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MATIAS, A. (2007) O conhecer "em ensaio": uma experimentação do possível. In, V.
Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora:
Universidade de Évora.
ou à incerteza ou ao meu estado original que é a ignorância. [tradução
nossa]2
De um modo conciso, poder‐se‐á entender por conhecimento a apreensão de
algo através do pensamento e a capacidade de tornar presente ao pensamento esse
algo que foi apreendido. Por outro lado, é também lícito afirmar que o
conhecimento é a relação estabelecida entre o sujeito que conhece e o objecto que
passará a ser conhecido, “como acto intencional que visa conscientemente algo
(carácter passivo), ou de captação do significado, informação, ou representação
mental de algo (carácter activo)” (Silva, 1989: 1104‐1105). Tendo em consideração
a proposta de definição de Hessen, o conhecimento poderá ser entendido como
uma determinação do sujeito pelo objecto, em que o determinado é a
representação mental desse objecto (Hessen, 1987: 27). Ainda nesta esteira,
Miranda Barbosa entende por conhecimento a relação estabelecida “entre sujeito e
objecto, por meio do pensamento, na qual o sujeito que pensa supõe
intencionalmente apreender as notas caracterizadoras do objecto e julga saber o
que o objecto é” (Barbosa, 1947: 135). Todavia, para a nossa reflexão, não se torna
tão pertinente questionar os meandros mais recônditos da origem do
conhecimento, nem tanto esse quase nó górdio que é a própria essência do
conhecer3. Cremos que, neste particular, o mais relevante será vislumbrar que tipo
de conhecimento o ensaio nos proporciona, as suas características e as suas
sinuosidades.
2 “Je prends de la fortune le premier argument. Ils me sont également bons. Et ne desseigne jamais de les
produire entiers. Car je ne vois le tout de rien. Ne font pas, ceux qui promettent de nous le faire voir. De cent
membres et visages qu’a chaque chose j’en prends un, tantôt à lécher seulement, tantôt à effleurer, et parfois à
pincer jusqu’à l’os. J’y donne une pointe, non pas le plus largement, mais le plus profondément que je sais. Et
aime plus souvent à les saisir par quelque lustre inusité. Je me hasarderais de traiter à fond quelque matière, si
je me connaissais moins. Semant ici un mot, ici un autre, échantillons dépris de leur pièce, écartés, sans
dessein, sans promesse, je ne suis pas tenu d’en faire bon, ni de m’y tenir moi‐même, sans varier, quand il me
plaît, et me rendre au doute et incertitude, et à ma maîtresse forme, qui est l'ignorance.” (Montaigne, 1967:
133)
3 “O problema essencial do conhecimento consiste em indagar o que é o conhecimento, q. d.: em investigar se o
conhecimento é ou não aquilo que no fenómeno do conhecimento parece ser intencional.” (Barbosa, 1947:
157)
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Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora:
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dissipadora que lhe tem toldado a sua verdadeira dimensão intrínseca. No nosso
entender, perspectivamos o ensaio como um compromisso osmótico bipolar: por
um lado, ele é aquilo que se poderá denominar por atitude, isto é, uma
predisposição em que se privilegia a tentativa, o pensar crítico, o crivo da dúvida,
factos que propiciam a que a concepção do próprio ensaio extravase os seus limites
enquanto texto; por outro lado, o ensaio é uma classe de textos efectiva com
balizas próprias, que apesar de plásticas lhe conferem singularidade face a outras
classes de textos. Para compreender o ensaio como uma atitude vincada e singular
é incontornável a alusão à obra de Sílvio Lima, Ensaio sobre a Essência do Ensaio
(Lima: 1964), leitura impreterível para o estudo e crítica ensaísticos. Para o
professor coimbrão, o ensaio é “uma atitude ginástica do intelecto que, repudiando
o autoritarismo, pensa firmemente por si só e por si próprio. Quere dizer, o ensaio
é o espírito crítico, o livreexame” (Lima, 1964: 201). Na análise limiana, são tidas
como principais características do ensaio o auto‐exercício da razão, a experiência
oriunda da vida concreta, e ainda a sua capacidade crítica. Grosso modo, na óptica
de Sílvio Lima, o ensaio “é um método humanístico, é o método humanístico” (Lima,
1964: 202).
