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Lynn Picknett

&
Clive Prince

A GRANDE HERESIA
O Segredo da Identidade do Cristo

Tradução Adriano José Sandoval


2000
Beca

Para aqueles a quem amamos,


Os daqui e os que estão além. . .

AGRADECIMENTOS
Este livro só se tornou possível em virtude do auxílio e apoio de um grande número de pessoas. Devido,
porém, à natureza controversa de nossas conclusões, devemos deixar claro que aqueles que compõem
esta lista não estão necessariamente de acordo com nossas opiniões.
Gostaríamos de agradecer a:
Keith Prince, por sua pesquisa meticulosa, tanto em bibliotecas quanto em campo e por seu incisivo e
com freqüência pouco ortodoxo modo de pensar sobre os mais diversos assuntos e por, literalmente, ter
arriscado sua própria vida por este projeto.
Craig Oakley, por seu apoio, entusiasmo e auxílio incansáveis em favor de nossa pesquisa.
Filip Coppens, por nos ter direcionado de forma entusiástica e por nos trazer um volume incomensurável
de material de pesquisa.
Lavinia Trevor, nossa agente, por facilitar os caminhos para a realização deste livro e por nos ter
mantido a salvo das pressões.
Jim Cochrane, nosso editor, por seus comentários construtivos e bem informados, e por nos manter sob
pressão. E agradecemos também a seus colegas Kate Melhuish, Sheila Corr e Martin Macrae.
Lucien Morgan, por ter feito com que pensássemos seriamente em escrever este livro!
Os materiais sobre Rennes-le-Château, nos capítulos Oito e Nove, são em grande parte decorrentes de
informações e discussões trocadas com muitas pessoas:
No Reino Unido, aos membros do grupo de pesquisa de Rennes-le-Château, especialmente John e Joy
Millar, Gay Roberts, Howard Barkway, Jonothon Boulter, Marke Pawson e Guy Patton. Também temos
que agradecer a Guy por nos ajudar em nossa pesquisa sobre os Cavaleiros Templários.
Na França, agradecemos particularmente a Alain Féral, Sonia Moreau, Antoine e Claire Captier, Jean-
Luc e Louise Robin, Celia Brooke, Mareel Captier e Elizabeth van Buren (e também a Monique e
Michel Marrot do La Pomme Bleue, em Rennes-le-Château, cujas refeições muitas vezes salvavam
nosso dia). Também gostaríamos de confirmar nosso débito para com Jos Bertaulet e sua pesquisa sobre
Notre-Dame de Marceille. Agradecemos à sua viúva, Suzane, e aos filhos, Christian e Diederick, pela
hospitalidade.
John Stephenson e Anita Forsythe, por nos auxiliarem em Ferran, tornando alegres nossas viagens ao
Languedoc e por compartilharem seus conhecimentos sobre a região. Agradecemos também por sua
maravilhosa hospitalidade, pelos momentos divertidos e por nos emprestarem Gold.
Peter Humber, por permitir que usássemos sua casa no Languedoc durante nossa primeira viagem de
pesquisa e por reagir com extrema calma ao ver no que quase a transformamos.
...e também agradecemos aos moradores dos povoados de Ferran e ao Departamento de Bombeiros de
Montreal por terem vindo nos ajudar naquele fatídico 17 de janeiro. E pelo pranto atrasado de Peter no
Café Fou na Rua Boundary, que pareceu ter sido destinado a se tornar nosso refúgio.
Robert Howells, por muitas conversas longas e adoráveis sobre o tema do esoterismo e por compartilhar
conosco a amplitude de seu conhecimento.
André Douzet, por ter generosamente compartilhado os resultados de sua pesquisa exaustiva sobre os
mistérios franceses.
Niven Sinclair, por sua generosidade e por sua fascinante percepção sobre a Capela Rosslyn e os
Cavaleiros Templários.
Jane Lyle, por compartilhar seu extenso conhecimento sobre a sexualidade sagrada e, como sempre,
pelo apoio, encorajamento e também por sua gargalhada.
Steve Wilson, por nos ajudar com os madianitas, por nos oferecer uma tribuna no 'Talking Stick' e por
uma memorável e divertida viagem de trem.
Karine Esparseil López, ao ajudar na tradução de textos em francês, pelo apoio e por sua valiosa
amizade.
Também agradecemos às seguintes pessoas, ou por terem nos auxiliado de diversas formas ou por nos
proporcionarem acesso a informações bastante necessárias ou ainda simplesmente por seu apoio e
encorajamento:
Nicole Dawe e Charles Bywaters e seus filhos, Lura Dawe e Kathryn e Jennifer Bywaters;Trevor
Poots;Andy Collins; Dominique Hyde; Lionel Beer e seu grupo TEMS; Steve Moore do Fortean Times;
Bob e Veronica Cowley da RILKO; Georges Keiss; Yuri Stoyanov; Benoist Riviêre; Henri Buthion;
Jean Pierre Aptel; André Galaup; Louis Vazart; Gino Sandri; Manfred Cassirer; Alun Harris;John
Spencer; Steve Pear; Olivia Robertson da Sociedade de Ísis; Caroline Wise; Gareth Medway; Tony
Pritchett; Mick e Lorraine Jones; Mark Bennett; Dave Smith e Natalie Hac; Loren McLughlin; David N.
Corona; Dr. Richard Wiseman; Sylvia patton; Barry e Fiona Johnstone; Sarah Litvinoff; Vida Adamoli;
Helen Scott; Michêle Kaczynski; Mary Saxe-Falstein; Sally 'Morgana' Morgan;Will Fowler; Sheila e
EricTaylor; Samuel López;James Dew; Nic Davis; Lisa Bailey; David Bell; I-N. E para os funcionários
das Salas de Leitura da Biblioteca Britânica e da Biblioteca de Westminster.

Obrigado ao pessoal do serviço de emergência do Lymoux e Carcassone por terem resgatado Keith
Prince e ao nosso amigo anônimo que telefonou de Notre-Dame de Marceille pedindo socorro.

ÍNDICE
Introdução, 12

Parte Um: As Tramas da Heresia

Capítulo I O Código Secreto de Leonardo da Vinci, 15


Capítulo II Entrando em Outro Mundo, 33
Capítulo III No Rastro de Maria Madalena, 57
Capítulo IV O Berço da Heresia, 85
Capítulo V Guardiães do Graal, 107
Capítulo VI O Legado dos Templários, 131
Capítulo VII Sexo: O Sumo Sacramento, 161
Capítulo VIII "Este é Um Lugar Terrível" , 195
Capítulo IX Um Tesouro Curioso, 217
Capítulo X Decifrando os Caminhos Secretos, 238

Parte Dois: As Teias da Verdade

Capítulo XI As Inverdades do Evangelho, 244


Capítulo XII A Mulher que Jesus Beijava, 265
Capítulo XIII Filho da Deusa, 285
Capítulo XIV João Cristo, 326
Capítulo XV Os Devotos do Senhor da Luz, 348
Capítulo XVI A Grande Heresia, 362
Capítulo XVII De Dentro do Egito, 377

Apêndice, Maçônicos Ocultistas da Europa Continental, 391

Bibliografia Selecionada, 394

Ilustrações: entre as páginas 208 e 209

INTRODUÇÃO
Leonardo da Vinci foi a razão de iniciarmos a busca que nos levaria a escrever este livro. Foi a partir de
nossa pesquisa sobre este fascinante porém ardiloso gênio do Renascimento, e sua participação na
falsificação do Sudário de Turim, que iniciamos uma investigação muito mais ampla e profunda
relacionada à questão das 'heresias' que, secretamente, teriam guiado suas ambições. Buscávamos
descobrir no que estava ele metido, o que sabia e no que acreditava e a razão de ter empregado certos
códigos e símbolos na obra que legou à posteridade. Temos, então, que agradecer a Leonardo pelas
descobertas que realizamos, descobertas que resultaram neste livro, embora saibamos que este
agradecimento é um tanto dúbio.
À primeira vista parece ser algo estranho que fôssemos atraídos para esse mundo complexo e, com
freqüência, tenebroso de sociedades secretas e de crenças heterodoxas. Afinal de contas, Leonardo é
conhecido por todos como sendo ateu e racionalista. Entretanto, viríamos a descobrir que ele não era
exatamente assim. De qualquer modo, após um breve espaço de tempo nós o deixamos para trás e nos
vimos sozinhos enfrentando algumas deduções profundamente perturbadoras. O que havia se iniciado
como uma modesta e interessante pesquisa sobre alguns cultos que acreditávamos pouco difundidos,
acabou por tornar-se uma investigação sobre as próprias raízes e crenças do cristianismo.
Essa foi, essencialmente, uma jornada através do tempo e do espaço: primeiro, de Leonardo até os dias
de hoje, e então de volta à época anterior ao Renascimento, passando pela Idade Média até chegar à
Palestina do primeiro século, onde se desenrolou o drama escrito com as palavras e ações de nossos três
protagonistas principais: João Batista, Maria Madalena e Jesus. Durante essa jornada tivemos que parar
e examinar muitas organizações e grupos secretos com um olhar completamente novo e objetivo: os
Maçons, os Cavaleiros Templários, os Cátaros, o Monastério de Sion, os Essênios e o culto de Ísis e
Osíris.
Esses assuntos, é claro, já foram discutidos recentemente em muitos outros livros, em particular por The
Holy Blood and the Holy Grail, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, que de início nos
serviu de inspiração; The Sign and the Seal, de Graham Hancock; The Temple and the Lodge, de
Baigent e Leigh, e, mais recentemente, The Hiram Key, de Christopher Knight e Robert Lomas. Temos
um débito de gratidão para com todos esses escritores pela luz que lançaram em nossas áreas correlatas
de investigação, mas acreditamos que nenhum deles chegou a encontrar a chave essencial para se atingir
o âmago desses mistérios.
E não causa surpresa alguma que assim tenha sido. Toda a nossa cultura se baseia em certos
pressupostos relacionados ao passado, e em particular ao cristianismo, o caráter e as motivações de seu
fundador. Se esses pressupostos estiverem errados, então as conclusões neles baseadas estarão muito
longe da verdade ou no mínimo apresentarão uma visão distorcida dos fatos.
Quando nos confrontamos pela primeira vez com as conclusões perturbadoras que expusemos neste
livro, pensamos ter cometido um engano. Mas foi chegada uma hora em que tivemos que tomar uma
decisão: deveríamos continuar as investigações e publicar nossas conclusões ou deveríamos
simplesmente esquecer que havíamos um dia realizado essas descobertas cruciais? Decidimos seguir em
frente; afinal, este livro parece ser uma seqüência natural daqueles que foram citados acima e portanto já
era chegada a hora de se materializar.
Ao investigar as crenças ocultas de milhares de 'heréticos' ao longo dos séculos, descortinamos um
quadro espantosamente consistente. Por trás das tradições dos mais diversos grupos, aparentemente sem
qualquer relação entre si, encontramos os mesmos segredos ou no mínimo segredos muito semelhantes.
De início pensamos que essas sociedades eram secretas por uma questão de costume ou talvez por
afetação, mas agora compreendemos o porquê da necessidade de se manter o conhecimento afastado das
autoridades e especialmente longe das mãos da Igreja. O centro da questão, entretanto, não está em
saber no que eles acreditavam, mas sim em saber se essas crenças baseavam-se ou não em alguma coisa
sólida. Pois se assim é, e se o mundo herético realmente guardou a chave perdida da cristandade, então
estamos diante de um cenário verdadeiramente revolucionário.
Este livro relata oito anos de investigações em um terreno bastante inexplorado, pois, embora outros
tenham feito mapas que nos mostraram por onde caminhar, suas indicações terminaram muito antes de
onde acabaríamos por chegar.

