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DEZ CAMINHOS

PARA ABOLIR A INFLAÇÃO

(Como fazer Brasília dar certo)

Cacildo Marques

EDIÇÕES LÚMINE
© Copyright 1993 – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

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DEZ CAMINHOS PARA ABOLIR A INFLAÇÃO
(Como fazer Brasília dar certo)

Cacildo Marques

TEN WAYS TO ABOLISH THE INFLATION

ABSTRACT

This book presents ten ways which are able to overthrow the inflationary rate, although only three
among them may abolish definitively the inflationary pressure. The theory presented states that the
cause of the chronic inflation is the installation of the presidential residence into a city that hasn't - or
has lost - historical status as a capital. The problem isn't political. It's neither moral, nor economical,
but psycho-sociological. Thus, the indicated way to suppress the chronic inflation is to settle down the
presidential palace - the residence of the chief of State – in the historical capital, according to the
examples of Germany (1949-1990, president in Berlin), India (president in Deli, not New Deli) and
Australia (queen in London).

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DEZ CAMINHOS PARA ABOLIR A INFLAÇÃO
(Como fazer Brasília dar certo)

Apresentação

Sabe o leitor o que é fácil? Fácil é pensar o que todos já pensaram.


Sabe o leitor o que é difícil? Difícil, leitor, é não atropelar a verdade nascente.
O autor.

Edições Lúmine
Caixa Postal 61513-0
Cep 05424-970 São Paulo - SP
Brasil
Impresso no Brasil em setembro de 1993.

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Cap. 0 OS DEZ CAMINHOS

São muitas as fórmulas possíveis para se abolir a inflação, temporária ou definitivamente. Aqui são
comentadas dez dessas fórmulas, muitas já gastas, mas, de um modo ou de outro, todas com um
indiscutível grau de eficiência, qualidade de que vão carecer outros métodos igualmente sugeridos por
aí e igualmente testados.
É óbvio que o autor tem sua escala hierárquica para a aceitabilidade desses caminhos, e esta não
deverá estar de acordo com a visão de cada leitor, mas é esperado que a argumentação venha a
convencê-lo da validade do ponto essencial desse trabalho, motivo maior de sua confecção.
São estes os dez caminhos:

1) INDEXAR tudo a uma unidade fixa abstrata.


2) ACOPLAR tudo a uma moeda estrangeira.
3) PARAMETRIZAR a moeda pelo ouro ou outro metal nobre.
4) TROCAR a moeda por uma mercadoria, como cerveja ou arroz.
5) EXTINGUIR a moeda oficial e usar tíquetes do setor privado.
6) CONGELAR totalmente os preços, inclusive os aluguéis futuros.
7) ESTABELECER um regime autoritário.
8) DEVOLVER a capital.
9) MANTER a chefia do Estado nas mãos de um estrangeiro.
10) INSTALAR a residência presidencial na antiga capital.

Ao longo do livro cada um desses modelos será comentado, no intuito de mostrar por que é mais ou
é menos aceitável e por que é mais ou é menos inviável. A ordem estabelecida acima não é a da
preferência. Ela apenas obedece a uma estratégia de apresentação.
Note que não foram arroladas aí duas fórmulas muito recomendadas e até muito aplicadas: a recessão
e o corte de gastos. Ora, o corte de gastos, como combate ao desperdício, é obrigação do governo.
Não serve para eliminar inflação. Quanto à recessão, é pouco provável que exista quem ainda acredite
ser ela uma saída válida para combater a inflação numa federação. De qualquer modo, a paralisação da
atividade econômica tem um pequeno reflexo na aceleração inflacionária, o que dura apenas enquanto
a atividade produtiva não é retomada. É sacrifício demais para resultado nenhum. Nos últimos anos a
moda é atribuir todas as ações econômicas do governo à busca de um propalado "ajuste fiscal", nova
panaceia que os imprevidentes passaram a perseguir depois de esgotados todos os recursos palpáveis
na inglória luta contra o dragão da corrosão do valor da moeda. As medidas adotadas anteriormente
sempre foram compreendidas, por mais espantosas que suas formas pudessem ter. Se não eram
segredo, todos entendiam de antemão; se elaboradas secretamente, todos passavam a saber do que se
tratava no momento em que elas vinham a lume. Com o tal de ajuste fiscal ocorre algo novo nessa
história: ninguém - nem mesmo seus executores - sabe o que será isso. Cada um tem uma ideia
fervilhando no cérebro e seguramente não há dois economistas com a mesma proposta. É como os
médicos da Renascença, que Montaigne acusava de jamais coincidirem em suas receitas para um
mesmo doente.
Quem por ajuste fiscal entende aumento da carga tributária tem o dever de esclarecer isso com
urgência. Pois o que mais se fez na história do país foi introduzir novos impostos. Quem entender o
contrário, deve também dizê-lo com maior rapidez, porque é necessário decidir como substituir os
recursos ou como extinguir os encargos que deles dependam.
A maior dificuldade está em desfazer a ideia fixa. Pessoas que

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não conseguem aprender com a experiência prática, jamais se instruirão com a experiência teórica,
donde não haverá meios de convencer essas pessoas de que sua obstinação não passa de miragem. O
mais grave é que com essa ideia fixa de ajuste fiscal o suplício não terá fim, pois sempre que se atingir o
ponto que provocava a miragem anterior, novo ponto de miragem será visto à frente.

Esboço de definição de inflação crônica

Esse mito de que ajuste fiscal é o remédio ou a condição sine qua non para o fim da inflação é muito
parecido com o outro mito popular que atribui a alta inflacionária à reposição da moeda no mercado.
Numa economia monetariamente estável, o governo lança moeda ou para substituir cédulas inutilizadas
ou para acompanhar o crescimento, seguindo o lastro representado pela riqueza nacional. O que os
defensores do "mito da guitarra" esperam é que, numa situação de depreciação constante da moeda no
mercado, o governo deva agir do mesmo modo que numa situação de estabilidade, imprimindo
numerário apenas para substituir cédulas equivalentes que tenham sido inutilizadas e para acompanhar
o crescimento da riqueza.
Mesmo aquelas pessoas concordam que o fornecimento de cédulas ao mercado é um serviço público.
Então deveriam perceber que se num determinado mês um país tem em circulação no mercado um
milhão de unidades monetárias nacionais (UMNs) em cédulas e durante esse mês a UMN sofreu uma
depreciação de 50%, i. e., os preços subiram 100%, a obrigação do governo, como prestador de serviço
público, é imprimir mais um milhão de UMNs, deixando em circulação dois milhões dessas unidades,
pois é com essa medida que o mercado agora interpreta aquele um milhão do mês anterior.
E não há possibilidade de o governo sair na frente, imprimindo numerário antes que o mercado
desvalorize a moeda? É claro que há. Neste caso tem-se um governo de falsários, e este deve ser
escorraçado o mais rápido possível. Seus membros devem ser encarcerados como quaisquer ladrões. Se
não imprimiam a moeda em benefício próprio, então em vez de postos na cadeia devem ser enfiados
num asilo para dementes. Para apurar erros ou manipulações nas contas públicas é que existem os
tribunais de contas e, se não for assim, melhor será fechá-los.
Não se tem notícia na história de caso de inflação crônica provocada pela ação considerada no
parágrafo precedente. Se o rei da Espanha mandava rechear moedas de ouro com o "ouro espanhol"
(latão) era para que essas moedas passassem a carregar o valor depreciado que o mercado lhes
impunha. Essa afirmação não significa condescendência com o rei da Espanha, pois a ciência permite
esclarecer não apenas fatos presentes e futuros, mas, com ainda maior propriedade, fatos do passado.
Também a corrupção pura e simples fica descartada como causa de inflação, pois isso dependeria de
o governo agir como falsário.
É óbvio que a inflação crônica, como a conhecemos, não é o resultado da atuação da casa da moeda.
Se o leitor não descartou o "mito da guitarra" até esta altura deste texto, então vai ser um tanto difícil
prosseguir dizendo outras verdades, agora mais discutíveis do que na realidade o são, por força dessas
crenças antigas.
Por enquanto o autor está apto a dizer ao leitor o seguinte: a culpa da inflação crônica está no
gerenciamento do Estado, mas ela se processa no mercado, no interior da sociedade civil. O Estado é
senhor da culpa, mas o autor do dolo é o mercado.
Quanto a dizer o que a inflação é, o autor prefere transferir isso para um capítulo posterior. Pois
dizer que ela é a desvalorização da moeda é repetir o que o autor ouviu de um colega no colégio como
resposta à pergunta: "Você sabe o que significa a tangente de um ângulo?". A resposta foi: "Você não
sabe?! A tangente é o seno dividido pelo cosseno", como se isso fosse alguma novidade.

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Cap. 1 O CAMINHO 1: INDEXAR TUDO A UMA UNIDADE FIXA ABSTRATA

Exemplo: Brasil, 1964-1986, com a ORTN, que era apenas uma semi-indexação.
Vantagens: a) Organização da economia, pelo fato de os preços relativos terem um parâmetro;
b) a dificuldade de usar a inflação para roubar.
Defeito: A inflação, na prática e oficialmente, continua existindo, se a moeda é não a unidade
fixa, mas o papel circulante.

Os economistas são hoje unânimes nesse ponto: não existe sociedade que na inflação crônica
sobreviva sem indexação. Assim, eliminar o indexador é como retirar o corrimão da ponte, acusando-o
de ser responsável por acidentes. Na maioria dos casos conhecidos de hiperinflação, o indexador usado
foi uma moeda estrangeira, mas no Brasil, antes que a inflação crônica atingisse níveis mais difíceis de
suportar, o governo militar instituiu um parâmetro autóctone, as ORTNs, Obrigações Reajustáveis do
Tesouro Nacional, dentro de sua linha política logo mais interpretada pelos cientistas sociais como
nacional-autoritária.
Com a instituição da ORTN a inflação não só continuou existindo, como, nove anos depois,
retomou seu ritmo exponencial de crescimento. Em 1986, no governo Sarney, o ministro Dilson
Funaro, na ilusão de que a inflação acabaria no chamado Plano Cruzado, substituiu a ORTN pela
OTN, extinguindo o R de reajustável. A inflação mais uma vez ressuscitou e, em 1988, o ministro
Maílson da Nóbrega, caindo no conto do "indexador-inflacionário", aboliu a OTN, sem substituí-la
por qualquer outra letra. Como se poderia prever, a desorganização da economia foi imensa e, poucos
meses depois, chega ao mercado uma outra letra, desta vez chamada BTN, Bônus do Tesouro
Nacional.
O BTN também teve vida curta. Os brasileiros já não estavam mais acreditando que um indexador
nacional pudesse ter uma durabilidade razoável e, então, prudentemente, passaram a utilizar cada vez
mais a moeda norte-americana como indexador, ao lado do BTN. Se o BTN fosse extinto, não
ficaríamos mais sem saber o valor de nossas mercadorias, pois elas agora tinham também um valor em
dólar. Quem não percebeu isso foi a ministra Zélia Cardoso de Mello, pois no seu congelamento de
março de 1989, caindo também ela no conto do "indexador-inflacionário", determinou o fim do BTN.
Alguns meses depois o indexador voltou, só que agora completamente rejeitado pelo mercado. Veio
com o nome de Ufir, Unidade Fiscal de Referência, não mais uma letra do tesouro, mas somente uma
unidade, e ela veio porque o governo descobriu o que qualquer criança já sabia: o governo precisava
reajustar o valor de seus impostos, se não quisesse jogar no esgoto o que ainda restava de caixa do
tesouro nacional. O mercado já não queria mais esse indexador do governo, pois já havia "escolhido"
seu parâmetro, o dólar, que embora tenha sua referência proibida por lei nos depósitos bancários e nos
contratos, invadiu de modo universal todas as relações comerciais processadas no Brasil.
É compreensível que as pessoas tenham se tornado infensas à introdução de indexadores abstratos e
que até os economistas tenham passado a abominar tal expediente. É a história da criança que
pavlovianamente começa a chorar assim que vê o chinelo na mão do pai. A apresentação do chinelo
também dói, como se fosse a pancada dele. O inofensivo indexador, irmão gêmeo da inflação crônica,
parece provocar a mesma dor que ela.
Se para o leitor está sendo muito árida a repassagem por esses

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episódios de nascimento e morte de parâmetros, é que nós estamos mesmo enfiados nessa gaiola de
cobaias onde não podemos deixar de desenvolver atos reflexos sob o comando de cientistas que
trabalham por ensaio e erro num experimento cada vez mais aleatório.

De onde surgem os dogmas

Alguns dogmas petrificados na cabeça de certos profissionais da ciência têm uma origem facilmente
identificável, outros nem tanto. Muitos dos mitos e falácias que circulam entre os administradores
surgem de deturpações feitas em cima de verdades inquestionáveis. Temos alguns exemplos:
A) É verdade que a emissão de moeda sem lastro, quando ocorre, aumenta a inflação.
B) É verdade que aumentos (!) de salários, acima da produtividade, fazem a inflação crescer.
C) É verdade que a existência de um indexador bem conhecido leva o mercado a exigir reajustes
integrais para salários e preços.
Se o leitor atribui avaliação de "verdadeiro" como valor-de-verdade a cada uma das proposições A, B
e C acima, então estamos até aqui na trilha clara que leva ao continente onde serão desvendados os
mistérios que rondam a gênese do impulso inflacionário ("pressão inflacionária" é termo da economia;
"impulso inflacionário" é expressão construída para a etologia humana). Em lugar de pedir desculpas, o
autor deve esclarecer que o uso de noções de psicologia e lógica neste livro não se faz por amor à
complicação, mas, pelo contrário, sem esse instrumento tudo continuará como antes, girando em torno
das velhas declarações repetitivas e já previamente desmentidas como são muitas das que estamos
acostumados a ouvir e ler por aí.
Pode parecer incrível, mas o momento mais delicado deste trabalho vem neste ponto. Não porque
apresente algo de surpreendente, mas porque rebate de maneira contundente as deturpações resultantes
da proposição A e que impregnaram o senso comum de forma assombrosa.
Por causa da confusão que se costuma fazer entre a implicação material e a equivalência, acabou-se
por criar uma leitura invertida e perigosa da frase vista acima sentenciando que "emissão de moeda sem
lastro aumenta a inflação".
A falácia básica é: "se há aumento de inflação é porque se imprimiu moeda sem lastro". Foi dito
"falácia básica" porque dela vem a falácia decorrente, a de que a inflação é produzida pura e
simplesmente pelos gastos públicos e pelo déficit público, que obrigam o governo a emitir o que não
tem. Note, leitor, que quem tem o poder de inventar dinheiro a partir do zero não tem porque ter
dívida e, consequentemente, não produz déficit. Note também o leitor a aparente sofisticação do
raciocínio que aponta como causa da inflação não sua pretensa produtora direta, a emissão, mas o
motivo por trás da causa, que é o volume dos gastos públicos.
Depois do fracasso dos Planos Cruzados I e II, e de seu sucedâneo, o Plano Bresser, o governo
Sarney decidiu parar a guitarra, reduzindo a emissão de moeda para um nível muito inferior ao da
necessidade de reposição. É como querer parar a pedra no meio da avalancha e é mais uma daquelas
experiências que podemos batizar de "operação quebra-de-caixa". São experiências temerárias, mas já
que o senso comum exige, elas são feitas. O resultado foi que, faltando numerário no mercado, mas
não faltando a aceleração inflacionária, muitos pagamentos passaram a ser feitos em mercadoria e o
exemplo mais conhecido é o do empresário Takeshi Imai, que pagava parte do salário de seus
empregados com sacos de batatas, mercadoria de que também é produtor. E isso foi antes de Fernando
Collor decretar o sequestro dos depósitos bancários, quando o escambo se tornou uma necessidade
vital de todo o país.

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Para quem estava sem a cera de Ulisses nos ouvidos e sem venda nos olhos, aquela experiência do
ministro Maílson da Nóbrega - negará a evidência? - mostrou que a inversão da proposição A na
roupagem "se não se imprime moeda não se produz inflação" tem valor-de-verdade zero, i. e., falso. O
final da gestão Maílson no ministério apresentou a maior taxa mensal de inflação de todos os tempos
no Brasil, o famigerado índice de 84%, embora um tão alto resultado deva ser atribuído ao "efeito
posse", mais do que à perdulária "política do feijão com arroz" do ministro. Também as taxas de juros
pagas pelo governo na captação de empréstimos populares foram, coerentemente, as mais altas da
história, o que levou o empresário Antonio Ermírio de Moraes a afirmar: "Quero ver como é que o
governo vai lançar esses números nas contas nacionais".
A proposição B, que o leitor já concordou ser verdadeira, leva a deturpações que podem ser
debitadas na conta das deturpações da proposição A. Muitos relaxam o sentido da frase para leituras
ideológicas do tipo: "É o aumento de salário que produz a inflação" ou, ainda: "Se reajustarmos
integralmente os salários, nunca vamos poder combater a inflação". Ora, se alguém está pregando que
o preço da mão de obra deva se sacrificar, em nome do combate à inflação, por que motivo não prega
isso para todos os outros preços? Só se for porque o salário é o preço mais fácil de controlar!
O que há de lastimável aqui é que os economistas tucanos, que entre os grupos de economistas
partidários formam o mais culto e o mais bem preparado do Brasil, esses economistas são os maiores
defensores da política da contenção salarial no combate à inflação. A vantagem é que não são
monetaristas, mas, que papel! Para que trocar um dogma insano por um dogma coxo?
Há uma esperança aí, porque com os tucanos se pode dialogar, uma vez que o estruturalismo aceita
incorporar novas visões dos problemas econômicos, uma abertura que o monetarismo não tem.
É necessário dizer aos economistas tucanos que o autor nunca escondeu sua aversão à doação de
bens ou valores materiais como solução para algum problema, qualquer que seja ele, e isso porque
sempre essa atitude foi tida como antieducativa. Muitas pessoas existem que ficaram viciadas nessa
prática de esperar que outras pessoas doem as coisas a elas. Ajudar um irmão numa situação de
emergência é humanitário, mas deformar o caráter desse irmão com atitudes paternais é costume que
merece nossa repulsa. Assim, da mesma forma que o assalariado não deve receber do patrão a quantia a
que não faz jus, tampouco deve deixar na mão do patrão, por imposição de lei, uma parte substancial
de seu salário, que é o que acontece quando se nega a reposição integral das perdas geradas pela
inflação. Se a lei vicia o empresário no costume de subtrair parte do salário dos empregados, como é
que vai querer exigir depois que o empresário seja honesto nas suas relações com o fisco?
Daí chegamos à discussão da proposição C. Sim, um indexador conhecido leva todos a reivindicar
reajuste integral de preços e salários. Por isso é que passou a ser moda combater os indexadores? É
esse motivo e não o da retaguarda pavloviana? É melhor que seja esta última, porque se Pavlov não é
quem está por trás dessa defesa, o outro que deve estar é alguém com estirpe de fintador: desconheçam
seus números, para assim não os cobrarem de mim. Dívida não calculável é dívida não pagável.