“um veículo de comunicação que pelas peculiaridades formais (…) é um
resultado altamente adequado para exercer a crítica argumentada da
cultura, em quaisquer dos seus aspectos, desde os mais exagerados, até
aos mais transcendentais, a partir da perspectiva individual do eu. Este
atractivo deriva do facto de o ensaio ser uma classe de textos resultante
de uma tensão psicológica entre dois desejos aparentemente
contraditórios: o de pensar e descrever a realidade e as formações
culturais tal como são em si mesmas e o de impor necessariamente um
ponto de vista sobre elas. A consequência é a impossibilidade de
objectividade…” (Arenas Cruz, 1997: 129)
Nesta senda, para fazer uma apreciação que abarque o máximo da extensão
ensaística, é imperioso que nos socorramos não apenas dos utensílios oriundos da
Teoria da Literatura, mas também da Filosofia. Como tal, o ensaio é um texto, cujos
contornos merecem ser examinados sob um prisma literário‐filosófico. Porém, ao
nível filosófico devemos ter a perfeita noção dos terrenos que trilhamos. Na
verdade, ele é também um texto cujo objectivo se prende com uma ânsia por parte
do seu autor em provocar no auditório o acto perlocutório. É neste particular que
nos atrevemos a incorrer pela Retórica, nomeadamente pela sua revitalização
realizada por Chaïm Perelman. Neste âmbito, quando falamos em conhecimento,
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abordamos conjuntamente a questão da verdade, apesar de não ser nosso
desiderato demandar o que é a verdade no seu sentido arquetípico, mas sim a
tipologia de verdade que nos é apresentada e construída no texto ensaístico.
Seguros de que o ensaio procura a Verdade à medida que vai encontrando
“pequenas verdades”, sempre parcelares e não perenes, é importante que gizemos
os contornos deste conceito no contexto retórico, em simultaneidade com a
ascensão de uma nova racionalidade.
Efectivamente, com a Retórica pisamos superfícies não da firme rocha em que a
verdade é universal, mas sim os solos arenosos do opinativo. Perspectivar a
verosimilhança como a sua matéria‐prima torna‐se vital, essencialmente porque
constatamos que não lidamos com a verdade inteligível, mas sim com uma
“verdade” que é válida por ser semelhante, mas não igual ou correspondente, a
essa verdade de teor arquetípico. Reanimando a distinção estabelecida por
Aristóteles entre os raciocínios analíticos e os raciocínios dialécticos, Perelman
denuncia que a lógica formal, limitada aos raciocínios analíticos, não consegue dar
resposta aos critérios que são estabelecidos aquando da formulação de juízos de
valor. Assim, há um confronto nítido entre a teoria da demonstração por um lado, e
a teoria da argumentação por outro. Desta forma, vemos que se principia um
esforço em recuperar a retórica de moldes aristotélicos, sendo preteridos os
princípios teóricos da retórica clássica, que se tornou, de acordo com a concepção
perelmaniana, numa técnica balofa e estafada de figuras, despreocupada com a
adesão dos espíritos. Além disso, o Estagirita, na obra Tópicos, refere que os
raciocínios dialécticos, contrastando em índole com os analíticos, se baseiam em
opiniões consensualmente aceites por uma maioria4. É neste sentido que se deve
perceber o conceito de eúlogos (euvjlogoº), isto é, a verosimilhança que entronca na
razoabilidade. O raciocínio analítico tem a sua base na verdade necessária, unívoca
e impessoal, ao passo que o dialéctico encontra o seu alicerce na opinião (dovxa).
Nesta senda, é com propriedade que Olivier Reboul afirma que “O domínio da
retórica, (…), não é o mesmo da verdade científica mas do verosímil” (Reboul,
1998: 27). Esta nova racionalidade proposta não seria castradora do agir
individual, porquanto reconhece valores como a pluralidade e a liberdade.
