Se não tivéssemos os nossos próprios defeitos, não teríamos
tanto prazer em apontá-los nos outros
Francois Duc De La Rochefoucauld (1613-1680) 15 quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2004 Tento manter o propósito de publicar O Jornal das Boas A Internet na evangelização dos jovens Notícias de forma mais regular. Hoje inicia-se a Quaresma, um período que marca de forma In: Ecclesia 2004-02-17 19:07:34 muito especial a sequência do tempo no calendário cristão. João Paulo II pediu à Igreja que utilize a Internet na Este número d’O Jornal das Boas Notícias coincide com a evangelização dos jovens, considerando que o seu estreia nos Estados Unidos do filme de Mel Gibson, “The universo cultural está marcado pelas novas tecnologias Passion of the Christ” que esteve na origem de um longa da comunicação. polémica a que só recentemente a comunicação social A intervenção do Papa teve como pano de fundo a portuguesa deu eco. iniciativa dos bispos franceses, denominada Muito provavelmente será um acontecimento que marcará www.inxl6.org (a pronúncia em francês recorda a este período, também em Portugal, já que a estreia do filme expressão latina in excelsis). Este “portal jovem”, entre nós está prevista para o próximo dia 11 de Março. Por dinâmico, discute questões de actualidade, cultura, isso este númerodedica-lhe uma particular atenção. religião, com uma secção de notícias dedicada à Igreja Que este tempo e, porventura este filme sejam uma Católica. oportunidade de conversão para cada um de nós, O portal www.inxl6.org é realizado por sessenta jovens recordando-nos ao mesmo tempo a fragilidade da nossa voluntários que se encarregam tanto do condição humana e, paradoxalmente, o imenso valor que lhe desenvolvimento técnico como da redacção. Cerca de é atribuído por Quem nos criou e salvou. 4.000 pessoas utilizam diariamente seus serviços. Pedro Aguiar Pinto O ciclo de visitas “Ad Limina” que os bispos franceses têm efectuado ao Vaticano, desde há algumas semanas, têm permitido ao Papa lançar vários apelos à renovação Centros de Apoio à Vida da Igreja, nesse país e na Europa (ver notícias Adriano Miranda/PÚBLICO relacionadas). No caso dos bispos de Bordéuse Poitiers, 19-02-2004 - 14h27 a temática de fundo foi a acção junto das camadas Governo cria centros de apoio a mães "em situação de jovens. grande vulnerabilidade" João Paulo II falou no “complexo e difícil contexto” da As destinatárias destes centro são mulheres com fracos juventude, marcado pela “cultura do efémero e do recursos económicos, entre outras condições imediato, que nem sempre é favorável ao O ministro da Segurança Social e do Trabalho aprofundamento, nem ao amadurecimento interior ou ao apresentou hoje os centros de Apoio à Vida, uma discernimento moral”. iniciativa que visa apoiar grávidas e mães recentes "em Nesse sentido, segundo o Papa, o uso dos novos meios situação de grande vulnerabilidade". de comunicação tem um interesse que ninguém pode negar. “A vossa conferência episcopal e numerosas dioceses compreenderam bem o carácter positivo desta mudança, propondo sites na Internet, particularmente dirigidos aos jovens, nos quais é A Internet na evangelização dos jovens................... 1 Centros de Apoio à Vida.......................................... 1 possível informar-se, Jornais Só com Boas Notícias Geram Reacções formar-se e descobrir as Cépticas................................................................... 2 As destinatárias destes centros são diferentes propostas da mulheres com fracos recursos Entrevista com o Cardeal Darío Castrillón económicos, entre outras condições Igreja”, saudou. Hoyos sobre o filme de Mel Gibson......................... 2 Já esta semana estarão no "Hoje Não Há Políticos como Thomas More"......... 3 Bagão Félix explicou que estes Vaticano os bispos da O ar do tempo.......................................................... 4 centros vão fornecer província eclesiástica de «O que Mel Gibson buscava com “A Paixão” conseguiu: golpear» ................................................ 5 atendimento a mães e grávidas, Paris e da diocese das O meu m2................................................................. 7 mas também acompanhamento Forças Armadas. As visitas Confissões juntam-se contra filme de Gibson.......... 8 materno-infantil e formação “ad Limina” do episcopado Uma boa medida...................................................... 8 profissional, além de estarem francês começaram a 28 de Os assassinos da estrada ......................................... 9 equipados para acolher mães e Novembro e de 2003 Os homens e o aborto .............................................. 9 filhos num período máximo de prolongam-se até 28 de O Evangelho segundo Gibson................................ 10 dois anos. Os centros vão ainda Fevereiro próximo. Por amor aos Homens ........................................... 12 permitir a supervisão das A expressão “ad Limina” A Quaresma na tradição........................................ 12 A Paixão do Cristo em Portugal............................ 13 famílias de acolhimento vem do latim “ad Limina temporário. apostolorum (ao túmulo dos Os seus objectivos passam por apóstolos) e designa a visita que cada bispos faz, cada 5 criar as condições necessárias a uma gravidez normal, anos, à Santa Sé. No decorrer desta peregrinação, os ao bom crescimento das crianças e ao apoio das prelados encontram-se com o Papa e visitam os competências profissionais das mães "em situação de responsáveis dos dicastérios da Cúria Romana. grande vulnerabilidade" - falta de formação profissional, instabilidade emocional, comportamentos que ponham que vislumbra "um tempo de vida muito reduzido" a em risco a sua saúde, bem como a do bebé, e condições uma publicação com esta lógica editorial. sócio-económicas desfavoráveis. Fernando Correia, professor universitário e director Cada centro, que terá entre 15 a 20 utentes, será editorial da revista "Jornalismo e Jornalistas", não faz financiado pela Segurança Social em 95 por cento. previsões acerca da aceitação comercial de uma Assim, a comparticipação oscilará entre os 360 e os 270 publicação deste género, preferindo deter-se na questão euros por utente/mês, se o centro tiver 15 ou 20 mães, da sua pertinência editorial. Afirma que, ao nível da respectivamente, e deverá contar com a modalidade de "responsabilidade social dos 'media', um jornal só de acolhimento temporário. No caso de não ser necessário boas notícias seria uma má opção, uma distorção da acolhimento, os financiamentos da Segurança Social realidade." Defende que os jornais têm de ser descem para 210 e 160 euros por utente/mês, para 15 ou "rigorosos, isentos, pluralistas", e que isso "implica dar 20 mães. o bom e o mau da realidade" - ideia que merece Segundo o ministro, este projecto vai funcionar a nível consenso entre os responsáveis ouvidos pelo PÚBLICO. experimental durante um ano, findo o qual serão A viabilidade de um jornal só de boas notícias levou, realizados os ajustes necessários. principalmente os académicos ouvidos, a questionar o Bagão Félix aproveitou o encontro com os jornalistas tipo de informação hoje dominante. "Neste momento, para avançar os dados já existentes sobre os recém- penso que se explora os valores da negatividade nas criados centros de noite, destinados prioritariamente a notícias devido a razões comerciais", critica Fernando idosos. Com estes centros, a tutela pretende acolher Correia. Por isso, considera que "edições pontuais" com durante a noite idosos que de dia estejam em suas casas este tipo de notícias teriam um importante "valor e integrados na sua comunidade, com o objectivo de pôr simbólico", pois contrariariam a tendência geral da fim a situações de solidão e insegurança. informação. Por seu lado, Nélson Traquina afirma que Há já 90 candidaturas de instituições para integrar o "nos 'media' existentes, o espaço reservado às boas projecto, que receberá um apoio de 210 euros por notícias é muito marginal." utente/mês. Destas candidaturas, 50 são da zona centro Fernando Lima e Pedro Tadeu defendem a sua dama, do país, 20 do norte, 15 do Alentejo e duas do Algarve. referindo que os jornais que dirigem procuram destacar os acontecimentos positivos. O primeiro explica que Jornais Só com Boas Notícias Geram Reacções muitas vezes o "DN" publica "coisas importantes na Cépticas primeira página para ajudar à evasão, ao contentamento Por FREDERICO CANTANTE dos leitores". O director do "24 horas" lembra, por sua Público: 24 de Fevereiro de 2004 vez, que "há notícias positivas que vendem muito", destacando o facto de no dia em que um suplemento do "Berlim vai ter mais música", "A cidade alegra-se