Abolindo a inflação

Enfim, está na hora de dizer como é possível fazer do indexador geral um dos dez caminhos para
abolir a inflação.
Antes, é preciso esclarecer que ele, por si só, não elimina o impulso inflacionário. O que ele pode
eliminar é a inflação e isso não é jogo de palavras ou alguma tirada cômica. Como o indexador é

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uma unidade fixa, basta transferir para ele a função de ser moeda, deixando a moeda anterior como um
mero bônus, o papel-corrente. A desvalorização do papel-corrente continuará, e aí já não é a inflação
da moeda, mas tão somente a depreciação do bônus, e servirá como indicador do impulso
inflacionário.
Não há notícia de país que tenha adotado esse caminho 1 de modo radical e se o leitor acha que ele
deve ser experimentado no Brasil, o autor pede para não se precipitar e esperar mais um pouco antes
de fazer uma opção. Decididamente, o caminho 1 é apenas um preâmbulo a ideias que vão ser
apresentadas ao longo dos outros nove caminhos.

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Cap. 2 O CAMINHO 2: ACOPLAR TUDO A UMA MOEDA ESTRANGEIRA

Exemplo: Argentina, 1991, com o Plano Cavallo.


Vantagens: As mesmas do caminho 1 e mais a vantagem adicional de ser já o indexador uma
moeda.
Defeitos: a) A relativa perda da soberania nacional; b) a possível desestabilização da moeda
indexadora; c) a tendência de os preços atingirem o máximo possível, diferentemente dos
salários.

Imagine um país que, sob impulso inflacionário, tivesse acoplado sua economia à moeda de Moscou,
após a estabilização que o rublo obteve mediante o férreo congelamento levado a efeito por Stálin.
Agora imagine a era Gorbatchóv chegando e, junto com ela, a liberdade e a inevitável disparada dos
preços. Como ficou a situação do país imaginado acima? Certamente foi arrastado pela mesma crise
que acabou dissolvendo a União Soviética.
O acontecimento comentado no parágrafo precedente pode não ser o maior risco que corre um país
ao adotar uma moeda estrangeira. Há também o risco, que não deve ser visto como desprezível, de essa
adoção prejudicar a economia da pátria da moeda estável. E há ainda a possibilidade de o país não ter
mais condições de voltar a ter sua própria moeda, por um período de gerações.
Mas não há só defeitos na decisão de legalizar e usar uma moeda estrangeira. A Argentina dolarizou
sua economia no início da década de 1990 e obteve vantagens indiscutíveis. Sendo o dólar usado já
informalmente como indexador, bastou ao governo Menem abrir para essa moeda os depósitos
bancários e a utilização nos contratos.
O plano conseguiu baixar a inflação para níveis inferiores ao índice de 1% ao mês, i. e., para abaixo
do nível de inflação crônica. Os argentinos passaram então a viver um alívio econômico que não
ocorria há vários anos. Em janeiro de 1993, uma estatística rápida em cidades litorâneas de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul mostrava o seguinte: de cada seis carros que passavam, cinco traziam
chapa argentina. Quem parasse para conversar com esses turistas teria a explicação. A corrida de tantos
argentinos ao Brasil não se dava tanto pela boa situação econômica deles, mas pela altura sufocante que
os preços atingiram. No Brasil, os dólares que eles lá ganhavam valiam muito mais. Bastava ter um
carro e um tempo livre para atravessar a fronteira e usufruir os preços baixos do sul do Brasil. E os
brasileiros reclamando da carestia! Para os argentinos era só uma mostra de como os brasileiros
ganham pouco.
Aí vem mais um problema. Pelas dimensões comparativas de Brasil e Argentina, esse turismo
desenfreado representa uma evasão de divisas, embora não chegue a provocar enriquecimento do
Brasil. O governo argentino certamente esteve ocupado com essa questão, mas não se sabe de
providências nesse sentido. É, no fim das contas, um problema menor. E é também uma resposta
portenha a algo que aconteceu poucos anos antes, quando o fluxo turístico estava invertido e os
brasileiros, principalmente de São Paulo, desciam em grupos para fazer compras em Buenos Aires, pois
àquela altura a moeda brasileira valia muito mais lá do que no Brasil. Depois disso os dois países
passaram a enfrentar as agruras da hiperinflação indexada e só a partir da dolarização é que os
argentinos puderam respirar com mais tranquilidade.

Moeda e descolonização

Essa dependência da moeda estrangeira é sempre um problema no caso das colônias. A única colônia
instalada no continente americano neste final de século XX é a Guiana Francesa e enquanto essa
província francófona ultramarina continuar assistindo à luta inglória

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travada nos países vizinhos no combate ao dragão inflacionário, enquanto isso ocorre, os habitantes
dessa colônia sequer cogitam da possibilidade de sua independência, o que não deixa de ser algo
desalentador.
Nesse processo difícil de descolonização, o Brasil tem história para contar. A capital da colônia foi
transferida da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763 e já em 1808 o Brasil tornou-se país soberano,
porquanto sede do governo luso, embora não independente. Assim que Portugal se viu livre de
Napoleão, o rei Dom João VI zarpou de volta o mais rápido que pôde, sem ter conseguido completar
sua retaliação que consistia em anexar toda a Guiana Francesa. A parte mais ao norte continuou com a
França. No Brasil permaneceu o príncipe regente Dom Pedro tentando superar as dificuldades políticas
e econômicas do principado que agora tinha ares de soberania. Ainda que nas proporções do século
XIX, a inflação estava aí, já corroendo fortunas e desgastando governos, causando dores de cabeça
num príncipe que, embora tenha chegado ao país na primeira infância e se reivindicasse brasileiro de
sentimentos, sempre foi visto como um estranho no ninho. Em 1822 declarou a independência do
país, mostrando sua brasilidade, mas em 1831, acusado de ser responsável pelo agravamento da crise
nacional, foi deportado para Portugal, não sem antes ser obrigado a deixar para trás seu filho pequeno,
que seria aclamado anos depois como Dom Pedro II, imperador do Brasil.
Dom Pedro pai, o primeiro, foi para Portugal ser Dom Pedro IV, enquanto seu filho no Brasil crescia
acompanhando as tentativas quase sempre infrutíferas de resolver os problemas econômicos, os
problemas políticos e os vários conflitos surgidos nesse novo período de regência. Mais tarde, com a
consolidação política do Segundo Reinado, a economia brasileira entrou numa fase de estabilidade
monetária e grande prosperidade. O problema maior agora eram as guerras, que não permitiam aos
súditos de sua majestade imperial usufruir com tranquilidade a riqueza nacional que estava sendo
gerada naquela fase de crescimento econômico.
Num capítulo posterior será, no entanto, defendida a ideia de que os grandes problemas brasileiros
dos primeiros anos de independência estiveram menos associados à descolonização em si do que a um
outro fato, que não deve ser antecipado aqui. O problema então para a Guiana Francesa não é o perigo
de ela não conseguir atingir as condições internas para garantir a estabilidade monetária na
independência, mas, sim, conseguir escapar da influência do impulso inflacionário dos países vizinhos,
antes de tudo os da irmandade latina. Se o Brasil, portanto, debelar sua própria inflação, estará criando
condições para a futura independência da última colônia do continente, um fato que seguramente terá
de ocorrer um dia, "eventuallly", como dizem os ingleses.

Dolarização no Brasil

Não podemos deixar de discutir a conveniência da dolarização para o Brasil. Resolve o problema da
inflação? É bom para o país? São perguntas que os brasileiros vêm se fazendo há algum tempo. Há
ainda uma pergunta mais disseminada por aí que é: "Há um projeto governamental no sentido da
dolarização?"
Das três perguntas, a resposta à terceira é a mais difícil. Sempre que se pergunta se há dolarização em
vista, o governo vem insistindo que não. Mas os brasileiros já estão acostumados com duas fraquezas
do governo. A primeira é negar, continuar a negar, e depois fazer aquilo que tanto negou que faria. A
segunda já se tornou folclórica. É o tal de "efeito Orlof", assim mesmo, trocando o "ia" pelo "R", e
traduz a tendência irresistível que há no governo brasileiro de repetir amanhã a decisão que o governo
argentino toma

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hoje. É inspirado na frase publicitária "Eu sou você amanhã."
Além desses dois indícios observados na análise do caráter, há duas medidas governamentais que se
não indicam a dolarização oficial levam o mercado a usar indiscriminadamente a moeda americana. A
primeira medida é o fim do indexador geral, tomada por Maílson da Nóbrega e reafirmada depois por
Zélia Cardoso de Mello. Sem o indexador nacional, as pessoas passam a parametrizar os valores pelo
dólar, a moeda estrangeira mais disponível e mais conhecida. A segunda medida é o imposto sobre o
cheque, usado anteriormente pela Argentina. São duas medidas que servem de preparação das
condições para a posterior oficialização da dolarização. É a política do leite derramado, quando se diz
que agora não tem mais jeito, já quebrou. Se o governo continuar por mais tempo resistindo a essa
oficialização, o que estará caracterizado é que o governo quer a dolarização, faz tudo por ela, mas não
assina embaixo.
Quanto à oportunidade, entre ser ou não ser bom para o Brasil, nós precisamos ter consciência é de
que essa dolarização poderá ser boa para o Brasil, mas má para os Estados Unidos. O governo Bill
Clinton parece estar temendo essa possibilidade e já escolheu o presidente da Argentina como
interlocutor preferencial na América do Sul. Por enquanto, neste subcontinente, a Argentina é o
segundo em tamanho e o segundo em riqueza. Talvez Bill Clinton esteja prevendo que, dentro de
pouco tempo, o PIB argentino poderá alcançar ou até superar o brasileiro. Se o Brasil não derrubar
logo sua inflação, essa possibilidade não é nada remota.
O autor tem obrigação de jogar um balde de água fria nas pretensões daqueles que estão contando
com o fim da inflação da moeda brasileira apenas mediante a dolarização oficial. Para usar uma
linguagem sismológica, pode-se afirmar que o epicentro do impulso inflacionário na América do Sul
está localizado no Brasil.
Quando a Bolívia, que é um pequeno Estado unitário, dividido apenas em departamentos, reduziu
sua inflação a partir de um programa recessivo do economista Jeffrey Sachs, o que estava ocorrendo ali
era a retirada desse país vizinho da órbita do Brasil. O que resolveu o problema, em termos, foi sair da
órbita do Brasil e não a política econômica baseada na recessão.
Com a Argentina, sair da órbita do Brasil significou tomar uma medida mais drástica, que foi a
adoção da moeda dos Estados Unidos. Foi como construir uma ponte ligando diretamente Buenos
Aires e Washington, deixando o Brasil lá embaixo, no quintal. Daí, o Brasil passou a olhar a Argentina,
lá em cima, e passou a se perguntar, abismado: "Podemos fazer a mesma coisa? Podemos imitar?"
Poder imitar pode, mas não é recomendável. O Brasil não pode sair da órbita do Brasil, a menos que
aceite ser anexado pelos Estados Unidos, quando então deixaria de haver uma nação soberana
brasileira, inflacionária.
A vontade terrível de imitar é que é o nó da questão. Como escapar dessa propensão? Como apagar o
desejo? O país dos macaquitos precisa imitar. Ainda não conseguiu livrar-se da sina de ser o país dos
macaquitos.
Precisaremos pedir autorização ao tio Sam para poder oficializar a dolarização? Tio Sam autorizará?
Quem sabe! Existe gente maluca também nos Estados Unidos. E o Brasil precisa disso, pois a
Argentina procura seus caminhos próprios, a Bolívia procura seus caminhos, o mesmo acontecendo
com o Uruguai, o Chile e o Peru, mas o país dos macaquitos, esse não pode seguir caminho próprio,
não lhe cai bem, o caminho próprio não é chique, não é perfumado, não tem som de Marselhesa nem
de Glória-glória-aleluia.
Por mais quantos livros e durante quantos anos este autor vai precisar repetir a cantilena para que
enfim o significante afugente o significado, a expressão expulse o conteúdo, o símbolo rejeite o objeto?
É angustiante ficar trabalhando, produzindo, lendo o jornal e esperando o dia em que o governo crie
coragem e anuncie que não conseguiu resistir mais e decidiu imitar mesmo, doa a quem doer. O
governo analisou, estudou, ponderou e concluiu que o melhor para o país é a dolarização e então
vamos seguir por esse caminho. Só não sabemos é se há viagem de volta.

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Se o Congresso Nacional aprovará a dolarização? Quem tem dúvida? Depois de aprovar a
transferência dos feriados para as segundas-feiras (só atingiremos os ricos), o sequestro das poupanças
(só atingiremos os ricos) e o imposto sobre os cheques (só atingiremos os ricos), quem duvida que o
Congresso aprovará uma medida muito mais duradoura, como a dolarização?

O que pode acontecer

Os cenários possíveis precisam ser visualizados. Primeiro, as pessoas cultas transformam seus
depósitos bancários em depósitos em dólar, ou passam a guardar dólares em casa. A continuidade da
moeda nacional é garantida por ser usada pelas pessoas menos cultas e pelas pessoas medrosas. Dentro
de alguns meses o governo constata que a inflação da moeda interna arrefeceu apenas na proporção da
diminuição do seu uso, i. e., o índice inflacionário caiu um pouco porque a moeda nacional é pouco
usada e só aparece como referência nas transações mais modestas. Alguns meses depois a inflação
retoma seu ritmo de crescimento e as pessoas menos cultas aprendem a usar o dólar. São 150 milhões
de pessoas ávidas por dólar. A moeda americana começa a aumentar sua cotação no mercado
internacional. Os preços estão insuportáveis no Brasil e a família tupiniquim começa a levar seus
dólares, agora mais valorizados, para gastar no exterior, preferencialmente em países com poucos
dólares, o que torna pequeno o fluxo para a Argentina e os Estados Unidos. O Brasil agora está numa
situação delicada, pois os Estados Unidos, que inicialmente discordaram da dolarização brasileira, agora
não aceitam que o Brasil se desdolarize. A pressão agora é para que o Brasil extinga sua moeda
nacional. O Brasil cede. O governo recomenda o uso generalizado de fichas telefônicas como troco.
Este é o cenário do caminho sem volta e, felizmente, aponta para o mercado único das três Américas.
O segundo cenário é menos otimista. O Brasil adota a dolarização e dentro de alguns meses descobre
que a moeda nacional não se estabiliza. O governo se decepciona e desiste da dolarização oficial.
Proíbe o uso do dólar nos depósitos e nos contratos e proíbe a adoção de qualquer indexador na
economia. Instala-se o caos econômico e em pouco tempo o número de pessoas pedindo esmolas é
aproximadamente igual ao número dos que têm empregos. Os militares começam a se agitar, fazendo
manifestações diárias na frente dos quartéis. O que vem depois não deve ser dito porque não se trata
de exercício de previsões de Nostradamus. E se o fosse, a linguagem, como lá, seria hermética.
Deve ter ficado claro nos parágrafos acima que a dolarização não é o caminho recomendado para
eliminar a inflação brasileira. Mesmo porque ela elimina a inflação, mas não o impulso inflacionário, o
que eleva os preços a um nível tão alto que a medida passa a se equiparar a uma política recessiva.
É uma medida eficiente para abolir a inflação? Sim, desde que se substitua totalmente a moeda
nacional pelo dólar, ou, no mínimo, que se estabeleça uma paridade de modo a tornar inócuo o uso da
moeda própria. O triste é que aí se tem de viver sob uma mera ilusão de estabilidade econômica.

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Cap. 3 O CAMINHO 3: PARAMETRIZAR A MOEDA PELO OURO

Exemplo: Estados Unidos, século XIX e começo do século XX.


Vantagens: As mesmas do caminho 1 e mais a de ser o ouro uma moeda-espécie, de caráter
universal.
Defeito: Pode eliminar a inflação, mas não o impulso inflacionário.