Descartes na concepção criada em O Discurso do Método concede uma inegável
importância à evidência. Sobre este ponto Perelman afirma em O Império Retórico:
“A finalidade da filosofia, para Descartes, é a descoberta da verdade em todas as
coisas, e o seu fundamento é a evidência [itálico nosso] de que «as coisas que nós
concebemos tão clara e tão distintamente são todas verdadeiras»” (Perelman,
1993: 163). O pai da Idade Moderna considera, assim, que nenhuma verdade
poderá ser tida enquanto tal se, porventura, pairar sobre si laivos de “não
evidência”: a verdade tem que ser válida per se, independentemente da tradição e
da autoridade, visto que o seu valor reside na sua própria evidência inequívoca5. A
grande celeuma, origem de controvérsia, que existe no pensamento cartesiano, é o
4 Cf. 100 a, 30‐31 (Aristote, 1967:1).
5 “O conhecimento assim concebido não pode, portanto, ser progressivo: é perfeito ou não existe.” (Perelman,
1997:159)
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limite da concepção cartesiana a uma pura contemplação, dado que não há uma
preocupação com a realidade exterior – tudo o que é veiculado pelos sentidos é
fonte de erro. Numa perspectiva da teoria do conhecimento, Descartes elaborou
uma estruturação do conhecimento não possível em termos humanos, mas
adequada à não‐limitação do divino. Desta feita, “o conhecimento cartesiano é
dado de uma vez, após uma ruptura completa, não só com o erro, mas também com
a opinião e a verosimilhança dos quais a ciência deve ser purgada previamente à
sua constituição” (Perelman, 1997: 159).
Nesta esteira, num movimento de reacção, o pensador da Escola de Bruxelas,
com a revitalização retórica, situa‐se no campo da racionalidade, conquanto esta
seja eivada por outros matizes. Ele defende que a razão deve ser o espelho do
próprio Homem, limitado em cronotopia. Não há uma negação da racionalidade per
se, mas sim a contestação da racionalidade puramente formal, entroncando‐se
precipuamente na razoabilidade. Face aos raciocínios analíticos, haverá agora um
reconhecimento do valor dos raciocínios de tipo dialéctico, referidos por
Aristóteles, mas que ao longo do tempo foram sendo menosprezados. Assim, esta
racionalidade é, como assevera Rui Grácio, uma racionalidade argumentativa. Com
Perelman dá‐se um alargamento da noção de razão, visto que ela passa também a
admitir, como meio para alcançar o conhecimento, a opinião e a verosimilhança.
Por outro lado, a razão ao perder os seus traços divinos acolhe a falibilidade: a
razão torna‐se mais humanizada, ao traduzir os contornos do limite humano. O
falível, como poderemos entender, não estabelece uma relação sinonímica nem
com o arbitrário, nem com a falta de conexão dos conteúdos6. Utilizando
raciocínios dialécticos, a Retórica coloca‐se não no campo da verdade unívoca e
inequívoca, mas sim da opinião. Dado que a opinião e a verosimilhança estão
fortemente intrincadas, é pertinente agora tentar circunscrever estes conceitos.
Ao abordarmos o conceito de opinião, teremos forçosamente que meditar sobre
a verosimilhança, na medida em que ambos estabelecem uma ligação de
reciprocidade dependente. Segundo Reboul, verosímil é “tudo aquilo em que a
confiança é presumida” (Reboul, 1998: 95). A questão da verosimilhança liga‐se a
áreas do saber, cujo contexto não nos possibilita afirmar contundentemente se
algo é verdadeiro ou falso. Destarte, a noção de verosimilhança está
necessariamente comprometida com o conceito de opinião, criando dessa forma
uma correlação mútua. É exactamente motivada por esta ligação que se
desencadeia uma desconsideração preconceituosa da opinião por parte da
racionalidade analítica, uma vez que aquela não se estriba “solidamente” no
caminho do conhecimento.
6 “Falibilidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas a própria expressão da nossa condição humana que não
se autoproduz, que não se faz integralmente a si mesma, mas que é sempre condicionada, na sua criatividade,
pelo passado, pela tradição e pelos sentidos que historicamente moldam e são moldados por contextos e
quadros de referência a partir dos quais a vida humana se organiza.” (Grácio, 1993: 23)
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Tendo em consideração toda a metamorfose do ponto de vista principiada por
Perelman, a verosimilhança torna‐se a pedra angular da estrutura argumentativa7.
