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justamente entrecruzar as duas instâncias o mais possível. Já na introdução do alentado
Genet: uma biografia (2003), de Edmund White, chama-se a atenção para o fato de que
era parte mesmo do projeto artístico do biografado toldar a demarcação que assinala
precisamente onde tem início e onde termina cada qual, tanto nos seus livros quanto nos
depoimentos que prestou ao longo da vida. No clássico Diário de um ladrão (1949), diz
seu autor: “O que escrevo terá realmente acontecido? Será falso? Só este livro de amor
será real. Os fatos que foram o seu pretexto? Deles devo ser o receptáculo. Não são eles
que restituo.”1
Além do seu teatro, ou seja, também na sua obra em prosa e verso (uma parte
considerável dela escrita na cadeia), Genet, com a marca da sua voluntária adesão à – e
simultânea reconstrução da – mitologia do universo criminal por uma ótica poética não
raro lírica, na sua recorrente idealização, ampara-se na ideia de uma alteridade ditada
por valores inscritos à margem – quando não na ideia de uma exclusão total – para
elaborar sua identidade social singular e, por conseguinte, moldar afinal sua
personalidade artística. O que queremos dizer é que sua produção traz esta marca desde
o início, e na qual ressalta, como afirmamos, uma perspectiva dramática de fundo na sua
concepção eminentemente ficcional da existência, tanto em âmbito literário como no da
construção da sua persona artística, donde podemos considerar que o cruzamento de
referências ficcionais e não-ficcionais emerge como o valor preponderante na avaliação
sartriana do Genet impresso seja nas páginas policiais ou nos suplementos literários.
As implicações psicológicas de suas opções no âmbito tanto da experiência vital
como estética têm, aqui, um enfoque que busca, na medida do seu alcance, não fazer
pura e simplesmente eco aos conceitos estipulados por Jean-Paul Sartre (1905-80) no
“canônico” Saint Genet: ator e mártir (1952) que, como sabemos, acabaram por se
sedimentar numa autêntica camisa-de-força teórica quando se trata do autor de O
balcão (1956), para prejuízo de qualquer esforço crítico que se realize neste sentido.
Justamente por tratar-se de um viés de interpretação canônico, o ensaio sartriano deve
ser reavaliado, aqui, por um esforço investigativo pertinente. Eis a missão a que nos
destinamos, então: em nosso percurso, recorremos a Sartre, mas não de todo: em certos
momentos, pomo-lo à prova.
Bernard Dort, em seu artigo “Genet ou o combate com o teatro”, destaca
determinado trecho do Diário em que seu autor parece querer já explicar o nascimento
da sua concepção fundamentalmente teatral da experiência humana em sociedade (não
1
GENET, 2005, p. 92.
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esqueçamos do “comedian” do subtítulo original do ensaio sartriano), e, por extensão –
como nos interessa –, das possibilidades da sua transposição para o plano da construção
literária. Algo que traduz, em primeira instância, um processo psico-antropológico de
interiorização sui generis. Eis o que nele afirma Dort:
Na base de sua obra e mesmo de sua vida, há com efeito uma experiência que podemos chamar
propriamente de teatral. Este trecho do Diário de um ladrão é prova disto: “Para sobreviver à
minha desolação, quando minha atitude estava mais ensimesmada, eu elaborava, sem prestar
atenção, uma disciplina rigorosa. O mecanismo era mais ou menos o seguinte (desde então eu
passaria a utilizá-lo): a cada acusação que faziam contra mim, ainda que injusta, do fundo do
coração eu respondia sim. Mal pronunciava esta palavra – ou frase que a significava – sentia em
mim mesmo a necessidade de me tornar aquilo de que era acusado”.
É aqui que nasce o teatro. Para se opor ao mundo, Genet não se arroga a ser como é:
transforma-se naqueles que os outros vêem nele. Não vai, pois, mostrar-nos no palco homens
como são ou como deveriam ser: vai colocá-los em cena tal como nós, os espectadores,
suspeitamos que sejam ou os acusamos de ser.2
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linearidade cronológica cartesiana); e no julgamento cerimonial que informa o enredo
de Os negros (1958), onde ela está prevista na execução do personagem acusado de
assassinato, a expiar, individualmente, na própria carne, a fatalidade da condenação
maior de sua gente. E podemos também dizer que a morte é um elemento de maior
densidade em Os biombos (1966), já que sua figuração em cena se dá num plano
dramático específico, num simulacro ambivalente de paraíso celeste e camarote,
localizado num nível superior do palco, onde os personagens mortos assistem à
representação dos ainda vivos e com eles dialogam.
