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1. Estamos em Guerra......................................................................6
2. Algumas Doenças Espirituais.....................................................14
3. Viajando nas Asas do Tempo.....................................................18
4. Fora do Mundo dos Vivos Antes de Morrer................................22
5. Ponte Estreita e Perigosa...........................................................30
6. A Viagem dos Sonhos................................................................35
7. A Viagem de Retorno.................................................................41
8. Recordações Amargas...............................................................44
9. Decisão Confirmada...................................................................53
10. Início de Ministério....................................................................58
11. Mudança de Hábitos.................................................................63
12. Dizimista Consciente.................................................................69
CAPÍTULO I – Estamos em Guerra
T
udo Acabado. Era março de 1998. Rua Jaime da Botica,
Planalto Ininga, em Teresina. No interior da casa nº580, um
homem estava preso nas garras de Satanás. A luta estava
travada. A derrota parecia certa, pois, a cada dia, a opressão
aumentava e o desejo de morrer se tornava incontrolável. Ao alcance
da mão se encontrava dentro de uma pasta preta, de náilon, um
revólver calibre 38, marca Taurus, com seis balas, aguardando a
decisão de apertar o gatilho, quando o cano da referida arma se
apoiasse na têmpora, no peito ou mesmo introduzido em sua boca.
Em mais de uma ocasião, aquele miserável homem pegou e olhou
detidamente aquela arma e buscava no seu interior coragem para
cumprir as ordens que Satanás colocava em sua mente.
Em determinada ocasião, quando tudo parecia irreversível,
o tal homem levou a sua mente ao seu tempo de infância, mais
precisamente ao seu nascimento, quase morto, ocasião em que, de
fato, foi desenganado pelo médico que trabalhou no parto. Detendo-se
nesse fato, sem entender o motivo de ter meditado em sua
sobrevivência, quando aparentemente não tinha mais vida. A partir
daquele momento navegou através da mente, percorrendo um longo
trajeto, pontilhado de muitas experiências dramáticas, em que a vida e
a morte andaram lado a lado em luta travada, como se fosse uma
guerra, em que, até aquele momento, a vida vencia todos os
combates.
Diante desse quadro, ele fechou os olhos, desistiu
momentaneamente do seu intento, e passou a reviver a sua distante
infância. Infância dividida em duas etapas bem distintas: a primeira do
nascimento aos seis anos e a segunda dos sete aos doze anos.
Quando tentava nascer, a sua mãe morava numa fazenda,
situada a 34Km da sede do município. Primeiro filho de um casal
camponês com larga tradição rural no interior do Estado do Ceará.
Pessoas acostumadas com as constantes secas. Conheciam bem a
paisagem do sertão. Açudes sem água; ossos secos dos animais que
morriam de fome nos campos e nas várzeas sem pastos. Depois de
setenta e duas horas preso no ventre de sua mãe; horas contadas do
início do trabalho de parto, não nasceu, mas foi “arrancado a ferro”. O
médico deu a sentença: não há esperança de sobrevivência, mas,
caso sobreviva, não prestará para nada, pois dependerá de remédios
permanentemente, para ter uma vida de constantes convulsões e
diversos outros tipos de problemas de ordem neurológica. De uma
forma ou de outra e por vias das dúvidas, mandaram chamar o Padre
Luís, vigário muito prestigiado no lugar, a enfermeira, Dona Alice, e o
marido dela, seu João, que foram os padrinhos do menino, para não
morrer “pagão”. Um grande ferimento na cabeça, conseqüência dos
“ferros” usados para “arrancá-lo” das entranhas da mãe. Ferimento
que não era a principal causa da provável morte da criança, que
morreria mesmo porque seus intestinos estavam sem funcionar.
Também não urinava. Vencido o primeiro combate. Ali estava iniciando
a infância aquele primogênito. Nascido no seio de uma família de
católicos nominais e muito tradicionais.
Sete tios paternos e algumas tias se encarregaram de
oferecer carinhos e cuidados aquele pequeno vivente, que contava,
ainda, com um grande afago por parte dos avós paternos.
A criança, em verdade, não era atraente. Embora sendo
criança, já apresentava sinais de feiúra, que seus parentes tentavam
ignorar, mas logo deixaram transparecer, em suas palavras, as suas
opiniões sobre a exótica aparência da criança. O menino tinha uma
cabeça enorme, com uma também enorme cicatriz do lado direito,
resultado do grande ferimento produzido pelos fórceps. Olhos muito
grandes. Era o que logo começaram a comentar: “ô menino feio!”.
O ano era 1954, quando o aludido menino nasceu em
janeiro. Corria o ano e a criança recebia algum carinho dos pais, mas
já em janeiro de 1955, ele perdeu a atenção de sua mãe que acabava
de dar à luz a sua primeira irmã. Este sim, parto normal, sem ferimento
na cabeça, proporcional ao corpo, olhos bonitos. Uma linda criança,
diziam com convicção. As atenções foram todas canalizadas à recém-
nascida que, por sua vez, perdeu para outra menina que nasceu em
dezembro do mesmo ano de 1955. Pronto. Agora, em menos de dois
anos, já são três crianças, sem ter nascido ninguém gêmeo.
