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Resumen:
No ano atual, comemoram-se 100 anos da publicação de diversas obras freudianas 1 que
não somente marcaram importantes balizamentos do progresso da psicanálise, em Freud e
além dele, mas que também se constituíram (e se constituem até hoje) obras
particularmente relevante para a apreensão da psicanálise, em seu sentido mais radical,
como tratamento, como pesquisa e como teoria do psiquismo. Embora um ou outro evento
rememore o aparecimento dessas idosas obras de 100 anos, de uma maneira geral não se
encontrou alardes ou grandes festividades. Para tomar ligeiramente alguns exemplos: 44º
Congresso da IPA, realizado no Rio de Janeiro (julho/2005), teve como tema “Trauma:
novos Desenvolvimentos em Psicanálise”; o XX Congresso Brasileiro de Psicanálise, a ser
realizado em Brasília (novembro/2005), tem por tema “Poder, Sofrimento Psíquico e
Contemporaneidade”; a Reunião Lacanoamericana de Psicanálise de Florianópolis
(outubro/2005), não tem título específico, nem consta em sua convocatória referências às
obras freudianas de 1905; e o IV Encontro Latino Americano dos Estados Gerais da
Psicanálise (nov/2005), para o qual este trabalho está sendo apresentado, também não se
reúne em torno de tema específico, havendo entre os trabalhos até hoje divulgados alguns
que fazem referência a uma ou outra das obras freudianas de 1905. Isso somente cuidando
de citar eventos psicanalíticos de caráter nacional e internacional ocorridos no Brasil.
Diante da contemporânea psicanálise, que se propala como modificada, as obras de
1905 permanecem, em grande parte, obras esquecidas, de valor quase exclusivamente
"arqueológico", – velhas peças empoeiradas nas mais recentes bibliotecas psicanalíticas.
Ou, por vezes, são re-visitadas, um tanto às escondidas, como fizesse vergonha ter-lhes
apreço de ensinamentos efetivos e de serem tomadas como valor de recordação das
radicais descobertas de Freud e de seus efeitos inovadores e desconcertantes.
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São elas: Sobre a psicoterapia (1905a); Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905c); Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade (1905d); Fragmento da análise de um caso de histeria (1905e [1901]).
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São característicos a respeito a maior parte dos textos reunidos em Green (2003), alguns afirmando tais
condições normativas de maneira completamente explicita. Essa obra bastante significativa da cultura
psicanalítica contemporânea aponta com certeza a diversidade que, não obstante, permanece no pensamento
psicanalítico. Isso é absolutamente claro: ninguém aqui pretende ser pensador único da psicanálise freudiana
em seu fundamental sentido, por muitas vezes revisitado e reinterpretado. É mesmo a diversidade que nos
permite tomar partido, re-elaborar e continuar pensando. Neste artigo estamos nos esforçando para delimitar
certa concepção que grosso modo adquiriu não as marginais, mas as melhores e muitas significativas
intenções da psicanálise na contemporaneidade. Essa concepção grosso modo me parece a mais próxima da
concepção da psicanálise que se divulgou e alcançou entendimento, sintomaticamente, dentro da psicologia e
da psiquiatria – disciplinas com respeito às quais Freud viu a psicanálise distanciar-se. Com respeito à
psicologia dita acadêmica ou clínica, o caso é sobremaneira curioso, cujo alguns dos aspectos desenvolvemos
em Celes (1988). Lá, uma significativa referência bibliográfica que explora essas características
aproximações entre a psicanálise e a psicologia é indicada.