Perceber‐se‐á onde reside essa inovação/revitalização se atentarmos nas seguintes
palavras do autor de O Império Retórico: “Sendo a verdade uma propriedade das
proposições, independente da opinião dos homens, os raciocínios analíticos são
demonstrativos e impessoais. Esse não é, contudo, o caso dos raciocínios
dialécticos. Um raciocínio é dialéctico, diz Aristóteles, se as suas premissas forem
constituídas por opiniões geralmente aceites” (Perelman, 1993: 22). Desta feita,
uma opinião, uma doxa (dovxa) é um enunciado de valor subjectivo, na medida em
que não se sabe se é passível de ser verificável em todos os contextos possíveis;
por outro lado, ela pode ser posta em causa e até destronada através do confronto
com outras opiniões8. “A verdade não é a coincidência perfeita com o seu objecto; a
não ser que não tenha objecto, como nas concepções formalistas das ciências
dedutivas, ela é a aproximação e generalização, únicas coisas que tornam possível a
comunicação” (Perelman, 1997: 365). Na realidade, uma opinião é um juízo que ou
não foi ou que não pode ser atestado apodicticamente; numa opinião não temos
propriamente um saber claro nem uma ausência dele, mas sim uma afirmação ou
uma negação elaborada de um modo peculiar. Quanto mais verosímil uma opinião
for, mais próxima da verdade estará. A opinião será, portanto, um processo oblíquo
de alcançar um tipo de verdade essencialmente aberta, que não se claustrofobiza
em sim mesma.
Em jeito de sinopse, a Retórica permite uma valorização do subjectivo, elemento
preponderante e vivificante no ensaio. Essa valorização da esfera do subjectivo,
estandarte erguido e assumido pela Retórica, pressupõe também o cultivo de uma
série de valores, onde a tolerância, a crítica, o diálogo e a persuasão estão muito
vincados. Não só esta nova concepção da verdade é vital para a validade do ensaio,
como também a capacidade de ajuizar oriunda da retórica se mostra indispensável
no labor ensaístico. Não obstante, devemos ter presente que, tal como assegurou
Perelman, “a argumentação é índice de dúvida” (Perelman, 2002: 544): força
motriz da dinâmica do ensaio. Por outro lado, Rui Grácio relembra‐nos que “a
eleição do próprio tema da argumentação pode ser lida a partir do princípio do
livre exame, que tanto incita ao “ousar pensar” como inscreve o pensamento na
prioridade da resistência ao autoritatismo despótico” (Grácio, 1993: 97). De facto,
o ensaio privilegia esta atitude de ousadia, este sapere aude de novas tonalidades e
feições, onde as opiniões sustentadas na razoabilidade não se furtam à
controvérsia e à polémica (Grácio, 1993: 113). Grosso modo, o ensaio vai desaguar
neste estuário da razão prática propugnada por Perelman, na medida em que não
negligencia uma racionalidade que corresponde ao homem, naquilo “que ele
realmente é: um ser situado, histórico, contextualizado, enraizado” (Grácio, 1993:
21). Estamos diante de uma lógica mais “quente”, mais humana.
7 “A argumentação retórica distingue‐se nitidamente, desde Aristóteles, dos modos de convencer próprios do
discurso científico. Interessa‐se mais por enunciados ou, mais globalmente, por situações de comunicação
pertencentes à vida social, religiosa ou política, tanto no espaço público como na conversação privada. O
estatuto epistemológico destes enunciados é o «verosímil» e não o da «verdade».” (Breton, 2001: 17‐18)
8 Como podemos constatar, uma opinião é um raciocínio que pressupõe o conceito de razoabilidade e
consequentemente, o de plausibilidade. (Arenas Cruz, 1997: 147).