Um dos modos de se observar a queda irresistível dos membros do governo dos países latino-
americanos pela política de seguir modas é atinar para o fato de que ninguém cogita usar o ouro como
indexador da economia.
Foram aplicados congelamentos, processos recessivos, indexação por unidades abstratas, indexação
por moeda estrangeira e mais outros recursos miúdos e menos marcantes. O uso do ouro como
indexador foi sempre visto nesses países como medida antiquada, incompatível com a modernidade,
com o espírito industrial do século XX.
Não se leva em consideração que o abandono do padrão ouro nos Estados Unidos em 1971 não tem
a menor relação com esse espírito de modernidade tão perseguido pelos países menos desenvolvidos.
O motivo é bem outro e este deveria ser entendido na sua profundidade: o abandono do padrão ouro
ocorreu pelo simples fato de que os americanos não precisavam mais dele, por não haver mais o
terrível impulso inflacionário enfrentado por Washington durante todo o século XIX.
O problema com os Estados Unidos aconteceu no século XIX e com a França o mesmo problema
foi vivido no século XVIII. Com a América Latina, por causa do Brasil, as mesmas dificuldades têm de
ser enfrentadas no século XX. Os americanos aprenderam, e muito, com a experiência trágica da
Revolução Francesa, embora não tenham conseguido evitar sua guerra civil, a maior de sua história, a
Guerra de Secessão, travada entre os adeptos da capital Washington, Distrito de Colúmbia, e a capital
Richmond, Estado da Virgínia. Mas os países da América Latina, principalmente da América do Sul,
parecem ter aprendido muito pouco com a experiência daqueles países do hemisfério norte, pois o
Brasil, por exemplo, dá mostras de não enxergar qualquer rumo saudável em sua luta para voltar à
estabilidade monetária. Num momento insiste em retomar caminhos gastos e nada proveitosos;
noutros trava uma árdua batalha para incrementar medidas novas que uma boa experiência teórica
revelaria, se não nocivas, pelo menos inócuas. E na maioria das vezes são mesmo medidas nocivas.
Que há inúmeras vantagens na adoção do ouro como parâmetro monetário não existe dúvida.
Primeiro porque nas regiões auríferas do norte do Brasil ele já é moeda extra-oficial. Segundo porque,
se o dólar tem dois séculos, ele, o ouro, tem 40. São 40 séculos de uso desse metal como medida de
valor material e ninguém pode achar que isso é pouco. É simplesmente o campeão invicto de
longevidade nesse papel. O terceiro motivo é o fato de que, como mercadoria, ele tem o valor mais
estável ao longo da história. Nenhuma outra mercadoria, nenhum outro metal, se compara a ele nesse
aspecto.
Por tudo isso é que é muito intrigante que não tenha havido por parte dos governos brasileiros desde
1960 a intenção de aurificar a economia brasileira. Será porque os brasileiros não confiam em coisas
sérias? Será porque o Brasil não é um país sério, tendo de se curvar à observação cáustica de De
Gaulle? Ou será porque, na qualidade de país dos macaquitos, os brasileiros não têm um exemplo
presente para copiar num outro país de qualquer continente? A resposta positiva a esta questão
significa resposta positiva à anterior. É uma tragédia tão grande quanto a própria inflação crônica. Essa
submissão doentia ao produto do exterior, que implica o desprezo

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ao compatriota, a descrença no mestiço, isso leva a uma posição de acomodação contemplativa, típica
da criança que espera surgir uma fada com a varinha de condão para resolver todos os problemas. Essa
fada chama-se cientista estrangeiro. No entanto, cientista estrangeiro não é fada e não tem condições
de, sem sentir na carne, no seu próprio desenvolvimento como indivíduo, as complicadas facetas da
alma brasileira, elaborar receitas capazes de ceifar os males que afligem os filhos desta terra.
Essa submissão infantil à figura estrangeira, ao modelo estrangeiro, tem sua origem na didática da
dependência impingida ao Brasil desde o ano de 1500. Desde tenra infância essa gente é acostumada a
escutar sem ler, a aprender sem refletir, a absorver sem discutir, a sofrer sem reagir, a suar pelo patrão
sem receber remuneração condigna, a adorar os santos alheios sem canonizar qualquer santo próprio, a
importar o jato alheio, a importar o chip alheio, a ouvir declarações petulantes como a do empresário
inglês do ramo de madeiras a afirmar que "no Brasil a vida vale menos que nos outros lugares..."
Ninguém pode negar que os padres jesuítas tenham tido boa intenção ao chegar a esse país
ensinando os pequenos índios a ler e pedindo para que escutassem seus ensinamentos. "Nós lemos a
Bíblia em latim e transmitimo-la a vocês em nhengatu" é o que certamente pensavam depois que a
Santa Sé proibiu a leitura da Bíblia em língua vernácula. No meio do século XVIII, o papado, ao invés
de incentivar a leitura bíblica, decretou que o texto só poderia ser lido em latim, significando isso que
só os padres podiam ler, uma vez que o latim não era língua materna de mais nenhum povo no mundo.
O Brasil, o maior país católico do mundo, continuou vítima da didática da dependência, esse
subproduto do cristianismo-de-ouvido que mantém as pessoas numa cômoda atitude passiva de
escutar, temer e esperar.
Longe da ideia do autor querer, com essa crítica severa à didática tradicional do catolicismo, substituir
essa religião pela de qualquer outra confissão. Cada um use sua consciência e siga o culto que julgar
condizente com sua filosofia própria. Mas este autor espera estar deixando claro que a Igreja Católica
tem obrigação de mudar seu trabalho catequético, o que, de algum modo, já vem ocorrendo. Não é
correto pretender utilizar apenas 10% do potencial das pessoas e desperdiçar os outros 90%. Isso é o
que consegue a didática da dependência. Ao contrário, ensinar o indivíduo a aprender, a ler para
debater com o padre ou orientador bíblico, a ver com seus próprios olhos o que antes só lhe era dado
ouvir de terceiros, isso é o estopim da arrancada para o desenvolvimento pleno dos membros da
sociedade, destes membros que nos dias de hoje demonstram uma diferença que lembra um abismo
frente a pessoas que receberam um treinamento para dominar o conhecimento que representa o
cabedal mais precioso do mundo civilizado e deveria ser patrimônio comum. É a diferença de processo
civilizatório – na acepção de Darcy Ribeiro - existente entre Maputo e Copenhague.
Se os pouco instruídos revelam essa face consternadora do resultado da didática da dependência, as
pessoas letradas não devem sentir-se aliviadas, imaginando não padecer do mesmo mal. Pois, quando
De Gaulle ponderou não ser o Brasil um país sério, ele certamente não se referia aos analfabetos, mas à
cúpula dirigente, teoricamente bem instruída e dona do poder decisório. É que a didática da
dependência atinge as pessoas instruídas, ou em vias de instruir-se, através da construção desses tiques
comportamentais: não se atribuir seriedade, submeter-se em demasia ao estrangeiro, querer copiar tudo
do exterior, viver na aceitação da tragédia, depender da decisão de outrem, ser leviano nos
compromissos e esperar pela fatalidade, pelas decisões do destino.

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Além de tudo há os erros de estratégia mercadológica. Quando se decidiu explorar a figura de Santos
Dumont como sendo o "pai da aviação", sabia-se que a América do Norte tinha seus inventores do
avião, os irmãos Wright, criadores do aeroplano de catapulta. Não se poderia impor aos Estados
Unidos um mito que substitua o mito que eles próprios construíram. Não daria para competir com tio
Sam também nos outros países. Daí, melhor política teria sido a honestidade. Teria sido muito simples
instituir Santos Dumont como pai do dirigível, o que realmente ele foi. Ora, sem dirigibilidade não há
aviação. A ideia é anterior ao avião e é condição para a invenção deste. Ou poderia o Brasil ter
propagandeado a figura de Santos Dumont como inventor do avião motorizado. Seria incontestável.
Não há mesmo um inventor do avião, como não há um inventor do computador. Mas, da mesma
forma como Santos Dumont é o inventor do dirigível, Ada Byron, condessa de Lovelace, filha de Lord
Byron, é a inventora da programação de computadores. Ela é a inventora da ideia de desvio
condicional, o "if", alma da programação, sem o que a ciência da computação seria uma mera ciência
do "calculismo" em larga escala. O desenvolvimento da ciência e da técnica é feito de pequenos gestos,
que devem ser identificados, e é assim que os brasileiros devem enxergar as contribuições de seus
compatriotas, que por enquanto são em número muito reduzido, por força da já comentada didática da
dependência.
Pois sem o grave defeito de formação que obriga os brasileiros a esperar que outros façam para só
então reproduzir, sem esse defeito, o Brasil já teria desde muito tempo adotado o ouro como
parâmetro monetário. Assim como se pode instituir o ouro como referência para a moeda nacional
corrente, o que seria apenas um meio de organizar a economia, pode-se também substituir a moeda
nacional por uma moeda que tenha paridade de valor com uma certa massa de ouro, por exemplo, o
decigrama. Um decigrama de ouro tem o valor aproximado da unidade das moedas fortes como o
ECU e o dólar. Se a unidade monetária passa a valer um decigrama de ouro, não se poderá cunhar
moeda com essa quantidade tão pequena do metal, mas pode-se fazê-lo com a prata. Usa-se para o
decigrama de ouro a moeda que contenha o valor equivalente em prata. Uma moeda de ouro tem então
valor maior que o de um decigrama. Pode ser de 20 gramas, por exemplo.
As duas opções precisam ser levadas em conta: o ouro como indexador e o ouro como moeda. No
primeiro caso, ele apenas organiza a economia, como já foi falado. No segundo caso, ele elimina a
inflação. Mas, cuidado! Não elimina o impulso inflacionário ainda. Neste caso, o ouro como moeda
não poderá prescindir do uso do papel-corrente na unidade monetária antiga, agora apenas como
bônus. Esse bônus fica responsável por registrar a pressão do impulso inflacionário, enquanto esse
impulso existir.
Há certamente a alternativa de usar apenas a moeda com o valor na referência ouro, sem o bônus.
Isso de fato contorna o problema da inflação, mas como não elimina o impulso, o sofrimento da
população em decorrência da praga inflacionária não pode ser afastado de todo.
Continuemos então nossa discussão.

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Cap. 4 O CAMINHO 4: TROCAR A MOEDA POR UMA MERCADORIA

Exemplo: México pré-colombiano.


Vantagens: a) Estabilidade da economia, se a produção da mercadoria escolhida é também
estável; b) facilidade de assimilação pela população.
Defeito: A dificuldade de controlar a produção da mercadoria-moeda.

Antes da chegada dos europeus à América, os índios astecas, da América Central, usavam um tipo
muito peculiar de moeda, a amêndoa de cacau. Hoje no Brasil ‘cacau’ é sinônimo de dinheiro e isso traz
alguma indicação de que no inconsciente das pessoas essa fruta funciona como representação de um
instrumento monetário. Os astecas usaram sem problemas o cacau como moeda e só mudaram essa
prática quando aprenderam com os europeus a usar moeda-metal.
A moeda-mercadoria não precisa ser cacau. Para efeito de controle do fluxo é conveniente que seja
um produto que envolva mais trabalho humano do que trabalho da natureza e um exemplo disso é a
cerveja, cuja garrafa tem no Brasil o valor de um dólar nos restaurantes. Uma outra moeda-mercadoria
pode ser o quilo de arroz, mas o trabalho humano aí é pequeno comparado com o da natureza.
Também pode ser o cafezinho, o litro de leite, o metro de linho, o almoço comercial, o pão francês, a
ficha telefônica ou a maçã. Qualquer um desses itens, ou ainda outro, pode servir de moeda. Precisa-se
apenas de uma convenção, i. e., de que um deles se imponha sobre os outros.
Obviamente, se não há aceitação para a adoção do ouro como moeda - e ele foi usado assim no
século passado -, dificilmente será possível descobrir algum país que aceite usar como moeda um
produto do mercado de ‘comódites’, ou uma qualquer mercadoria fixada.
O ouro deixou de ser moeda no século XIX, começo do século XX. O cacau foi moeda apenas até o
século XVI, i. e., muito antes do ouro. Se este não é aceito, que dizer daquele? Mas uma possível
abolição da moeda oficial pode levar a sociedade a adotar uma moeda-mercadoria. É coisa que não se
pode saber de antemão.
O escambo, numa próxima oportunidade em que venha a ser praticado, pode desaguar na definição
de uma mercadoria como moeda. Takeshi Imai usou o quilo de batata. Outros empresários certamente
usaram outros produtos, mas só a utilização generalizada de um item preferencial pode instituir na
prática uma moeda-espécie que venha a substituir o papel-moeda tão desacreditado na história recente
do país.
O mercado de trocas altamente aquecido no início do governo Collor não chegou a mostrar uma
tendência, no sentido de definir uma das mercadorias envolvidas como possível moeda, mas isso foi
porque o escambo ficou restrito a negócios de grande envergadura, como casas, carros, telefones e
outros itens igualmente caros. As trocas não chegaram a atingir itens de pequena monta, como quilos
de arroz, barras de chocolates e assim por diante.
Há uma escala de valores para a preferência por um ou outro produto no papel de moeda, que é sua
imperecibilidade, além da portabilidade. Com isso, restam a amêndoa e a ficha telefônica entre aqueles
nomes lembrados, com vantagens inegáveis para a segunda. Entre as vantagens da ficha telefônica
estão as seguintes: é metálica; tem formato de moeda; não depende do exterior; existem com dois
valores - local e DDD -; já é usada como moeda, pelo menos para troco; tem valores pequenos e é
produzida sob um certo controle. O problema é saber se, primeiro, o governo tem disposição para
adotar uma moeda desse tipo e, segundo, se há conveniência nesse tipo de medida.

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A adoção de uma moeda-mercadoria, ao mesmo tempo que representa uma decisão com cheiro de
retrocesso - imitação de astecas do século XV -, livra o país de uma história de sobressaltos e
arrogâncias.

Política de juros

Um dos sofrimentos inúteis impostos aos brasileiros foi a política de juros altos. Os técnicos do
governo lançaram o país numa trajetória de alta crescente da taxa de juros na esperança de poder evitar
a formação de estoques por parte dos empresários. A ilusão era a de que, sendo alto o preço do
dinheiro, não seria possível segurar mercadoria por muito tempo e a oferta estando garantida, através
de tal estratégia, levaria o índice de inflação a ser automaticamente pressionado para baixo. Esse era um
resultado que ninguém conseguia observar, mas, como a teoria garantia, os economistas insistiam em
bater na tecla.
Foi necessário que os ingleses, no crepúsculo da era Thatcher, e também os alemães, saíssem a
campo anunciando o engano de tal política para que os brasileiros começassem a questionar a validade
dessa lamentável crônica de incompreensões. É difícil saber como alguém pode acreditar na queda da
inflação como consequência de uma política de juros altos, pois o que primeiro salta aos olhos na
consideração de uma tal política econômica é que a produção fica irremediavelmente dificultada,
quando não impossibilitada, frente ao aumento exagerado do custo do dinheiro.
Juros altos não atingem apenas o empresário que tenha pretensões de fazer estoques. O assalariado
que decide comprar um refrigerador a prazo descobre desolado que não tem condições de pagar o
acréscimo brutal no preço das prestações em decorrência da política de juros. Também aquele que
tente financiar a compra da casa própria conclui não haver possibilidades de arcar com a continuidade
do plano. Essas dificuldades vão reduzir a demanda de maneira drástica, provocando recessão, e, como
já foi visto, essa não é uma saída eficiente para o combate à inflação.
Os empresários que tencionam obter empréstimos para melhorar a produção acabam por desistir do
projeto ao constatar que seus lucros não cobrirão o pagamento dos juros. Assim, a alta de juros
provoca redução da demanda, mas, por dificultar a produção, reduz muito mais a oferta, diminuindo a
concorrência e fazendo com isso disparar a taxa inflacionária.

A liberdade e a economia

Desde que iniciou seu governo, já como vice-presidente em exercício, Itamar Franco estabeleceu
como meta reduzir as taxas de juros, na perspectiva de ver retomado o ritmo de crescimento
econômico, depois de uma década de empobrecimento. O Brasil vivia, no início da década de 1990 a
situação econômica oposta àquela verificada vinte anos antes, conhecida como a fase do "milagre
brasileiro". Se nos anos 1970-1971 a situação política causava vergonha aos brasileiros, a vida
econômica atravessava um período mais promissor que aquele de meados do Segundo Reinado,
estando o país agora num acelerado processo de industrialização. Já nos anos 1992-1993 o Brasil
atravessava a fase de maior dificuldade econômica de sua história, mas amparado pela situação política
mais favorável de todos os tempos. Essa Constituição de 1988, como era de se esperar, já estava sendo
acusada pelos liberal-conservadores de impedir a governabilidade do país ou, pelo menos, de amarrar
as mãos do governo nos momentos em que este deveria tomar medidas duras para combater a escalada
inflacionária. No entendimento dos liberal-conservadores

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medidas anti-inflacionárias são necessariamente duras ou amargas.
Algum apressado pode querer desenvolver a teoria segundo a qual, no Brasil, quando a política está
boa a economia está mal e quando a política está mal a economia está boa. É claro que o Brasil tem
uma tradição de corrupção, agora finalmente em vias de sofrer uma duradoura perseguição. E essa
corrupção, como se sabe, costuma vicejar mais facilmente em épocas de liberdade política, o que leva
muita gente a suspirar pela volta das ditaduras, da troca da malandragem pela sanguinolência.
Certamente, não existe essa lei da incompatibilidade entre progresso político e progresso econômico e
o que tem acontecido é que as ditaduras sufocam várias características negativas dos aproveitadores
que circulam em torno dos governantes. Mas sufocam também aspectos positivos, o que não é levado
em conta pelos inimigos da liberdade.
A explicação para o fato de o país cair economicamaente nos períodos de avanços políticos está na
implementação de medidas erradas, como essa da alta da taxa de juros, que nada mais é que uma
tentativa de substituição da repressão policial pela repressão econômica. Esse tipo de repressão não
surte qualquer efeito benéfico porque politicamente as pessoas vivem em liberdade, o que fornece
válvulas de escape muitas vezes inesperadas por parte das autoridades públicas. Por isso é que deve ser
uma obrigação do governo debater amplamente suas futuras medidas econômicas, pois o que uma
teoria recomenda, outra teoria pode desmentir, o que dois ou três teóricos não enxergam, um membro
de um grupo maior pode fazê-lo. E esse grupo deve, de preferência, conter pessoas com formação
diversificada, integrando economistas e não-economistas, administradores e não-administradores, pois
o fato de entender profundamente de ativos e passivos não é suficiente para dar a alguém a chave
mágica para abrir as portas do cofre que contém o segredo da solução dos problemas da economia
política, vista agora apenas como economia.
Os economistas, segundo Alfred Marshall, costumam considerar todas as vantagens que as pessoas
podem obter ao tomar determinada atitude, e essas vantagens não precisam ser necessariamente
pecuniárias. Aqui, a ascendência do fator pecuniário explica-se pelo fato de ser ele aritmetizável, ao
contrário de outras vantagens que se considerem. A importância da observação de Marshall está em
que se pode, a partir disso, entender a economia como a própria essência da vivência humana, no que
se refere ao aspecto imanente. E não se pode conceber que a essência da vida humana seja tratada com
exclusividade por um determinado tipo de profissional e somente por ele, seja biólogo, seja psicólogo,
antropólogo, sociólogo ou economista.
Mas sendo o papel principal do economista a aritmetização dos valores monetizáveis, coloca-se para
ele um sério problema quando se propõe a adoção da moeda-mercadoria. O problema não está no uso
do valor da mercadoria escolhida como um referencial para as transações econômicas, mas, sim, na
questão do fechamento das contas públicas. A dificuldade está em estabelecer controle sobre a
produção da mercadoria, de modo que as contas nacionais reflitam com segurança a variação da
riqueza e que essa riqueza corresponda ao valor que a moeda está medindo. É uma dificuldade que
certamente depõe contra a defesa da oficialização da moeda-mercadoria.
No entanto, não há como negar que uma tal medida é remédio eficaz para erradicar na prática a
inflação crônica da vida do país.
O triste é que esse caminho, como os anteriores, não serve para eliminar o impulso inflacionário,
embora elimine o índice. A desvantagem da manutenção do impulso, numa economia controlada, é
que os preços tendem a atingir o limite máximo, produzindo um custo de vida fixo, mas altíssimo.

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Cap. 5 O CAMINHO 5: EXTINGUIR A MOEDA E USAR TÌQUETES

Exemplo: Desconhece-se.
Vantagem: Possibilidade de se criar uma relação completamente nova entre a sociedade e sua
moeda.
Defeitos: a) Perda do controle governamental sobre a moeda; b) abandono, por parte do
governo, desse serviço público representado pelo fornecimento de dinheiro ao mercado.