O tempo parecia muito lento, mas logo chegou o ano de
1960, quando a prole já era composta de seis filhos, dois meninos e
quatro meninas, sendo que o mais velho contava apenas seis anos de
vida e era cada vez mais feio e triste. Diziam que seria um HOMEM,
mas ninguém falava nada das coisas que fazem um menino feliz. Ao
contrário, o que o garoto mais ouvia eram as frases proferidas pelos
parentes e que diziam: “que menino feio!”, “ô menino da cabeça
grande!”. Em 1960, adotando um projeto mal planejado, o pai daquele
menino feio vendeu tudo o que tinha no interior do município e se
transferiu para a cidade onde deu início a uma nova atividade
profissional. Deixou para trás a experiência que tinha adquirido de
seus pais, “incluindo seus avós”, nascidos e criados em propriedades
rurais, praticando a agricultura de subsistência, dosada com a criação
de pequenos rebanhos, ele avançou em direção ao comércio varejista,
de forma tão insegura quanto um cego conduzindo um automóvel. Não
se consegue fazer o que não se conhece.
O casal e seus seis filhos pequenos fixaram residência em
uma pequena vila de um bairro distante do centro da cidade. Era
verdadeiramente um mundo totalmente novo para aquele garoto de
seis anos, que acabara de perder o contato com os únicos rostos até
ali conhecidos: os dos seus parentes. Eles ficaram lá no interior. Agora
ele não tinha ninguém para chamar de tio, nem um colo, não recebia
mais nenhum abraço, nenhum carinho. Dois meninos se
apresentaram, eram filhos de um vizinho, também comerciante. Não
se estabeleceu nenhuma amizade entre o recém-chegado e os
meninos da cidade. Existia uma pequena diferença de idade,
aproximadamente dois anos, que eles tinham a mais. Isto não impedia
o relacionamento. Acontece que existia uma timidez tão grande, uma
introversão indisfarçável tomava conta daquele menino, que ainda tão
pequeno, já podia sentir uma barreira que o separava dos demais: a
sua aparência. Todos diziam que ele era muito feio, então ele
acreditou que era mesmo muito feio. Ora, menino feio no meio dos
outros não serve senão para ser objeto de zombaria. Um dizia:
“parece um caburé”, outro completava: “é olho de caminhão”. Logo o
garoto feio corria chorando para a presença de sua mãe. Queixava-se
das ofensas, mas a mãe que também achava seu pimpolho o mais
feio de todos, recomendava que ele fosse brincar sozinho, “tem nada
não, vai brincar sozinho”. Acontece, que o pai tinha um bom
estabelecimento comercial, mas o filho não tinha um único brinquedo.
Ficaria para o resto de sua vida a lembrança daqueles caminhões que
os filhos dos Seu Neném, o vizinho comerciante, conduziam com
habilidade manobrando os tais brinquedos com aqueles cordões. –
Que caminhãozinho lindo! – Balbuciava o referido menino. Fora do seu
alcance, ele se contentava, ali, naquela janela, somente em
contemplar aquele vai e vem dos belos caminhõezinhos. Um dia ele
ganhara o único brinquedo de toda sua infância, mas ficara na casa de
sua avó, em poder de um menino que ela estava criando, era também
um caminhão, mas muito mal feito, que nem parecia com os
caminhões dos filhos do vizinho.
Mas nem tudo era tão mal assim. Algo existia naquele
menino feio do interior, e sem amigos. Sobrevivente de um parto
complicadíssimo. A beleza dele começou a desabrochar quando ele
começou a estudar. Agora, ele acabava de ganhar mais um slogan: “o
que tem de feio, tem de inteligente”. Outros falavam,
equivocadamente, “também com uma cabeça dessas...” Ocorre que,
enquanto o filho era um destaque inegável no colégio, onde estudava,
o pai estava indo à falência nos seus negócios. Falência decretada em
menos de dois anos de atividade comercial, pela completa falta de
conhecimento da área comercial. Caiu tudo por terra. Meninos fora do
colégio. O que parecia ser belo naquele menino, estava sendo
enterrado, a família volta para o interior. A propriedade vendida para ir
à cidade virou um pesadelo, pois pertence aos compradores. Não
resta nada dela. Tudo fora investido no comércio que acaba de
quebrar. Seis filhos pequenos. Final de 1962. Os bens da família
estavam em processo de inventário, pois o patriarca havia falecido,
sendo que os herdeiros estavam em completo desacordo com a ida do
falido para o meio deles. O fardo não lhes seria leve, Não seria e não
foi. O casal e os filhos se alojaram em um antigo depósito. Quatro
paredes sem luz e sem água, que aliás, àquela época não existiam
(luz e água), nem nas casas residenciais. A lamparina a querosene era
a única fonte de luz artificial à noite. Redes para os meninos e uma
cama, do que restou para o casal. Aliás, cama onde seriam
concebidos mais quatro filhos.
O tempo foi passando, agora parecia mais lento ainda. O
pai não tinha e nunca teve resistência física para trabalhar “no
pesado”. Nasceu filho de patrão, viveu como um patrão. Agora não
tem outra alternativa: ou comia de esmolas, dadas pela mãe, viúva, ou
pega as ferramentas da roça, que a pouco tempo ele entregava aos
seus trabalhadores, na sua ex-propriedade. Ele não agüentava. Ia
para a roça, levava uma cabaça com água, e um pedaço de fumo de
corda, para fazer o que chamava “pé-duro”, mas não produzia quase
nada além de muitas lágrimas.
– Meu filho, dizia ele, vendi tudo que tinha e fui para a
cidade porque eu nunca consegui estudar. Eu queria muito e não pude
estudar. Então fui para a cidade para dar estudos a você, meu filho, e
aos seus irmãos. Eu não queria e não quero criar vocês aqui. Tenho
desejo que vocês tenham um futuro diferente. Agora nada posso fazer,
não sou um homem da roça, não nasci para o trabalho pesado, não
tenho resistência. Cada vez chorava mais.
