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Novos Pareceres
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Novos Pareceres

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O parecer, a meio caminho entre a peça forense e o trabalho de doutrina, revela com rara oportunidade esse caráter dialético da experiência jurídica, de permanente interação entre a teoria e a práxis. Daí a sua longa tradição. No Direito romano, os pareceres - os responsa prudentium - chegaram até a constituir fonte de Direito, e os seus autores, conditoris iuris. Hoje, reduzido ao seu tamanho ordinário, esse exercício intelectual almeja mostrar sempre quão estéril é a técnica jurídica quando não serve para revelar a experiência conjugando fato, norma e solução, numa equação logica.
Já publiquei três livros de pareceres. Em 1976, pela J. Bushatsky, Direito Comercial: Textos e Pretextos; em 1989, pela viva do Direito. De onde a sua estrutura sempre tridimensional, RT, Estudos e Pareceres sobre Sociedades Anônimas; em 2004, pela Editora Singular, Pareceres, em dois volumes. Agora volto a publicar pela última editora uma nova série de pareceres. Quanto ao título, oscilei entre apenas "Novos Pareceres", mais sóbrio - e que viria prevalecer - e o título mais excêntrico de "Novos e Novíssimos Pareceres", inspirado no título que encontrei numa antologia de poetas portugueses e nos títulos dados por Orlando Gomes aos sucessivos repertórios de pareceres que publicou: "Questões de Direito Civil (1974), "Novíssimas Questões de Direito Civil" (1984) e "Questões mais recentes de Direito Privado". (1988). A utilização, na composição da capa, de um estudo feito há anos por nós é de responsabilidade exclusiva do editor, que viu no auto-retrato de um pintor amador traços que justificariam a sua reprodução neste livro.
LanguagePortuguês
Release dateDec 3, 2020
ISBN9786586352177
Novos Pareceres

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    Novos Pareceres - Luiz Gastão Paes de Barros Leães

    livro.

    Data-base para a apuração de haveres na dissolução parcial

    Sumário: 1. Exposição e consulta. 2. A ação de dissolução parcial de sociedade. 3. Data-base para apuração de haveres e cômputo de juros. 4. Cômputo dos juros moratórios. 5. A inclusão da verba referente ao fundo de comércio.

    1. Exposição e consulta

    1/1. O ilustre advogado Dr. J.A.M. solicita nosso parecer sobre algumas questões relativas à ação de dissolução de sociedade mercantil proposta por seus clientes, Espólio de E.D. e outros, contra Empresa A Administração e Representação S/C Ltda. e Outros, em trâmite perante a 2ª Vara Cível da Comarca de Leme, Processo n. 360/91. A ação foi julgada procedente, determinando a dissolução parcial da sociedade e a apuração dos haveres em execução de sentença.

    1/2. O acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a r. sentença e determinou que a apuração dos haveres fosse realizada nos moldes de uma dissolução total da sociedade, fazendo incidir sobre os haveres, desde a data da apuração, juros de 6% ao ano. O processo ora se encontra em fase de perícia contábil para a apuração dos haveres dos autores. Existem, contudo, alguns pontos em que divergem o senhor perito judicial e o assistente técnico dos autores, sobre os quais é solicitada a nossa opinião.

    1/3. Nesse sentido, somos indagados sobre as seguintes questões:

    1.º) Qual é a data-base para a apuração dos haveres? A data em que foi prolatada a sentença que dissolveu parcialmente a sociedade? Ou a data do trânsito em julgado da referida sentença?

    2.º) Diante dos laudos e pareceres apresentados neste caso, tratando-se de empresa sólida no mercado, existente há aproximadamente 20 anos, com faturamento anual expressivo, seria juridicamente possível existir in casu um fundo de comércio negativo? O método do fluxo de caixa descontado, adotado pelo senhor assistente técnico dos autores para apurá-lo, teria respaldo jurídico?

    3.º) Tendo em vista que o Tribunal de Justiça, no acórdão citado, decidiu que, tendo ficado determinado que a apuração dos haveres se faria nos moldes de uma dissolução total da sociedade, e que, uma vez apurados os haveres, sobre eles, e desde a data da apuração, correrão juros de 6% ao ano, pergunta-se qual a data inicial que deverá prevalecer para o cômputo dos juros? Os autores entendem que a data da apuração, mencionada pelo Colendo Tribunal de Justiça, se refere à data tomada por base para se apurar os haveres dos autores. Já os réus, por seu turno, sustentam que a data de apuração dos haveres corresponde à data da elaboração do laudo judicial apresentado. Diante da divergência, qual seria a correta interpretação do decidido no v. acórdão?

    1/4. A consulta fez-se acompanhar por dossier com várias peças do processo, inclusive laudo de avaliação elaborado pelo senhor perito judicial e o parecer do assistente dos espólios.

    2. A ação de dissolução parcial de sociedade

    2/1. Está hoje consagrada, nas limitadas, a criação pretoriana de uma nova forma de afastamento, por via judicial, do sócio da sociedade, com resultado semelhante ao alcançado pelo direito de retirada ou recesso, com a substancial diferença de que não se precisa alegar, como pressuposto para o exercício desse direito, a hipótese prevista em lei, de divergência quanto à alteração do contrato social (Decreto n. 3.708, art. 15). Basta que a sociedade objeto do afastamento seja por prazo indeterminado. E a chamada dissolução parcial, que se materializa com o decreto judicial de desligamento do sócio que requereu a dissolução total, com fundamento no art. 335, V, do Código Comercial, porquanto se entende que a vontade unilateral do sócio, manifestada na denúncia, não pode prevalecer sobre a utilidade econômica e social representada pela preservação da empresa.

    2/2. Invocando o preceito expresso nos artigos 1.404 e 1.405 do Código Civil, e as regras de proteção à boa-fé dos contratantes implícitas nos contratos mercantis (CC art. 131, I), para condenar as denúncias unilaterais que se revelem arbitrárias e inoportunas, copiosa é a manifestação de nossos tribunais no sentido de que o direito de dissolver a sociedade estará mais afeiçoado a outros interesses que cumpre proteger, mormente o da preservação da empresa, se, em lugar da dissolução total, se der ao sócio denunciante apenas a dissolução do vínculo que o prende à sociedade. Nesse caso, instaura-se um processo dissolutório parcial, que fulmina apenas o sinalagma que vincula o denunciante ao contrato plurilateral associativo.¹.

    2/3. Ora, como ao sócio assiste originariamente o direito de pleitear a dissolução total da sociedade, a apuração de haveres do sócio que se afasta da sociedade, nessa dissolução parcial, não se faz com base nos valores contábeis, como na hipótese de retirada prevista no artigo 15 do Decreto n. 3.708, mas tendo por base o "valor efetivo, real e atualizado"². do patrimônio da sociedade, do mesmo modo como sucederia na hipótese de acolhimento do pedido de dissolução total. Esse valor deverá ser fixado por meio de processo de liquidação, agregando à sentença condenatória, que decretou a dissolução parcial da sociedade e extinguiu o vínculo que até então ligava o sócio a ela, os atributos de liquidez e certeza, dentro dos parâmetros citados, de sorte a lhe conferir a condição de título executivo judicial.

    2/4. Embora não se aplique, propriamente, na hipótese cogitada, o procedimento liquidatório típico do patrimônio social, com a nomeação de um liquidante, para a venda de ativos e pagamento dos passivos, como ocorre na dissolução total (posto que a sociedade continua em seu funcionamento normal), impõe-se, na dissolução parcial, o processo de liquidação para a apuração do valor de reembolso devido ao sócio que se desliga da sociedade, correspondente à participação societária que até então detinha. Nesse caso, a liquidação de seus haveres não pode ser feita por mero cálculo do contador (CPC, art. 604), mas por arbitramento (CPC, art. 606, II), eis que, para a aferição do valor real e efetivo da participação societária dos associados numa empresa em plena atividade, o exame pericial se mostra indispensável, na medida em que se trata de avaliar o valor do patrimônio social de uma empresa em funcionamento, para, com base nele, definir a parcela que tocará ao sócio afastado.