Dos dez caminhos para abolir a inflação, este caminho 5 é o único sem exemplo histórico. O motivo
disso é evidente: a medida equivale à desativação do governo, o que corresponde à concretização do
sonho dourado dos liberais dogmáticos. A pregação pelo Estado mínimo propugna uma redução da
atividade pública de tal ordem que venha a restar apenas as funções judiciária e militar, aquela para
resolver os litígios e esta última para garantir as fronteiras e a propriedade.
Certamente, o autor não se inclui no rol de possíveis defensores da troca do dinheiro oficial pelo
dinheiro privado, ideia acalentada pelo prêmio nobel austríaco Friedrich August Hayek, morto
recentemente. No formato em que a proposta é lançada aqui, tem-se não a fabricação da moeda
propriamente dita, mas a confecção de tíquetes que venham a fazer o papel de dinheiro. Seria escolhido
um tíquete básico no valor de um almoço comercial, que poderia chamar-se mesmo "o comercial", e
isto serviria como unidade monetária, em torno da qual os outros tíquetes e os outros valores do
mercado gravitariam. Apesar de ser uma medida que desmonta o governo, embora mantendo o
Estado, o caminho para se chegar a isso já está meio aberto, dado o grande número de empresas que se
utilizam dos serviços dos tíquetes.
Como a possibilidade da extinção da moeda oficial existe - e não é tão remota, pois muito mais
impensável foi a aprovação pelo Congresso Nacional do sequestro dos depósitos bancários -, vai
apresentada aqui esta discussão em meio a outras nove medidas já experimentadas por um certo
número de países. O que o governo jamais poderá usar como argumento é que daquelas dez
possibilidades este autor apontou esta como a mais recomendável.
O autor se coloca como uma espécie de personagem do texto porque desde o início deste trabalho a
intenção é encetar um diálogo com o leitor e isto não se faz com um autor ausente, ou, se se faz, não é
com o objetivo de encurtar psicologicamente as distâncias entre quem escreve e quem lê. A busca é
essa de estar perto do leitor e é também intuito deixar claro que existe aqui a busca de uma
argumentação científica - e não há hoje outra possibilidade para ensaio -, além de que o teor destes
capítulos representa uma batalha pessoal do autor dentro dessa luta social que os brasileiros vêm
travando há décadas.

Os frutos da crise

Há mais de trinta anos iniciou-se um período de terríveis dificuldades econômicas na América do Sul
e os brasileiros têm ganho com isso experiências memoráveis na busca do desenvolvimento. Esse
sofrimento é o que levou o país a despender esforços historicamente notáveis no sentido da
industrialização e da educação. O passo seguinte foi o crescimento de uma consciência popular voltada
à vigilância ética no combate à corrupção, ao desperdício e à autodestruição. Por último, acompanha-se
a cruzada liderada por Herbert de Souza, o destemido irmão do Henfil homenageado na letra do samba

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‘O bêbado e o equilibrista’, na busca da eliminação da fome entre as classes desvalidas. A campanha
precisa esclarecer que a palavra fome não deve ser entendida aí apenas com o significado popular de
‘vontade de comer’, mas como desnutrição, essa praga que consiste em encher o estômago do
indivíduo sem alimentá-lo, sem fornecer a proteína e as vitaminas necessárias para manter uma pessoa
com saúde. Esse problema da fome, no sentido amplo, agravou-se de maneira absolutamente indigna
enquanto a crise econômica recrudescia, mostrando seu período mais duro entre 1987 e 1993.
A vigilância contra a corrupção pode ser muito útil ao país no caso de se optar pelo caminho 5 no
combate à inflação. Essa vigilância sempre foi maior sobre o setor público que sobre o setor privado,
mas uma vez que a iniciativa privada passa a fabricar dinheiro, ela estará com o encargo de prestar o
mais importante dos serviços públicos e passará a ser o verdadeiro governo. As empresas envolvidas
com essa produção deverão ser proibidas de falir, o que é uma contradição com seu caráter de empresa
particular. Isto significa que essas empresas serão, de fato, o governo, ainda que o poder de polícia, ao
que tudo indica, tenda a permanecer nas mãos do setor público.
A educação pública, a previdência social, os benefícios de urbanização - como a instalação de redes
de água, luz e esgotos -, estas e outras ações do governo são instrumentos na tarefa fundamental de
neutralizar o poder da seleção natural na sociedade humana e protegem contra esse poder tanto quanto
o telhado e os alicerces protegem contra as intempéries. Reduzir, pois, conscientemente, a capacidade
do governo é dar alguns passos de volta na direção do modo de vida do homem das cavernas, que não
havia inventado o Estado, mas tampouco houvera criado o mercado. Se não fosse para utilizarmos em
favor das populações os conhecimentos que vamos adquirindo acerca da natureza, então seria
preferível deixar de investigá-la, deixar de tentar decifrá-la. Economizaríamos tempo, dinheiro e
recursos humanos. Não é demais chamar a atenção para essa questão, pois existem ainda pessoas
defendendo que os seres humanos devam submeter-se aos efeitos da seleção natural, sem saber que
pensar desse jeito é demonstrar ser vítima da própria lei da seleção natural.
E já que falamos dessa lei, será sempre oportuno reafirmar que se um país é abastado de riquezas
naturais e é povoado por pessoas que morrem de fome, esse país, está vivendo à margem do tempo em
que se reconhece ser uma necessidade o uso adequado dos conhecimentos científicos.

A teoria e a lógica

As leis naturais, como aquela de Darwin, têm maior consistência e maior testabilidade que as leis das
ciências sociais. Este é um fato conhecido. Por exemplo, os estudantes anteriores a 1929 tiveram de
aprender como um conceito bem consolidado a famosa lei de Say, aquela que afirmava que o mercado
sempre cria a demanda necessária para sua própria produção. Se fosse uma lei natural ela poderia
querer dizer que a natureza sempre cria pássaros suficientes para comer toda a semente de capim que a
própria natureza produz. Infelizmente, esta analogia não foi estabelecida e as nações só puderam
aprender que a lei de Say era um erro quando estavam mergulhadas na crise.
O maior problema das pretensas leis das ciências sociais é que sua refutação quase sempre exige o
envolvimento de uma sociedade inteira, ou da humanidade como um todo. Se a opinião, com foros de
lei, ainda não foi testada, ainda não tem um exemplo histórico, então a sociedade corre o risco de a
qualquer momento servir de cobaia

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para os experimentos que confirmarão ou desmentirão a teoria. Quando a efetivação desses
experimentos leva a sociedade aos sacrifícios - e os exemplos não são poucos -, então é o momento de
refletir sobre a validade das experiências teóricas, que podem levar os mesmos resultados com custos
expressivamente mais baixos. Mas então desponta a falta de preparo dos que deveriam arcar com a
responsabilidade da aplicação dos referidos testes. A descrença na experiência teórica é exemplificada
na recepção aos resultados da ciência estatística. Desde a década de 1930 a estatística passou a ter o
status de ciência rigorosa, mas a maioria das pessoas descrê disso. Daí é que se continua exigindo o
recenseamento decenal da população, desprezando-se, ou relegando-se a plano secundário, os
resultados obtidos por amostragem, e que são a estatística propriamente dita. O censo é algo
dispendioso e dispensável nos dias atuais, mas continua sendo realizado, mesmo nos países mais
civilizados.
Como se pode então esperar que experiências teóricas possam ser aceitas como instrumento de
refutação de pretensas leis naturais ou sociais? Submeter proposições científicas aos testes para prova
ou refutação é um imperativo do próprio trabalho de pesquisa, mas a hierarquia dos métodos, quanto a
sua aceitabilidade, é algo que atrapalha em muito o aperfeiçoamento da ciência. Existem mesmo
refutações ilógicas aceitas como consistentes só porque partiram de experimentos práticos. É a
contrapartida a vários exemplos de experiências teóricas de estrutura lógica impecável, que não são
aceitas por não atingir o entendimento dos destinatários.
Karl Popper afirma que é obrigação do pesquisador submeter seus resultados à refutação. O que
Popper deixa de analisar é a dificuldade de se levar a efeito o teste adequado para cada situação. Às
vezes é-se obrigado a derrubar a parede da frente para se entrar no prédio, quando a porta do outro
lado já se encontrava aberta. (Esta imagem foi transmitida ao autor pelo professor Francisco Miraglia.)
Mas não se pense que seria preferível substituir a posição de Popper por qualquer outra atualmente
existente. A linha filosófica popperiana é filha do empirismo-lógico, que por sua vez deriva do
positivismo francês, do radicalismo inglês e do pragmatismo norte-americano.
O empirismo-lógico é, pois, a filosofia da ciência por excelência. Mesmo porque a maioria dos
lógico-empiricistas sempre foi composta por cientistas. O princípio mais conhecido do empirismo-
lógico é o que enuncia ser o estudo da linguagem da ciência o único papel da filosofia na atualidade.

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Cap. 6 O CAMINHO 6: CONGELAR TOTALMENTE OS PREÇOS

Exemplo: Grécia, 1986.


Vantagens: a) Poder envolver toda a população do país num projeto; b) ter no preço fixo um
guia para o controle da economia.
Defeitos: a) Imposição de uma situação em que os preços relativos estão desregulados; b)
dificuldade no controle da inflação de custos; c) impossibilidade de vencer a prática da
cobrança de ágio quando o impulso inflacionário não é eliminado.

O congelamento de preços é hoje a medida mais conhecida entre as que podem ser usadas no
combate à inflação. Desde meados dos anos 1980 passaram por essa experiência a Grécia, Israel, O
Brasil, a Argentina e o México, entre outros. No século XVIII, a Lei dos Preços Máximos, decretada
por Robespierre na fase final da Revolução francesa, pode ser entendida como uma avó dos
congelamentos de agora.
No Brasil a primeira experiência de congelamento foi a mais bem sucedida entre todas as que se lhe
seguiram depois e ocorreu em 28 de fevereiro de 1986, no chamado Plano Cruzado. O governo
preparou secretamente todo o projeto e só no dia de sua entrada em vigor é que a população soube do
que se tratava. As medidas incluíam: (a) congelamento total dos preços; (b) substituição da ORTN
mensal pela OTN; (c) gatilho salarial para inflação de 20%; (d) substituição da moeda ‘cruzeiro’ pela
moeda ‘cruzado’ que se iniciou mantendo paridade com o dólar americano; (e) instituição de uma
‘tablita’ de redução para valores que nos contratos embutiam uma inflação futura.
Descontando-se os dois meses iniciais, o ano de 1986 foi o ano economicamente mais feliz para os
brasileiros desde 1960, quando um índice de inflação anual de 25% fez a população se vingar e eleger à
presidência um candidato que pela primeira vez era de oposição, o inconstante Jânio Quadros. Pois
uma taxa de juros de meio por cento ao mês e mais a expectativa de continuidade da estabilidade
monetária, com o consequente crescimento do volume de comércio, fizeram com que o número de
empresas existentes no país mais que dobrasse do mês de março até o mês de dezembro.
Jamais se assistiu no Brasil a uma corrida às compras que tivesse atingido tal ponto. Para isso
concorriam dois grandes motivos, que eram, primeiro, a ausência de aumentos de preços e, segundo, a
divulgação, por parte dos sabotadores do plano, de notícias dando conta de que o congelamento se
encerraria dois meses depois. Os ministros Dilson Funaro e João Sayad, respectivamente da Fazenda e
do Planejamento, passaram a fazer apelos veementes à população para que economizassem nas
compras e mantivessem suas cadernetas de poupança, pois eram investimentos necessários à economia
do país. Um dos motivos mais profundos desses apelos não era explicitado, talvez por não acreditarem
que os contribuintes fossem capazes de compreender sua gravidade, e situava-se no desequilíbrio da
balança comercial. O Brasil, que desde o início de sua industrialização, em meados da década de 1960,
trabalhava para exportar muito mais que para atender o mercado interno, via-se agora numa situação
invertida. A avidez pelas compras fez com que o país exportasse menos e aumentasse o volume das
importações, o que rapidamente esvaziou o costumeiro superávit da balança.
Por causa dos baixos salários e da inflação, antes como depois do Plano Cruzado, a industrialização
trouxe ao Brasil uma situação sempre favorável no cômputo da balança comercial. Mas naquele ano de
1986 o que se observava era muito diferente. Esse problema e mais a queda no nível de poupança eram
os dois primeiros grandes perigos a pôr em risco a manutenção do Plano Cruzado.

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Mas a fé na continuidade do programa fez com que praticamente todo o país subestimasse a
presença do perigo. O presidente José Sarney obteve nas pesquisas de opinião um índice de aprovação
de 96%, número jamais conseguido antes por ele ou qualquer outro. Nada melhor que este índice,
quando o chefe de Estado esteve a um passo da unanimidade, reflete a euforia reinante.
A experiência de 1986 não era nova apenas para a juventude, que não conhecia a vida de Brasil sem
inflação, mas era também uma experiência inédita para os que traziam na memória os tempos de um
país que não havia chegado à crueza da inflação crônica. É que antes da década de 1960 tinha-se um
índice muito civilizado de inflação, mas num país essencialmente agrícola. Somente a partir de 1964 é
que a participação dos produtos industrializados ultrapassou o dos itens da agricultura no volume total
das exportações. Com isso, país industrializado sem inflação os brasileiros viram pela primeira vez
apenas no ano de 1986.
A justificativa apresentada pelos técnicos para a escolha do caminho do congelamento de preços era
a de que a inflação tinha um componente inercial, o que é indiscutível, e que ele só poderia ser
combatido através de um choque. A parte falha da filosofia do plano estava na ilusão, amplamente
divulgada, de que findo o componente inercial estaria eliminada a inflação e aí não se precisaria mais de
congelamento.
Ora, para se ter aquela certeza seria necessário saber antes o porquê de a inflação ter atingido níveis
tão altos - índice mensal de 15%. Mais que isso, seria necessário saber porque existe inflação crônica.
Do contrário, qualquer aposta otimista seria temerária. O congelamento não se propunha a derrubar o
impulso inflacionário, e não conseguiu mesmo fazê-lo. Os sinais ficaram evidentes quando a prática do
ágio invadiu a praça. Os varejistas juravam que os fornecedores já traziam as mercadorias com o ágio e
então o freguês tinha de pagar um excedente acima do preço de tabela. Isso aconteceu primeiro com a
cerveja, depois com o cigarro, os carros, os alimentos mais sofisticados e assim por diante. O outro
problema foram os respiros do congelamento, aquelas frestas que não foram atingidas pelas tabelas de
preços. Enquanto a alta geral de preços sofreu um incremento de 20% - de março até novembro -, os
aluguéis residenciais de contratos novos sofreram aumento de 2000%. Enquanto os aluguéis de
contratos já firmados mantinham-se com preços congelados, os aluguéis novos tiravam a diferença e
iam muito além disso. Também os serviços oferecidos por certas categorias de profissionais liberais
aproveitaram-se da brecha. Esses honorários deixados de fora das tabelas subiam por todos os outros
preços, obedecendo ao impulso inflacionário, já que nada os impedia de fazê-lo.
Era muito fácil enxergar que o plano não se sustentaria por muito tempo, mas para o governo a
revogação pura e simples do decreto do congelamento seria uma medida de um custo político
altíssimo. Seria necessário correr o risco de fazer correções de rota na economia e aí, se o plano
sobrevivesse, tudo estaria resolvido.
Já no mês de julho foi introduzido um empréstimo compulsório no preço dos combustíveis
automotivos e isso não provocou qualquer arranhão no congelamento, pois a população entendeu
aquele acréscimo como empréstimo mesmo e não como aumento de preços. E o sucesso dessa
operação animou o governo a finalmente tomar a decisão de introduzir a tão esperada correção de rota,
no dia seguinte ao das eleições para deputados, governadores e senadores, quando uma cartada
arriscada traria menos risco político caso fracassasse. A 16 de novembro de 1986 o governo anunciou
que estaria aumentando a alíquota do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para as bebidas e
os cigarros. É como se a mensagem governamental tivesse sido a seguinte: "Não quero revogar o
congelamento, mas estou dando

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um sinal para que o mercado o faça". O congelamento, de fato, jamais foi revogado, mas o comércio e
a indústria avançaram sobre ele e o espatifaram em poucos dias.
Essa circunstância, de o mercado ter levantado o congelamento sem que o governo o tivesse
consentido formalmente, levaria à impressão de que outro congelamento não seria tentado. Quem
pensou assim, no entanto, incorreu num risível engano. Outros congelamentos vieram.
A Grécia decretou também um congelamento de preços naquele ano de 1986 e o governo grego
também evitou revogar a medida. Ali bastou um congelamento para que a inflação descesse a níveis
civilizados, embora não tanto quanto os dos países da Europa do Norte. No Brasil, ao contrário,
depois do desastrado Plano Cruzado II, de 16 de novembro de 1986, responsável pelo desmonte do
primeiro Plano Cruzado, seguiu-se uma série de planos econômicos que traziam o congelamento,
sempre previamente negado, como um de seus pontos fundamentais. Vieram o Plano Bresser, o Plano
Verão - cópia do congelamento argentino chamado Plano Primavera –, o Plano Collor I – no dia da
posse de Fernando Collor na presidência – e o Plano Zélia ou Plano Collor II, este seguido do
desenvolvimento de uma enorme rejeição, por parte da sociedade, à ideia de novos congelamentos.
Israel é outro país que tendo decretado congelamento de preços à mesma época do Plano Cruzado
conseguiu um relativo êxito. Complementado apenas por mais um ajuste, o primeiro plano israelense
contra a inflação manteve-se em vigor sem sobressaltos. Por aí se percebe que a pressão é mais nos
países da América Latina.

Novo congelamento?