com o jornal premiou 24 figuras do ano de 2003, ter registado alargamento da União Europeia", "Grande sucesso para o recorde de vendas do passado mês de Janeiro. o Presidente colombiano" (referindo-se à captura de um importante dirigente dos rebeldes das FARC, as Forças Entrevista com o Cardeal Darío Castrillón Hoyos so- Armadas Revolucionárias da Colômbia). Títulos como bre o filme de Mel Gibson estes fizeram recentemente a primeira página da edição Antonio Gaspari dominical do diário generalista alemão "Berliner In: http://www.aciprensa.com/reportajes/passion19.htm; 030918 Morgenpost". "Queridas leitoras, queridos leitores", escrevia em Antonio Gaspari: Sei que já viu o novo filme de Mel manchete o jornal, numa edição com que procurou Gibson, A Paixão. Quais foram as suas impressões? melhorar o ânimo dos leitores e a auto-estima dos Cardeal Castrillón Hoyos: Quando via esta versão, se cidadãos de Berlim. Com esse objectivo, optou por bem que inacabada do filme, experimentei momentos de publicar apenas notícias de acontecimentos positivos profunda intimidade espiritual com Jesus Cristo. É um relacionados com a cidade, o país e mundo. filme que conduz o espectador à oração e reflexão, até à Não sendo inédita, a experiência é, pelo menos, contemplação do coração. De facto, tal como disse a invulgar. Quer isso dizer que os jornais apenas com Gibson depois da sessão, trocaria de bom grado algumas boas notícias não são viáveis nem pertinentes? Nélson homilias que fiz acerca da paixão de Cristo por algumas, Traquina, professor de jornalismo na Universidade mesmo que fossem poucas, cenas do seu filme. Nova de Lisboa, acredita na viabilidade de um jornal Antonio Gaspari: Já se fizeram tantos filmes sobre a desta natureza, por se dirigir a "um nicho de mercado vida de Cristo. Qual é o valor deste? específico." Considera, porém, que seria um produto Cardeal Castrillón Hoyos: Com este filme, Gibson complementar aos jornais generalistas, não um conseguiu algo de verdadeiramente extraordinário. Usou concorrente. a maravilhosa tecnologia disponível através dos nossos O director do "24 horas", Pedro Tadeu, embora pense modernos meios de comunicação para tornar a paixão, que um jornal de boas notícias se enquadra no tipo de morte e ressurreição de Jesus Cristo, um acontecimento "jornalismo provocador" que advoga, considera que ao vivo para as pessoas do nosso tempo. O que ainda é nível comercial teria grandes dificuldades de afirmação mais, o filme é uma obra de arte – a actuação, a - a sua subsistência teria de se apoiar num tipo de cinematografia espantosa, o som, a iluminação, e o "jornalismo militante", que não obedeça aos ritmo – tão poderosa como a mensagem que contém. constrangimentos de mercado. A ideia é corroborada Antonio Gaspari: Mesmo seis meses antes da data de pelo director do "Diário de Notícias", Fernando Lima, estreia “A Paixão” gerou uma grande controvérsia. Tem
O Jornal das Boas Notícias Página 2 de 2 25-02-2004
algumas reservas na recomendação do filme? Gaspari é um jornalista italiano free-lancer, contribuindo frequentemente para vários jornais italianos de primeira grandeza. Cardeal Castrillón Hoyos: Gostaria que todos os padres católicos do mundo vissem este filme. Espero "Hoje Não Há Políticos como Thomas More" que todos os cristãos possam ver este filme, bem como José Manuel Fernandes toda a gente. In: Público, Mil folhas, 21 de Fevereiro de 2004 Antonio Gaspari: Dizem que o filme tem cenas Thomas More foi um político muito diferente - muito violentas. Será que podem provocar ira e ódio entre os diferente mesmo no seu tempo. Determinado, culto, espectadores? coerente até ao fim, firme mesmo na hora do seu Cardeal Castrillón Hoyos: Na minha opinião, um dos martírio, católico num país varrido pelos ventos da grandes objectivos atingidos por este filme é mostrar tão Reforma, sacrificado por ela, era um homem do efectivamente quer o horror do pecado e do egoísmo Renascimento para quem é difícil encontrar um paralelo quer o poder redentor do amor. Ver este filme provoca nos dias de hoje, como nos explicou Peter Ackroyd, amor e compaixão. Faz com que o espectador queira autor da sua biografia. Os tempos não se repetem, os amar mais, perdoar, ser bom e forte em qualquer homens também não, mas há sempre algo das culturas circunstância, tal como Cristo fez perante tão terrível antigas que perdura - mesmo quando elas foram sofrimento. O espectador é conduzido numa poderosa vencidas e ultrapassadas, como foi a Inglaterra experiência do amor, poderoso e ao mesmo tempo medieval, católica e obediente a Roma, a Inglaterra por delicado, de Deus, da sua superabundante misericórdia. que lutou Thomas More. Acredito que se pudéssemos compreender o que Jesus MIL FOLHAS - Foi educado na religião católica. Isso Cristo fez por nós e pudésssemos seguir o seu exemlo teve importância na escolha de Thomas More como de amor e perdão, não haveria ódio ou violência no tema para esta biografia? mundo. Este filme ajudará a torná-lo possível. PETER ACKROYD - Sim. Em Inglaterra não se pode Antonio Gaspari: Como Perfeito da Congregação para dizer que More esteja esquecido, mas é considerado o Clero as suas responsabilidades incluem a uma figura marginal. Quis reabilitá-lo como uma grande coordenação da catequese no mundo inteiro. O filme figura, não apenas como uma grande figura católica, contribui positivamente para o seu trabalho? mas como uma grande figura do país. Por outro lado, Cardeal Castrillón Hoyos: Este filme é um trunfo da quis relembrar a desaparecida civilização católica arte e da fé. Será um instrumento para explicar a pessoa inglesa. e a mensagem de Cristo. Estou confinate que mudará P.- Mas não considera que a Reforma, que acabou por para melhor quem quer que o veja quer sejam cristãos vencer em Inglaterra, seria determinante para aquilo em quer não. Trará as pessoas para mais perto de Deus e que o país se veio a tornar, a maior potência mundial? uns dos outros. R.- É verdade, mas isso não elimina a civilização Antonio Gaspari: A versão de Gibson sobre o católica que lhe era anterior. E, mesmo que essa sofrimento e morte de Jesus é fiel ao relato dos civilização esteja hoje enterrada, a sua herança está lá, evangelhos? permanece. Cardeal Castrillón Hoyos: Gibson teve que tomar P. - Está lá como? muitas opções artísticas no modo como retrata as R. - Em muitas formas de manifestações culturais, no personagens e os acontecimentos envolvidos na Paixão teatro, na música, noutras formas modernas de e complementou a narrativa do Evangelho com as realizações artísticas. intuições e reflexões de santos e místicos ao longo dos P. - E se Thomas More não tivesse sido derrotado? O séculos. Mel Gibson não só segue de perto a narrativa que teria sido de Inglaterra? dos Evangelhos, dando ao espectador uma nova R. - A Inglaterra seria ainda um país católico e teria apreciação dessas passagens bíblicas, como também conhecido formas de civilização muito diferentes. Mas torna o filme fiel ao significado dos Evangelhos, tal isso não aconteceu. E se More sentia que a Inglaterra como compreendido pela Igreja, pelas opções artísticas fazia parte do grande mundo católico que a ligava à que tomou. Europa continental, hoje, de certa forma, a oposição, ou Antonio Gaspari: Alguns grupos e pessoas o cepticismo, que se sente em Inglaterra relativamente à expressaram o seu receio de que a forma vívida como Europa tem algo a ver com a ideia de que essa Europa Gibson mostra a morte de Cristo pudesse deflagrar anti- pertence a uma civilização diferente. A Reforma cortou semitismo. Há alguma verdade nisto? os laços entre a Inglaterra e a Europa continental e isso Cardeal Castrillón Hoyos: Anti-semitismo, como ainda não foi totalmente reparado. todas as formas de racismo, distorce a verdade de modo P. - Uma parte da Europa continental também aderiu à a colocar uma inteira raça de pessoas numa posição Reforma... difícil. Este filme não faz nada disto. Retira da R. - Mas isso não impede que se mantenha uma objectividade histórica das narrativas do Evangelho mentalidade inglesa pequenina que vive a herança desse sentimentos de perdão, misericórdia e reconciliação. grande cisma. Captura as subtilezas d o horror ao pecado, do mesmo P. - Cinco séculos depois? modo que o poder gentil do amor e do perdão, sem fazer R. - Cinco séculos não é assim tanto tempo na história ou insinuar condenações a qualquer grupo. Este filme dos homens. É um piscar de olhos... expressa exactamente o oposto, que aprenendo do P. - Se cinco séculos é um piscar de olhos, que dizer exemplo de Crsto, não deve nunca mais deve haver então das democracias, muitas delas com menos de 60 violência contra qualquer ser humano. anos?