Lynn Picknett
Clive Prince

Parte Um
As Tramas da Heresia

CAPÍTULO I

O Código Secreto de Leonardo da Vinci

Durante séculos ela tem sido uma das obras de arte mais famosas do mundo. A Última Ceia de Leonardo
da Vinci é o único fragmento restante da igreja de Santa Maria delle Grazie, nos arredores de Milão. A
parede em que está pintada foi a única que permaneceu de pé após o bombardeio aliado na II Guerra
Mundial ter transformado em ruínas a antiga construção. Embora outros artistas admiráveis como
Ghirlandaio e Nicolas Poussin e até mesmo o idiossincrático pintor Salvador Dali tenham apresentado
ao mundo suas visões dessa cena bíblica repleta de significados, é a obra de Leonardo que, por alguma
razão, parece ter sido capaz de capturar a imaginação da maioria de nós. É possível encontrar, em
qualquer lugar do planeta, as mais diferentes versões da Última Ceia de Leonardo, com todos os matizes
possíveis de gosto, do sublime ao ridículo.
Algumas imagens são tão familiares para nós que nunca as examinamos com uma atenção verdadeira, e
embora estejam ali, à nossa frente, totalmente expostas ao olhar do observador, convidando-nos para um
exame mais cuidadoso até que finalmente as capturemos em um nível mais profundo e significativo,
continuam, na verdade, a ser como as páginas de um livro fechado. Assim é com a Última Ceia de
Leonardo e, inacreditavelmente, com quase todas as suas obras.
Foi a obra de Leonardo (1452-1519), o atormentado gênio italiano do período renascentista, que nos
colocou na trilha que nos levaria a revelações tão inacreditáveis em relação às suas conclusões que, à
primeira vista, nos pareciam ser total e completamente improváveis: não parecia ser plausível que várias
gerações de pesquisadores simplesmente não tivessem observado aquilo que havia tomado de assalto
nossa espantada atenção, e nos parecia implausível que tal informação explosiva esperasse, calmamente,
todo esse tempo para ser descoberta por escritores que, como nós, não fazem parte dos grupos oficiais
de pesquisa histórica e religiosa.
Assim, para dar um início mais apropriado à nossa história, temos que retomar à Última Ceia de
Leonardo e olhá-la com outros olhos. Porém, não iremos observá-la com olhos pertencentes a um
contexto de pressupostos histórico-artísticos familiares. Dessa vez o nosso olhar sobre a obra de arte
mais conhecida do mundo será a de um recém-iniciado, um olhar de quem a vê pela primeira vez. E
como recém-iniciados na obra, esperamos que toda a gama de conceitos pré-concebidos sejam varridos
de nossos olhos e então, pela primeira vez talvez, consigamos realmente enxergá-la.
A figura central, é claro, é a de Jesus, a quem Leonardo, nas suas anotações relativas à obra, se referiu
como 'o Redentor'. (Ainda assim, o leitor é avisado a não se deixar levar por nenhum pressuposto
óbvio.) Jesus olha contemplativamente para baixo, levemente para sua esquerda, as mãos abertas,
estendidas sobre a mesa, como que oferecendo um presente ao observador. Essa é a Última Ceia, na
qual, segundo nos diz o Novo Testamento, Jesus deu início ao sacramento do pão e do vinho, incitando
seus apóstolos a compartilhá-los como sendo sua própria "carne" e "sangue". Poder-se-ia, com razão,
esperar que um cálice de vinho fosse colocado diante dele, complementando tal ritual. Afinal, para os
cristãos, essa ceia se passou no jardim de Gethsemane, imediatamente antes da Paixão - quando Cristo,
pediu com fervor: "Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este cálice", (uma outra alusão ao simbolismo
do vinho/sangue) - e da morte pela crucificação, quando seu sangue sagrado foi derramado em nome de
toda a humanidade. Não há, porém, vinho algum diante de Jesus (e em toda a mesa há apenas alguns
copos com uma quantidade mínima). Será possível que essas mãos estendidas estejam realizando,
essencialmente, como observaria um artista, um gesto sem qualquer significado?
Em face da ausência de vinho, talvez não seja também um mero acaso que de todos os pães presentes
na mesa apenas alguns estejam partidos. Será essa uma mensagem sutil relacionada à verdadeira
natureza do sofrimento de Jesus, já que este, ao identificar o pão com seu próprio corpo, partiu-o, dan-
do-o como representação de seu supremo sacrifício?
Isso, contudo, é apenas a ponta do iceberg de toda a heterodoxia que está presente nessa obra. Na
Bíblia, o jovem São João, conhecido como "o Amado", é quem estava, nessa ocasião, tão próximo
fisicamente a Jesus a ponto de parecerem estar "colados um ao outro". Todavia a figura desse jovem, na
obra de Leonardo, não está assim tão inclinada em direção a Jesus, como teria exigido, digamos, uma
"direção de palco" bíblica. Muito ao contrário, João é retratado afastando-se exageradamente do
Redentor, com a cabeça, de um modo um tanto afetado, pendendo para a direita. E isso não é tudo o que
pode ser dito a respeito desse personagem e, portanto, devemos perdoar os recém-iniciados na obra ao
vermos que podem ser tomados por pensamentos cheios de dúvida em relação ao assim chamado São
João. Seria razoável, durante um certo tempo, pensar que as predileções particulares do artista
tenderiam a fazê-lo representar o supra-sumo da beleza masculina de um modo um tanto efeminado,
porém, com certeza, o que nós vemos é uma mulher. Tudo o que se relaciona a "ele" é chocantemente
feminino. Ainda que o afresco seja muito antigo e bastante castigado pelo tempo, qualquer pessoa é
capaz de notar as mãos finas e graciosas, a figura bela e élfica, o colo distintamente feminino e a
gargantilha dourada colocada em seu pescoço. Essa mulher, porque é disso que se trata, além de tudo
veste-se com trajes que a diferenciam, tornando-a alguém especial. Seu traje é a imagem espelhada do
traje do Redentor: enquanto um veste uma túnica azul e uma capa vermelha, o outro veste uma túnica
vermelha e uma capa azul do mesmo estilo. Nenhum outro, na mesa, veste roupas que sejam como a
imagem espelhada das roupas de Jesus. Nenhum outro na mesa é, porém, uma mulher.
No centro de toda a composição está uma forma construída em conjunto pelas figuras de Jesus e dessa
mulher, um grande e exagerado "M", quase como se eles estivessem literalmente grudados pelos
quadris, mas, de repente, saíssem de alinhamento ou então fossem apartados. Não é de nosso
conhecimento que qualquer pesquisador tenha se referido a essa figura feminina de outra forma que não
fosse como São João. O "M" formado pelas duas figuras também passou desapercebido pelos
pesquisadores. Leonardo era, conforme descobrimos em nossas pesquisas, um excelente psicólogo que
se divertia presenteando, aos que lhe haviam feito uma encomenda de obras religiosas comuns, com
imagens extremamente heterodoxas, consciente de que as pessoas olhariam com serenidade para a óbvia
heresia porque, como de costume, elas só vêem aquilo que querem. Se lhe pedissem para fazer um
quadro de uma cena cristã conhecida e você apresentasse algo que tivesse uma semelhança apenas
superficial com a cena pedida, ninguém jamais questionaria seu simbolismo. Leonardo, contudo, deve
ter tido esperanças de que talvez outras pessoas que também compartilhassem sua interpretação
incomum da mensagem do Novo Testamento perceberiam o que ele fizera em sua versão, ou que
alguém, em algum lugar, um observador que fosse objetivo, um dia repararia na imagem dessa mulher
misteriosa ligada à letra "M" e começasse a fazer perguntas óbvias. Quem era "M", e por que era tão
importante? Por que Leonardo arriscaria sua reputação, para não dizer sua própria vida, naqueles dias de
fogueiras flamejantes, para incluí-la nessa cena tão crucial ao cristianismo?
Quem quer que seja ela, seu próprio destino também não parece estar muito a salvo, pois uma mão se
atravessa, de um modo que parece ameaçador, à frente de seu gracioso pescoço inclinado. O Redentor
também é ameaçado por um dedo em riste que aponta, com clara veemência, diretamente para seu rosto.
Tanto Jesus quanto "M" parecem estar completamente alheios a essas ameaças, perdidos no redemoinho
de seus próprios pensamentos, serenos e tranqüilos. Entretanto, é como se fossem utilizados símbolos
secretos, não apenas para avisar Jesus e sua companheira de que seus destinos se separaram, como
também para dar (ou talvez lembrar) ao observador alguma informação que, se fosse de outro modo,
haveria perigo em expor. Estaria Leonardo utilizando sua obra para encobrir alguma crença particular, a
qual seria uma insensatez compartilhar com uma audiência maior e de um modo mais óbvio? E poderia
ser que essa crença fosse uma mensagem a ser comunicada aos que não pertencessem a seu círculo
social imediato, talvez mesmo uma mensagem para os de nossa época?
Olhemos com mais profundidade para essa obra surpreendente. No afresco, um homem de barba
postado à direita do observador se inclina, quase até se dobrar, para falar ao último discípulo na mesa.
Ao fazer isso ele dá totalmente as costas ao Redentor. Esse discípulo é São Judas Tadeu, cuja figura é
tida como sendo a do próprio Leonardo. Nada do que retratavam os pintores renascentistas era
desprovido de significado ou simplesmente incluído por uma questão de beleza, e essa obra em
particular, um modelo da época e da profissão, era reconhecida pelo rigor na apresentação de um visível
duplo sentido (a preocupação de Leonardo em utilizar o modelo certo para cada discípulo pode ser
percebida em sua maldosa insinuação de que o irritado Bispo do Monastério de Santa Maria pousou
para a caracterização de Judas!). Então, por que Leonardo pintou a si mesmo olhando tão claramente
para o lado contrário àquele em que estava Jesus?
Ainda há mais. Uma mão estranha aponta um punhal para o ventre de um discípulo que está ao lado de
"M". Por mais imaginação que tenhamos, essa mão não pode pertencer a qualquer pessoa que esteja
sentada à mesa, simplesmente porque é fisicamente impossível que estes conseguissem contorcer a
própria mão de modo a poder segurar o punhal naquela posição. Entretanto, o que é realmente espantoso
sobre a mão desacompanhada de um corpo, não é tanto a sua existência, mas o fato de que, em tudo o
que lemos sobre Leonardo, tenhamos descoberto apenas algumas poucas referências a ela, o que
demonstra uma curiosa relutância em perceber qualquer coisa que possa haver de anormal. Tanto quanto
o fato de São João ser na verdade uma mulher, uma vez que esta mão seja devidamente mostrada
nenhum fato poderia tornar-se mais óbvio, nem mais bizarro, embora possa perfeitamente passar
despercebida aos olhos e à compreensão do observador, simplesmente por ser algo tão absurdo e
ultrajante.
Muitas vezes ouvimos dizer que Leonardo era conhecido como um cristão piedoso cujas obras sobre
motivos religiosos refletiam a profundidade de sua fé. Até onde pudemos perceber, pelo menos uma de
suas obras carrega em si um imaginário extremamente dúbio em relação à ortodoxia cristã, e nossas
pesquisas posteriores, como veremos, revelam que nada poderia estar mais longe da verdade do que a
idéia de que Leonardo era realmente um crente, isto é, de um modo que fosse aceitável para o
pensamento cristão. Os aspectos anormais e curiosos presentes em apenas uma de suas obras já parecem
indicar que ele estava tentando nos falar sobre um outro nível de significado relacionado àquela cena
bíblica familiar, de um outro mundo de crenças que estava além dos contornos aceitáveis para uma
imagem congelada em um mural dos arredores da cidade de Milão do século XV.
O que quer que signifiquem essas inclusões heterodoxas, elas estavam, nunca é demais reafirmar, em
total desacordo com a ortodoxia cristã. Para os racionalistas/materialistas de hoje em dia nada disso tem
qualquer significado, pois, para estes, Leonardo foi o primeiro cientista verdadeiro e, portanto, era um
homem que não tinha tempo para superstições ou religião de qualquer espécie, sendo a verdadeira
antítese de um místico ou ocultista. Eles também não são capazes de enxergar o que é, de um modo tão
claro, oferecido a seus olhos. Pintar a Última Ceia sem numerosas evidências de vinho é como pintar o
exato momento de uma coroação sem mostrar a coroa: ou se deixa totalmente de retratar o tema em
questão ou se retrata um outro completamente diferente, a ponto de marcar o pintor como um herege
consumado, alguém que possui crenças religiosas mas que está em rixa ou mesmo em guerra contra a
ortodoxia cristã. Descobrimos que as outras obras de Leonardo também trazem suas obsessões heréticas
específicas, por meio de um imaginário consistente e cuidadosamente aplicado, algo que não aconteceria
se o artista fosse apenas um ateu preocupado em ganhar a vida. Esses símbolos e inclusões
impertinentes são também bem mais, muito mais do que uma resposta céptica e satírica ao que lhe fora
encomendado. Não é, por exemplo, a mesma coisa que colocar um nariz de palhaço em São Pedro. O
que estamos olhando na Última Ceia e em outras obras é o código secreto de Leonardo da Vinci, que
acreditamos ser algo de fundamental importância para nosso mundo atual.
Pode-se argumentar que o que quer que Leonardo acreditasse ou não, sua simbologia herética era apenas
um sinal de fraqueza de um homem notoriamente excêntrico, cuja história é um paradoxo interminável.
Ele pode ter sido um solitário, mas era também a alma e a vida de seu grupo; desprezava os cartomantes
e adivinhos, mas sua contabilidade registra pagamentos realizados a astrólogos; era vegetariano e
protetor dos animais, mas sua ternura raramente se estendia à raça humana; dissecou corpos
obsessivamente, e acompanhava execuções com os olhos de um anatomista; era tanto um pensador
profundo quanto um mestre em enigmas; arquitetava truques, artimanhas e trapaças. De uma figura
assim tão complexa, talvez fosse de se esperar que tivesse uma visão pessoal religiosa e filosófica um
tanto incomum, quem sabe mesmo peculiar. Essa seria uma razão, quando isolada do quadro geral, para
se desconsiderar as crenças heréticas de Leonardo como sendo algo sem relevância para os dias de hoje.
Embora Leonardo seja mundialmente reconhecido como alguém de imenso talento, nossa tendência,
repleta de um 'modernismo' irritante e arrogante, é a de subestimar suas descobertas. Afinal, na época
em que ele estava no auge de suas atividades, até mesmo o processo de impressão era uma novidade. O
que um inventor solitário, de um período tão remoto e primitivo, seria capaz de oferecer a um mundo
inundado de informações via Internet e que pode, em questão de segundos, comunicar-se através de
telefone ou fax com pessoas em continentes que nem sequer haviam sido descobertos no século XV?
Há duas respostas para essa questão. A primeira é a de que Leonardo não era, fazendo uso de um
paradoxo, um gênio de segunda categoria. Embora as pessoas saibam que ele projetou máquinas
voadoras e primitivos tanques de guerra, algumas de suas invenções eram tão incomuns para sua época
que alguns tipos mais extravagantes chegaram realmente a sugerir a possibilidade de Leonardo ter tido
visões do futuro. Seus projetos de bicicleta, por exemplo, tornaram-se conhecidos apenas na década de
60. Ao contrário do árduo e moroso processo de desenvolvimento, baseado em tentativa-e-erro, das
primeiras bicicletas construídas na época vitoriana, a bicicleta de da Vinci já nasceu moderna, com duas
rodas de mesmo tamanho e um mecanismo de engrenagens e corrente. Ainda mais fascinante do que o
próprio projeto seria descobrir a razão que o teria levado a inventar a bicicleta. O homem sempre quis
voar como os pássaros, mas um desejo incontrolável de pedalar sobre vias muito pouco adequadas,
equilibrando-se precariamente sobre duas rodas, é algo inimaginável (e, ao contrário do ato de voar, este
é um desejo que não faz parte de nenhum conto clássico). Leonardo também previu o telefone, entre
muitas outras coisas merecedoras de fama. Se Leonardo era muito mais do que o gênio que nos é
revelado pelos livros, fica pendente a questão de se saber qual seria o conhecimento que ele poderia ter
em mãos capaz de ser impingido, de forma significativa e difundida, ao mundo atual, cinco séculos
depois de sua morte. Embora se possa argumentar que os ensinamentos de um rabino do primeiro século
sejam ainda mais irrelevantes para nossa época, também é verdade que algumas idéias são universais e
eternas e que a verdade, se puder ser encontrada ou definida, nunca será corroída em sua essência pela
passagem dos séculos.
Não foi, entretanto, a filosofia de Leonardo (seja pública ou oculta) ou suas invenções que nos atraíram
em sua direção. Foi sua obra mais paradoxal, pois é, ao mesmo tempo, a mais famosa e a menos
conhecida, que nos levou a uma intensa pesquisa sobre ele. Como já discorremos em detalhes em nossa
obra anterior, encontramos provas de que foi o Mestre quem falsificou o Sudário de Turim, que há
muito acreditava-se ter sido miraculosamente impresso com a imagem de Jesus Cristo na ocasião de sua
morte. Em 1988, um teste de carbono-14 provou a todos, menos para um punhado de crentes
desesperados, que o Sudário na realidade é um artefato do final da época medieval ou início do
Renascimento. Para nós, entretanto, ele continua a ser uma peça verdadeiramente admirável, para dizer
o mínimo. Nosso maior interesse, o que nos enchia de curiosidade, era descobrir a identidade do
embusteiro, pois quem quer que fosse capaz de criar tal "relíquia" deveria ser um gênio.
O Sudário de Turim comporta-se como uma fotografia, como é reconhecido em todas as referências,
tanto nas que são favoráveis como nas que são contrárias à sua autenticidade. Ele apresenta um curioso
"efeito de negativo", o que significa que se parece a olhos nus com uma tênue mancha chamuscada, mas
que pode ser vista em detalhes em um negativo fotográfico.
Já que nenhuma tinta conhecida ou processo de xilogravura se comporta dessa maneira, o efeito de
negativo foi tomado pelos "sudaristas" (aqueles que acreditam na autenticidade do Sudário de Jesus)
como sendo a prova das qualidades miraculosas da imagem. Entretanto, nós percebemos que a imagem
gravada no Sudário de Turim se comporta como uma fotografia porque ela é precisamente isso.
O Sudário de Turim é uma fotografia. Isso dito assim de chofre é um pensamento um tanto perturbador.
Com a ajuda de Keith Prince, reconstruímos o que acreditamos ser a técnica que foi originalmente
utilizada e, ao fazermos isso, nos tornamos as primeiras pessoas a reproduzir todas as características até
então inexplicáveis do Sudário de Turim. E, apesar dos sudaristas reclamarem que isso era impossível,
nós o fizemos utilizando equipamentos bastante simples, como uma câmara escura, um pedaço de tecido
recoberto quimicamente, tratado com materiais facilmente disponíveis no século XV, e muita luz.
Usamos, entretanto, como objeto de nossa experiência fotográfica, um busto de gesso de uma garota
comum, o que está, infelizmente, a anos-luz, em importância, do objeto utilizado originalmente. Pois o
rosto do Sudário não é, como sempre se pensou, o de Jesus. Na verdade é o rosto do próprio
mistificador. Em suma, estamos convencidos de que o Sudário de Turim é, entre outras coisas, uma
fotografia com quinhentos anos de idade de ninguém mais, ninguém menos do que o pr6prio Leonardo
da Vinci.
Apesar de algumas curiosas afirmações dizerem o contrário, essa obra não pode ter sido realizada por
um cristão piedoso. O Sudário de Turim, visto como o negativo de uma fotografia, aparentemente
mostra o corpo de Jesus, sangrando e repleto de fraturas. Deve ser lembrado que esse não é um sangue
comum, pois para os cristãos ele não é apenas literalmente divino: é também o veículo através do qual o
mundo pode ser redimido. A nosso ver, ninguém poderia simplesmente falsificar aquele sangue e ser
considerado um crente, nem poderia ser alguém que tivesse um pingo de respeito pela pessoa de Jesus
ao substituir a imagem de Cristo pela sua própria. Leonardo fez as duas coisas, com um cuidado
meticuloso e até mesmo, suspeitamos, com um certo prazer. Pois com certeza ele sabia que o Sudário,
ao carregar em si mesmo a suposta imagem de Jesus, já que ninguém sequer suspeitaria que essa era na
verdade a do próprio artista de Florença, seria venerado por um número infindável de peregrinos, já
mesmo no período em que o artista ainda estava vivo. Daquilo que descobrimos sobre ele e sobre seu
caráter, podemos imaginar, com alguma certeza, que ele se esgueirava dentre as sombras e observava as
pessoas venerando o Sudário. Mas teria ele previsto a massa de peregrinos que passaria em frente de sua
imagem ao longo dos séculos? Teria ele imaginado que algum dia muitas pessoas inteligentes se
converteriam ao catolicismo simplesmente ao olhar para aquela face bela e torturada? E teria ele
previsto que o mundo ocidental construiria a figura de Jesus baseando-se quase que totalmente na
imagem gravada no Sudário de Turim? Teria ele percebido que um dia milhões de pessoas de todo o
mundo estariam venerando a imagem de um homossexual herético do século XV no lugar do seu Santo
adorado, que Leonardo da Vinci se tornaria literalmente a imagem de Jesus Cristo?
O Sudário é provavelmente a mais bem-sucedida e audaciosa trapaça jamais realizada. E embora tenha
enganado milhões de pessoas, ela é muito mais do que uma celebração à habilidade de concretizar uma
mistificação de mau gosto. Acreditamos que Leonardo se utilizou da oportunidade para criar a relíquia
cristã definitiva como um veículo para duas coisas: uma técnica inovadora e uma crença herética oculta.
A técnica fotográfica primitiva era, como nos contam os acontecimentos históricos, perigosa demais
para ser demonstrada publicamente naquela época cheia de superstição e paranóia. Não há dúvida de
que, para seu próprio deleite, Leonardo arranjaria um meio de fazer com que seu protótipo ficasse aos
cuidados dos mesmos bispos que ele tanto desprezava. É claro que a ironia implícita nessa proteção por
parte do bispado talvez seja apenas pura coincidência, apenas mais uma brincadeira do destino
introduzida nesta história, já por si só inacreditável. Para nós, porém, isso demonstra a obsessão de
Leonardo em ter total controle sobre tudo, controle que, como se vê, ultrapassou em muito sua própria
morte.
O Sudário de Turim, falsificação e obra de um gênio, também traz em si certos símbolos que salientam
as obsessões particulares de Leonardo que, no geral, também podem ser vistas e melhor compreendidas
em outras obras suas. Por exemplo, podemos ver na base do pescoço da figura do Sudário uma linha
demarcada bastante nítida. Quando a imagem como um todo é transformada em um "mapa de
contorno", utilizando-se as técnicas computadorizadas mais sofisticadas, podemos ver que essa linha
marca a parte final da imagem da cabeça; a partir daí existe como que um oceano de inimaginável
escuridão até a imagem começar novamente no início do tórax. Acreditamos que existam duas razões
para isso. Uma delas é de ordem puramente prática, pois a imagem frontal é um composto, o corpo
sendo de alguém realmente crucificado e o rosto sendo do próprio Leonardo e, portanto, a linha é um
indicativo da necessária "junção" entre as partes. Entretanto, esse mistificador não era de modo algum
um artesão de segunda classe, e poderia com relativa facilidade obscurecer ou remendar aquele sinal
revelador. Mas e se Leonardo não quisesse realmente se livrar dessa linha reveladora? E se ele a tivesse
deixado de propósito como uma pista para aqueles que "tem olhos que vêem"?
Qual é o volume possível de material herético, mesmo em código, que o Sudário de Turim pode
transportar em si mesmo? Há com certeza um limite para os símbolos que alguém pode esconder em
uma imagem simples e estática de um homem crucificado e nu, uma imagem que, além disso, foi
analisada por muitos cientistas eminentes dotados de equipamentos de última geração. Voltaremos a
esses assuntos mais tarde, mas façamos por agora uma mera indicação de que essas questões podem ser
respondidas ao olharmos novamente para os dois aspectos principais da imagem. O primeiro se
relaciona com a abundância de sangue que parece estar ainda escorrendo dos braços de Jesus e que, à
primeira vista, contradiz a simbólica falta de vinho na mesa da Última Ceia, mas que de fato reforça
esse ponto em particular. O segundo aspecto se refere à óbvia linha demarcatória entre o corpo e a
cabeça, como se Leonardo estivesse chamando nossa atenção para a decapitação...Até onde sabemos,
Jesus não foi decapitado, e se a imagem é uma composição, estamos então sendo levados a fazer
suposições sobre uma imagem composta de duas pessoas que, contudo, nunca estiveram tão juntas
antes. Mas, mesmo assim, por que alguém que foi decapitado teria sido 'colado' à imagem de alguém
que foi crucificado? .
Como ainda veremos, essa pista da cabeça decapitada do Sudário de Turim é apenas um reforço no
simbolismo presente em muitas outras obras de Leonardo. Percebemos o quanto a estranha mulher, "M",
da Última Ceia, está aparentemente sendo ameaçada por uma mão que atravessa seu pescoço delicado,
assim como Jesus também está sendo ameaçado por um dedo em riste que aponta diretamente para seu
rosto, como se estivessem dando um aviso ou talvez uma advertência ou, quem sabe, ambos. Nas obras
de Leonardo esse dedo em riste sempre aparece, em todos os casos, como uma referência direta à figura
de João Batista.
Esse santo, dito predecessor de Jesus, que proclamou ao mundo "contemplai o Cordeiro de Deus", cujas
sandálias ele não era merecedor sequer de tocar, foi de suprema importância para Leonardo, se
julgarmos apenas pela onipresença deste em suas obras. Essa obsessão é bastante estranha para quem é
considerado por racionalistas contemporâneos como alguém sem tempo para perder com religião. Um
homem para quem todas as características e tradições do cristianismo nada significassem, dificilmente
devotaria tanta energia e tanto tempo a um santo em particular, como ele fez com João Batista. De
tempos em tempos é esse João quem domina a vida de Leonardo, tanto no nível consciente, que está
representado em suas obras, como em termos de sincronicidade relacionada com as coincidências que o
envolviam. É quase como se João Batista o perseguisse. Por exemplo, a sua amada cidade de Florença é
dedicada ao santo, bem como a catedral de Turim, onde o falso Sudário de Leonardo está exposto. Sua
última obra, que, junto com Mona Lisa, ficou exposta, sem ser reivindicada por quem quer que fosse, no
aposento onde passou suas últimas horas de vida, era um quadro de João Batista; e o único fragmento de
uma escultura sua (realizada em conjunto com Giovan Francesco Rustici, um conhecido ocultista)
também retratava João Batista. Ela agora está colocada no alto da entrada do batistério de Florença, bem
em cima da cabeça dos turistas e, infelizmente, servindo de alvo para um bando de pombos irreverentes.
Aquele dedo em riste, que chamamos de o 'sinal de João', foi retratado em Escola de Atenas, de Rafael
(1509). Nele vemos o venerável Platão fazendo esse sinal, mas nessas circunstâncias não chega a ser
propriamente uma insinuação misteriosa, como alguém poderia suspeitar. De fato, o modelo para Platão
foi ninguém mais, ninguém menos que o próprio Leonardo, obviamente fazendo um gestual que não era
apenas uma característica sua em particular, mas que também tinha um significado profundo para ele
(bem como, provavelmente, para Rafael e outros do mesmo círculo).
No caso de pensarem que talvez estejamos dando excessiva importância a isso que denominamos o
'sinal de João', vamos verificar outros exemplos em que ele aparece em outras obras de Leonardo.
Aparece em muitas de suas pinturas, como já dissemos, sempre com o mesmo significado. No seu
inacabado Adoração dos Reis Magos (que fora iniciado em 1481) um espectador anônimo faz o mesmo
gesto bem próximo de um monte de terra ao lado do qual cresce uma alfarrobeira. Muitos observadores
provavelmente nem notariam tal coisa, pois seus olhos seriam inevitavelmente atraídos para o que
pensariam ser o ponto central da pintura, conforme sugere o título da obra, a adoração da Sagrada
Família pelos "homens sábios" ou Reis Magos. A bela e sonhadora Virgem, com o menino Jesus em
seu colo, é retratada como uma personagem insípida e pálida. Ajoelhados, os Reis Magos mostram-lhe
os presentes que trouxeram para a criança, enquanto ao fundo uma multidão os cerca, aparentemente
também em atitude de devoção para com a mãe e a criança. Como na Última Ceia, porém, esta é uma
pintura cristã apenas na superfície e merece um olhar mais atento.
Os devotos no primeiro plano dificilmente poderiam ser chamados de exemplos de saúde e beleza.
Esqueléticos, quase a ponto de parecerem defuntos, suas mãos estendidas, menos em atitude de
admiração e mais como se eles estivessem querendo se agarrar à Virgem e ao menino, evocam um clima
de pesadelo. Os Reis Magos mostram seus presentes, mas apenas dois dos três da lenda estão retratados.
Incenso e mirra estão sendo oferecidos, mas não ouro. Para os da época de Leonardo, o ouro significava
não somente imediata riqueza mas também um símbolo de realeza - e isso está sendo negado a Jesus.
Atrás da Virgem e dos Reis Magos parece haver um segundo grupo de devotos. Esses são muito mais
saudáveis e têm um aparência normal, mas se alguém seguir a linha de direção de seus olhares verá que
não estão olhando nem para a Virgem e nem para a criança; ao invés disso, parecem estar reverenciando
as raízes da alfarrobeira, na qual uma pessoa está fazendo o "sinal de João". A alfarrobeira, aliás, é
tradicionalmente associada à figura de João Batista...
Embaixo e ao fundo, do lado direito da pintura, um jovem se volta deliberadamente para o lado oposto
ao da Sagrada Família. De modo geral aceita-se que esse seja o próprio Leonardo, mas o argumento
utilizado para explicar sua repulsa, a de que o artista não se sente no direito de encará-la, é um tanto
frágil e, como já veremos, dificilmente se mantém. Pois Leonardo é bem conhecido por não ter nenhum
amor pela igreja. Além disso, na caracterização de São Judas Tadeu na Última Ceia, ele também está
voltado em direção oposta ao Redentor, deixando assim subentendida alguma emoção extrema em
relação à figura central da história cristã. E como Leonardo não era exatamente um exemplo nem de
piedade nem de humildade, essa reação não parece ter sido resultado de um sentimento de inferioridade
ou subserviência.
Voltando para os belos e obsessivos esboços de Leonardo para a Virgem Maria e o Menino Jesus com
Sant'Ana (1501), que embeleza as paredes da National Gallery de Londres, encontramos novamente
elementos que deveriam, embora raramente o façam, perturbar o observador, em razão de suas
implicações subversivas. Os desenhos mostram a Virgem e o menino Jesus juntamente com Sant'Ana
(mãe de Maria) e um João Batista criança. O menino Jesus aparentemente abençoa seu primo João, que
reflexivamente olha para cima, enquanto Sant'Ana, fazendo o "sinal de João" com uma enorme e
estranha mão masculina, perscruta atentamente o rosto distraído de sua filha. Entretanto, esse dedo em
riste levanta-se exatamente sobre a delicada mão de Jesus que está dando bênçãos, como se estivesse
metafórica e literalmente ofuscando-a. E embora a Virgem pareça estar sentada em uma posição
bastante desconfortável, quase como se estivesse montada de lado em uma sela feminina, é a posição do
menino Jesus que é realmente peculiar. A Virgem o segura quase como se o impelisse a abençoar, como
se ela o colocasse em cena apenas para isso e apenas com dificuldade pudesse mantê-lo ali. Enquanto
isso, João recosta-se casualmente no joelho de Sant'Ana como se não se apercebesse da honra que lhe
estava sendo dada. Poderia ser que a própria mãe da Virgem a estivesse lembrando de alguma coisa
secreta relacionada com João?
Segundo a nota que acompanha a obra na National Gallery, alguns especialistas em arte, confusos com a
juventude de Sant'Ana e a estranha presença de João Batista, têm especulado que a obra na verdade
retrata Maria e sua prima Isabel, mãe de João. Isso é algo plausível, e se estiver correto reforça as nossas
teses.
Essa aparente confusão entre Jesus e João também pode ser vista em uma das duas versões da A Virgem
dos Rochedos de Leonardo. Os historiadores da arte nunca explicaram satisfatoriamente o porquê de
serem duas. Uma delas é exposta com freqüência na National Gallery em Londres e a outra, que para
nós é muito mais interessante, está no Museu do Louvre em Paris.
A encomenda foi feita por uma organização conhecida como Irmandade da Imaculada Conceição, para
uma única pintura a ser colocada como peça central de um tríptico para o altar da capela da igreja de São
Francesco Grand em Milão. (As outras duas pinturas do tríptico foram feitas por outros artistas). O
contrato, de 25 de abril de 1483, ainda existe e mostra um interessante contraste entre a obra
encomendada e o que os membros da irmandade realmente receberam. Eles especificaram
cuidadosamente no contrato o formato e as dimensões do quadro que queriam, o que era uma
necessidade, pois a moldura para a tela já existia. Estranhamente, ambas as versões acabadas de
Leonardo estavam dentro dessas especificações, embora não se saiba por que fez duas versões.
Podemos, entretanto, arriscar um palpite sobre essas duas interpretações divergentes que,
provavelmente, não foram feitas por uma questão de perfeccionismo e sim devido à consciência do
potencial explosivo implícito.
O contrato também especificava o que deveria ser pintado. O tema se referia a um acontecimento que
não é mencionado nos Evangelhos, embora seja uma lenda cristã bastante conhecida. Era sobre a
história de como, durante a fuga para o Egito, José, Maria e Jesus, ainda um bebê, se abrigaram em uma
caverna no deserto onde se encontraram com o menino João Batista, que era protegido pelo arcanjo
Ariel. O ponto central dessa lenda é a de que ela permite evitar uma das questões mais óbvias e
embaraçosas decorrentes do batismo de Jesus, conforme relatado nos Evangelhos. Por que alguém
supostamente sem pecados como o filho de Deus deveria ser submetido ao que, claramente, era um ato
de autoridade por parte de João Batista?
Essa lenda nos diz como, durante esse incrível encontro entre as duas crianças santas, Jesus conferiu a
seu primo João a autoridade de batizá-lo quando ambos se tornassem adultos. Por diversas razões essa
encomenda da Irmandade é para nós uma das mais irônicas já pedidas a Leonardo, porém, também
podemos suspeitar que ele teria ficado deliciado em recebê-la e em fazer a interpretação que bem
quisesse, pelo menos em uma das duas versões.
De acordo com o estilo então vigente, os membros da Irmandade solicitaram especificamente uma obra
suntuosa, bastante ornamentada, arrematada com abundantes folhas douradas e uma profusão de
querubins e espíritos dos profetas do Antigo Testamento para preencher os vazios. O que receberam,
porém, foi algo bastante diferente, a tal ponto que as relações entre eles e o artista se tornaram bastante
estremecidas, culminando em um processo jurídico que se arrastou por mais de 20 anos.
Leonardo decidiu representar as cenas de forma tão realista quanto possível, sem personagens extras.
Não haveria gorduchos querubins ou fantasmagóricos profetas do apocalipse. De fato, a dramatis
personae talvez tenha sido reduzida de um modo um tanto excessivo, pois, embora tal cena
supostamente retrate a fuga para o Egito da Sagrada Família, José não aparece na pintura de forma
alguma.
A versão que está no Louvre, a primeira das duas, mostra a Virgem vestida com um manto azul
protegendo uma criança e a outra criança sendo retratada em conjunto com Ariel. O curioso é que as
duas crianças são idênticas, mas, mais estranho ainda, é a criança que está junto ao anjo estar
abençoando a outra e a criança junto a Maria estar ajoelhada em subserviência. Isso fez com que os
historiadores da arte presumissem que Leonardo escolheu, por qualquer razão que seja, colocar o
menino João junto a Maria. Afinal, não há legendas identificando as pessoas e certamente a criança que
tem a autoridade para abençoar deve ser Jesus.
Existem, porém, outras maneiras de se interpretar essa obra, maneiras que não apenas sugerem uma
forte mensagem subconsciente e de cunho não ortodoxo, mas que também reforçam os códigos
utilizados por Leonardo em outros trabalhos. Talvez a semelhança entre as duas crianças sugira que
Leonardo, deliberadamente e com propósitos particulares, camuflou suas identidades. E enquanto Maria
está abraçando protetoramente a criança geralmente identificada como sendo João, ela estende sua mão
esquerda acima da cabeça de 'Jesus' , no que parece ser um gesto de clara hostilidade. Serge Bramly, em
sua recente biografia de Leonardo, descreveu esse gesto como 'reminiscências das garras de uma ave de
rapina'. Ariel está apontando em direção à criança que está com Maria, mas está também,
significativamente, olhando de forma enigmática para o observador, ou seja, olhando de forma resoluta
para longe da Virgem e o menino. Embora possa ser mais fácil e aceitável interpretar tal gesto como
sendo uma indicação de qual dos dois é o Messias, existem outras possibilidades de resposta.
E se admitirmos, como seria lógico esperar, que a criança que está com Maria, na versão do Louvre de A
Virgem dos Rochedos, é Jesus e a mais jovem com Ariel é João? Nesse caso é João quem está
abençoando Jesus, e este estaria se submetendo à autoridade daquele. Ariel, como protetor especial de
João, está até mesmo evitando olhar para Jesus. E Maria, protegendo seu filho, está mostrando uma mão
ameaçadora bem acima da cabeça de João. Alguns centímetros diretamente abaixo da mão espalmada de
Maria, a mão de Ariel se atravessa de um modo que faz com que esses dois gestos pareçam conter
alguma pista enigmática. É como se Leonardo estivesse indicando que algum objeto, algum traço
significativo, embora invisível, deveria preencher o vazio deixado. Dentro desse contexto não seria nada
fantasioso imaginar que os dedos estendidos de Maria estariam ali posicionados em substituição a uma
coroa colocada sobre uma cabeça invisível, enquanto os dedos de Ariel cortam o espaço justamente
onde deveria estar o pescoço de tal cabeça. Essa cabeça fantasma flutua precisamente acima da criança
que está com Ariel...Assim, poderá haver dúvida sobre a identidade daquela das duas crianças que será
morta por decapitação? E se essa criança que está abençoando for realmente João Batista, não será ela,
portanto, superior à outra?
Contudo, quando nos voltamos para a versão que está na National Gallery, que é de um período
posterior, percebemos que todos os elementos necessários para produzir essas deduções heréticas se
perdem, mas apenas esses elementos. As duas crianças são bastante diferentes em sua aparência, e a que
está com Maria traz em si a cruz de João Batista (embora talvez seja verdade que ela tenha sido
acrescida, tempos depois, por um outro artista).Aqui, a mão de Maria ainda está estendida sobre a outra
criança. Dessa vez, porém, não há nada que sugira uma ameaça. Ariel não aponta e nem olha para longe
da cena. É como se Leonardo estivesse nos convidando a 'localizar a diferença', deixando que nós
mesmos tirássemos as conclusões necessárias sobre essas anomalias. .
Esses estudos da obra de Leonardo revelam uma diversidade de significados ocultos ao mesmo tempo
provocantes e perturbadores. Parece haver uma repetição, utilizando vários símbolos e sinais simples e
subconscientes, ao redor do tema de João Batista. Ele é continuamente colocado, e as imagens denotam
isso, acima da figura de Jesus, inclusive, se estivermos certos, nos símbolos que estão dissimuladamente
gravados no próprio Sudário de Turim.
Há algo de compulsivo nessa insistência, não apenas em relação à complexidade das imagens que
Leonardo utilizou como, também, no risco que correu em mostrar ao mundo essas heresias, mesmo
construídas de modo tão inteligentemente subliminar. Talvez, como já colocamos, a razão de ele ter
finalizado tão poucas obras não deva ser debitada na conta de um perfeccionismo exagerado, mas ao
fato de ter consciência do que poderia lhe acontecer se alguém importante conseguisse enxergar para
além da linha que separa a ortodoxia e a completa 'blasfêmia' oculta sob a superfície. Talvez até mesmo
um gênio como Leonardo se acautelasse, a fim de não cair nas garras das autoridades. Uma vez já foi o
suficiente para ele.
Contudo, com certeza ele não teria nenhuma necessidade de pôr sua cabeça a prêmio retratando tais
heresias em suas obras, a menos que acreditasse nelas de forma verdadeiramente apaixonada. Como já
vimos, longe de ser o materialista ateu amado por muitos de nossos contemporâneos, Leonardo estava
seriamente comprometido com um sistema de crenças que navegava em direção totalmente contrária ao
que era, e ainda é, o discurso central do cristianismo. Esse sistema de crenças era o que muitos
chamariam de 'ocultismo'.
Atualmente, para muitas pessoas esse é um mundo que tem conotações pré-concebidas e bem pouco
positivas. O ocultismo é diretamente relacionado com magia negra ou truques de charlatães depravados
ou ambos. No entanto, a palavra 'ocultismo' significa simplesmente 'escondido' e é comumente utilizada
na astronomia para, por exemplo, descrever algum corpo espacial que esteja 'ocultando' ou eclipsando
um outro. No que se refere a Leonardo, poderíamos concordar que enquanto houvesse realmente
elementos em sua vida e em sua crença que resvalavam para rituais sinistros e práticas mágicas, é
verdade também que ele buscava conhecimento, acima e além de qualquer coisa. Do que ele procurava,
entretanto, a maior parte era mantida realmente 'oculta', pela sociedade de um modo geral e por uma
organização, onipresente e poderosa, em particular. A Igreja desaprovava, na maior parte da Europa,
qualquer experiência científica e tomava medidas drásticas a fim de silenciar quem tornasse públicas
suas visões heterodoxas ou extremamente pessoais.
Florença, entretanto, onde Leonardo nasceu, se educou e em cuja corte sua carreira realmente se iniciou,
era um centro florescente de uma nova onda tecnológica. Isso, extraordinário por si só, estava em total
consonância com o fato de a cidade ser um refúgio para um grande número de mágicos e ocultistas
influentes. Os primeiros patronos de Leonardo, a família dos Medici, que governava a cidade,
encorajaram ativamente o estudo do ocultismo e até patrocinavam pesquisadores a procurar e traduzir
certos manuscritos perdidos.
Essa fascinação pelo misterioso não era o equivalente renascentista do interesse por horóscopos,
avidamente procurados nos jornais de hoje em dia. Embora houvesse inevitavelmente áreas de
investigação que pareceriam a nós ingênuas e tolamente supersticiosas, havia também muitas outras que
representavam uma séria tentativa para entender o universo e o lugar do homem nele. Os mágicos,
entretanto, procuraram ir um pouco mais longe ao tentar descobrir como controlar as forças da natureza.
Olhando sob essa ótica, talvez não seja tão inacreditável que Leonardo fosse, entre tantos outros, um
ativo participante do movimento ocultista de sua época e de sua cidade. E a distinta historiadora Dame
Frances Yates chegou mesmo a sugerir que a chave que permitia o vôo de longo alcance da genialidade
de Leonardo se ancorava nos conceitos sobre magia desenvolvidos em sua época.
Os detalhes das filosofias predominantes na época, inseridas no movimento ocultista de Florença,
podem ser encontrados em nosso livro anterior, mas, em linhas gerais, a pedra de toque de todos os
grupos da época era o hermetismo, denominação que vinha de Hermes Trismegistos, o grande, se não
legendário, mago egípcio cujos livros apresentam um coerente sistema de magia. A parte mais
importante do pensamento hermético era a idéia de o homem ser literalmente divino, um conceito por si
só tão ameaçador que a Igreja, a fim de não deixar que ele entrasse nos corações e espíritos de seu
rebanho, o classificou como motivo para a excomunhão de quem o professasse.
Os princípios herméticos estavam, certamente, presentes na vida e na obra de Leonardo, mas à primeira
vista parecia haver uma óbvia discrepância entre essas sofisticadas idéias filosóficas e cosmológicas e os
aspectos heréticos que, apesar de tudo, preservavam a importância das figuras bíblicas. (Devemos
destacar que as crenças heterodoxas de Leonardo e seu círculo não eram apenas conseqüência de uma
reação contra uma igreja corrupta e dogmática. Como está escrito na história, havia realmente uma forte
e explícita reação contra a Igreja de Roma: o movimento Protestante. Mas estivesse Leonardo vivo hoje
e nós, com certeza, tão pouco o encontraríamos rezando nesse tipo de igreja).
Entretanto, há uma evidência suficientemente forte para fazer com que os herméticos possam também
ser considerados totalmente heréticos. Giordano Bruno (1548-1600), pregador fanático do hermetismo,
proclamou que suas crenças vieram de uma antiga religião egípcia que, além de ser anterior ao
cristianismo, era muito mais importante do que este.
Uma parte desse próspero mundo ocultista, embora ainda um tanto frágil para merecer a desaprovação
da Igreja, era formada pelo grupo dos alquimistas. Eles também são um grupo atingido pelo preconceito
atual. Hoje em dia recebem a pecha de tolos que desperdiçavam suas vidas tentando em vão transformar
metal comum em ouro. Na verdade, porém, essa imagem foi uma útil cortina de fumaça para os
alquimistas sérios que estavam mais preocupados com experiências científicas e também com
transformações pessoais e o controle implícito de seus próprios destinos. Mais uma vez, não é difícil
concluir que alguém tão faminto por conhecimento quanto era Leonardo faria parte de tal movimento,
talvez fosse até mesmo um de seus pioneiros. Embora não haja uma evidência direta de seu
envolvimento, ele era conhecido por manter relações com ocultistas dos mais diversos matizes, e nossa
pesquisa sobre sua falsificação do Sudário de Turim nos dá segura indicação de que essa imagem foi um
resultado direto de suas próprias experiências 'alquímicas' (na verdade, chegamos à conclusão de que a
fotografia era apenas um entre outros grandes segredos da alquimia).
Simplificando: é muito improvável que Leonardo não tenha tido um contato íntimo com algum dos
sistemas de conhecimento que estavam disponíveis em sua época, mas ao mesmo tempo, dados os riscos
envolvidos em fazer parte deles abertamente, é igualmente improvável que deixasse registrado por
escrito qualquer traço de evidência que o ligasse a tais sistemas. Contudo, como já vimos, os símbolos e
imagens que ele utilizou repetidamente nas suas assim chamadas obras cristãs com certeza não seriam
apreciadas pelas autoridades da Igreja, tivessem elas percebido sua verdadeira natureza.
De qualquer modo, essa fascinação com o hermetismo parece ser, ao menos na superfície, quase que o
extremo oposto de uma escala de preocupações que colocasse João Batista e o suposto significado da
mulher "M" no ponto máximo. Na verdade, foi essa discrepância que nos confundiu a tal ponto que
tivemos que nos aprofundar ainda mais. É claro que se poderia argumentar que o significado dessa
coleção de dedos em riste apenas nos diz que um gênio da Renascença era obcecado por João Batista.
Seria possível, porém, que houvesse um significado mais profundo por trás da crença pessoal de
Leonardo? A mensagem que podemos ler em suas pinturas tinha algum fundo de verdade?
Com certeza o Mestre já era bastante conhecido nos círculos do ocultismo como sendo alguém
possuidor de um conhecimento secreto. Quando começamos a pesquisar sua participação no Sudário de
Turim nos deparamos com muitos rumores antigos que diziam que não só havia um dedo dele nessa
criação, como também era conhecido por ser um mago de algum renome. Há até mesmo um cartaz
parisiense do século XIX fazendo propaganda do Salão da Rosa + Cruz, um lugar de encontros para
ocultistas de espírito artístico, que retratava Leonardo como o Guardião do Santo Graal (que em
determinados círculos pode ser tomado como alcunha do Guardião dos Mistérios). Mais uma vez,
rumores e licença poética não acrescentam muita coisa por si mesmos, mas, colocados em conjunto com
todas as indicações listadas acima, certamente abriram nosso apetite para conhecermos mais sobre esse
Leonardo desconhecido.
Até aqui conseguimos isolar o que parece ser o foco principal das obsessões de Leonardo:João Batista.
Embora fosse natural que, vivendo em Florença, recebesse encomendas para pintar ou esculpir esse
santo, já que essa cidade era dedicada a João Batista, a verdade é que, ao ser deixado livre para fazer o
que bem quisesse, Leonardo escolhia exatamente o mesmo. Afinal, a última pintura de Leonardo, em
1519, foi um quadro relativo à morte de João Batista, que não fora encomendado por ninguém e sim
feito por vontade própria.Talvez quisesse a imagem para observá-la enquanto estivesse morrendo. E
mesmo quando era pago para pintar uma cena cristã ortodoxa, e sempre que possível, ele enfatizava o
papel de João Batista.
Conforme vimos, suas imagens de João foram elaboradamente preparadas para veicular uma mensagem
específica, mesmo que fosse divulgada de forma imprecisa e subliminar. João, com certeza, devia ser
retratado como sendo alguém importante. Afinal, ele era o predecessor, o parente heráldico e sangüíneo
de Jesus, e, portanto, era natural que seu papel fosse reconhecido dessa forma. Mas Leonardo não dizia
que o Batista era inferior a Jesus, como faziam todos os outros. No seu quadro Virgem dos Rochedos o
anjo está, afirmamos, apontando para João, que está abençoando Jesus, e não o contrário. Na Adoração
dos Reis Magos as pessoas saudáveis e de aparência normal estão venerando as nobres raízes de uma
alfarrobeira, árvore de João, em vez da pálida Virgem com o menino. E o "sinal de João", aquele dedo
da mão direita em riste, está apontado para a face de Jesus na Última Ceia no que, com certeza, não é
uma maneira de se demonstrar amor ou apoio; na verdade, a imagem parece dizer de um modo rude e
ameaçador, "Lembre-se de João". E o menos conhecido dos trabalhos de Leonardo, o Sudário de Turim,
se apóia no mesmo tipo de simbolismo, com sua imagem de uma aparente cabeça decapitada colocada
'sobre' um corpo crucificado. A evidência irresistível é que, para Leonardo ao menos, João Batista foi
realmente superior a Jesus.
Tudo isso pode fazer com que Leonardo pareça ser uma voz solitária pregando no deserto. Afinal,
muitos dos grandes gênios têm sido pessoas excêntricas, para dizer o mínimo. Talvez essa fosse uma
área de sua vida onde ele podia se colocar ao largo das convenções de sua época. Estamos, porém,
conscientes, desde o início de nossa pesquisa no final dos anos 80, do aparecimento recente de
evidências, embora de uma natureza altamente controversa, que o ligam a uma sociedade secreta
poderosa e sinistra. Esse grupo, que, alega-se, já existia muitos séculos antes do aparecimento de
Leonardo, incluía alguns dos indivíduos mais influentes da história européia e, de acordo com nossas
fontes, continua a existir atualmente. Os primeiros líderes dessa organização, conforme indícios que
levantamos, pertenciam à aristocracia, e atualmente são algumas das figuras mais influentes na área
política e econômica, que a mantêm viva por propósitos particulares.
Embora acreditássemos piamente, no início de nossas pesquisas, que iríamos gastar nosso tempo em
galerias de arte, decodificando obras do renascimento, logo percebemos que não podíamos estar mais
equivocados.

* Aos vinte e quatro anos, Leonardo foi preso sob acusação de sodomia, crime cuja pena era a morte. A
acusação foi retirada, pois um dos jovens que fora preso junto com ele pertencia à família que dominava
Florença.A experiência, porém, parece ter causado um efeito profundo em sua vida, e a partir de então
ele nutriu suas obsessões no silêncio de sua privacidade.
CAPÍTULO II

Entrando em Outro Mundo


Nossa pesquisa sobre esse 'Leonardo desconhecido' iria se tornar uma investigação longa, envolvente e
inacreditável, mais parecida com uma iniciação do que com uma simples viagem do ponto A até o ponto
B. Durante nossa iniciação, chegamos a muitos becos sem saída e começamos a nos sentir emaranhados
no mundo daqueles que estavam conectados com essas sociedades secretas; e que se divertiam com
jogos sinistros e em desempenhar o papel de agentes de desinformação. Perguntamo-nos várias vezes,
ainda um tanto aturdidos, como é que uma simples pesquisa sobre a vida e a obra de Leonardo da Vinci
poderia ter nos arremessado em um mundo que acreditávamos só existir em filmes impenetráveis como
Orphée, do grande surrealista francês Jean Cocteau, que é a descrição de um outro mundo, onde só se
pode entrar atravessando um espelho.
Na verdade, foi esse grande representante do bizarro, Cocteau, quem nos daria ainda outras pistas, não
só sobre as crenças pessoais de Leonardo, como também em relação à existência ininterrupta de uma
tradição ocultista que se ocupava dos mesmos assuntos tão caros a ele. Iríamos descobrir que Cocteau
(1889-1963) realmente parecia ter se envolvido com essa sociedade secreta; o que nos permite inferir
isso será discutido mais tarde. Primeiro vamos analisar o conjunto de evidências que está mais à mão,
aquele que está bem diante de nossos olhos.
Surpreendentemente próximo às luzes brilhantes e glamourosas da Praça Leicester, em Londres, está a
igreja de Notre-Dame de France. Localizada no bairro de Leicester, vizinha de uma sorveteria da moda,
é bem difícil de se achar, porque sua fachada não oferece a resplandecência que associaríamos à maioria
das igrejas católicas. Poder-se-ia passar por ela sem sequer notá-la e certamente sem perceber o quanto
sua aparência se diferencia da maioria das outras igrejas cristãs.
Construída em 1865, em um local relacionado aos Cavaleiros Templários, Notre-Dame de France foi
quase totalmente destruída pelas bombas nazistas durante a blitzkrieg (Em alemão no original. Palavra
referente aos rápidos e maciços ataques alemães durante a II Guerra Mundial) e reconstruída no final
dos anos 50. Passando por seu modesto aspecto exterior, o visitante entra em uma sala grande, alta e
ventilada que, à primeira vista, parece ter sido projetada com a mesma arquitetura típica das igrejas
modernas. Quase desprovida dos ornamentos usuais que adornam muitas outras igrejas, ela possui,
contudo, pequenas placas retratando a Via Crucis; um altar alto sob uma tapeçaria retratando uma
Virgem jovem e loura, rodeada por adoráveis animais, os quais, embora lembrem algumas das cenas
mais engraçadinhas dos filmes de Disney, ainda assim cabem no que se pode chamar de uma descrição
aceitável de Maria quando jovem. E há também alguns anjos de gesso reinando sobre as laterais da
capela. Do lado esquerdo de quem olha o altar de frente, entretanto, há uma pequena capela que não tem
nenhuma estátua a ser cultuada, embora, na verdade, tenha seu próprio séquito de devotos. Os visitantes,
admirados, tiram fotografias do mural incomum, de autoria de Jean Cocteau, que o terminou em 1960. A
igreja, por sua vez, orgulha-se de vender cartões-postais estampados com a sua obra de arte, que é
bastante famosa. Mas, como acontece com os chamados trabalhos cristãos de Leonardo, esse afresco,
quando examinado de modo mais meticuloso, revela um simbolismo muito pouco ortodoxo. A
comparação com as obras de Leonardo não é de modo algum fortuita. Mesmo levando-se em conta o
espaço de 500 anos entre uma obra e outra, seria possível imaginar que Leonardo e Cocteau estiveram,
de algum modo, colaborando entre si através dos tempos?
Antes de centrarmos nossa atenção nessa preciosa obra de Cocteau, façamos uma visita à igreja de
Notre-Dame de France. Embora não seja a única, com certeza é algo bastante incomum uma igreja
católica ter um formato circular, sendo este bastante enfatizado aqui, em diversos detalhes. Por exemplo,
há uma notável cúpula em formato de clarabóia, adornada com desenhos de círculos concêntricos, os
quais, não seria tolice se assim interpretássemos, formam uma espécie de teia de aranha. E as paredes,
tanto as de dentro quanto as de fora, contêm um repetitivo motivo de cruzes de lados iguais, e ainda
mais círculos.
A igreja do pós-guerra, relativamente nova, portanto, e que, como descobriremos, era um ponto de
convergência para os grupos cujas crenças religiosas não eram tão ortodoxas quanto nos levariam a
acreditar os livros de história, incorporou com muito orgulho em sua construção uma laje de pedra que
pertencera à Catedral de Chartres, a jóia da coroa da arquitetura gótica. Pode-se argumentar que nada há
de tão excepcional ou sinistro em utilizar essa laje de pedra na construção, pois afinal, durante a guerra,
essa igreja era um ponto de encontro da resistência francesa, e uma pedra vinda de Chartres seria, com
certeza, um símbolo pungente da terra natal a ser defendida. Entretanto, nossa pesquisa iria mostrar que
há ainda muito mais do que isso.
Dia após dia, muitas pessoas, londrinos e visitantes de outros lugares, entram em Notre-Dame de France
para rezar e assistir aos serviços religiosos. A igreja parece ser uma das mais freqüentadas de Londres,
além de servir como um abrigo conveniente para os moradores de rua, que são tratados com extrema
bondade. Porém, é o mural de Cocteau que age como um ímã para a maioria dos que lá vão, como parte
do roteiro de sua visita a Londres, embora também aproveitem esse oásis de sossego para fugir ao
barulho e à agitação da metrópole.
Ao se olhar o afresco pela primeira vez, é bem possível que se fique um tanto desapontado, pois, como
muitas outras obras de Cocteau, a princípio ele parece ser pouco mais do que um esboço pintado, o
retrato de uma cena simples com um parco colorido sobre o gesso. O afresco mostra a crucificação: a
vítima rodeada de atemorizados soldados romanos, mulheres mortificadas e discípulos. Estão aí
presentes, pode-se dizer, todos os elementos necessários para se retratar a cena tradicional da
crucificação de Jesus. Contudo, assim como na Última Ceia de Leonardo, ela também merece um exame
mais cuidadoso, mais crítico e, até mesmo, mais sensato.
É bem possível que a figura central, vítima de um dos mais terríveis tipos de morte através de tortura,
seja Jesus. No entanto, a verdade é que, simplesmente, desconhecemos sua identidade, porque o vemos
apenas do joelho para baixo. A parte de cima do corpo não é mostrada. E aos pés da cruz há uma
enorme rosa vermelho-azulada.
No primeiro plano há um personagem que não é nem romano nem discípulo, e está se afastando da cruz.
Sua fisionomia transparece um grande incômodo relacionado à cena. De certo, presenciar a morte de
qualquer homem em tais circunstâncias é um acontecimento extremamente perturbador, algo certamente
angustiante. Ainda mais nesse caso em particular, pois deve ser algo indescritivelmente traumático estar
presente quando o Deus encarnado está se esvaindo em sangue. No entanto, a expressão desse
personagem não é a de um homem consternado, nem a de um devoto desolado. Se formos realmente
honestos, o cenho franzido e o olhar de soslaio caracterizam uma testemunha um tanto desiludida, até
mesmo cheia de aversão. Essa reação não é de alguém que está disposto, mesmo que remotamente, a
submeter-se à autoridade de outrem, postar-se de joelhos e começar a orar, mas sim a de alguém que
expressa sua opinião diante de um igual.
Quem será essa presença que comparece ao ato mais sagrado do cristianismo com um ar de
desaprovação? Ninguém mais, ninguém menos do que o próprio Cocteau. E se considerarmos que
Leonardo retratou a si mesmo desviando seu olhar para longe da Sagrada Família na Adoração dos Reis
Magos, e de Jesus na Última Ceia, há pelo menos alguma semelhança entre essas obras. E quando
levamos em conta as afirmações de que os dois artistas eram membros de alto escalão da mesma e
herética sociedade secreta, torna-se irresistível a realização de uma investigação mais profunda.
Pairando sobre a cena, há um sol negro, como um olhar ameaçador, espalhando seus raios escuros por
todo o céu. Diante dele posta-se uma pessoa, talvez um homem, com a silhueta recortada contra o
horizonte, cujos olhos erguidos e salientes parecem-se incrivelmente com um par de seios buliçosos,
Quatro soldados romanos, em poses épicas, colocam-se ao redor da cruz. Seguram lanças em ângulos
estranhos e talvez significativos, sendo que um deles porta um escudo, que tem como emblema uma
águia estilizada. Aos pés dos dois está uma peça de tecido sobre o qual alguns dados estão espalhados. A
soma total dos números que aparecem é igual a 58.
Um jovem insípido cruza suas mãos aos pés da cruz. Seu olhar um tanto vago observa uma das duas
mulheres que são retratadas. Elas, por sua vez, parecem estar unidas, formando um grande "M", bem
debaixo do homem com olhos em forma de seios, A mais velha das mulheres olha para baixo, aflita,
parecendo verter lágrimas de sangue. A mais jovem, que literalmente se afasta, dá as costas à cruz,
mesmo estando próxima a essa. Outra figura em forma de 'M' repete-se na frente do altar, que está
diante do mural. Na extrema direita da obra, a última das figuras retratadas é a de um homem de idade
indeterminada, cujo único olho visível tem a aparência inconfundível de um peixe.
Alguns estudiosos têm dito que o ângulo das lanças dos soldados forma um pentagrama, um símbolo
nada ortodoxo e que não tem lugar em uma cena cristã tradicional como essa. Esse símbolo, mesmo
sendo intrigante, não faz parte de nossa investigação. Como já vimos, parecem existir ligações visíveis
entre as mensagens subconscientes presentes nos trabalhos religiosos de Cocteau e Leonardo, e é esse
uso compartilhado de certos símbolos que nos chama a atenção.
Os nomes de Leonardo da Vinci e Jean Cocteau aparecem na lista dos Grãos Mestres daquela que se
auto denomina uma das mais antigas e influentes sociedades secretas da Europa, o Prieuré de Sion, o
Monastério de Sion. Fonte de muitas controvérsias, sua existência tem sido colocada em dúvida e,
portanto, quaisquer de suas supostas atividades têm sido, com freqüência, ridicularizadas, e suas
conexões, ignoradas. No início, tivemos a mesma reação, porém, investigações posteriores revelaram
que a questão não era assim tão simples.
O Monastério de Sion chamou atenção, pela primeira vez, dos povos de língua inglesa somente em
1982, através do best-seller The Holy Blood and the Holy Grail, de Michael Baigent, Richard Leigh e
Henry Lincoln, embora sua edição original em francês seja do início dos anos 60. O Monastério é uma
ordem cavalheiresca e semi-maçônica com alguma ambição política e, parece, considerável força nos
labirintos do poder. Posto isso, é bastante difícil categorizar o Monastério, talvez porque haja algo
essencialmente quimérico em relação à operação como um todo. Nada há de ilusório, entretanto, em
relação à informação que nos foi passada por um representante do Monastério, com quem nos
encontramos no início de 1991. Esse encontro foi resultado de uma série de cartas, um tanto estranhas,
enviadas a nós, após termos participado de um debate no rádio sobre o Sudário de Turim.
Os fatos relacionados a esse encontro um tanto surreal estão detalhados em um livro anterior. Por ora,
diremos apenas que um certo 'Giovanni', a quem só conhecemos através desse pseudônimo, um italiano
que dizia pertencer ao alto escalão do Monastério de Sion, havia nos observado cuidadosamente durante
os primeiros estágios de nossa pesquisa sobre Leonardo e o Sudário. Qualquer que tenha sido a razão,
ele finalmente decidiu entrar em contato conosco e falar sobre certos interesses da organização e, quem
sabe, nos envolver em seus planos. Grande parte das informações que nos passou foi divulgada em
nosso livro sobre o Sudário de Turim, após termos, de um modo um tanto tortuoso, checado a fundo
todas elas. Porém, mais uma vez, essas informações não são pertinentes a este trabalho e, portanto, não
falaremos delas aqui.
Apesar das conseqüências possivelmente espantosas, ou mesmo chocantes, relacionadas às informações
de Giovanni, nós nos sentíamos realmente tentados a levar a sério a maior parte delas, pois nossas
pesquisas as confirmavam. Por exemplo, a imagem do Sudário de Turim comporta-se como uma
fotografia, conforme já demonstramos, pois é exatamente isso o que ela é. E se as informações de
Giovanni, como ele afirmou, realmente tivessem como fonte os arquivos do Monastério, então existe
uma razão efetiva para seguirmos a linha de raciocínio proposta por essa organização, quem sabe,
talvez, com uma pitada de saudável ceticismo, sem de modo algum negá-las de forma imediata e
definitiva, como fazem muitos dos inimigos do Monastério.
Quando começamos a nos aprofundar no mundo secreto de Leonardo, logo percebemos que, se essa
sociedade oculta realmente fosse parte integral da sua vida, então seria bem possível que fosse a fonte
geradora das forças que o motivavam. Se ele realmente fizesse parte de alguma rede poderosa do
submundo, então talvez seus influentes patronos, como os Lorenzo de Medici e Francisco I, da França,
também o fizessem. Tudo indica que havia realmente uma sociedade secreta que alimentava as
obsessões de Leonardo: mas será que era, como alguns alegam, o Monastério de Sion?
Se as afirmações relacionadas ao Monastério forem verdadeiras, então essa organização já era venerável
quando Leonardo ingressou em suas fileiras. Sendo tão antigo quanto for, porém, o Monastério deve ter
exercido uma poderosa atração, talvez mesmo inigualável, para o jovem artista e para muitos de seus
incrédulos colegas renascentistas. Talvez, como os modernos maçons, ela propiciasse um avanço
material e social, facilitando os passos do jovem artista entre os meandros da corte européia mais
influente, mas isso não explica a evidente profundidade das estranhas crenças pessoais de Leonardo.
Tenha ele feito parte ou não, a sociedade exerceu um forte apelo sobre o seu espírito, tanto quanto sobre
os seus interesses materiais.
A base do poder do Monastério de Sion reside, ao menos em parte, na sugestão de que seus membros
eram, e sempre foram, guardiães de um grande segredo, um segredo que, se fosse tornado público, faria
balançar os alicerces tanto da Igreja quanto do Estado. O Monastério de Sion, algumas vezes chamado
de Ordem de Sion ou Ordem de Nossa Senhora de Sion, além de alguns outros títulos pouco utilizados,
afirma que sua fundação remonta a 1099, época da primeira Cruzada. E mesmo essa data serve apenas
ao propósito de institucionalizar o grupo, guardião de um conhecimento explosivo, que, porém, já
existia há muito mais tempo. O Monastério afirma ser a força criadora por trás dos Cavaleiros
Templários, esse original corpo medieval de monges-soldados de sinistra reputação. O Monastério e os
Templários se tornaram, ao menos assim se afirma, virtualmente a mesma organização, presidida pelo
mesmo Grã-Mestre, até que fossem vítimas de um cisma e se separassem, em 1188. O Monastério
continuou sob a custódia de uma série de Grão-Mestres, incluindo alguns dos nomes mais ilustres da
história, como Isaac Newton, Sandro Filipepi (conhecido como Botticelli), Robert Fludd, o filósofo do
ocultismo inglês e, claro, Leonardo da Vinci que, alega-se, presidiu o Monastério durante os últimos
nove anos de sua vida. Entre seus líderes mais recentes estiveram Victor Hugo, Claude Debussy e o
artista, escritor, roteirista e diretor de filmes Jean Cocteau. E embora estes não fossem Grãos Mestres, o
Monastério, afirmam alguns, vem atraindo diversos luminares ao longo dos séculos, como Joana D'Arc,
Nostradamus (Micheal de Notre Dame) e até mesmo o Papa João XXIII.
Celebridades à parte, a história do Monastério de Sion, segundo se alega, envolve gerações e gerações
de algumas das famílias mais influentes da aristocracia européia. Estas incluem os d'Anjous, os
Habsburgs, os Sinclair e os Montgomery.
O objetivo público do Monastério é proteger os descendentes da antiga dinastia dos Merovíngios, reis do
que hoje é a França, e clã detentor do poder nessa região, do século quinto até o assassinato de
Dagoberto II, no final do século dezessete. Seus detratores, entretanto, afirmam que o Monastério de
Sion passou a existir apenas a partir de 1950 e que consiste de um punhado de mitômanos sem qualquer
poder real, monarquistas com ilimitados sonhos de grandeza.
Então, se por um lado temos as afirmações do próprio Monastério sobre sua linhagem e raison d'étre,
por outro, temos as opiniões de seus críticos. Deparamo-nos, então, com um imenso rio sem pontes e,
para sermos sinceros, estávamos cheios de dúvidas sobre continuar seguindo com essa linha de pesquisa.
Entretanto, percebemos que, embora uma análise do Monastério recaia logicamente em duas frentes, ou
seja, as questões pertinentes à sua existência recente e suas próprias alegações de cunho histórico, o
assunto é por demais complexo e nada é muito claro em relação ao que quer que esteja em conexão com
essa organização. Uma conexão dúbia ou uma aparente contradição em relação às atividades do
Monastério inevitavelmente faz com que os cépticos denunciem a coisa toda como um completo
absurdo do início ao fim. Devemos relembrar, contudo, que estamos lidando com fabricantes-de-mitos,
que com freqüência preocupam-se mais em tornar convenientes, através do uso de imagens arquetípicas,
idéias poderosas e até mesmo chocantes, do que em transmitir uma verdade de modo literal.
Que o Monastério existe atualmente, não temos a menor dúvida. Nossas conversas com Giovanni nos
persuadiram de que, no mínimo, não era um confidente trapaceiro e ocasional, e que deveríamos dar
crédito às suas informações.Ele não apenas nos passou informações inestimáveis sobre o Sudário de
Turim, como também nos supriu com detalhes relacionados a vários outros indivíduos que estão
atualmente envolvidos com o Monastério, além de informações sobre outras organizações esotéricas,
talvez associadas, tanto na Inglaterra quanto no continente europeu. Mencionou, por exemplo, como
sendo seu companheiro de organização, um publicitário com o qual um de nós já havia trabalhado nos
anos 70. À primeira vista, a afirmação de Giovanni sobre esse homem nos pareceu apenas uma
maliciosa fantasia de sua parte, porém, dali a alguns meses, algo muito estranho aconteceu.
Por meio de uma notável sincronicidade, o publicitário compareceu a uma festa dada por uma de nossas
amigas, em novembro de 1991, em um restaurante de que ela gostava em particular, bem longe de sua
casa em Home Counties (bairro da cidade de Londres) , mas logo na esquina da casa de um de nós. Foi,
portanto, uma enorme surpresa encontrar alguém que havia sido mencionado por Giovanni, como sendo
um dos membros da organização, em um restaurante nas vizinhanças. Entramos, então, em contato e,
logo depois, fomos convidados a ir até sua casa em Surrey. Sempre uma boa companhia, passamos
horas bastante agradáveis com ele e sua esposa, mas pouco a pouco o fato se tornou evidente: ele era
membro do Monastério de Sion.
Nossos contatos resultaram em um convite para uma festa em sua casa de campo, após as festividades
de Natal. Era uma festa chique, porém, aconchegante, e os outros convidados eram charmosos
cosmopolitas, todos admiravelmente, diríamos até excessivamente, interessados em nosso trabalho sobre
Leonardo e o Sudário. Era algo muito lisonjeiro, mas, ao mesmo tempo, um tanto inquietante,
especialmente porque todos eram executivos do sistema financeiro internacional.
Sabíamos que nosso anfitrião tinha conexões com algum tipo de organização maçônica mas, apesar de
sua cultivada e com freqüência confusa inteligência, era também praticante do ocultismo. Sabemos que
isso é verdade, em parte, porque ele mesmo nos contou, deliberadamente. Com certeza, queria que
tomássemos conhecimento de algo sobre as conexões, suas e de seu círculo de amigos, com o ocultismo,
mas o que exatamente? Qualquer que seja a natureza de sua agenda secreta, havíamos chegado à
conclusão de que o Monastério existia em um mundo de homens e mulheres cultos e influentes.
Giovanni também mencionou, como participante do Monastério, um certo diretor de uma empresa
publicitária de Londres, que também conhecíamos. Embora não tenhamos conseguido confirmar sua
participação na organização, descobrimos que seu interesse no ocultismo se estendia muito além dos
livros e artigos ocasionais que escrevia, através de pseudônimos, sobre o assunto. Ele também
desempenhou um importante papel na publicação de The Holy Blood and The Holy Grail, na edição de
1982. E com certeza não é coincidência ter ele uma segunda casa nas vizinhanças de uma certa
cidadezinha francesa que tem, como veremos, um papel importante no drama desenrolado em torno do
Monastério de Sion.
O resultado realmente importante de nossas conversas com esses homens é que o atual Monastério de
Sion não é, como afirmam os críticos, apenas uma invenção de um punhado de franceses com fantasias
monarquistas. Em conseqüência de nossos recentes contatos e observações diretas, não temos mais
dúvida alguma da existência real do Monastério nos dias de hoje.
Sua suposta linhagem histórica, entretanto, é uma questão completamente diferente. Deve-se admitir
que os críticos do Monastério têm um ponto a seu favor, pois a primeira data realmente documentada de
sua existência é de 25 de junho de 1956. A lei francesa obriga todas as associações a se registrar,
mesmo no caso, paradoxalmente, das assim chamadas sociedades 'secretas'. A declaração do Monastério
na época de seu registro foi a de que seu objetivo era o de prover 'ajuda mútua e estudos para seus
membros', uma declaração que, embora digna dos personagens dos romances de Dickens por seu brando
altruísmo, é também um caso de estudo em matéria de cuidadosa neutralidade. Ela declara uma única
atividade, a de publicar um jornal chamado Circuit, que servia, nas palavras do próprio Monastério,
'para informação e defesa dos direitos e liberdades da população de baixa renda'. A declaração lista
quatro funcionários da associação, sendo que o mais interessante e mais conhecido deles é Pierre
Plantard, que também era o editor do Circuito
Contudo, desde a época dessa obscura declaração, o Monastério de Sion passou a tornar-se conhecido
para um público muito maior. Seus estatutos não só foram impressos, devidamente assinados pelo
suposto Grão-Mestre, Jean Cocteau (embora, é claro, pudesse ser uma falsificação), como também
apareceram em diversos livros. Sua estréia foi em 1962 em Les Templiers sont parmis nous (Os
templários estão entre nós), de Gérard de Sede, que incluía uma entrevista com Pierre Plantard. O
Monastério, entretanto, teve que esperar mais vinte anos para poder causar impacto no mundo de língua
inglesa. Em 1982, o fenomenal best-seller The Holy Blood and The Holy Grail, de Michael Baigent,
Richard Leigh e Henry Lincoln, estourou nas livrarias, e a controvérsia que a partir daí se instalou fez do
Monastério um assunto da moda, pronto a ser debatido entre um público muito maior. O que esse livro
afirma sobre a organização, e extrapola de seus supostos objetivos, será discutido mais tarde.
Pierre Plantard aparece ao público como um personagem vívido que aperfeiçoara a técnica dos políticos
em olhar diretamente para os olhos do entrevistador, enquanto, astutamente, dá uma resposta que pouco
tem a ver com a pergunta proposta. Nascido em 1920, tornou-se notícia pela primeira vez na época da
França ocupada, em 1942, como o editor do jornal chamado Vaincre pour une jeune chevalerie (A
conquista de uma nova ordem de cavalaria), que era marcadamente neutro em relação aos opressores
nazistas e que, na verdade, era publicado com a aprovação destes. Era o órgão oficial da ordem Alpha-
Galates, uma sociedade semi-maçônica e cavalheiresca baseada em Paris, da qual Plantard tornou-se
Grão-Mestre com apenas vinte e dois anos de idade. Seus editoriais apareceram primeiramente sob o
nome de 'Pierre de France', e então como 'Pierre de France-Plantard' e finalmente apenas como 'Pierre
Plantard'. Sua obsessiva procura do que ele considerava ser a versão correta de seu nome, pode ser vista
mais uma vez quando adotou o título bem mais eloqüente de 'Pierre Plantard de Saint-Clair' , que foi o
nome com que apareceu em The Holy Blood and The Holy Grail e utilizou enquanto era Grão-Mestre do
Monastério de Sion, entre 1981 e 1984. (Vaincre é hoje o título do boletim interno do Monastério,
editado por Pierre Plantard de Saint-Clair e seu filho Thomas ).
Ex-projetista de uma fábrica de fogões, Pierre Plantard, apesar de ter exercido considerável influência na
história européia, vez ou outra, afirmam alguns, tinha dificuldades em pagar o aluguel. Pierre Plantard
de Saint-Clair, sob o cognome de 'Captain Way' (Capitão Caminho), era quem estava por trás da
organização do Comitê de Segurança Pública, cujo empenho possibilitou a volta ao poder do General
Charles de Gaulle, em 1958.
Vamos agora considerar a natureza essencialmente paradoxal do Monastério de Sion. Primeiro, de onde
será que realmente vieram as informações públicas sobre a organização, e quão confiáveis são elas?
Conforme afirma The Holy Blood and The Holy Grail, a fonte primária é a coleção de sete documentos
enigmáticos arquivados na Biblioteca Nacional de Paris, onde são conhecidos como Dossiers secret
(dossiês secretos). À primeira vista, eles se parecem com uma mistura entre genealogias históricas,
textos e obras alegóricas mais modernas, que são atribuídas a autores anônimos com pseudônimos
espalhafatosos ou com nomes de pessoas que não têm nenhuma relação com eles. Muitas dessas notas
referem-se à suposta obsessão Merovíngia da sociedade, e se concentram no famoso mistério de
Rennes-le-Château, um remoto povoado na região de Languedoc, ponto de partida para Baigent, Leigh e
Lincoln realizarem suas investigações (falaremos mais sobre isso depois). No entanto, a partir daí
surgiram outras questões que, para nós, têm um significado muito maior e com as quais havíamos lidado
apenas brevemente. O primeiro volume dos dossiês secretos foi arquivado na biblioteca em 1964,
embora a data registrada seja de 1956. O último item foi arquivado em 1967.
Pode-se, com toda razão, caracterizar grande parte do conteúdo dos dossiês como sendo algum tipo de
piada. Entretanto, advertimos contra tal reação porque, através de nossa experiência em relação ao
Monastério de Sion e seu modus operandi, podemos afirmar que ele é perito na arte de divulgar
desinformações de forma completa, deliberada e detalhada. Por trás dessa cortina de fumaça de
tergiversação, confusão e tolices, há uma intenção muito coerente e muito séria.
Contudo, a suposta obsessão em restaurar a linhagem Merovíngia, extinta já há muito tempo, a uma
posição de poder na França moderna, nem mesmo em um milhão de anos poderia fascinar e motivar,
durante um período tão longo, pessoas tão famosas e importantes quanto Leonardo da Vinci e Isaac
Newton.A insinuação encontrada nos dossiês secretos que relaciona a questão da sobrevivência da
dinastia para além do Rei Dagoberto II, sem mencionar a continuidade de uma linha direta de
descendência até o final do século vinte, é na melhor das hipóteses frágil e, na pior, deliberadamente
fabricada. Afinal, qualquer um que já tenha tentado traçar a árvore genealógica de sua própria família,
para além de duas ou três gerações, logo percebe o quão complexo e problemático é todo esse processo.
Então, mais uma vez, colocamos a questão de como poderia uma causa como essa inspirar gerações de
homens e mulheres extremamente inteligentes. É realmente difícil imaginar que as preferências de
Newton e Leonardo pudessem ser sobrepujadas por uma sociedade britânica cujos objetivos fossem
restaurar o poder dos descendentes do Rei Haroldo II (assassinado por William, o Conquistador de
homens, em 1066).
No que tange ao atual Monastério de Sion, há dificuldades enormes em concretizar os objetivos de
restaurar a linhagem dos Merovíngios. Além de fazer da república francesa novamente uma monarquia,
proposta rejeitada um século atrás, há ainda a questão de que, mesmo que essa restauração ocorresse
(presumindo-se que fosse possível provar a existência de um sucessor verdadeiro da dinastia dos
Merovíngios), essa dinastia em particular não poderia reclamar a coroa, já que a nação francesa sequer
existia naquela época. Conforme colocou de forma sucinta o escritor francês Jean Robin; 'Dagoberto
era...um Rei na França, mas de modo algum um Rei da França"
Os dossiês secretos podem parecer um completo absurdo, mas a magnitude dos esforços e recursos
colocados nele, e na manutenção de suas reivindicações, nos faz parar para pensar. Mesmo o escritor
francês Gérard Sede, que devotou várias páginas muito bem argumentadas com o intuito de colocar por
terra as supostas evidências relacionadas à questão merovíngia colocadas nos dossiês, admitiu que o
volume de recursos à disposição para a pesquisa de estudiosos e acadêmicos era de uma desproporção
impressionante. Embora seja cáustico acerca 'desse mito delirante', ele, no entanto, concluiu que
realmente há um mistério por trás disso tudo. Outra curiosidade relacionada aos dossiês é a dedução
óbvia de que o autor, ou autores, teve acesso aos arquivos oficiais do governo.
Tomemos apenas dois exemplos, dentre muitos: em 1967 uma brochura foi adicionada aos dossiês e se
chamava Le serpent rouge (A serpente vermelha), atribuída a três autores, Pierre Feugére, Louis Saint-
Maxent e Gaston de Koker, com data de 17 de janeiro de 1967, embora o recibo de depósito na
Biblioteca Nacional seja de 15 de fevereiro. Esse texto extraordinário, de trinta páginas, que se pode
apreciar como um exemplar de talentos a poesia, também compreende astrologia, simbolismo alegórico
e alquímico. A parte sinistra, entretanto, é que os três autores foram encontrados enforcados em um
intervalo de vinte quatro horas, entre os dias 6 e 7 de março daquele ano.A conclusão óbvia é que essas
mortes foram resultado da elaboração de Le serpent rouge. Entretanto, investigações subseqüentes
mostraram que a obra foi arquivada junto aos dossiês em 20 de março, após, portanto, a morte dos três, e
o recibo de depósito foi deliberadamente falsificado para mostrar a data de fevereiro. Mas, de longe, o
mais assombroso dessa coisa toda, por si só totalmente estranha, é que esses três autores não tinham, na
verdade, ligação alguma com esse texto, nem com o Monastério de Sion... Alguém presumivelmente
aproveitou-se da bizarra sincronicidade dessas três mortes e as utilizou para seus próprios e estranhos
propósitos. Mas por quê? E, como nota Sede, passaram-se apenas treze dias entre as três mortes e o
arquivamento do texto na Biblioteca Nacional. Foi, portanto, um trabalho muito rápido, o que torna
bastante provável que o(s) autor(es) verdadeiro(s) tinha(m) acesso às investigações confidenciais da
polícia. E Franck Marie, escritor e detetive particular, provou conclusivamente que o mesmo tipo
gráfico foi utilizado tanto em Le serpent rouge, como em alguns dos últimos documentos dos dossiês
secretos.
Chegamos, então, ao caso dos documentos forjados do Lloyds Bank. Tidos como pergaminhos do
século dezessete, foram encontrados por um padre francês no final do século passado e, supostamente,
provavam a continuidade da descendência Merovíngia. Foram adquiridos por um inglês, em 1955, e
depositados em um cofre de uma agência do Lloyds Bank,em Londres. Embora ninguém tenha
realmente visto esses documentos, existiam cartas que confirmavam o fato de terem sido depositados.
Estas eram assinadas por três proeminentes executivos ingleses, que já haviam tido conexões com o
serviço secreto inglês. Entretanto, durante a pesquisa para The Messianic Legacy (a seqüência de The
Holy Blood and The Holy Grail) , Baigent, Leigh e Lincoln foram capazes de provar que as cartas eram
forjadas, embora contivessem partes dos documentos genuínos que portavam as assinaturas verdadeiras,
além de cópias dos registros de nascimento dos três executivos. A questão mais significativa e de
maiores conseqüências é que, provavelmente, quem quer que as tenha forjado obteve as partes genuínas
dos documentos nos arquivos do governo francês, o que implicava seriamente o seu serviço secreto.
Mais uma vez, tivemos uma sensação bastante estranha. Um acúmulo enorme de tempo, esforço e talvez
mesmo de perigo pessoal, deve ter sido utilizado para produzir essa trama tão bem elaborada. Contudo,
em última análise, todo esse esforço parece ter sido completa e totalmente inútil. Na verdade, toda essa
trama segue os ditames da antiga tradição dos serviços secretos, nos quais poucas coisas são o que
aparentam ser e as coisas mais indubitáveis sobre determinadas questões podem muito bem ser apenas
um exercício de desinformação.
Existe, porém, uma razão para se fazer uso de paradoxos, mesmo que sejam completamente absurdos.
Temos a tendência de relembrar os absurdos e mais ainda os aspectos completamente ilógicos que, ao
serem deliberadamente apresentados como argumentos estritamente factíveis, têm um poderoso efeito
em nosso inconsciente. Afinal, o inconsciente é o lugar onde são criados nossos sonhos e opera com
seus próprios tipos de paradoxo e não-lógica. E é esse inconsciente que motiva, cria, que, assim que
tenha sido 'fisgado', continuará a trabalhar nas mensagens subconscientes por anos a fio, extraindo cada
pedaço de significado simbólico do mais diminuto fragmento do que parece ser um palavreado sem
sentido.
Os cépticos, que se orgulham em geral de sua sabedoria universal, são, com freqüência, curiosamente
ingênuos, pois vêem tudo como se fosse preto ou branco, verdadeiro ou falso, que é exatamente a forma
como certos grupos querem ser vistos. Haverá melhor maneira de atrair atenção por um lado, mas, ao
mesmo tempo, filtrar a entrada de intrusos indesejáveis ou de curiosos casuais por outro lado, do que se
apresentar ao público com uma informação aparentemente intrigante, porém, virtualmente sem nenhum
sentido? É como se o próprio ato de se aproximar do significado real do Monastério por si só já
constituísse uma iniciação: se sua disposição não for verdadeiramente essa, então, a cortina de fumaça
se encarregará de impedi-lo de realizar uma investigação profunda. Mas, se de alguma forma você
realmente tem essa vontade, então logo lhe será dado - ou você mesmo descobrirá, de um modo tão
sincrônico que chega a ser suspeito -, aquele conhecimento extra sobre os aspectos interiores da
organização que fará, de repente, com que tudo se encaixe em seu lugar.
Em nossa opinião é um grande engano desprezar os dossiês secretos simplesmente porque sua
mensagem manifesta é comprovadamente implausível. O volume de trabalho e esforço colocados nos
dossiês são um argumento em favor da possibilidade deles terem algo real a oferecer. Admitimos que
muito tempo se gasta, de maneira obsessiva, em pesquisas ou obras extremamente vastas e
completamente tolas, e as horas/trabalho envolvidas nisso sequer resultam em algo que valha a nossa
atenção ou respeito. Mas estamos lidando aqui com um grupo que, certamente, está trabalhando sobre
um plano intrincado, e, tomados em conjunto com todas as pistas e palpites (que ficarão mais claras no
decorrer de nossa jornada), parece claro que alguma coisa está acontecendo. Ou eles estão tentando nos
dizer algo ou estão tentando esconder alguma coisa. Enquanto isso, mais pistas sobre sua importância
continuam a aparecer.
Então, o que podemos deduzir das afirmações históricas feitas pelo Monastério? Remontarão realmente
ao século XI, e contariam as suas fileiras com os nomes ilustres mencionados nos dossiês secretos?
Inicialmente, pode-se afirmar que sempre é difícil provar a existência, atual ou histórica, de uma
sociedade secreta. Afinal, quanto mais bem-sucedida é uma entidade em manter-se secreta, mais
complicado é comprovar sua existência. Entretanto, podendo-se demonstrar que existem reiterados
interesses, assuntos e objetivos comuns entre aqueles que são tidos como pertencentes a esse grupo,
durante anos, então é correto e mesmo sensato assumir que tal grupo pode realmente existir ou ter
existido.
Mesmo que a lista de chamada dos Grão-Mestres do Monastério (de acordo com o que está escrito nos
dossiês secretos) pareça ser totalmente inverossímil, comprovou-se, através da pesquisa de Baigent,
Leigh e Lincoln, que ela não é aleatória. Existem realmente conexões persuasivas no processo
sucessório dos Grão-Mestres. Além de se conhecerem, e em muitos casos serem aparentados, esses
luminares compartilham determinados interesses e preocupações. É sabido que muitos deles estavam
associados a movimentos esotéricos e a sociedades secretas, tais como a Maçonaria, os Rosas-cruzes e a
Compagnie du Saint-Sacrement, todas compartilhando alguns objetivos em comum. Por exemplo, há um
tema hermético peculiar que é comum às suas literaturas: uma sensação de arrebatamento ante a
perspectiva do Homem se tornar quase igual a Deus, na medida em que seu conhecimento aumenta
ilimitadamente.
Além disso, nossa própria pesquisa independente, que foi apresentada em nosso último livro, confirmou
que aqueles indivíduos e famílias que estavam supostamente envolvidos com os interesses do
Monastério durante o passar dos séculos, também eram a força motriz que sustentou o que pode ser
chamado de O Grande Embuste do Santo Sudário.
Como já vimos, tanto Leonardo quanto Cocteau se utilizaram de simbolismo não ortodoxo em suas
obras supostamente cristãs. Separados por 500 anos, o imaginário deles apresenta uma notável
consistência, e outros escritores e artistas que estiveram ligados ao Monastério também se utilizaram
desses motivos em suas obras. Isso sugere que eles realmente faziam parte de algum tipo de movimento
secreto e organizado, que já estava muito bem estabelecido na época de Leonardo.Tanto Leonardo
quanto Cocteau foram mencionados como sendo Grão-Mestres, e se levarmos em consideração suas
preocupações compartilhadas, parece razoável deduzir que eles realmente eram altos membros de
algum grupo no mínimo bastante semelhante ao Monastério de Sion.
O grosso das evidências reunidas por Baigent, Leigh e Lincoln em Tbe Holy Blood and Tbe Holy Grail,
a fim de comprovar historicamente a existência do Monastério, é incontestável. E as demais evidências,
que têm sido reunidas por outros pesquisadores, foram publicadas na edição do livro por eles revisada
em 1996. (Esse livro é essencial para qualquer pessoa que esteja interessada nesse mistério.)
Todas essas evidências demonstram que havia uma sociedade secreta operando desde o século XII, mas
será o atual Monastério de Sion seu herdeiro verdadeiro? Embora os dois grupos não devam, como
querem, estar necessariamente vinculados, o atual Monastério tem realmente um conhecimento
profundo sobre a história daquela antiga organização. Afinal, foi através de seus membros atuais que
ouvimos, pela primeira vez, a respeito de um Monastério que existira no passado.
Porém, ter acesso aos arquivos do antigo Monastério não implica necessariamente ser uma continuação
genuína deste. Em uma conversa recente, o artista francês Alain Féral, que, como protegido de Cocteau,
trabalhou com ele e o conhecia bem, disse-nos, de modo inflexível, que seu mentor não fora Grão-
Mestre do Monastério de Sion. Pelo menos, Féral nos assegurou, Cocteau não estava envolvido com
essa organização à época da proclamação de Pierre Plantard de Saint-Clair como Grão-Mestre.
Entretanto, Féral conduziu sua própria investigação sobre certos aspectos da história do Monastério de
Sion, especialmente no que se relaciona com o vilarejo de Rennes-le-Château, no Languedoc, e sua
opinião é que aqueles que são listados como Grãos Mestres nos dossiês secretos, o que inclui Cocteau,
estavam realmente conectados através de uma genuína tradição oculta.
Nessa altura de nossa pesquisa, decidimos ignorar a suposta ambição política do atual Monastério e nos
concentrar nos aspectos históricos, os quais poderiam, obviamente, jogar alguma luz sobre o passado.
Os dossiês secretos, descontando a mitomania Merovíngia, colocava grande ênfase no Santo Graal, na
tribo de Benjamim e na personagem Maria Madalena do Novo Testamento. Por exemplo, em Le serpent
rouge aparece esta declaração:

Daquela a quem quero libertar, eleva-se ante mim o perfume que impregna a sepultura. Antigamente
alguns a chamavam ÍSIS, rainha das causas beneficentes, VENHAM ATÉ MIM TODOS AQUELES
QUE SOFREM E QUE SE SENTEM ESMAGADOS E EU OS CONFORTAREI; outros,
MADALENA, do famoso vaso de bálsamo curativo. Os iniciados conhecem seu nome verdadeiro:
NOTRE DAME DES CROSS.
Essa pequena passagem é confusa, e não apenas porque a última frase, Notre Dame des Cross, não faz
nenhum sentido (a menos que 'Cross' seja um sobrenome, e nesse caso ela se torna apenas um pouco
mais inteligível). 'Des' é a palavra francesa para a preposição 'das', mas cross não existe na língua
francesa, e, é claro, está no singular (Cross é a palavra inglesa para cruz). E há também a peculiar
confusão de Ísis com Maria Madalena, afinal de contas, a primeira era uma deusa e a segunda uma
'mulher decaída', além de serem personagens pertencentes a culturas diferentes sem qualquer conexão
visível.
Com certeza, pode-se pensar, há uma perplexidade que se manifesta de imediato ao vincular assuntos
aparentemente tão distintos quanto Madalena, o Santo Graal e a tribo de Benjamim, para não mencionar
a deusa egípcia Ísis, com a questão da dinastia Merovíngia. Os dossiês secretos explicam que os Franco-
Sicambrianos (Membros do povo germânico que conquistou Gaul no século VI d.C.) a tribo de origem
judaica da qual descendem os Merovíngios, eram a tribo perdida de Benjamim, que emigrou para a
Grécia e então para a Alemanha, onde se tornaram os Sicambrianos.
Entretanto, os autores de Tbe Holy Blood and Tbe Holy Grail fizeram com que o cenário se tornasse
ainda mais complexo. De acordo com eles, a importância da dinastia Merovíngia não estava meramente
em ser o sonho impossível de um punhado de monarquistas excêntricos. Suas afirmações colocaram a
questão de um modo completamente diverso, um modo que captou a imaginação dos milhões de leitores
que se entusiasmaram com esse livro. Eles afirmaram que Jesus fora casado com Maria Madalena e que
dessa união nasceu um filho. Jesus teria sobrevivido à cruz, mas sua mulher partiu sem ele, levando seu
filho para um colônia judia estabelecida naquilo que é hoje o sudoeste da França. Foram os
descendentes dessa criança que se tornaram a família poderosa dos Sicambrianos, e então fundaram a
dinastia de reis Merovíngios.
Essa hipótese parece dar sentido ao que afirma o Monastério, mas provoca questionamentos ainda
maiores. Como vimos, seja qual for sua origem, é impossível para qualquer linhagem hereditária
sobreviver em estado 'puro', o que seria necessário para que aquela hipótese tivesse uma base sólida.
É inegável existir uma possibilidade real de Jesus ter sido casado com Maria Madalena, ou pelo menos
ter tido algum tipo de relacionamento íntimo com ela (o que será discutido em detalhes mais tarde) e até
mesmo que ele tenha sobrevivido à crucificação. De fato, ao contrário do que comumente se pensa,
nenhuma dessas assertivas se baseia no trabalho de Baigent, Leigh e Lincoln, pois já vêm sendo
discutidas há muitos anos, bem antes da publicação de The Holy Blood and The Holy Grail.
Há, entretanto, uma outra questão relacionada aos pressupostos que estão por trás desses argumentos,
uma questão da qual Baigent, Leigh e Lincoln estão plenamente conscientes, embora tentem não chamar
muita atenção sobre isso. Para eles, os Merovíngios são importantes porque são os descendentes de
Jesus. Mas, se ele sobreviveu à crucificação, não poderia ser o redentor de nossos pecados, não teria
ressuscitado e, portanto, não poderia ser divino, nem era o filho de Deus. Então, por que,
perguntaríamos, seus descendentes seriam considerados tão importantes?
Um dos que, acredita-se, faz parte desse grupo de abençoados descendentes é ninguém mais, ninguém
menos, que o próprio Pierre Plantard de Saint-Clair.Apesar da inflamada linguagem utilizada por alguns
estudiosos ao comentarem tal hipótese, deve ser dito que ele mesmo nunca se declarou descendente de
Jesus, e nunca é demais enfatizar que não é a idéia cristã de Jesus ser Deus encarnado, e portanto seu
rebento ser de alguma maneira também divino, que dá ao caso da sucessão Merovíngia sua suposta
importância. A base de toda essa crença é que, como Jesus descendia de Davi e, portanto, do Rei
legítimo de Jerusalém, esse título automaticamente pertence, mesmo que teoricamente, à sua futura
família. A questão política, mais do que a divina, é que está embutida na conexão Merovíngia.
Baigent, Leigh e Lincoln, claramente, formularam sua teoria a partir das afirmações colocadas nos
dossiês secretos, mas em nossa opinião eles foram um tanto seletivos ao escolher as que citariam como
evidência. Por exemplo, os dossiês afirmam que os reis Merovíngios, de seu fundador Merovée até
Clovis (que se converteu ao cristianismo em 496), eram 'reis pagãos devotos de Diana'. Isso é bastante
difícil de reconciliar com a idéia de que eles eram descendentes de Jesus ou de uma tribo judia.
Um outro exemplo dessa curiosa seletividade por parte de Baigent, Leigh e Lincoln está relacionado ao
'documento Montgomery'. Este, de acordo com os autores, é uma narrativa encontrada nos arquivos
pessoais dos Montgomery, que lhes foi apresentada por um de seus membros. A data de sua origem é
incerta, mas a versão aqui referida origina-se no século XIX. Seu valor reside no fato de que, em
essência, endossa as teorias divulgadas em Tbe Holy Blood and Tbe Holy Grail, embora, é claro, isso
nada prove. Apenas fica estabelecido que a idéia de que Jesus fora casado com Maria Madalena já era
discutida há pelo menos um século antes do início da pesquisa dos três autores.
O documento Montgomery conta a história de Yeshua bem Joseph (Jesus, filho de José) que era casado
com Miriam (Maria) de Betânia (o personagem bíblico que muitas pessoas tomam como sendo Maria
Madalena). Como resultado direto de uma revolta contra os romanos, Miriam foi presa, sendo solta
apenas por estar grávida. Ela, então, fugiu da Palestina, chegando a Gaul (no que hoje é a França), onde
deu à luz uma menina.
Embora seja fácil ver o porquê do documento Montgomery ter sido pinçado por Baigent, Leigh e
Lincoln como apoio para sua hipótese, é estranho não terem valorizado mais certos aspectos da história.
Nessa narrativa, Miriam de Betânia é descrita como 'uma sacerdotisa do culto feminino', de forma
idêntica à devoção dos Merovíngios à deusa Diana; isso adiciona um distinto verniz pagão à história, o
que torna difícil reconciliá-la com a afirmação de que o interesse primário do Monastério está na
continuidade da descendência do Rei judeu Davi, da qual Jesus faz parte.
E é bastante interessante que o atual Monastério nem confirme, nem negue a hipótese colocada em The
Holy Blood and Tbe Holy Grail, o que faz com que, mais uma vez, as suspeitas recrudesçam. Será que o
Monastério de Sion está fazendo um jogo?
Uma coisa tornara-se bastante clara: a ambição que motiva o Monastério não está puramente relacionada
ao poder político, como afirmam Baigent, Leigh e Lincoln. Mais de uma vez os dossiês mencionam
pessoas - tanto entre os atuais Grão-Mestres quanto entre aqueles associados com o Monastério -, que
não são prioritariamente políticos, mas sim ocultistas. Por exemplo, Nicolas Flamel, Grão-Mestre de
1398 a 1418, era um mestre alquimista, Robert Fludd (1595-1637) era rosa-cruciano e, mais próximo de
nossa época, Charles Nodier (Grão-Mestre de 1801 a 1844) foi de grande influência para o renascimento
do ocultismo nos dias de hoje. Mesmo Sir Isaac Newton (Grão-Mestre, 1692-1727), bem mais
conhecido como cientista e matemático, era um devotado alquimista e hermetista, e certamente possuía
muitas cópias comentadas dos manifestos rosa-crucianos. E há, é claro, Leonardo da Vinci, um outro
gênio a quem nossos contemporâneos de modo algum compreendem, vendo sua inteligência aguçada
como fruto, apenas, de um pensamento materialista. De fato, como já vimos, suas obsessões tinham
origem em diversas outras fontes, e o tornavam um outro candidato ideal para a lista dos Grão-Mestres
do Monastério.
Causa surpresa que, ao mesmo tempo em que admitem o interesse no ocultismo de muitas dessas
pessoas, Baigent, Leigh e Lincoln pareçam não dar valor ao amplo significado de suas obsessões.
Afinal, em muitos casos, o ocultismo não era um passatempo ocasional, mas sim o foco principal de
suas vidas. E nossa própria experiência tem indicado que os indivíduos relacionados com o atual
Monastério também são ocultistas praticantes.
Assim, qual poderia ser o segredo capaz de arregimentar, por tanto tempo, tantas mentes brilhantes do
ocultismo, dado que é improvável que essa seja a implausível história Merovíngia? Tão persuasivo e
profundo quanto possa ser The Holy Blood and the Holy Grail, sua explicação dos objetivos e
movimentos do Monastério é, essencialmente, insatisfatória. Há com certeza alguma coisa acontecendo.
E é improvável que tenha apenas a ver com a legitimidade de uma monarquia francesa, dado o enorme
volume de tempo e energia que isso parece ter exigido ao longo dos séculos. E o que quer que seja, deve
ser algo tão ameaçador para o status quo a ponto de, mesmo após o iluminismo, ser mantido em
segredo, ser um assunto guardado por uma rede de iniciados, que se mantêm ocultos.
Logo no início de nossa pesquisa sobre Leonardo e o Sudário de Turim, deparamo-nos, novamente, com
o inevitável sentimento da existência de um segredo real que está sob a guarda, um tanto ciumenta, de
um grupo seleto de pessoas. Na medida em que nossas investigações prosseguiam, não havia meio de
nos livrarmos das suspeitas de que os temas que detectamos, na vida e na obra de Leonardo, eram
paralelos aos que tínhamos discernido no material divulgado pelo Monastério. E, certamente, isso valia
no mínimo uma segunda checagem sobre a possibilidade desses mesmos temas também estarem
interpostos na obra de Jean Cocteau.
Já descrevemos o mural do artista na igreja de Notre-Dame de France, em Londres. Mas qual é a
relevância desse imaginário notavelmente peculiar, para o trabalho muito anterior de Leonardo, e em
relação a um suposto movimento esotérico ou mesmo herético?
A conexão mais óbvia com a obra de Da Vinci é o fato de o artista ter pintado a si mesmo desviando o
olhar da cruz. Leonardo, como já mencionamos, retratou a si mesmo desse modo ao menos duas vezes,
em A Adoração dos Reis Magos e na Última Ceia. Levando em consideração a expressão do rosto na
obra de Cocteau, a qual, certamente, denuncia um profundo desconforto em relação à cena toda, talvez
não estejamos indo tão longe assim se vislumbrarmos uma hostilidade similar na violência com que
Leonardo voltou suas costas para a Sagrada Família na Adoração.
No mural de Cocteau, vemos o homem pregado na cruz apenas dos joelhos para baixo, o que torna
suspeita sua verdadeira identidade. Como vimos na Última Ceia, a curiosa falta generalizada de vinho
parece suscitar uma questão muito séria sobre a natureza do sacrifício de Jesus: aqui o artista vai ainda
mais longe, simplesmente não mostrando a figura de Jesus. Muito semelhante, também, é a utilização
de um "M" gigante. Na obra de Cocteau esse "M" liga as duas mulheres em prantos, presumivelmente, a
Virgem Maria e Maria Madalena. Mais uma vez, pode-se assumir que é a última que desvia o olhar da
figura de Jesus. Enquanto sua mãe olha para baixo, chorando, é a mulher mais jovem que lhe dá as
costas. Na Última Ceia o "M" liga Jesus a um efeminado São João, e esta 'dama M' também está se
afastando o quanto pode dele, enquanto, ao mesmo tempo, parece permanecer próxima.
O mural de Cocteau também contém um simbolismo que, a partir do momento em que tomamos
conhecimento das preocupações do Monastério de Sion, está completa e explicitamente conectado a
este. Por exemplo, há cinqüenta e oito pontos mostrados nos dados que estão sendo lançados pelos
soldados, e este é o número esotérico do Monastério.
A brilhante e enorme rosa vermelho-azulada aos pés da cruz é, claramente, uma alusão ao movimento
rosa-cruciano, o qual, como veremos, tem fortes ligações com o Monastério e certamente com
Leonardo.
Conforme já vimos, os membros do Monastério acreditam que Jesus não morreu na cruz e algumas de
suas facções afirmam que uma vítima substituta sofreu o que estava destinado a ele. Julgando pelo
imaginário estampado neste único mural, pode-se ficar tentado a pensar que este representa apenas a
visão particular de Cocteau. Por exemplo, não apenas não enxergamos o rosto da vítima, como há
também a inclusão de uma figura que não está usualmente associada à cena da crucificação. É o homem
que está na extrema direita, cujo único olho visível está desenhado de forma a assemelhar-se com um
peixe, certamente uma alusão ao código, utilizado nos primórdios do cristianismo, para designar 'Cristo'.
Então, quem é essa figura de olhar de peixe? Sob a ótica cristã do Monastério, a de que Cristo nunca
sofrera o martírio da cruz, não poderíamos chegar à conclusão de que essa figura extra não é senão o
próprio Jesus? Seria o suposto Messias realmente uma testemunha da tortura e morte de um substituto
seu? Se isso é verdade, podemos com certeza imaginar seu estado emocional.
Mais uma vez então, tanto no mural de Leonardo quanto no de Cocteau, nós vemos a Dama M, em
ambos os casos, com certeza, Maria Madalena.Agora, sabendo da crença do Monastério de que ela era
casada com Jesus, isso explicaria o porquê de fazer ela parte da Última Ceia, postada ao lado direito de
seu marido, e porque ela, e a sua 'outra metade', estão usando roupas iguais e invertidas, como imagens
no espelho.
Embora exista uma pequena e pouco conhecida tradição, da era medieval e do início da Renascença, de
retratar Madalena na Última Ceia, Leonardo fez saber que o personagem à direita de Jesus era São João.
Então, por que ele tramou tal ilusão? Seria, talvez, uma maneira sutil de dar ao seu imaginário um poder
subconsciente? Afinal de contas, o artista nos diz ser este um homem, mas nosso cérebro nos diz que é
uma mulher, e a confusão faz nosso subconsciente ponderar contínua e longamente sobre essa questão.
Tanto no mural de Cocteau quanto no de Leonardo, Madalena parece estar expressando, calmamente,
através de seu corpo, suas dúvidas sobre o suposto papel de Jesus. Ela, realmente, era assim tão próxima
a ele a ponto de saber a verdadeira história? Seria Madalena realmente a mulher de Jesus, e, portanto,
cúmplice na ocultação da verdade relacionada ao que aconteceu na crucificação? Será esse o motivo
dela se voltar para o outro lado?
O papel de Madalena é sutilmente, senão subliminarmente, enfatizado na Última Ceia, mas a maior
obsessão de Leonardo, parece estar com aquele personagem trágico do Novo Testamento, São João
Batista. Se ele realmente era membro do Monastério de Sion, e dada a enorme ênfase que este dá à
linhagem hereditária de Jesus, essa obsessão com o Batista se mostra um tanto confusa. Porém, será que
isso se coaduna com os interesses do Monastério de Sion?
Nosso misterioso informante, Giovanni, nos deixara com uma questão inquietante: 'por que os Grão-
Mestres são sempre chamados de João? 'Na época nós achamos que isso era algum tipo de insinuação
semi-velada ao seu próprio cognome, e inclusive mencionamos que ele mesmo não era nenhum soldado
raso. De fato, porém, ele estava chamando nossa atenção para um outro assunto muito mais
significativo.
Os Grão-Mestres do Monastério são conhecidos na organização como ‘Nautonnier' (Timoneiro) e
também recebem o nome de 'Jean' (João) ou, se forem mulheres, Jeanne (Joana). Leonardo, por
exemplo, aparece nas listas como Jean IX. Vale a pena notar, pois bastante peculiar para uma antiga
ordem cavalheiresca, que o Monastério sempre afirmou ser uma sociedade secreta com oportunidades
iguais para todos, e quatro de seus Grão-Mestres foram mulheres, (atualmente uma das seções francesas
do Monastério está sob controle de uma mulher). Entretanto, essa política é totalmente consistente com
a verdadeira natureza e objetivos do Monastério, de acordo com o modo como viemos a entendê-los.
As preocupações do Monastério são indicadas pelos títulos que eles utilizam em sua hierarquia
organizacional. De acordo com os estatutos, abaixo dos Nautonnier há um grau que consiste de três
iniciados, chamados de 'Prince Noachite de Notre Dame', e abaixo desses há um grau de nove membros
chamados de 'Croisé de Saint Jean' ou 'Cruzados de São João' (o último aparece apenas como
'Condestável' nas últimas versões dos estatutos).
Há ainda outros seis graus, mas os três primeiros, compreendendo os treze membros do alto escalão,
formam o corpo de direção. Coletivamente este é conhecido como Arch Kyria. Kyria é uma palavra
grega cortês para designar mulher, o equivalente na língua inglesa a 'lady' (senhora). Especificamente,
no mundo helênico dos primeiros séculos antes da era cristã, este era o epíteto para a deusa Ísis.
O primeiro Grão-Mestre da sociedade, deve ser dito, chamava-se realmente João, Jean de Gisors, um
nobre francês do século XII. Mas o enigma real está no curioso fato de que seu título no Monastério era
na verdade 'Jean II' . Segundo as próprias indagações dos autores de The Holy Blood and the Holy
Grail:

Uma questão maior, é claro, será: qual João? João, o Batista? João, o Evangelista, o 'Apóstolo
Amado' do Salmo IV? Ou João, o Divino, autor do Livro das Revelações? Parece-nos que não é
nenhum desses três...quem, então, era Jean I?

Um outro pensamento-conexão provocador relacionado a 'João' é mencionado no livro de 1982 Rennes-


le-Château; capitale secrete de l'histoire de France, de Jean-Pierre Deloux e Jacques Brétigny. Os
autores são conhecidos por estarem bastante envolvidos com Pierre Plantard de Saint-Clair. Estavam
presentes, por exemplo, entre os que receberam Baigent, Leigh e Lincoln no encontro destes com Pierre
Plantard nos anos 80. Plantard, com certeza, contribui bastante para aquele livro. Uma óbvia propaganda
do Monastério, o livro explica como a sociedade se formou. (Deloux e Brétigny também escreveram
artigos relacionados ao Monastério de Sion na revista L'Inexpliqué, a versão francesa para The
UnexPlained, que, de acordo com algumas pessoas, era financiada pelo Monastério).
A idéia principal era a de se formar um 'governo secreto', tendo Godofroi de Bouillon, um dos líderes da
Primeira Cruzada, como gênio inspirador. Na Terra Santa, Godofroi se deparou com uma organização
chamada Igreja de João e, então, 'formulou um grande projeto'. 'Colocou sua espada a serviço da Igreja
de João, essa Igreja esotérica e de iniciação que representava a Tradição, baseada na primazia do
Espírito'. Foi a partir desse grande projeto que se formaram o Monastério de Sion, a organização que
sempre chamou seus Grão-Mestres de 'João', e os Cavaleiros Templários. E como nos diz Pierre
Plantard de Saint-Clair através de Deloux e Brétigny:

Assim, no início do século XII, reunimos os significados temporal e espiritual, o que permitiu realizar o
sonho sublime de Godofroi de Bouillon: a Ordem do Templo seria a espada da Igreja de João e os porta-
estandartes da primeira dinastia, os braços obedientes ao espírito de Sion.

O resultado desse fervilhante 'joanismo' seria o 'renascimento espiritual' , que faria o 'cristianismo ser
virado de cabeça para baixo'. Apesar de sua importância óbvia para o Monastério, a ênfase em 'João'
permanecia totalmente obscura, e no início da investigação nós nem sabíamos qual João era tão
reverenciado, muito menos o porquê. Qual é, porém, a razão dessa obscuridade? Por que eles não nos
dizem a que João estão se referindo? E por que razão essa reverência (um tanto extrema), por qualquer
um desses santos João, seria uma ameaça aos alicerces do cristianismo?
É possível pelo menos dar um palpite em relação ao João que o Monastério tinha em mente, se tivermos
em vista a obsessão de Leonardo pelo Batista. No entanto, como vimos, o conceito que o Monastério faz
do papel de Jesus é bem pouco ortodoxo e, portanto, parece ilógico acreditar que isso esteja de acordo
com a reverência a um homem que, supostamente, deve sua importância apenas ao fato de ser o
antecessor de Jesus. Poderia ser que o Monastério, como Leonardo, reverenciasse João Batista como
sendo superior a Jesus?
É uma idéia perturbadora. Se há alguma razão para acreditar que o Batista fora superior a Jesus, então as
repercussões seriam de uma magnitude traumática inimaginável para a Igreja. Mesmo que a visão
"joanina" fosse baseada em um engano, não há dúvida dos efeitos que essa crença causaria se fosse mais
difundida. Seria quase a última heresia, e os dossiês secretos enfatizam repetidamente o caráter anti-
clerical dos descendentes Merovíngios, e seu positivo encorajamento a essa heresia. O Monastério é
astuto o bastante para achar que a heresia é algo muito conveniente para algumas de suas próprias
razões.
Percebemos que a suposta heresia Batista teria implicações atordoantes, e que, se penetrássemos mais a
fundo no Monastério, iríamos nos defrontar, mais cedo ou mais tarde, com a questão de João Batista,
embora de início não estivéssemos convencidos de que encontraríamos qualquer evidência que apoiasse
essa heresia.
Naquele momento, tudo que tínhamos como evidência em relação às crenças do Monastério sobre o
Batista era a manifesta obsessão de Leonardo para com ele, e o fato de que os Grão-Mestres eram todos
chamados de 'João'. Francamente, não tínhamos qualquer esperança verdadeira de encontrar algo mais
concreto do que isso, mas, com o passar do tempo, iríamos descobrir evidências muito mais sólidas de
que o Monastério era realmente parte de uma tradição joanina.
Com ou sem evidência a apoiá-la, essa heresia permanecera crível para várias gerações de associados do
Monastério. Era esse, ao menos em parte, o grande segredo que eles supostamente possuíam e
guardavam com tanta tenacidade?
A outra figura do Novo Testamento de imenso significado para o Monastério é, como já vimos, Maria
Madalena. Os autores de The Holy Blood and The Holy Grail explicaram que sua particular importância
está relacionada apenas ao (suposto) fato de que ela fora casada com Jesus e era mãe de seu filho. Mas
levando em conta a admiração nada incondicional do Monastério em relação a Jesus, essa explicação é
bastante frágil. Para a organização, Madalena parece ter alguma importância por si mesma, e Jesus por
si mesmo é quase irrelevante. Na história dos 'documentos Montgomery', por exemplo, seu papel está
confinado simplesmente a ser o pai, e ele não participa de modo algum do resto da narrativa. Pode-se até
dizer que, mesmo sem relacioná-la a Jesus, há algo de suma importância nessa mulher.
Mais tarde, durante nossas pesquisas, tentamos arranjar um encontro com Pierre Plantard Saint-Clair,
para falar sobre algumas questões relacionadas ao interesse do Monastério por Maria Madalena.
Recebemos uma resposta do secretário de Plantard, Gino Sandri, um italiano que vive em Paris, que,
embora curta e concisa, exalava a célebre manobra de desvio de atenção do Monastério. No
comunicado, Sandri disse que talvez pudesse nos ajudar, mas 'quem sabe vocês já não possuam a
informação de que necessitam?'. Essa era uma indicação clara de que ele sabia alguma coisa sobre nós,
porém, não levamos isso muito a sério. Ele parecia querer afirmar que já tínhamos toda a informação de
que precisávamos e que dependia de nós torná-la compreensível.A carta de Sandri portava ainda uma
outra tentativa de nos desviar: embora fosse postada em 28 de julho, a carta dentro do envelope fora
datada de 24 de junho, dia de São João Batista.
Para um leigo, qualquer conexão particularmente esotérica entre Maria Madalena e João Batista é um
assunto fantástico, pois os Evangelhos conhecidos não registram sequer que eles tenham se encontrado.
Há aqui, aparentemente, mais um antigo segredo que envolve e reverencia a ambos, de um modo bem
claro. O que havia com esses personagens do século I que pudesse assegurar uma tradição, 'talvez
herética', tão duradoura? O que poderiam representar que fosse capaz de causar tanta preocupação à
Igreja?
Assim sendo, pode-se imaginar como era difícil saber por onde começar. No entanto, por onde quer que
começássemos a nos aprofundar na história de Madalena, uma região muito mais próxima de nossos
lares do que Israel se elevava em importância. O Monastério deu ênfase em particular à lenda que
contava que Madalena fora levada para o sul da França, e, portanto, era para onde teríamos que ir, ao
menos a fim de descobrir por nós mesmos se essa história era meramente uma fábula medieval criada
visando lucros. Mas havia, desde o começo, algo especialmente atraente relacionado à conexão desse
enigmático personagem do Novo Testamento com essa região, algo que estava além de considerações
mercenárias. Pusemo-nos a campo para investigar o segredo de Madalena em sua própria terra natal.