O economista alemão Rudiger Dornbusch, professor do MIT (Massachusetts Inst. of Technology),


em entrevista à Folha de S. Paulo (25.07.93) recomenda um novo congelamento para o Brasil, isso sem
antes deixar de atacar a política do ministro Fernando Henrique Cardoso. Um novo choque, diz ele, é
preferível a essa inflação de 30% ao mês. Prega ainda uma "privatização selvagem" e alerta para o fato
de que todos os golpes de Estado são feitos, no final das contas, pelas donas de casa. Olhando de um
outro país fica difícil entender porque o Brasil não resolveu seu problema inflacionário, pois se imagina
que os brasileiros estão dispostos a trocar esse problema por um outro de gravidade equivalente, como
já fez algumas vezes.
A pergunta mais frequente na cabeça dos brasileiros acerca da economia do país é: vale a pena mais
um sacrifício, se ele tem grande chance de significar apenas mais um aumento temporário da dor?
É certo que um congelamento bem administrado, embora invista contra a liberdade, pode aliviar as
dificuldades econômicas da população, mesmo sem eliminar o impulso inflacionário. Napoleão, que
dirigiu a França depois de Robespierre, revogou a Lei dos Preços Máximos (Lei do Máximo) quando
esta estava obsoleta. Fez isso e se saiu bem porque o impulso inflacionário havia sido extinto,
conforme destacaremos em capítulos posteriores deste trabalho.
O governo brasileiro pode decretar um congelamento, sem a perspectiva de abolir o impulso
inflacionário, e conseguir controlá-lo indefinidamente, mesmo tendo de enfrentar a oposição dos
liberais dogmáticos. A medida poderá ser revogada quando for eliminado o impulso e isso ficar
claramente visível no momento em que forem observadas as seguintes situações: a) não houver mais
nenhum setor marginal a ser enquadrado no controle de preços, estando 100% deles tabelados; b) não
houver mais cobrança de ágio, significando isso não haver mais necessidade de punição; c) não houver
qualquer setor

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reclamando por ter seus preços relativos em defasagem. Resolver esses três problemas dentro de um
congelamento significa na prática ter eliminado a inflação crônica.
Mas, diante da resistência que um congelamento pura e simples passou a enfrentar entre os
empresários brasileiros, parece ser mais conveniente aplicar, em vez dele, um ‘tabelamento-móvel’.
Seria cumprido um programa com os seguintes pontos:
1o) EXIGIR que cada setor elabore suas tabelas de preços mínimos e preços máximos, em ouro,
com um intervalo de, no máximo, 30% entre preço mínimo e preço máximo de cada mercadoria ou
serviço, e atribuir a câmaras de compensação o papel de fazer os futuros acertos que se fizerem
necessários nas tabelas.
2o) DIVULGAR as tabelas de preços mínimos e máximos no varejo e recomendar que a população
fiscalize seu cumprimento.
3o) ACOMPANHAR com vigor as variações de preços nos setores que pratiquem preços-de-
chantagem: a) habitação (locação, materiais, metro quadrado do solo), b) alimentação e utilidades
domésticas, c) serviços de saúde e mercadorias dessa área (odontológicos, médicos, farmacêuticos,
etc.), d) vestuário, e) serviços públicos (água, luz, transporte, etc.).
4o) DETERMINAR que o setor de locação, o mais perigoso, faça suas tabelas com os preços por
metro quadrado de área construída e por zonas socioeconômicas (zona A, zona B, zona C e zona D).
5o) PESQUISAR e divulgar bimestralmente a classificação das lojas que pratiquem os menores
preços em cada capital.
6 o) LIMITAR a taxa de juros a 12% - conforme a Constituição - sobre o grama de ouro (ou sobre
a Ufir, se o indexador for este).
7o) CONSIDERAR que a hiperinflação só é possível sobre o papel-moeda ou símbolo equivalente.
Esse tabelamento-móvel, que é um parente suave do congelamento de preços, tem algumas
vantagens. Uma é que não há imposição de preços relativos defasados. Outra é que se mantém um
razoável grau de liberdade para o mercado. A desvantagem é que pode demorar muito tempo para que
os efeitos positivos se tornem palpáveis, mas a economia, de um modo ou de outro, vai paulatinamente
sendo organizada.
Para evoluir - ou involuir, dependendo do ponto de vista - de tabelamento-móvel para congelamento,
basta um simples passo que é trocar nas tabelas o indexador pela moeda corrente.
Fica enfim um alerta às autoridades: se não se quiser atacar na raiz o impulso inflacionário, um
congelamento que não controle os preços de serviços de profissionais liberais e técnicos independentes
e os preços do metro quadrado do solo para locação e venda, esse congelamento será apenas mais um
grande transtorno na vida da população, porque, em vez de resolver, complicará mais ainda a situação
econômica do país.

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Cap. 7 O CAMINHO 7: ESTABELECER UM REGIME AUTORITÁRIO

Exemplo: Chile, 1973.


Vantagem: Sufocar, ainda que de forma violenta, o impulso inflacionário.
Defeitos: a) Ter de usar a violência para obter algum resultado; b) diminuição das liberdades;
c) desrespeito às garantias civis; d) desgaste da imagem do país no exterior.

Como virou moda falar em medidas amargas contra a inflação, este livro não poderia deixar de
incluir entre os dez caminhos focalizados aquele que traz em seu bojo a mais amarga de todas as
medidas imagináveis. Quem vive defendendo as amarguras como saída para algum problema deve estar
preparado para discutir o ápice dessa temeridade, que não tem outro nome senão o de ditadura.
Por acaso alguns remédios eficazes para certos males do corpo humano têm sabor amargo. Por uma
mera analogia, eivada de leviandade, costuma-se alardear a quatro ventos que a cura dos males sociais
depende também da aplicação de remédios amargos. A comparação entre o corpo humano e o corpo
social é uma imagem poética criada por Menênio Agripa, na Roma Antiga, durante um discurso
inflamado que visava levantar o moral de seus compatriotas. O apóstolo Paulo usou mais tarde a
mesma ideia nas suas epístolas, desta vez com objetivos evangelizantes. O discurso poético e o discurso
religioso têm a liberdade de utilizar esse tipo de metáfora. Mas isso não deve acontecer com o discurso
das ciências sociais, que deve evitar a imagem meramente pitoresca, ou meramente espirituosa, sem
relação racional ou factual com a ideia a ser exposta.
Contudo, há imagens fortes que podem ser usadas em contrapartida à adoção de raciocínios pouco
válidos. É o caso de se alertar para o perigo de certos remédios que, por serem fortes demais, podem
levar o doente à morte ou, ainda, chamar a atenção para o erro de se procurar amputar órgãos sãos
para curar uma doença que dependeria apenas de alguns chás para desaparecer. Não se pode chegar ao
exagero de dizer que uma ditadura é sempre desnecessária, pois, basta lembrar o fazendeiro Cincinatus
que, na Roma Antiga - novamente vamos à Roma Antiga -, de vez em quando era convocado ao
Senado para receber um mandato breve de ditador com a incumbência de reestabelecer a ordem no
país. Mas não se pode deixar de enxergar nesse expediente da convocatória a Cincinatus a ausência de
uma cultura de princípios jurídicos que só vários séculos mais tarde veio a consolidar-se. Estávamos ali
muito longe ainda do Código Justiniano, o conhecido Corpus Juris Civilis, ponto de partida da
jurisprudência acadêmica de hoje.
Se a inflação crônica, por mais aguda que seja, não chegou a caracterizar uma situação de anomia no
seio da sociedade, então, não há justificativa possível para a quebra da ordem constitucional. Que existe
a tentação mórbida de instalar regimes autoritários como remédio para a estabilização econômica, isso
todos sabem, pois a desvalorização acelerada da moeda só acontece diante da conjunção de dois
fenômenos, a saber, existência de pressão inflacionária e liberdade de aumentar preços. Eliminando-se
este segundo componente, deixa-se de registrar o índice indesejado. Mas, a que preço!
O grande erro de cálculo está em achar que vale a pena abrir mão da liberdade para se ter, em troca,
uma redução no índice da inflação. Para muitas pessoas trata-se de algo vantajoso, mas são pessoas que
só existem porque a sociedade tem doenças mais graves que a doença da desvalorização da moeda, que
no fim das contas é um mal de cura surpreendentemente fácil, desde que não se fique preso à ideia
errônea de que o problema é político, moral ou econômico. No

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caso brasileiro, se a questão é política, a ditadura e a república democrática nada puderam fazer; se é
moral, os militares, por mais que prendessem e reprimissem, nada conseguiram de duradouro; se é
econômica, os livre-docentes da USP, UNICAMP e FGV passaram ao largo da solução. A inflação
crônica tem aspectos políticos, morais e econômicos, mas nenhuma dessas três adjetivações ser a
justificativa básica para o problema. Se o fosse, o Brasil estaria perdido, sem a menor possibilidade de
recuperação.

Ditaduras sul-americanas

O general Pinochet gabava-se de ter sua ditadura baixado a inflação chilena para apenas 10% ao ano.
Esta é uma vitória que não merece grandes comemorações, pois esse índice não garante o fim da
inflação crônica, cujo rodapé situa-se numa taxa que vai dos 10% aos 15%. Para chegar a isso a
ditadura derramou o sangue e tirou a vida de um número enorme de bons cidadãos chilenos, sendo o
exemplo mais chocante o do compositor popular Victor Jara.
No Brasil, a gestão do general Emílio Garrastazu Médici, que se constituiu na fase mais ditatorial do
regime militar de 1964, sem que o presidente lançasse mão alguma vez dos poderes discricionários
previstos nos instrumentos de exceção que estavam em vigor - a estrutura previamente montada e a
fisionomia pétrea do chefe eram suficientes para garantir a gestão mais autoritária da segunda metade
do século XX no Brasil -, essa gestão conseguiu baixar o índice de inflação para 13%, número
registrado no ano de 1973. Também neste caso, foi muito sangue para quase nada. A inflação crônica
jamais abandonou o Brasil desde 1960, se pensarmos em termos de taxas anuais.
A chamada Revolução Redentora, nome oficioso entre os militares para a revolta de 1964, ocorreu
por causa da inflação, mas os argumentos usados baseavam-se nas acusações de corrupção e
esquerdismo no governo. Como é costume no Brasil, os fatos aconteceram de maneira paulatina e
tímida, com desfechos acanhados. As senhoras da classe média saíram às ruas em São Paulo
protestando contra supostas intenções do governo federal de mudar a Constituição para tornar possível
a decretação de uma reforma agrária. No dia 31 de março, um dos quatro exércitos começou a se
mobilizar e o presidente João Goulart, precipitadamente, refugiou-se no Uruguai. Já na madrugada do
1 de abril, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, decretou em Brasília a vacância do cargo
de presidente da República, sob a alegação registrada na frase: ‘O país está acéfalo’. Empossou-se assim
na chefia de Estado o então presidente da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzilli, deputado
por São Paulo. Finalmente, o homem que ocupou por mais vezes a presidência da República no Brasil
estava agora no cargo, não para cumprir mera substituição programada, como das outras vezes, mas
para suceder o presidente deposto. Isso, no entanto, durou só até o dia 11 de abril, quando o
Congresso Nacional, cumprindo uma decisão formalizada dois dias antes, elegeu à presidência da
República o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, autor de um manifesto que circulou
semanas antes criticando os rumos do governo Goulart. Iniciava-se nesse 11 de abril o regime militar
que vigoraria no Brasil por 20 anos.
Diferentemente do Chile, que mais tarde instalaria seu regime militar de 17 anos sempre dirigido pela
mesma pessoa, o Brasil, como depois a Argentina, manteve o princípio republicano de mandatos por
tempo limitado, graças ao liberalismo ilustrado do marechal constrangidamente convocado para
suceder Ranieri Mazzilli, e que só o fez mediante a exigência de não continuidade no cargo. Ele
terminaria o mandato iniciado por Jânio Quadros e, em 1966, um outro

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presidente teria de sucedê-lo. Mas Castello Branco teve seu mandato estendido por mais um ano e
governou até 15 de março de 1967, quando entregou o cargo ao marechal Arthur da Costa e Silva.
Com a morte por trombose em dezembro de 1969, este marechal foi sucedido por uma junta de três
militares que usurpara o cargo ao vice-presidente, o civil Pedro Aleixo. A essa altura o Brasil contava
com uma nova Constituição promulgada pelo Congresso Nacional em 1967 e com um instrumento de
exceção chamado Ato Institucional No 5, que concedia poderes absolutos ao presidente da República
no momento em que este assim desejasse. O papel da junta militar foi o de outorgar nova Constituição,
a de 1969, e impedir que o governo voltasse a ser civil. Um mês depois ela passava o cargo de
presidente ao general de quatro estrelas Emílio Garrastazu Médici, posteriormente sucedido pelo
general Ernesto Geisel, que, a seu tempo, fez-se suceder pelo general João Baptista de Oliveira
Figueiredo, o último presidente militar da Quarta República brasileira.

O engodo dos remédios amargos

O resultado dessa missão dos militares brasileiros, pelo menos no que se refere ao combate
antiinflacionário, foi muito pouco satisfatório. Os famosos remédios amargos funcionam aqui apenas
como anestesia, pois, cessados os efeitos, volta imediatamente o estado dolorido. Assim é que, tendo
recebido o governo das mãos do general Médici com a inflação na casa dos 13% anuais, o presidente
Geisel, por ter desencadeado a distensão política, entregou ao presidente Figueiredo um país com
inflação anual de 50%. E o governo Figueiredo não deixou por menos: trocou o nome ‘distensão
política’ para ‘abertura’ e, após cinco anos de reformas, deixou o país nas mãos do presidente José
Sarney - sem ter comparecido para entregar a faixa presidencial - com um índice de inflação anual de
240%.
O que se pode aprender disso é que o governo, na inflação crônica, se fechar não pode abrir, se
baixar salários não pode voltar a recompô-los, se tabelar preços não pode voltar a liberá-los. Mas a
parte menos informada da população acredita na eficiência saneadora dos governos militares, o que
explica as sucessivas vitórias obtidas por Pinochet nos plebiscitos que ele convocava no Chile durante
quase duas décadas. No Brasil muitos clamam pela volta da ditadura, mas os militares brasileiros têm
uma formação positivista e relutam em iniciar um processo do qual eles não têm informações
científicas que lhes permitam controlá-lo. Isso, contudo, não é garantia de estabilidade do regime civil,
já que também nas forças armadas existem homens impacientes e mesmo homens de pouca cultura
humanística, como é exemplo o general Galtieri, que lançou a juventude argentina de encontro à morte
na aventura estúpida de retomar da Inglaterra, mediante a força, as Ilhas Falkland-Malvinas um século
e meio depois de a Argentina ter perdido o domínio sobre elas e o novo colonizador deter claramente
o direito sobre a possessão com base no princípio de uti possidetis.
Quando o presidente Geisel implementava no Brasil a esperada distensão política, teve de enfrentar a
rebeldia de pelo menos dois oficiais que não aceitavam de nenhum modo o fim da ditadura militar. Um
deles foi o general Ednardo Dávila Mello, comandante do II Exército - São Paulo e Mato Grosso -,
que insistia em perpetuar os métodos de repressão desenvolvidos nos anos anteriores. Assim é que
foram mortos, ou ‘suicidados’, em São Paulo, o professor de jornalismo Wladimir Herzog e o
metalúrgico Manoel Fiel Filho, tendo este segundo caso levado Geisel a substituir o general Ednardo
pelo sorridente general Dilermando Gomes Monteiro. O outro grande rebelde foi o general Sylvio
Frota, que chegou a preparar um esquema para afastar o presidente Geisel e ocupar a presidência da
República. Também a este o presidente retirou da ativa.

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Por mais que a população desinformada espere a ditadura militar para resolver seus problemas
econômicos, este caminho 7 é o mais trágico e menos inteligente de todos. Contudo, pode sufocar a
inflação e mantê-la em índices baixos, enquanto mantiver a repressão.
Na França do final do século XVIII quem eliminou a inflação foi o calamitoso Robespierre, mas para
a população foi o general Napoleão Bonaparte. A turbulência interna foi trocada pelas guerras externas.
E Napoleão foi sem dúvida o general mais ilustrado a alcançar uma chefia de Estado.

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Cap. 8 O CAMINHO 8: DEVOLVER A CAPITAL

Exemplo: Versalhes-Paris, 1792.


Vantagem: Restitui a antiga classe culturalmente hegemônica, anti-inflacionária.
Defeito: O alto custo financeiro da devolução da administração.

Neste capítulo chegamos finalmente ao ponto em que se faz necessária a discussão sobre o impulso
inflacionário. Só assim se pode esclarecer a relação existente entre inflação e devolução da
administração de um país à capital antiga.
O impulso inflacionário é nada mais que o resultado da prática do desprezo ao símbolo engendrada a
partir da formação da classe culturalmente hegemônica em torno do chefe de Estado numa capital não-
secular.
Uma capital adquire status histórico apenas depois de um século abrigando a residência do chefe de
Estado - um século e meio se a nova capital for artificial. Antes disso ela é necessariamente uma capital
inflacionária.

O caso de Madri

Uma capital sem status tanto pode ser artificial como pode ser uma cidade já consolidada, que passa
num determinado momento a cumprir o papel de sede do Estado. Quando Felipe II mudou a capital
da Espanha para Madri, em 1561, esta cidade fundada pelos árabes já funcionava há 200 anos como
sede do poder legislativo. Nesse final do século XVI a Espanha era o império mais poderoso do
mundo, mas a adoção de uma capital sem status histórico quebrou o poderio desse país de maneira
espantosa. O país que dominava a Holanda e arredores, que possuía a quase totalidade dos territórios
americanos, que contava em seu patrimônio com a lendária Invencível Armada, esse país viu toda sua
riqueza ruir à sua volta, sem que ninguém descobrisse um meio de sustar a derrocada. O domínio sobre
a Holanda acabou, a Invencível Armada foi afundada perto do litoral da Inglaterra e o Brasil, que havia
passado a fazer parte do domínio espanhol, em poucas décadas teve de ser devolvido à condição de
colônia de Portugal. O Império Otomano, dos turcos, e depois o Império Britânico foram os
sucessores da Espanha nessa posição de país mais importante do mundo. Quando no final do século
XVII Madri adquiriu seu status histórico de capital, os ventos já não sopravam mais tão favoravelmente
ao bom desempenho da economia espanhola. Antes disso, durante todo um século, a culpa da inflação
recaiu sobre a produção das minas de prata de Potosí, na Bolívia. É estranho que o aumento da riqueza
possa alguma vez ser apontada como fator inflacionário, mesmo sendo essa riqueza um material usado
para confeccionar moeda, como é a prata.