O Jornal das Boas Notícias Página 3 de 3 25-02-2004
R. - É pouquíssimo tempo. Há muitas coisas que hoje. perduram, que vêm do fundo, e num outro livro, sobre P. - Porquê? Londres ["London, A Biography"], escrevo R. - Porque tinha um sentido dos princípios demasiado precisamente sobre isso, sobre o que vem detrás, sobre o forte. espírito da cidade que atravessa os tempos. Há na P. - Isso quer dizer que os políticos de hoje não têm Londres de hoje sinais da Londres dos finais da Idade sentido dos princípios? Média. R. - Não os conheço suficientemente bem, mas julgo P. - Isso apesar de Londres ser uma das cidades do que não são nem tão dedicados nem tão cultos como mundo mais abertas à inovação e à mudança. More era. E essas são duas características-base do seu R. - Sim, é uma cidade perpetuamente nova. carácter que fizeram dele o político brilhante que foi. P. - Qual é o seu segredo? Mas é quase impossível fazer comparações. Seria R. - É a sua antiguidade, a sedimentação dos passados, colocar a pessoa errada no tempo errado. Qualquer ser ser capaz de viver com isso e reinventar. É uma cidade humano está sempre finamente entrelaçado com a época muito orgânica, única no mundo. em que vive. P. - Londres foi a capital do maior império do mundo e, P. - Mesmo assim não teria More qualidades capazes de no entanto, não encontramos nela os sinais de cidade inspirar os políticos de hoje? imperial, de grandeza imperial, que encontramos R. - Mesmo as qualidades são difíceis de separar do noutras cidades, como Pequim, Moscovo, mesmo Paris. tempo em que foram vividas. A sua devoção, por Porquê? exemplo, como seria lida hoje em dia? E quanto à sua R. - Porque sempre foi sobretudo uma cidade comercial. sabedoria, à sua cultura, não acredito que nenhum P. - Aí regressamos a Thomas More. Londres poderia político no activo tenha metade da cultura de More. ter sido a cidade comercial e burguesa que foi e é se Erasmo também era um homem muito culto, à altura de tivesse continuado a ser uma cidade católica? More, mas não estou a ver nos dias de hoje nenhum R. - Não acho que exista uma oposição entre o Erasmo. catolicismo e o capitalismo, e que isso tivesse impedido P. - Mas não há nada nas suas qualidades que possa Londres de se tornar numa cidade onde se procurava a inspirar os políticos modernos? riqueza, fazer multiplicar o dinheiro. Já era assim R. - Talvez. Talvez a sua honestidade, a sua coerência e mesmo nos tempos medievais, antes da Reforma. consistência. E talvez também a sua crença de que um P. - More foi, para a Inglaterra, uma força de progresso bom político tinha também de ser boa pessoa - se bem ou representou a resistência a esse progresso? que seja difícil dizer o que é uma boa pessoa. R. - Depende. Para muitos foi uma força da reacção, mas julgo que defini-lo em função de ser progressista ou O ar do tempo reaccionário não é correcto. Ele acreditava num sistema José António Saraiva de valores que, na altura, pelo menos em Inglaterra, In: Expesso, 040221 estava a desaparecer, mas isso não faz dele «O 'ar do tempo' é o que pensam as pessoas que não obrigatoriamente uma força da reacção. No entanto, pensam.» talvez a sua fidelidade a Roma, se tivesse sido seguida, O QUE é o «ar do tempo»? poderia não ter facilitado as ambições imperiais Proponho uma definição: o «ar do tempo» é o que inglesas. Talvez haja alguma relação entre a ascensão pensam as pessoas que não pensam. do protestantismo e a ascensão do império. Em relação a todos os assuntos há os que procuram P. - Quais são os aspectos da vida de More que mais o reflectir e chegar a uma conclusão - e os que apanham atraíram? A sua figura como estadista ou o seu destino uma opinião no ar e a adoptam sem pensar. como mártir católico? A opinião que a maioria das pessoas adopta deste modo R. - Quando escrevi o livro, preocupei-me mais com a «leve» corresponde ao «ar do tempo». figura do estadista, até porque o seu lado religioso, a sua No que respeita ao aborto, é evidente que o ar do tempo santidade já haviam sido largamente explorados por é favorável à despenalização. outros. Estava mais interessado no More secular, no Por isso, os partidos que a defendem reclamam More ambicioso, no More burguês, mais interessado no continuamente o referendo: eles sabem que, mais tarde advogado do que no santo. Olhando para trás, julgo que ou mais cedo, o referendo ser-lhes-á favorável. são essas suas características que são mais importantes DOIS exemplos. ao olhar para a sua vida com olhos do século XXI. Entro no talho e o dono, ainda jovem, lamenta as Admiro em especial a sua ambição, a capacidade de mulheres que estão a ser julgadas em Aveiro. trabalho, o ser um homem de imensa cultura. Já não Pergunto-lhe se acha o aborto uma coisa boa. admiro tanto o seu caminho em direcção ao martírio, Responde-me que não mas que, enfim, às vezes não há mesmo reconhecendo a sua coragem. outro remédio. P. - Admirou o ser humano? - Se calhar mais tarde arrependem-se de ter abortado... - R. - Na medida em que podemos conhecer realmente argumento a apalpar o terreno. - Conheço mulheres que um ser humano que morreu há mais de 500 anos. estiveram para abortar mas que decidiram ter os filhos, e P. - Se Thomas More fosse um político hoje, onde acabaram por se sentir satisfeitas por terem tomado essa estaria? decisão. R. - Não sei. Podia estar em qualquer lado, mas acho O homem olha-me surpreendido. que a sua figura não se adaptaria à política dos dias de Também ele agora tem dúvidas. Só que nunca tinha pensado muito sobre o assunto.
O Jornal das Boas Notícias Página 4 de 4 25-02-2004
Ele era favorável ao aborto simplesmente porque isso defende o consumo das drogas leves, a prática do corresponde ao «ar do tempo». aborto, a eutanásia. SEGUNDO exemplo: sento-me à mesa do refeitório As «novas causas» parecem ser as causas que antecipam com dois colegas, um que conheço bem e outro, mais a morte - sendo o BE o punho que segura a foice que jovem, que conheço mal. dará o golpe final. O mais jovem fala da estupidez das mulheres que estão Talvez seja este um dos sinais mais claros de uma certa a ser julgadas em Aveiro, «em pleno século XXI». decadência. Adianto que, exactamente por estarmos no século XXI, jsaraiva@mail.expresso.pt não há razão para uma mulher abortar. «O que Mel Gibson buscava com “A Paixão” - Esta discussão sobre o aborto está atrasada vinte anos - conseguiu: golpear» atiro-lhe. - Com tantos métodos anticoncepcionais, desde os preservativos à pílula do dia seguinte, com Vittorio Messori tanta informação sobre o assunto, é preciso uma pessoa In: Zenit 040218 ser muito irresponsável para ter de recorrer ao aborto. Vittorio Messori partilha sua impressão sobre o filme - Lá isso é verdade... - condescende o meu jovem ROMA, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004 interlocutor. (ZENIT.org).- Vittorio Messori foi um dos poucos - Em lugar de haver tantas organizações empenhadas na jornalistas europeus a ver a última produção despenalização do aborto se calhar deviam empenhar-se cinematográfica de Mel Gibson. Neste artigo -- mais em alertar as mulheres para que o aborto é uma publicado esta quarta-feira pelo jornal espanhol «La prática horrível, que deixa marcas muito profundas, e Razón»--, relata o impacto que lhe produziu o filme «A havendo hoje tantos meios de evitar a gravidez é Paixão». Messori está entre os escritores católicos mais inaceitável uma mulher abortar. vendidos e traduzidos do mundo. O meu interlocutor olha-me surpreendido. *** O que eu digo é evidente mas nunca lhe tinha ocorrido. Na sala sonorizada, a luz volta a acender-se após duas Ele defendia o aborto apenas porque isso corresponde horas e seis minutos. Somos apenas doze, de muitos ao «ar do tempo». países, conscientes de nosso privilégio: por convite de ESTA semana foi discutido outro tema que tem muito Mel Gibson e do produtor Steve Mc Eveety somos os que ver com este «tempo». primeiros na Europa a ver o filme recém-chegado de Refiro-me ao uso da «cannabis» sob prescrição médica Los Angeles. O mesmo que na próxima quarta-feira de com fins paliativos. cinzas estreará em duas mil salas americanas, em O Bloco de Esquerda, como é natural, empenhou-se quinhentas igrejas, em outras tantas australianas, o nesta «causa». mesmo que na primeira semana recuperará os 30 Porquê? milhões de dólares de custo da produção. Nem sequer o Porque está muito preocupado com os doentes que Papa viu mais que uma versão provisória, à qual lhe precisam de cuidados paliativos? faltava, entre outras coisas, parte da banda sonora. Mas Duvido. sim, esta tarde somos os primeiros (os espanhóis o verão Aliás, não há nenhum argumento médico que implique em 2 de Abril e os italianos terão de esperar até ao dia 7, o uso da «cannabis»: os seus efeitos podem ser obtidos sexta-feira da paixão). através de outros produtos. Chorando em silêncio Por que se empenha tanto, então, o BE? Quando terminam de passar os títulos de crédito, onde Creio que essa militância se explica pelo seguinte: o BE os nomes americanos se alternam com os italianos, onde quer provar que as drogas leves, ao contrário do que se os agradecimentos à cidade de Matera se alinham junto diz, até podem ser benéficas para à saúde. ao nome de teólogos e especialistas em línguas antigas; O BE quer induzir a ideia de que a «erva» não é o quando o técnico toca o interruptor que acende as luzes, monstro que os conservadores querem fazer dela e até a sala permanece em silêncio. Duas mulheres choram, pode ser uma coisa boa, prescrita pelos médicos, silenciosamente, o monsenhor que tenho a meu lado recomendável em diversas situações. está pálido, com os olhos fechados; o jovem secretário É NECESSÁRIO dizer que estamos no campo da mais atormenta nervoso um rosário; um tímido, solitário refinada hipocrisia. início de aplauso se apaga em seguida, envergonhado. O BE joga com a «causa» dos doentes terminais, mostra Durante longos minutos ninguém se levanta, ninguém se a sua preocupação com o sofrimento, tendo como único move, ninguém fala. Assim o que nos anunciavam era objectivo fazer mais uma campanha a favor das drogas certo: «The Passion of The Crist» golpeou-nos; o efeito leves cujo consumo sempre defendeu. que Gibson pretendia realizou-se em nós, primeiras O Bloco de Esquerda é um fenómeno estranho. cobaias. Eu continuo desconcertado e mudo: durante Por um lado tem a virtude de se apresentar como uma anos estudando, uma por uma, as palavras do grego com coisa «nova» - e o «novo» tem sempre um lado as quais os evangelistas narram aqueles fatos; nenhuma estimulante, atractivo. minúcia histórica daquelas horas em Jerusalém me é É isto que explica, aliás, o seu relativo sucesso entre os desconhecida, estudei um livro de quatrocentas páginas jovens: o Bloco é visto como uma força que anuncia o que tampouco Gibson ignorou. Sei-o todo. Ou melhor, futuro, que antecipa o que está para vir. agora descubro que cria que sabia: tudo muda se aquelas O problema é que, em vez de ter uma atitude positiva e palavras se traduzem em imagens que conseguem alegre perante a vida, tem uma posição mórbida: transformá-las em carne e sangue, em emaranhados de amor e ódio.
O Jornal das Boas Notícias Página 5 de 5 25-02-2004
Mel disse com orgulho e humildade ao mesmo tempo, No plano técnico, o filme é de uma altíssima qualidade. com um pragmatismo mesclado com misticismo que faz Pasolini, Rossellini, o próprio Zeffirelli ficam reduzidos dele uma mistura singular: «Se esta obra falha, durante a parentes pobres e arcaicos: em Gibson há uma luz cinquenta anos não haverá futuro para o cinema sábia, uma fotografia magistral, um guarda-roupa religioso. Neste filme enchemos o que restava: todo o extraordinário, cenografias desoladas e, quando é dinheiro que precisava, prestígio, tempo, rigor, o necessário, sumptuosas; uma maquilhaagem de incrível carisma de grandes actores, a ciência dos eruditos, a eficácia, alguns grandes profissionais, vigiados por um inspiração dos místicos, experiência, técnica de director que é também um ilustre colega. E, sobretudo, vanguarda e, sobretudo, a nossa certeza de que valia a alguns efeitos especiais tão maravilhosos que, como nos pena, de que o que ocorreu naquelas horas diz respeito a dizia Enzo Sisti, o produtor executivo, ficarão em cada homem. Com este Hebreu teremos que ver-nos segredo, confirmando o enigma da obra, onde a técnica todos depois da morte. Se não conseguimos, quem quer estar ao serviço da fé. Uma fé na sua versão mais poderá fazê-lo? Mas consegui-lo-emos, estou seguro: o católica -- com o beneplácito do Papa e de tantos nosso trabalho esteve acompanhado de muitos sinais cardeais, inclusive de Ratzinger -- da qual «A Paixão» é que me confirmam». um manifesto cheio de símbolos, que só um olhar Com efeito, no set ocorreu mais do que se sabe, e competente é capaz de discernir do todo. Faria falta um muitas coisas ficarão no segredo das consciências: livro (de facto, estão em preparação dois) para ajudar o conversões, libertações das drogas, reconciliações entre espectador a compreender. inimigos, abandono de laços adúlteros, aparições de Em síntese, a «catolicidade» radical do filme reside, personagens misteriosos, explosões de energia sobretudo, na rejeição de qualquer desmistificação, em extraordinárias, extras que se rodeavam ao passar do tomar os Evangelhos como crónicas precisas: as coisas, extraordinário Caviezel-Jesus, até dois relâmpagos, um diz-se-nos, foram assim, como as Escrituras o dos quais alcançou a cruz, e que não feriu ninguém. E descrevem. O catolicismo está no reconhecimento da depois, casualidades lidas como sinais: a Virgem com o divindade de Jesus que convive com sua plena rosto da actriz judia de nome Morgenstern, que --se humanidade. Uma divindade que irrompe na sobre- deram conta depois-- é, em alemão, a «Estrela da humana capacidade daquele corpo sofrer uma manhã». quantidade de dor como ninguém sofreu antes nem Compreender com o coração depois, em expiação de todo o pecado do mundo. Gibson lembrou-se da advertência do Beato Angélico: Uma «catolicidade» radical (que, prevejo, porá em «Para pintar Cristo, faz falta viver com Cristo». O dificuldades algumas Igrejas protestantes, já ambiente na cidade de Matera e nos estudios de generosamente mobilizadas para dar alento à Cinecittà parece ter sido aquele das sagradas distribuição) também no aspecto «eucarístico», representações medievais, das procissões de flagelantes reafirmado na sua materialidade: o sangue da Paixão em peregrinação. Um carro de Tespis do século XIV, está sempre unido ao vinho da Missa e a carne para o qual, cada tarde, um sacerdote com sotaina negra martirizada, ao pão consagrado. E está também no tom de longa fileira de botões celebrava uma missa em fortemente mariano: a Mãe e o Diabo (que é mulher, ou latim, segundo o ritual de São Pio V. Aqui está a razão talvez andrógino) são omnipresentes, uma com a sua verdadeira da decisão de fazer falar aos judeus na sua dor silenciosa, o outro -- ou a outra -- com sua própria língua popular, o aramaico, e aos romanos num complacência maligna. De Anna Caterina Emmerich, a latim vulgar, de militares, que nos fere o ouvido aos vidente estigmatizada, Gibson tomou intuições velhos alunos do Liceu, acostumados aos refinamentos extraordinárias: Claudia Prócula, a mulher de Pilatos, ciceronianos. que oferece, chorando, a Maria os panos para recolher o Gibson, católico, amante da tradição, é um forte sangue de seu Filho, está entre as cenas de maior seguidor da doutrina afirmada no Concílio de Trento: a delicadeza do filme, que, mais que violento, é brutal. Missa é, sobretudo, sacrifício de Jesus, renovação da Como brutal foi, recordou, a Paixão. Se ao martírio se Paixão. Isto é o que importa, não o «compreender as dedicam duas horas, dois minutos bastam para recordar palavras», como querem os novos liturgistas, de cuja que não foi aquela a última palavra: da sexta-feira superficialidade se lamenta Mel, porque lhe parece Santa, à Ressurreição, que Gibson resultou acolhendo blasfémia. O valor redentor dos atos e dos gestos que uma leitura das palavras de São João, que também eu têm seu cume no Calvário não necessita de expressões propus. Um «esvaziamento» do sudário, deixando um que todo o mundo possa compreender. Este filme, para sinal suficiente para «ver e crer» que o réu triunfou seu autor, é uma Missa: faça-se, portanto, numa língua sobre a morte. obscura, como o foi durante tantos séculos. Se a mente Anti-semitismo? não compreende, melhor. O que importa é que o Anti-semitismo? Não brinquemos com palavras coração entenda que tudo o que sucedeu nos redime do demasiado sérias. Visto o filme, creio que têm razão os pecado e nos abre as portas da salvação, como recorda a judeus americanos que aconselham os seus profecia de Isaías que se apresenta como prólogo a todo correligionários a não condenar o filme antes de vê-lo. o filme. Fica claríssimo que o que pesa sobre Cristo e o reduz O prodígio, portanto, parece-me que se realizou: àquele estado não é a culpa deste ou daquele, mas o passado um momento, abandona-se a leitura dos pecado de todos os homens, sem excluir nenhum. À subtítulos para entrar, sem distrações, nas cenas -- obstinação de Caifás em pedir a crucifixão (aquele terríveis e maravilhosas-- que se bastam a si mesmas. saduceu colaborador que não representava o povo
O Jornal das Boas Notícias Página 6 de 6 25-02-2004
judeu: o Talmud tem para ele e seu sogro palavras uma morte são os mesmos que friamente decidem da terríveis) faz abundante contrapeso o sadismo inaudito morte de inúmeros seres em formação? dos verdugos romanos; às vilezas políticas de Pilatos, Como entender na verdade, que por um lado tanto nos opõe-se a coragem do membro do Sinédrio -- episódio regozijemos quando as estatísticas revelam decréscimo acrescentado pelo diretor - que enfrenta o Sumo da mortalidade e morbilidade infantis por melhor Sacerdote gritando-lhe que aquele processo é ilegal. E acompanhamento das futuras mães, como um não é acaso judeu o João que sustenta a Mãe, não é indesmentível indicador do progresso da civilização, e judia a piedosa Verónica, não é judeu o impetuoso por outro, queiramos chegar cada vez mais depressa ao Simão Cirineu, não são judias as mulheres de Jerusalém modelo dos países ditos civilizados, em que o aborto que gritam seu desespero, não é judeu Pedro, que, inicialmente também ele circunscrito às primeiras perdoando, morrerá pelo Mestre? No começo do filme, semanas e só em casos extremos, já se faz hoje a antes que o drama se desencadeie, Madalena pergunta, simples pedido de uma mãe grávida, sem qualquer angustiada, à Virgem: «Por que é que esta noite é tão fundamento e em qualquer momento da gravidez ? diferente de qualquer outra?», «Porque -- responde Posso compreender a angústia e o desespero de uma Maria -- todos os homens são escravos, e agora já não o mulher grávida, que por muitas e variadas razões serão mais». Todos, mas absolutamente todos. Sejam pessoais, não suporta a ideia de estar à espera de um «judeus ou gentios». Esta obra, diz Gibson, amargurado bebé em determinada ocasião. Compreendo-a tanto por agressões preventivas, quer repropor a mensagem de melhor, quanto mo permite o facto de ser mãe. Sei um Deus que é Amor. E que Amor seria este se também, porém, que é possível passar da angústia à excluísse alguém? aceitação- quando se encontram vozes amigas de apoio Vittorio MESSORI e compreensão- e da aceitação ao amor. Olho à minha O meu m2 volta e vejo que tem sido esse o louvável trabalho de uma série de instituições como a Ajuda de Berço, Ponto Fátima Fonseca de Apoio à Vida, Juntos pela Vida , Vida Norte e de 31 Janeiro 2004 tantas outras, bem como de tantos outros voluntários À porta da Universidade Católica, no final de mais uma individuais, anónimos e desconhecidos. manhã de sábado, depois das aulas, ficamos em pequeno Por outro lado, vejo claramente, que o desespero, a falta grupo a trocar impressões. A conversa , como não podia de apoio e o isolamento de uma grávida podem conduzi- deixar de ser, acabou com o tema que mais perturbou o la à cegueira total, aliás à pior das cegueiras que é recente quotidiano nacional. Uma colega, dizia-me, à acreditar que só lhe resta matar, mas como matar é uma despedida :-“ Tens de falar sobre isto no teu metro palavra demasiado violenta, verdadeira e forte, e há o quadrado...” medo de ir contra a lei, então precisa urgentemente de Já adivinharam- claro!- mas mais do que comentar a encontrar alguém que lhe faça uma “interrupção impossibilidade de ficarmos indiferentes à morte voluntária da gravidez”, discretamente, para se ver livre inesperada de um jovem jogador na pujança da vida, em depressa, depressa, dessa “coisa”...como se se tratasse pleno campo de futebol, e à torrente de emoções que se de um tumor, ou de uma doença. apossaram de todos quantos assistiam ao jogo, queria Porém, o pior que se pode fazer a um cego prestes a antes referir-me ao choque que representa o lado visível despenhar-se num abismo é empurrá-lo para que caia desta morte em concreto e a reacção emocional natural, mais depressa, e no entanto, é esse exactamente o papel multiplicada pela pressão dos meios de comunicação, que desempenham todos quantos , muito embora permanentemente repetindo as mesmas cenas e concordando que o aborto é uma coisa horrível e que despoletando uma imensa onda de comiseração. De não pode ser considerado meio de contracepção, apesar repente, a morte- que procuramos tanta vez esquecer e disso pretendem despenalizar um crime, e aprová-lo afastar, tão arredada está dos nossos conceitos de mesmo, alegando que se trata de uma questão de qualidade de vida! – entrou-nos casa adentro, sem consciência individual e que as leis reflectem os ficção, demolindo todas as nossas defesas artificiais e costumes, pelo que se o aborto entrou nos costumes elaborações mentais e deixando-nos repentinamente então deve ser legalizado... indefesos perante a única certeza futura que podemos Mas será que alguém ousa propor que se proceda assim ter. É perfeitamente natural esta espécie de pena e de com todos os outros erros da sociedade – corrupções, insegurança nacional , que revela à saciedade a pedofilias, violações, roubos, homicídios...- que tantas convicção geral e inata de que a vida é um bem, um vezes ficam por julgar, por provar e castigar, ou que em valor, ainda que precário e independente da nossa tantas outras ocasiões acabam por merecer penas vontade, e a noção de solidariedade, isto é ,de que o que menores por haver atenuantes ? afecta os outros também nos toca a nós. Na verdade o bem comum requer, qualquer que seja o campo da prevaricação, doa a quem doer, que a acção Pergunto-me então, se muitos dos que choraram ante a lesiva do bem e da liberdade do outro - o erro - visibilidade desta morte e o sofrimento dos colegas, continue a ser apontado como tal, o que não impede amigos e familiares de Miklos Féher, não terão também naturalmente, respeito e compreensão com a pessoa em ajudado a completar o total de assinaturas entregues em causa no acto de julgamento, e além disso exige, que favor do aborto, isto é o pedido de aprovação legal da sejam tomadas sérias medidas preventivas . morte de seres humanos ainda em formação é certo, mas A grande filósofa do séc. XX, Simone Weil ( não por isso mesmo seres humanos totalmente inocentes e confundir com Simone Veil dos nossos dias!) escreveu , indefesos ? Os mesmos que assim se comovem perante
O Jornal das Boas Notícias Página 7 de 7 25-02-2004
em certa ocasião, a Bernanos ( e cito Michel formação, apesar de confirmarem que o Santo Padre viu Schooyans, “ A escolha da vida”, pg 285, ed. Grifo): o filme sem emitir comentários. “(...)Quando as autoridades temporais e espirituais Vários grupos evangélicos e católicos americanos, aos colocam toda uma categoria de seres humanos à parte quais Mel Gibson projectou o filme, saíram já em sua daqueles cuja vida se preza, matar torna-se a coisa mais defesa e frisaram que a obra é fiel à letra do Novo Tes- natural para o homem. Quando se sabe que é possível tamento. O reverendo Ted Haggard, presidente da As- matar sem incorrer em castigo ou sofrer reprovação, sociação Nacional Evangélica, classificou The Passion mata-se; ou pelo menos, rodeia-se os que matam de of the Christ como «uma grande, incrível obra de arte». sorrisos encorajadores. Se por acaso, no começo se As iniciativas dos grupos judaicos e cristãos que se experimenta alguma repulsa, guarda-se silêncio e bem opõem a The Passion of the Christ pretendem ainda depressa se abafa com receio de ser acusado de faltar à recordar que as dramatizações medievais da paixão de virilidade.” Cristo eram usadas na época para incitar à violência ...Só queria dizer-vos em jeito de conclusão, que tal antijudaica e que, hoje em dia, muitas denominações como Peres Metelo dizia há poucos dias num telejornal, cristãs rejeitam a responsabilidade colectiva dos judeus a propósito dos maus resultados agora conhecidos, dos na morte do Salvador. Outras medidas incluem a edição alunos portugueses em provas de aferição de português de «guias» explicando os motivos da oposição ao filme, e matemática, que todo este quadro era resultado de e como os comunicar aos fiéis e às crianças. muitos anos de menor exigência e “que isto se reflectiria Mel Gibson, membro de um grupo católico tradicional- no PIB dentro de 20 anos”, também eu acredito – num ista que não aceita as reformas do Concílio Vaticano II e plano ainda mais grave- que leis iníquas, que celebra a missa em latim, defende-se com veemência falsamente pretendam vir a “facilitar a vida” hoje, terão das acusações de anti-semitismo. Além de realizar The necessariamente efeitos bem mais perversos já no Passion of the Christ, Gibson também escreveu o argu- presente, mas sobretudo no futuro, no tecido social, na mento do filme, pondo mais de 25 milhões de euros do vida e no coração de cada um. Não é possível querer seu bolso na produção. melhorar a vida de uns, condenando à morte incontáveis seres inocentes! Uma boa medida É por isso que vos convido a subscrever o Henrique Monteiro oportuníssimo manifesto “ Mais vida, mais família” e a In: Expresso, 040131 ajudar à sua divulgação! Todos teremos certamente nas «As regras devem ser claras: as Universidades devem nossas vidas muita coisa de que nos arrependemos escolher os seus alunos.» seriamente, talvez até relacionada com este tema tão NUMA SEMANA tão desastrada para o Governo (e que próximo de todos nós, mães e pais de família !...Por tanto nos faz recordar os períodos finais do cavaquismo favor, aproveitemos esta oportunidade para “dar a cara”, e do guterrismo) surgiu uma excelente medida na Edu- e desta vez, não deixemos que por preguiça, dúvidas, ou cação. Não tão mediática como a retenção de descontos respeito humano, o assunto nos passe ao lado ! ou como o pedido de empréstimo bancário para pagar a Manuela Ferreira Leite, mas uma medida de fundo que Confissões juntam-se contra filme de Gibson pode, segundo creio, melhorar muito a qualidade do In: DN 040203 Ensino Superior e a motivação de quem o frequenta. Grupos judeus e cristãos americanos estão a mobilizar- Graça Carvalho, uma ministra discreta, está disposta a se para organizar palestras, conferências interconfes- alterar radicalmente as regras de acesso às Universi- sionais e outras iniciativas, visando «atenuar o impacto» dades. E vai fazê-lo no sentido óbvio - dotando as Uni- do filme de Mel Gibson The Passion of the Christ, que versidades de mais autonomia e fazendo com que sejam tem estreia marcada nos EUA para dia 25, Quarta-Feira estas a escolher os seus próprios alunos. Até agora, de Cinzas, em 2000 cinemas. como se sabe, a admissão era geralmente decidida por O filme descreve as últimas 12 horas da vida de Cristo um exame nacional que definia os alunos com melhores (interpretado pelo actor Jim Caviezel) de forma extre- notas, mas nem sempre os com melhores vocações. Por mamente realista, é falado em latim e aramaico e tem isso, em Medicina entravam certamente excelentes vindo a ser uma enorme fonte de controvérsia, por ale- «marrões», mas nem sempre estudantes que toda a vida gadamente conter uma «visão anti-semita» da paixão de tinham sonhado em ser médicos. Alguns destes, pelo Cristo. contrário, iam parar a Farmácia, a Veterinária, a Biolo- The Passion of the Christ foi já condenado pela Anti- gia ou mesmo a cursos em que jamais tinham pensado. Defamation League judaica e pelo American Jewish Ganham, assim, os estudantes que, mesmo com notas Committee. Representantes das duas organizações con- menos boas, possam demonstrar um interesse real pelo cluíram, após verem o filme, que este contém «es- curso a que se candidatam. E ganham as universidades tereótipos destrutivos» sobre o papel dos judeus na em autonomia, uma vez que passam a ser elas a escolher morte de Cristo, representando «um preocupante ret- os alunos que querem ter em cada curso, e não a ver rocesso em relação aos destacados progressos realizados alunos impostos pela força de um exame nacional que nas relações entre judeus e cristãos nos últimos 40 as mais das vezes versava sobre matéria que nem é de- anos». terminante para esse curso. O Papa João Paulo II também viu o filme recentemente, Como todas as reformas, também esta já conheceu al- tendo depois corrido a notícia de que o havia elogiado. gumas reticências. Meira Soares, por exemplo, fez notar Fontes do Vaticano apressaram-se a desmentir essa in- que o mesmo aluno ter-se-á de deslocar a várias univer- sidades para fazer o exame de admissão. Mas ele
O Jornal das Boas Notícias Página 8 de 8 25-02-2004
mesmo sugeriu que possa haver associações entre Uni- Apurem-se as causas dos acidentes nas estradas portu- versidades para obviar a esse incómodo. guesas. Naturalmente, outras objecções irão surgir - de profes- Veja-se de que resultam: se de distracção, de negligên- sores, de estudantes e, de um modo geral, de gente li- cia ou de incúria - se de evidente excesso de velocidade, gada ao ensino. Nenhuma reforma que ponha em causa de desrespeito ostensivo pelas regras de trânsito ou de a Educação se fará sem contestação. Por isso mesmo, é desafio aos mais elementares princípios de vida em so- bom que as medidas tomadas sejam claras e passíveis de ciedade. se constituir em regra permanente. É o caso desta. As Julguem-se os actos passíveis de julgamento e divul- Universidades devem escolher os seus alunos. E, já ag- guem-se os resultados. ora, é o caso das propinas: as Universidades devem es- Ninguém pode evitar as mortes na estrada. tabelecer as suas propinas. Sem limites nem intervenção Mas que, ao menos, os assassinos da estrada não fiquem do Ministério, cujo papel no apoio ao acesso à Univer- impunes. sidade se deve limitar ao apoio da Acção Social. Só E que isso nos dê esperança de que o seu número vá assim haverá as necessárias autonomia, liberdade e con- progressivamente diminuindo. corrência no ensino. Este é o caminho mais directo para que cada interveniente no ensino saiba o seu papel. Os homens e o aborto hmonteiro@mail.expresso.pt José António Saraiva In: Expresso 031227 Os assassinos da estrada «A lei deve ter em conta princípios; a aplicação da lei Editorial Expresso 040131 tem a obrigação de ponderar as circunstâncias concre- «Muitas mortes na estrada resultarão de falta de cui- tas em que um determinado acto foi praticado.» dado e deverão ser classificadas como homicídios in- COMEÇA a ser cansativo falar do aborto: os argumen- voluntários. E outras terão na origem comportamentos tos a favor e contra estão estafados. assassinos e deverão ser encaradas de forma mais Já deitamos pelos olhos os cartazes reclamando o «Di- grave.» reito à vida» e as «T-shirts» estampadas com frases FINALMENTE a Brigada de Trânsito vai passar a in- como «Eu mando na minha barriga». vestigar os acidentes de viação. Não adianta ir por aí. Custa a perceber como só agora, cem anos passados As questões que ainda vale a pena colocar são outras. sobre a introdução do automóvel em Portugal, se pensou Por exemplo: nas actuais circunstâncias, que sinais no assunto. deveremos dar à sociedade? Mas mais vale tarde do que nunca. Sendo certo que atravessamos uma crise de valores, de De uma vez por todas, é preciso tomar consciência de princípios e de causas, será mais útil dar às pessoas si- que o automóvel é uma arma perigosa - a mais perigosa nais que vão no sentido da responsabilidade ou da des- e mortífera de todas as armas - e que os crimes ao vo- responsabilização? lante devem merecer penas tão pesadas como os outros. Sinais que apontam para a necessidade de responsabi- É incompreensível que um automobilista circulando a lizar mais as pessoas ou de as desresponsabilizar? 200 quilómetros por hora possa matar uma família Que contribuam para fazer crescer a exigência ou, pelo inteira e ficar impune. contrário, para aumentar as facilidades? CONSTANTEMENTE assistimos na estrada a compor- A segunda questão diz respeito à relação dos homens tamentos criminosos. com o aborto. São carros que passam por nós ao dobro da velocidade a Todos sabemos que muitas mulheres são empurradas que vamos, quando já vamos no limite de velocidade para o aborto pelos companheiros - seja por não quere- permitido. rem reconhecer a paternidade, seja por acharem que é São ultrapassagens loucas em locais proibidos. cedo para assumir compromissos, seja por considerarem São manobras contra as mais elementares regras de bom não dispor de condições económicas ou, simplesmente, senso. por não quererem ter mais filhos. Tudo isto se faz impunemente - porque é impossível ter Na decisão das mulheres que praticam aborto pesa pois um guarda em cada esquina ou em cada quilómetro de sempre, em menor ou maior em grau, a atitude do com- estrada ou auto-estrada. panheiro ou do marido. Mas, ao menos, que se investiguem a fundo os acidentes Nessa medida, faz algum sentido que só as mulheres e sobretudo aqueles de que resultam mortos ou feridos possam ser julgadas e condenadas? graves. Não deveriam os homens ser igualmente responsabili- Um automobilista não deve poder usar o carro como zados? arma assassina, matando uma família por incúria ou A terceira questão prende-se com a ideia que existe so- inobservância deliberada das regras da estrada - e depois bre a penalização e a despenalização. regressar tranquilamente à vida normal. Na cabeça de muita gente a penalização do aborto tem Muitas mortes na estrada resultarão de falta de cuidado - como objectivo punir as mulheres que praticam aborto. e por isso deverão ser classificadas como homicídios Ora o objectivo da penalização é exactamente o con- involuntários. trário: é prevenir o aborto. E outras terão na origem comportamentos assassinos - e É contribuir para que as mulheres não o pratiquem. essas deverão ser encaradas de forma mais grave. Numa lei como esta, o objectivo principal é preventivo. INVESTIGUE-SE a fundo. Ao punir-se o mal, visa prevenir-se o mal. Perante o que fica escrito, perceber-se-á a minha
O Jornal das Boas Notícias Página 9 de 9 25-02-2004
posição - que, aliás, tem sido sempre a mesma. Mas a ideia de entreter No momento de crise que atravessamos, penso que não com metade de piedade e faz sentido dar à sociedade sinais que vão no sentido da metade de espírito san- facilidade. guinário não podia estar Que apontam no sentido da desresponsabilização. mais longe daquilo que Por isso, movimentos como o da despenalização do Gibson se propôs fazer. aborto ou da droga vão no sentido errado. «Todos nós passamos por Por outro lado, é inadmissível continuar a encarar o um ponto nas nossas aborto como um assunto «das mulheres». vidas em que batemos na Os homens têm sempre nele parte activa - e portanto parede. Não é? Acontece- devem ser igualmente responsáveis perante a lei. nos a todos. E é tão dolo- Mais: a responsabilização penal dos homens contribuirá roso. Mas a dor é a para que encarem este problema de forma menos levi- grande precursora da ana do que muitas vezes acontece. mudança», afirma ele Finalmente, é necessário ter em conta que uma coisa é a numa rajada rápida de lei e outra a aplicação da lei. palavras, com medo que A lei deve ter em conta princípios; a aplicação da lei lhe interpretem a confissão como um apelo desesperado tem a obrigação de ponderar as circunstâncias concretas vindo de uma pobre alma carente, pegajosa. Depois con- em que um determinado acto foi praticado. tinua, estóico: «No meu caso, cheguei a um ponto de Dito de outro modo, a lei não pode admitir o aborto - tanta miséria, da mais profunda, pessoal e interior, que mas os juízes não têm obrigatoriamente de condenar as só tive uma solução: pus um ponto final no que sentia, mulheres que abortam, porque devem ter em conta dei meia volta e passei a ser um homem de fé. Foi, acho, aquilo que as levou a fazê-lo. através da fé que se me tornou possível fazer o caminho Ninguém, entre os que defendem a despenalização e os de regresso. E foi exactamente através da Paixão de que não a aceitam, quer que as mulheres que abortam Cristo, central na fé cristã, que pude sentir-me regres- sejam condenadas. sado». O que todos querem é que não se pratiquem abortos. «SOMOS SERES IMPERFEITOS» Por isso é errado facilitá-los. Quando se soube que Gibson estava a trabalhar secre- jsaraiva@mail.expresso.pt tamente em Itália numa história que, corria o boato, O Evangelho segundo Gibson tinha como missão primeira repor toda a verdade na maneira como Cristo foi traído e crucificado sem Rui Henriques Coimbra piedade, a primeira reacção que se tornou pública veio In:Expresso, Única, 040221 dos sectores judaicos. Veio feroz, quase ameaçante. Reaccionário e perigoso para uns, sincero para outros, Dado que o realizador é uma estrela famosa e adepta de «A Paixão de Cristo», o novo filme do actor e reali- uma estria da fé católica que é bastante mais conserva- zador Mel Gibson, com estreia marcada para Quarta- dora que a do Vaticano actual, de repente o seu novo Feira de Cinzas, não deixa ninguém indiferente. Em filme passou a ser visto como provavelmente revisioni- nome da fé sta e certamente reaccionário. Numa palavra: perigoso. Mel Gibson, olho do furacão na actualidade noticiosa, Os judeus, que deixaram de ser considerados colecti- apareceu bem-disposto num dos salões nobres do Four vamente culpados na morte de Jesus Cristo após o Se- Seasons de Beverly Hills. Manhã gloriosa de sol, hos- gundo Concílio do Vaticano, iriam voltar ao banco dos sana nas alturas. Camisa de manga curta e calças de réus. Dizia-se. ganga cara, ou seja, velha e gasta. Bem-disposto, sem- Nalguns corredores da percepção mediática, Gibson foi pre aquele ar de menino traquinas pronto para outra e, imediatamente considerado potencialmente anti- sobretudo, pronto para tudo. Não era bem isto que es- semítico. Em Hollywood isto equivale a uma sentença tava à espera de um homem que tem travado a grande de morte. Mas não desistiu. «Quando nos convertemos à batalha cultural do novo ano. O seu filme The Passion fé, ela passa a fazer parte de tudo aquilo que fazes. É o of the Christ/A Paixão de Cristo só estreia no dia 25 e já que se passa neste filme. Mas é sempre tudo um produto conseguiu dominar todas as conversas e todos os cafés da dor por que passámos. Mesmo os grandes génios dos Estados Unidos. Miguel Ângelo e Leonardo Da Vinci - não que me Contando as últimas 12 horas da vida de Jesus Cristo, a esteja a comparar a eles - produziram todas aquelas versão filmada por Mel Gibson e falada no idioma ex- obras de arte porque já haviam passado por uma grande tinto que é o aramaico irritou intelectuais e fez ferida dor. Eram pessoas com muitas falhas de carácter. A dor nalguns parceiros sociais. Mas nunca, nunca teve medo tem origem nisso mesmo: somos seres imperfeitos. To- do rasto de sangue que ia deixando pelo caminho. Nas dos nós fomos magoados, amolgados. Mas sei que há cenas da flagelação, por exemplo, nenhum detalhe foi algo que pode acabar com essa dor. Basta apenas que deixado ao acaso: o chicote com anzóis de metal agarra- procuremos a solução». se mesmo à pele do filho de Deus e rasga-a, expondo as Recusa-se, no entanto, a aceitar elogios. Quando lhe costelas, tudo filmado num vermelho profundo que só digo que a sua perseverança é pelo menos um sinal de se consegue apreciar divinamente em ecrã total. «Jesus coragem, a negação é pronta e total: «Não acho que seja Cristo foi violentamente flagelado», diz Gibson. «E o coragem. Toda a vida tenho andado aterrorizado», ref- meu filme tem, provavelmente, as cenas mais difíceis ere ele, afundado no seu constante nervosismo (Mel que eu já alguma vez vi no cinema».
O Jornal das Boas Notícias Página 10 de 10 25-02-2004
Gibson geralmente encontra um guardanapo ou um heteira nos Estados Unidos. Mas - e é aqui que reside o pedaço de rolha, uma colher de chá ou um pacotinho de interesse deste périplo relâmpago à relação recente entre açúcar gradualmente esmiuçado, que lhe ocupe as mãos o cinema e Jesus Cristo - o novo filme de Mel Gibson enquanto diz de sua justiça). marca uma reviravolta espectacular neste historial. «Quando era miúdo fui perseguido por ser católico. O A COR DO DINHEIRO mesmo aconteceu com a minha família ao longo de A simplicidade primordial das imagens que ele captou gerações. Também os católicos foram perseguidos. As talvez tenha a ver com a recepção que encontrou um pessoas gostam de perseguir quem é diferente. Parece pouco por todo o lado. «Não quero que o meu filme seja ser assim que o cão dá à cauda. É horrível. Também eu uma longa atribuição de culpas. Quem matou Jesus tenho medo. Mas agora acredito. Acredito que a men- Cristo? Todos nós o matámos. Ele morreu pelos peca- sagem de Cristo é a verdade, acredito que os Evangel- dos de cada um dos homens, todos os pecados, para hos são a verdade. Ora, o que eu queria era apenas fazer todo o sempre. E, se quiserem, eu até me ponho na um filme que fale desta crença, destes testemunhos frente da fila daqueles que são mais culpados». Desta recolhidos nas Escrituras. E não queria que a história vez, não houve boicotes. Não houve boicotes pedidos sofresse com perucas esquisitas ou actores exces- pelas Igrejas metodistas, ou baptistas, ou católicas, ou sivamente dramáticos. Não queria que o filme fosse protestantes, ou evangélicas. Houve apoio. Em vez de risível. Queria que fosse fiel ao que aconteceu. Queria gente ajoelhada junto às bilheteiras, os cristãos america- que fosse correcto na descrição dos factos». nos mobilizaram-se e decidiram salvar A Paixão de Foi exactamente no conceito de «factos» que aparece- Cristo da ruína e do esquecimento. ram os problemas. Alguns grupos judaicos e não só - Progressivamente, da Califórnia à Nova Jérsia, e à praticamente todos aqueles que viram no milenar anti- medida que os grupos judaicos iam, mesmo antes de o semitismo da Santa Sé um dos responsáveis pelo Holo- filme estar completo, revelando preocupação e exer- causto nazi, no qual foram exterminados seis milhões de cendo pressão face à possível mensagem anti-semítica judeus - disseram que Mel Gibson deveria considerar-se contida no guião, as comunidades cristãs de base sa- imediatamente responsável pela futura vaga anti- caram do seu poder financeiro e compraram com ante- semítica. O filme, segundo estes adversários, continha cedência milhares de bilhetes que, no fim, marcaram o uma frase imperdoável: a tal que, falando do sangue de ponto de viragem ao assegurarem o sucesso comercial Cristo manchando a mão do traidor judeu, estará sempre daquilo que Mel Gibson tinha feito muito em segredo. presente nas gerações futuras dos filhos de David. A A mais de um mês da estreia, as pequenas e grandes frase acabou por ser erradicada da versão final. «Foi a igrejas, onde nunca é raro ecoar o discurso de que os primeira vez que vi uma fúria desta dimensão», lembra «media» e, em especial, Hollywood estão longe de agora Mel Gibson, enfim capaz de sorrir. espelhar os valores de um povo que se considera maiori- «Mesmo antes de terminar as filmagens já as balas de tariamente cristão, esgotaram rapidamente todos os lug- canhão voavam por cima da minha cabeça. Depois, o ares de todos os cinemas onde o filme poderia ser exi- filme foi julgado sumariamente e condenado mesmo bido. antes de ser editado! Mas, da mesma maneira que o SESSÕES ESGOTADAS filme não se resume a mim a apontar o dedo a ninguém, CENAS do filme, onde os actores Maia Morgenstern também agora não vou desmascarar culpados. Podia ter- (Maria) e Jim Caviezel (Cristo) se identificam com os me zangado e contribuído para uma luta que só podia papéis terminar na sarjeta. Mas vou enfrentar isto como um Numa manobra concertada que ninguém conseguiu an- homem. Quero que o meu filme só tenha a ver com uma tecipar, todas as sessões tinham sido vendidas em bloco. mensagem de tolerância entre as pessoas». Polémicas Os donos dos cinemas, que sobrevivem num mundo desta natureza não são novidade. capitalista baseado nas leis da oferta e da procura, per- Quando, há sensivelmente 20 anos, Jean-Luc Godard ceberam que o filme, em vez de lhes causar dano, afinal estreou o seu Je Vous Salue Marie (Eu vos Saúdo ia revelar-se uma mina. Aumentaram o número de vi- Maria), as cercanias dos cinemas que tinham o filme em sionamentos por sala. cartaz encheram-se de fiéis que passavam horas a rezar Quando finalmente estrear, no dia 25 deste mês, Quarta- e a protestar. Mais tarde, em 1988, quando Martin feira de Cinzas, há cinemas americanos «multiplex» que Scorsese adaptou o livro de Nikos Kazantzakis A vão encontrar-se esgotados a partir das seis e meia da Última Tentação de Cristo, um boicote gigantesco im- manhã. A Paixão de Cristo, o filme que Mel Gibson possibilitou o filme de ser projectado em milhares de teve de financiar ao som de 35 milhões de dólares salas de cinema americanas. E mesmo aqui há uns anos, (27.410 milhões de euros), porque os estúdios de Hol- quando Kevin Smith quis mostrar ao público o seu lywood deram à ideia o amor que geralmente se reserva Dogma, a Miramax, que havia financiado o projecto para as epidemias de peste bubónica, está, neste mo- mas que entretanto havia sido adquirida pela Disney, foi mento, à beira da fortuna colossal. Só nos primeiros forçada a ceder os direitos de distribuição, depois de a cinco dias, que irão da madrugada da estreia até à meia- companhia-mãe ter recebido ameaças de boicote por noite de domingo, Mel Gibson terá de arranjar maneira parte de muitas congregações católicas. Por esse mundo de dividir com a distribuidora Newmarket receitas que fora, as Disneylândias não podiam correr o risco de deverão ir além dos 40 milhões de dólares (31.325 mil- perder a sua fatia mais generosa de público: as famílias hões de euros). Publicidade grátis não falta. Aliás, nin- cristãs com os seus filhos apaixonados pelo Rato guém fala de outra coisa. E a Páscoa, ao longe, garante Mickey. Todos estes filmes foram um fracasso de bil- visibilidade e popularidade ao filme durante semanas a
