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- Sempre que sucede morrer uma criança boa, desce um anjo do céu a
buscá-la, e, depois de a recolher em seu regaço, desdobra as asas brancas,
dadas pelo Criador, afim de ir percorrendo em seguida todos os sítios com
que na terra a criança mais simpatizou. As flores que nesta digressão
apanham, levam-nas ambos ao Pai Celeste, para ele as fazer lá reflorir no
empíreo mais formosas e odoríferas, imarcescíveis mesmo. Deus então
aconchega ao peito essas flores, - e na que mais lhe apraz deposita um
beijo. Esse beijo tem o condão miraculoso de inocular na flor animação e
voz.
Depois começou a erguer, a erguer o voo para o céu. Foi então que o anjo
deu princípio à narrativa seguinte :
- Ali, naquela rua sombria que tu viste, morava numa espécie de toca uma
criancinha enfermiça. Era um pequenito que nascera infezado e raquítico.
Sua moléstia congénita impunha-lhe a necessidade tristíssima de
permanecer quase sempre na cama. Se alguma vez acontecia sentir
melhoras, o mais que lograva era percorrer o quarto em roda, amparado nas
muletas. Quando chegava o estio, entravam-lhe pela janela uns raios de sol
a iluminarem-lhe o acanhado âmbito do seu miserável domicílio. A criança
aproveitava então a visita fugitiva daquelas ondulações luminosas e nelas
se aquecia, e nelas buscava revivificar-se, como se fora aquilo a benéfica
influência de um higiénico passeio pelo campo. Este pequenito nunca em
sua vida tinha pois podido apreciar a magnífica verdura das florestas, e
delas só podia formar uma longínqua ideia por algum ramo de faia que o
filho do vizinho lhe trazia de tempos a tempos, como lembrança. Pegava
então no ramo, e dependurava-o por sobre a cabeceira, fazendo assim de
conta que estava repousando à sombra de virente arvoredo, com as
ondulações doiradas de um sol em perspectiva e um delicioso chilreio de
mil passaritos a encher-lhe de música os ouvidos. Numa bela manhã de
primavera trouxeram-lhe umas flores do campo; casualmente uma destas
vinha ainda com a raiz intacta. Tira-se de cuidados o pequeno, e trata de
plantar cautelosamente o vegetalzito num vazinho de barro, que daí por
diante ficou constituindo o seu constante enlevo, poisado no parapeito da
janela, à ilharga do leito em que jazia. Plantado por mãos carinhosas,
regado, tratado, acariciado, o vegetal campestre soube na sua humildade
agradecer os afagos de tanta solicitude; em breve lhe pulularam viçosos
rebentos; e todos os anos se desatava em novas flores, como a festejar o seu
desvelado cultor. Para o pobre doentinho era aquilo o seu estimado jardim,
o seu único tesouro neste mundo; queria-lhe com todo o afecto da sua alma;
prodigalizava-lhe os seus mais encarecidos mimos; da água, que bebia,
dava-lhe sempre as primícias; colocava-o de modo que nunca perdesse um
raio sequer do sol que escassamente lhe entrava pela janela. E a humilde
planta vegetava e desenvolvia-se; revestia-se cada vez mais de folhedo;
toucava-se de botões que desabrochavam em flores; irradiava-lhe
perfumes; parecia até sorrir-lhe com requintes de galanteio. Por sua parte o
pequenito, - quando afinal Deus o chamou à sua eterna presença, - o
pequenito, antes de soltar o derradeiro suspiro, inclinou-se comovido para a
sua verde companheira e segredou-lhe de mansinho, muito de mansinho, as
suas ternas, últimas despedidas. Faz agora um ano, que o pobre enfermo
faleceu; e durante este ano todo lá ficou desprezada, esquecida a um canto,
no mesmo parapeito da esguia fresta, a planta campesina em que outrora
havia docemente concentrado seus cuidados e alegrias o infantil doentinho.
Faltando-lhe os mimos, a que se acostumara, pouco a pouco murchou e se
foi o triste vegetal mirrando, até que o próprio vaso agora lhe deitaram à
rua, como inútil pejamento, por ocasião de sair dali quem habitava naquela
mi serável toca. Foi esta a flor, que ora acabámos de cuidadosamente
recolher de entre o lixo da rua; e, se em nosso ramalhete a arrecadei com
tanto carinho, é porque, - onde a vês, amachucada, espezinhada, — causou
já mais alegrias e mais enlevos, do que se fora uma flor raríssima no jardim
de uma rainha!