Alexandria e Roma

Vários séculos antes da instalação da capital espanhola em Madri, tivemos o caso de Alexandria, a
primeira capital a destruir um império mundial. Alexandre Magno, educado por Aristóteles, conseguiu
conquistar todos os territórios conhecidos à sua época, mas, antes de cair doente e morrer aos 33 anos,
teve tempo de construir no litoral egípcio uma capital artificial para o império helênico, que então era o
império mundial. Dentro de algumas décadas, o povo helênico tornou-se escravo dos romanos. (Hoje,
a Grécia liberta do domínio turco adota o nome oficial de Democracia Helênica.)
Também o Império Romano, depois da divisão entre Roma e Constantinopla, andou trocando de
sede à medida que se desintegrava. Constantino,

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o Grande, reformou Bizâncio e chamou-a de Constantinopla, onde hoje está Istambul, e muita gente
até hoje confunde os motivos do paulatino afundamento de Roma, atribuindo essa queda à adoção do
cristianismo. Mas o que aconteceu é que o Império Romano do Ocidente transferiu sua capital para
Ravena no ano 404 d.C. e, apenas 72 anos depois, caiu sob o domínio dos ostrogodos.
É claro que se a relação intrínseca entre capital-secular e inflação crônica fosse conhecida em 1958,
Juscelino Kubitschek jamais teria instalado a presidência da República no planalto central de Goiás. Os
historiadores e os economistas sempre necessitaram de malabarismos mentais para explicar a crise
inevitavelmente associada a cada mudança de capital.

O caso de Washington

Caso típico é o da Guerra de Secessão dos Estados Unidos, ocorrida entre 1861 e 1865, seis décadas
depois da construção da capital Washington. Com a eleição de Abraham Lincoln, em 1861, onze
Estados do Sul decidiram formar uma federação independente, negando Washington e instalando sua
capital em Richmond, Virgínia. O decreto da abolição da escravatura foi assinado pelo presidente
Lincoln em 1862, quando a guerra já estava em andamento, portanto é questionável o papel sempre
alegado do problema da escravidão como estopim da crise.
Soubessem os americanos que tais tormentos tinham como fundo a luta necessária de um século e
meio para fazer com que sua capital artificial adquirisse status histórico anti-inflacionário, soubessem
disso e teriam desistido do intento já em 1812, quando, na guerra com os ingleses, estes destruíram por
incêndio a cidade de Washington.
Reconstruída a capital, o país continuou vivendo suas agruras do século XIX, amenizadas, é verdade,
pela instituição inteligente do padrão ouro para a moeda e pela descoberta, em 1848, das minas de ouro
da Califórnia.
Como saldo para o Brasil, resultante do sofrimento dos americanos, tem-se o surgimento da colônia
de imigrantes em São Paulo, formada por fugitivos da Guerra de Secessão e que teve sua concentração
maior na cidade depois chamada de Americana. O ganho com a chegada desses americanos está na
introdução no Estado de São Paulo de seu espírito empreendedor e industrializante que, ao lado de
colônias de imigrantes de outros países, transformou esse Estado-membro na locomotiva do Brasil. A
capital de São Paulo herdou inclusive a pronúncia do erre antes de consoante, que não é o erre velar
dos litorâneos nem o alveolar dos sertanejos, mas, sim, o erre norte-americano, pronunciado com uma
ligeira puxada da língua para dentro. Os descendentes desses imigrantes estão diluídos na população e
um dos poucos casos identificáveis é o da compositora popular Rita Lee Jones.

Outro caso de império

Essa diluição fenotípica é mais difícil de ocorrer com uma outra gente aportada no Brasil por
motivos semelhantes. Trata-se da colônia japonesa. Surpresa? Pois, sim. Se o Brasil conta hoje com a
presença de muitos descendentes de japoneses é porque o Japão atravessou um período de grandes
dificuldades econômicas.
A crise surgiu, como noutros casos, a partir de decisões lastreadas pelas melhores intenções. Em
1867, a tradição do xogunato chegou ao seu esgotamento e o imperador Mutsuhito, da dinastia Meiji,
passou a centralizar o poder de fato e de direito no Japão. Em 1869 transferiu a capital de Quioto para
Tóquio e ali instalou a residência imperial. Em 1871 tornou obrigatório o ensino em todo o país, o que
deixa transparecer sua visão de futuro e marca a base do que o país do sol nascente veio a ser no final
do século XX.

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Fica evidente a dedicação e a boa vontade do imperador, mas a capital ainda sem status histórico
começa pouco a pouco a minar a paciência dos japoneses com a crise econômica que ela, sem que a
população soubesse o motivo, fazia crescer. Quatro décadas depois da instalação de Tóquio-capital, os
filhos do Japão iniciam sua diáspora, levando seu modo de vida e a instrução então conquistada para
vários outros países.
Os japoneses radicados no Brasil mudaram a face do país, cuja população até o século XIX tinha
pouquíssima propensão aos estudos e ao trabalho. Não se pode deixar de registrar uma carta que o
físico David Bohm enviou a Albert Einstein em 1954 relatando sua dificuldade de adaptação ao país
como professor da Universidade de São Paulo. Dizia ter na sua chegada uma ideia completamente
diferente daquela que veio a formar depois sobre o que era o Brasil e a gente brasileira. ‘O nível
intelectual é muito baixo’, reclamava. Contava ainda que a mão de obra era muito barata, girando os
salários em torno da faixa dos 50 dólares mensais, e falava da notória prática de corrupção no governo,
citando o caso de Adhemar de Barros que, de posses modestas, depois de passar algum tempo no
governo do Estado de São Paulo tornou-se o homem mais rico da América do Sul. E o povo apoiava
dizendo que ele era o ‘rouba-mas-faz’. David Bohm também relatava a Einstein a quase inexistente
preocupação do governo em investir na pesquisa científica e na melhoria da educação. Einstein, em
resposta, aconselhava Bohm a mudar-se para Israel e perguntava-se: ‘por que o governo brasileiro não
segue o exemplo do Japão?’, lembrando que o Japão vinha de há muito envidando todos os esforços
no sentido de educar bem sua população. (A carta de Bohm a Einstein foi publicada na revista
CIÊNCIA HOJE, da SBPC, número de julho de 1993.)
Pois os japoneses, passado quase um século de sua chegada ao Brasil, conseguiram alterar em muito
o estilo de vida do país que adotaram. A corrupção existe, mas já sofre seus ataques; o ensino não é
bom, mas já está praticamente universalizado; o preconceito contra o trabalho diminuiu sensivelmente
desde a década de 1950. Não se pode esquecer que um nissei ocupou o cargo de ministro de Estado, o
engenheiro Shigeaki Ueki, participante do governo Geisel. E num país vizinho, o Peru, outro nissei,
Alberto Fujimori, chegou à presidência da República, ainda que este tenha lá suas dificuldades em
explicar uma fase autoritária que inaugurou em seu governo sob pretexto de ser essa a única maneira de
combater a guerrilha.

O caso russo

Sorte diferente daquela que os japoneses tiveram com sua nova capital tiveram os russos, que
experimentaram de forma redobrada o sabor das capitais inflacionárias. Em 1712, Pedro, o Grande,
terminou a construção de sua capital artificial no Báltico, a cidade de São Petersburgo, e para aí
transferiu a administração russa e a residência imperial. Nas muitas guerras externas que a Rússia
empreendeu no século XVIII, muitas vitórias foram obtidas, mas isso não deve servir de consolo a
quem pense que a Rússia só teve ganhos nesse período. Pois as anexações de territórios foram mais
uma obra devida à força guerreira do imperador Pedro I do que à situação econômica do país.
Serviram mais, isto sim, como uma compensação para os problemas internos.
São Petersburgo adquiriu seu status histórico de capital no início do século XIX e, embora a Rússia
tenha sofrido derrotas militares, os problemas não estavam mais relacionados à depreciação da moeda.
Mas, no início do século XX, veio a Revolução Russa e Lênin, tentando apagar a memória dos tempos
imperiais recentes, devolveu a capital a Moscou. Esta cidade, duzentos anos depois de ter deixado de
portar a residência do chefe de Estado russo, já havia perdido o status histórico de capital, o que
acontece já no fim do primeiro

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século. O resultado do ato de Lênin foi a hiperinflação, que veio a ser domada pela ditadura feroz de
Stálin, acompanhada por um congelamento tácito de preços que durou 70 anos.
Aqui temos a ilustração de um fato central na teoria do Efeito Versalhes-Weimar. Uma cidade que se
torna capital, abrigando a chefia do Estado, precisa de um século, ou um século e meio, para adquirir
seu status histórico. Ao mesmo tempo, a cidade que deixa de ser capital perde seu status histórico
dentro do mesmo prazo, isto é, um século.

O Efeito Versalhes-Weimar

A expressão ‘Efeito Versalhes-Weimar’ é a tradução sintética desse fenômeno de interrelação entre


implantação de nova capital e surgimento de impulso inflacionário.
À mesma época em que Pedro I estava construindo sua nova capital para a Rússia, Luís XIV estava
construindo na França o seu Palácio de Versalhes, num município vizinho a Paris. Não se tratava de
uma nova capital, mas apenas uma espécie de casa de campo para o lazer da família real. Com o tempo,
os cortesãos foram ocupando os arredores do palácio e, em algumas décadas, já não havia ali apenas
um prédio suntuoso, mas uma verdadeira cidade. Daí é que, chegando à época do neto do Rei Sol, o
desafortunado Luís XVI, os franceses enxergavam Versalhes como o centro único de poder, em lugar
de Paris. O palácio continuava apresentando seus ares bucólicos, mas toda a França sabia que a decisão
final para as grandes questões do país partia sempre de lá, dos aposentos do casal real.
A economia trocava de mãos com uma frequência que não deixa o Brasil dos anos 1990 sem
companhia. Sucediam-se ministros fisiocratas, ministros antifisiocratas, ministros conciliadores, mas
nenhum deles conseguia derrotar a inflação que comparada com os números de hoje parece ser
pequena, mas que para a época tinha índices assustadores. E revoltantes. O ministro Anne-Robert
Turgot foi um dos que se submeteram ao escárnio da história, tentando, com o peso de seu nome e
prestígio, derrubar a pressão inflacionária que tomou conta do país. Certamente só obteve fracassos.
Mais a inflação crescia, mais as classes populares se empobreciam e mais os letrados e políticos
obrigavam Luís XVI a ceder poderes, julgando estar nisso a solução da crise. De perda em perda, o
monarca assistiu no dia 14 de julho de 1789 à tomada da Bastilha, a prisão que representava o último
baluarte de suas prerrogativas reais, embora tenha escrito em seu diário apenas a palavra ‘nada’, ato que
as más línguas dizem referir-se, na realidade, ao seu desempenho sexual junto a Maria Antonieta. Como
se sabe, iniciou-se nesse dia a Idade Moderna da história, pois ali estava presente o início da Revolução
Francesa. É fato que Portugal desfechara 30 anos antes uma revolução muito parecida com a que viria
a ser esta da França, mas como não se conseguiu a mesma mobilização do terceiro estado - das classes
dos que não tinham título de nobreza ou de sacerdócio -, nem se atingiu o estado de carnificina que os
franceses tiveram de experimentar, aquela revolução lusitana ficou como um marco apenas dentro das
fronteiras do país, embora tenha inspirado a da França.
O inusitado grau de violência da Revolução Francesa é o que chamou a atenção do mundo para os
vários avanços políticos registrados ali. Iniciava-se naqueles momentos a implantação da era
democrática no território do antigo Sacro Império Romano-Germânico, a partir de acontecimentos que
podem ser destacados nesta ordem: 1a) a Declaração dos Direitos do Homem, que, embora seja
tributária de uma conceituação filosófica discutível - por mais que se negue, a noção de jus naturalis tem
fundo teológico -, representa um marco sem par na história das liberdades civis; 2a) o fim da realeza,
da nobreza e do poder temporal do clero, com o que se inaugura a isonomia na sociedade

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humana e consagra-se a democracia conforme definida por Espinosa: o regime político no qual a
ocupação de cargos independe do nascimento; 3a) a implementação do projeto de ensino gratuito,
regular e equivalente para todos os cidadãos, elaborado e publicado por Condorcet, antes de sua fuga
e morte.
Numa certa madrugada de 1972, os revolucionários, em grande número, partiram em caminhada de
Paris até o Palácio de Versalhes e de lá retiraram o casal real, trazendo-o para Paris, mantendo-o depois
em prisão domiciliar, no Palácio do Louvre. Cessava naquele momento aquilo que após dois séculos
seria chamado, primeiro, de Efeito Versalhes e depois, de Efeito Versalhes-Weimar. Luís XVI era
agora refém do poder revolucionário, numa consequência natural da aceitação, no ano anterior, do
sistema parlamentar que a Revolução implantava. Já no início de 1792, Luís XVI assinou chorando a
declaração de guerra contra a Áustria, país de sua esposa, sancionando a decisão da maioria girondina,
que pregava a guerra externa contra os inimigos da Revolução.
Instalado agora no Palácio do Louvre, Luís XVI teria salvo a monarquia e a vida se não tivesse
inventado de empreender a fuga para Varennes, de onde se diz que pretenderia chegar à Bélgica e de
lá transferir-se para a Áustria. Preso em Varennes, foi levado de volta a Paris, onde mais tarde passou
pelo julgamento da Assembleia Nacional, que o condenara à morte. Em 21 de janeiro de 1793, Luís
XVI foi decapitado em praça pública, aos 34 anos de idade.
Durante a fase do terror e da guerra civil que se seguiu à execução do rei e também da rainha, o líder
Maximilien Robespierre tomou a famosa decisão de decretar a ‘Lei dos Preços Máximos’, necessária
para abolir a pressão econômica conhecida hoje como componente inercial. Em 27 de julho de 1794,
Robespierre foi também executado, como meio de se dar um fim à fase do terror, e não pôde usufruir
a estabilidade monetária que se seguiria.

Moscou, Weimar e Nanquim

É óbvio que se fosse fácil enxergar o significado do Efeito Versalhes-Weimar na vida monetária de
um país, não teria havido a construção de Washington, no século XVIII, nem teriam sido
transformadas em capitais no século XX as cidades de Weimar, Nanquim e Brasília, nem teria ocorrido
a devolução da capital russa a Moscou.
Pois quando Lênin transferiu de volta a sede do governo russo de São Petersburgo para Moscou, esta
cidade, tendo perdido a condição de capital do império há dois séculos, já não detinha mais o status de
capital. O resultado, como que para ironizar as esperanças revolucionárias, foi a imediata hiperinflação
e a guerra civil.
O caso mais notório de hiperinflação é o da Alemanha. Weimar, que, como Versalhes, não chegou a
tornar-se oficialmente capital, foi na prática o centro da república alemã no seu nascedouro, pois o país
passou a ser conhecido como República de Weimar, situação que durou de 1919 a 1933. Os mineiros
do Vale do Ruhr é que ficaram como culpados do surgimento da hiperinflação, pois exigiram reposição
das perdas salariais e foram contemplados, uma vez que a vida estava sendo gerida por uma
Constituição progressista. Mas os mineiros, quando exigiram reajuste de salários não estavam
inventando a inflação, senão apenas tentando sobreviver dentro dela.
A inflação crônica do papel-moeda corresponde à expectativa de reposição das cédulas no mercado,
mas da hiperinflação de Weimar contam-se histórias quase inacreditáveis, como a de que as pessoas
iam à mercearia para fazer compras levando uma carroça cheia de dinheiro e também aquela de que
uma mesma mercadoria tinha seus preços aumentados várias vezes no mesmo dia. A proibição do
armamento é o que livrou a República da guerra civil, mas as cartas estavam colocadas.

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Enfim, Hitler, logo depois de nomeado pelo presidente Hindenburg em 1933 para chefiar o governo
tratou de apagar da história o que quer que se parecesse com República de Weimar, e usando o
caminho do regime autoritário extinguiu a inflação crônica.
O caso da China foi ainda mais difícil e ocupou os primeiros 38 anos da República. Em 1911, com o
fim da monarquia, a capital chinesa foi instalada na cidade de Nanquim (Chungkue) pelo presidente
Sun Yatsen e lá permaneceu até 1946. A hiperinflação e as guerras civis não se fizeram esperar e logo a
China estava mergulhada na crise mais longa de sua história. Em 1946, Chiang Kai-Chek, vitorioso na
guerra, retirou a capital de Nanquim e a levou para Pequim, mas, por não conseguir debelar a crise em
tempo hábil, em 1949 o exército de Mao Tsé-Tung (Mao Zedong) expulsou-o para a ilha de Formosa,
onde ele veio a criar a República de Taiwan.

O caso mais recente

Nove anos depois de ter a Revolução Chinesa resolvido seu problema inflacionário através de uma
ditadura, um outro país iniciava sua longa trajetória de sacrifícios sob o Efeito Versalhes-Weimar. Pois
a construção de Brasília iniciou-se em 1958 para que fosse cumprido um plano lançado 140 anos antes
pelo Patriarca da Independência do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva.
Contra a resistência do Fundo Monetário Internacional (FMI) e a União Democrática Nacional
(UDN), partido de oposição, o presidente Juscelino Kubitschek decidiu transferir a capital do Rio de
Janeiro para Brasília sem ter ideia do que o esperava a partir dessa investida arrojada. Em 21 de abril de
1960, Brasília foi inaugurada, abrigando a residência do presidente da República e desde então os
brasileiros passaram a enfrentar a sucessão de crises reservadas aos países que se lançam nessa trilha.
Certamente o Brasil passou a ser o maior laboratório do mundo destinado a experiências - algumas
macabras - contra o impulso inflacionário. O número de medidas duras aplicadas ao país ultrapassou a
casa dos 30 e o arsenal de instrumentos ousados que os economistas traziam a tiracolo foi finalmente
esgotado. Recursos já gastos passaram a ser requentados e reutilizados sem que qualquer resultado
duradouro se fizesse sentir.
A guerra civil costumeira nestas situações foi evitada em 1964 quando o presidente João Goulart
escolheu fugir do país, em vez de mandar para as ruas as tropas que garantiriam, com alguma
probabilidade, a continuidade de seu governo.
Mas entre as tentativas de resolver o problema contou-se com o regime militar de 20 anos, que teve
de enfrentar, em sua fase mais repressiva, a guerrilha urbana e a guerrilha do Araguaia. Se não se teve
uma guerra civil nos moldes tradicionais, as guerrilhas estiveram aí marcando sua posição na história.
Como uma agravante, registre-se que tendo o Brasil uma inegável liderança sobre os países irmãos da
América Latina até os primeiros anos da nova capital, o impulso inflacionário alastrou-se pelas
vizinhanças. E estes países só começaram a livrar-se da inflação quando renegaram a liderança do Brasil
e ligaram-se diretamente aos Estados Unidos.
O caminho 8 para abolir a inflação é o primeiro desta série que abole o impulso inflacionário.
Certamente, deve-se compô-lo com algum outro método que derrube a inflação inercial, para que os
efeitos venham com maior rapidez.
Enquanto a transferência não completa um século, devolver a capital à cidade de onde ela foi retirada
é um método seguro para eliminar o impulso inflacionário. Mas não é ainda o mais viável.