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expressas ou não nas edições posteriores dessa obra. Afinal, constitui-se missão
impossível, uma vez que não está em nosso alcance ler Freud desprevenidamente, como se
o encontrássemos pela primeira vez. No entanto, um trabalho de contextualização ajuda
nessa ambiciosa leitura. 3 Aqui não se trata de renovar ou completar estudos de
contextualização, mas de diretamente indicar minha leitura do Três ensaios de 1905, a
modo de revitalizar o que penso lhe ser essencial, desconcertante e um tanto revolucionário
– sendo talvez esses motivos suficientes para a rejeição ou simplesmente o esquecimento
da sexualidade na psicanálise contemporânea, acontecimento que, é importante lembrar,
não é de hoje que se têm notícias. 4
O primeiro dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (As aberrações sexuais)
possui um caráter predominantemente fenomenológico. Freud adota uma atitude descritiva
para alcançar a variabilidade e a disseminação das “aberrações” sexuais, especificando-as
quanto à inversão da escolha sexual, quanto à imaturidade dos comportamentos sexuais,
quanto à incerteza e variabilidade dos objetos sexuais, quanto às fixações em objetos e
experiências que se repetem, quanto à descentralização dos órgãos genitais como os meios
mais adequados do prazer sexual etc. A partir do item “(4)”, algum ensaio teórico começa
a se fazer presente, na aproximação entre perversão e psiconeurose, na conceituação de
zonas erógenas e de componentes da pulsão e numa primeiríssima aproximação ao caráter
infantil da sexualidade. A seqüência do argumento de Freud nesse primeiro ensaio parece
inverter a aproximação de sua descoberta havida no tratamento das psiconeuroses. Já em
1897, na famosíssima carta a Fliess de 21 de setembro, onde Freud anuncia o abandono de
sua teoria traumática, ele nomeia o caráter fantasioso da sexualidade, aproximando-se da
concepção infantil da sexualidade exatamente pelo negativo da perversão. A concretude –
autorizemos-nos a assim afirmar – da perversão no Três ensaios induz, além do caráter
descritivo do primeiro ensaio, à adoção de certo parâmetro ideal da sexualidade, que seria a
sexualidade genital e adulta, com referência ao que justamente se descrevem as
“aberrações” – mesmo se entendendo que Freud tenha adotado uma tal estratégia para
chegar à conclusão do desregramento da sexualidade como a norma. Norma essa que não
significa nenhuma normalidade da sexualidade, mas a sua base, a sua origem como
sexualidade infantil. De qualquer maneira, a apreensão desse primeiro ensaio não parece
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Alguma coisa dessa contextualização, antecipei-a num estudo sobre o caso Dora (cf. Celes, 1995)
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Muito a propósito, vejam-se as críticas de Fairbairn (1980/1952), cuja atualidade se torna inconteste, diante
de obras como Grotstein, J.S. e Rinsley, D.B. (2000), onde se encontram releituras desse autor realizadas por
principais psicanalistas contemporâneos. Também significativa quanto à sua atualidade é o texto de
Figueiredo (2003).
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simples precisamente por estes dois aspectos: devido à passagem do descritivo para o
teórico; e devido à adoção do ideal sexual para precisamente desfazê-lo. Nesse ensaio,
encontramos Freud muito mais envolvido numa política de convencimento que numa
postura do desmanche efetivo de qualquer normalidade teórica. Do ponto de vista teórico,
com certeza esse não é o mais desconcertante ensaio dessa obra.
O último dos Três ensaios reafirma, pelo menos em parte, o aspecto da
normalização da sexualidade, embora não desfaça completamente o que há de inovador e
desconcertante nessa obra. “As transformações da puberdade” no mesmo passo em que
retoma os conceitos e as inovações do ensaio que o precede, sobre a sexualidade infantil,
traz para ela a possibilidade de sua normalização, ainda que essa normalização passe para
uma condição secundária, isto é, como fruto de um desenvolvimento, efeito de certas
confluências da sexualidade infantil. No entanto, o caráter genital da puberdade –
responsável inclusive pela síntese e pelas transformações por que passa a sexualidade
infantil em direção à sexualidade adulta – concede certo ar de naturalidade ao
desenvolvimento da sexualidade, estando o seu sentido voltado para a genitalidade: esta se
constituindo a meta da sexualidade. A genitalidade nesse ensaio, no que tem de 1905, é
pensada por Freud positivamente. É o que há de diferença quando introduz,
posteriormente, o conceito de castração, que re-atualiza a genitalidade numa forma
negativa. Para dar sustentação teórica a essa última virada, foi essencial o trabalho
intitulado “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”, de
1923, onde, em resumo, Freud estende à genitalidade o caráter infantil da sexualidade,
dando-lhe o estatuto de uma organização libidinal parcial. Pode-se sugerir que Freud então
iça para o infantil a genitalidade (parcial), tirando-lhe o remanescente privilégio de síntese
da sexualidade, de sua normalização. A partir de então é a castração – forma negativa da
genitalidade – que assumirá a função “sintética” da sexualidade, cujas “sínteses” se
expressam nas diversas estruturações psíquicas que se tornam possíveis de serem
entendidas, incluindo-se aí, na visão freudiana, também a sexualidade feminina e o
desenlace feminino da sexualidade. Com o “complexo de castração” – o termo “complexo”
parece fundamental para Freud, pois aponta o caráter psíquico do que sintetiza, do que
reúne, ainda que permaneça uma síntese e reunião falhas – a sexualidade encontra o ponto
máximo de sua desnaturalização na teoria de Freud. Embora tenha feito o propósito de
manter esta análise ao circunscrito no texto de 1905, esta incursão à castração e à
genitalidade infantil tem o objetivo de, por contraste com certos aspectos do terceiro ensaio
de 1905, apontar o peso que ganha em Freud a qualidade de infantil da sexualidade. O
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terceiro ensaio, na versão de 1905, parcialmente recobre aquilo que se impõe com toda
força no segundo dos três ensaios.
