mal que

acarretou nessa morte prematura. A casa é habitada predominantemente por mulheres, são

as escravas, a governanta alemã, e as parentas dos senhores.

Durante a narrativa são erguidas fronteiras e trincheiras, entendidas como metáforas

espaciais em que cada senhor com seus parentes agregados encenam uma guerra

silenciosa. Através dos mistérios, em que se mostra algo e se esconde outros tantos, a

narrativa corneliana envereda sua crítica à estrutura patriarcal. Muitas vezes a luz lançada

sobre um ponto tem objetivo maior de “realçar” a escuridão que está por trás do objeto do

que iluminar ele próprio. É a partir desse jogo de claro-escuro que vão se delineando os

conflitos na casa. Sem contar que o excesso de luz presume o seu contrário.
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Com o estudo sobre o espaço vamos percebendo o mal que corrói a casa-grande e

a mente das personagens, principalmente após a morte da menina isso é intensificado, pois

muitos veem o futuro com apreensão. A partir dessa noção vemos que a ambientação como

signo do mal tem seus desdobramentos refletidos pela casa: nos cômodos, na natureza, no

clima, nos objetos, no deslocamento e na ocupação de determinadas áreas pelas

personagens. Cornélio Penna com suas metáforas espaciais do mal cria um clima

misterioso que muitas vezes se confunde com os pensamentos e ações dos viventes. Para

nossa análise tomamos a definição de Paulo Astor Soethe (2007, p. 223), em que o espaço

literário é um conjunto de referências discursivas ficcionais e estéticas que remetem a

locais, movimentos, objetos, corpos e superfícies, percebidos pelas personagens ou pelo

narrador, incluindo-se nessa percepção qualidades como grandeza, massa, textura, cor e

contorno do que é visto. Decerto que todas essas noções espaciais estão imbricadas no

romance.

A cena inicial da nossa discussão é o momento da narrativa em que os familiares

estão na mesa de jantar, e pela maneira como estão perfilados notamos a gradação

existente na casa (PENNA, 1958, p. 782)3. Do lado do Comendador estão seus primos, o Sr.

Manoel Procópio, D. Virgínia, D. Inacinha e Sinhá Rola. Do outro lado a cadeira de D.

Mariana está vazia, restando sua parenta Celestina e mais três cadeiras vazias dos filhos

que viviam na Corte. Ausências que se somam à ausência da menina, enquanto metáforas

do silenciamento na casa.

Na passagem é nítida a separação que há entre as “duas” famílias. São nesses

“encontros” que conotamos o sentido declarativo ético do espaço, defendido por Paulo A.

Soethe (2007, p. 221), quando o estudioso diz que “perceber o espaço possibilita conceber

a imersão dos sujeitos perceptivos em um mundo partilhado”. Entendemos a mesa como

uma fronteira e as fileiras de cadeiras como trincheiras, cada senhor com seu pequeno

batalhão. Dividem a mesma comida e de certa forma o mesmo espaço, embora o conflito
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seja implícito com a permanência de D. Mariana em seu quarto, coibida de participar e saber

do que se passava no Grotão.

Como apontamos antes, a guerra na casa também se estende aos parentes dos

senhores, sobretudo às mulheres. D. Virgínia, a prima mais íntima do Comendador, veio de

uma fazenda arruinada após a morte do marido. A viuvez acompanhou a perda da

propriedade e ela foi convidada pelo seu primo a morar no Grotão. Já ao chegar foi tratada

com o silêncio, ausência e frieza de D. Mariana, a qual “nem sequer a olhara de frente por

muito tempo, e lhe dirigia a palavra como se cada uma delas fosse esmola que deixasse cair

quando se encontravam” (PENNA, 1958, p. 814). Humilhada pela sua própria história e pela

Senhora, viu no nascimento da menina um motivo de felicidade para ela que não teve filhos

e poderia transferir algum sentimento bom para a criança. Mesmo assim vê seus limites

maternos escancarados pela ama de leite Libânia, escrava alforriada sobre a qual D.