    2/5. À míngua de um estatuto processual próprio, a ação de dissolução parcial observa normas de caráter processual que nem sempre se afeiçoam às regras pertinentes ao procedimento da dissolução total previstas nos arts. 655 usq. 674 do Código de Processo Civil de 1939, em vigor por força da determinação contida no art. 1.218, VII, da lei processual vigente, nem àquelas constantes do Capítulo XVII da Lei n. 6.404, de 1976, relativas à dissolução, liquidação e extinção das sociedades por ações, por força do art. 18 do Decreto n. 3.708, de 1919. Ao invés da aplicação analógica dessas normas, os nossos pretórios vêm propondo para a ação de dissolução parcial a adoção do procedimento comum, com a adequação, sob prisma distinto, das normas preconizadas para as dissoluções totais, tendo em vista os objetivos especiais perseguidos por um instituto que, criado pela jurisprudência, não visa à extinção da sociedade, mas, pelo contrário, visa à preservação da empresa e a retirada do sócio descontente.³.

    2/6. Daí a diferença de tratamento, em relação à dissolução total, da apuração de haveres na dissolução parcial, repelindo-se a figura do liquidante para contemplar apenas a de um perito contador, assessorado eventualmente por outros profissionais capacitados, para avaliar o patrimônio líquido da sociedade, e, ato contínuo, estabelecer a parte do acervo devido ao sócio que se desliga da sociedade. Daí também a diferença dos elementos que compõem o patrimônio social a ser estimado, para a subsequente determinação do quinhão do sócio retirante, com a presença de ativos imateriais - como o fundo de comércio - que não se extinguem com a liquidação atípica. Daí ainda a diferença de problemas que despontam na liquidação parcial ou ficta, como, por exemplo, os atinentes ao momento procedimental adequado para a apuração de haveres e a data-base dessa apuração, ou à forma de pagamento do reembolso devido ao sócio que se retira.

    2/7. É dentro dessa perspectiva que devem ser encaradas as questões suscitadas na presente consulta. O Espólio de E.D. e Outros propuseram uma ação de dissolução de sociedade comercial contra a Empresa A Administração e Representação S/C e Outros, em trâmite perante a 2ª Vara Cível da Comarca de Leme, tendo a ação sido julgada procedente, determinando o MM. Juízo a dissolução parcial da sociedade, com a apuração dos haveres dos sócios retirantes em execução de sentença. O acórdão do Tribunal de Justiça confirmou a r. sentença, determinando que a apuração dos haveres fosse realizada nos moldes de uma dissolução total da sociedade, incidindo sobre os haveres juros de 6% ao ano, desde a data da apuração. O processo ora se encontra em fase de perícia contábil, existindo alguns pontos em que divergem o senhor perito judicial e o assistente técnico dos autores, como a data-base para o cálculo dos haveres e cômputo dos juros moratórios, assim como qual o método mais adequado para aferir a verba referente ao fundo de comércio.

    3. Data-base para apuração de haveres e cômputo dos juros

    3/1. Comecemos pelo primeiro tópico, abordando a questão do momento procedimental adequado para a apuração de haveres e a data-base que deve ser considerada para efeito dessa apuração, inclusive para o cômputo dos juros moratórios devidos ao sócio que se retira. Ora, em primeiro lugar, cumpre acentuar que o pleito do sócio, aqui, tem em mira a dissolução total da sociedade para que, por via oblíqua, venha a receber a sua parte do acervo social, e se fundamenta na denúncia individual prevista no art. 335, V, do Código Comercial, sendo a sociedade celebrada por tempo indeterminado. Ora, a denúncia, como declaração unilateral de vontade, promove a dissolução pleno iure do vínculo contratual, visto que é direito potestativo do sócio que a lei expressamente lhe outorga, cabendo à sociedade, sujeito passivo da relação, apenas e tão-somente sujeitar-se às consequências da declaração de vontade (pati).⁴.

    3/2. Essa manifestação volitiva de denúncia do contrato de sociedade é de natureza receptícia, produzindo efeito apenas quando, do seu teor, sejam inteirados os seus destinatários.⁵. Atormenta-se a doutrina com o problema da determinação do exato momento em que se há de se presumir o conhecimento pelos destinatários, sendo a recepção da notificação procedida pelo sócio denunciante o marco desejado. A partir desse momento, como adverte Hernani Estrella, "se exaure definitivamente o liame societário que, por uma espécie de substituição ex lege, se transmuda num direito de crédito, exercitável contra a sociedade ou os sócios remanescentes".⁶. Daí podermos concluir que a data-base para o cálculo dos haveres, em decorrência do afastamento, deve ser a data em que a comunicação de vontade do sócio denunciante chega ao conhecimento da sociedade ou dos sócios remanescentes. Se a ação não foi precedida de notificação ou de cautelar, o marco temporal da dissociação será a data da citação inicial da ação dissolutória (CPC art. 219).

    3/3. Ora bem, estabelecida a litigiosidade do quinhão do sócio denunciante, com a propositura da ação de dissolução parcial, cabe a ele, como adverte o citado Hernani Estrella, todas as ações fundadas nesse direito de crédito, sendo-lhe negada, ao contrário, ação inerente à qualidade de sócio que já não tem. É fundada nesse direito de crédito do sócio denunciante que a ação de dissolução tem prosseguimento. Cabe, portanto, não confundir o momento que deve ser considerado para efeito da apuração de haveres do sócio que se afasta - que é o momento da recepção da denúncia - com o momento procedimental adequado para a realização da perícia para inventário dos bens integrantes do patrimônio da sociedade e a determinação do quinhão do sócio denunciante.

    3/4. Em princípio, o momento oportuno para a apuração dos haveres é após o trânsito em julgado da decisão que decretar o afastamento do sócio, na fase de liquidação, a menos que a perícia tenha sido efetivada no transcurso da instrução processual, ou mesmo antes da propositura da ação de dissolução parcial por meio de medida cautelar, que igualmente poderá ser promovida no curso do feito dissolutório, permitindo ao juiz fixar, desde logo, o valor a ser pago ao sócio afastado, independente do processo de liquidação. Mas ainda que não obvie a instauração do processo de liquidação, a antecipação da perícia permite sejam inventariados os bens da sociedade por ocasião do afastamento do sócio denunciante, e eventualmente determinado o seu quinhão, sujeito evidentemente a futuras atualizações e acréscimos legais, sem que participe das alterações patrimoniais advindas da ulterior atividade empresarial desenvolvida pela sociedade, da qual se desligou desde a denúncia.

    3/5. No caso em foco, a ação de dissolução de sociedade comercial foi ajuizada em 15 de agosto de 1991, época da denúncia, tendo sido julgada procedente por sentença prolatada em 8 de setembro de 1992, pelo MM. Juízo da Comarca de Leme, SP, que determinou a dissolução parcial da sociedade, com a retirada dos autores, apurando-se os seus haveres, "por meio de balanço especial, a ser elaborado em execução de sentença, a fim de sejam conhecidos os valores reais e não os contabilizados". No momento em que apresentaram a apelação cível contra a r. sentença, interpuseram os autores medida cautelar incidental para que fossem arrolados os bens, materiais e imateriais, da sociedade dissolvenda, e de sua controlada Mecânica A S.A., a fim de evitar fundado receio de dissipação dos mesmos (CPC, art. 855), já que a apuração de haveres deveria ser efetuada no futuro, em execução de sentença. O MM. Juízo deferiu a medida, sendo o arrolamento feito e homologado.