Sartre não diz outra coisa quando se refere ao complexo processo metamórfico
ao modo kafkiano pelo qual Genet passa quando da “descoberta” e subsequente
interiorização da sua marginalidade criminal. Morria um Genet puro, casto, sem culpa, e
tomava seu lugar um outro Genet, condenado à eterna exclusão social e à expiação dos
seus pecados:
Suas obras estão repletas de meditações sobre a morte; a singularidade desses exercícios
espirituais é que eles quase nunca tratam da sua morte futura, do seu ser-para-morrer, mas do seu
estar-morto, da sua morte como acontecimento passado.
Essa crise original também lhe aparece sob o aspecto de uma metamorfose. A criança
tranquila transformou-se subitamente em marginal, como Gregor Samsa em inseto. Diante dessa
metamorfose, a atitude de Genet é ambivalente, sente horror e nostalgia.5
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individual, que vem a ganhar vida através do ato assumido como seu inevitável
resultado. Fundamentalmente, este conflito se dá no interior do indivíduo, o que define
a natureza de seu caráter (eis aqui o princípio de individuação, ou ipseidade). Levando
em conta que para Sartre é o interior do indivíduo o lugar por excelência do conflito da
vontade, não negligenciamos então a evidência de que “o trágico seria inexplicável a
partir apenas da subjetividade do homem, como se este, de repente, ou por si só, se
encontrasse em situação trágica, como se o homem fosse a única perspectiva
possibilitadora do trágico”6, apontando assim para a inevitabilidade da constituição da
base dialética que sustenta todo conflito humano possível dentro do esquema trágico. A
interpretação sartriana da condição humana, que implica a fatalidade da liberdade,
coloca o indivíduo como autor de sua vida, senhor de seu destino, que responde por suas
escolhas tornadas gestos a serviço exclusivamente de sua consciência.7 Assim, tendo sua
consciência como seu único guia, o homem está condenado a ser livre, como consigna
Sartre em O ser e o nada (1943), delimitando o território ético em que coloca sua
concepção sui generis do trágico na modernidade. Como dissemos, a intrínseca
condição de liberdade a que estamos todos condenados, de todo modo, deriva da
vontade, por ser ela, no homem, uma manifestação individual possível.
Em Genet, a vontade é, antes de tudo, desejo. Assim, no esquema dialético a que
Saint Genet paga tributo (e neste mérito, não esqueçamos do materialismo hegeliano,
base do pensamento sartriano), não podemos considerar que a conversão da vontade em
ato seja o móvel das motivações psicológicas de Genet na senda do Mal. O que há, de
fato, é a realização concreta do desejo. Na constituição da psicologia do autor de Alta
vigilância (1947), a fatalidade trágica estaria na atribuição exterior da sua marginalidade
e na quase simultânea aceitação beatífica desta condição – ou seja, não há conflito no
interior do criminoso Genet. Daí a dificuldade de subscrevermos o esquema dialético
sartriano, ao termos que tomar imperiosamente por princípio o conflito como elemento
determinante das opções individuais. Alguém que conduz sua vida à sombra do gozo, no
permanente intento de satisfazer seus desejos conforme uma deliberada inversão dos
códigos sociais vigentes para fundar uma persona dissidente, sem sentimentos solidários
de pertencimento a uma coletividade, não poderia fazer primar sua existência sob o
signo do conflito da vontade pessoal. O desejo, móvel primeiro de Genet, tem natureza
6
BORNHEIM, 2007, p. 73
7
Ver LIUDVIK, 2005, p. xvii
5
absolutamente diversa da vontade tal como concebida por Sartre e por toda a tradição
anterior de reflexão acerca da base dialética do trágico.
Com relação às especificidades da linguagem da sua produção romanesca,
notamos que há uma tendência por parte da crítica de discernir com precisão os
elementos propriamente autobiográficos da subjetividade autoral e os da sua
correspondente expressão no plano da criação literária, dada a recorrente ficcionalização
da vida empírica como um recurso estilístico que lhe era tão caro. Em seus romances, o
ostensivo alegorismo poético, lúdico e ritualístico que se revela no tratamento da
matéria que seu autor manipula, se não é a essência mesma do duplo ficcional resultante
do engenho inerente à subjetividade da criação artística, então, pelo viés da objetividade
pragmática – ou seja, pela coerência empírica de uma filosofia de vida singular como a
sua –, é mesmo uma extensão da realidade factual segundo sua ótica, como
testemunham muitos dos episódios de sua biografia.