Virgínia não tem grande poder. Passada essa fase, empreita um ataque a D. Mariana

tornando-se

em seu íntimo, a rival da Senhora nos deveres da educação e da saúde da


menina. Agora tudo se desfizera diante dela, mas mesmo aturdida pelo
golpe sofrido queria encontrar terreno onde ainda pudesse encontrar pé, e
foi no desejo de feri-la que pôde se firmar. (PENNA, 1958, p. 815, grifo
nosso)

A noção de guerra é marcada nos vocábulos grifados, sobretudo quando a prima do

Senhor se vê como “rival” na tentativa de “ferir” a Senhora. Além disso há toda uma noção

espacial em ganhar “terreno” e “firmar-se”. Após toda a empreitada sem sucesso contra D.

Mariana, é até digno de ironia o modo como D. Virgínia agora tenta atacar: lendo as cartas

chegadas da Corte. Fato que não é de todo irrelevante, haja vista que ela sabe de muita

coisa que se passa dentro e fora da fazenda.

Retomando a cena do jantar, ao fim da mesa, pelo lado do Comendador estão D.

Inacinha e Sinhá Rola. Pela localização já vemos que as duas irmãs estão abaixo de D.

Virgínia, embora todas dividam o passado de terem vindo de fazendas arruinadas. Com a
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morte do pai, são resgatadas pelo seu primo para o Grotão, chegam com a dor da

humilhação e vivem como estranhas deslocadas na casa. Por não serem protagonistas da

vida na fazenda elas vivem aos cochichos, de modo que sabem de muita coisa escutada de

canto em canto. Não tecem maiores comentários sobre o conflito dos senhores, denota-se

em alguns momentos mais omissão do que aliamento ao Comendador. O medo de

contrariá-lo, sob qualquer aspecto, é mascarado pelo respeito e silêncio com que vivem.

Celestina, sentada do outro lado da mesa sozinha, é considerada a parenta menos

importante, posto que é a única representante da família de D. Mariana, isso enquanto

Carlota, a filha mais velha do casal, não chega da Corte. Em oposição a D. Virgínia que é

prima em primeiro grau do Comendador, a jovem Celestina é “considerada aparentada

simplesmente” (PENNA, 1958, p. 742). Embora não haja registro de alguma ação da jovem

contra o Senhor ou suas primas, a antipatia por D. Mariana é transferida para ela.

Passagem marcante é quando a moça e D. Virgínia estão no quarto lavando o corpo da

menina morta e Celestina chama a outra de prima. A reação é a seguinte: “– Prima? –

Interrogou a velha senhora, e breve riso a fez estremecer. Toda ela exprimia vingança e

mofa diante de injúrias antigas e alheias” (PENNA, 1958, p. 742). Mais uma vez a marca do

ressentimento passado entre as personagens, sempre na tentativa de afetar a Senhora. É

tanto que seguindo a cena, D. Virgínia aceita e pede que Celestina a chame de prima, uma

flexibilidade momentânea tendo em vista o instante delicado no qual estão. É tanto que

durante o resto da narrativa a jovem não torna a dizer “prima”, nem a outra amolece o trato

com a parenta de D. Mariana.

O prestígio ou a falta dele está expresso também na gradação dos nomes das

parentas. Começa no topo com Dona Virgínia, suscitando ironicamente alguma pureza e

seriedade na mais sagaz de todas. Passando do diminutivo de Dona Inacinha ao Sinhá

Rola, que não é Dona nem Senhora e é tratada por um apelido. No caso de Celestina não

há sequer pronome de tratamento, marcando seu lugar na base, também por ser a mais

jovem de todas.
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Ainda sobre a cena do jantar, veja-se que além da cadeira ocupada por Celestina há

a ausência dos filhos pelo lado de D. Mariana. As três cadeiras dos filhos nesse lado os

aproximam da mãe, sobretudo pelo sangue. Contudo o vazio represente o distanciamento

entre eles – três estudam na Corte e a mais nova morreu – tornando o convívio da Senhora

na fazenda mais isolado. A falta do lugar da menina na mesa abre uma questão sobre o

qual lado ela estaria, se do pai ou da mãe. Daí, tem-se novamente as ausências do nome da

criança, da sua cadeira e dos outros filhos.