    3/6. Transitado em julgado o pronunciamento judicial, determinou o MM. Juízo, na execução de sentença, o início da perícia, esclarecendo, em atenção à dúvida suscitada pelo senhor perito nomeado para a avaliação, em despacho de fls. 517 dos autos, que o levantamento do balanço especial deveria observar a data a partir do trânsito em julgado do pronunciamento judicial. Contra a decisão do Magistrado, tiraram os autores agravo de instrumento para instância superior, com a finalidade de que a liquidação se realizasse tomando por base a data da sentença de primeiro grau ou do arrolamento efetuado na oportunidade, pedindo, outrossim, como medida preliminar, que a perícia fosse efetivada nos dois critérios, uma tendo por base a data do trânsito em julgado (30 de junho de 1997) e outra tendo por base a data da r. sentença (8 de setembro de 1992), o que foi deferido pelo Tribunal de Justiça, conforme acórdão de 31 de agosto de 1999, encartado a fls. 547 dos autos.

    3/7. Em cumprimento ao acórdão, determinou o MM. Juízo a quo ao senhor perito judicial que, na confecção do laudo, deveria realizar a apuração de haveres segundo os dois critérios, com base na situação da empresa na data da prolação da sentença dissolutória e na data do trânsito em julgado, retornando os autos à conclusão ao Magistrado, para decisão (fls. 586). No r. acórdão do agravo de instrumento referido, o Egrégio Tribunal advertiu que a dúvida relativamente ao critério quanto à data-base da apuração é de natureza jurídica que ao Magistrado caberia resolver, podendo a apuração de haveres ser feita com base na situação da empresa na data do trânsito em julgado ou na data da manifestação da intenção de retirada dos sócios dissidentes ou, ainda na data da citação ou da prolação da sentença dissolutória.

    3/8. Assim, em resposta ao primeiro quesito da consulta, podemos resumidamente dizer que, na realidade, a data-base para a apuração de haveres é, em princípio, a data em que se materializa a denúncia do vínculo societário - no caso, na data da citação dos réus na ação de dissolução (setembro de 1991). Não seria, pois, nem a data em que foi proferida a sentença (setembro de 1992), nem a data do trânsito em julgado da mesma (junho de 1997). De qualquer forma, a data-base não seria nunca a data da elaboração do laudo judicial (30 de maio de 2000), como sustentam os réus, realizado nove anos após a denúncia e oito anos após a prolação da sentença de primeiro grau. É intuitivo que não tem sentido que o sócio que se desligou da sociedade, ao denunciá-la, convertendo-se em simples credor da mesma, se submeta às consequências - quer para melhor, quer para pior - decorrentes da variação patrimonial que a empresa venha a experimentar por todos esses anos, ao continuar em suas atividades com os demais sócios da empresa.

    3/9. No r. acórdão de 1999 ao agravo de instrumento, o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, fez alusão, como se viu, à data da denúncia e à data da citação, como a lembrar que poderiam essas ser as corretas datas-base, mas os autores não recorreram em tempo para que isso prevalecesse, tornando-se a questão, com esse fato processual, preclusa. Assim, no caso em tela, deve prevalecer a data da sentença, seguida do arrolamento de bens, por ter sido objeto de pleito dos próprios autores. O levantamento do balanço de determinação, considerando o acervo patrimonial existente nessa data, deverá ser avaliado ao preço de mercado vigente na data da elaboração do trabalho pericial, como está consagrado pela jurisprudência e, de resto, já foi admitido pelo MM. Juiz, a fls. 586 dos autos, ao determinar a elaboração de balanços nos dois critérios.

    4. Cômputo dos juros moratórios

    4/1. Decidiu ainda o Tribunal de Justiça de São Paulo, no caso sub examine, que a dissolução parcial, determinada pelo Juízo de primeiro grau, propicia a apuração dos haveres nos moldes de uma dissolução total da sociedade, certo que, apurados os haveres, sobre eles e desde a data da apuração correrão juros de 6% ao ano. Desse decisório, os autores chegaram à conclusão de que a data da apuração mencionada pelo Colendo Tribunal é a data tomada por base para apurar-se os haveres, ou seja, a data da sentença, enquanto os réus entendem que a data da apuração dos haveres corresponde à data da elaboração do laudo judicial apresentado.

    4/2. Em princípio, a data inicial para o cômputo dos juros legais seria, evidentemente, a da denúncia, quando o sócio noticia à sociedade e aos demais sócios a sua intenção de desligar-se do vínculo societário, convertendo a sua posição de sócio em credor. Em seus efeitos a denúncia é instantânea e total, razão pela qual o dies a quo coincidiria com o da recepção da comunicação pelo destinatário. No caso, essa denúncia se materializaria na citação dos réus para responder à ação de dissolução, de sorte que esse seria o marco temporal a partir do qual começariam a fluir os juros de mora devidos ao sócio convertido em credor.

    4/3. Com efeito, uma vez que o crédito do sócio que se desliga é ilíquido, cabe ser apurado em juízo, por arbitramento, nos termos do artigo 1.536, §§ 1.º e 2.º, do Código Civil, impondo-se o pagamento de juros de mora na liquidação a partir da denúncia, que, na espécie, corresponde à citação inicial. Essa orientação da lei civil é confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, na Súmula 163: "Salvo contra a Fazenda Pública, sendo a obrigação ilíquida, contam-se os juros moratórios desde a citação inicial para a ação". No presente caso, porém, a prevalecer como data-base para a apuração dos haveres, não a data da denúncia, mas a data em que foi prolatada a sentença que dissolveu parcialmente a sociedade, em face do decisório acima mencionado, entendemos que os juros deverão igualmente fluir a partir da data da sentença, que será observada como data-base na apuração de haveres.

    5. A inclusão da verba referente ao fundo de comércio

    5/1. Passemos agora à terceira questão. Como se sabe, considera-se estabelecimento empresarial o conjunto de bens, materiais e imateriais, de que o empresário se utiliza para o exercício de sua atividade econômica. Ora, ao organizar o estabelecimento, o empresário agrega aos bens, assim reunidos, um sobrevalor. Na medida em que esses bens permanecem conjugados em função da empresa, o conjunto articulado revela um valor superior à simples soma dos valores de cada um deles considerado separadamente. A esse sobrevalor, decorrente da organização desses elementos, dá-se o nome de fundo de comércio, goodwill ou aviamento. Frequentemente, a expressão fundo de comércio é, por metonímia, empregada como sinônima de estabelecimento, mas não se confundem, sendo o fundo qualidade ou atributo do estabelecimento a que se relaciona.⁷.

    5/2. Embora não conte com uma disciplina legislativa, dispondo sobre sua estrutura e funcionamento, o nosso Direito positivo não ignora o estabelecimento e o fundo de comércio, a estes se referindo, por exemplo, na lei que regula a renovação dos contratos de locação de imóveis destinados a fins comerciais e industriais (Lei n. 8.245, de 1991, art. 51, § 2.º, combinado com o art. 71 ss, repetindo as disposições do Decreto n. 24.150, de 1934, arts. 3.º, § 1.º, e art. 20, in fine), ou na lei falimentar (Decreto-lei n. 7.661, de 1945, art. 52, VIII). O novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 2002), vem preencher essa lacuna, dedicando um título inteiro à disciplina do estabelecimento, definindo-o como um complexo de bens organizado, para exercício da empresa, e o admitindo como objeto unitário de direitos e negócios jurídicos. Mas cabe à doutrina⁸. e à jurisprudência brasileiras o mérito de, há muito, terem consagrado, em nosso meio, o estabelecimento empresarial e o fundo de comércio como objetos unitários de relações jurídicas, em negócios translativos ou constitutivos, em desapropriações⁹. e na determinação dos quinhões de sócios retirantes de sociedades comerciais.