“A sexualidade infantil”, o segundo ensaio do Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, concentra, segundo minha avaliação, o mérito inovador da obra. É verdade
que o “Sinal do caráter infantil da sexualidade”, último item do primeiro ensaio, traz
anunciado o valor da inovação (revolução) que Freud introduz com essa exemplar obra.
Mas o segundo ensaio também traz a inovação teórica mais radical de todos os três ensaios.
Menos que se deter sobre a descrição da sexualidade infantil, ela é teorizada como parcial,
trazendo como conseqüência diversas conceituações, ou firmando-as de modo mais cabal:
as zonas erógenas, as fases, o objeto, o objetivo da sexualidade infantil são introduzidos
tematicamente. O esforço de Freud por conceituar a sexualidade infantil, e, com isso, o
infantilismo da sexualidade, parecem mostrar a importância que a sexualidade encontra no
edifício psicanalítico. Se a experiência psicanalítica de Freud já o havia permitido colocar a
sexualidade no âmago das psiconeuroses, o Três ensaios trouxe a oportunidade inicial de
situá-la no centro e no fundamento das estruturações psíquicas de um modo geral, o que se
deu precisamente com a teoria da sexualidade infantil.
No entanto, essa teoria não se mostrou imediatamente apaziguadora das
inquietações freudianas a seu respeito da sexualidade infantil. E isso se verifica não
somente nos acréscimos e modificações que posteriormente se produziram na teoria da
libido. A formulação da sexualidade infantil no Três ensaios já fora resultado de um longo
amadurecimento, cujas questões e problemas podem ser encontrados na correspondência
de Freud com Fliess (Masson, 1986), e que alcançaram no caso Dora uma primeira
publicação (Freud, 1905e – até mesmo se poderia afirmar que esse caso se constituiu o
primeiríssimo ensaio da “teoria” da sexualidade, se tomado nesse aspecto). O empenho que
conduziu à articulação da sexualidade infantil foi profundamente impulsionado pelo
aspecto de problema que ela introduziu na compreensão das psiconeuroses, no seu
tratamento e na sua teoria. A sexualidade infantil, na forma da fantasia que se apresentara
nas análises, teve o impacto inicial de ruptura da compreensão já solidificada por Freud
nos primeiros trabalhos de psicanálise – marco dessa ruptura é a já citada carta a Fliess de
21 de setembro de 1897. A fantasia, animada pela sexualidade infantil, opôs-se à teoria
traumática (que Freud designou “neurótica”), então porto seguro da prática analítica e da
teoria das psiconeuroses. Sabe-se que o desânimo de Freud à época foi grande, pois essa
ruptura deixou sem explicações o fundamental processo de defesa (recalcamento) que
sustentava a teoria das psiconeuroses. O “achado” da sexualidade infantil nas fantasias que
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É sobejamente conhecido o tema winnicottiano da mãe suficientemente boa, sendo várias as obras em que
trata desse tema.
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É curioso constatar como quase instantaneamente a mídia, principalmente a impressa, veicula reflexões de
psicanalistas sobre os fatos e notícias hodiernos, expressando suas opiniões psicanaliticamente bem fundadas
sobre as mazelas factuais de nossa sociedade e sua responsabilização pelo nosso mal-estar. A pressa me
parece tamanha que convém perguntar pelas atitudes psicanalíticas que se constituíram como seu
fundamento: a paciência em ouvir e a espera de somente entender posteriormente.
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Referências bibliográficas