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Dos elementos supracitados, devemos dar especial ênfase ao facto de o ensaísta
ser um homem que, simultaneamente, está inserido e é fruto de uma circunstância
determinada e específica. Este fenómeno proporciona ao texto ensaístico, seja ele
de tez literária ou não, uma forte ligação com o real: o texto está fundando, mas
também fundido com esse real. Não olvidando que o móbil do nosso estudo é o tipo
de conhecimento criado e presente no ensaio, aventamos desde já que o
conhecimento ensaístico, assente nos pressupostos da racionalidade
argumentativa e na instilação da dúvida, é também menos rígido, mais plástico
devido ao forte cunho pessoal que nele existe. Contudo, não devemos negligenciar
que o ensaio, tomado como atitude, vai desenvolvendo num continuado a sua
construção do conhecimento. Desta feita, não é meramente casual a carga
semântica que o conceito ensaio encerra. Sendo quase um lugar‐comum na crítica
ensaística, convém sempre relembrar que ensaio é originário da palavra francesa
“essai”, que por sua vez tem a sua origem no vocábulo latino exagium, ii,
significando “peso”, “pesagem”. Na verdade, a classe de textos ensaio é uma
pesagem de argumentos, onde a observação, o exame persistente e a atitude crítica
estão presentes de um modo muito expressivo. Nesta senda, o ensaio é uma forma,
um meio de alcançar o conhecimento. Não obstante, aquele deve ser também
encarado como um processo e um lugar de conhecimento: é nesta classe de textos
e durante a sua escrita que o conhecimento vai brotando e se vai construindo9.
Claro está que não poderemos confundir a postura de um ensaísta com o papel de
um investigador ou de um especialista de uma área específica. Se estes pretendem
alcançar conclusões universais, situação que se reflecte nas classes de textos que
normalmente cultivam (monografia ou o tratado)10, o ensaísta mais do que
conhecer o que o rodeia pretende dar‐se a conhecer a si mesmo. Assim sendo, o
ensaio é uma classe de textos indubitavelmente antidogmática, avessa às
construções sistemáticas, pautando‐se por um cepticismo de cariz não autofágico,
uma vez que permite ao ensaísta ampliar e edificar o seu conhecimento e a sua
perspectiva.
Tenhamos em consideração as palavras de Ortega y Gasset na sua obra
Meditaciones del Quijote: “O ensaio é ciência sem prova explícita” (Ortega y Gasset,
2004: 753). Não enveredando pela crítica directa a esta proposta de definição do
ensaio, pretendemos acentuar o facto de Ortega frisar, rigorosamente, a vertente
putativa e crítica que o ensaio partilha com a ciência, ainda que se distancie
claramente desta, visto que as provas que o ensaio utiliza não são evidentes nem
válidas universalmente. Cientes de que o ensaio é um texto que se sustenta no
balancear entre o literário e o não‐literário, notamos que há áreas do saber que ele
toca de um modo muito particular:
9 “Quando digo que o ensaio é uma forma de pensar, quero indicar que está escrito ao correr da pena.” (Gómez-
Martínez, 1981: 55)
10 “O dizer que o ensaio não possui uma estrutura rígida, pretende‐se estabelecer uma distinção entre este e
aqueles escritos caracterizados precisamente por uma rigorosa organização tanto formal como de conteúdo.”
(Gómez-Martínez, 1981: 63)
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“a filosofia, se for entendida como exercício de especulação intelectual a
que nada é alheio, como uma espécie de ciência de todas as ciências; a
crítica, se pensarmos nela como mister, profissão ou ofício de inquirir e
ponderar as construções intelectuais alheias; a ciência, se a concebermos
como expressão de certezas gerais obtidas mediante a investigação. As
três coisas não são idênticas mas têm, sem dúvida, pontos de tangência”
(Gómez, 1996: 13).
É indubitavelmente neste espaço simbiótico, proporcionado pela mescla destas
áreas de saber, que o ensaio se edifica enquanto classe de textos híbrida. Uma vez
que, criticamente, vagueia pelos terrenos da Literatura, da Ciência e da Filosofia, o
ensaio expõe assim uma dupla faceta da sua condição: a par das suas
condicionantes metamórficas que espelham o seu hibridismo, ele apresenta‐se
também como um descendente de Jano. A vertente jánica consubstancia‐se no
facto de o ensaio permitir uma elaboração de um plano de reflexão crítica,
acompanhada por elementos de índole estética e expressiva (Arenas Cruz, 1997:
107). Assim sendo, o conhecimento que vem e se edifica no ensaio tem também
contornos hermafroditas, face ao hibridismo e complexidade que são impressos
nesta classe de textos.