Há um clima de mistério na narrativa sobre o motivo da Senhora viver no quarto. No

início do isolamento diziam às visitas que estava doente até que todos foram se

distanciando e surgindo comentários de que ela envergonhava a família. Haja vista que as

primas do Comendador parecem guardar algum segredo. Todo esse silenciamento revela

que as palavras de alguma forma ganham materialidade naquele espaço, haja vista

suscitarem a presença de algo proibido.

Os quartos se configuram como prisão e refúgio, para o primeiro caso temos a

condição de D. Mariana; o refúgio está para as parentas quando conversam sobre a história

da família, criando narrativas paralelas à principal. Por outro lado, a condição de prisioneira

da fazendeira é um lugar de refúgio para o marido, que se servia desse bloqueio para

resguardar-se de alguma inconveniência no contato dela com os demais moradores.

O fechamento desse primeiro ciclo ocorre justamente numa das poucas vezes que D.

Mariana sai do quarto. É inclusive um momento ímpar em que temos acesso às palavras

dela. A circunstância é novamente um jantar, com a diferença que dessa vez está presente

na mesa o Padre Estêvão. Sua visita é devido à morte do escravo Florêncio, que

supostamente cometeu suicídio alguns dias depois de atentar contra a vida do Comendador.

Ao sair do quarto a fazendeira já causou o maior espanto em todos, ainda mais quando

ocupou sua cadeira na mesa e

disse então ao sacerdote, em voz bem alta, que dominou o ruído do arrastar
e
das cadeiras de jacarandá: – Sr. P. Estêvão, quero pedir-lhe faça a
encomendação do corpo de um de nossos escravos, falecido ontem. Fez-se
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súbito silêncio na sala. Todos pareceram petrificados e pararam em meio do


gesto esboçado à espera da resposta a esse pedido, formulado com altiva
firmeza. (PENNA, 1958, p. 952)
Um dos hóspedes protestou dizendo que Florêncio tinha se matado, contudo o padre

respondeu a ela que já tinha encomendado o corpo antes do enterro. A partir desse

momento podemos presumir que a guerra foi declarada.

O sentido ético dessa ação é o rompimento social em dois pontos: um porque

Florêncio era um escravo e não seria necessário um pedido tão exclusivo; e segundo

porque dias antes o negro tentara matar o Comendador com um tiro, daí a sua esposa

evidencia que ele “foi suicidado”, expondo aos convivas a monstruosidade do marido.

Apesar da imagem de fragilidade, D. Mariana atinge o marido, sua presença o amedronta e

provoca. É tanto que sua ousadia ocorre na mesma noite de sua partida repentina.

Com esse pedido da Senhora, uma transgressora frente ao patriarcalismo, é

transmitida, em tons de denúncia social, ao marido a qualidade de criminoso – no sentido da

escravidão – posto que ele assassinara Florêncio. O quarto é uma trincheira da qual D.

Mariana avança até seu posto na mesa, culminando o ataque quando ultrapassa a fronteira

pela sua presença e, principalmente, pelo rompimento do silêncio. No tocante ao silêncio,

acrescente-se que na obra pode ser visto como ausência ou presença de algo: em relação a

D. Mariana é uma mordaça do Comendador, como um sinal da violência, por outro lado a

falta da voz é um protesto, ainda mais por ela tratar tudo com frieza num sinal de

desligamento da realidade; da parte do Senhor o silêncio é o exercício do poder, já que

basta sua presença para todos ficarem afoitos, destarte que é também uma fraqueza, prova

disso é o cerceamento das vozes na casa quando o assunto é a família, deixando implícito o

medo da revelação de alguma coisa. Josalba Fabiana dos Santos (2004, p. 117) vê esses

silêncios como lugares de memória onde há fraturas incuráveis, vejamos que o Comendador

tenta abafar qualquer voz sobre a história da família. Como argumenta a estudiosa, são

espaços abertos, semelhantes a uma boca, onde qualquer recordação pode depositar algum

dado indesejável ao patriarca, noção reforçada, não por acaso, pelo nome da fazenda do
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Grotão. Ideia que Josalba F. dos Santos (2004, p. 117) analisa com a “definição de

boqueirão, que além de sinônimo de grotão é sinônimo de bocarra, boca grande. Então

grotão é a boca que narra e a boca que omite, é a fronteira entre o dito e o interdito ou entre

a linguagem e o silêncio”.