Lá no depósito onde dormiam, a mãe chorava muito mais.
A falta de esperança sufocava aquela família.
O menino estava de volta ao seu habitat, mas o quadro
agora já é bem diferente. Além de continuar bastante feio e triste, suas
inseparáveis características, passou a ser parte de um grave
problema. A viúva não tinha estrutura financeira para suportar. Em
conseqüência disso e por outros motivos, inclusive uma nova
gestação, os irmãos daquele pobre e desanimado pai de família se
tornaram muito revoltados, ameaçando-o até de “uma boa surra”, pois
entendiam que ele era o único culpado por tudo que estava
acontecendo a ele e a sua família.
Portanto, como se tornou inevitável, ele foi morar com sua
família na fazenda de um bondoso parente (primo de sua mãe),
distante dali muitos quilômetros. Igualmente distante ficava o “futuro”
que aquele homem pretendia alcançar. Longe da escola, isto é, dos
estudos, o menino em referência começa a trabalhar naquela fazenda
em alguns trabalhos pesados, incluindo o trabalho em lavouras
alheias, mediante pequenos pagamentos que eram utilizados no
sustento (sobrevivência) dos seus irmãos. Aliás, sobreviver, àquela
época já seria uma vitória parecida com um milagre.
Enquanto ele repassava na memória essas lembranças,
deitado em uma rede no interior da referida casa, a porta do quarto se
abriu. Entrou sua esposa, acendeu a luz, dizendo que estava ali para
fazer os curativos em suas feridas. Ela estava falando das feridas do
seu corpo físico, enquanto ele acabava de lembrar de algumas das
feridas da sua alma. Aplicados os medicamentos, cuidadosa e
carinhosamente, o quadro era desalentador, pois não se vislumbrava o
menor sinal de melhora. A pele daquele miserável homem estava
totalmente comprometida. A coceira era tão cruel, que causara
rapidamente grandes estragos. Enormes feridas infeccionadas e
tumores (furúnculos), em espantosa quantidade.
CAPÍTULO II – Algumas Doenças Espirituais
O
Sentimento de culpa que atormentava aquele pecador
era extremamente intenso. Ele não entendia a causa de
tão terrível desconforto. Somente após um longo tempo
tomou conhecimento do motivo daquele fenômeno espiritual. Além
do sentimento de culpa, já estavam presentes naquela vida outros
males, destacando-se a solidão, o vazio existencial e os medos.
O primeiro grande medo que o atormentava,
depois da morte, era não ter a sua saúde de volta, pois desde
novembro do ano anterior, 1997, que aquele terrível mal estava
alojado em sua pele. Acrescente-se a tudo isso o fato de não ser
um filho da cidade. Logo não podia contar com nenhum parente ou
com algum amigo. Viera do interior, sul do Estado, onde exercera a
função de Promotor de Justiça durante nove anos. Agora, estava ali
com a saúde afetada, sem ter um amigo na cidade, sem dinheiro,
ao contrário, experimentava um processo de endividamento muito
acentuado. Contava contra ele uma restrição em seu crédito
financeiro, isto é, uma indicação no SERASA. Um carro que
comprara financiado se encontrava transferido a um indivíduo
enganador, que há seis meses não pagava uma única parcela do
financiamento. Caíra nas garras malditas dos agiotas. Descia em
queda livre, rumo ao chamado fundo do poço.
Desejava encontrar um único motivo para sorrir,
para ser feliz, mas não conseguia ver nenhuma razão para viver,
viver o futuro, talvez, por isso, voltou àquela distante fazenda para
viver novamente o passado, sem perceber que aquele passado
estava intimamente ligado ao momento que vivia e ao futuro que o
Diabo tentava roubar-lhe.
Sentado no alpendre da casa grande daquela
fazenda, onde alguns homens conversavam. Todos estavam
resignados. Ali nenhum tinha sonhos. Ninguém ousava mudar
absolutamente nada em sua vida. Viviam uma vida sem riscos,
porém sem novidade, sem emoções. O mundo ali era muito
pequeno. Todos se sentiam satisfeitos com qualquer coisa, menos
um: o menino feio. Contava oito anos de vida, quando ouviu o seu
pai comentar que os jovens iam servir ao Exército Brasileiro e que
era serviço obrigatório aos dezoito anos. Queria amanhecer o dia
seguinte com aquela idade para se mudar daquele lugar. Não sabia
que ainda teria mais três anos pela frente até surgir a primeira
oportunidade de voltar a estudar na cidade, em casa de parentes.
Durante os referidos três anos, aquele menino que parecia ficar
mais feio, viveu numa pobreza financeira muito grande.
O pai não permaneceu muito tempo naquela
fazenda do parente de sua mãe, tamanha era a humilhação que
sofria por parte dos filhos do proprietário daquelas terras.
Decidiu voltar ao depósito que ocupara
anteriormente, na propriedade de sua mãe, e receber as
humilhações, e não poucas, dos seus próprios irmãos.
Para um dos irmãos, que era comerciante, o pai
do garoto em tela passou a trabalhar. Contratado para fazer tijolos.
O método era o mais rústico. O mais primário que se tem
conhecimento: cavava-se o barro em local adequado, que era
mexido com água até ficar bem pastoso como uma massa.
Colocava-se o barro numa forma que, retirada, deixava no chão
dois tijolos de cada vez. A olaria, onde os tijolos eram feitos, ficava
perto do açude, de onde o menino chamado feio trazia a água para
preparar o barro. Com os dois pés dentro do barreiro, pisando pra
lá e pra cá, aquele garoto era o único auxiliar do seu pai, durante
um longo período em que conseguiram a sobrevivência da família
com os pés e as mãos no barro.