    5/3. No que toca a esse último tópico, cumpre dizer que, malgrado certas restrições feitas por parte da doutrina e da jurisprudência pátrias à inclusão da verba concernente ao fundo de comércio, no cálculo dos haveres do retirante, a manifestação predominante de nossos tribunais, mormente do Superior Tribunal de Justiça, é no sentido da necessidade da aferição desse valor incorpóreo no cômputo dos haveres do sócio que se desliga¹⁰., in verbis:

    e) O fundo de comércio e o fundo de reserva instituído pela vontade dos sócios integram o patrimônio da sociedade e, por isso, devem ser considerados na avaliação. Se excluídos, enriqueceriam o patrimônio dos sócios remanescentes, em prejuízo do retirante, que também contribuiu com a sua quota e participação social, para a formação dos dois fundos. Os recorrentes demonstraram a existência do dissídio, nesse ponto, mas a argumentação favorável aos recorridos é mais convincente, pois é inegável a patrimonialidade do fundo de comércio, que a jurisprudência tem considerado para apuração dos haveres dos sócios ou de seus herdeiros (RT 282/741, 359/462; Forense 123/151 e 159/206) (STJ, REsp. N. 77.122-PR, 4.ª Turma, rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 13-2-1996, in Lex-Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, n. 84, agosto de 1996, p. 208 ss).

    5/4. Reportando-se à passagem acima transcrita, acórdão ainda mais recente do TSJ, no REsp. N. 43.395-SP, 3.ª Turma, rei. Min. Ari Pargendler, j. 25-5-1999, sintetiza em sua ementa a questão em apreço da seguinte forma: COMERCIAL. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE. O ‘fundo de comércio’ é parcela do patrimônio da sociedade e deve ser indenizado ao sócio que se retira, na medida da respectiva participação social. Recursos especiais não conhecidos.

    5/5. Se, ao consagrar a construção pretoriana da dissolução parcial, o Supremo Tribunal Federal prescreveu, de forma cogente, que a liquidação do quinhão do sócio denunciante deveria ser feita com a maior amplitude possível, tendo por base o valor efetivo, real e atualizado¹¹. do patrimônio da sociedade, é curial que não poderia a apuração de haveres deixar de considerar os valores correspondentes a tal intangível.

    5/6. Com efeito, ao se admitir a liquidação parcial, como se de liquidação total se tratasse, mas com a peculiaridade de que a sociedade continua em funcionamento normal, é de se concluir que o valor do fundo de comércio, que igualmente continua a existir, deve necessariamente ser objeto de avaliação, dado que o mesmo faz parte integrante do patrimônio da sociedade, como um atributo ou qualidade do mesmo. A expressão fundo de comércio - também chamada de goodwill ou aviamento - traduz a aptidão de produzir lucros demonstrada pelo conjunto de bens materiais e imateriais que compõe o patrimônio da sociedade, ou o estabelecimento empresarial, e que a ele se adiciona como um sobrevalor ou plus valia.

    5/7. Deixar de considerar essa mais valia na apuração dos haveres do sócio que se desliga, significaria agir em desconformidade com a regra que determina a aferição de seu quinhão pelo valor real do patrimônio da sociedade, sobre admitir o enriquecimento da sociedade e dos sócios que nela permanecem, mercê a retenção de parcela desse sobrevalor, em detrimento daquele que se afasta e que dele passa a ser privado. Se o objetivo da dissolução parcial, na forma idealizada por nossos pretórios, é assegurar, tanto quanto possível, a retirada do sócio denunciante com a devolução de sua quota avaliada com base nos valores reais, e não apenas nos contábeis do patrimônio da sociedade, não poderia a apuração de haveres ignorar o valor do fundo de comércio, de que o mesmo, enquanto sócio, compartilhava.¹².

    5/8. Quanto ao método a ser empregado na apuração do valor do fundo de comércio, na medida em que este se define como a aptidão revelada pela organização empresarial de produzir lucros¹³., vêm prevalecendo na sua mensuração os métodos de avaliação de empresa baseados na sua capacidade de gerar ganhos. Dentre estes, o método mais utilizado é o denominado de fluxo de caixa descontado (discounted cash flow valuation), através do qual, com base na taxa de retorno do fluxo de caixa revelada no passado, é projetada a rentabilidade futura da sociedade, trazida a valor presente na data da avaliação. Essa taxa de rentabilidade, comparada ao valor do investimento, determinará o sobrevalor representado pelo fundo de comércio.¹⁴.

    5/9. Nessas condições, em resposta ao terceiro quesito da consulta, podemos dizer que a utilização do método de fluxo de caixa descontado, como adotado pelo assistente técnico dos autores, tem respaldo jurídico, pois se afeiçoa à definição emprestada ao fundo de comércio, como aptidão de produzir lucros. A determinação do valor do fundo de comércio constitui, no entanto, matéria eminentemente técnica, como se manifestou o Min. Relator Ari Pargendler no acórdão do RE N. 43.395-SP, atrás citado, e, como tal, tem que ser confiado a perito.

    5/10. Nesses termos, quanto ao último quesito da consulta, podemos aqui dizer que uma sociedade pode, de fato, apresentar um goodwill negativo, quando a sua capacidade de geração de recursos se mostra aquém da taxa de retorno observada no passado, afetando o valor total do investimento.¹⁵. No caso em exame, porém, tratando-se de empresa sólida no mercado, existente há aproximadamente vinte anos, com faturamento anual expressivo, é remota a possibilidade de que detenha um fundo de comércio negativo. De qualquer forma, caso, no balanço de determinação, o expert venha a apurar um goodwill negativo, não basta simplesmente desconsiderá-lo, como o fez o senhor perito judicial em seu laudo, na vertente ação de dissolução. Força é dimensioná-lo, pois o seu valor negativo necessariamente afeta o valor total do patrimônio social. Agiu assim de forma mais sensata o assistente técnico dos autores, que procurou avaliar o fundo de comércio, chegando, aliás, em seu laudo, a uma cifra positiva, com certa magnitude, que ao MM. Juízo caberá apreciar, como elemento de convicção.

    5/11. Nessas condições, podemos em síntese concluir, dizendo que: a) a data-base para a apuração dos haveres no vertente processo de liquidação é, dadas as circunstâncias, a data em que foi prolatada a r. sentença que dissolveu parcialmente a sociedade; b) a data mencionada pelo Colendo Tribunal de Justiça para servir de data inicial para o cômputo dos juros legais é a data-base da apuração dos haveres, ou seja, a data em que foi prolatada a sentença de 1ª instância; c) a verba relativa ao fundo de comércio deve ser incluída na apuração de haveres para determinação do quinhão do sócio denunciante, na dissolução parcial, mesmo que seja negativa, sendo certo que, no caso em exame, dado ao fato de que se trata de uma empresa sólida, existente no mercado há aproximadamente 20 anos, com faturamento expressivo, é duvidoso que a sociedade apresente fundo de comércio negativo, sendo mais plausível acreditar na cifra positiva apontada pelo o assistente dos autores, cujos cálculos revelam sólido embasamento técnico.

    5/12. É o nosso parecer, s.m.j.

    São Paulo, 20 de setembro de 2002

    Luiz Gastão Paes de Barros Leães

    O direito de voto de ações gravadas com usufruto vidual

    Sumário: 1. Consulta. 2. Algumas observações sobre o usufruto. 3. As modalidades de usufruto legal e o usufruto vidual. 4. Usufruto de ações e direito de voto. 5. Resposta aos quesitos da consulta.

    1. Consulta

    1/1. Por seus advogados de B Advogados, A Empreendimentos e Participações S.A. e seus respectivos acionistas, U.C.R, N.A.R., N.B.A. e Espólio de N. de B.A. nos honram com a consulta a seguir articulada.