A fala de D. Mariana no jantar não significa a tomada do poder, entretanto a imagem

paternal do marido para com os escravos é arranhada, sobretudo diante da família, do padre

e do hóspede presentes à mesa. Como diz Josalba F. dos Santos (2004, p. 117), esses

entre-lugares entre o dito e o silêncio cintilam a elucidação de mistérios acerca das fraturas

familiares. Nesse caso, a baixa do Comendador está na exposição da sua monstruosidade,

pela palavra de verdade contraposta à lei vigente.

Daí relacionamos algumas oposições através da espacialidade concernente a cada

personagem. A figura do fazendeiro está vinculada à escuridão, criando uma atmosfera

sufocante. Noção reforçada pela estrutura da casa fechada na penumbra e silêncio

constantes. Em A menina morta encontramos corredores escuros, mesmo pelo dia, quem se

embrenhava num deles tinha a “sensação de penetrar em gruta imensa, sem limites no alto

e nos lados, pois suas paredes eram escuras, com os móveis sombrios, lisos e quase

ameaçadores em sua severidade” (PENNA, 1958, p. 806). Os móveis aqui metaforizam a

estrutura patriarcal que perdura por tantos anos na família. Figuras retas, fechadas e

enterradas na memória do lugar.

Além do escuro, o Comendador também está ligado à terra, pois explora o café

juntamente com o trabalho escravo. Sua lei abarca todos os espaços, desde a lavoura até a

casa, na qual se configura um labirinto com todos os seus inúmeros cômodos e passagens.

Essa representação do espaço construído e ordenado coaduna-se com a noção do espaço

estriado de Deleuze e Guattarri (1997), como aponta Josalba Fabiana dos Santos (2010), ao

dizer que embora haja várias regras, limites e proibições no Grotão, a homogeneidade

desse espaço estriado se dá no direcionamento pontual de todas as leis para a manutenção


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do sistema patriarcal. Ideia que a estudiosa reforça com a imagem das retas paralelas e

perpendiculares do cafezal e dos corredores da casa-grande.

Segundo Deleuze e Guattarri (1997, p. 157) os espaços não param de ser

traduzidos, transmutados de liso a estriado e vice-versa. A tradução e transmutação

espacial são movimentos semelhantes a um jogo em que uma trincheira rompe uma

fronteira para se firmar mais adiante. Retomamos a ideia de Josalba F. dos Santos (2010)

em aliar o domínio do Comendador ao espaço estriado, que pela definição deleuziana é

sedentário, métrico, dimensional e limitado. Note-se que em relação à casa-grande há uma

estrutura fixa, delimitada e funcional na configuração dos seus cômodos, bem como

externamente na terra do cafezal. A casa ocupa um lugar central no Grotão, dela partem

pelo menos dois caminhos: um em direção à Corte e outro, no sentido oposto, à mata.

A oposição casa versus mata é tratada por Costa Lima (1976, p. 101), quando ele

bifurca a análise relacionando a construção e o sentido para a Corte ao Comendador e a

estrada da mata com a clareira ligadas a D. Mariana. O primeiro leva à civilização, ao

Império tendo como pano de fundo o regime escravocrata e o patriarcalismo; o segundo

caminho Costa Lima (1976, p. 101) alia à presença do feminino, daí decorrem a liberdade, a

barbárie e a não-segmentação espacial. Josalba F. dos Santos (2004) diz que o bárbaro, em

oposição ao civilizado, é rústico, violento e sem princípios morais (p. 63), ou seja, é livre,

desmedido, tende ao rompimento da ordem, como se fosse um elemento natural do seu ser.

Embora hoje o Comendador possa ser visto como bárbaro pelos seus atos, na época era

normal, sendo que é D. Mariana, o ser da mata, que opera de forma indireta a

desconstrução – barbarização – do sistema. Ela é um sujeito que mesmo dividindo espaço

com o patriarca mantém resistência. Como bárbara ela é o outro na visão do marido,

destarte precisa ser dominada justamente porque causa medo. É tanto que quando Carlota

retorna da Corte, o pai tenta atraí-la para seu lado, sendo que adiante, sob a ideia da mãe,

ela operará objetivamente a ruína do Grotão.