Enquanto trabalhavam no barreiro, isto é, naquela
olaria, eles não tinham outro alimento, no almoço ou na janta, além
do “chibé”, uma mistura de água, rapadura raspada e farinha de
mandioca. Muitas vezes o pai tinha sérias crises intestinais, além
do inusitado alimento, o calor era muito intenso. O trabalho era
realizado debaixo de um sol escaldante.
Agora tem que continuar, porque o débito crescia
no comércio do irmão patrão. Que fornecia algum mantimento para
uma família de dez pessoas: o casal e oito filhos. O mais velho era
o que pisava barro no barreiro com os próprios pés, enquanto o
mais novo arrastava o bumbum no chão batido do depósito onde
moravam.
Pai e filho conversavam debaixo de uma moita,
enquanto tomavam o “chibé”, na hora do almoço. Ele dizia ao filho
algo que ficaria para o resto de sua vida. As grandes lições foram
passadas daquele pai para o filho ali naquela olaria. Destaquem-se
estas: “Um homem deve ser honesto, mesmo que não tenha nada
na vida, mas não pode deixar de ser honesto”.”Um grande defeito
de um homem é ser fofoqueiro e mentiroso”. ”Nunca queira o que
não é seu”. ”Um ladrão é pior do que qualquer outro criminoso”. E
tantas outras lições de ordem moral, que não foram afetadas pela
miséria financeira, repentina, na vida daquele homem.
Ali parado, olhos fixos no teto daquele quarto, que
seria o palco do mais tenebroso desatino, aquele homem só
percebeu que sua esposa falava com ele depois que ela o chamou
várias vezes. Parecia atolado no barreiro de barro de onde saíra há
tantos anos.
– O que foi que houve? Indagou ela.
– Nada.
– Parece que você estava tão distante.
– Quem? Eu? Não. Impressão sua.
– Você está melhor?
– Melhor...!? Não sei. Acho que não. Acho que
pouca coisa mudou. Quer dizer, a diferença é que hoje estou mais
velho.
– Não consigo entender.
– Depois...um dia você vai entender. Agora, saia e
apague a luz. Eu quero dormir um pouco.
Dormir era a fuga preferida daquele infeliz. A fuga
da realidade. Aquele homem, mesmo sendo um promotor de
justiça, se encontrava vencido. Estava derrotado pela opressão
maligna. Satanás lhe devorara tudo e ele não sabia, nem
desconfiava da terrível ação do Inimigo.
CAPÍTULO III – Viajando nas Asas do Tempo
N
ão dormiu. Agora ele começava a perceber a ligação
estreita que existia entre o momento de sua vida e o seu
passado. Alguma coisa precisava ser entendida. Foram
muitas lutas. Muitas provas. Tudo em sua vida foi obtido mediante
uma superação de obstáculos aparentemente intransponíveis.
Diante desse novo quadro que se desenhava,
embora não esboçando nenhuma melhora da sua saúde (física,
financeira e psicológica), ele se afastou um pouco da obsessiva
idéia de suicídio, pois sentiu desejo de reviver mais um pouco o seu
tempo de infância e adolescência.
Ao retornar àquela fazenda, ele se deparou com o
seu pai numa situação pior do que a sua. Lembrou bem que seu
genitor estava com um dente tão infeccionado que o colocava
gemendo dia e noite, impedindo-o completamente de trabalhar na
mencionada olaria. Sem assistência médica, não lhe restava outra
alternativa, senão esperar que a “bolsa” estourasse por fora do seu
queixo, o que de fato ocorreu, derramando todo o pus, ou seja, a
secreção que lhe provocava a quase insuportável dor. Abatido,
depois do inexplicável sofrimento, que durou vários dias, não tinha
absolutamente nada para fazer um caldo. Ele chorou. Chorou de
forma sentida, dizendo que se o pai dele fosse vivo ele não estaria
naquela situação. Mandou uma filha, a mais velha, comprar fiado
no fornecimento meio quilo de açúcar, 100g de café e um pacote de
biscoitos. Ela foi, mas voltou sem trazer nada. Ainda restava um
pouco de sal em uma lata e água, não muito boa, no pote.
Caído ali, no interior daquela casa da citada Rua
Jaime da Botica, aquele Promotor de Justiça estremeceu, ao
vislumbrar, através da memória, situação mais difícil vivida por seu
pai. Parou um pouco. Pensou mais um tempinho e logo voltou para
perto do seu pai que se encontrava naquele interior tão distante, no
tempo e no espaço. Viu o pai ali deitado esmorecido e com muita
fome. Lembrou claramente da atitude que adotou: foi à casa do seu
tio não para pedir fiado novamente. Não. Foi lá pedir emprestado o
cachorro chamado Fox, que era bom de preá.
O Fox pegava preá na corrida. E foi assim que o
menino, que um dia seria um Promotor de Justiça, retornou para
casa levando três preás. Ao tomar o caldo dos bichos, o doente
começou a ter uma expressiva melhora, ocasião em que disse que
nunca tinha tomado um alimento tão especial.
Decorrido mais algum tempo naquele lugar, a
família já estava morando numa modesta casa. Saíra do depósito,
mas a qualidade de vida permanecia a mesma. Não se
apresentava nenhuma perspectiva de uma vida melhor.
Conduzindo um jumento com duas ancoretas, o
menino, que já contava onze anos, ia buscar água para beber em
um açude distante, exatos seis quilômetros de sua casa.