O pensamento e o saber, que se erigem no ensaio, vão sendo desenvolvidos no
próprio texto, à medida que se realiza o processo de escrita criativa e artística, pois
“o eu liberta‐se, e marcha, pensando, e pensa marchando” (Lima, 1964: 57). Nesta
senda, tendo sempre presente as mais diversas características ensaísticas, como o
sentido antidogmático, de não exaustividade11 e sobretudo de instilação da dúvida,
esta classe de textos apresenta o ensaísta como um escritor em puro infortúnio. Na
nossa opinião, o conceito de escritor‐náufrago vai ao encontro da propensão
fragmentária do ensaio, visto que o ensaísta é um “caçador frustrado do Absoluto”
(Lourenço, 1996: 4) que não alcança, porque lhe é impossível na sua limitação
humana um conhecimento de unidade. Resta‐lhe apenas a deambulação errante
pelas matérias que, em brevidade, versa. O ensaísta não é só um exegeta da
realidade que o envolve e na qual está comprometido; ele é também o viajante que
se emaranha no alto mar da dúvida12. Como tal, não será inusitado, nem
inesperado o facto de um ensaio, no decurso do seu processo de construção,
descarrilar numa temática que à partida não teria qualquer elemento de relação
com o mote inicial13. Isso é apenas uma consequência da vertente dinâmica do
ensaio enquanto potenciador de um conhecimento intérmino. A este vector junta‐
se a espontaneidade de todo o processo de escrita, em que transparece uma
orgânica não mecânica, mas muito humanizada: o espontâneo do ensaio é o
resultado de um diálogo que o ensaísta vai desenvolvendo não apenas com o
potencial leitor, mas principalmente consigo mesmo, uma vez que o autor, ao se
11 “Um ensaio não tenta esgotar um assunto, mas sim ser um mero avanço nessa direcção, uma contribuição
individual que espera correcções e ampliações do próprio autor ou de outros” (Oviedo, 1991: 18).
12 Neste particular, Fryda Schultz Montavani não se inibe de classificar o ensaísta como um aventureiro
(Montavani, 1967: 16).
13 “O ensaísta, embora se mantenha fiel ao seu tema, não está limitado por ele e na realidade excede‐o a cada
momento.” (Oviedo, 1991: 13)
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projectar no seu texto, dá‐se a conhecer para em sincronismo conhecer e se
conhecer.
Na verdade, está é uma classe de textos de diálogo. De acordo com Oviedo, “o
ensaio é uma forma dialogante, um pensamento que quer ser comunicação aberta,
tanto com o leitor como com o mundo histórico a que pertence” (Oviedo, 1991:
16). Nesta esteira, podemos antever que o ensaio vai chamar a si a função e
potencialidade dos diálogos platónicos. Se bem que sob a capa ilusória de um
monólogo, o ensaio é de facto um diálogo com o seu leitor, com a realidade que
circunda o ensaísta e também um diálogo com o “eu” que o habita. Em
consequência, há no contexto ensaístico uma apropriação da máxima délfica
“Conhece‐te a ti mesmo” (gnw=çi seautovn) que desembocará num inevitável “Só
sei que nada sei”, retomado pelo “Que sais‐je?” cunhado na medalha de Michel de
Montaigne. Em primeiro lugar, o ensaísta é um homem que conhece os limites
intrínsecos à condição humana, o que implica que não seja alheio à dimensão da
problemática do conhecimento. A dúvida é tida como princípio de saber e ponto de
partida para o conhecimento, que erróneo e não perene deve ser buscado numa
constante dialéctica de suspicácia. A expressão Que saisje? resume por um lado a
autognose que o ensaio garante e, por outro lado, a atitude de dúvida profiláctica
que nele existe em relação ao conhecer. Em segundo lugar, conscientes de que o
ensaio é também um texto de laivos autobiográficos, em que o autor se plasma no
próprio texto, a busca do conhecer fica assim comprometida com a finitude
humana. É no caminhar da possibilidade que o homem poderá conhecer, sempre
certo de que almejar um saber objectivo e total seria uma ambição despropositada
e inexequível. Estamos convictos de que todo o ensaio é uma atitude de reacção à
concepção hegeliana da “ideia absoluta”: em ensaio, o conhecimento é sempre
relativo e constantemente sujeito a um questionamento. De seguro resta‐lhe
apenas a ignorância consciente, que não conduz a um cepticismo destrutivo, antes
aponta a capacidade infinda que o homem tem em expandir o que já conhece.