    1/2. Considerando que os acionistas acima referidos detêm, juntos, a participação de 92,96% das ações preferenciais e 96,77% das ações ordinárias da empresa A, sendo signatários de acordo de acionistas firmado em 5 de dezembro de 1988, e que 25% de parte das ações detidas pelo Espólio de N. de B.A. encontram-se gravados de usufruto vidual a favor de V.C.A., pergunta-se:

    1.º) Tendo em vista que o artigo 114 da Lei 6.404, de 15.12.76 estabelece que o direito de voto da ação gravada com usufruto, se não for regulado no ato da constituição do gravame, somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário, está a beneficiária do usufruto vidual impedida de exercer direito de voto sem o acordo prévio estabelecido pela Lei? Para os fins do artigo 114 referido, há distinção entre usufruto vidual e o usufruto convencional?

    2.º) Para os fins do acordo prévio previsto no artigo 114, pode a manifestação de vontade do proprietário das ações ser substituída por uma manifestação judicial, a favor da usufrutuária?

    3.º) É possível afirmar-se que uma decisão judicial, concedendo direitos de voto e direitos políticos à mencionada usufrutuária, possa ser exarada nos autos do inventário onde foi concedido o usufruto vidual, sem a participação da empresa e dos demais acionistas, signatários do acordo de acionistas? A discussão da extensão dos direitos de voto e direitos políticos a usufrutuária pode ter curso em processo de inventário ou se trata de questão de alta indagação a ser discutida nas vias ordinárias?

    4.º) Considerando-se que a usufrutuária vem recebendo há mais de cinco anos os dividendos decorrentes das referidas ações e não havia, até então, oposto qualquer impedimento ao direito de voto e direitos políticos que vinham sendo exercidos pelos acionistas proprietários das ações gravadas com o usufruto vidual, pode-se dizer ter havido acordo tácito entre os proprietários das ações e a usufrutuária no sentido de que os primeiros exercessem os direitos de voto e direitos políticos relativamente a essas ações?

    5.º) Qual a natureza do direito à exibição de documentos, previsto no artigo 105 da Lei 6.404/76? Trata-se de direito possível de ser exercido por usufrutuária que não possua direitos de voto e direitos políticos?

    1/3. A resposta a esses quesitos exige se teça algumas observações preliminares sobre o usufruto legal e o usufruto vidual, antes de abordarmos a questão central do usufruto de ações e o direito de voto, objeto da consulta.

    2. Algumas observações sobre o usufruto

    2/1. Como se sabe, embora uno e indiviso, o direito de propriedade incorpora uma série de diferentes faculdades, atribuindo ao seu titular o poder de agir em relação à coisa, usando, fruindo ou dela dispondo: ius utendi, fruendi et abutendi (Código Civil, artigo 1.228, correspondendo ao artigo 524, caput, do código anterior). Esses atributos podem concentrar-se num só indivíduo, caso em que a propriedade é considerada plena, ou alocados em indivíduos distintos do proprietário, como na constituição dos direitos reais de uso e gozo, quando o proprietário não deixa de ter o domínio sobre a coisa, mas a sua utilização ou fruição transfere-se à esfera patrimonial de outra pessoa.

    A atribuição de alguns desses poderes a pessoas diversas do proprietário, porém, não decorre do desmembramento ou da fragmentação da propriedade, mas da outorga a terceiro de um direito real sobre coisa alheia, que provoca no direito de propriedade uma restrição temporária, nunca impeditiva da futura consolidação da propriedade plena.¹.

    2/2. Daí dizer-se que uma das características básicas da propriedade é a sua elasticidade, em virtude da qual ela é suscetível de reduzir-se a um mínimo de atributos, sem deixar de ser propriedade. Com efeito, a propriedade pode sofrer várias restrições, pode privar-se do exercício de várias faculdades, sem, no entanto, deixar de ser propriedade, encarada como uma coletividade de prerrogativas. Desde a sua configuração plena (aquela em que o proprietário tem os direitos de uso, gozo e disposição), até as situações em que a faculdade de usar ou gozar da coisa e atribuída à outra pessoa, a propriedade sempre conserva uma substância nuclear suficiente para se manter como tal.

    A elasticidade, a que aqui aludimos, é, assim, a qualidade que leva a propriedade, a despeito de todas as compressões que possa sofrer, a expandir-se, pendendo sempre para a recuperação de sua plenitude. Por isso o artigo 1.231 do Código Civil (artigo 527 do código anterior) declara que a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário.

    2/3. É à vista desse caráter elástico da propriedade, suscetível de compressões, mas que tende a final à recuperação de sua plenitude, e da noção de que os direitos reais de gozo ou fruição não resultam propriamente da fragmentação da propriedade, constituindo direitos autônomos de terceiros, diferentes do direito do proprietário, é à vista dessas características, repetimos, que cabe aqui examinar o conceito do usufruto.

    Segundo o conceito constante do artigo 713 do Código Civil anterior, sem correspondente no novo código, usufruto é o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, sem alterar-lhe a substância, enquanto temporariamente destacado da propriedade. Esse conceito corresponde à noção clássica, emergente das fontes romanas: usus fructus est ius alienis rebus utendi fruendi, salva rerum substantia (Paulo, Dig., Livro 7.º, Tít. 1.º, frag. 1.º).

    2/4. O usufruto pressupõe, portanto, a coexistência simultânea do direito do usufrutuário, construído em torno das prerrogativas da utilização e fruição de coisa alheia, e do direito do proprietário, que, embora as abandonando temporariamente em proveito do usufrutuário, conserva a substância da coisa própria e a condição jurídica de senhor, mantendo o direito de dela dispor. A constituição do usufruto não significa, portanto, uma amputação no direito do proprietário, já que as faculdades dominiais estão sempre presentes e sujeitas à consolidação, logo que possível, retornando a propriedade à sua plenitude.

    Daí a procedência da crítica à configuração do usufruto como direito destacado, que constava do enunciado do art. 713 do Código anterior. Como assevera Pontes de Miranda, no usufruto, "o uso e o fruto não se atribuíram ao usufrutuário como algo que se cortou à propriedade, de modo que o domínio passasse a ser menos. O que passou a ser menos foi o exercício do direito de propriedade, o poder de usar e fruir. Restringiu-se o direito de propriedade no que concerne a isso. O domínio permaneceu o que era".².

    Bastará que se extinga o direito real de fruir as utilidades e frutos da coisa para que a propriedade readquira a sua plenitude. A noção de usufruto como direito real destacado da propriedade teria, quanto muito, o mérito de enfatizar a individualização e a autonomia das faculdades do domínio, capazes de conviverem em situações jurídicas distintas e coexistentes.

    2/5. A indispensável coexistência do usufruto com a nua-propriedade, ou seja, com o direito de propriedade despido do exercício das faculdades de uso e gozo, na posse de outro titular, aponta, portanto, para essa característica essencial do usufruto, que é a sua conexão com a substância da coisa, mantida em mãos do proprietário. Da presença necessária e concomitante da nua propriedade, a cujo titular caberá receber de volta os poderes de uso e gozo sobre a coisa, quando da extinção do usufruto, infere-se a necessidade lógica de encarar a propriedade, ainda que comprimida, concebida com todos os seus atributos essenciais, sem o que o mecanismo do instituto se torna impossível.

    3. As modalidades de usufruto legal e usufruto vidual

    3/1. Passemos agora ao segundo tópico preliminar. Quanto aos modos de constituição, duas são, como se sabe, as espécies de usufruto, o legal e o voluntário. O usufruto será voluntário quando resultar de negócio inter vivos ou causa mortis, ou ainda de prescrição aquisitiva, desde que concorram o justo título e a boa-fé; e será legal quando instituído por lei, visando à proteção e tutela de determinadas pessoas, em situações específicas. No Direito brasileiro, são hipóteses de instituição legal, entre outras, o usufruto em favor dos pais dos bens dos filhos menores, inerente ao poder familiar (Código Civil, art. 1.689, I, correspondente ao art. 289 do código anterior), e o usufruto em favor dos silvícolas das riquezas do solo que ocupam, conforme estatuído pelo art. 231, § 2.º, da Constituição de 1988.