Eram duas cargas todos os dias: uma para sua
casa e outra para a casa de sua avó, de onde vinha o minguado
(mas providencial) sustento de seus irmãos menores (sete irmãos
pequenos).
Enquanto retirava a água das ancoretas e a
colocava nos potes da casa de sua avó, em uma manhã quente de
domingo, aquele menino ouviu uma pergunta que, de acordo com a
resposta, mudaria a trajetória de sua vida.
O esposo de sua tia Zilda, de nome Sales,
perguntou ao seu compadre Eduardo:
– Compadre, você deixa esse menino ir comigo
para o Quixadá, para estudar?
– Se ele quiser ir, compadre, eu deixo. Sei que
fico de pernas quebradas, porque ele é quem me ajuda, mas...
Era a resposta que o menino queria ouvir.
– Pois compadre, ajeite o menino, mais tarde tou
saindo e vou levar esse bixim. Esse menino, compadre, o que tem
de feio, tem de inteligente...
Era o comentário que ele não queria ouvir.
Até a hora da partida para a cidade, sem
consciência do que estava acontecendo, o menino viveu a deliciosa
vida com esperança. Vida com alegria. Alegria de sonhar que iria
estudar. Que teria uma nova vida. Até esqueceu o fato de que
deixaria naquele lugar a sua família em profunda miséria financeira.
É chegada a hora. O Jipe azul, de paralamas
arredondados, estava na porta da casa de sua avó. O carro era
fretado pelo tio comerciante na cidade. Viera visitar os familiares da
esposa que morava naqueles confins dos sertões.
O menino se sentou no banco traseiro e ali ficou
pensativo. A vontade de mudar de vida lhe tiraria a saudade dos
irmãos e pais, além das coisas daquele lugar, que, mesmo ruins,
ele gostava e não sabia. É verdade. Ele gostava de pegar piaba de
anzol no açude. Gostava de armar fojos nas veredas dos preás.
Gostava de...gostava....
A tia, momentos antes da saída, indagou:
– Onde tá a bolsa do menino? – Ele respondeu:
– Bolsa?! Tenho não senhora.
– Eu tou falando bixim é das roupas, você não
entendeu não?
O menino olhava assustado para aquele montão
de gente em volta sem saber o que dizer.
– Eu não tenho roupa...só tem esse calção e essa
blusa eu ganhei hoje pra viajar. Os chinelos o papai fez de pneu
com tiras de couro cru. Não tenho outras não senhora.
Ele não sabia nem conseguia imaginar o tamanho
da humilhação que sofreria dali pra frente.
Ocorre que o tio que o convidara estava decidido
a ajudá-lo.
Ao anoitecer, estava entrando naquela cidade
pela segunda vez. A primeira em companhia dos seus pais, para
estudar. Agora, a segunda vez levado por seu tio, também para
estudar.
Assim, tomado de comovente gratidão àquele
bondoso homem, que ficaria em sua mente para sempre, o agora
Promotor de Justiça dorme um pouco mais distante do suicídio.
CAPÍTULO IV – Fora do Mundo dos Vivos Antes de Morrer
N
ão havia encontrado coragem para ceifar sua própria
vida, no entanto, também não se encontrava encorajado
para continuar vivendo. Ali estava morando em uma casa
alugada. Considerava o aluguel muito alto. O chamado custo de
vida também muito caro. Quando viera do interior, sem conhecer
ninguém, além de alguns poucos colegas de profissão, ele não
conseguiu fazer amizade senão com dois alcoólatras: um muito
violento, que sempre conduzia um revólver 38 cheio de balas e
outro tremendamente escarnecedor, muito debochado mesmo.
Mas, agora, como estava com a pele quase toda infeccionada e
tomando antibióticos até os cachaceiros se afastaram dele.
Ali ele estava só. Não queria incomodar seus
colegas de trabalho. Um deles, em certo dia, tentou falar do
evangelho de Jesus para ele, mas foi logo e prontamente rejeitado
por aquele homem que entendia diferente. Aliás, o único crente
naquela instituição ministerial.
– Não! Não aceito! Da minha vida cuido eu. –
Sustentava com uma veemência espantosa.
– Depois você vai entender que não pode viver
sem a proteção de Deus. – Sustentava o colega evangélico.
Aquele homem ainda não estava preparado para
ouvir as grandes verdades que não conhecia. Ele pensava que
tinha o direito de fazer ou não fazer o que bem entendesse, sem o
controle de ninguém.
Quase não saia daquele quarto além das
constantes saídas em pensamento.
E foi nas asas da sua imaginação que se
deslocou à Escola Santa Inês em Quixadá, onde estudou quando
ali esteve pela primeira vez, em 1960. Da referida escola, ele
guardava ótimas recordações. Visitou também àquela escola
particular, no bairro Putiú, onde fora matriculado por determinação
do seu tio, que não permitiu a sua permanência no Grupão Escolar,
por causa do ensino que, no seu entendimento, era fraco.
Naquela escola, o menino do interior estudava na
mesma turma do casal de filhos adotivos do seu tio.
Como seus primos guardavam entre si
características bem distintas: a menina bem morena, bem escura, e
o menino muito branco, além de outros detalhes que distinguiam
um do outro, certo dia a professora quis saber dele se o referido
casal era filho legítimo ou não dos seus tios. O embaraço estava ali
diante daquele menino que nunca caiu na simpatia da irmã do seu
pai. Por um instante ele exitou, mas logo ele lembrou da orientação
recebida do pai lá na olaria: um homem não deve ser mentiroso.