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Cap. 9 O CAMINHO 9: MANTER A CHEFIA DO ESTADO COM UM ESTRANGEIRO

Exemplo: Austrália.
Vantagens: a) O país não precisa mais se preocupar com escolha de chefe de Estado, encargo
que ficará com o país sede; b) os índices de inflação tendem a baixar e equiparar-se aos do país
em que reside o chefe de Estado.
Defeito: Não se saber até que ponto o país é independente, ainda mais se o sistema de governo
não for parlamentar.

O caminho 9 é o tipo de proposta que mais dificilmente teria aceitação no Brasil, pois só em tom de
brincadeira chega-se a cogitar da volta da chefia do Estado às mãos do presidente de Portugal. O
orgulho nacional preferiu regimes militares, choques heterodoxos sobre os preços, sequestros de
poupanças e outras tentativas mal-conduzidas de consertar o país a submeter-se de novo, em qualquer
grau que fosse, a um chefe de Estado ultramarino.
Uma possibilidade talvez menos humilhante seria entregar a chefia de Estado ao presidente norte-
americano. Para não voltar a ser colônia de fato, um novo plebiscito deveria ser convocado para saber
se, neste caso, a população aceitaria o parlamentarismo. Uma das vantagens de entregar a presidência
ao chefe de Estado norte-americano é que não haveria necessidade de dolarizar a economia, pois a
moeda nacional encontraria finalmente o caminho de sua estabilização.
O México está em fase de acerto final para o tratado de livre comércio com os Estados Unidos e o
Canadá, formando o mercado comum da América do Norte. O Brasil, tendo como chefe de Estado o
presidente americano, estaria quase que automaticamente incluído neste acordo, chamado Nafta
(North American Free Trade Association). As vantagens na esfera econômica seriam imensas.
Deve estar claro para todos que enquanto conviva com inflação crônica, o Brasil está descartado da
participação, em igualdade de condições, em qualquer formação de mercado com moeda única, porque
este país seria um inegável fator de corrosão.
E deve estar claro também que entregar pacífica e conscientemente a chefia do Estado a um
presidente estrangeiro como meio de derrubar a inflação seria o ato de desespero mais extremo que os
brasileiros poderiam praticar.

Na Comunidade Britânica?

Vários países da Comunidade Britânica, que conta com 47 membros, mantém como chefe de Estado
a rainha Elizabeth II. Entre estes estão o Canadá, as Ilhas Salomão, a Austrália, Papua Nova Guiné e o
país socialmente mais avançado do hemisfério sul, a Nova Zelândia. Se alguém entender que o Brasil
deve pedir aos ingleses para passar a fazer parte desse rol deve levar como um dos argumentos o fato
de que os brasileiros já arranham um pouco da língua inglesa, além de lembrar, é claro, que o maior
país da latinidade de hoje é ainda, apesar de toda a quebra, o segundo maior mercado das Américas,
pelo menos potencialmente. E deve chamar a atenção para o fato de que o território dos doze países da
Comunidade Europeia perfaz apenas 27%, ou pouco mais que um quarto, da área do Brasil, país que
não possui desertos, geleiras, vulcões ou terremotos de monta.
A Austrália seria o grande exemplo para o Brasil. Quarenta anos antes de Brasília, construiu sua
capital artificial, Canberra, e os problemas econômicos advindos do gasto com a construção e a
mudança da administração não chegaram a trazer nenhuma dor de cabeça adicional aos australianos.
Está aí um argumento fulminante contra os

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apressados que explicaram a alta recorde no índice inflacionário de 1960 como consequência pura e
simples do dispêndio de verbas públicas para a construção de Brasília. Os políticos do Brasil
precisariam ser absolutamente mais perdulários que os australianos, e se há um defeito que não pode
ser atribuído aos brasileiros é este. Levar vantagem é ordem inaugurada no país em 1500, mas a
gastança não está entre as características básicas do povo tupiniquim. O que não quer dizer que se
tenha uma cultura de rejeição ao desperdício, pelo contrário. Só recentemente é que começaram a
surgir campanhas contra esse mal. No Brasil, os gastos sempre foram pequenos, mas o desperdício
chega a atingir quase metade do total desses gastos. É mais um problema para a área da educação. Mas
isso não pesa contra a conclusão sobre a comparação com a Austrália.
Se, como a Austrália, o Brasil tivesse construído sua capital amparando-se sob a guarda do poder
aparentemente decorativo do chefe de Estado Britânico, então não teria sido verificada qualquer alta
considerável na taxa de inflação e os brasileiros não teriam sido submetidos à terrível crise que se
seguiu à inauguração da capital do cerrado. Brasília não seria culpada de nada, os gastos de Juscelino
Kubitschek teriam passado praticamente despercebidos e a história brasileira teria sido muito diferente
e, pelo menos no campo econômico, muito mais auspiciosa.
Mas como a economia não deve preocupar-se apenas com vantagens pecuniárias, passemos ao
capítulo em que ser apresentado o último caminho para a eliminação da inflação crônica.

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Cap. 10 O CAMINHO 10: INSTALAR A PRESIDÊNCIA NA VELHA CAPITAL

Exemplo: República Federal da Alemanha, 1949-1990.


Vantagens: a) A União tem gastos pequenos para manter o presidente na capital antiga; b)
elimina-se por completo o impulso inflacionário.
Defeito: O presidente fica longe do restante da administração, mas isso, longe de ser um
problema, é uma solução.

Neste décimo-primeiro capítulo (começamos no zero!) ficamos sabendo como foi possível à
República Federal da Alemanha resolver seus problemas econômicos mesmo sendo privada de utilizar
sua capital tradicional para abrigar a administração da federação. Como Berlim foi dividida,
inviabilizando a instalação da capital da República, os alemães decidiram não repetir a saga de Weimar.
Escolheram Bonn para capital, uma cidade que já não detinha status histórico para esse fim, mas não
caíram na tentação de fundar a ‘República de Bonn’, pois decidiram instalar a residência do presidente
da República em Berlim. Este é o segredo.
Durante a campanha do plebiscito sobre forma e sistema de governo no Brasil, em 1993, foi dito
inúmeras vezes na televisão pelos defensores do presidencialismo, afinal vitorioso - a proposta
parlamentarista não trazia um bom modelo de parlamentarismo, pois insistia mais nos defeitos que nas
vantagens desse sistema -, que no parlamentarismo ‘os deputados é que mandam’, que o presidente não
tem poder algum e outras tolices afins. Para quem não conhecia os fatos e não é portador de cegueira
suficiente que o impeça de ver a verdade nova finalmente vindo à tona, está agora mais que
sacramentado que tanto no presidencialismo quanto no parlamentarismo o chefe supremo da
nacionalidade é o presidente da República e o seu poder está acima de qualquer outro dentro das
fronteiras do país, exercendo papel visível, constitucional, e também papéis invisíveis que só as
evidências dos fatos concretos podem atestar.
Pois as evidências são estas: a) Construa ou encontre uma nova capital para um país de moeda estável
e instale lá a residência do chefe de Estado. O surgimento do surto inflacionário é fatal. É preciso usar
de novo cobaias humanas para testar isso? A história não ensina? Versalhes, Nanquim, Weimar e
Brasília são coincidências casuais? b) Agora faça uma experiência ligeiramente diferente, que consiste
em transferir a capital para uma cidade qualquer, mas mantendo a residência do chefe de Estado na
capital tradicional. O resultado é que não se verificará o aparecimento da inflação crônica no mercado.
Os exemplos históricos são (1a) a Alemanha, que manteve o presidente em Berlim enquanto sua
administração necessitou permanecer em Bonn; (2a) a Austrália, que teve sempre seu chefe de Estado
em Londres e (3a) a Índia, que construiu sua capital Nova Déli na década de 1950, mas manteve a
residência do presidente da República em Déli.

Como implementar a ideia

Pode-se argumentar que os três exemplos citados de países que adotaram nova capital e não
produziram inflação crônica, por manter o chefe de Estado na capital antiga, são exemplos de sistemas
parlamentaristas e não se aplicariam ao Brasil. Essa argumentação seria razoável antes do século XX,
quando não existia avião, nem redes de computadores, nem fax, nem telefone, nem videofone, nem
TGV (Trem de Grande Velocidade), nem TV, nem videocassete. Com todos estes recursos, é mais
conveniente que o presidente atue longe do

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local da administração do que na presença de seus ministros e dos poderes legislativo e judiciário. O
respeito ao chefe de Estado mantém-se sem risco de desgaste e a própria figura política do presidente é
preservada tanto quanto no parlamentarismo, se não for mais que isso.
Contando com o uso do fax, o presidente pode tomar contacto, a todo momento, com a totalidade
dos papéis que lhe chegariam às mãos se ele despachasse na capital administrativa. Quanto à
possibilidade de os ministros enganarem o presidente, isso eles fazem com mais facilidade e frequência
quando estão perto do chefe. De qualquer modo, reuniões ministeriais com o presidente podem
continuar acontecendo, com periodicidade mensal, quinzenal ou mesmo semanal.
Dos novos recursos tecnológicos à disposição, o Brasil não tem ainda o TGV, o famoso trem-bala
dos franceses e dos japoneses, mas se ele não chegou ainda ao país, o único culpado disso é a inflação
crônica. Eliminada essa praga, o Brasil pode começar a realizar todos os sonhos coletivos que só
dependem de dinheiro.
Só assim o sonho de Dom Bosco, dando conta de que uma civilização formada à beira de um lago,
no centro da América do Sul, parecida com um verdadeiro Éden, onde jorra leite e mel, só assim este
sonho passa a refletir alguma realidade. Do contrário, Brasília dará certo somente depois do ano 2100.
Quem tiver muita paciência e saúde pode esperar.

A inflação crônica o que é

Mas então como se cria o tal impulso inflacionário, que a simples mudança da residência do chefe
esvazia como a um balãozinho de brinquedo em contacto com a ponta de um alfinete?
Trata-se de um fenômeno antes psicossocial que econômico. Em torno da residência do chefe de
Estado forma-se sempre a classe culturalmente hegemônica, a classe cujo comportamento passa a ser
necessariamente o modelo de vida de toda a sociedade, tanto nacional quanto de países vizinhos que
aceitem a liderança do país em questão. Ora, para o inconsciente dos cidadãos, essa classe só consegue
desenvolver um comportamento non-nouveau-riche, não-inflacionário, depois de passado um século e
meio de sua instauração, ou um século de sua restauração, sendo este o caso de Moscou.
Inflação em si é simplesmente uma alteração na abstração do símbolo monetário provocada por
desprezo a esse símbolo.
Consequentemente, a repressão consegue apenas diminuir a taxa de inflação, mas não a anula. A
busca desesperada do corte de gastos públicos é também uma corrida inglória, pois, além de não ser
esse o tipo de exemplo que faz a inflação baixar, a alta taxa de inflação é a maior responsável pelo
inevitável aumento do déficit público. É como querer secar a água do monjolo sem cortar o curso de
água.
Ao contrário, sem o impulso inflacionário, qualquer política que ataque o componente inercial da
inflação será suficiente para resolver de uma vez por todas o problema. Pois uma vez que o índice
inflacionário, nesta situação, baixe a um valor inferior ao índice crítico de inflação crônica, o próprio
mercado encarrega-se de puxar para baixo os preços, através de um mecanismo de compensação
imediata. Quando o índice inflacionário é alto, acima dos 15% anuais, passa a ser mais vantajoso a um
produtor ou comerciante aumentar os preços, pois, mesmo que o nível de vendas diminua, o fato de
vender por um preço consideravelmente mais alto compensa a queda nas vendagens. Inversamente,
para um índice inflacionário inferior a 10% ao ano, é mais conveniente para o vendedor que ele reduza
seus preços, para vender mais, do que elevar esses preços, com um índice agora pequeno, e correr o
risco de vender pouco, tomando

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prejuízo. Tanto a alimentação da inflação que esteja acima do índice crítico quanto a regulagem da
estabilização quando a taxa inflacionária está abaixo desse índice são processos que ocorrem
automaticamente no interior do mercado.
Para se ter garantia de estar sempre abaixo do índice crítico é necessário abolir o impulso
inflacionário. No caso brasileiro, o caminho possível não é devolver a capital administrativa, mas
instalar a presidência da República no Rio de Janeiro, mantendo em Brasília os ministérios, o poder
legislativo e o poder judiciário.
Há uma luta inconsciente pela não-diminuição do valor da cidade de Brasília e um momento dessa
batalha é o tombamento dela pela Unesco como monumento cultural da humanidade.
Juscelino Kubitschek antes de construir Brasília fez um primeiro ensaio como prefeito da capital
mineira na década de 1940, quando urbanizou o bairro da Pampulha. Para a construção da Igreja da
Pampulha ele não se contentou em contratar apenas Oscar Niemeyer, responsável pelo desenho
arquitetônico, mas empregou também naquela obra três outros grandes artistas de renome. Burle Marx
foi encarregado da paisagem externa, Ceschiati ficou responsável pelo alto-relevo em cobre exposto
num dos lados da entrada do prédio e Portinari cuidou dos desenhos nas paredes externas, dos quadros
internos e do mural pintado no lugar que nas igrejas tradicionais de catolicismo romano é ocupado pelo
crucifixo ou por estátuas de santos, atrás do altar. Ali Portinari pintou uma paisagem com São
Francisco de Assis. A igreja, além de ser uma obra modernista, é um exemplo de simplicidade e
despojamento, ao contrário das outras centenas de igrejas construídas nos séculos precedentes nas
cidades históricas de Minas Gerais.
Essa experiência e esse apego à arte Kubitschek levou para Brasília e conseguiu construir a cidade
mais comprometida com os conceitos da arte moderna de todas as que se conhecem no mundo.
É compreensível que se procure preservar os privilégios concedidos a essa cidade no seu nascedouro,
mas é inconcebível não querer salvá-la, depois de saber que para isto basta a devolução da residência
presidencial à cidade do Rio.
Essa medida, que parece banal aos olhos daqueles que já nasceram sabendo de tudo e acham que não
precisam ver para crer - mas preferem aquelas medidas amargas, que depois de aplicadas tornam a vida
mais amarga que antes -, essa medida, além de não conter qualquer proposta de sacrifícios, é a única
viável na direção do reflorescimento do Brasil.
As autoridades brasileiras podem preferir, vítimas de efeito reverso, manter sua insistência fanática na
imposição de sacrifícios à sociedade, mas o autor deste livro sabe perfeitamente que está aqui lançando
a base para que se evite, a partir do século XXI, submeter algum outro país aos caprichos
megalomaníacos de insanos que queiram experimentar o Efeito Versalhes-Weimar.

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Cap. 11 A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE EFEITO VERSALHES-WEIMAR

Neste capítulo final veremos uma coletânea de textos escritos ao longo dos 16 anos do
desenvolvimento do conceito de Efeito Versalhes-Weimar, sendo alguns deles ensaios e outros cartas.

A) A classe média e o poder

(Este pequeno ensaio, escrito a 11 de março de 1977, mostra como a compreensão da noção
contemporânea de classe média está na base do tema deste livro. Note que a linguagem contém
uma terminologia datada, que o autor em breve reelaboraria.)

Fonte de informação. Na matéria especial da revista Veja, ‘A Classe Média Brasileira’ (set./1975),
encontramos como meio de estudar a classe tratada uma dissecação particularmente notável no que
tange à compreensão da sustentação do poder no Brasil atual. Trata-se daquela subdivisão da classe
média em cinco segmentos, os quais incluem as chamadas classe média nova e classe média tradicional.
Olhar por outro ângulo. Achamos que é possível separar a classe média brasileira apenas nesses dois
grandes segmentos: classe média nova e classe média tradicional. Uma vez que o atual estágio do
capitalismo descarta a possibilidade de se entender a pequena burguesia como aquela classe que detém
a propriedade de imóveis e indústrias de pequeno porte, desde que a distribuição de salários criou uma
classe muito mais significativa em termos psicossociológicos, ou seja, essa classe dos que recebem altos
salários e que portanto adquirem novos padrões de vida equivalentes, economicamente pelo menos,
aos daquela classe entendida antes como pequeno-burguesa, torna-se imperativo considerar a força
política desses ‘bem-assalariados’ como determinante dos rumos tomados pelo país nestes últimos
anos.
Formação das classes. Dado que o sempre crescente empobrecimento dos indivíduos atinge
principalmente a pequena burguesia rural - e isto se dá na medida em que as famílias perdem apoio
político -, é fácil perceber que é essa classe que supre no mercado as necessidades de mão-de-obra não-
qualificada, sobrando-lhe pouca possibilidade de introduzir elementos seus entre os ‘bem-assalariados’.
Isso nos leva a concluir que a classe média nova arregimenta seus membros principalmente nos setores
urbanos.
O poder e os novos. Pretendemos defender o ponto de vista de que a categoria dos ‘bem-assalariados’
contém hoje mais elementos da classe média nova que da classe média tradicional, o que implica o fato
de estarmos sendo governados, em termos de peso na balança, por essa classe média nova, que não se
caracteriza apenas pela recentidade de seu ingresso na faixa econômica que hoje a comporta, mas, sim,
pelo casamento de sua cultura - maneiras, costumes, aspirações - com as possibilidades de realizações
de que ela dispõe nesta sua nova posição. Um exemplo muito conhecido de tal fenômeno é o
comportamento do turista brasileiro no exterior hoje. Internamente, isto se dá no nível das compras,
onde é possível identificarmos a origem de um indivíduo a partir de suas preferências.
O papel da escola. O meio que se evidencia como o mais eficiente para selecionar indivíduos,
classificando-os economicamente, é o sistema educacional. O tiro pela culatra, no entanto, não tarda a
explodir e atualmente deparamo-nos com o grave problema da incapacidade linguística dos novos
bacharéis, problema este encoberto sob a capa de baixo nível de ensino, fenômeno que por sua vez
tem sido erroneamente atribuído aos efeitos da televisão e de outros meios de comunicação de massa,
quando na realidade tais meios são responsáveis

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apenas por um direcionamento ideológico da população através da seleção e da disposição que acabam
sendo feitas da informação no intuito de consolidar ou de pelo menos não abalar o esquema tão
cuidadosamente montado da sociedade no capitalismo periférico.
Resultado da educação. A escola, portanto, encontra sua negação quando é usada para introduzir os
indivíduos em dadas classes sociais que é o que acontece no caso brasileiro. Adota ela sua negação
quando, sem levar em conta a situação social das pessoas – social no sentido amplo, que engloba
cultura, economia, etc. -, procura ministrar-lhes um conjunto de regras que ao ir de encontro ao motivo
que faz com que cada um ocupe o banco escolar - e vai encontrar como motivo predominante o desejo
de ascensão social - toma feições disformes dentro do espírito de cada indivíduo.
O objetivo da escola. É claro que a escola deve formar as gerações transmitindo-lhe um mesmo conjunto
de informações dado que o acervo cultural da humanidade precisa ser compartilhado por todos, mas é
claro também que isto só faz sentido na medida em que o objetivo da escola seja o fim das diferenças
sociais e não a sua cristalização, caso em que, como dissemos, ela se nega.
Consequências. Assim temos em nosso país um sistema escolar que, em lugar de educar os cidadãos,
diploma-os. Uma consequência imediata desta situação é a ideologia refletida na posição que tomarão
as diversas categorias profissionais - e isto constitui o âmago do presente texto - diante de problemas
concretos que surgirão e lhe dirão respeito. Presenciamos nestes dias um caso muito significativo que é
o ingresso de um conhecido apresentador de televisão no ramo da indústria da doença. Esse
apresentador fez nada menos que criar uma empresa de atendimento médico sem que a categoria dos
profissionais desse campo tenha conseguido encontrar forças para impedir a estranheza de tal situação.
Isto significa que entre os médicos deve estar havendo, em maioria, profissionais que, se não apoiam o
que está por trás de tudo isso, pelo menos não se preocupam em tornar pública a negação do seu
apoio. Cremos que há 10 anos não haveria conivência dos profissionais numa situação assim, pelo
menos por uma questão de dignidade, quando não por motivos doutrinários mesmo.
Tendência das categorias. O que está acontecendo agora com essa categoria profissional será repetido em
outros campos e aí veremos aflorar cada vez mais a denúncia dolorosa de que o poder pertence
atualmente a essa classe média nova inescrupulosa e equivocada.
Conclusão. Finalmente, fica a visão necessária de que um trabalho político surtirá um efeito mais
consequente se centrado na classe média tradicional por ter ela passado pelo sofrimento da perda de
seu poder, estando, portanto, preparada para receber e admitir verdades perante as quais a classe média
nova apresenta-se refratária. Neste sentido, a própria alta burguesia pode ser também dividida em
tradicional e nova, valendo aí muitas das observações acima.