    3/2. No império do Código de 1916, foi introduzido o usufruto em favor do cônjuge sobrevivente sobre quota da herança pelo § 1.º do art. 1.611, com a redação que lhe foi imprimida pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962), que estendeu ao consorte supérstite a tutela estabelecida em favor das brasileiras casadas com estrangeiros pelo Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941, com a redação que lhe deu o Decreto-lei n. 5.187, de 13 de janeiro de 1943.

    Trata-se do chamado usufruto vidual, estabelecido imperativamente pelo legislador em favor do cônjuge supérstite, se o regime de bens do casamento não era de comunhão universal e enquanto durar a viuvez, em quotas equivalentes à metade dos bens ou à quarta parte deles, variando em face do concurso com filhos, sobre o patrimônio hereditário.

    3/3. Há quem discuta a caracterização do usufruto legal e, por consequência, do usufruto vidual, como verdadeiro usufruto. O usufruto legal não seria propriamente um usufruto, instituto de direito real, revelando antes perfil de instituto de direito de família, como ocorre, por exemplo, com o desfrute em favor dos pais, sobre os bens dos filhos menores, enquanto durar o pátrio poder. No caso, o usufruto se caracteriza pela finalidade específica de beneficiar, prioritariamente, o nu proprietário, ou seja, os filhos, sem que beneficie o beneficiário do usufruto, ou seja, os pais.

    A posição jurídica dos pais não é, pois, o de titular de um direito subjetivo real, contraposto aos filhos nu proprietários, como é de rigor no instituto, mas de titular de um poder jurídico - o pátrio poder - deferido em favor, não dos titulares, mas de terceiros. Não se trata, portanto, de um verdadeiro usufruto, a não ser por analogia ou aproximação.

    3/4. Ora, como adverte Gustavo Tepedino em brilhante monografia³., não há nenhuma razão para tratar as diversas espécies de usufruto legal como uma categoria única, sendo certo, ademais, que os argumentos que justificam a desqualificação como usufruto do desfrute inerente ao poder familiar, acima apontados, não se aplicam ao usufruto vidual, que reveste todos os sinais característicos de verdadeiro usufruto. Com efeito, no usufruto em tela, o desfrute dos bens do de cujus, instituído ex lege, não visa ao benefício de outrem, como ocorre no caso do usufruto inerente ao poder familiar, mas em exclusivo benefício do cônjuge viúvo, consubstanciando verdadeiro direito subjetivo real deste, contraposto aos herdeiros nu proprietários e oponível erga omnes.

    Ao instituir, no Livro IV, próprio das sucessões, o usufruto em questão, sem qualquer referência explícita ou implícita a eventuais irregularidades do instituto (acentua o citado autor), exige a lei que se dê tratamento técnico característico com a natureza própria do usufruto e do direito das sucessões. ⁴.

    3/5. Assim sendo, tendo sido dado ao cônjuge viúvo direito ao usufruto legal sobre parte dos bens do cônjuge falecido, terá ele, na condição de usufrutuário, todos os direitos arrolados na legislação civil (Código Civil, art. 1.394, correspondente ao art. 718 do código anterior), dentre eles o de posse e administração. Se é verdade que o uso e a fruição constituem o conteúdo central do usufruto, deferindo ao seu titular o direito de tirar o proveito econômico da coisa, o apossamento é visto como condição imprescindível para que o usufrutuário possa exercer os seus direitos de uso e fruição, já que, se não recebeu a posse da coisa, não poderá usá-la. A fim de proporcionar ao usufrutuário a utilização da coisa, tem ele, portanto, a posse direta da coisa frutuária, reservando-se ao nu proprietário a posse indireta (Código Civil, art. 1.197, correspondendo ao art. 486 in re veteri).

    3/6. Por outro lado, cabendo ao usufrutuário a posse direta, que lhe propicia o poder fático de utilização da coisa possuída, compete-lhe ipso facto a administração dela. A administração, concedida ao usufrutuário, visa, de um lado, a assegurar a canalização das vantagens da coisa a quem a usa, e, de outro lado, a conservação da coisa, cuja substância permanece em mãos do proprietário. Tanto é assim que o administrador não poderá mudar-lhe a destinação econômica (Código Civil, art. 1.399, correspondendo ao art. 724 do código anterior), sendo causa de extinção do usufruto deixar o usufrutuário, culposamente, que a coisa se deteriore ou arruíne (Código Civil, art. 1.410, VII, correspondendo ao art. 739, VII).

    A salva rerum substancia, que rege toda a relação de usufruto, estabelece, assim, a linha diretriz que deverá orientar a administração deferida ao usufrutuário. O usufruto pressupõe a coexistência harmônica, de um lado, do direito do usufrutuário, construído em torna da ideia de utilização e fruição da coisa, e, de outro, do direito do proprietário de conservar a substância da coisa e a condição jurídica de senhor dela. A administração por parte do usufrutuário deverá guiar-se, destarte, tendo em vista essa dupla vertente.

    4. Usufruto de ações e direito de voto

    4/1. E aqui chegamos ao tema objeto da consulta. Como se sabe, a inscrição do nome do acionista no livro próprio acarreta a presunção, iuris tantum, da propriedade da ação nominativa ou escritural (Lei n. 6.404, arts. 31 e 35), que confere ao proprietário o estado de sócio - ou seja, a qualidade de sócio, como diz o art. 126 - integrado por um conjunto de direitos (art. 109) e obrigações (art. 106), que compõe o substrato intangível dessa situação subjetiva - de que nem o estatuto social nem a assembleia geral poderão privar (art. 109).

    Instituído o usufruto sobre essas ações, que adquire eficácia quando averbado no livro próprio (idem, art. 40), o direito à percepção de seus frutos (dividendos) é temporariamente deslocado para as mãos do usufrutuário, conservando o nu proprietário a sua condição de sócio, e, como tal, a titularidade de todos os demais direitos que adornam o status socii.

    4/2. Já o direito de voto não constitui um direito intangível do acionista, como os chamados direitos essenciais dos acionistas enumerados no art. 109, atrás citados, razão pela qual a lei e os estatutos podem limitá-lo, e até suprimi-lo (idem, art. 110, § 1.º, e 111, caput). Ademais, a lei acionária reserva o direito de voto apenas aos acionistas titulares de ações nominativas, escriturais ou não (até porque a Lei n. 8.021, de 1990 extinguiu as endossáveis e ao portador). De resto, não admitindo a dissociação entre a ação e o direito de votar, a lei estabelece que a propriedade da ação é requisito para o exercício do direito de voto, motivo pelo qual exige a identificação dos acionistas, votantes ou não, ou de seus representantes para terem acesso à assembleia (art. 126, I e IV, §§ 1.º e 4.º).

    Daí por que nos casos de penhor (art. 113), de alienação fiduciária (art. 113, § único), e de usufruto (art. I 14), o exercício do voto, segundo a lei brasileira, cabe ao devedor pignoratício, ao devedor fiduciante e ao nu proprietário, respectivamente, se bem que, por convenção, se possa condicionar o exercício do voto ao consentimento da outra parte.⁵.

    4/3. No caso das ações gravadas com usufruto, a disciplina legal adiciona outra peculiaridade com relação ao voto, na medida em que nega o seu exercício se ausente acordo entre o proprietário e o usufrutuário (art. 114). A posição do legislador brasileiro é singular nesse particular e reflete o dissídio que a respeito lavra na doutrina, com reflexo nas legislações.