CAPÍTULO III

No Rastro de Maria Madalena


Sua beleza é nobre como a das estátuas de deusas gregas, muito além do que hoje consideramos ser
bonita. Vigorosa, cabelos longos repartidos ao meio, ela nos passa a imagem de austeridade e
integridade de uma diretora de escola. Pouco aqui faz lembrar a libertina e voluptuosa mulher das
lendas. Pois essa, conforme nos informam, é a cabeça de Maria Madalena.
O crânio, normalmente em exposição na basílica, em toda a sua chocante e pavorosa glória, está agora
encapsulado, decentemente, em uma máscara de ouro, exibida diante da multidão da cidade de São
Maximiano, na Provença. O evento anual acontece no domingo mais próximo do dia de Madalena, 22
de julho. Em 1995, ano de nossa visita, a comemoração ocorreu em 23 de julho, sob um sol
esplendoroso e causticante.
Já eram quase quatro horas da tarde, hora em que finalmente terminou o longo almoço francês, quando
os moradores da cidade trouxeram a relíquia para fora da basílica, sobre uma liteira suspeitamente
trêmula. Centenas de pessoas se uniram à procissão, talvez apenas porque já estavam por ali e todos
adoram uma parada, mas parecia haver muitos peregrinos genuinamente fervorosos dentre a multidão,
olhos alegremente fixos na curiosa cabeça que estava sendo conduzida no meio deles. Entretanto,
tivemos que lembrar a nós mesmos que sempre existem peregrinos, sempre existem crentes fervorosos,
em qualquer lugar ou em qualquer tipo de coisa, e que a crença em si mesma não é uma medida de
autenticidade histórica. Contudo, vindo, como nós, de uma cultura na qual Madalena relativamente
pouco representa, o enorme poder desse festival nos fez refletir. Estamos, com certeza, na casa de Maria
Madalena.
Há também uma certa ironia em relação à nossa presença em São Maximiano. O teste de carbono 14, no
Sudário de Turim, realizado em 1988, confirmando sua falsidade, e que por sua vez provocou nosso
interesse no assunto, havia utilizado, como amostra de controle, material retirado de um manto
proveniente do século XIII, pertencente a 'São' Luís IX, e que estava guardado na basílica de St.
Maximim.
Entretanto, a fim de nos concentrarmos apenas nos objetivos da atual investigação, todos os
pensamentos relacionados ao Sudário de Turim foram postos de lado. Estávamos lá, no sul da França,
para descobrir a verdade sobre Maria Madalena, a mulher que se acreditava ser o núcleo de mistérios
muito antigos, e cujo poder se estendia à cultura atual, de um modo que ainda não havíamos
compreendido inteiramente. Parados ali, naquele calor infernal, perdidos em pensamentos
contraditórios, assistíamos à procissão anual da suposta cabeça de Maria Madalena. Para aqueles que,
como nós, cresceram na Inglaterra protestante, festivais católicos e todo aquele ritual criado em torno de
uma relíquia, só podem mesmo ser fonte de um forte choque cultural. Coisas como essas podem se
afigurar como eventos extravagantes, de mau gosto, repulsivos até.
Contudo, o que nos chamava a atenção não era a apresentação ridícula de uma superstição, mas a
devoção e o orgulho do povo local, cujo entusiasmo, por essa santa em particular, não poderia ser
definido como exatamente solene. Talvez aqui ainda atue o mundo 'local', pois a bandeira que vemos
balançar ao vento é a da Provença, e não a da França. E Madalena é tida, realmente, com uma santa
local, mesmo que tenha chegado a essas paragens já quase no final de sua vida. Maria Madalena,
acredita-se, veio da Palestina através do mar e se fixou na Provença, onde morreu. Seu poder é tão
grande e duradouro, que, nessa região, atualmente, ela não é apenas reverenciada, mas sim idolatrada e
com uma rara paixão.
Há, é claro, uma extraordinária, até mesmo fanática, devoção a ela na Provença, e a lenda relacionada à
sua morte persiste na região: para muitos, é um fato consumado. Contudo, essa devoção não é apenas
mais um exemplo de uma piedosa tradição católica que se perpetua com o passar do tempo. Fomos
invadidos por um sentimento penetrante de que algo muito mais significativo existia sob a superfície. E
foi exatamente isso que emergiu, um veio subterrâneo pleno de significados, que estávamos decididos a
desvendar.
Primeiro, como pode ser que o corpo de uma judia do século I, vinda da Palestina, viesse descansar
eternamente no sul da França? O que há para ser desvendado sobre essa mulher, essa santa em
particular, que provoca, tanto tempo após sua morte, uma paixão e uma devoção tão intensas? E por que,
se realmente for verdade, o Monastério de Sion dedica a ela uma veneração tão incomum?
Mesmo antes de realizarmos nossa primeira viagem à França, especialmente para pesquisar os locais
tradicionalmente associados ao culto de Madalena, passamos muito tempo refletindo sobre seu passado.
Precisávamos saber como ela era vista historicamente em nossa cultura, e quão forte seu impacto
continuaria a ser. Pois, em contraste com a relativa indiferença com que ela é recebida pela cultura
protestante da Inglaterra moderna, para muitos católicos europeus de sangue quente ela é objeto de uma
devoção ardorosa e passional. Para esses, após a Virgem Maria, ela é a mulher mais importante.
Pergunte à maioria das pessoas de boa cultura quem foi e o que representou Maria Madalena, e a
resposta será muito interessante. Quase todo mundo responderá que ela foi uma prostituta, mas após
dizerem isso, dependendo do ponto de vista da pessoa envolvida, com freqüência haverá algum
comentário sobre a pouco definida, porém implícita, relação entre ela e Jesus. Essa pressuposição
cultural, não importa o quão confusa possa parecer, encontrou expressão na canção de Tim Rice/Andrew
Lloyd 'I Don't Know How to Love Him' (Eu não sei como devo amá-lo) do musical Jesus Cristo
Superstar (1970), em que Madalena retoma sua auto-estima através das mãos de seu amado e, no papel
da mulher que consola Jesus, é retratada como 'a prostituta de bom coração', tão adorada pelo teatro
britânico. Quando o musical foi apresentado pela primeira vez, e mais tarde transformado em filme, logo
causou um enorme rebuliço no mundo cristão, até mesmo entre os britânicos, bastante conhecidos por
serem pouco emotivos. Assim se deu, provavelmente, em razão do sentimento de ultraje decorrente da
figura de Jesus ter sido explorada pelo showbiz, e sua história ter se transformado em uma ópera-rock!
Uma outra versão de Madalena apareceu no filme Vida de Brian (1970), do grupo de comediantes
ingleses Monty Python, embora não tenha sido ela, Madalena, o motivo para as manifestações de ultraje
desencadeadas por cristãos ao redor do mundo. Caracterizando o personagem de Brian como sendo o
próprio Jesus, de um modo levemente disfarçado, essa estranha, inteligente e perturbadora comédia foi,
ampla e abertamente, acusada de ser uma total e completa blasfêmia. Colocando de lado toda a
impertinência, o filme nunca pretendeu retratar Jesus, sendo, na verdade, um comentário satírico aos
cultos atuais relacionados ao Messias. Em nossa opinião, entretanto, seja por acidente ou
deliberadamente, o filme incorpora algumas profundas percepções e alguns detalhes curiosos muito bem
pesquisados. A namorada de Brian, surrealmente apresentada como sendo do País de Gales, era o
verdadeiro poder por trás dele e de seu movimento: Judith, cuja retórica ferina fez dele um homem,
embora terminasse por fazê-lo também um mártir.
Os cristãos fizeram piquetes em frente aos cinemas, em diversos países, quando foi apresentado o filme
de Martin Scorsese, A Última Tentação de Cristo (1988). Embora Jesus fosse retratado de uma forma
um tanto simplória, não parece ter sido essa a razão do filme ter provocado tanto horror. Essa reação
ocorreu muito mais pela explícita descrição de sexo entre Maria Madalena e Jesus, mesmo que essa
tenha sido uma seqüência que representava uma fantasia. Por razões que analisaremos depois, todo esse
conceito é curiosamente repugnante para a maioria dos cristãos, provavelmente porque isso os leva a
questionar alguns pontos fundamentais acerca da divindade de Jesus. Para eles, a noção de sexualidade
ativa de Jesus, mesmo dentro do contexto de um casamento, é automaticamente uma blasfêmia:
sugestões nesse sentido implicam em que ele pode não ter sido o filho de Deus. Para nós, muito mais
significativo em A Última Tentação de Cristo, era a óbvia e extensa fascinação de Scorsese por
Madalena e pela idéia de sua íntima relação com Jesus (o diretor, aliás, é cristão).
Entretanto, não foi a possível permissividade moderna o agente que transformou Madalena em algo
próximo a um ícone. Ao longo da história, ela sempre, de alguma forma, incorporou a atitude
contemporânea da mulher de um modo que não é permitido à outra figura feminina importante do
Evangelho, a assexuada e inacessível Virgem Maria. Na época vitoriana, por exemplo, Madalena era
uma boa desculpa para retratar arrependidas prostitutas enlevadas, porém, semi-nuas; ao mesmo tempo
santas e pecadoras, conhecidas e desconhecidas. Era moda nos bordéis da época que as 'internas'
pagassem suas penitências, embora as regras dessas 'encenações' pouco tenham a ver com a história de
Madalena, conforme é contada nos Evangelhos. Nos dias pós-feministas de hoje, o que se enfatiza é sua
relação com Jesus.
Pode ser que Madalena continue a manter o seu papel como referencial para os costumes sexuais
seculares contemporâneos, mas a imagem que fica através dos tempos também reflete a atitude da Igreja
em relação às mulheres e à sua sexualidade. Somente como uma prostituta arrependida é que ela é
admitida na congregação dos santos e a disseminação de sua lenda decorre da sua penitente e
inconfortável vida solitária. Sua santidade se apóia na auto-abnegação.
Nas duas últimas décadas, essa Maria se tornou uma referência para se observar a maneira como a Igreja
Cristã tem lidado com seu rebanho feminino de modo geral e, em particular, na controvérsia criada
quando a Igreja Anglicana ordenou as primeiras mulheres padres. O sermão lido, quando as primeiras
mulheres foram ordenadas, em 1994, não por acaso, foi a história do Novo Testamento contando como o
ressurrecto Jesus encontrou-se com Madalena, no jardim. Naturalmente, sendo a única mulher
significativa na história de Jesus, além de sua mãe, ela é colocada por muitas mulheres ativistas, dentro
da Igreja moderna, como um símbolo poderoso em defesa de seus direitos. Pois o poder permanente de
Maria Madalena não é imaginário: sempre existiu e exerceu uma profunda atração ao longo dos séculos,
como Susan Haskins deixou claro no seu recente estudo Mary Magdalen (1993).
À primeira vista, o grande poder de atração de Madalena pode parecer enigmático, especialmente
porque ela, praticamente,não é mencionada no Novo Testamento. Somos levados a pensar que, como no
caso de Robin Hood, a extrema escassez de informação proporciona uma tentação incontrolável em
inventar material mítico, a fim de preencher as lacunas. Contudo, se alguém criou uma fantasia chamada
Maria Madalena, esse alguém foi a própria Igreja. A imagem dela como uma prostituta arrependida nada
tem a ver com a história contada em Mateus, Marcos, Lucas e João: a personagem descrita no Novo
Testamento é completamente diferente daquela construída pela Igreja.
Os Evangelhos são os únicos textos referentes a Maria Madalena com os quais a maioria das pessoas
está familiarizada; pois então, vamos a eles. Até recentemente, sua personagem tem sido lembrada, pela
maioria dos cristãos, como sendo a de uma figura marginal na história de Jesus e de seus discípulos.
Mas, nos últimos vinte anos, tem havido uma clara mudança na percepção dos estudiosos em relação a
ela. Seu papel tem sido considerado bem mais importante, e é sob a ótica dessas considerações que
baseamos nossa própria hipótese.
Além da Virgem Maria, Madalena é a única mulher que tem seu nome mencionado nos quatro
Evangelhos. Ela aparece, pela primeira vez, durante a pregação de Jesus na Galiléia, como uma das
mulheres que o seguiam, e que 'lhe assistiam de suas posses'. Ela foi aquela que teve 'sete demônios'
arrancados de si. A tradição também a identifica com outras duas mulheres do Novo Testamento: Maria
de Betânia, irmã de Marta e Lázaro, e uma mulher, cujo nome não foi revelado, que ungia Jesus com
nardo indiano tirado de uma jarra de alabastro. Essa ligação será explorada mais tarde, mas, por agora,
concentremo-nos na figura inequivocamente identificada como Maria Madalena.
Seu papel torna-se completamente outro, de significado profundo e duradouro, quando ela é retratada
como tendo estado presente à crucificação, e, mais especialmente, quando se torna a primeira
testemunha da Ressurreição. Embora os quatro relatos dos Evangelhos sobre a descoberta da tumba
vazia sejam notoriamente diferentes, estão, contudo, em concordância sobre a identidade da primeira
testemunha do levantar-se de Jesus. Essa testemunha era, sem sombra de dúvida, Maria Madalena. Ela
foi não apenas a primeira testemunha feminina, mas a primeira pessoa a vê-lo após se levantar da tumba,
um fato que tem sido ofuscado pelos muitos que preferem afirmar que apenas os homens que seguiam
Jesus eram seus verdadeiros apóstolos.
A Igreja, de fato, baseou toda a sua autoridade no conceito do apostolado. Pedro, sendo o 'primeiro
Apóstolo', é, portanto, o fio condutor através do qual o próprio poder de Jesus foi transmitido para a
posteridade. Sua autoridade, que embora muitos acreditem seja decorrente da afirmação, em forma de
trocadilho, 'sobre esta pedra edificarei minha Igreja', oficialmente se apóia no fato de ter sido Pedro o
primeiro discípulo de Jesus a vê-lo após sua ressurreição. O Novo Testamento, porém, torna claras as
contradições existentes nos ensinamentos oficiais da Igreja sobre esse assunto.
Madalena sofreu, claramente, apenas nesse relato, uma grande injustiça, que teve enormes implicações.
Porém, há mais. Ela também foi a primeira discípula a receber uma missão apostólica diretamente de
Jesus, ao ser instruída a levar a notícia de sua ressurreição aos outros discípulos. Curiosamente, a Igreja,
em seus primórdios, reconhecia o verdadeiro lugar de Madalena na hierarquia e deu a ela o título de
Apostola Apostolorum (Apóstola dos Apóstolos), ou de modo mais explícito 'A Primeira Apóstola'.
A razão de Jesus ter escolhido mostrar-se pela primeira vez a uma mulher, em sua forma ressurrecta,
sempre foi uma pedra no sapato dos teólogos. Talvez a explicação mais original tenha sido dada na era
medieval, quando se sugeriu, seriamente, que a maneira mais rápida de difundir essa notícia seria
passando-a para uma mulher!
Hoje, de modo geral, os estudiosos admitem, muito mais do que a Igreja se permite, o papel ativo que as
mulheres desempenharam no movimento de Jesus, tanto durante sua vida quanto após sua morte,
quando sua palavra se espalhou entre os gentios. Ironicamente, talvez nem mesmo agora pudéssemos
conhecer o verdadeiro lugar das mulheres, se não fosse a controvérsia criada com a campanha que
moveram pela própria ordenação. O papel das mulheres só foi minimizado quando a Igreja se tornou
uma instituição formal, sob a forte influência de São Paulo. E o processo foi também retroativo. Em
outras palavras, embora as mulheres não fossem personagens menores nos primórdios do drama cristão,
Paulo e seu pessoal de confiança se asseguraram de que elas seriam relegadas para as notas de rodapé da
história.
É verdade que a impressão dada nos Evangelhos é a de que os discípulos de Jesus eram todos homens.
Uma única referência no Evangelho de Lucas menciona mulheres que viajavam com Jesus. Causa certa
confusão quando de repente, do nada, surgem mulheres para tomar conta do palco central ao redor da
cruz. A julgar pela arbitrária marginalização das mulheres nos relatos, é um tanto difícil entender o
porquê delas passarem, abruptamente, a ser o centro das atenções. Seria, talvez, porque todos os
discípulos do sexo masculino abandonaram Jesus? Teria sido permitido às mulheres aparecer nesse
momento crucial da história, apenas porque elas eram as únicas pessoas de seu círculo que lhe
permaneceram fiéis? Os relatos dos Evangelhos talvez precisassem reescrever o papel das mulheres
durante a crucificação, simplesmente porque elas foram suas únicas testemunhas, e é no testemunho
delas, apenas, que a história se baseia. No entanto, nas cortes jurídicas judias daquela época, o
testemunho das mulheres não era admitido, e, portanto, não era considerado relevante para o que quer
que fosse. Dentre as muitas implicações relacionadas a essa questão, está a possibilidade de estar
baseada em fatos a versão de que Maria Madalena teria sido a primeira pessoa a encontrar o ressurrecto
Jesus. Uma história baseada apenas na palavra de uma mulher teria poucas possibilidades de frutificar.
Essas mulheres mereciam ser aplaudidas, pois, ao permanecerem leais a um criminoso convicto,
tornaram-se exemplos excepcionais de lealdade e coragem. Uma delas em especial: Maria Madalena.
Sua importância é inferida do fato de que, quase sem exceção, seu nome aparece em primeiro lugar em
qualquer lista que se faça sobre as mulheres que seguiam Jesus. Até alguns católicos de hoje sugerem
que assim deva ser, pois ela era a líder das mulheres discípulas. Naquela sociedade rigidamente formal e
hierarquizada, essa honra não era pequena nem acidental: Madalena vinha em primeiro lugar, mesmo
quando a lista era feita por aqueles que achavam que as mulheres não mereciam ter um lugar no
movimento de Jesus e, especialmente, não tinham qualquer simpatia por aquela mulher em particular.
Ela, como vimos, 'lhes assistia de suas posses', a Jesus e aos discípulos homens. Essa passagem sempre
foi explicada através da idéia de ser ela uma espécie de devotada serva, sempre prostrada ante os
homens, muito mais importantes. Os fatos, porém, são completamente outros: não há dúvida de que as
palavras utilizadas no Evangelho realmente significavam 'sustentar' Jesus e os outros 'com seus
recursos'. Na opinião de muitos estudiosos, Maria Madalena, talvez como as outras mulheres do
movimento de Jesus, não era uma mulher pobre e dependente, mas uma mulher de vontade própria que
mantinha Jesus e os outros homens. Embora o relato bíblico também utilizasse essas palavras em relação
a outras mulheres que o apoiavam, foi Madalena, certamente, a primeira de todas.
Maria Madalena é definitiva e deliberadamente colocada em separado em relação às outras mulheres.
Todas as outras mencionadas pelo nome no Evangelho canônico, estão definidas por sua relação com
um homem, como 'mulher de...' ou 'mãe de...'Apenas Madalena tem o que parece ser um nome de
verdade. O porquê disso será discutido depois.
Entretanto, essa personagem poderosa e importante permanece curiosamente enigmática. Após a
atenção um tanto ambígua que os Evangelhos lhe deram, enquanto parece estar sozinha, ela
simplesmente não é mais mencionada nem nos Atos dos Apóstolos, nem nas Epístolas de Paulo (mesmo
em seu relato sobre a descoberta da tumba vazia), nem nas Epístolas de Pedro. Esse é um daqueles
mistérios que pareceria destinado a ser muito discutido, porém, nunca solucionado, até o momento em
que voltamos nossa atenção para os textos conhecidos como Evangelhos Gnósticos, onde o quadro se
torna claro de um modo até mesmo surpreendente. Esses documentos, dos quais existem cerca de
quinze, foram descobertos em 1945, em Nag Hammadi, no Egito, e são uma coletânea dos primeiros
textos Gnósticos Cristãos. Os originais de alguns deles são, comprovadamente, quase que da mesma
época dos Evangelhos canônicos. Esses textos foram condenados como 'heréticos' pela igreja católica,
sendo, então, sistematicamente caçados e destruídos, como se contivessem algum grande segredo
potencialmente perigoso para o sistema sócio-cultural que então começava a se desenvolver.
A maioria desses textos proibidos afirmava a preeminência de Maria Madalena: um deles chama-se
inclusive O Evangelho de Maria. A Maria desse evangelho não é a Virgem, mas sim Madalena.
Talvez não seja coincidência que os quatro evangelhos do Novo Testamento, efetivamente, a
marginalizem, enquanto os textos 'heréticos' enfatizam sua importância. Seria o Novo Testamento, na
verdade, uma forma de propaganda em favor daqueles que eram contrários a Madalena?
Embora discutamos os Evangelhos Gnósticos detalhadamente, no último capítulo, os pontos que se
seguirão são de imediata importância. A história do Novo Testamento indica, com certa relutância, que
Madalena teve uma participação maior no movimento de Jesus. Os Evangelhos Gnósticos, porém, o
afirmam abertamente e confirmam sua preeminência. E mais, esse status superior não se refere apenas à
sua posição entre as mulheres; ela é literalmente a Apóstola dos Apóstolos e, portanto, reconhecida
como a segunda pessoa mais importante, depois do próprio Jesus, colocada acima de todos os seus
discípulos, tanto homens quanto mulheres. Ela, parece, era a única pessoa a fazer a ponte entre Jesus e
todos os seus outros discípulos e era quem interpretava as palavras deste para o beneficio de todos.
Nesses textos, Pedro não foi o escolhido por Jesus como o segundo em comando, mas sim Maria
Madalena.
Foi ela quem, de acordo com o Evangelho Gnóstico de Maria, reagrupou os discípulos desanimados
após a crucificação e lhes injetou algum ânimo quando já estavam a ponto de desistir e voltar para casa,
após a perda aparente de seu carismático líder. Ela esclareceu todas as dúvidas, de forma apaixonada e
inteligente, e conseguiu inspirá-los a ponto de se tornarem apóstolos verdadeiramente devotados. Tal
feito não deve ter sido fácil, pois ela teve que superar, presume-se, o sexismo prevalecente na cultura de
sua época, além de ser forçada a se bater contra um poderoso antagonista. Seu inimigo era Pedra, o
Grande Pescador de Homens da lenda, o mártir e fundador da Igreja Católica Apostólica Romana. Ele,
afirmam repetidamente os Evangelhos Gnósticos, a odiava e a temia, embora, enquanto seu Mestre
estivesse vivo, pudesse apenas protestar, inutilmente, contra o peso de sua influência. Muitos dos textos
relatam acaloradas discussões entre Maria e Pedro, com este se perguntando como Jesus poderia,
aparentemente, ter preferência pela companhia daquela mulher. Como diz Maria Madalena em outro
Evangelho Gnóstico, o Pistis Sophia: 'Pedro me faz hesitar: tenho medo dele, pois ele odeia a espécie
feminina'. E nos Evangelhos Gnósticos de Tomás, encontramos Pedro dizendo: 'deixem que Maria se vá,
pois as mulheres sequer merecem viver'.
Há ainda outras coisas relacionadas aos textos gnósticos que os tornam explosivos para a Igreja. O
retrato do relacionamento entre Maria e Jesus não é exatamente o de um professor e sua pupila, ou
mesmo o do guru e sua estudante favorita. Eles são retratados, muitas vezes quase graficamente, em
termos bem mais íntimos. Veja, por exemplo, o Evangelho Gnóstico de Felipe:

Cristo, porém, amou-a mais do que a todos os seus discípulos e, com freqüência, a beijava na
boca. Os outros discípulos se ofendiam e deixavam clara sua desaprovação. Eles disseram a Jesus, 'por
que você a ama mais do que a todos nós?' O Salvador respondeu dizendo-lhes 'por que não amo vocês
como a amo?

No mesmo Evangelho Gnóstico, lemos uma frase aparentemente inócua; 'havia três que sempre
andavam junto ao Senhor: sua mãe Maria, sua irmã e Madalena, que é chamada de sua companheira.
Sua irmã, sua mãe e sua companheira todas se chamavam Maria. E a companheira do Salvador é Maria
Madalena'.
Embora atualmente a palavra 'companheiro' sugira coleguismo, amizade, em um sentido puramente
platônico, a palavra original do grego significava 'consorte' ou parceira sexual... Os fundamentalistas
acreditam que o motivo pelo qual somente os Evangelhos Canônicos foram incluídos no Novo
Testamento, é que eles e apenas eles contêm a verdadeira palavra de Deus. No entanto, não há porque
admitir que os Evangelhos Gnósticos não sejam tão válidos quanto os de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Se Madalena fosse realmente amante ou mulher de Jesus, então sua posição enigmática no Novo
Testamento estaria explicada. Ela parece ser importante, mas os motivos de sua posição elevada nunca
ficam claros; talvez os escritores da época esperassem que seus leitores já tivessem um conhecimento
prévio do relacionamento entre ela e Jesus. Afinal, e isso tem sido colocado, rabinos se casam: um
pregador celibatário teria causado muito mais comentários e, com certeza, haveria nos Evangelhos uma
observação a esse respeito. Se Jesus fosse celibatário e não tivesse filhos, em uma cultura dinástica
como aquela, isso não só teria causado um alvoroço, como faria parte, de um modo mais claro e
difundido, do relato de seus ensinamentos. De fato, o celibato era, e é considerado tão horrível na
tradição judaica como é hoje ser considerado um pecador. Jesus teria se tornado notório por pregar o
celibato: esta, porém, não é uma acusação levantada contra ele, nem mesmo por seus inimigos mais
implacáveis. A vida monástica foi um apêndice adicionado ao cristianismo muito tempo depois - até
mesmo o aparentemente misógino Paulo admitia que 'é melhor casar do que abrasar.'
A própria idéia de Jesus ser sexuado é tão desagradável para a maioria dos cristãos modernos que a
seqüência do filme de Martin Scorsese que mostra Jesus e Madalena na cama provocou um grito em
uníssono de horror. Cristãos de todas as partes acusaram tal cena de ser sensacionalista, sacrílega e
blasfema. Mas a razão verdadeira para esse ultraje é, nada mais nada menos, o atavismo subjacente
relacionado ao medo e ao ódio à mulher. Tradicionalmente, elas são vistas como sujas e sua
proximidade física polui corpo, mente e espírito dos naturalmente bons e puros homens; com certeza o
filho de Deus nunca poderia colocar-se na posição de perigo de um mero mortal. O horror sentido
perante a idéia de Jesus, entre todos os homens, ser o parceiro sexual de qualquer mulher, multiplica-se
milhares de vezes quando sua amante atende pelo nome de Maria Madalena, uma conhecida prostituta.
Iremos discutir, mais adiante, essas questões de um modo mais completo, mas seria interessante adiantar
que o fato de ser ela, ou ter sido, uma mulher das ruas, deve permanecer em aberto. Existem evidências
que tanto afirmam como negam sua antiga profissão, mas o aspecto mais significativo sobre esse
assunto é que a Igreja escolheu retratá-la como uma prostituta, pelo menos uma prostituta arrependida.
Na melhor das hipóteses, essa interpretação bastante seletiva sobre seu caráter também é conveniente
para transmitir duas mensagens principais: a de que Madalena, em particular, e todas as mulheres, no
geral, são sujas e espiritualmente inferiores aos homens, e a idéia de que a redenção só é possível através
da Igreja.
Se é inimaginável que Jesus e essa (suposta) ex-prostituta fossem amantes, então para muitos cristãos é
quase igualmente ultrajante sugerir que eles eram marido e mulher. Como vimos, os autores de The
Holy Blood and The Holy Grail argumentam que, se Madalena era a mulher de Jesus, então estaria
explicada a razão de ela ter sido tão importante para o Monastério de Sion e à idéia de uma linhagem
sagrada. Não foi essa, porém, a primeira vez em que isso foi colocado no papel.
Em 1931, D.H. Lawrence publicou o romance The Man who Died, no qual Jesus sobrevive à cruz e
encontra a verdadeira redenção através do ato sexual com Maria Madalena, que é claramente
identificada com a sacerdotisa Ísis. Lawrence também associou Jesus com a morte e renascimento do
deus Osíris, consorte daquela deusa. A história foi originalmente intitulada como The Escaped Cock, (O
Pênis Fujão), e como Susan Haskins escreve:

O pênis é... associado com a idéia de 'ascensão' do corpo (o personagem-Cristo se utiliza do


trocadilho ao exclamar 'Estou de pé!', quando finalmente tem uma ereção...)

(Parece estranho que tanta atenção tenha sido dada a O amante de Lady Chatterley, enquanto esse outro
romance, muito mais controverso, tenha escapado da censura).
Embora haja bons argumentos para afirmar que Jesus e Madalena fossem casados e, implicitamente,
tivessem filhos, isso por si só não parece ser uma razão suficientemente boa para o Monastério investir
tanta energia na devoção à Madalena, porque, como vimos no capítulo anterior, existem boas razões
para se desconfiar da idéia de que a dinastia Merovíngia seja descendente desses dois. O fascínio de
Madalena reside claramente em alguma outra coisa, algo indefinível mas não impossível de perceber.
Algumas pistas desse algo indefinível podem ser encontradas no poder que sua imagem tem em nossa
cultura, sabendo-se que foi na França que, supostamente, ela viveu os últimos dias de sua vida.
O texto mais famoso sobre Madalena na França é Golden Legend, de Jacobus Voragine (1250). Nele, de
Voragine, o Arquebispo Dominicano de Gênova, se refere a ela tanto como Iluminata quanto como
Illuminatrix - a Iluminada e a Iluminadora - o que é particularmente interessante porque esses papéis são
designados a ela em todos os textos Gnósticos 'proibidos'.
Ela é retratada como sendo iluminada e iluminadora, iniciada e iniciadora; sem nenhuma sugestão de
que era espiritualmente inferior devido ao fato de ser mulher, muito pelo contrário.
Como acontece em todas as lendas, há muitas variações sobre o tema central, o qual, contudo,
permanece admiravelmente constante. A história principal é a seguinte: logo após a crucificação, Maria
Madalena, juntamente com seus parentes, Marta e Lázaro, e vários outros, cujas identidades variam
dependendo da versão da história, viajaram pelo mar até a costa do que hoje é a Provença. Entre o
variável corpo de extras está São Maximiano, que, além de ser o lendário primeiro bispo da Provença,
teria sido um dos setenta e dois discípulos de Jesus; Maria Jacobina e Maria Salomé, supostamente tias
de Jesus; uma serva negra chamada Sara; e José de Arimatéia, um amigo rico de Jesus que geralmente
está vinculado à história de Glastonbury. O suposto motivo dessa longa, confusa e inconfortável viagem
também depende da versão da história que se lê. Uma delas diz que esse grupo escapou da perseguição
da Igreja aos judeus, e outra diz que eles foram deliberadamente colocados à deriva por seus inimigos,
em um bote rudimentar e sem remos. Portanto, foi literalmente um milagre terem alcançado terra firme.
O retrato histórico medieval do sul da França, na época da chegada de Madalena, mostra uma região
selvagem e habitada por uns poucos pagãos incultos. Na verdade, Provença fazia parte do grande
Império Romano, sendo uma região bastante civilizada, com crescentes comunidades romanas, gregas e
mesmo judaicas; a família de Herodes, inclusive, era proprietária de terras no sul da França. E longe de
ser uma jornada extremamente árdua e fora de mão, era uma rota comum para navios mercantes, além
de ser uma viagem tão difícil quanto, digamos, de Tiro ou Sídon até Roma. Se essas pessoas vieram
parar na Provença, é bem possível que o tenham feito voluntariamente, não tendo sido forçadas a isso.
As lendas concordam que eles desembarcaram na cidade atualmente conhecida como Saintes-Maries-
de-la-Mer, na Camargue. Uma vez lá, o grupo se dividiu e seguiu caminhos variados, com o intuito de
difundir as palavras do Evangelho.A história diz que Madalena pregou por toda a região, convertendo o
gentio, antes de se tornar reclusa e habitar uma caverna em Sainte-Baume.Algumas histórias dizem que
ela viveu lá por implausíveis, mas bíblicos, quarenta anos, usando todo esse tempo para se arrepender de
seus pecados e meditar sobre a figura de Jesus. Para colocar um pouco de tempero na história, acredita-
se que ela viveu todos esses anos nua em pelo, com exceção do cabelo, tão abundante que efetivamente
a vestia, algo que lembra remotamente as peles de animais que João Batista usava. No final de sua vida,
dizem, foi carregada por anjos à presença de São Maximiano (que era, então, o primeiro bispo da
Provença), que lhe deu os últimos sacramentos, logo antes de sua morte. Seu corpo foi queimado na
cidade que a homenageou com seu próprio nome.
Com certeza um belo conto, mas haverá nele algum fundo de verdade? Para começar, é muito
improvável que Madalena tenha se tornado uma reclusa, não importa por quanto tempo, passando a
viver em uma caverna em Sainte-Baume. Até mesmo os atuais guardiães do santuário católico admitem
que ela nunca esteve lá. O lugar não é desprovido de significado, entretanto. Nos tempos romanos, longe
de ser um local ermo, como diz a lenda, essa região era bastante povoada, e a tal caverna, um centro de
culto à deusa Diana Lucífera (a que trazia luz ou Illuminatrix). Embora uma Madalena nua, mas não
totalmente pelada, viesse com certeza a se tornar o centro das atenções, ela dificilmente ficaria sozinha
nesse lugar de culto, pois muitos outros devotos e sacerdotisas viriam em bandos até a caverna. Mas,
embora a cristianização de lugares pagãos, ao menos em retrospectiva, seja uma prática histórica
bastante conhecida, algo mais parece estar sendo insinuado aqui.
(É bastante interessante que Arles, a cidade populosa que está mais próxima do local onde supostamente
Madalena desembarcou, fosse um grande centro de culto à deusa Ísis. Essa inóspita e dura região parece
ter sido um lar para muitos grupos que cultuavam essa deusa, e sem dúvida continuou a ser um refúgio
para seus praticantes durante os tempos do cristianismo).
De fato, a metamorfose da outrora voluptuosa Madalena em uma ermitã desolada e dura, foi a
cristianização deliberada de uma história muito mais ambivalente: todos os elementos-chave foram
retirados da lenda de Santa Maria do Egito, do século XV, que também era uma prostituta que se tornou
eremita e cuja penitência na inóspita Palestina durou quarenta anos. (Entretanto, é claro que velhos
hábitos demoram a morrer, pois ela financiou sua viagem pelo mar oferecendo seus serviços pessoais
aos marinheiros e, ainda mais incrível, foi considerada ainda mais santa por fazer isso...).
É claro que, ainda mais sob a ótica de outra evidência que será fornecida mais adiante, a parte 'penitente'
da história de Madalena é uma invenção deliberada da Igreja medieval, que queria torná-la mais
aceitável. Porém, descobrir o que ela não era não explica por si mesmo nem sua história, nem sua
personalidade. E então, mais uma vez, nos encontramos frente a uma curiosa atração por essa mulher,
que vai além de um mero carisma que cativa nossos contemporâneos, e cujo apelo não só sobreviveu aos
séculos mas, realmente, parece ter aumentado em nossa época.
Há centenas de lendas referentes a santos, algumas mais críveis que outras, mas, infelizmente, a maioria
não passa de fábulas. Por que o caso de Maria Madalena seria diferente? Por que deveríamos encontrar
qualquer substância em sua lenda? Muitos estudiosos têm afirmado que a lenda de Madalena na França
foi, simplesmente, uma invenção de astutos publicitários franceses, ansiosos por criar um espúrio legado
bíblico para eles mesmos (ao contrário das histórias do menino Jesus em visita ao sudoeste da
Inglaterra).
Inegavelmente, muitos detalhes da história de Madalena na França foram acrescentados mais tarde, mas
existem razões para suspeitar que no geral ela se baseia em fatos. Pois, embora talvez seja ir um pouco
longe demais afirmar que Jesus visitou o sudoeste da Inglaterra, então uma região bastante remota do
Império Romano, não é exatamente a mesma coisa que sugerir que uma mulher independente
financeiramente pudesse navegar até uma cidade culturalmente emergente, situada no litoral de um
Mediterrâneo romanizado. A natureza de seu papel nesses contos era mostrada de forma muito mais
vigorosa: ela é explicitamente retratada como uma pregadora. Como vimos, em seus primórdios a Igreja
se referia a ela como 'a Apóstola dos Apóstolos', mas lá pela Idade Média tornara-se impensável
descrever dessa forma o papel destinado às mulheres. Se, como dizem os críticos, a lenda da Madalena
francesa tivesse sido inventada por monges medievais, eles dificilmente teriam lhe dado o papel de
Apóstola, que é, conforme o próprio pensamento deles, um papel essencialmente masculino. Isso sugere
que a história foi baseada em uma memória verdadeira relacionada a essa mulher, mesmo que tenha sido
um tanto enfeitada ao longo dos séculos. E, significativamente, os historiadores concordam que o
cristianismo se estabeleceu na Provença no século 1.
Tomando a cidade de Marselha como base, passamos a visitar os principais locais associados à lenda de
Madalena.
A trilha, como a própria história, começou em Saintes-Maries-de-la-Mer, que fica a cerca de duas horas
de carro de Marselha, dentro da Camargue, uma área pantanosa pontilhada de lagoas, onde a foz do rio
Reno se encontra com o Mediterrâneo. Saintes-Maries é a única cidade em uma região reservada
exclusivamente à criação de cavalos de raça, que fazem a fama de Camargue, e que, além disso, serve
como santuário para muitas espécies de aves aquáticas, incluindo bandos de flamingos que visitam a
costa vindos da África. É um lugar selvagem, repleto de mosquitos ao anoitecer, e, após uma longa
jornada através dos pântanos de Arles, é quase um choque chegar em Saintes-Maries e se deparar com
essa barulhenta cidade turística, cheia de alegria, bares e restaurantes. Como o resto da Camargue, ela
tem um inconfundível ar espanhol, contando até mesmo com uma arena de touros, que aqui fica à beira-
mar.
A igreja de Notre-Dame de la Mer, em formato de galeão, eleva-se abruptamente sobre os prédios
baixos da cidade. Ensinam-nos, embora não nos surpreendam, que a igreja do século XII é repleta de
fortificações: construída em uma cidade remota no litoral, estava sob constante ameaça de ataques de
piratas e inimigos.
Três Marias aqui são veneradas: Maria Madalena, Maria Jacobina e Maria Salomé. A igreja era de
particular interesse para René d'Anjou (1408-1480), Rei de Nápoles e Sicília, e, de acordo com o
Monastério de Sion, seu Grão Mestre. O 'Bondoso Rei René', como é conhecido historicamente, era um
devoto ardoroso de Madalena, e obteve permissão do Papa para exumar a cripta. Encontrou dois
esqueletos, que foram declarados como sendo das Marias Jacobina e Salomé. De Madalena, porém, ele
nada achou.
No interior da igreja, há um curioso altar dedicado a Sara, a Egípcia, supostamente, serva das Marias. A
tradição afirma que era negra. Ela é a deusa dos ciganos, que convergem para a cidade aos milhares,
todo 25 de maio, para um festival comemorativo em sua honra. Durante o festival, há a eleição da
Rainha Cigana, que se realiza defronte à estátua de Sara, a qual é então levada em procissão e
cerimoniosamente colocada no mar. Naturalmente, esse festival tornou-se uma forte atração para
turistas, e tem trazido muitos visitantes famosos ao longo dos anos, incluindo Bob Dylan, que, após ter
ido ao festival, escreveu uma canção sobre a visita.
Dentre outras visitas ilustres, há uma que foi eternizada com uma placa na praça defronte à igreja: a do
Cardeal Angelo Roncalli (1881-1963), então embaixador do Vaticano na França e mais tarde Papa João
XXIII. Afirma-se que ele era um dos membros do Monastério de Sion, na mesma época em que Jean
Cocteau, ao tornar-se Grão Mestre, recebeu como título o nome de João XXIII.
Seguindo o que se diz ser o próprio itinerário de Madalena, voltamos à quente e barulhenta Marselha,
onde ela pregou. Das duas catedrais, que ficam lado a lado, uma tem apenas 150 anos e é ainda
utilizada. Embora sua decoração celebre o tema de Madalena, isso, provavelmente, é resultado das
tradições e expectativas locais. A construção mais antiga, a Vieille Major, é muito mais interessante e
contém aparentemente descrições autênticas da vida e da obra de santos que atuaram na região. E, da
mesma forma que a cúpula da igreja de Notre-Dame de France, em Londres, o teto foi decorado de
forma a assemelhar-se a uma teia de aranha. No entanto, essa catedral não está mais aberta ao público,
pois foi considerada insegura.
Construída no século XII, no lugar onde antes havia um batistério do século V, ela resplandece de antigo
madalenismo. Além de uma capela dedicada especificamente a Madalena, e da mesma forma que a
capela de Saint Serenus, ela também tem uma série de baixos-relevos, encomendados por René d'Anjou,
retratando cenas da vida de Madalena. Um deles, inclusive, a Madalena pregando, reforçando assim a
imagem de apóstola que transparece nos Evangelhos Gnósticos. E como, presumivelmente, ela foi bem-
sucedida em converter os 'pagãos', alguém devia estar pronto a batizá-los na fé da igreja cristã, mas
quem era este? Teria a própria Apóstola dos Apóstolos se encarregado da tarefa?
A tradição local diz que ela pregava nas escadas de um antigo templo dedicado a Diana. O local dessa
construção nada tem a ver com as catedrais de Marselha, estando próximo, afirma-se, de onde hoje é a
Place de Lenche, em um emaranhado de ruas a cerca de duzentos metros dali. Não há nenhuma placa
comemorativa indicando ser este um local historicamente famoso, mas existe algo que faz com que haja
essa insistência em afirmar que aquela área triangular foi um lugar onde Madalena uma vez pregou.
Passando o forte de São João Batista, e o antigo e pitoresco porto com o mundialmente famoso,
diríamos fétido, mercado de peixe, fica a abadia de São Vítor. Este é um outro local religioso
importante, pois ali existia um Monastério desde o início do quinto século, e que, por sua vez, fora
construído em cima de um cemitério pagão. O prédio atual é do século XIII, mas sua cripta, muito mais
velha, é adornada com sarcófagos do período romano. A cripta também contém uma capela, que lembra
uma caverna, dedicada a Madalena. Mas para nós, o que há de mais fascinante nesse lugar é a estátua do
século XIII de Notre-Dame de Confession. Segurando uma criança em seus braços, a cor de sua pele é
negra. Ela é uma das controvertidas e lendárias 'Madonas Negras',
A leste de Marselha está Sainte-Baume, a grande caverna onde Madalena supostamente viveu seus
últimos dias, em reclusão. Há uma subida escarpada e sinuosa de quase 1.000 metros, antes de se chegar
a uma planície que leva o visitante a um pequeno agrupamento de casas, que constituem o povoado de
Sainte-Baume. Dali, há uma longa e dura caminhada através da floresta até a gruta, agora um santuário
católico. Entretanto, não há nenhuma indicação que demonstre ter ela estado aqui, pois, como já vimos,
a Igreja enxertou Sainte-Baume na história de Madalena, a fim de fazer um paralelo desta com a vida de
uma outra prostituta, Maria do Egito, além do que, na época da suposta chegada de Madalena, a gruta
era um centro de culto à deusa pagã. O mito, porém, tem um duplo valor: transformar uma indomável
Madalena em alguém mais aceitável para ser patrocinada pela Igreja, e fazer de um antigo local de culto
pagão um centro de peregrinação cristã.
De Sainte-Baume, a estrada continua até o local onde supostamente Madalena morreu e foi cremada,
Saint-Maximim-la-Sainte-Abume, lugar do bem-sucedido festival anual em sua homenagem. A gloriosa
procissão da cabeça de Madalena começa com os serviços ministrados na basílica de Sainte-Marie-
Madeleine e então a relíquia, que normalmente está trancada na sacristia, é colocada em uma liteira e
carregada através de uma rota predeterminada por entre as ruas sinuosas e estreitas da cidade de São
Maximiano. Uma banda de sopros e percussão, trajada com roupas tradicionais da Provença, lidera a
parada, acompanhada de bispos, padres, monges dominicanos e as pessoas mais importantes do local.
Talvez a fim de se fazer uma espécie de 'aquecimento', há mais duas outras liteiras transportando
estátuas menores de santos de menor importância. E então, após uma longa espera, lá vem ela, a cabeça
de Madalena. Adornada com pequenas medalhas de ouro nas beiradas do dossel, a preciosa relíquia é,
obviamente, de uma importância extrema. Os moradores da cidade postam-se ao lado dela, portando
bandeiras, formando uma guarda simbólica. O poder de atração da parada é tão grande que uma jovem
apareceu na janela para vê-la, esquecendo completamente qualquer noção de modéstia, pois estava
totalmente nua (alguns diriam que isso está bem de acordo com a ocasião, levando-se em conta a santa
que está sendo homenageada).
As mesmas ladainhas cantadas pelo clero e pela multidão, em especial o hino dedicado a Madalena,
acompanham a relíquia durante toda a procissão, que culmina com uma sublime interpretação, dentro da
própria basílica, puxada por seu órgão mundialmente famoso. Porém, será que toda essa opulência e
cerimônia não têm como único intuito dourar a pílula? Será que ela nos diz alguma coisa sobre a
verdadeira Maria Madalena, a enigmática mulher do Novo Testamento, que realmente pode ter sido a
mulher de Jesus?
Seus restos queimados foram encontrados, dizem, na cripta da igreja de São Maximiano, em 9 de
dezembro de 1279, por Charles II d'Anjou, conde da Provença. O que se acreditava ser seu esqueleto foi
descoberto em um rico sarcófago de alabastro, datado do século V. A explicação para esse sepultamento
tardio foi encontrada nos documentos descobertos dentro da própria tumba. Os documentos atestam que,
em 710 d.C., o corpo de Madalena foi colocado em outro sarcófago, a fim de protegê-lo dos invasores
sarracenos, e só então, nessa data tardia, é que se fez o devido registro. O esqueleto ainda está em seu
caixão de pedra, na cripta da basílica, embora o crânio esteja no relicário ornamentado de ouro, dentro
da sacristia. Charles d'Anjou patrocinou a construção da basílica e também, com a aprovação papal,
colocou-a sob a proteção da Ordem Dominicana. O prédio, que começou a ser construído em 1295,
levou cerca de 250 anos para ficar pronto, mas, como é comum na construção de catedrais, nunca ficou
realmente pronto. A intenção original de Charles era fazer deste um centro de peregrinação para os
devotos de Madalena, embora não se esperasse que fosse tão famoso quanto, digamos, São Tiago de
Compostela.
O comércio de relíquias medievais, mesmo naquela época, era uma atividade encarada como infame.
Para as pessoas bem nascidas, era simplesmente uma forma espúria de se fazer dinheiro fácil às custas
de gente simples e piedosa. Milhares de peregrinos e crentes colocaram dinheiro nos cofres das
autoridades da Igreja, que afirmavam a autenticidade das relíquias sagradas sob sua guarda. É claro que
as relíquias mais lucrativas eram o corpo de algum santo, ou pelo menos uma parte deste. Por onde quer
que se caminhasse pelo mundo cristão, com certeza, se encontraria a unha do dedão do pé de algum
personagem sagrado ou o lóbulo da orelha de algum outro. O mais irônico é que até o mais cínico e
ultrajante dos comerciantes de relíquias percebeu o quanto era difícil convencer as hordas de ansiosos
peregrinos de que eles não podiam conseguir nada que fosse parte do corpo de Jesus, pois, afinal de
contas, seu corpo não ascendeu aos céus? O mais próximo que eles poderiam arranjar eram os espinhos
da coroa ou uma lasca da verdadeira Cruz, da qual havia tantas que se fossem todas colocadas uma ao
lado da outra produziriam uma verdadeira floresta.
Poucos estudiosos da época, especialmente não seguidores da igreja católica, não tiveram coragem de
denunciar tais relíquias como falsificações, até mesmo afirmando que eram embustes tão patéticos que
adicionavam insulto à injúria. Infelizmente, os 'ossos de Maria Madalena', em São Maximiano, são
definitivamente falsos e também pode ser provado, sem qualquer sombra de dúvida, que os documentos
que atestariam a autenticidade são também forjados. Utilizaram neles um sistema de datação que era
comum no século XIII, o qual é muito diferente do que se usava no século VIII.
Havia, entretanto, elementos nessa história que sugeriam existir algo mais do que uma simples
venalidade por trás do embuste. É verdade que a posse de relíquias era um negócio lucrativo, mas onde
quer que existam restos mortais de grandes figuras históricas, com freqüência há outros motivos
envolvidos. Por exemplo, os supostos restos mortais do Rei Artur e de sua rainha foram encontrados em
Glastonbury no século XI. Muitas pessoas acreditam que isso foi apenas uma tentativa do abade para
colocar no mapa sua abadia, porém, essa questão é um pouco mais complexa. Na época em que os
ingleses estavam envolvidos na conquista do país de Gales, o gaulês Rei Artur era um herói legendário,
um símbolo da rebeldia gaulesa, que, como se crê popularmente, não só não morrera como retornaria,
em um futuro indefinido, para tomar parte na luta contra seus inimigos. Ao produzir seu esqueleto, os
ingleses soltaram uma verdadeira bomba psicológica no colo dos gauleses.
Os ossos de Maria Madalena, pensava-se, estavam em Vézelay, no Burgundy, para onde foram levados
da Provença e mantidos sob o altar da abadia de Sainte-Marie-Madaleine e, a partir de então, nunca mais
foram vistos. Então, em 1265, São Luís, um grande colecionador e venerador de relíquias, ordenou que
fossem exumados e, dois anos mais tarde, expostos em uma grande cerimônia, à qual ele compareceu.
Infelizmente, o que os monges de Vézalay puderam mostrar não passava de um punhado de ossos em
um cofre de metal e não o esqueleto completo que, supunha-se, estava em seu poder. (Essa história é
extraordinária por mostrar a completa falta de imaginação dos monges para tal tipo de situação.) Na
posição de sobrinho de Luís, Charles d'Anjou, então com dezenove anos, também estava presente.
Após esse acontecimento, Charles convenceu-se de que, por razões que permanecem misteriosas, o
esqueleto verdadeiro de Madalena ainda estava em algum lugar na Provença, e encontrá-lo tornou-se
uma obsessão. Sua paixão por ela sempre confunde os estudiosos, e levou um historiador francês a
escrever: 'gostaríamos de saber de onde o príncipe tirou essa devoção toda'. Charles ordenou a
escavação da igreja de São Maximiano, cavando com suas próprias mãos. Embora os despojos que
foram desenterrados, e que são hoje reverenciados, sejam falsos, da atitude de Charles poderíamos
inferir que, se houvesse qualquer trapaça a esse respeito, ele teria sido sua vítima, jamais seu autor.
Entretanto, existe outra possibilidade: a 'descoberta' da relíquia de São Maximiano era, de fato, um
estratagema utilizado para evitar qualquer outra tentativa posterior de procurá-la. Enquanto isso, Charles
e sua família continuariam a pesquisar secretamente...
Quando os ossos foram encontrados, Charles manobrou junto ao Papa a fim de obter reconhecimento
oficial para aquelas relíquias, em detrimento das de Vézelay, o que ele obteve em 1295, além da
aprovação para a construção da basílica. Entretanto, parecia que algo mais estava acontecendo, pois é
sabido que Charles discutiu seus planos em encontros secretos com os arcebispos locais. Ele também se
mostrou bastante astuto ao recolocar a Ordem dos Dominicanos no lugar dos Beneditinos, que já
estavam instalados em São Maximiano, embora aqueles estivessem relutantes, sendo, finalmente,
obrigados pelo próprio Papa a atendê-lo.A basílica foi colocada sob controle direto do Papa, em vez do
arcebispo local; tantas mudanças, porém, provocaram uma resistência de tal intensidade que Charles
teve que enviar tropas para ajudar os novos mestres Dominicanos e os representantes do papa e do rei,
quando oficialmente assumiram o controle. Um resultado curioso disso tudo foi que os Dominicanos
acabaram por adotar Madalena como sua santa protetora, em 1297, com o epíteto de 'filha, irmã e mãe'
da ordem.
Como já vimos, um distante descendente de Charles d'Anjou, René d'Anjou (um suposto Grão Mestre
do Monastério de Sion), também tinha Madalena em alta estima. Dizem que ele possuía uma taça
semelhante à do Graal, contendo a seguinte inscrição:

Aquele que sorve profundamente encontrará Deus. Aquele que sorve o todo em um único gole
encontrará Deus e Madalena.

Maria Madalena, incontestavelmente, era de extrema e permanente importância para os d'Anjou:


contudo, há um mistério escondido nessa devoção. O fato de René d'Anjou ter escavado em Saintes-
Maries-de-la-Mer, aparentemente em busca dos restos mortais de Madalena, foi algo particularmente
fantástico, pois, duzentos anos antes, Charles d'Anjou afirmara tê-los encontrado em São Maximiano.
Apesar das afirmações de cada um, parece que nenhum dos dois realmente os achou.

Encontramos em Marselha uma das estranhas 'Madonas Negras' que sabíamos estar intimamente
conectadas à tradição de Madalena, embora não estejamos completamente certos nem de como, nem por
quê.
Essas estátuas religiosas são exatamente iguais às descrições da Madona com a criança, mas, por alguma
razão, a Madona é apresentada como sendo negra. Há muitas teorias relacionadas à sua cor. Contudo, as
Madonas não eram lá muito queridas pela Igreja, que as considerava suspeitas, para dizer o mínimo.
Que possível conexão teriam elas com Madalena, uma mulher que, presume-se, era da raça do Oriente
Médio e que, como diz a tradição, não teve filhos? Aprofundamo-nos, então, no culto da Madona Negra,
com a esperança de encontrar algumas pistas.
Também conhecidas como as Virgens Negras, cada uma das estátuas, onde quer que estivessem,
tornavam-se o centro de um culto. Embora as Madonas Negras fossem encontradas em uma grande área
por toda a Europa, incluindo lugares localizados na Polônia e mesmo no Reino Unido, a grande maioria
delas, cerca de 65% de acordo com a pesquisa de Ean Begg, de 1985, achava-se na França, grande parte
no sul...
Mesmo sem nunca terem recebido o reconhecimento ou apoio oficial da Igreja Católica, essas estátuas
ainda evocam a paixão de uma massa enorme de devotos, embora isso aconteça em uma escala local.
Alguma coisa não estava 'cheirando bem', podemos afirmar por experiência própria, no caso das
Madonas Negras. Ean Begg, em seu livro The Cult of the Black Virgin (1985), diz:

...não se camuflou a hostilidade quando, em 28 de dezembro de 1952, enquanto (eram


apresentados documentos) sobre as Virgens Negras à American Association for the Advancement of
Science, (Associação Americana para o Progresso da Ciência) todos os padres e freiras presentes
foram se retirando.