O Jornal das Boas Notícias Página 11 de 11 25-02-2004
fio. mais inflamatória do guião - de que o sangue de Cristo OUTROS FILMES POLÉMICOS: «Dogma... iria para sempre manchar as mãos dos judeus - as acusa- Nada mau para um filme que não podia ter menos ar de ções de anti-semitismo não abrandaram. Mas a sua ac- «matinée». «Nos primeiros meses, quando ainda estava triz principal, Maia Morgenstern (à esquerda, na foto), a pensar se deveria fazer o filme ou não, revelei, em uma romena judia que perdeu o avô no Holocausto e é traços muitos gerais, as minhas ideias ao Shyamalan», sobretudo conhecida no seu país pelo trabalho de palco diz Mel Gibson, com o sorriso já meio espraiado nos que faz com o Teatro Judaico de Bucareste, é clara na lábios, referindo-se ao realizador com quem fez Sinais. defesa que faz do filme e do realizador.Quando nos en- «Ele ouviu-me, reflectiu e depois só disse: ‘Ah! Já per- contrámos em Los Angeles, Morgenstern, que faz de cebi. Tu queres fazer The Anti-Date Movie!’». Maria, mãe de Jesus, disse: «Nem por um instante achei De facto, o filme não é coisa que se inclua no programa que este texto original fosse anti-semítico. E, quando de uma tarde de namoro entre adolescentes. As suas vemos o filme, não está lá em parte nenhuma que de- origens tinham sido, realmente, anticomerciais, hu- vemos odiar os judeus. Ou, sequer, culpá-los por aquilo mildes e desencorajantes. Desde logo, Gibson, que que aconteceu. Aliás, a maior brutalidade contra Jesus acabou de completar 48 anos e se mantém no topo da Cristo vem dos soldados romanos e, mesmo aí, o que lista dos actores mais bem pagos e respeitados, não con- nos choca não é o facto de o ódio vir dos romanos. É o seguiu qualquer apoio nos estúdios. facto de os homens poderem fazer aquilo a outro ... «A Última Tentação de Cristo»... homem».A actriz, que Gibson escolheu devido à sua Depois - e após umas filmagens sempre difíceis, tam- expressividade facial e empatia no olhar, garante que bém porque foram feitas em segredo em Roma e longe lhe foi fácil compreender a dor de Maria. «Ela era judia. da mansão confortável em Malibu onde o realizador Era mãe. E eu também sou judia e mãe. Eu e o Mel vive na companhia da mulher e dos sete filhos - viu-se pusemo-nos logo de acordo quanto à melhor maneira de impossibilitado de obter um contrato de distribuição na retratar a personagem: tem de ser vista como mãe, ap- 20th Century Fox, com quem tem uma relação estreita enas como mãe. Não há dor que se compare à da mãe (é na Fox que a companhia de produção de Gibson, a que vê o filho a ser tratado, e morto, daquela maneira. É Icon Entertainment, tem os seus escritórios). Até que a a maior dor do mundo. É esta a beleza e a generosidade distribuidora independente Newmarket, minúscula e do filme: qualquer pessoa, de qualquer fé, em qualquer sempre à procura de um risco que resulte em estampido parte do Mundo, consegue compreender a dor daquela popular, comprou os direitos de distribuição. mãe». Acrescenta que A Paixão de Cristo não é um pan- No fim, o realizador revela que o filme, mais do que fleto meramente religioso. E afirma que a mensagem uma ideia importante, era uma necessidade: «Olho à final é sobretudo política, poética, social, filosófica. minha volta e as contradições são a norma. Sobretudo «Este filme é uma obra de arte. Arte pura. Acredito nas instituições que não deveriam deixar espaço para nisto com toda a minha alma».Mas Gibson não esgotou contradições. Os corpos gerentes são feitos de pessoas a sua sorte quando encontrou esta actriz. «Já tinha fi- que dizem que acreditam, mas depois são traídas pelas cado sem palavras quando percebi que a melhor actriz suas acções». para esta história se chamava Morgenstern. Por vezes, ... e «Je Vous Salue Marie» os salmos antigos também se referiram à mãe de Jesus Gibson revela-se estupefacto pelas actividades da como a Estrela da Manhã!», diz. «Depois, para fazer de Georgetown University, por exemplo, situada na capital Jesus Cristo, descobri o Jim Caviezel (à direita, na foto), Washington. «Trata-se de uma universidade católica. que até tem 33 anos e as iniciais do seu nome são J.C.». Então porque é que nos seus laboratórios científicos Na questão latente do anti-semitismo, este actor, que estão a usar células de fetos abortados?». partilha com o realizador a fé católica-romana, informa Nesta ópera composta em céu aberto há mais exemplos que trabalharam nas filmagens todo o tipo de gente: que se podem encontrar n’A Paixão e Ultraje de Mel «Católicos, claro, mas também judeus, hindus, protes- Gibson, como o seu comentário velado ao escândalo do tantes, muçulmanos».Caviezel assegura que numa das abuso sexual de menores nas paróquias de quase todo o suas primeiras conversas com o realizador lhe pediu que mundo: «Há bispos e cardeais que esconderam os seus a figura de Jesus fosse o mais semítica possível: «Disse- padres, os infractores, sempre que os mais inocentes do lhe logo que este Jesus deveria ser o mais hebraico de rebanho foram traídos na sua confiança. É este tipo de todos aqueles que já vimos no cinema. Nada de olhos contradição que retira a fé às pessoas». E fala ainda dos azuis, cabelo loiro, barba dourada, ariano. Fiz questão outros pecados todos: «Há muita política, muito din- que a nossa história tivesse muito respeito por todas as heiro, há ganância, há ego. Quando, pelo contrário, es- crenças religiosas, e, em especial, pela fé ju- sas instituições deveriam manter-se dedicadas à fé, à daica».Quanto à polémica, Caviezel declara: esperança, ao amor pelo próximo, ao perdão. Com o «Mostrámos o filme ao Papa e ele concordou que meu filme só quis cortar a direito e esquartejar toda esta mostrámos aquilo que realmente aconteceu. Aliás, o porcaria. Isso só seria possível se eu voltasse à origem Papa tem tido uma intervenção mais construtiva nas da mensagem, à claridade da mensagem». relações entre judeus e cristãos do que qualquer outra Textos de Rui Henriques Coimbra, correspondente em Los Angeles pessoa. O filme segue ideia idêntica. Limita-se a contar Por amor aos Homens a maior história de amor de sempre».
In: Expresso, Única, 040221 A Quaresma na tradição
Embora Mel Gibson, para acalmar a onda crítica que se In: www.aci.digital vinha formando, tivesse exorcizado do filme a frase
O Jornal das Boas Notícias Página 12 de 12 25-02-2004
Na Igreja primitiva, variava a duração da Quaresma, mas normalmente começava seis semanas (42 dias) an- tes da Páscoa. Isto dava por resultado apenas 36 dias de jejum (já que se excluem os domingos). No século VII, foram acres- centados quatro dias antes do primeiro domingo da Quaresma estabelecendo os quarenta dias de jejum, para imitar o jejum de Cristo no deserto. Era prática comum em Roma que os penitentes começassem a sua penitênica pública no primeiro dia de Quaresma. Eles eram salpicados com cinzas, vestidos com um saial e obrigados a manter-se longe até que se reconciliassem com a Igreja na Quinta-feira Santa. Quando estas práticas caíram em desuso (do século VIII ao X), o início da temporada penitencial da Quaresma passou a ser simbolizada colocando cinzas nas cabeças de toda a assembleia. Hoje em dia na Igreja, na Quarta-feira de Cinzas, o cristão recebe uma cruz na fronte com as cinzas obtidas da queima das palmas usadas no Domingo de Ramos do ano anterior. Esta tradição da Igreja continua ainda hoje como um simples rito em algumas Igrejas protestantes, como a anglicana e a luterana. A Igreja Ortodoxa começa a quaresma na segunda-feira anterior e não celebra a Quarta-feira de Cinzas. A Paixão do Cristo em Portugal O filme de Mel Gibson “The Passion of the Christ” estará em Portugal a partir do próximo dia 11 de Março. A distribuidora é a Lusomoundo. http://www.medeiafilmes.pt/proximasestreias/proximas_estreias.htm http://www.7arte.net/cgi-bin/filmes/filme.pl?codigo=02042
O Jornal das Boas Notícias Página 13 de 13 25-02-2004