– Professora, eles são criados pelos meus tios
como se fossem filhos.
– Você tá dizendo que eles são adotivos?
– Isso mesmo.
Duas horas depois ele já estava sabendo quanto
custava dizer a verdade. A humilhação foi muito grande e o Diabo
não o levou de volta para a fazenda porque o Sr. Sales era
verdadeiramente um homem bom e estava mesmo decidido a
ajudar aquele pré-adolescente a sair do barro.
É chegado o ano de 1966. A seca no sertão era
severa. Devastadora. No auge da crise o pai daquele menino
compareceu ao comércio do Sr. Sales, onde momentaneamente o
garoto se encontrava só, ocasião em que aquele homem se dirigiu
ao filho, dizendo o seguinte:
– Meu filho, eu não consegui arranjar nada para
levar pros seus irmãos e lá em casa eu não deixei nada, coloque aí
numa sacola umas duas rapaduras, uns quilos de farinha e uns
biscoitos pra eu levar e depois eu falo com o compadre Sales. – Ao
que o filho respondeu ao pai:
– Papai, acho melhor o Senhor falar logo com ele.
A resposta do menino tinha como base outra lição
que aprendera na olaria, quando seu pai lhe disse que não se deve
pegar coisa nenhuma alheia, sem autorização do proprietário.
Cumpre lembrar que não ouve a solicitação ao Sr. Sales, tendo o
Sr. Eduardo retornado a sua casa sem levar absolutamente nada
para os filhos que lá passavam fome.
Aquele garoto não estava passando fome,
juntamente com seus irmãos mais novos, no entanto sentia a
mesma angústia. Sofria o sofrimento deles. Tinha dentro de si um
desejo muito grande de vencer aquela terrível dificuldade.
Em determinado dia estava no comércio do seu
tio Sales, quando ali chegou uma senhora que morava em São
Paulo, olhou fixa e demoradamente para aquele garoto, antes de
formular a seguinte pergunta:
- Você quer ir morar em São Paulo? Se quiser, eu
te levo para minha casa. Você vai estudar e será um homem.
- Não senhora. Posso ir não senhora. Papai não
deixa eu ir com a senhora não senhora.
Ali ele ficou com muita curiosidade. Indagava a si
mesmo de como seria a vida num lugar tão distante. Aliás, há
alguns anos morava um tio seu em São Paulo. Durante alguns dias,
ele ficou entendendo que acabara de perder uma boa oportunidade
de mudança de vida. Mudança de vida para ele, mas que não
significava melhora nenhuma na vida de seus pais e seus irmãos.
Ainda permaneceu naquele lugar por mais um
pouco de tempo. Ocorre que, como estava oprimido, por causa das
constantes e severas humilhações que sofria, um tio de seu pai de
nome Antônio, aconselhou ao sobrinho a retirada do seu filho
daquele lugar, antes que algo pior viesse a acontecer.
E foi assim que, aos catorze anos de idade,
aquele adolescente voltou para a dura realidade da casa dos seus
pais, onde a pobreza era extrema. A fome e a doença rondavam
aquela casa. Aquele rapazinho entrou num estado de tão grande
desânimo que quase não falava nada com ninguém. Estava sempre
calado e em algum lugar sozinho. Não gostava de ficar perto de
gente. Nem mesmo com a avó dele aceitava falar alguma coisa.
Quando falava, era pronunciando as palavras pela metade, como
se fosse uma parte da palavra para dentro dele mesmo. Algo
estava para acontecer e aconteceu: começou a ter contato com
bebidas alcoólicas, para logo em seguida fazer uso de cigarros.
Juntamente com os vícios, chegou a ele também um forte
sentimento de revolta e um tremendo impulso de violência. Com
tais atributos, passou a se envolver em confusões e brigas, pois
quando ingeria bebidas alcoólicas ficava bastante transtornado, ou
seja, como se fosse louco. Enfurecido.
Com o único propósito de ajudar ao filho e sem
saber o que estava fazendo, o pai daquele jovem passou a levar o
filho à presença de um umbandista, para expulsar dele o “coisa
ruim”, fato que ocorreu pela primeira vez no final de 1968.
O tal umbandista deu logo a sentença: “ele é um
médium de nascença e precisa ser desenvolvido, para fazer
trabalhos com muito poder, inclusive de mover as coisas com um
simples olhar”.
Isso interessou muito àquele jovem. Como todas
as pessoas viventes, ele gostou demais da idéia de ter poder
sobrenatural. Aceitou a proposta de se desenvolver, sem desconfiar
de nada. Claro, ele não sabia que se tratava de uma grande
mentira do servo de Satanás.
Durante as sessões de Umbanda, para
desenvolver a sua “mediunidade”, era ingerida uma boa quantidade
de “marafa” e fumados muitos cigarros, o que contribuiu mais e
mais para os vícios que já tomavam conta daquele pobre infeliz,
que parecia, no entanto, animado com a idéia de ter poderes.
Além da possibilidade de se tornar um “vidente”, o
jovem já alimentava, o sonho de casar-se com uma sobrinha do
macumbeiro, que também era dada à prática maligna da feitiçaria.
É chegado o ano de 1970. Agora ele já está
contando dezesseis anos de vida. Quando não estava no chamado
terreiro de macumba, ele cuidava do gado de uma fazenda que seu
pai tomava conta e amansava burro bravo. Esclareça-se que no
ano de 1968, em outubro, o Sr. Eduardo conseguiu emprego na
referida fazenda, o que significou espantar a fome e a miséria, pois
ali ele tinha direito a leite e peixe com abundância para a sua
numerosa família.