    Com efeito, para uns, a deliberação nas assembleias cabe ao nu proprietário, titular do status de acionista, derivado da propriedade das ações, apesar de comprimida, pois privada temporariamente do exercício das prerrogativas de uso e gozo. É o caso da lei espanhola de 17 de julho de 1951, art. 41. Para outros, cabe o voto ao usufrutuário, visto que a lei civil assegura a este posse, uso, administração e percepção dos frutos da coisa frutuária, inscrevendo o exercício do voto como ato de administração. É o caso da lei italiana (Código Civil, art. 2.352) e da lei suíça (Código das Obrigações, art. 690). Não faltou mesmo quem atribuísse o direito de voto a ambos, reservando ao usufrutuário o exercício do voto em assuntos essencialmente administrativos, e ao nu proprietário, em todos os demais assuntos, que, por exclusão, seriam aqueles que afetam a essência do título. É o caso da lei francesa de 1966, que, em seu art. 163, determina que o direito de voto pertence ao usufrutuário nas assembleias ordinárias e ao nu proprietário, nas assembleias extraordinárias.⁶.

    4/4. O Brasil esposa a corrente que atribui o direito de voto ao nu proprietário, na medida em que, instituído o usufruto, não perde ele o status de sócio e, portanto, a titularidade dos demais direitos que o compõem, mas exige o consentimento do usufrutuário para o exercício do sufrágio, sob pena de suspensão dessa prerrogativa (art. 114).

    Ao optar pelo impedimento do exercício do voto, na ausência de acordo entre proprietário e usufrutuário, a nossa lei levou em conta o irrecusável conflito de interesses que existe entre proprietário e usufrutuário, no que tange à distribuição de dividendos, cabendo a eles encontrar uma fórmula de conciliação para a defesa dos seus interesses, sob pena de suspensão do exercício do voto.

    4/5. Malgrado a censura de alguns comentadores⁷., a lei brasileira escolheu, a nosso ver, a melhor orientação doutrinária, sendo improcedente a crítica contra essa solução, no sentido de que se estaria confundindo uma questão formal de procedimento (o acordo entre ambos para o seu exercício) com a atribuição material da prerrogativa do voto, pois é perfeitamente possível distinguir o direito do seu exercício.

    Ademais, não procede a condenação da solução adotada pela lei, baseada na eventualidade - perfeitamente possível, mas remota - de todas as ações se encontrarem em situação de usufruto, a ponto de tolher o funcionamento da assembleia, órgão vital da companhia. Sempre restaria para essa hipótese extrema o recurso ao Poder Judiciário para decidir os itens da ordem do dia, no interesse da companhia (art. 129, § 2.º).

    4/6. Toda essa celeuma, que se reflete nas legislações, deve ser imputada ao significado que se dê ao poder de administração da coisa, que a lei confere ao usufrutuário, e que, para alguns, corresponderia ao poder de voto atribuído às ações. Ora, o poder de administrar a ação gravada de usufruto não corresponde necessariamente ao poder de voto, já que o estatuto pode deixar de conferi-lo, ou conferi-lo com restrições a certa espécie de ação (art. 111, caput), e nem por isso priva o usufrutuário do direito de administrá-la. Por outro lado, o voto proferido em assembleia pode ultrapassar, e frequentemente ultrapassa, a administração ordinária, afetando a estrutura da sociedade e modificando o conteúdo da ação, em desacato à sua substância, que remanesce com o proprietário.

    4/7. A distinção feita pela lei francesa com base na competência ratione materiae das assembleias ordinárias e extraordinárias, atribuindo o direito de voto ao usufrutuário nas primeiras, porque tratam matéria de pura administração, e ao nu proprietário nas segundas, porque tratam de assuntos que excedem a administração ordinária, até poderia ter sido cogitada pelo legislador brasileiro.

    Pois, de fato, a Lei n. 6.404, de 1976, adotou igualmente regime distintivo para as assembleias ordinária e extraordinária, em razão das matérias privativas de uma e de outra, reservando para a ordinária as matérias previstas no art. 132 e para a extraordinária, todas as demais matérias (art. 131). Mas não agasalhou o bizarro regime dual para o exercício do voto correspondente à ação dada em usufruto, em respeito ao princípio geral, que igualmente adotou, de que o direito de voto é inerente ao estado de sócio, do qual o proprietário da ação não é privado por força de direitos reais de gozo e garantia que porventura venham a onerá-la, já que faz parte da substância do título. Levando, porém, em conta o conflito de interesses que existe entre o nu proprietário e o usufrutuário, a lei estatui que o direito de voto da ação gravada com usufruto somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre as partes, negando-o, portanto, na ausência de acordo sobre o sufrágio.

    4/8. Nem se diga que o usufruto que grava a ação se estenderia ao direito de voto desta, tendo em vista a regra da lei civil de que o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos (Código Civil, art. 1.392, correspondendo ao art. 716 do código anterior). O direito de voto não é acessório, nem acrescido da ação, mas elemento integrante desta, encarada a ação como um conjunto indiviso de direitos e obrigações, insuscetíveis de dissociação. Da mesma forma, o usufruto que recai sobre a ação não promove o desmembramento da coisa coletiva, nem a fragmentação da titularidade dos elementos que a compõem, pena de comprometer a sua substância.

    5. Respostas aos quesitos da consulta

    5/1. Fixados esses pontos, voltemos aos quesitos da consulta. Vejamos a primeira pergunta. Dispõe o art. 114 da Lei n. 6.404, de 1976, que o direito de voto da ação gravada com usufruto, se não for regulado no ato da constituição, somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário. A matéria era regulada no art. 84 do Decreto-lei n. 2.627, de 1940, de maneira idêntica, com redação ligeiramente diversa: No usufruto de ações, o direito de voto somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário.

    A lei vigente não modificou a substância do preceito da lei anterior, repetindo a regra de que o voto das ações gravadas com usufruto somente poderá exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário, mas acrescenta que esse acordo poderá ser regulado tanto no instrumento de constituição do gravame, como em pacto posterior.

    5/2. A pergunta que inicialmente se formula diz respeito ao sentido que se deva atribuir à sentença intercalada no preceito em vigor, que prevê a possibilidade de o acordo entre usufrutuário e proprietário ser estipulado no ato da constituição do gravame. Estaria tal previsão sinalizando no sentido de que essa norma somente deveria ser cogitada no usufruto voluntário, quando o gravame se constitui através de manifestação de vontade das partes? Deveriam os usufrutos legais, instituídos coercitivamente pela lei à margem de atos volitivos de constituição, ser excluídos do alcance da norma do art. 114? Ou seja, seria lícito dizer que o voto das ações gravadas com usufruto legal independeria do prévio acordo entre usufrutuário e proprietário previsto no dispositivo como condição para seu exercício? E se isso fosse correto, seria legítimo concluir que ao beneficiário do usufruto legal caberia o exercício do direito de voto?

    5/3. Ora, a redação dada à norma não autoriza afirmar que, para os fins do art. 114, haja distinção entre o usufruto legal e o usufruto convencional. Se se trata de usufruto constituído pela vontade das partes, o prévio acordo para o exercício do voto poderá ser pactuado tanto no instrumento de constituição do gravame, como em ato posterior. Se se trata de usufruto constituído por força de lei, à míngua de instrumento de constituição, o direito de voto somente poderá ser exercido se as partes ajustarem um acordo oportuno sobre o sufrágio. Ambas as hipóteses são indistintamente alcançadas pelo comando, impondo-se sempre a pactuação de um ajuste entre o usufrutuário e o proprietário para que o voto possa ser expresso.

    5/4. Como dissemos linhas atrás, são manifestos os inconvenientes de se analisar as hipóteses de usufruto legal de maneira uniforme, já que não há disciplina comum às diversas espécies de usufruto legal, capaz de englobá-la em uma única categoria.⁸. Até porque muitas delas se desqualificam como usufruto verdadeiro, caracterizando-se como direitos análogos, que com ele não se identificam, como ocorre com o desfrute inerente ao poder familiar e ao cônjuge administrador. Já o usufruto vidual, instituído também ex lege, difere dessas modalidades de desfrute legal, constituindo hipótese típica de direito real.