Um, em particular, não pode nos fazer crer noutra coisa (neste mérito específico,
não hesitamos em igualar criador e criatura): em visita ao Brasil, por ocasião da
montagem de O Balcão, no início dos anos 1970, Jean Genet teria respondido à atriz e
produtora da peça, Ruth Escobar, que “A vida é um estelionato”, quando esta lhe teria
alertado que ajudá-lo a atender aos incessantes pedidos de autógrafo assinando em seu
nome, como ele havia pedido, incorreria no artigo 171 do Código Penal Brasileiro8. É
inegável que ambas as perspectivas acabam por complementar-se, por traírem a mesma
natureza de artifício que as define. Há, neste sentido, um casamento coerente na relação
da imagem que Genet projetou de si – para si e para os outros – na sua trajetória real de
pária social, e na mística poética que elaborou de um santo criminoso exilado e/ou auto-
exilado da ordem social burguesa.
Com o emprego de um sentido litúrgico quase que onipresente na construção do
enredo de suas peças ou de narrativas como o Diário de um ladrão, por exemplo, Genet
lança mão de uma operação estilística que denuncia a natureza de representação da vida
social. Daí, sua concepção eminentemente dramática da matéria existencial, a expor o
caráter intrínseco de teatralidade do comportamento humano, refém dos códigos que
presidem a totalidade da vida comunitária, não importando quais sejam os segmentos e
ambientes sociais a que se refira. Compreende-se assim que há, na sua obra – e aqui é
preciso considerar que é indiferente o meio de expressão literária sobre o qual se
detenha –, um enfoque essencialmente teatralizador sobre o sistema social, porque a sua
8
ESCOBAR in GENET, 2005, p. 8
6
noção primeira do que seja a vida está eivada de uma particular filosofia segundo a qual
a realidade empírica nada mais é do que mera encenação.
A ficção, ou seja, a própria vida, só faz sentido, em Genet, sendo jogo,
construção lúdica; um fenômeno que ganha contornos mais aparentes em sua obra
teatral (como sabemos, comumente classificado como de vanguarda, na sua atribuída
filiação à Escola do Absurdo, ou ainda como “teatro do ódio”, modalidade da qual seria
um dos principais artífices), na qual a mímesis clássica, como a concebeu Aristóteles, é
renegada por conta desse ponto de vista que remete a sua condição como que
endemicamente interiorizada de marginalizado – condição esta resultante de um
autêntico processo ontológico de assunção, tanto no sentido de assumir sua identidade
social de pária, como também, e sempre simultaneamente, no sentido religioso de
elevação do espírito.
Para melhor efeito de comprovação, um episódio da infância de Genet parece ser
bem eloquente, ganhando mesmo status de uma quase mística experiência de revelação:
no colégio, ao ter premiada num concurso uma redação pretensamente realista que se
intitulava “Descreva seu lar”, o então pequeno filho adotivo de uma família de humildes
camponeses teria confirmado singularmente a tese de ser um embuste a vida social, e
mesmo a condição humana na qual ela fatalmente se confina. O lar idealizado descrito
na redação era a versão falseada de uma realidade que se queria fazer aceitar em nome
de um convencionado estado de bem-estar e harmonia que a sociedade dita civilizada se
recusa a romper por força da manutenção de uma ordem estabelecida igualmente
idealizada, irreal, em suma, hipócrita – um dos epítetos que Genet mais comumente
empregava para defini-la. (Lembremos mais uma vez, aqui, da frase dita por Genet a
Ruth Escobar.)
Daí o uso ostensivo e abusivamente expressionista da máscara no seu teatro
(configurando-se num procedimento recorrente de explicitação da natureza ritual da
encenação), num processo metalinguístico de ênfase nos dados deste credo filosófico
particular e determinante do esboço geral da sua obra, que põe a farsa como valor
absoluto e motivo condutor seja da vida social, seja da narrativa de um romance ou da
trama de uma peça – este seu duplo, enfim, segundo sua ótica: o jogo de espelhos que
figura em O balcão, por exemplo, não tem mesmo outra função senão essa. Nesta
perspectiva farsesca de intenções lúdicas evidentes, e cuja proposição é fazer com que
os caracteres sejam o que socialmente se quer que eles sejam (tal como a opção pessoal
de Genet de acatar o papel que lhe impuseram), num jogo de projeções e representações
7
que se realiza através de uma operação de contínuo mascaramento e desmascaramento
do real e dos seus artifícios, o objetivo é mesmo a encenação de um cerimonial a ser
oficiado no palco para a revelação da farsa que nos condiciona a todos,
impreterivelmente.