B) Sobre o papel de Brasília

(Embora desde 1979 o autor tenha feito proposições pela desistência da nova capital, a
argumentação vinha sendo feita de modo conciliatório. Mas nos três parágrafos abaixo, escritos
a 2 de junho de 1983, sagra-se o descrédito pela recuperabilidade de Brasília, tom que perdurará
até julho de 1983.)

Há 25 anos foi eleito no Brasil um presidente arrojado que teve como providência central a
implantação de uma cidade para os novos ricos ou ricos de primeira geração. Esta cidade é hoje o

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paraíso do nouveau-richisme e exatamente por isso é a raiz dos problemas mais sérios que nós vivemos.
Os novos ricos têm por Brasília um apego fora do comum. É porque através dela eles mantém a
hegemonia política e cultural do país, estando nisso a causa de nossa inflação crônica. Se o Brasil
insistir na idolatria desse bezerro de ouro, se não se procurar devolver ao litoral o centro de poder da
República, nós estaremos afundando cada vez mais.
É incrível como 120 milhões de pessoas podem passar 25 anos venerando um ídolo da miséria como
se este fosse um anjo do Senhor.

C) Aforismos escritos para ‘Brasília, capital da bonança?’

(Em 1989, ano seguinte à publicação do livro ‘Brasília, capital da bonança?’, a generalização do
conceito de Efeito Versalhes-Weimar levou à elaboração de um capítulo complementar, o
capítulo quatro, para uma possível segunda edição; dele é que foram extraídos os aforismos
abaixo. Estes, quando citações, não são literais, mas aproximações.)

* Não é uma pessoa que governa o país. Uma pessoa apenas dirige o governo. Quem governa é a
cidade do chefe.
* Há um índice crítico para a inflação, um número abaixo do qual a inflação diminui-se a si mesma e
acima do qual ela sai do controle.
* Uma cidade nova implantada como sede de um país adquire status de capital depois de um século e
meio. Deixando de ser capital ela perde esse status depois de um século.
* Depois de adquirir status histórico de capital, uma cidade deixa de ser modelo inflacionário.
* O comportamento coletivo dos seres humanos pauta-se de acordo com modelos, que dificilmente
se tornam conscientes (Charles Bandura).
* O ethos está na raiz do habitus, e não o contrário (Pierre Bourdieu).
* Há estreita relação entre o símbolo e o comportamento (Jacques Lacan).
* O valor de troca não é o único valor, nem é o maior (Adam Smith).
* As mercadorias têm valor de troca e valor de uso (David Ricardo).
* Uma das formas do valor de uso é o valor de culto (Walter Benjamin).
* Política de restrição monetária resolve apenas o problema da inflação comum, aquela causada por
erros de dosagens na própria política monetária. Não se aplica à inflação crônica.
* A causa da inflação crônica não é o déficit público nem a impressão de moeda nem a indexação da
economia.
* A inflação crônica não é causada pela industrialização nem pelos subsídios nem pela atuação dos
cartéis nem pelo aquecimento das vendas.
* A causa básica da inflação crônica não são os incentivos à cultura, não são os salários e tampouco é
a dívida externa.
* Todos os países que atingiram a hiperinflação estavam às voltas com uma mudança de capital, ou
com uma reconstrução, de capital própria ou de país vizinho.

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D) Carta do Dr. Ulysses e telegrama de Severo Gomes

(O livro ‘Brasília, capital da bonança?’ começou a ser escrito antes de fevereiro de 1986. Com o
Plano Cruzado ele sofreu uma interrupção, para ser retomado no final do ano. O capítulo a que
o Dr. Ulysses se refere é ‘A capital e o problema do símbolo’, remetido a ele logo depois de o
livro ter sido datilografado.)

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E) O parâmetro monetário

(Esta pequena proposição, de 24 de junho de 1993, é a reformulação de uma ideia enviada


alguns anos antes ao Ministério da Fazenda com o nome de ‘Lei da moeda-espécie’ e traz agora
forma de expressão condizente com a visão última dos problemas do Brasil.)

O PARÂMETRO MONETÁRIO

1. Há quem viva esbravejando contra a indexação da economia e acusando o indexador de ser


responsável pela alimentação da inflação. No entanto, o único meio de abolir a indexação seria abolir a
moeda estrangeira. Tentar impedir a indexação é tentar impedir que as pessoas busquem se proteger.
2. Uma vez que a indexação é inevitável na inflação crônica, o bom senso diz que é preferível
formalizar e organizar esse processo a deixar que ele ocorra intuitiva, informal e ilegalmente.
3. Disso vem a proposta do parâmetro monetário chamado ‘Referencial de Investimento em Ouro’.
Enquanto não se elimina a inflação, usa-se o rio (sigla assim mesmo em minúsculas) para orientar a
economia. O rio é lançado no dia primeiro de um mês a ser escolhido tendo valor unitário de 1
decigrama de ouro, na cotação da BM&F. Mensalmente, o valor do rio é reajustado em cruzeiros com
base num índice obtido calculando-se a média simples de variação do IGP da FGV e do preço do ouro
na BM&F. Se por algum motivo faltar o índice da FGV este é substituído pelo INPC. O valor de 1
decigrama de ouro é de aproximadamente 1 ECU ou 1,1 dólar.
4. Os TÍQUETES de refeição ou alimentação, os PASSES de ônibus, as PASSAGENS interestaduais
de quaisquer meios de transportes, os BILHETES de metrô, os SELOS postais, os INGRESSOS de
jogos ou espetáculos, as APÓLICES, os CARNETS e os CONTRATOS, inclusive os de empregos,
são grafados em rios e as taxas de juros dos carnets e contratos não podem exceder os 12% anuais,
calculados no parâmetro rio.
5. O valor do rio é um limitante superior para o reajuste em cruzeiros, de modo que os
arredondamentos não podem exceder o valor grafado em rios. Os arredondamentos, quando
necessários, são feitos sempre para baixo. No caso dos salários, esse arredondamento deve ser para o
inteiro da unidade de cruzeiro.
6. A vantagem do rio na inflação crônica: mesmo que um decreto de um governo livre-atirador venha
extinguir o parâmetro, o valor do decigrama de ouro, isto é, do rio, pode ser sempre conhecido e usado.
7. O nome Referencial de Investimento em Ouro vem do seguinte: quem tem ouro guardado no
banco tem a quantia indicada em rios. Quem possui 100g de ouro tem 1000 rios; quem possui 100 quilos
de ouro tem 1 milhão de rios, sendo, portanto, milionário.
8. Se vier a ocorrer a reabilitação da presidência no litoral, com o consequente fim do Efeito
Versalhes-Weimar e da inflação crônica, então o rio pode tornar-se moeda. Daí, devem ser cunhadas
moedas de prata para um rio, meio, um quarto e um décimo de rio, no sistema vale-quanto-pesa.
Cédulas só as de 10, 20, 50 e 100 rios, valores que, pela magnitude, resistem à desvalorização.
Obs.: (1) O rio já foi moeda, porque "real" pronuncia-se "rio" em inglês. (2) Para o fim do impulso
inflacionário não é necessário transferir toda a administração, mas apenas a residência do chefe de
Estado para a capital histórica. Com a existência do fax e do videofone, isso não acarreta problemas.

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F) Carta ao Deputado José Serra

(A carta ao Deputado José Serra é uma síntese da trajetória das ideias do presente livro.)

São Paulo, 29 de julho de 1993

Caro Deputado José Serra:

Escrevo-lhe para acusar o recebimento de sua carta de 28 de junho e agradecer pelos termos ali
usados, os quais me deixaram com o ego envaidecido.
Aproveitando a oportunidade, quero lhe fazer uma nova sugestão, depois de apresentar as novidades.
No fundo, a novidade é uma só, no singular. Toca na sua especialidade, o que pode decepcioná-lo, já
que sou matemático e não tenho bacharelado em economia.
Valho-me de uma declaração do professor Ioshiaki Nakano ao voltar de sua missão no ministério
Bresser Pereira. Disse ele que o problema da inflação crônica brasileira foge à alçada dos economistas.
Para mim é um problema de etologia humana ou, se preferir, de psicossociologia. É o que venho
dizendo há 16 ou 17 anos.
A novidade é que essa minha concepção recebeu no início do mês a última fileira de tijolos,
chegando ao respaldo. Trata-se da ideia do Efeito Versalhes-Weimar.
De 1976 a 1989, defendi que o problema era ser a capital uma cidade artificial recente (Alexandria,
São Petersburgo, Washington). No ano de 1989 obtive a generalização, substituindo a expressão
‘capital artificial’ por ‘capital sem status histórico’ (Weimar). Obviamente lutei nesses anos todos para
convencer os ocupantes do governo federal a reinstalar a capital no Rio de Janeiro. Agora, no início de
julho, veio o salto de qualidade que encerra o longo processo de três quinquênios da elaboração do
conceito de Efeito Versalhes-Weimar.
Iniciei um livro de ensaios chamado ‘Dez caminhos para abolir a inflação (como fazer Brasília dar
certo)’ que pretende expor em detalhes a forma final do conceito, mas não resisto à tentação de enviar
para algumas pessoas escolhidas textos relatando o achado. Assim é que os enviei aos ministros
Fernando Henrique e Henrique Hargreaves.
A novidade, enfim, é que não há necessidade de devolver a capital, mas apenas de reinstalar a
residência presidencial no Rio. O que Canberra e Nova Déli têm que Brasília não tem, para não
produzir inflação crônica? Fácil: a ausência da residência do chefe de Estado. Então expliquei a
contento o caso de Bonn, capital da República Federal da Alemanha, que teve o presidente sempre em
Berlim (‘enigma de Berlim’). No Brasil o fato de termos perdido o plebiscito do parlamentarismo não é
empecilho para a instalação da residência presidencial longe da capital administrativa.
Proponho que V. Exa. tente fazer aprovar a seguinte lei:
Artigo 1o: Brasília é a capital administrativa da R. F. do Brasil e o Rio de Janeiro é a capital cultural e
residência do presidente da República.
Artigo 2o: O presidente da República fica impedido de pernoitar em Brasília, enquanto estiver no exercício do
cargo.
Apresentei já essas ideias a outro deputado, de outro partido, meu ex-patrão, mas acho que ele não
quererá apresentar projeto.
Essa medida não acaba só com a inflação. Acaba com o impulso inflacionário.
A inflação crônica brasileira não será debelada enquanto governo e técnicos continuarem acreditando
que o problema tem fundo político, moral ou econômico.
Sem mais para a presente, deixo aqui meus protestos de estima e admiração por V. Exa.

Cacildo Marques

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G) MANIFESTO CONTRA A PRESIDÊNCIA NA CAPITAL DA INFLAÇÃO

1o A PERSISTÊNCIA. É quase incrível que tendo sido apontado o fulcro da inflação crônica desde
1978 tenhamos de conviver com autoridades que insistem em embalar e alimentar o dragão.
2o QUEM NÃO ENXERGA. Só os cegos psicossociológicos podem acreditar que construir uma
capital para um país é o mesmo que construir uma casa para uma família.
3o O QUE É INFLACIONÁRIO. A capital de um país só deixa de ser inflacionária depois de um
século e meio como residência da autoridade suprema; por isso será daqui em diante sinal de demência
levar de uma capital consolidada para uma capital sem status histórico a residência do chefe de Estado.
4o O STATUS HISTÓRICO. Uma vez abandonada uma capital ela deixa de ter status histórico de
capital depois de um século; antes disso ela tem tudo para resolver o problema criado com a mudança,
bastando receber de volta o papel de abrigar a residência do chefe.
5o A CLASSE E O SÍMBOLO. Tudo se circunscreve no âmbito de dois fatos sociais: a substituição
da classe culturalmente hegemônica - modelo de comportamento para a sociedade - e o desprezo ao
símbolo - atitude ‘clássica’ da nova classe que cerca o líder.
6o A INUTILIDADE DO CONTROLE. Medidas econômicas, como controle do fluxo da moeda,
ajustes fiscais, redução de gastos públicos e outras, resolvem o problema da inflação comum, produzida
por desvios da política monetária, mas nada podem fazer contra a inflação crônica, que é produzida
pela Capital da Inflação.
7o A CAUSA. Os brasileiros nascidos depois de 1960 não usufruíram ainda (até 1993) a tranquilidade
de conviver com inflação baixa em clima de liberdade, e só porque antes deles governantes
imprudentes instalaram a residência presidencial na Capital da Inflação, mudança mantida pela cabeça
dura dos governantes seguintes.
8o O AMOR PELA CAPITAL DA INFLAÇÃO. A solução do problema é difícil porque os que se
propõem a comandar o país querem, na realidade, dirigir o país a partir da Capital da Inflação e só isso
lhes importa.
9o O QUE NÃO SE QUER SACRIFICAR. O fanatismo é de tal ordem que se aceita impor
qualquer tipo de sacrifícios à população na expectativa de viabilizar o palácio impossível; só não
aceitam sacrificar sua paixão doentia pela capital sem status histórico, o que ocorreria com a simples
volta da presidência da República à capital antiga.
10o A HISTÓRIA. No século XX, devido à substituição da moeda-metal pelo papel-moeda, a
inflação crônica manifesta-se como hiperinflação: a inflação crônica mede-se pela expectativa de
reposição da moeda. Os exemplos mais conhecidos são Nanquim (1911), Moscou (1918), Weimar
(1919) e Barcelona (1931, com guerra civil em 1936). Nos séculos anteriores, sabe-se de Versalhes (daí
o termo ‘Efeito Versalhes’), Washington (Guerra de Secessão), Madri (fim da Invencível Armada),
Alexandria (fim do helenismo), Ravena (fim do Império Romano do Ocidente), entre outros casos. O
exemplo mais masoquista da história é Brasília: os políticos brasileiros divertem-se com o sofrimento
de tentar, com régua e compasso, resolver a quadratura do círculo! É mais cômico do que trágico!
Construída com objetivos geopolíticos, visando o domínio econômico-cultural da América Latina,
Brasília trouxe junto de si a redivisão mecanicista das regiões do Brasil, com uma ridícula região
Sudeste, que serviu para acentuar a concentração de indústrias e de rendas. O chefe de Estado que
quiser resolver o problema da inflação crônica brasileira muda-se para o Palácio das Laranjeiras, ou

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para o Palácio do Catete, mesmo mantendo o restante da administração no Distrito Federal; o que
quiser continuar embromando e dando asas ao próprio masoquismo, este deve continuar morando em
Brasília, que só deixará de ser a Capital da Inflação se devolver a residência presidencial ao Rio. (Obs.:
A quadratura do círculo, depois de perseguida por mais de dois mil anos, foi finalmente provada
impossível por Ferdinand Lindemann, em 1882.)

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Cap. 0 OS DEZ CAMINHOS – pág. 5
Cap. 1 O CAMINHO 1: INDEXAR TUDO A UMA UNIDADE FIXA ABSTRATA - pág. 7
Cap. 2 O CAMINHO 2: ACOPLAR TUDO A UMA MOEDA ESTRANGEIRA - pág. 11
Cap. 3 O CAMINHO 3: PARAMETRIZAR A MOEDA PELO OURO – pág. 15
Cap. 4 O CAMINHO 4: TROCAR A MOEDA POR UMA MERCADORIA – pág. 18
Cap. 5 O CAMINHO 5: EXTINGUIR A MOEDA E USAR TÌQUETES – pág. 21
Cap. 6 O CAMINHO 6: CONGELAR TOTALMENTE OS PREÇOS – pág. 24
Cap. 7 O CAMINHO 7: ESTABELECER UM REGIME AUTORITÁRIO – pág. 28
Cap. 8 O CAMINHO 8: DEVOLVER A CAPITAL – pág. 32
Cap. 9 O CAMINHO 9: MANTER A CHEFIA DO ESTADO COM UM ESTRANGEIRO – pág. 38
Cap. 10 O CAMINHO 10: INSTALAR A PRESIDÊNCIA NA VELHA CAPITAL – pág. 40
Cap. 11 A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE EFEITO VERSALHES-WEIMAR – pág. 43

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Obras de Cacildo Marques:

 Fendas de Franja Azul (Editora Scortecci – 1982)


 Contos do Futuro (Edições Camatianas – 1984, em parceria)
 Olhos e Fontes do Maior Solo Latino (Edições Lúmine – 1985)
 Brasília, Capital da Bonança? (Edições Lúmine – 1988)
 Desenhos no MSX (Editora Scipione – 1989)
 O Sol do Flautim (Edições Lúmine – 1992)

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