De um modo geral, o ensaio constitui‐se como um processo de errância14, em
que o texto se vai desenhando em movimento espiralóide. Em amiudado
ziguezague e tacteio, qualquer ensaísta tem ainda hoje por gnoma uma das frases
mais interessantes do autor bordalês: “Gosto do andar poético, aos saltos e aos
pinotes.” (Montaigne, 2002c: 243). Na verdade, esta consciente vagabundagem do
pensamento ou este pensamento‐vadio é mais uma peça fundamental na
concepção do conhecer ensaístico. Esta escrita ao sabor do próprio texto é a prova
de que no ensaio se traça um conhecimento do “errar”. Tal como aventa Maria
Alzira Seixo em Outros erros: ensaios de literatura (Seixo, 2001), o ensaio é sempre
um movimento de vaivém entre o erro e o saber, onde realidades como a digressão
e a dispersão se fazem sentir veementemente. Todavia, mais uma vez se vinca que
o erro não é adverso à verdade; aliás ele é vital para que haja verdades(s). O erro é
a consequência directa da condição humana que cada homem tem em si. Ser finito
e de limites o seu conhecimento encalha nos seus traços humanos. Como tal, o erro
14 “O ensaísmo não oculta a sua dimensão errante.” (Jarauta, 1991: 44)
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MATIAS, A. (2007) O conhecer "em ensaio": uma experimentação do possível. In, V.
Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora:
Universidade de Évora.
e a sua incessante superação em tentativa sisífica é o modus operandi que permite
ao Homem conhecer. Todo o ensaio será, portanto, uma verdade a prazo, um erro a
haver.
Por outro lado, o erro é simultaneamente encarado por Maria Alzira Seixo como
errância15, em divagação e em erro, visto que todo o ensaio é um risco: risco
porque não teme expor as suas ideias; risco porque não se confrange em “mostrar”
ao seu leitor o processo sempre atribulado de escrita. Assim sendo, é neste
particular que o ensaio se expõe enquanto dinâmica de pensamento, de
conhecimento e de escrita, uma vez que “o processo do erro é no seu processo que
acaba por insistir, no caminho do risco, mas progressivo, que ele assume. É no
saber que, mesmo parcialmente e com todas as condicionantes, ele contorna ou
constrói” (Seixo, 2001: 17). O ensaísta ao escrever não tem qualquer prurido em
nos apresentar, “desveladamente”, o seu rascunho de pensamento, pois é
precisamente esse ludismo com o leitor que ele pretende criar: eis o jogo ensaístico
– propiciar a atitude crítica no leitor. Em suma, no ensaio todo o errar é um
(ar)riscar, pois é na dúvida e na tentativa que, em gerúndio, se bosqueja uma
verdade possível, porquanto o ensaísta tem a noção de que estando em
circunstância é‐lhe impossível fugir à força do devir a que está sujeito.
Ultimando a nossa abordagem ao conhecimento ensaístico, urge aflorarmos um
dos procedimentos mais recorrentes nesta classe de textos: a metáfora. Na
realidade, o ensaio utiliza‐a não só como um artifício poético‐literário, mas
também e mormente como um instrumento intelectual, adensando‐se consoante
os campos de meditação em que o autor incorre. Conquanto alguns autores tenham
defendido o seu afastamento ao nível científico, em contexto ensaístico a metáfora
é um processo fortemente cultivado. Ela é uma construção interpretativa da
realidade que o ensaísta arquitecta, dando‐a ao leitor como se de uma lente ou um
filtro se tratasse. A metáfora apresentada em ensaio funcionará para o leitor como
uma lente que lhe permitirá observar a realidade de um modo inesperado ou ainda
não sondado. Assim sendo, a metáfora, enquanto processo de descobrimento ou de
desvendamento, acentua‐se como modo de conceitualizar algo que se desconhece
ou algo cujo conhecimento se revela escasso, incongruente ou insatisfatório. Desta
feita, tendo em consideração pressupostos ensaísticos como a dúvida, o
antidogmatismo, a assistematicidade, a capacidade de abertura, a metáfora releva‐
se como um dos melhores instrumentos do ensaio, visto que ao ser entendida
como processo de descobrimento interpretativo, à metáfora subjazerá o facto de a
verdade ser dinâmica e em contínua metamorfose.