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Voltando a Deleuze e Guattarri (1997) relacionamos o lugar da Senhora ao espaço

liso, que para os teóricos é um espaço nômade, não métrico, nem direcional, é um espaço

intensivo, mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas. Semelhante ao

movimento bárbaro de quebra dos valores e da ordem. Assim, D. Mariana rasga, se não

mostra aos convivas na mesa, as linhas do espaço estriado que a amarram.

Conotamos a condição de liso ou estriado – mata e casa – como trincheiras. A

fronteira nesse ponto é o quadrado divisor dos caminhos, sem contar que é naturalmente

fronteiriço, haja vista ser um lugar frequentado por todos os moradores. O quadrado é um

terreiro onde de um lado está a casa-grande e defronte a senzala, na outra lateral está a

casa das máquinas e o caminho da mata, em frente à entrada da fazenda e o caminho da

Corte.

É a partir do quadrado que Costa Lima (1976, p. 101) define os dois sentidos opostos

dos caminhos da Corte e da clareira na mata. O primeiro com um vetor definido, estriado, e

reto, enquanto da mata o vetor está em todas as direções, ou seja, a abertura espacial

mantém estreita relação com a liberdade ensejada por D. Mariana. Personagem

concomitantemente ligada à natureza e à barbárie. E que tem o mar no próprio nome, como

aponta Josalba Fabiana dos Santos (2004, p. 49). Não esquecendo também que sua aliada

Celestina remete ao céu. Natureza que idealmente livre e clara metaforiza uma discrepância

à lei, à civilização, à escuridão e ao Comendador.

Não é por acaso que o lugar da mata relacionado a ela é uma clareira, como asserta

Costa Lima (1976, p. 100). A memória da Senhora está ligada àquele espaço, o qual foi

visitado por ela ainda menina quando estava de passagem pelo local. Mais tarde tornou-se o

lugar preferido da menina morta. Some-se a isso o momento que Carlota, sua filha mais

velha, está no lugar e é confundida com a mãe (PENNA, 1958, p. 1142). Diz Josalba F. dos

Santos (2004, p. 53) que “como o romance se constrói muito em torno do claro-escuro, é

sintomático que a clareira identifique e ilumine a menina morta, Carlota e Dona Mariana”. A

união das três personagens no mesmo espaço como ideias é gradativa, sobretudo porque
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essas mulheres carregam a ruína do Grotão: a morte da menina é vista como anúncio de

mau agouro; D. Mariana rompe o silêncio denunciando o marido; e Carlota aos poucos vai

tomando consciência do mal que ronda o lugar através das histórias que as negras contam

sobre a situação de sua mãe e as ações de seu pai.

Reforçamos que a iluminação mencionada por Josalba F. dos Santos em volta da

tríade é consumada pela natureza quando após passados dias escuros vem a notícia da

morte do Comendador: “Era tarde e o sol conseguira ultrapassar as nuvens que o tinham

aprisionado desde a manhã e tomara radiante coloração dourada, pondo tons de mel nos

móveis escuros e nas paredes cobertas de papel sombrio” (PENNA, 1958, p. 1262). O sol,

enquanto natureza e metáfora da luz materna, auxilia Carlota para dias depois libertar os

escravos do Grotão. Ato que é paralelo ao rompimento anterior empreendido pela mãe, aqui

exemplificado na cena do jantar. Paulo A. Soethe (2007) teoriza que a ação de uma

personagem em determinado espaço não só “atribui ao indivíduo visualidade e

materialidade corpórea na linguagem, mas também possibilita a inscrição de seus atos e

palavras no universo simbólico, cultural e ético das relações que aí se estabelecem” (p.

225). Por isso é tão cara a imagem de Carlota sendo iluminada pela memória espacial da

mãe na clareira, ainda que inconsciente. Pois a abolição da escravatura pela jovem imprime

na narrativa um significado de dilaceramento do patriarcalismo.