Na particular concepção do ficcional de Jean Genet, sendo a referida vida social,
em sua natureza essencial, uma farsa, sua representação só poderia então correspondê-la
na exploração de um jogo que fosse, sobretudo – como já referimos –, alegórico. Os
procedimentos litúrgicos adotados por Genet compõem, antes de tudo, uma tentativa de
reprodução singular do teatro que a vida é em essência, numa abordagem que privilegia
as relações de poder – na sua qualidade de jogo permanente de signos – que exercem os
diferentes segmentos sociais. Tal liturgia de caráter alegórico implica uma sacralização
ritual do crime, onde a assunção beatífica do estigma é o seu elemento primordial, um
prazerosamente encarnado auto-exílio de um mundo pautado pela aceitação exclusiva
do Mesmo, anátema máximo de quem pautou sua existência pelo signo do Outro.
Edmund White que, em determinada altura de sua biografia, ecoa-nos, revelando
que tal perspectiva dramática escapa a Sartre em Saint Genet:
Como a posição de Genet era falsa – ele era um filho falso, (...) o menino falso, o falso amigo e o
falso morador do povoado – ele passou a entender os mecanismos da representação de papéis
sociais. Sartre imaginou, pela ordem de publicação, que Genet passou do mundo
comparativamente fechado da poesia para a maior abertura da ficção, e finalmente à
transparência e à preocupação política em suas peças. Mas o teatro é a raiz por trás de toda a
obra de Genet; ele já escrevera vários roteiros para o palco e a tela antes de suas primeiras obras
publicadas. E até mesmo um segundo olhar aos poemas sugere sua origem dramática: são todos
monólogos dramáticos dirigidos a um “você”, um jovem bonito que não responde, mas que
precisa ser cultuado ou propiciado.
Genet concebe o conflito como algo teatral. De certo modo, ele jamais poderia se dar ao
luxo da luta interior ou da dúvida política. Para ele havia uma única realidade, o mundo das
relações de poder na sociedade, e ela o oprimia. Sua primeira tarefa era aprender como
manipular essa realidade através da astúcia ou do encanto, ou algumas vezes da intimidação –
resumindo, através da representação.
A realidade social pode ter sido absolutamente importante e opressiva, mas não era
transparente. As pessoas não eram fáceis de ser entendidas pelo jovem Genet, tampouco a
substância de que eram feitas era simples ou forte. Ele aprendia sobre o comportamento das
pessoas através do conflito, e descobriu sua própria natureza (ou fez com que ela lhe fosse
designada) através da transgressão e da descoberta.9
9
WHITE, 2003, ps. 77-78
8
O jogo das relações de poder verificado em O balcão alterna dominadores e
dominados numa operação lúdica que expõe as perversões inatas do exercício do mando
na sociedade organizada (num rito solene, ora o juiz dita as ordens na alcova secreta do
prostíbulo, ora a prostituta). Dessa forma, põe-se em cheque a instituição “sagrada” da
hierarquia social, cuja estratificação – num procedimento ímpar da verve iconoclasta
genetiana – é desqualificada na exposição do ridículo da pompa e circunstância dos seus
mais legítimos rituais e representantes. Membros proeminentes da Igreja, do Estado e
das Forças Armadas são postos em cena liturgicamente: interessa apenas a natureza
formal dos seus respectivos cargos e títulos, prenhe como ela é de gestos e símbolos de
grandiloquente significação cerimonial. Assim, a exacerbação da artificialização cênica
em suas peças concorre para a denúncia dos mecanismos de dominação com os quais
forma-se e mantém-se a organização social. Uma reflexão como esta sobre o seu teatro
é de grande valia para a compreensão da natureza dramática da sua produção
romanesca. E, afinal, neste mérito, não custa lembrar que o dramaturgo Genet é quase
contemporâneo do romancista.
BIBLIOGRAFIA:
DORT, Bernard. “Genet ou o combate com o teatro” In: _____ O teatro e sua realidade.
São Paulo, Perspectiva, 1977.
GENET, Jean. The maids and Deathwatch: two plays by Jean Genet. New York, Grove
Press, 1962.
_______. Querelle. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
_______. O balcão. São Paulo, Abril Cultural, 1976.
_______. Os negros. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998.
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_______. Os biombos. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999.
_______. “A estranha palavra...” In: _____ Folhetim: teatro do pequeno gesto, nº3. Rio
de Janeiro, 1999.
_______. Diário de um ladrão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005.
_______. As criadas. Porto Alegre, Deriva, 2005.
SAADI, Fátima. Prefácio a GENET, Jean. Os negros. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998.
_______. Prefácio a Os biombos. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999.
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