O Jovem se tornou um pegador de boi bravo nos
carrascos do sertão. Pegava um boi bravo em qualquer lugar do
mato. Certa vez, como desafio, ele pegou um boi no mato fechado,
carrasco, montado num cavalo em pêlo, isto é, sem sela, e sem
camisa, ou seja, além de não vestir um gibão de couro, que protege
a pele, ainda tirou a própria camisa ficando nu da cintura para cima.
Era um espanto, diziam os que presenciaram a “façanha”. Agora,
ele estava desejando algo mais: queria pegar um boi bravo no
carrasco, à noite, só com o claro da lua. Ele, em verdade, desejava
mostrar que era capaz de fazer alguma coisa sobrenatural, para
provar que era mesmo dotado de poderes estranhos.
Mas no seu interior batia, fortemente, de forma
induvidosa, um sentimento de que tinha muita coisa errada. Ele não
poderia casar-se com aquela macumbeira tão cheia de problemas
e, principalmente, porque ele não tinha nada além da própria vida.
Além disso, ele começou a questionar a utilidade daqueles
possíveis poderes, no tocante à desejada mudança em sua
trajetória de vida. Ele decidiu e começou a falar para algumas
pessoas que iria embora para São Paulo, logo que tivesse seus
documentos pessoais em mãos, especialmente, o certificado de
reservista, ou de dispensa do serviço obrigatório das Forças
Armadas. Sustentava com muita convicção: não ficarei aqui. Essa
vida não é a que eu desejo para mim. Duas horas da madrugada
dentro de curral tirando leite de vaca não é o que desejo continuar
fazendo.
Mais uma vez a esposa daquele miserável
homem entrou naquele quarto. Dessa vez para dar-lhe uma
péssima notícia:
- Não agüento mais. Você vai ficar mais uma vez
sozinho.
Ela se referia ao primeiro casamento fracassado
do seu marido.
- Tem problema não, ele rebateu: é você saindo
por aquela porta, e eu colocando um fim em tudo isso com um
simples “tá!”.
Disse isso enquanto apontava o indicador para a
sua própria têmpora direita.
E em tom muito agressivo, como de costume, ele
falou para ela: você já devia ter era ido. Vá! Vá logo! Suma da
minha frente! Quem você pensa que é para me afrontar com esse
tipo de insulto e ameaça? Você tem que entender que eu sou um
cabra macho e não abro nem para um trem cheio de chumbo.
Ela chorou, mas segurando o filhinho caçula nos
braços que contava dois meses de vida, decidiu ficar e suportar
mais um pouco com resignação.
Pouco depois da desavença e dos impropérios
proferidos pelo doente, ele dormiu novamente. Era o que mais
gostava de fazer naqueles difíceis dias da sua vida.
CAPÍTULO V – Ponte Estreita e Perigosa
N
avegando numa velocidade superior à velocidade da luz,
aquele pobre homem estabelecia paralelos entre a sua
infância, adolescência e juventude, com os dias que estava
vivendo ali naquela capital mafrense.
Ele já estava convencido pelo seu próprio
entendimento de que não seria curado de tantas feridas no seu corpo
físico. O que ele não tinha consciência era de que sua alma estava
muito mais doente do que a sua carne.
Realmente ele desejava ver aquilo chegar ao fim.
Ocorre que os remédios não produziam nenhum resultado. Ele sofria
também com o pensamento de que sua família(esposa e filhos) iria,
possivelmente, para o controle de outro homem como costuma
acontecer em casos semelhantes(morte ou separação voluntária).
Sentia ciúmes. Ciúmes imaginários da esposa. Concordara e até
mandara ir embora, no dia anterior, pensando em morrer, mas ele
sabia que para viver, sem ela, seria mais complicado.
É bom salientar, que ele sempre desejou ter uma
família. No entanto, não conseguia cuidar satisfatoriamente da família
que tinha. Perdera a primeira: esposa e um filho e estava ficando sem
a segunda: esposa, duas filhas e um filho. O sentimento de culpa
aumentava a cada dia.
De forma incontida, agora ele voltava ao passado,
talvez buscando explicação para certos acontecimentos, quem sabe,
desejando entender o momento dramático que estava vivendo.
Longe. Bem longe, no tempo e no espaço, ele
começou a reviver mais um período de sua vida em uma outra olaria.
Olaria situada numa fazenda de nome São Bernardo. Lembrava bem
que o ano era 1972. Os dois anos anteriores foram de estiagem(secas
severas). O Sr. Eduardo saiu daquela fazenda, que tomava conta. Não
tinha para onde ir. Foi morar na aludida fazenda São Bernardo. O filho,
que completara dezoito anos em janeiro acabara de ser dispensado
pelo glorioso Exército Brasileiro, por insuficiência física temporária.
Não recebeu logo o tal certificado de dispensa e não tinha dinheiro
para viajar com destino a São Paulo: seu grande sonho; sua grande
esperança de mudar de vida.
Portanto, enquanto não obtinha o valor da
passagem, e para não ser mais um desocupado, foi para a olaria com
o Raimundo e o Zezé. Seu trabalho, desta vez, não seria amassar o
barro com os próprios pés. Não, esse seria o trabalho destinado ao
Zezé. A sua tarefa era cortar lenha para queimar os tijolos fabricados
naquela olaria. O almoço não seria o “chibé”. O alimento era um feijão
tão bichado, que, enquanto cozinhava, os gorgulhos iam subindo e
eram lançados fora da panela com uma colher. Mas a maioria deles
morria no próprio grão e viravam alimento também. Feijão com sal,
farinha, rapadura e gorgulho. No almoço e na janta. Eles, Raimundo e
Zezé, diziam que a comida tinha o melhor tempero do mundo: a fome.