Quando Carlota chegou ao Grotão a mãe já não estava lá, contudo a ligação entre

ambas já está implícita na cena da mesa em que a cadeira da moça está vazia e,

ressaltemos, do lado materno. É tanto que ao chegar à fazenda o Comendador tenta

“conquistar” a filha: oferece-lhe a cadeira de medalhão e, muito mais que isso, arranja-lhe

um casamento no intuito de perpetuar o patriarcado e consequentemente afastar a jovem de

D. Mariana. Ato ineficaz, tendo em vista a ligação entre elas ser mais antiga e,

principalmente, consanguínea. Assim, nada impedirá Carlota de continuar a “vontade” da

mãe.
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A destruição do sistema patriarcal pode ser entendida como o desenraizamento do

Grotão. O narrador ao final da obra descreve a fazenda à deriva “em grande mar profundo,

de águas traiçoeiras, sobre as quais a fazenda flutuava vacilante e abandonada, sem rumo

certo, arrastada por ondas negras”. (PENNA, 1958, p. 1260).

Retomando a definição dos espaços deleuzianos, a imagem remete ao modelo

marítimo de espaço liso (1997, p. 162). A queda do regime significa a derrubada de algumas

fronteiras pela trincheira da Senhora, o lugar que era estriado por natureza e sedentário sob

as ordens do patriarca agora se aplaina. A casa está sem rumo no mar de D. Mariana,

ressalve-se que embora a lei – espaço estriado – do Comendador tenha se rompido o saldo

da ruína é um mal que permanece como mácula na memória. Como aponta Walter

Benjamin (1993), mencionando a imagem do Angelus novus de Paul Klee que olha para o

passado e “onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única,

que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (p. 226).

Vemos, então, que há uma fronteira conflituosa separando os senhores, e que as

trincheiras de ambos foram cavadas silenciosamente há muito tempo. A segregação na

casa é anterior à morte da menina, circunstância que, de certa forma, serve como alerta

para um mal “subterrâneo” presente no Grotão. Seguido à morte, somem as esperanças de

renovação das personagens, as quais começam a dar relevo às diferenças silenciadas pela

lei do Comendador.

Como diz Paulo A. Soethe (2007), a força ética declarativa do espaço esta no modo

como ele é partilhado. Sobre isso, a imagem do jantar é valiosa porque nela as personagens

“encenam” suas diferenças, ao passo que partilham o lugar e a comida. Igualmente é o

modo como os agregados se veem dentro da casa entre si e perante os donos da fazenda

no tocante à hierarquia. Salientamos que mesmo pertencendo a esta ou àquela trincheira,

todos vivem com receio de infringir alguma norma, por isso vivem num clima defensivo.

Outro ponto é a quebra do silêncio por D. Mariana, que num tom agressivo põe em

xeque a imagem hermética do marido. Intempestivamente ela surge para se opor


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formalmente ao patriarcado. Seu surgimento metaforiza o jogo de claro-escuro do casal,

sendo que a claridade de D. Mariana consumada por Carlota arruína a fazenda juntamente

com o sistema.

Em relação à “vitória” de D. Mariana, é como se a mata sua aliada, metáfora da

liberdade e que a aproxima da natureza, invadisse a casa para desterritorializar o espaço

patriarcal. O mato ao final da narrativa cresce desordenadamente ao redor da casa. Grosso

modo, podemos concluir que todos os espaços foram momentaneamente alisados.

Pensando na ética do espaço, toda a estrutura que foi construída e semeada com sangue e

suor escravos é derrubada. Essas quedas de fronteiras e avanço das trincheiras só vão se

solidificar ao final da obra, quando Carlota se alia à mãe, liberta os escravos e por fim se

declara ser a menina morta. Momento que retorna a tríade da clareira – da mãe e das suas

filhas – consumando assim a queda do patriarcado.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 6. ed. São Paulo:
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(Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
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SOETHE, Paulo Astor. Espaço literário, percepção e perspectiva. Aletria. Belo Horizonte, v.
15, 2007. P. 221-229. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit. Acesso em: 10 jan.
2010.

1
Este artigo é parte integrante do projeto A questão do mal em Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, que recebe
apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
2
Graduando do curso de Letras-Português pela Universidade Federal de Sergipe e Voluntário do Programa de
Iniciação Científica (PICVOL). luizeduardo@teachers.org.
3
Embora a edição seja de 1958, todas as citações de A menina morta foram atualizadas para a ortografia
vigente.

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