A metáfora confere ao ensaio a capacidade de captar uma outra perspectiva da
realidade que o envolve, propiciando uma atitude crítica de questionamento. Neste
sentido, ordinariamente, muitas das metáforas que consubstanciam as teses do
ensaio põem em causa ou entram em confronto directo com as verdades escoradas
15 “O ensaio pensa o seu objecto como descentrado, hipotético, regido por uma lógica incerta, impreciso,
indeterminado: o seu discurso é sempre uma aproximação” (Jarauta, 1991: 45)
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no saber ou crenças vigentes16. Assim, acreditamos que a metáfora ensaística
choca o leitor, não porque apenas contraria as verdades do saber que vigora, mas
também porquanto esse embate é realizado de um modo artístico: eis as razões
pelas quais a metáfora torna o conhecer ensaístico verdadeiramente original e
peculiar. Por fim, no que concerne à metáfora, devemos asserir que a sua utilização
no ensaio proporciona, ou melhor, acentua a intimidade que o emissor pretende
estabelecer com o seu leitor, visto que uma metáfora só poderá ser apreendida em
toda a plenitude se houver alguma cumplicidade entre ambos.
Anunciando‐se já o fim do nosso estudo, estamos convictos de que o tipo de
conhecimento que o ensaio nos concede se finca numa pluriversalidade consciente,
dado que não negligencia o valor das múltiplas opiniões que poderão ser
elaboradas sobre uma temática específica. Como tal, o ensaio é veículo de um saber
incomensurável que nos permite questionar as próprias bases do conhecimento,
bem como os limites do ser humano. Como se torna evidente, isso implica que o
conhecer “em ensaio” seja, tal como a própria classe de textos, aberto, sempre
pronto a ser superado por uma outra óptica, perspectiva que o ponha em causa.
O ensaio brinda‐nos com um conhecimento de experimentação pela polémica do
confronto, afastando qualquer tipo de desígnios estabelecidos a priori, arraigados a
sistemas ou dogmas. A sistematicidade e a exaustividade não são compatíveis com
16 “Ao questionar a verdade estabelecida, abre fronteiras e nega as formas sacralizadas do conhecimento. Por
consequência, o ensaio é antidogmático, assistemático e com alguma frequência herético.” (Oviedo, 1991: 13)
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Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora:
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os ímpetos pulsantes do real, por isso o ensaio não pretende, nem poderia ser um
texto metódico e sistemático: deixaria de consentir múltiplas interpretações,
facultava somente um caminho de análise, impondo apenas uma leitura. Todavia, o
ensaio tem uma abrangência que extravasa os limites da própria classe de texto,
pois também implica uma nova postura do seu autor face à realidade, que a terá
que analisar de uma diferente perspectiva, fazendo em simultâneo uma pesquisa
da sua ipseidade, como nos garante Domingo Ynduráin: “Creio que, Montaigne com
os Essais não cria um novo género, o que cria é uma nova literatura que aspira
reflectir o homem que a escreve, não um mundo autónomo e objectivo,
independente do autor e o do leitor” (Ynduráin, 1994: 1207).
Assim sendo, o ensaio tem como força instigadora do seu conhecer a dúvida,
pois, como afirmou Merleau‐Ponty, “não se trata de obter por qualquer preço uma
conclusão tranquilizadora, nem de esquecer no fim o que se encontrou no
caminho. É na dúvida que a certeza virá. Mais: é a própria dúvida que vai revelar‐se
certeza” (Merleau‐Ponty, 1962: 312‐313). O ensaio é, na verdade, um veículo de
um conhecimento errático, porque no erro, porque na errância, culminando numa
corrente de possibilidade, estabelecida numa dinâmica dialéctica com o leitor de
arte em pensamento e pensamento em arte.
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