    Com efeito, ao contrário das outras modalidades de usufruto legal, que se caracterizam pela finalidade específica de beneficiar prioritariamente o nu proprietário (os pais e o cônjuge administrador), diversa é a hipótese do usufruto vidual, em que o cônjuge viúvo é o único beneficiado com a exploração econômica do bem gravado, exibindo, portanto, todos os sinais característicos de usufrutuário. Em consequência, aplica-se no usufruto vidual toda a regulação atinente ao autêntico usufruto, inclusive a regra do art. 114 da lei do anonimato.

    5/5. Aliás, ainda que, para argumentar, admitíssemos que a norma do art. 114 não se aplica às hipóteses de usufruto legal, o exercício do direito do voto remanesceria, em todas essas variantes, com o nu proprietário, e não com o usufrutuário, na medida em que, instituído o usufruto por força de lei, o nu proprietário mantém sempre a titularidade dos demais direitos que compõem a sua condição de sócio, integrada inclusive com a prerrogativa do sufrágio.

    No usufruto legal de que os pais dispõem, inerente ao poder familiar, sobre os bens dos filhos menores (que, aliás, cumpre repetir, não constitui verdadeiro usufruto, senão por aproximação), aos pais, impropriamente chamados de usufrutuários, compete o direito de voto das ações no conclave societário, na medida em que são representantes legais dos filhos menores, nu proprietários (Código Civil, art. 1.634, V, correspondente ao art. 384, V, do código anterior). Não, porém, em decorrência do usufruto que se instituiu seu favor.

    5/6. Diferente é o que ocorre no usufruto vidual. Ao contrário do desfrute dos pais sobre os bens dos filhos, constitui um autêntico usufruto, e, como tal, se sujeita ao regime próprio desse instituto. Nesse regime, ao usufrutuário é assegurado o direito à administração, juntamente com a posse direta da coisa gravada (Código Civil anterior, art.718, atual art. 1.394), a fim de que dela possa tirar o proveito almejado - desde que respeitada a substância da coisa, mantida com o nu proprietário.

    Mas embora investido do poder de administração da coisa frutuária, nos termos da lei civil citada, o usufrutuário não reveste a qualidade de representante legal do titular da nudas proprietas. Daí por que podemos dizer que, em se tratando de ações gravadas com usufruto vidual, embora ao cônjuge supérstite seja assegurado o poder de administrá-las, não dispõe de mandato para o exercício do voto, cujo direito é mantido com o nu proprietário.

    Ou seja, no usufruto vidual, os herdeiros conservam sempre a nua propriedade do patrimônio gravado, de sorte que, em se tratando de ações de sociedades anônimas, são eles as pessoas legitimadas para o exercício do direito de voto, nunca o cônjuge supérstite, beneficiário do desfrute. Em não havendo acordo entre usufrutuário e proprietário, ocorre a suspensão do exercício do sufrágio, como determina o art. 114, não sendo sequer de se cogitar, na espécie, de recurso ao suprimento judicial, diante do impasse convencional.

    5/7. Com efeito, foge à competência judicial para desatar esse impasse, no caso do silêncio convencional. Ao Judiciário caberia, no máximo, decretar a validade ou não de eventual ajuste preexistente que se questionasse. Por conseguinte, para os fins do acordo prévio previsto no art. 114, não pode a manifestação de vontade do proprietário das ações ser substituída por uma manifestação judicial a favor da usufrutuária, que ademais não é considerada, em nenhuma hipótese, pessoa legitimada pela lei brasileira para o exercício do voto. Fica assim respondido o segundo quesito da consulta.

    Daí por que, passando ao terceiro quesito, podemos também asseverar que, sendo o voto prerrogativa inalienável dos titulares das ações gravadas, e não estando o usufrutuário legitimado a exercê-lo, eventual decisão judicial, concedendo direitos de voto e direitos políticos ao usufrutuário, não pode ser exarada nos autos onde foi concedido o usufruto vidual, eis que agrediria os mais comezinhos princípios jurídicos que informam a matéria.

    Ademais, a discussão da extensão dos direitos de voto e direitos políticos à usufrutuária, que porventura tenha curso no processo de inventário, é absolutamente impertinente, mormente em processo de rito especial, devendo ser apreciada nas vias ordinárias, por consubstanciar questão que demanda alta indagação (Código de Processo Civil, art. 984).

    5/8. Advirta-se, ainda, que o acordo entre o nu proprietário e o usufrutuário, com respeito ao exercício do direito de voto, não precisa ser vertido em instrumento formal. A lei exige apenas que esse acordo prévio seja avençado pelas partes, admitindo ajuste verbal ou tácito. A forma só é indispensável à existência do ato jurídico, como se sabe, quando a lei expressamente o determina (Código Civil, art. 104, III, dispositivo correspondente ao art. 82 do código anterior).

    De onde podemos concluir, em resposta ao quarto quesito da consulta, que, considerando que a usufrutuária vem recebendo há mais de cinco anos os dividendos decorrentes das referidas ações, sem, por outro lado, opor qualquer ressalva ao exercício do direito de voto por parte dos acionistas proprietários das ações gravadas com o usufruto vidual, lícito é inferir que teria havido acordo tácito entre os proprietários das ações e a usufrutuária. As deliberações sociais tomadas com esses votos são, portanto, incensuráveis, sob o ângulo da eficácia dos sufrágios.

    5/9. Resta a quinta e última pergunta. Dentre os direitos essenciais do acionista, o art. 109, III, da lei do anonimato, inscreve o direito de fiscalizar, na forma prevista nesta lei, a gestão dos negócios sociais. Cumpre notar que esse direito de fiscalizar, atribuído aos sócios como princípio genérico comum a todo tipo social (Código Civil, art. 1.021), não é admitido com a mesma latitude nas anônimas, onde a pulverização das ações poderiam degenerar em abuso, com acesso indiscriminado de pessoas ao recinto o mais íntimo da empresa, com quebra do necessário sigilo comercial. Reconhecendo essa esfera de segredo, a lei assegura ao acionista o direito de fiscalizar a gestão dos negócios, pela forma estabelecida nesta lei. Assim, em seu art. 105, a lei estabelece a forma pela qual se autoriza a exibição aos acionistas dos livros da companhia. Segundo esse dispositivo, a exibição integral dos livros pode ser ordenada judicialmente sempre que, a requerimento de acionistas que representem, pelo menos 5% do capital social, sejam apontados os atos violadores da lei ou do estatuto, ou haja fundada suspeita de graves irregularidades praticadas por qualquer dos órgãos da companhia.

    5/10. Esse acesso integral aos livros, nas condições expostas, deferido aos acionistas detentores de, ao menos, 5% do capital social constitui um direito de natureza instrumental, ou seja, um meio para o exercício de outros direitos, como é o caso do direito de fiscalizar a gestão social e o direito de voto, para aprová-la. Daí por que somente os acionistas - e os acionistas qualificados pelo contingente de ações apontado - desfrutam de legitimação para formular em juízo a exibição integral, com base no dispositivo citado.

    Nessas condições, no usufruto, somente aos nu proprietários, que detêm a posição de sócio, é reconhecida a legitimidade para o pedido de exibição por inteiro dos livros sociais, preenchidos os dois requisitos estabelecidos no art. 105, acima reproduzidos. Não se confunda o direito à exibição integral dos livros, privilégio dos acionistas, com o direito de qualquer pessoa, acionista ou terceiros, de solicitar certidões de assentamentos consistentes dos livros, que fazem fé pública (art. 100, § 1.º).

    5/11. A norma do art. 105, específica e exclusiva para as sociedades por ações, afasta a aplicabilidade para esse tipo de sociedade do disposto no art. 1.191 do novo Código Civil, que encontra correspondência no art. 18, combinado com

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