A tristeza naquele jovem era visível. Tudo lhe parecia
sem esperança. O tempo agora estava passando um pouco mais
rápido. Era bem diferente do tempo em que contava apenas oito ou
nove anos de idade. A sua expectativa de ingressar na carreira militar
já era página virada. A possibilidade de concluir pelo menos o primário
fugia completamente do seu controle. Trabalhava sozinho no mato
cortando lenha com um pesado machado. Dormia ao relento: rede
armada de um lado para outro. Não tinha a quem recorrer e não sabia
recorrer. Não sabia falar com Deus. Não sabia quem era Deus.
Durante sua infância ouviu muito sua mãe falar de São Francisco e de
Nossa Senhora de Fátima. Aliás, nome dado por ela a um dos filhos e
a primeira filha, Francisco e Fátima. A mãe do rapaz fazia promessa e
se dizia devota de tais santos, mas aquele jovem não tinha nenhuma
devoção a ninguém. Ele só queria mesmo era sair dali. A ajuda
poderia ser de qualquer santo. Surpreendentemente ele não estava
confiando nos tais poderes dos “guias” da umbanda para tirar-lhe
daquele lugar, nem para deles obter qualquer outro benefício. E foi na
completa ignorância espiritual que ele recorreu a uma senhora que ele
também não conhecia: A padroeira do Brasil, Aparecida. Ocorre que
sem questionamento do aspecto espiritual, certo dia o Sr. Eduardo foi
aquele lugar levando um convite que fora formulado por um tio do
mencionado jovem, irmão da mãe dele, chamado Ricardo. Este
mandara convidar o sobrinho para trabalhar com ele na cidade de
Quixadá e na vizinhança vendendo confecções de porta em porta. Era
o conhecido “Galego”.
Eis uma aparente e nova oportunidade. E seria até
boa, caso ele tivesse um pouco mais de facilidade na comunicação
verbal com as pessoas e fosse menos tímido.
O tio Ricardo era bastante animado e com ele o
aludido sobrinho trabalhou até o início de fevereiro de 1974, quando
embarcou em um ônibus para São Paulo cheio de esperanças. Uma
coisa, todavia tirava-lhe a alegria: a lembrança do lugar onde se
despediu dos seus pais e dos seus irmãos. O lugar era muito ruim e
distante da cidade. A pobreza nunca se afastava daquela família.
Beber, ele não estava bebendo, mas ia várias vezes
à janela do quarto para fumar. Fumava e soprava a fumaça pela janela
sem perceber que uma boa parte daquele veneno ficava ali mesmo no
quarto e atingia em cheio o seu filhinho de apenas alguns meses de
vida que dormia em um berço. Ali, naquele quarto, Ele desejava
ardentemente viver o passado, porém de modo diferente, sem a
devida consciência de que o passado era semelhante à fumaça que
ele soprava naquela janela: nunca mais voltaria àquele lugar.
O único meio ao seu alcance para tocar o passado
era o que ele estava usando: a sua lembrança.
Diariamente ele demorava olhando umas dez
imagens de santos ali expostas no seu dormitório, todavia não
clamava a nenhuma delas. Somente olhava. À bem da verdade, ele
não estava clamando a ninguém. Ele queria mesmo era morrer, mas
não morria.
Depois de fazer os curativos naquela manhã, sua
esposa conversou demoradamente com ele. Pouco a pouco, aquele
homem se tornava mais esmorecido. Não tinha mais nenhum projeto.
Estava se entregando. Considerava-se vencido. Não reunia forças
para reiniciar.
- Noto você muito calado. O que você tem pensado
tanto? Indagou a esposa.
- Eu não gostaria de falar dessas coisas agora. Ele
retrucou.
- Que coisas? Posso saber?
- Não. Quer dizer, até pode...eu é que não quero...
- Eu acho que você vai sair dessa. Você é um
vencedor. Tem gente muito pior do que você.
- Tem mesmo. Tá morto e sepultado.
- Fale assim não. Você ainda é novo. Tenha fé.
- Tenha o quê? Ora vamos...venhamos e
convenhamos. Fé...fé é lutar pelo que quer. Lutei demais. Deu nisso.
Tô na pior. Agora não luto mais por nada. Acabou. Acabou mesmo.
- Tente relacionar dez coisas boas em sua vida e
você vai ver que tem muito mais.
- Tem mais nada...
- Procure lembrar.
- Lembrar é o que mais tenho feito. Não posso viver
de lembranças. As lembranças do passado não estão me ajudando
em nada no presente.
- É, mas lembre que você é formado em Direito e por
isso você é...
- Esqueça isso.
Ele falou para ela esquecer, mas foi exatamente
esse tema que ocupou a sua mente nas longas horas seguintes.
N
o dia cinco de abril de 2006, portanto, decorridos 8 anos
e treze dias da data da sua conversão, Eliardo Cabral
entregou pela primeira vez os dízimos na Casa do
Senhor. Dez por cento (10%) do seu salário bruto. Deixou de pagar
alguns débitos. É certo que, mesmo se apossando dos dízimos e
somando tudo, não seria o suficiente para honrar todos os
compromissos. Decidiu entregar ao Senhor o que verdadeiramente
pertencia a Ele. Não sem antes ler e reler Malaquias 3:7-12: