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A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA:

estrutura e relato das sociedades


indígenas*

Oscar Calavia Sáez

A história indígena no Brasil passou para o ção da vida “pré-contato” – distribuição adequada
primeiro plano do interesse dos antropólogos nos quando se tratava de grupos “aculturados” ou “in-
anos de 1980.1 O tema em si não era novo, mas tegrados” –; ou assumir a forma de um epílogo ou
costumava aparecer nas monografias na forma de um necrológio, quando pelo contrário os pro-
de um capítulo específico, a saber, o contato tagonistas eram donos de uma cultura distintiva e
com a sociedade dos brancos que a rigor teria tra- ainda vigorosa, cujo crepúsculo mal se iniciava
zido a história para um lugar onde ela não se en- perante os olhos melancólicos do etnógrafo.
contrava previamente. A história seria uma soma- Se o capítulo do contato, maior ou menor,
tória de externalidades: frentes de expansão, prólogo ou epílogo, não perdeu sua importância,
fricções interétnicas, políticas indígenas e indige- o florescimento da história indígena extravasou
nistas, ações da sociedade nacional e reações na- decerto seus limites, fazendo da história uma di-
tivas. Nas monografias, podia crescer até tomar mensão constante e interna das sociedades em
conta da descrição e reduzir a prólogo a descri- pauta. Essa redistribuição atendia a uma necessi-
dade do movimento indígena que na época desa-
brochava com força (Carneiro da Cunha, 1992).
* Este artigo faz parte das atividades do projeto “Trans-
formações indígenas: os regimes de subjetivação
Povos que aspiravam a um futuro deviam ter tam-
ameríndios à prova da história” (NUTI-PRONEX), de- bém um passado, e assumir como própria, e não
senvolvido por equipes do MNRJ e da UFSC. mais como resultado de uma intromissão, a capa-
Artigo recebido em junho/2004 cidade de mudança. O movimento da história in-
Aprovado em novembro/2004 dígena – e falo em “movimento” porque em vá-

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rios sentidos ultrapassava os limites da academia, na conta do evolucionismo, do funcionalismo, do


inserindo-se nas empresas do próprio movimento culturalismo ou do estruturalismo, dependendo da
indígena – tomou vários caminhos, alternativos filiação e das desafeições do crítico. É claro que
ou combinados. De um lado, promoveu uma re- essa ficção se apresentou de modos muito dife-
cuperação e uma avaliação mais otimista do acer- rentes, que foram desde a caracterização dos pri-
vo documental produzido ao longo dos séculos mitivos como um grau zero da humanidade (ou
pelos agentes da sociedade colonial ou nacional, de uma história que ainda não aconteceu), até a
maior em quantidade e qualidade e muito menos descrição de suas sociedades como formações es-
perdido do que era de praxe considerar. Com táveis de fato ou por desígnio próprio, além da
essa revisão o movimento afirmava, ao mesmo alegada impossibilidade de auferir uma história
tempo, que o papel dos indígenas na constituição (entendida de modo estreitamente positivista) a
da sociedade nacional era muito mais constante e partir dos dados disponíveis, ou ainda até o não
profundo do que os grandes relatos da “formação reconhecimento da continuidade entre formas vi-
do Brasil” deixavam entrever. gorosamente distintivas e híbridas surgidas da in-
De outro, somando-se a uma tendência teração com o exterior. Os primitivos podiam ser
mundial nos estudos sobre sociedades sem escri- ahistóricos por natureza, ou por vocação, ou por
ta ou sobre setores populares das sociedades le- definição, ou por ignorância invencível acerca do
tradas, o movimento adotou uma atitude renovada
seu passado. Por ser mais recente, ou mais suges-
em relação à tradição oral, aceitando seu valor
tiva, ou mais explícita, a fórmula levi-straussiana
de documento, ou mesmo realçando seu signifi-
da oposição entre sociedades frias e quentes –
cado como visão alternativa à história oficial. Essa
desdobrada em outras: relógios e máquinas a va-
nova legitimidade do oral coadunava-se com uma
por, por exemplo (cf. Charbonnier, 1989, p. 30;
indagação sobre a percepção indígena da história,
Lévi-Strauss, 1987) – foi tomada em muitos casos
e, portanto, da abertura ao que poderia se chamar
como antagonista preferente dos arautos da histo-
de “historicidades outras”, não necessariamente
ricidade indígena, uma opção excessiva na medi-
em acordo com os padrões heurísticos ou crono-
da em que se fazia dessa antinomia um resumo
lógicos da historiografia acadêmica.
do conjunto das negações.
Em terceiro lugar, e confrontando uma dua-
Deixando de lado, por enquanto, a injustiça
lidade central na antropologia, o movimento que
nos ocupa se detinha sobre as relações entre es- dessa leitura do binômio levi-straussiano, é preci-
trutura e história, debelando as versões estáticas so sublinhar que, na decisão desse novo status da
da primeira e as versões entrópicas ou voluntaris- história indígena com respeito à história universal,
tas da segunda. havia também muito dessa caça às dicotomias que
Cada uma dessas vertentes da historiografia rivaliza com a sua formulação pela honra de ser
dos povos indígenas teve os seus inspiradores e o passatempo preferido dos antropólogos. Dito de
seus autores emblemáticos, não necessariamente outro modo, havia uma ênfase nas continuidades
afinados entre si, tributários e/ou renovadores de em detrimento dos contrastes. Mesmo que se pos-
todos os paradigmas teóricos da antropologia. Em tulasse a historicidade indígena como “outra his-
comum, havia talvez uma valoração ética da histó- toricidade”, era no termo “historicidade” e não no
ria ou da historicidade. Afirmar que os índios têm – termo “outra” que recaia o acento, o que não
e sempre tiveram –, história, equivalia a uma rea- pode surpreender em uma tendência que reagia
tualização de reconhecimentos anteriores; o de que contra o exótico.
eles têm, por exemplo, alma, ou racionalidade. Mas os estudos sobre história indígena já
A afirmação da historicidade indígena assu- contam com uma razoável maturidade, e pode se
mia também a forma de uma revisão dos pressu- esperar que se libertem de alguns movimentos re-
postos da antropologia, denunciando essa ficção flexos dependentes de seu contexto de origem.
dos povos sem história cuja autoria era colocada Nem a afirmação de uma historicidade ecumêni-
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ca, nem a articulação de estrutura e história são A eficácia documental


bandeiras que necessitem de mais defesa, muito
embora haja uma defasagem importante entre sua Em relação à primeira das vertentes da his-
afirmação genérica e sua aplicação a descrições toriografia indígena – a da reavaliação das fontes
concretas. A documentação sobre a história indí- documentais –, cabe dizer que o pessimismo que
gena passou a ser objeto de uma procura intensa. se aplicava ao conjunto dos povos indígenas de-
O movimento indígena vai assumindo como pró- veria se manter para um setor considerável destes.
pria – por exemplo, nos textos usados na educação Uma busca insistente não conseguiu levantar a
indígena diferenciada – uma historiografia que nem respeito dos Yaminawa senão notas jornalísticas
sempre se prende, porém, às pautas daquela “ou- esparsas, citações em longos listados de etnias, re-
tra historicidade” descoberta pelos etnohistoriado- ferências de terceira ou quarta mão, relatos de um
res. Criado um consenso sobre generalidades, tal- encontro fugaz ou estereótipos devidos a etnias
vez seja o momento de se voltar sobre a história vizinhas. Por muito proveito que possa se tirar de
indígena e enfocar desta vez não já as suas conti- semelhante conjunto, trata-se de dados que não
nuidades com um modo ocidental de palmilhar o nos situam no interior de uma sociedade Yamina-
tempo, mas precisamente aqueles contrastes que wa, mas no interior de um campo étnico no qual
em épocas anteriores permitiam imaginar a exis- o termo Yaminawa ganha sentido. A rigor, dizem-
tência de povos sem história.2 nos muito mais da história de um nome do que
Os Yaminawa foram o tema da minha tese da história de qualquer povo ligado a ele.
de doutorado (Calavia Sáez 1995), que tentou se Sobretudo, falta o tipo de documentação
aventurar pelas três vertentes da historiografia in- densa que podem produzir etnógrafos, missioná-
rios ou agentes indigenistas. Essa falta – que per-
dígena antes citadas – o resgate da documenta-
siste até os dias de hoje – pode significar ainda as-
ção, a definição de uma outra historicidade e a
sim alguma coisa, já que missionários, etnólogos
articulação de descrições estruturais e históricas.
ou indigenistas têm produzido uma literatura con-
Em geral, os Yaminawa são um excelente ponto
siderável sobre quase todos os povos que encon-
de partida para um balanço. De um lado, estão
tramos em volta dos Yaminawa. É o caso dos Shi-
muito longe de representar aquele modelo crista-
pibo-Conibo, dos Piro, dos Kaxinawá. Que tipo
lino dos povos “sem história”, congelados ou se-
de acaso poderia determinar que os Yaminawa
guros na reprodução de suas estruturas. À pri-
não tenham sido objeto dessa atenção? De fato,
meira vista são evidentes sua instabilidade social,
sabemos – embora os Yaminawa não lembrem –
a alteração constante de seus assentamentos e que há missionários católicos que os visitaram
dos seus arranjos parentais e a sua mestiçagem. com alguma freqüência na década de 1950. Mais
À primeira vista, também, é fácil se decantar por próximos, e lembrados por eles, os missionários
uma avaliação pessimista das suas relações com da missão Novas Tribos do Brasil – MNTB se es-
o mundo em volta. Ao mesmo tempo, esses ín- tabeleceram cerca de vinte anos depois na AI Ma-
dios desesperadamente históricos parecem enca- moadate; ocuparam-se muito pouco dos Yamina-
rar a história com alguma frialdade: fraco record wa, preferindo concentrar seus esforços nos
genealógico, escassos vestígios – nomes próprios Manchineri. A Funai, que só em 1975 se instalou
de personagens ou lugares do passado, marcos no Acre, com meios humanos em geral escassos,
temporais – para servir de arcabouço a uma me- constituiu um posto na aldeia Mamoadate, mas
mória coletiva; pouco empenho na transmissão nunca o fez na terra indígena das Cabeceiras do
dos saberes. Nas páginas a seguir, pretendo deta- Rio Acre, onde desenvolvi minha pesquisa. A do-
lhar essas características e traçar um balanço da cumentação sobre o grupo, mesmo nos últimos
minha experiência de escrita da história Yamina- vinte anos, é escassa. Esse desinteresse persisten-
wa, que pode se estender em alguma medida a te, provavelmente decorrente da constatação de
outros povos das terras baixas. que os Yaminawa são um grupo “difícil”, indica
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que missões religiosas ou leigas, produtoras por O sujeito histórico


excelência da documentação etnológica não pro-
fissional mas de qualidade, fazem consciente ou Essa questão vincula-se diretamente a uma
inconscientemente uma seleção dos objetos de outra, aparentemente distante, que diz respeito à
sua descrição. A vasta e longa documentação so- especificidade da percepção Yaminawa da histó-
bre os grupos Pano ribeirinhos elaborada pelos ria. Qual seria o sujeito dessa história? O “nós” Ya-
missionários franciscanos ou seus visitantes (natu- minawa – yura, yurawo, isto é, o “corpo”, o gru-
ralistas, militares, geógrafos, aventureiros, artistas) po de parentes/co-residentes que troca alimentos
trata, evidentemente, dos grupos que se instala- e substâncias corporais – é um sujeito sociológi-
ram nas missões, e só de um modo muito indire- co, mas não um sujeito histórico. Não poderia sê-
to daqueles que as evitavam permanente ou pe- lo, porque uma sociedade cognática como a Ya-
riodicamente, e essa desatenção é a contrapartida minawa necessariamente vê esse Yura se cindir
do trabalho etnogenético que se dedica entretan- ou pelo menos se diluir geração após geração ca-
to aos seus vizinhos. As missões, em sentido am- minho ao passado; segmentos inteiros de uma so-
plo, têm um papel importante na formação de ciedade “misturada”, que são partes constitutivas
etnias, e a fortiori da memória histórica dessas et-
do seu aqui e agora, formam o exterior no passa-
nias. Isso é importante especialmente para os po-
do recente.
vos Pano ribeirinhos que, parafraseando livre-
A rigor, nada há nisso de especificamente Ya-
mente a sugestão de Frank (1991), podem ser
minawa, ou ameríndio. Qualquer história conscien-
muito bem entendidos como híbridos de uma so-
te do caráter construído das identidades enfrenta
ciedade local e uma elite exótica. O mesmo pode-
esse mesmo problema, trate-se de Yaminawa, da
se dizer também, em um registro mais discreto,
França, dos judeus ou dos ciganos. Mas no caso
do papel que o Instituto Lingüístico de Verão –
esse contraste entre uma história escrita na primei-
ILV cumpre com respeito aos Kaxinawá.3 No mí-
ra ou na terceira pessoa do plural – essa tensão
nimo, cabe dizer que as etnias “selecionadas” pe-
entre o “nós” da atualidade e o “eles” de tempos
las missões têm, nesse diálogo com os seus diver-
outros – manifesta-se num limiar muito próximo à
sos apóstolos, uma boa oportunidade para
inventar a sua cultura, no sentido que Roy Wag- enunciação do relato. Para contar com esse sujei-
ner (1975) dá a essa noção, e que muito bem po- to histórico estável, os Yaminawa deveriam, por
deria se estender à invenção da história.4 No má- exemplo, adotar uma norma de unifiliação – e
ximo, pode-se supor que a acumulação de uma contar sua história em nome de uma linhagem –
tradição escrita externa consolida, ou eventual- ou se dar à empresa de criar uma identidade re-
mente cria, uma distinção entre povos “de refe- troativa. A segunda solução, padrão nas histórias
rência” – que atendem aos requisitos mínimos do nacionais, é a seguida por outros povos Pano
que se considera ser uma etnia e uma história – e como os Shipibo-Conibo e os Kaxinawá, ora se
povos marginais a esse centro. O contraste entre identificando com determinados padrões culturais
documentações ricas e pobres – sendo as ricas, (os da “civilização ucayalina”), ora definindo um
necessariamente, aquelas em que os membros de critério de identidade (os Huni Kuin, gente verda-
uma etnia jogam um papel ativo, formulando suas deira, tem sua origem narrada num mito, se reco-
memórias – não é um simples gradiente quantita- nhecem por determinada organização das suas al-
tivo, mas o resultado de um processo que intro- deias etc.). Os Yaminawa ignoraram ambas as
duz divergências qualitativas e distribui papéis di- possibilidades: reconhecem-se num etnônimo que
ferenciados no campo étnico. A produção, ou a lhes foi atribuído pelos primeiros agentes da Funai
co-produção de documentos é útil para elucidar que trataram com eles, mas acrescentam que no
a história, mas não sem antes ser útil para fazê-la, passado eram Xixinawa e Yawanawa, ou antes
muitas vezes, paradoxalmente, gerando esse tipo Mastanawa e Marinawa, ou Déianawa etc. etc.,
de modelos cristalinos do passado que costuma- sendo que todos esses nomes designam povos
mos entender como a antítese da história. “outros”, diferentes entre si, distantes do narrador.
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Como historiador, minha tarefa foi rastrear em comunicação universal e um tempo exclusivamen-
conjunto essas referências e as notícias esparsas te humano. Cronologicamente os shedipawó são
em variadas fontes documentais, fazendo o relato planos: a única distinção entre o antes e o depois
não tanto de um “povo”, mas de uma determina- faz parte de um reduzido grupo de mitos “de ori-
da posição dentro do campo étnico. gem”. Antes do episódio narrado, os homens fa-
Além dessa história construída por mim, os ziam o amor na dobra do joelho, as mulheres não
Yaminawa possuem uma outra (trata-se de um sabiam parir, as sementes eram monopolizadas por
outro tipo de história) que me limitei a recolher e um personagem sovina etc. Porém, esses mitos de
comentar: as histórias dos antigos, chamadas she- origem, capazes de traçar uma linha divisória en-
dipawó. Os Yaminawa, que não se autodenomi- tre o pretérito e a condição atual, não servem para
nam – são os outros que os nomeiam –, também fazer dessa linha um marco temporal de validade
não contam sua história senão a de outros, – os geral; o antes e o depois se esgotam dentro de
antigos. Não obstante o termo shedipawó sugerir cada narração. Não há um retrato diferenciado do
um elo de parentesco, podendo ser glosado como que seria uma humanidade primeva em contraste
“os grandes avôs”, deve-se sublinhar que esse pa- com a atual. Em particular, embora os mitos des-
rentesco não implica uma identificação. Os yura crevam o início de algumas capacidades importan-
compartilham netos (um único termo de paren- tes, eles em lugar nenhum descrevem o fim desse
tesco engloba todos os indivíduos dessa geração), regime de transformações e de comunicação entre
mas não necessariamente “avós”: os antigos não as espécies que serve de eixo ao conjunto das nar-
são imaginados como um bloco solidário de an- rações. Em outras palavras, o fim dos tempos mí-
cestrais, mas como uma diversidade incontrolável ticos não faz parte desses relatos. Isso é com-
de eventuais inimigos. O melhor exemplo são os preensível na medida em que os fatos
Rwandawa que, se atendermos às interpretações extraordinários narrados, e que os Yaminawa sa-
de um dos meus melhores informantes, perfazem bem muito distantes da experiência cotidiana, se
uma das “metades” do atual povo Yaminawa, e identificam mais com uma distância sincrônica do
que nos mitos aparecem constantemente no pa- que diacrônica; o tempo em que os animais falam
pel de inimigos semi-monstruosos. De resto, os é um outro tempo atual, o do xamanismo.
“grandes avós” não são uma manifestação de for- Se essa fraqueza de conjunto dos mitos de ori-
ça, sabedoria ou moral prístinas, mas protagonis- gem neutraliza a dimensão cronológica dos shedi-
tas de um modo de vida insano, inviável; são ig- pawó, ela reforça também uma característica que
norantes, pobres, violentos (como são também, convencionalmente marca os relatos históricos por
aliás, alguns contemporâneos. Antes que “ances- contraste com os míticos. Em poucas palavras, os
trais” são “marginais”. Essa falta de sujeito históri- shedipawó não são senão residualmente relatos pa-
co transcendental, ou, mais explicitamente, de um radigmáticos. São apresentados como episódios in-
sujeito que seja a um só tempo narrador e agen- dividuais, que alguma vez aconteceram com um
te da história, seria talvez uma característica dis- protagonista individual e concreto: os títulos ou os
tintiva de uma história “fria”, mas que convive resumos dos shedipawó falam sempre, por exem-
sem problemas com uma consciência de mudan- plo, do homem que se transformou em queixada,
ça.5 Examinemo-los mais de perto. ou do grupo que se transformou em queixada, não
Os shedipawó diferem consideravelmente de da origem das queixadas ou da sua caça. Há uma
um padrão muito comum na história oral, que or- redução daqueles personagens que em outras mito-
ganiza um continuum de proximidade/distância logias mostram um valor exemplar. Em numerosas
temporal. Atendendo à habitual taxonomia das ocasiões, por exemplo, os mitos são protagoniza-
narrações, todos eles são inequivocamente “mi- dos por dois irmãos com características mais ou
tos”, ou, para usar a econômica definição levi- menos gemelares, mas não por isso existe um ciclo
straussiana, histórias do tempo em que os animais de narrações dos gêmeos, nem estes assumem o
falavam. Não há separação entre esse tempo de papel de demiurgos pelo qual se destacam em ou-
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tras mitologias ameríndias. Os shedipawó apresen- flexões sobre a história indígena, isto é, aquele que
tam-se como fatos que aconteceram uma vez – não diz respeito ao homem branco. Durante a minha
como fatos que aconteceram, por assim dizer, de pesquisa, de fato, o encontro com o homem bran-
uma vez e para sempre. A considerável liberdade co me foi narrado com freqüência. Sempre me pa-
com que são expostos – sem requisitos ou restri- receu claro, porém, que não se tratava de um rela-
ções quanto aos narradores, à audiência, às circuns- to shedipawó. Na ausência de uma diferenciação
tâncias da narração etc. – combina bem com o es- de gêneros narrativos – para a qual os Yaminawa
casso rendimento social que deles se obtém. Não não ofereciam nem muitos subsídios nem muito in-
há esforços para fazer deles histórias exemplares, teresse7 –, esse relato parece constituir um gênero
para consagrar por meio deles hábitos ou normas. em si. Trata-se, na verdade, de um único relato
Embora o acervo dos shedipawó seja uma fonte que, com variações mínimas de detalhe, é repetido
inesgotável de referências para os cantos xamâni- por todos os narradores: no início, os Yaminawa
cos ou amorosos, ou para comentários humorísti- não tinham sal, açúcar, machado de ferro; anda-
cos sobre a personalidade de um vizinho (tão esfo- vam nus, dispersos na floresta, sempre em movi-
meado como Yurapibe, que devorou duas esposas, mento. Os brancos chegaram e os Yaminawa sen-
por exemplo), não existe uma atividade de exege- tiram medo daqueles seres perigosos e talvez
se socialmente demarcada que os eleve à categoria canibais; os índios matavam brancos, os brancos
de história sagrada.6 Na sua textura mais existencial matavam índios; depois mudou (na versão mais
que essencial, os shedipawó aproximam-se parado- detalhada, trata-se de um menino Yaminawa rapta-
xalmente de um dos principais atributos com que a do pelos brancos que, conhecendo as línguas de
filosofia do ocidente identifica o histórico. uns e outros, estabeleceu uma mediação) e desde
A mitificação dos fatos históricos representa, então não há mais medo, os Yaminawa vão agora
suponho, o caso que melhor alimenta a avidez dos à cidade, seus jovens vão estudar com os brancos;
defensores da história oral. Depurar o mito de agora há sal, açúcar e ferro, há roupas.
suas fantasias, localizar nele referências que o Na sua aparente simplicidade, e na monoto-
atrelem a uma narração fiel aos fatos, em suma ex- nia com que essa sóbria narração se repete de
trair história do entulho mítico seria uma das tare- um enunciador a outro, podem passar desperce-
fas principais do etnohistoriador, e uma das mais bidos inúmeros vínculos com aspectos estratégi-
produtivas. O caso Yaminawa mostra, no entanto, cos para se entender a diversidade cultural Yami-
que essa tarefa pode estar viciada por um pressu- nawa, como, por exemplo, o açúcar, o canibalismo
posto ingênuo: o de que essa racionalização teria e o machado de ferro. Além disso, o relato traz su-
ficado à espera de um estudo formal, o de que ge- bentendido um paradoxo. Afinal, esse relato, que
rações e gerações de nativos têm se limitado a de certa forma oferece ao ouvinte estrangeiro uma
uma honesta acumulação de entulho mítico. Nada narrativa histórica plausível dada sua absoluta ve-
impede que a mitificação da história e a historiza- rossimilhança, apresenta, em contrapartida, um ca-
ção do mito tenham se sucedido regularmente ao ráter definitivamente paradigmático (e por isso,
longo dos séculos, e é muito provável que, do em certo sentido, ahistórico), já que, repetido sem
mesmo modo em que se diz que a história é cons- variação apreciável de um narrador a outro, seja
tantemente inventada, possa se dizer que ela é qual for a origem deste, descreve não um encon-
constantemente trazida à terra pela transformação tro com os brancos, mas O Encontro, em sentido
de relatos paradigmáticos em relatos eventuais. genérico. Nada que individualize a “descoberta”
dos Yaminawa entre centenas de episódios seme-
lhantes, protagonizados por grupos indígenas de
O homem branco qualquer língua ou localização, por seringueiros,
missionários ou agentes indigenistas. Poder-se-ia,
Mas estamos nos desviando justamente do talvez, alegar que de fato todos os encontros acon-
tipo de relato que de praxe tem provocado as re- teceram segundo esse mesmo roteiro: a narração
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monótona de uma história monótona. Mas não se- Yaminawa, ou seus ancestrais imediatos, inserem-
ria essa uma das razões que levaram Euclides da se desse modo na história do ouvinte branco. Mas
Cunha a rotular a Amazônia como terra “à margem com o segundo segmento, o relato de Clementino
da história”? A reiteração dos mesmos episódios, insere também, metaforicamente, o branco dentro
das mesmas estratégias, das mesmas oposições sé- da tradição Yaminawa de fundar o mais íntimo
culo após século, não seria justamente o índice da de sua vida na absorção de saberes e técnicas es-
falta de história nas regiões afastadas dos grandes tranhos. A descoberta do sexo reprodutivo, quem
centros de poder do mundo – os palcos da histó- duvidaria, não cede em radicalidade a todas as mu-
ria propriamente dita? danças que o homem branco introduziu. A vida
Talvez a historicidade desse relato ganhe ou- dos Yaminawa experimentou muitas novidades nos
tro relevo se considerarmos que ele não só é, com últimos trinta anos; apenas a novidade em si é que
efeito, uma narração sobre os brancos, mas sobre- não era nova em absoluto para eles.
tudo para os brancos.8 O relato do contato, centrado na aquisição
A primeira vez que o “relato do contato” me de saberes estranhos, poderia ser mais bem en-
tendido em conjunto com uma outra narrativa, di-
foi apresentado – por Clementino, consensual-
rigida essencialmente ao interlocutor branco, e
mente considerado o melhor conhecedor do acer-
que poderíamos chamar de “relato do fim”. De-
vo de shedipawó –, fiquei perplexo. A história da
pois de falar eventualmente da perseguição, do
guerra e da paz com os brancos, da inicial carên-
cativeiro e do esbulho dos Yaminawa pelos bran-
cia e posterior fartura de mercadorias, figurava
cos, e sobretudo da “entrega” desses índios aos
como a segunda parte de um relato que descrevia
invasores, tal narrativa centra-se no abandono de
a aquisição da sexualidade reprodutora: os ho-
sua cultura tradicional e em suas conseqüências
mens, que até então só tinham acesso à dobra previsíveis. Declarações sobre a decadência cultu-
posterior do joelho de suas companheiras, apren- ral dos Yaminawa acompanharam minha pesqui-
deram do macaco prego a utilidade da vagina; sa desde o início, complementadas com previsões
desde então, os Yaminawa se multiplicaram. bastante pessimistas acerca do futuro do grupo,
Com esse relato híbrido, Clementino prova- que podem ser simbolizadas na seguinte frase:
velmente buscava definir, de um lado, a relação “daqui a trinta anos não haverá mais Yaminawa”.
entre os “relatos do contato” e o mundo dos she- Como no “relato do contato”, é fácil reconhecer
dipawó; de outro, o lugar do branco na cosmolo- nesse tipo de declaração uma avaliação plausível,
gia Yaminawa. Salta à vista o arranjo em paralelo neste caso sobre o futuro do grupo; novamente,
de duas narrações que, em conjunto, dariam con- essa plausibilidade depende do uso de conceitos
ta da situação atual dos Yaminawa. Em lugar de e diagnósticos bem conhecidos pelo ouvinte – um
introduzir o “branco” como personagem em outras outro ouvinte, desta vez, não mais o agente do in-
narrativas – isso nunca acontece –, em lugar de digenismo oficial ou o patrão ou o seringueiro
criar histórias manifestamente híbridas que pudes- branco, mas o militante de uma ONG ou o antro-
sem ser lidas como mitificação da história ou his- pólogo simpático às tradições alheias. Mais uma
torificação do mito, e em lugar de dedicar um re- vez, o relato abre um nicho para os Yaminawa na
lato a explicar a origem dos brancos, a solução história do interlocutor, garante um diálogo e uma
adotada foi propor um paralelo entre dois episó- eventual colaboração. Entretanto, seu conteúdo
dios que descrevem a aquisição de saberes bási- factual merece algumas ponderações em virtude
cos dos animais e desse outro importante persona- da indefinição dessa “tradição” abandonada, assim
gem. A maneira pela qual Clementino apresentou como das condutas mais deletérias para o bom go-
seu relato cumpriria assim uma dupla função: verno do grupo (brigas internas, constante deslo-
como todos os outros relatos sobre o contato joga camento, cisões) que, relatadas em outros mo-
com o reconhecimento do passado Yaminawa por mentos como características dos “antigos”,
parte dos brancos, com sua codificação das rela- parecem mostrar de modo mais evidente a conti-
ções em termos de diferencial de mercadorias, os nuidade essencial dessa tradição “perdida”.
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Em suma, podemos dizer que o papel do Inventar a história


branco nos relatos shedipawó evoca em certo sen-
tido o jogo que alhures as artes gráficas Pano es- Devo reconhecer que a historificação dos re-
tabelecem entre fundo e forma, o que permite a latos shedipawó pode ser resultado do contexto
leitura de uma e outra trama no primeiro plano. À narrativo, isto é, da pergunta acerca do passado
primeira vista, essas narrativas não fazem alusão Yaminawa que o motivou. Foi perguntando por
alguma ao homem branco, ao contrário, descre- história – e não, por exemplo, pedindo exegeses
vem um mundo livre de suas mercadorias, de seus de tal ou qual prática – que obtive a coleção de
deuses. De outro lado, tratam dele constantemen- narrações.9 Em outras palavras, minha pesquisa
te, isto é, a todo momento aparecem os nawa, os ofereceu uma oportunidade – pela primeira vez
inimigos, ora semelhantes ora monstruosos – por escrito – para a invenção da história Yamina-
“nawa” é o termo que designa os homens brancos wa. Já aludi às suas duas principais versões – a dos
e que atualmente denomina os outros por exce- shedipawó e a do relato do contato. Mas houve
lência. À primeira vista, não mais que uma homo- mais uma versão de características muito diferen-
nímia, embora tenazmente mantida: ao reproduzir tes, formulada por quem dispunha de maior fluên-
os relatos shedipawó ao idioma português, os Ya-
cia na língua e nos modos discursivos do branco.
minawa costumam traduzir “nawa” por “branco”,
O relato do chefe Correia, líder do grupo na oca-
mesmo que isso tenha como resultado a aparição
sião, foi essencialmente uma lista de lugares e vizi-
de “brancos” atirando flechas ou compartilhando a
nhos: em tal lugar, os Yaminawa convivem com
língua, os costumes ou os cordões penianos dos
Shipibo, Piro e Catiana, em outro, com Sharanawa,
antigos. Mas será plausível supor uma simples ho-
Mastanawa e Marinawa; aqui, eles conhecem os
monímia quando se trata de um aspecto tão estra-
peruanos, lá, ficam sabendo de índios selvagens
tégico? Como já analisei em outro estudo (Calavia
que vivem escondidos na floresta. Entre uma e ou-
Sáez, 2002), o conjunto dos usos do termo “nawa”
tra localização, como motor contínuo dessa histó-
nos leva a uma conclusão contraintuitiva. Obceca-
ria, surgiram conflitos que determinaram a saída
dos com a presença dos brancos, atraídos fatal-
dos ancestrais em direção a novos lares; em confli-
mente por suas cidades e suas mercadorias, os Ya-
minawa não se deram ao trabalho de criar uma to com outros índios, eles viram também se multi-
categoria nova para esse ser, mas optaram, antes, plicar as divisões internas – os Yaminawa não são
por lhe outorgar o usufruto de uma categoria cen- senão um conjunto de povos que só o homem
tral da sua cosmologia. Isso faz que o branco, de branco tem decidido resumir nesse nome.
um lado, atraia para si a visão dos Yaminawa – Pela ausência de elementos míticos e pela
como acontece em todas as avaliações que se es- relevância das informações e dos conceitos obti-
tendem sobre a deculturação do grupo – ou se tor- dos no diálogo com indigenistas ou antropólogos
ne invisível – como ocorre quando lemos o mun- (por exemplo, as noções sobre um tronco lingüís-
do Yaminawa através dos relatos shedipawó. Em tico Pano, ou os nomes dados aos antigos vizi-
qualquer caso, não há um marco que permita fa- nhos peruanos), trata-se, sem dúvida, de um rela-
lar em antes e depois do branco; o nawa já exis- to híbrido. Seria por isso um relato espúrio? O
tia antes da chegado do homem branco. É eviden- próprio enunciador é, biográfica e funcionalmen-
te que isso não faz do universo Yaminawa uma te, um mestiço que durante muito tempo transitou
mónada surpreendentemente cega à ubiqüidade entre a aldeia, a cidade e os seringais e que tanto
dos brancos – não haveria nenhum interesse em assumiu o papel de chefe indígena como de che-
afirmar essa enormidade contra todo o senso co- fe de posto. Mas deveríamos trazer para a histo-
mum. Trata-se, pelo contrário, de notar que o con- riografia indígena uma adaptação torpe da pureza
junto das categorias usadas para descrever as rela- étnica já descartada em outros âmbitos? Deveria a
ções possíveis no cosmos – que contava com a história indígena se limitar aos recursos da memó-
alteridade já em seu âmago – fica perfeitamente ria, descartando o uso de informações obtidas di-
frio ante essa presença. reta ou indiretamente de uma tradição escrita? O
A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA 47

problema aqui não é se esse relato pode ou não entre o capitão Cook e o deus Lono. À parte de um
ser considerado a legítima história yaminawa. Isso argumento geral sobre a necessária articulação en-
foi ao menos garantido na medida e no tempo em tre estrutura e história, Sahlins sublinha de modo
que o chefe-historiador o socializou entre seus se- provocativo a capacidade de reis e batalhas (mar-
guidores. Mas ele é suficientemente “outro” para cos da depreciada histoire évenementielle) de en-
oferecer uma contribuição original, ou não passa carnar e modificar estruturas duráveis. Também
de um reflexo, de uma reelaboração do escrito por nessa rubrica a memória dos Yaminawa – à dife-
outros, do saber depositado nas bibliotecas? Como rença da memória de muitos outros grupos indíge-
em tantas outras ocasiões, a elucidação da história nas – recusa oferecer satisfações imediatas ao pes-
indígena recupera como problema um processo quisador. Nos relatos do passado não há nomes
raramente tematizado, mas habitual em qualquer próprios, não há personagens heróicos, não há
consciência histórica, a saber, a transformação em monumentos; em suma, não há pontos de acumu-
memória própria de informações obtidas de ou- lação de informação que precisem ser reduzidos à
trem.10 No caso indígena, a fronteira entre o pró- estrutura. Mas esse perfil discreto em nada modifi-
prio e o alheio, supostamente mais clara, sugere ca aquela articulação a que Sahlins se refere, pelo
o paradoxo comum da fixação do factual median- contrário, a leva a terrenos mais necessários.12
te uma memória fictícia. No caso dos Yaminawa pode-se rastrear em
Cabe no entanto dizer que no relato de Cor- pelo menos dois domínios clássicos do que cos-
reia há ingredientes valiosos dessa história “outra” tumamos considerar estruturas, a saber, a mitolo-
que cobiçamos para além de dados inéditos na bi- gia e o parentesco.
bliografia recopilados nas memórias dos seus se- Quanto ao parentesco, não há dificuldade
guidores – o chefe é não só um narrador, mas alguma em identificar a marca da história; mas
também um pesquisador. Refiro-me à ordenação sim, talvez, em reconhecer nela algum aspecto
desses dados, os quais não se pode dizer que de- construtivo. É fácil perceber a diversidade de cri-
vam muito a qualquer uma das grandes narrativas térios no momento de classificar parentes, atribuir
da nossa historiografia, e menos ainda das que os nomes, formular regras matrimoniais ou definir fi-
nossos mediadores põem à disposição do histo- liações ou agrupamentos. A precariedade dos da-
riador Yaminawa. Refiro-me em especial à defini- dos genealógicos impede hierarquizar esses crité-
ção do protagonista não a partir de uma origem, rios ou medir sua efetividade. O parentesco seria
mas em contraste com seus “outros”, que vão mu- assim – não faltam exegeses nesse sentido no seio
dando de capítulo em capítulo: Shipibo, Catiana, do próprio grupo – um argumento em apoio da
Mastanawa etc. A narração do chefe Yaminawa desorganização cultural e étnica dos Yaminawa,
apresenta um alto grau de sistematização: a histó- uma estrutura não articulada na história, mas de-
ria não é uma ilação de eventos, mas uma suces- sagregada por ela. Entretanto, será que o modo
são de estruturas – de relação interétnica – uni- de articulação histórica das estruturas não está
das, ou mais precisamente separadas, por eventos precisamente nesse contraste entre a ordem sem-
pontuais. Uma história em última análise conside- pre discreta do passado (ou de um futuro postu-
ravelmente fria, que leva as estruturas a gerar no- lado) e a pluralidade desordenada do presente?
vas variantes de si mesma.11 Quando se enuncia uma ordem autêntica, a auto-
ridade moral do grupo – seja do chefe, seja dos
velhos, seja ainda “daqueles que sabem” – lança
Nem reis nem batalhas mão em primeiro lugar desse contraste entre tem-
poralidades, baseando o discurso sociológico no
Nenhum texto foi tão citado na bibliografia discurso histórico. A suposta “imobilidade” das
sobre história indígena dos anos de 1980 quanto os estruturas advém de se identificar como “estrutu-
artigos de Marshall Sahlins sobre a história havaia- ra” esse modelo legitimado (isto é, “tradicional”),
na, especialmente sobre a dramática identificação e não o conjunto de variantes em que ele ganha
48 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

sentido. O sistema de parentesco Yaminawa, que em contraste com as narrativas de povos muito
oscila entre modelos dravidianos, australianos ou próximos. Essa divergência ordenada em relação
dakotas, não ilustra pois uma confusão entre or- a outras mitologias vizinhas sugere que os mitos
dens, senão o aspecto de conjunto de uma estru- Yaminawa estão longe de representar um material
tura13 na ausência de uma autoridade capaz de ma- conservador. Muito pelo contrário, são especial-
ximizar um desses aspectos sobre os outros, o que, mente sensíveis ao curso da história e permitem
em si, faz dos Yaminawa uma variante peculiar ao pesquisador detectar tendências pouco reco-
dentro do conjunto Pano, dotado de exemplos nhecíveis em outros campos da vida social yami-
cristalinos de ordens “tradicionais”.14 As possibili- nawa. Maleáveis para o narrador, mas submetidos
dades históricas da estrutura não residiriam na sua a um processo de comunicação que descarta ou
capacidade de responder a acontecimentos exter- normaliza as novidades, isto é, que as estrutura.
nos, ou de se desdobrar neles, mas justamente na Não é surpreendente que, a partir de Lévi-Strauss,
sua variabilidade interna, que permite, ou obriga, uma versão móbil da noção de estrutura que não
diversas leituras consecutivas. Os acontecimentos se opõe à mudança, mas que a exige como con-
históricos – os reis e as batalhas de Sahlins – se- dição permanente, tenha se baseado precisamen-
riam, assim, fundamentalmente pontos discretos te nos mitos. Em última análise, que melhor lugar
de releitura de uma estrutura suscetível de mui- para esse curso da história senão um modo cam-
tas versões. biante de contá-la? Os mitos Yaminawa são histó-
Quanto à mitologia, é evidente o seu caráter ria não porque abarquem informações inéditas e
de obra aberta. Parece claro que determinadas irredutíveis sobre o passado, mas porque o refor-
narrativas foram improvisadas para o pesquisador, mulam constantemente. Fazem-no agora e nada
com base em algumas fórmulas conhecidas que indica que não o tenham feito anteriormente.
permitiam faze-lo sem muito esforço. A compara-
ção dos mitos Yaminawa com seus correlatos de
grupos Pano muito próximos mostra, para além A terceira margem
de uma surpreendente continuidade de temas e
argumentos, a facilidade com que esses mitos A história, submetida às condições do caso
vêm se transformando, acompanhando alterações Yaminawa, tem a possibilidade de recuperar algu-
em outros âmbitos, como o do parentesco e o da mas feições originais. E não porque permite gran-
autoridade política. Em diversos artigos (Calavia des aproximações entre nosso relato histórico e
Sáez, 2000, 2001, 2002, 2003) tenho tentado mos- um relato histórico de outro tipo; antes, nos de-
trar como os mitos Yaminawa são capazes de sin- volve, reformulada, a distância estabelecida entre
tetizar os contrastes que opõem esse grupo a ou- os povos com ou sem história. O que os Yamina-
tros com os quais compartilha um mesmo acervo wa nos narram carece desses marcos que habi-
narrativo, tanto na montagem de episódios e na tualmente têm servido como pedras de Rosetta na
caracterização de personagens, como no estilo e interpretação das memórias indígenas como histó-
no contexto de enunciação. Em outras palavras, ria: grandes acontecimentos, divisão em grandes
trata-se de uma mitologia inequivocamente yami- períodos. Além disso, a própria precariedade dos
nawa, cuja coerência surpreende: coligidos de um documentos referidos aos Yaminawa e a indeter-
número elevado de informantes, procedentes de minação de uma identidade transtemporal impe-
grupos diferentes e que poderiam fazer da orali- dem que pensemos o discurso Yaminawa sobre o
dade Yaminawa uma federação de tradições par- passado como uma “tomada de consciência” de
ticulares, esses mitos formam, pelo contrário, um uma história já existente. Dirigidos ao homem
acervo bastante consolidado. As variações que branco, e elaboradas com um uso generoso de seus
podemos perceber entre as diversas versões, ape- termos, as narrativas Yaminawa mostram freqüen-
sar da diferença de estilos entre os narradores, temente a história como invenção. Essa ausência
são mínimas, o que garante relatos homogêneos de uma historia “dada” – da qual o discurso his-
A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA 49

tórico construído seria um reflexo mais ou menos portanto, de uma consciência histórica peculiar.
fiel – sublinha em contrapartida dois aspectos im- Parece claro que essas dimensões devem estar ar-
portantes que costumam não aparecer na historio- ticuladas, isto é, a constatação de que a maneira
grafia dos povos “com história”. O primeiro diz pela qual os povos percebem e narram sua histó-
respeito ao papel relevante que saberes outros ria é parte essencial dessa história. É nesse ponto
adquirem nesses relatos, ou seja, a história enten- que podemos perceber quão errada foi a leitura
dida como narração de outros ou sobre outros. O do binômio sociedades frias/sociedades quentes
segundo concerne ao papel essencial que o dis- como uma negação da história, quando deveria
curso histórico assume na história em si: não ter sido considerado justamente a chave para a
como reflexo dela, mas como fator de primeira li- elucidação do contraste entre historicidades diver-
nha na sua prática. A formulação da história dis- sas. Apenas os relatos propagandísticos do Pro-
simula sua eficiência quando encomendada a um gresso, das Luzes ou da Revolução – cuja impor-
corpo de especialistas distantes do palco político, tância não deve ser desdenhada, pois cumprem
e assim, paradoxalmente, à margem da história, um papel muito importante no percurso dos po-
mas se mostra a plena luz quando, em função de vos “com história” – fazem da distinção entre
uma liderança política, passa a ser entendida como quente e frio uma questão de dados. Na prática,
um acontecimento central.15 Nesse ponto estraté- os dados só aparecem ordenados em relatos, que
gico, o discurso histórico ocupa, para os povos são os que definem o seu valor. É assim que re-
indígenas, o mesmo lugar em que se encontra a voluções se travestem de restaurações, e restaura-
absorção de alteridade via a aliança matrimonial e ções de revoluções; é assim que tudo muda para
o ingresso de mercadorias ou doutrinas, além de que tudo permaneça igual, e que as grandes mu-
estar provavelmente sujeito aos mesmos filtros danças atuam como velhas toupeiras socavando
cosmológicos que regulam essas outras incorpo- um solo aparentemente imutável. Entretanto, so-
rações. Os povos indígenas absorvem a história mente a concepção de Lévi-Strauss16 tendia a fa-
alheia não porque careçam dela, mas porque a zer desse jogo não uma astúcia da história, mas
submetem ao mesmo regime de subjetivação uma ação humana suscetível de versões alternati-
que é aplicado ao material sociológico, ideológi- vas. Para entender as manipulações da tempera-
co ou técnico. tura histórica é preciso perceber que, na versão
Mas a ausência na história Yaminawa de lévi-straussiana, as estruturas são incapazes de dar
grandes acontecimentos, de reis, batalhas e se- conta de ambos os feitos que se lhes atribui: o de
qüências temporais – em suma de motivos narrati- permanecer incólumes (constituídas de contradi-
vos – serve para que a história se localize onde ela ções entre os termos – sua estabilidade seria uma
está dada, antes da sua elaboração narrativa, isto contradição nos termos) e o de abolir-se para dar
é, na variabilidade mandatória das estruturas, que lugar a estruturas absolutamente novas (seus ter-
só podem ser percebidas em seu contraste e em mos são demasiado básicos para que se possa ima-
sua alteração. A alteração é, pois, o estado normal; ginar uma nova configuração que prescinda de-
ao contrário da estabilidade primitiva (entre os Ya- les). A comparação dos contrastes existentes no
minawa sempre se espera que a autoridade de um relato histórico é que torna possível perceber que
chefe seja capaz de implementar na realidade ou a história, quer se trate de revoluções, quer se tra-
na memória tal estabilidade), ela é um fruto sele- te de permanências, é sobretudo um efeito de sen-
cionado da história que nem sempre amadurece. tido, amplamente eficaz sobre a realidade.
Retomando o início deste artigo, lembremos A terceira margem da história é habitada por
que a reivindicação da história indígena se deu esse historiador orgânico que seleciona dados, rit-
em duas frentes: a da historicidade objetiva dos mos e direções, que determina o frio ou o calor
povos indígenas (que não são imagens congela- do relato. Talvez, mais do que encontrar história
das de um estado primitivo) e a da sua subjetiva- lá onde alguém supôs que ela não existisse, no
ção, isto é, a presença de um saber histórico e, estudo da história indígena é importante reencon-
50 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

trar, na invenção do sujeito, na variação mítica, na 7 Algo parecido acontecia com os relatos protagoni-
mimese de outros relatos, os traços vivos originais zados exclusivamente por animais, que de um lado
da prática da história, tantas vezes apagados pela pareciam ficar fora do campo dos shedipawó stric-
rotina da historiografia. to sensu, mas que ao mesmo tempo acabavam se
alinhando a eles, na falta de uma categoria especí-
fica na qual se pudesse inseri-los.
NOTAS 8 O destinatário, e o contexto que ele aporta, é raras
vezes levado em consideração ao se tratar de his-
1 Estou pensando sobretudo em atividades como os
tória indígena. O trabalho de Gow (2001) é uma
Grupos de Trabalho (GTs) sobre história indígena
exceção notável, útil também para apreciar a rele-
nas reuniões da ABA e da Anpocs, a elaboração do
vância do improviso nesse diálogo histórico.
Guia de Fontes sobre a História Indígena no Brasil,
e em grupos especializados como o Núcleo de His- 9 No entanto, é preciso dizer que, durante a pesqui-
tória Indígena e do Indigenismo, criado na USP por sa, foram oferecidas também oportunidades ao dis-
Manuela Carneiro da Cunha. Contudo, muitas ou- curso exegético, mas não se obteve resultados
tras iniciativas individuais ou coletivas trilharam apreciáveis. A historificação das narrativas não se
esse campo nesse período, embaladas por um in- deu às custas de um hábito exegético recalcado.
teresse geral em relação a temas como, por exem- Ademais, a exegese acontecia eventualmente por
plo, a memória e a história oral, considerando esta meio da historificação – uma restrição alimentícia,
um método e um movimento político-cultural. por exemplo, deveria ser um costume dos antigos,
2 Não cabe no espaço restrito deste artigo uma ava- porque havia um relato que fazia tal referência.
liação geral – de resto, muito necessária – da ex- 10 Em contrapartida, a oralidade eminente atribuída
tensa bibliografia sobre história indígena produzi- naturalmente à história indígena dissolve um outro
da nos últimos decênios. Ver mais detalhes da problema que na historiografia escrita se deixa cap-
revisão aqui esboçada em Viveiros de Castro et al., tar melhor, a saber, o do esquecimento. Saber quais
2003. dados foram apagados da memória pode ser tão re-
3 Somente depois de uma presença continuada de velador quanto a memória preservada em si. Essa
pregadores/pesquisadores do ILV que aflora com vertente da historiografia indígena continua inédita,
notável clareza um modelo Kaxinawá que não se embora não faltem dados para explorá-la.
reconhecia em documentos mais antigos. Ver Cala-
11 Vale dizer, porém, que no relato em pauta essas va-
via Sáez (2000, pp. 25-27).
riações tinham uma direção definida: a do progres-
4 Uma boa oportunidade não é necessariamente a sivo isolamento e desagregação dos Yaminawa.
única oportunidade. Qualquer reconstrução de
12 Segundo uma crítica recente de Peter Gow (2001, p.
longo prazo do passado Pano (ver Lathrap et al.,
18), as análises de Sahlins mostram mais a possibili-
1985) adverte a existência de contatos muito ante-
dade de dar valor antropológico a acontecimentos
riores ao dos brancos e, sem dúvida, não menos
históricos do que um modo de se fazer história a
dramáticos.
partir de estruturas.
5 Esse sujeito impossível da história Yaminawa acres-
13 Sobre a possibilidade, ou a necessidade, de convi-
centa uma nova dimensão às discussões sobre a
vência desses sistemas, cf. Viveiros de Castro, 1995.
possibilidade de uma história ou de uma agência
histórica “sem sujeito” (cf. Palti, 2004); a alternati- 14 O que equivale a sugerir (seguindo a referência clás-
va sujeito/não sujeito estaria “na história” e não so- sica de Leach sobre a Alta Birmânia) que esse con-
mente na teoria da história. junto deve ser lido como um sistema de situações
políticas, e não só como um agregado de etnias.
6 De maneira significativa, o xamanismo, tão intima-
mente ligado a esses relatos, é uma atividade afas- 15 Essa situação se equivalente, no nosso caso, se a
tada da esfera pública. presidentes e reis correspondesse constitucional-
A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA 51

mente a enunciação da história oficial. Algo, afinal, FRANK, Erwin. (1991), “Etnicidad: contribuciones
não tão longe assim da nossa experiência: basta etnohistóricas a un concepto difícil”, in
lembrar que a primeira História General da Espa- Jorna, Malaver e Oostra, Etnohistoria
nha leva a assinatura do rei Alfonso X, que Thiers del Amazonas, Quito, Abya-Yala.
foi um historiador importante e que o imperador
GOW, P. (2001), An Amazonian myth ad its his-
Pedro II teve um papel relevante na formulação de
tory. Oxford, Oxford University Press.
uma história do Brasil. A desatenção para os elos
entre acontecimento e estrutura, porém, podem le- LATHRAP, D.; GEBHART-SAYER, A. & MESTER, A.
var o estudioso a imaginar tais empresas como uma (1985), “The roots of the Shipibo art
espécie de atividade de lazer. style: three waves on Imiriacocha or
there were Incas before the Incas”.
16 O binômio de Lévi-Strauss parte da textura socio- Journal of Latin American Lore, XI: 31-
lógica das sociedades, e não da percepção e do 120.
relato da história. Estes últimos são abordados
principalmente na sua polêmica com Sartre (Lévi- LÉVI-STRAUSS, C. (1962), “Histoire et dialecti-
Strauss, 1962). que”, in _________, La pensée sauvage,
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 203

A TERCEIRA MARGEM DA THE THIRD SHORE OF HIS- LA TROISIÈME RIVE DE L’HIS-


HISTÓRIA: ESTRUTURA E RE- TORY: STRUCTURE AND NAR- TOIRE: STRUCTURE ET RÉCIT
LATO DAS SOCIEDADES INDÍ- RATIVE OF THE INDIGENOUS DES SOCIÉTÉS INDIGÈNES
GENAS SOCIETIES

Oscar Calávia Sáez Oscar Calávia Sáez Oscar Calávia Sáez

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Teoria antropológica; História; Anthropological theory; History; Théorie anthropologique;
Etnohistória; Sociedades frias; Ethnohistory, Cold societies; Histoire; Ethnohistoire; Sociétés
Yaminawa. Yaminawa. froides; Yaminawa.

A partir dos resultados da pesquisa From the point of view of my own À partir des résultats des recherches
realizada pelo autor entre os Yami- research among the Yaminawa of développées parmi les indiens Ya-
nawa do Acre, este artigo faz uma the Acre River, this paper examines minawa, de l’État brésilien de l’Acre,
investigação histórica a respeito dos the latest historiography on the indi- l’auteur propose une investigation
povos indígenas no Brasil. É possível genous peoples in Brazil – a rather historique des peuples indigènes au
formular algumas questões sobre o new discipline, since these peoples Brésil. Quelques questions se po-
papel que cabe a essa historiografia were viewed as “out of history” not sent à propos du rôle de cette histo-
no quadro teórico geral da antropo- long ago. It brings some questions riographie dans le cadre théorique
logia. A história dos povos indígenas on the role that the historicity of in- de l’anthropologie: l’histoire des
veio nos dizer algo novo a respeito digenes plays in the broader theore- peuples indigènes nous enseigne
deles, ou veio, antes, afirmar algo tical frame of anthropology. Does it quelque chose de nouveau en ce
sobre uma antropologia que, duran- tell us anything new about “natives” qui les concerne ou, plutôt, sur une
te muito tempo, se apoiou, de modo or about this anthropology that has anthropologie qui, pendant long-
mais ou menos explícito, na distin- been leaned, more or less explicitly, temps, s’est fondée, de façon plus
ção entre uma humanidade “com” e in the distinction between humanity ou moins explicite, sur la distinction
outra “sem” história? Assistimos, sim- “with” and “without” history? Have entre une humanité “avec” et une
plesmente, à dissolução de mais we either faced the dissolution of autre “sans” histoire? Sommes-nous
uma falsa dicotomia, ou talvez essa another false dichotomy or perhaps tout simplement face à la dissolution
dicotomia era demasiado produtiva such dichotomy used to be too d’une autre fausse dichotomie, ou
para não desaparecer sem deixar much productive not to have disap- cette dichotomie était-elle trop pro-
atrás de si uma modificação profun- peared without leaving behind a ductive pour ne pas disparaître sans
da dos seus termos? profound modification of its terms? laisser derrière elle un changement
profond dans son contenu?

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