Ele segue dizendo que, pondo a hostilidade de lado, muitos padres modernos professam falta de
interesse ou ignorância sobre o assunto e não têm nenhum desejo de investigá-lo.
Durante a pesquisa para seu livro, Begg visitou com freqüência os locais relacionados à Madona Negra,
apenas para ouvir os padres locais dizerem nada saber sobre tal estátua ou afirmar que ela havia
desaparecido, sabe-se lá como. De qualquer forma, considerando as Madonas Negras existentes ou
ainda as que continuem a ser encontradas, a verdade é que há uma enorme devoção e amor local para
com elas. Então, por que essa devoção é tão antipática para a maior parte do corpo da Igreja Católica?
Muitas teorias foram formuladas para explicar sua cor de pele, indo do ridículo ao sublime, embora
pendam mais para o ridículo. Ean Begg cita uma conversa típica, entre um colega e um padre, sobre o
assunto: para a questão, 'padre, por que a Madona é negra?' a resposta do padre foi, 'Meu filho, ela é
negra porque é negra’. Outras explicações incluem a condescendente sugestão de que tais estátuas
tornaram-se negras porque, ao longo dos séculos, estiveram expostas à atmosfera repleta da fumaça
proveniente de velas. É claro que o fato de todas as outras estátuas da mesma idade e do mesmo lugar
serem capazes de suportar uma boa faxina coloca um ponto final nessa hipótese. As pessoas não são tão
ingênuas a ponto de cultuar algumas Madonas de cara suja, por séculos e séculos e, ainda por cima, com
uma paixão rara e especial. Muitas das estátuas foram deliberadamente pintadas de negro ou feitas com
material negro, como o ébano; portanto, pode-se supor, com alguma certeza, que eram intencionalmente
negras.
Talvez mais plausível seja a idéia de que as estátuas são negras porque foram trazidas pelos Cruzados de
lugares onde as pessoas eram de pele escura. O fato, entretanto, é que a maioria das Virgens Negras
eram, na verdade, feitas no mesmo lugar onde passaram a ser cultuadas e, de modo algum, eram cópias
de um modelo trazido pelos Cruzados de algum país exótico.
Há ainda uma outra teoria, bem mais persuasiva. As Madonas Negras estão, em sua maioria, associadas
a muitos dos mais antigos lugares dedicados ao culto pagão. E embora a cristianização desses lugares
fosse um fenômeno bastante comum na Europa, a negrura dessas imagens indica a continuação do culto
à deusa pagã, que está vestida na pele de uma santa cristã. Esse é, presumivelmente, o porquê da igreja
as tratar com desdém, embora o fervor em relação a elas torne impossível um interdito formal. Além
disso, para que um interdito oficial seja efetivo, pelo menos hoje em dia, as razões que deveriam ser
apresentadas apenas atrairiam ainda mais atenção para o que vem acontecendo há já quase 2000 anos.
As conexões pagãs, por si só, não explicam o porquê das Madonas serem negras, apesar de alguns
apologistas cristãos afirmarem que tal associação, mesmo que simbolicamente, é "pouco clara".
Contudo, muitos desses locais estão associados com deusas da era pré-cristã, tais como Diana e Cibele,
que eram representadas como sendo negras durante o longo período em que foram cultuadas.
Uma outra deusa que algumas vezes aparece com a pele negra é Ísis, cujo culto, na região do
Mediterrâneo, durou bastante tempo, já dentro da era cristã. Irmã de Neythys, era uma deidade
multifacetada cujos dons especiais incluíam a magia e a cura, estando intimamente associada com o mar
e a lua. Seu companheiro, Osíris, que como Deus do mundo subterrâneo e da morte também tinha pele
negra, foi facilmente traído e levado à morte pelo perverso deus Set, mas, através da magia, foi trazido
de volta à vida por Ísis, a fim de poder dar vida ao menino Horus.
É sabido que os primeiros cristãos apropriaram muito da iconografia de Ísis para caracterizar a Virgem
Maria. Por exemplo, foram-lhe dados muitos dos títulos de Ísis, como a 'Estrela do Mar' (Stella maris) e
'Rainha do Céu". E, tradicionalmente, Ísis é mostrada de pé sob uma lua crescente, ou com estrelas nos
cabelos ou ao redor da cabeça; da mesma forma que Maria, a Virgem. Porém, a imagem que mais
impressiona pela semelhança é aquela da mãe com o filho. Os cristãos poderiam acreditar que as
estátuas de Maria com o menino Jesus representassem exclusivamente a iconografia cristã, mas na
verdade, todo o conceito da Madona com a criança já estava firmemente presente no culto de Ísis.
Ísis também era cultuada como uma virgem sagrada. Mas embora ela também fosse mãe de Horus, isso
não se afigurava um problema para os corações dos milhões de seus devotos. Muito embora se espere
que os modernos cristãos aceitem que o nascimento do filho da Virgem seja um artigo de fé e um fato
real, os devotos de Ísis e de outros deuses pagãos não sofriam com tal dilema intelectual. Para eles,
Zeus,Vênus ou Ma'at podem ou não ter um dia andado sobre a terra: o que realmente importava era o
que eles representavam. Cada um dos deuses do panteão tinha o domínio de uma determinada área
relacionada à humanidade; por exemplo, a deusa egípcia Ma'at lidava com o conceito de justiça, tanto
no mundo material quanto no espiritual, onde pesava na balança as almas dos que morriam. Entendia-se
que os deuses representavam arquétipos e não personagens históricos. Os devotos de Ísis não
desperdiçavam seu tempo procurando por panos que poderiam ter enrolado o corpo de Osíris, nem
achavam importante encontrar lascas do caixão onde ele foi colocado. Muito longe de ser uma religião
ignorante ou sem sofisticação, eles pareciam ter uma profunda compreensão da psique humana.
Ísis era cultuada tanto como Virgem quanto como Mãe, mas não como uma Mãe Virgem. Os devotos de
Ísis considerariam a noção de um rebento filho de uma Virgem francamente ridícula: os deuses eram
bem capazes de realizar milagres, mas não exigiam que seus filhos suprimissem seu senso crítico de
forma tão completa. O culto da maioria das principais deusas enfatizava a essência feminina, pela
divisão desta em três aspectos principais, cada um representando o ciclo de vida real das mulheres.
Primeiro, há a Virgem, então a Mãe e então a Anciã; todas as três estão ligadas com a lua crescente, a
lua cheia e a lua nova, respectivamente. Cada deusa, incluindo Ísis, era vista como um centro de apoio
para a experiência feminina como um todo, incluindo o amor sexual, e, portanto, poderia ser invocada
para ajudar em qualquer tipo de problema, ao contrário da Virgem Maria, cuja pressuposta pureza é uma
barreira impenetrável para aquelas que gostariam de compartilhar com ela seus problemas sexuais.
Ísis, uma mulher vigorosa que representa o ciclo de vida feminino por completo, foi representada como
sendo negra algumas vezes. E seu culto muito mais difundido do que se imagina. Por exemplo, um
templo dedicado a ela foi encontrado bem ao norte de Paris, e existem evidências para se supor que esse
não era um estabelecimento isolado. Ísis, a bela mulher-deusa a quem qualquer mulher podia recorrer,
conscientemente, a respeito de qualquer coisa, teria um grande poder entre as mulheres de qualquer
cultura. O primeiro impulso da igreja patriarcal foi erradicar o culto da deusa pagã. Mas a devoção a
essa deusa era muito mais forte e manteve-se firme, representando uma ameaça à Igreja. A Virgem
Maria, então, tornou-se uma espécie de versão enxugada de Ísis, resoluta e não muito adequada quanto à
biologia, emoção e espírito inerentes às mulheres reais, uma deusa construída por misóginos e para
misóginos. Mas era improvável que a assexuada Virgem Maria pudesse tomar Ísis como exemplo sem
que houvesse resistência por parte dos devotos da deusa pagã. Como poderia a boa, mas essencialmente
insípida, mãe de Jesus tomar completamente o lugar de uma Ísis exuberante, não apenas Virgem, Mãe e
Anciã, mas iniciadora sexual e controladora dos destinos dos homens? Será que o culto de Maria
Madalena, como o das Madonas Negras, tão menosprezado pela Igreja, esconderia na verdade uma idéia
de irmandade das mulheres, muito mais antiga e completa?
Já está bem demonstrado que os locais associados às Madonas Negras também estão relacionados com
antigos lugares de cultos pagãos, mas há uma outra ligação que não é tão plenamente reconhecida. As
enigmáticas estátuas e os antigos cultos, a elas associados, repetidamente parecem surgir lado a lado
com os locais relacionados com Maria Madalena. Por exemplo, a famosa estátua negra de Santa Sara, a
Egípcia, foi encontrada em Saintes-Maries-de-la-Mer, o mesmo lugar onde Madalena teria
desembarcado após chegar da Palestina. E em Marselha, há não menos que três Madonas Negras, uma
na cripta da basílica de São Vítor, logo ao lado da Igreja subterrânea dedicada a Madalena. Há uma
outra na "sua" igreja em Aix-en-Provence (próximo do lugar onde, acredita-se, ela foi cremada) e ainda
uma outra na igreja de São Salvador, a igreja principal da cidade.
A ligação entre o culto de Maria Madalena e o das Madonas Negras é inegável. Ean Begg cita que não
menos do que cinqüenta centros da primeira também contém um santuário dedicado às Virgens Negras.
Um mapa de estudo dos locais das Madonas Negras na França mostra que há uma grande concentração
na região de Lyon/Vichy/Lermont-Ferrand, com o centro localizado nas montanhas chamadas de Monts
de Madeleine. Grandes concentrações de lugares associados às Madonas Negras também são
encontrados na Provença e nos Pireneus ocidentais, ambas regiões intimamente conectadas com a lenda
de Madalena. Portanto, a associação entre os dois cultos é bastante clara, embora desconheçamos a
razão disso.
Nesse ponto nos deparamos mais uma vez com o Monastério de Sion, pois este tem um interesse
particular no culto das Madonas Negras, embora isso não seja muito conhecido. (É curioso esse fato não
ter sido mencionado em Tbe Holy Blood and The Holy Grail, já que dois de seus autores, Michael
Baigent e Richard Leigh, escreveram artigos sobre o assunto para uma publicação semanal chamada
The Unexplained, na mesma época da publicação do livro). Muitos dos lugares associados ao
Monastério têm suas próprias Madonas Negras, como Sion-Vaudémont e o lugar onde seus membros
encontram-se tradicionalmente para eleger os Grão-Mestres, Blois, Vale do Loire.
O culto das Madonas Negras é uma questão central para o Monastério. Seus membros, para veneração
especial, preferem a de Goult, próximo a Avignon; ela é conhecida como 'Notre-Dame des Lumieres'
(Nossa Senhora das Luzes). Para eles, ao menos, não existe dúvida em relação ao significado real das
Madonas Negras. Pierre Plantard de Saint-Clair escreve, de modo explícito, 'A Virgem Negra é Isis e seu
nome é Notre-Dame de Lumiere' .
Parece haver aqui uma discrepância, pois que possível ligação poderia haver entre Ísis/Madona Negra e
a obsessão do Monastério com a linhagem dos Merovíngios? Plantard de Saint-Clair explica a conexão
entre o Monastério e as Madonas Negras ao afirmar que o culto destas foi promovido pelos
Merovíngios. Mesmo colocando de lado a suspeita em relação a essa linhagem, isso se encaixa
admiravelmente com as afirmações da descendência em linhagem direta de Davi. Begg nota uma outra
discrepância: embora a veneração do atual Monastério em relação a Ísis possa ser vista como uma
tentativa de prover a eles mesmos de uma árvore genealógica que remonte aos tempos dos romanos - e
além -, as entidades femininas cultuadas em Gaul eram, na verdade, Cibele e Diana e não Ísis. Plantard
de Saint-Clair insiste em afirmar que o envolvimento do Monastério está, especificamente, relacionado a
Ísis, mas por quê? Begg sugere que isso poderia ser uma forma de insinuar uma conexão com uma
importante ancestralidade egípcia.
Se há uma figura legendária que pode nos dar a resposta para esse mistério, ou que representa a ponte
entre os pagãos e as tradições do cristianismo que vieram juntas com o culto das Madonas Negras, com
certeza é Maria Madalena. Mas, exatamente, por que essa famosa cristã penitente deveria estar
associada a locais de antigos cultos pagãos?
Uma pista pode ser o Cântico dos Cânticos, a coletânea de poesia erótica bizarramente incluída no
Antigo Testamento e que é tradicionalmente atribuída ao Rei Salomão, que a escreveu para louvar os
generosos dotes da Rainha de Sabá. E, estranhamente, uma dessas passagens é lida em voz alta nas
igreja católicas no dia em que se homenageia Santa Madalena. Lê-se (Cântico dos Cânticos 3:1-4):

Eu busquei de noite no meu leito aquele a quem ama a minha alma:


busquei-o e não o achei.
Levantar-me-ei e rodearei a cidade: buscarei pelas ruas e praças públicas aquele a quem ama a minha
alma.
Busquei-o e não o achei.
Os guardas, que rondam a cidade, me encontraram, e eu lhes disse:
vistes porventura aquele a quem ama a minha alma?
A poucos passos, que me tinha apartado deles, achei eu aquele a quem ama a minha alma. E agarrar-me-
ei a ele: não o largarei, até o não introduzir em casa de minha mãe, e levar à câmara daquela que me
gerou.

O Cântico dos Cânticos tem sido associado, desde os primeiros anos da era cristã, com Madalena. Nesse
caso, talvez haja alguma outra conexão escondida nos versos, pois neles também há a fala da amante
feminina 'Eu sou negra, mas formosa' , o que é uma outra ligação com o culto das Madonas Negras, e, se
dermos crédito ao Monastério, com a deusa egípcia Ísis.
Esse ponto é um tanto desconcertante, pois, se parece haver umas poucas conexões óbvias entre a
Madalena e as Madonas Negras, também existem umas poucas entre a santa e o Cântico dos Cânticos.
Embora, da mesma forma que a amante que se lamenta naqueles versos, Ísis saísse em busca de seu
marido Osíris, que paralelo possível há com a história de Maria Madalena? À primeira vista não há uma
resposta direta. Parece não haver nenhum conjunto de permutações capaz de encaixar todos os fatos
conhecidos.
Há um outro elemento, ainda mais confuso, para se levar em conta. Provença, lar do madalenismo e de
muitas Madonas Negras, também está envolta pela presença de uma outra figura significativa do Novo
Testamento, João Batista. Levamos um choque ao descobrir o número de igrejas dedicadas a ele e de
lugares com seu nome na mesma região. Em Marselha, sem levar em conta uma igreja dedicada a
Batista, há os antigos Cavaleiros Hospitalários do Forte de São João, que ainda mantém sua entrada pelo
porto. Em Aix-en-Provence encontramos a enorme igreja de São João de Malta, onde há um baixo-
relevo de João em cima do muro de uma casa, na rua principal da cidade. Em qualquer lugar por onde
passamos em nossa viagem, nos vimos frente a frente com o mesmo fenômeno inexplicável; onde quer
que encontremos grandes concentrações de locais dedicados a Madalena, também existe um número
bem maior do que seria razoável de igrejas dedicadas a João Batista. Talvez tenha sido essa
aparentemente estranha conexão que fez Ean Begg dizer:

...a história da Virgem Negra também pode incluir o segredo herético que tem o poder de chocar e
atormentar até mesmo correntes pós-cristãs atuais, um segredo que, além do mais, envolve forças
políticas ainda influentes na Europa moderna.

Obviamente, a prevalência das construções dedicadas a João Batista podem facilmente ser explicadas
pelo fato de que os Cavaleiros Hospitalários (que mais tarde passaram a ser conhecidos como os
Cavaleiros de Malta, e que têm uma forte presença na região) sempre tiveram uma veneração especial
por esse santo. Havia outra ordem cavalheiresca que era uma força a ser levada em consideração no sul
da França, a bem mais famosa Ordem dos Templários, que também prestava especial homenagem ao
Batista.
Enquanto estávamos na Provença, não poderíamos deixar passar a oportunidade de visitar a região de
St-Jean-Cap-Ferrat, onde Cocteau construiu sua fama.A viagem de Marselha a Nice parece durar uma
eternidade, embora Nice esteja apenas um pouco mais além, seguindo a linha do litoral, da requintada
cidade-estado de Mônaco. St-Jean-Cap-Ferrat fica no final de uma península e é conhecida por servir de
refúgio para estrelas de cinema como David Niven. Certamente, nela estão algumas das mais ricas
residências que alguém pode imaginar, fora dos filmes de James Bond, e um certo Château St Jean, que
se aninha quase ameaçadoramente em suas sinistras escarpas, parecendo ser algo tirado de algum filme
de Hitchcock. Contudo, nesse parque de diversões dos ricos e famosos, nem tudo é tão materialista
quanto parece; e a ênfase local em São João não é acidental.
O próprio lugarejo tem uma igreja dedicada a João Batista, o santo cujo nome batizou a região. Mais
uma vez, isso se deve à presença dos Cavaleiros de Malta, cuja capela de St Hospice ainda está de pé, no
lugar do forte original, na ponta extrema da península, o Ponto de São João, um ótimo lugar para um
posto de observação. As paredes da capela são decoradas com muitas placas comemorativas das visitas
de vários Grão-Mestres de sua ordem ao longo dos anos, e a região ao redor recebe o nome de 'Place des
Chevaliers de Malte' (Praça dos Cavaleiros de Malta). Esta é dominada por uma enorme estátua de
bronze de uma Madona e sua criança, que, embora tenha acumulado uma pátina verde-escuro, é
conhecida localmente como La Vierge Noir, A Virgem Negra. Com cerca de cinco metros de altura, ela
tem observado o mar por quase um século. Esse é o estranho fenômeno de uma aparente simbiose dos
locais das Virgens Negras com aqueles dedicados a Batista.
Ali perto, entretanto, encontramos uma conexão inesperada com o Monastério de Sion. Na pequena
cidade de Villefranche-sur-Mer, há uma pequenina capela voltada para o porto e freqüentada pela
comunidade de pescadores. Em virtude de seu público, ela é dedicada a São Pedro (o Grande Pescador),
mas para nós o interesse principal está na identidade do criador da admirável decoração. Foi projetada e
executada por Jean Cocteau, que a completou em 1958, embora tenha sido um sonho seu durante muitos
anos. No final, ele era pessoalmente responsável por todos os aspectos da decoração da capela, desde a
recolocação de gesso nas paredes até o desenho dos candelabros. O resultado final é, sem meias
palavras, estranho. Há uma similaridade vaga com a decoração de um templo maçônico, embora a
estatuária seja consideravelmente surreal. Olhos observadores pintados em todos os lugares: dois destes
são gigantescos e estão colocados em cada um dos lados do altar, além de um conjunto de olhos
pequenos generosamente espalhados por toda a parte, e figuras peculiares - tais como uma mulher
apontando três dedos de modo deliberado, para o observador - embelezam as paredes.
De todo o conjunto bizarro de figuras e símbolos, entretanto, um em particular nos atrai de forma
especial: mostra a figura de ciganos dançando em companhia de uma jovem, desenhada como se fosse
uma deusa, uma clara alusão à cerimônia anual em Saintes-Maries-de-la-Mer. Essa referência peculiar
também é encontrada na outra ponta de Provença, em uma capela dedicada a São Pedro, que, de acordo
com o Evangelho Gnóstico, foi o inimigo da adorada Maria Madalena do Monastério.
Cocteau decorou sua capela imediatamente antes de trabalhar no mural de Londres, e em ambos os
casos o visitante ao sair leva consigo um sentimento de estranhamento, como se uma imagem
subconsciente estivesse lhe comunicando algo completamente diferente da mensagem que, supõe-se,
integram aquelas construções cristãs.
Cerca de trinta e cinco quilômetros ao norte da luxuriante Nice existe um conjunto de vilarejos que faz
parte do surpreendente padrão de coexistência de locais dedicados a Madalena e a João Batista. Ao
longo do vale do Rio Vésubie, fica a outrora importante rota dos Alpes até a costa, próximo da região
com nomes de lugares que evocam as mesmas associações que encontramos perto de St Jean-Cap-
Ferrat. Por exemplo, o vilarejo de Sainte-Madaleine (sic) se encontra próximo de lugares denominados
Marie e St Jean.
E isso não é tudo. Exatamente na mesma região está a antiga cidade templária de Utelle, cujas casas
medievais ainda portam os sinetes esotéricos dos alquimistas, e para além do vale está Roquebilliere, um
outro local da irmandade dos cavaleiros. A maior dessas cidades é St-Martin-de-Vésubie, local de um
lendário massacre de templários, em 1308.
Essa é a terra natal da Madona Negra: la Madone des Fenetres (a Madona das Janelas, embora esta
derivação seja contestada), que foi introduzida na região pelos templários. A estátua, porém, de acordo
com a tradição local, foi trazida à França por Maria Madalena. E embora as lendas não estejam
necessariamente baseadas nos fatos, é bastante interessante ver que o povo daqui, aparentemente, acha
natural fazer associações entre Madalena, o culto da Virgem Negra e os Templários.
Logo depois de atravessar o vale, vindo de St-Martin-de-Vésubie, está o vilarejo de Venanson, onde a
capela de Saint Sébastien fica encarapitada em uma rocha acima da única rodovia da região. Dentro, há
uma pintura de St. Grat, que fora um bispo da região, segurando a cabeça de João Batista. Há cerca de
cinco quilômetros dessa capela, no vilarejo de Saint-Dalmas, está a igreja templária de Sainte-Croix,
uma das mais antigas construções religiosas da França. Suas paredes exibem pinturas de Salomé,
mostrando a cabeça de João Batista para sua mãe Herodíada e o padastro Herodes.
É claro que muitas igrejas, tanto católicas quanto protestantes, possuem algum tipo de representação de
João Batista, mas de costume mostram-no batizando Jesus. Muito poucas imagens de João o mostram
sendo decapitado, ou exibem sua cabeça decapitada, pois apenas nos lugares onde é particularmente
venerado isso é considerado apropriado. Nessa região da França, entretanto, há algumas representações
desse tipo, e obviamente não é por acaso, como já vimos, pois esse local é uma região de grande
concentração de templários e de sua ordem. João Batista sempre foi conhecido como santo protetor dos
templários e é portanto especialmente reverenciado por eles. Mas por que, exatamente, João Batista foi
tão importante para os templários e para os Cavaleiros de Malta? Essa é uma questão que assumiria uma
importância cada vez maior enquanto nossa investigação progredia.
A viagem à Provença revelou-nos que havia algo substancial por trás das lendas locais relacionadas a
Madalena, mas isso também permitiu lampejos tantalizantes de algo mais antigo, maior, mais
organizado, talvez mesmo mais obscuro. Conforme seguimos as pegadas de Madalena começamos a
encontrar camadas e mais camadas de associações esotéricas que, com freqüência, remontavam há
séculos. Onde quer que Madalena estivesse, quase sempre havia uma Madona Negra, e onde quer que se
realizasse o culto, sempre havia um próspero santuário dedicado à deusa pagã.As outras tramas da teia
conectavam esse triunvirato feminino ao Monastério de Sion, e, inexplicavelmente, com a veneração dos
templários por João Batista.
Nesses estágios iniciais de nossa investigação, reconhecemos que tais conexões existiam, mas pouco
sentido faziam. Algumas vezes, realmente, tememos que nunca viessem a fazer. Mas, enquanto
insistíamos em nossa pesquisa, fatos, lendas e personagens aparentemente irreconciliáveis começaram a
se encaixar como um todo, em um quadro compreensível. E esse quadro, com certeza, deixaria o próprio
Leonardo orgulhoso.
Sem qualquer idéia de quão chocantes poderiam ser nossas últimas descobertas, deixamos Provença
para trás e penetramos fundo no berço da heresia européia.

CAPÍTULO IV

O Berço da Heresia
As lendas relacionadas a Madalena ultrapassam as fronteiras da Provença, embora apenas lá se possam
encontrar os locais associados com a sua passagem pela França. Histórias sobre ela afloram em
abundância por todo o sul, concentrando-se particularmente nas proximidades do sudeste dos Pireneus e
em Ariege. E dizem que foi para esses lugares que ela trouxe o Santo Graal. Como já era de se esperar,
essas terras também são morada de um grande número de Madonas Negras, em particular nos Pireneus
orientais.
Seguindo em direção oeste, tendo Marselha atrás de nós, chegamos à região de Languedoc-Roussillon,
que já foi a região mais rica da França e hoje é uma das mais pobres. Nessa região despovoada, os
pensamentos de cada pessoa parecem ecoar sobre a terra, reverberando cada vez mais, pouco a pouco,
milha após milha, a despeito do número crescente de turistas que vêm sorver sua história encharcada de
sangue; e, claro, o vinho local também. E embora nós, como bons europeus, fizéssemos nossa própria
contribuição à economia local, estávamos lá, em primeiro lugar, para examinar o passado.
Em todos os lugares podem-se ver as evidências da turbulenta história vivida pela região. Castelos
arruinados e antigas fortalezas, postos abaixo por ordens de reis e papas, sujam a paisagem e nos falam
de brutalidades que ultrapassam até mesmo a propensão medieval comum de governar por meio da
atrocidade. Pois se existe um lugar na Europa que possa ser lembrado como o lar da heresia, esse é
Languedoc-Roussillon. E foi esse único fato histórico o responsável pelo empobrecimento sistemático
da região. Não levando em consideração regiões como a Bósnia e a Irlanda do Norte, raramente a
religião deixou marcas tão profundas sobre a prosperidade de um país, de um modo tão explícito, como
o fez nessa região.
Antigamente só o Languedoc (de Langue d'Oc, o idioma local) se estendia da Provença à região entre
Toulouse e os Pireneus orientais. Até o século XIII, não fazia exatamente parte da França, sendo
governado pelo condado de Toulouse que, embora nominalmente devesse submissão aos reis da França,
na prática era, na verdade, mais rico e poderoso.
Nos séculos XI e XII essa região causava inveja a toda a Europa, por sua civilização e cultura. Sua arte,
literatura e ciência eram, sem sombra de dúvida, as mais avançadas da época; no século XIII, porém,
essa cultura resplandecente foi cortada ao meio pela invasão dos povos bárbaros do norte, causando um
ressentimento que persiste até hoje em dia. Muitos dos habitantes ainda preferem chamar a região de
Occitania, seu nome anterior. Essa região, como iríamos descobrir, é dona de uma memória
particularmente longa.
O antigo Languedoc sempre foi um berço para idéias heréticas e não-ortodoxas, provavelmente porque
uma cultura que encoraje a busca de conhecimento tenda a tolerar pensamentos novos e radicais.
Uma das principais figuras desse ambiente eram os trovadores, esses menestréis andarilhos cujas
canções de amor eram, em essência, hinos dedicados ao Princípio Feminino. Essa tradição, voltada para
o amor elegante, era centrada na idealização das mulheres e, dentre as mulheres, a mulher ideal, a
Deusa. Eles podem ter sido românticos, mas as canções dos trovadores também transmitiam um real
erotismo. A influência do movimento, porém, estendeu-se para além do Languedoc, e em particular,
com grande êxito, na Alemanha e nos Países Baixos, onde os trovadores eram conhecidos como
minnesingers, literalmente, 'os cantores de senhoras', embora aqui a palavra tenha o significado de
mulher idealizada ou arquetípica.
O Languedoc assistiu ao primeiro ato de genocídio cometido pelos europeus, quando 100.000 membros
da heresia dos cátaros foram massacrados por ordem do Papa, durante a cruzada contra os albigenses
(em razão da cidade de Albi, uma fortaleza cátara). A Santa Inquisição foi originalmente criada para,
especificamente, interrogar e exterminar os cátaros. Talvez seja apenas pelo fato da cruzada dos
albigenses ter ocorrido em uma época tão remota quanto o século XIII que esse massacre nunca tenha
tido o mesmo impacto histórico de holocaustos mais contemporâneos. Porém, muitos dos habitantes
locais ainda sentem o sangue ferver à simples menção desse assunto, e alguns até sugerem que houve
uma operação oficial de cobertura ao longo dos séculos, uma verdadeira conspiração para impedir que a
história dos cátaros fosse mais amplamente conhecida.
Além dos cátaros, essa região era, e sempre foi, um reduto da alquimia, e várias aldeias atestam o
interesse pela alquimia de seus antigos moradores, notadamente Alet-les-Bains, perto de Limoux, onde
as casas ainda são enfeitadas com simbolismo esotérico.Foi também em Toulouse e Carcassonne que
surgiram as primeiras acusações conhecidas contra as assim chamadas Bruxas do Sabbath, entre 1330 e
1340. Em 1335, sessenta e três pessoas foram acusadas de feitiçaria em Toulouse e suas confissões
obtidas através dos métodos usuais que garantiam que qualquer um confessasse. A chefe era uma jovem
mulher chamada Anne-Marie de Georgel, que parecia falar em nome de todas ao descrever suas crenças.
Afirmou que viam o mundo como um campo de batalha entre dois deuses, o Deus do Céu e o Deus
deste Mundo. Ela e as outras apoiavam este último porque acreditavam que ele seria o vencedor. Tal
coisa pode ter significado 'feitiçaria' para os juizes eclesiásticos, mas era na verdade gnosticismo, pura e
simplesmente. Outra mulher, acusada de crime semelhante, testemunhou ter assistido ao 'Sabbath' a fim
de 'servir os cátaros ao jantar'. Muitos elementos pagãos sobrevivem nessa região, podendo ser
encontrados nos lugares mais surpreendentes. Pois, embora as esculturas do 'Homem Verde', o deus da
vegetação que era venerado na maior parte das regiões rurais da Europa, possam, por outro lado, ser
vistas em muitas igrejas cristãs, como a Catedral de Norwich, ele normalmente não é descrito como
sendo descendente de uma deidade do Antigo Testamento. Como A.T. Mann e Jane Lyle escrevem:

Na catedral de St-Bertrand-de-Comminges, nos Pireneus, Lilith encontrou um jeito de entrar em uma


igreja: uma escultura que retrata uma mulher alada, com pés de pássaro, que dá à luz uma figura
dionisíaca, um Homem Verde.
A mesma cidadezinha afirma ser o local da tumba de ninguém mais, ninguém menos que Herodes
Antipas, o governador da Palestina, que mandou executar João Batista. De acordo com o cronista
hebreu do século I, Josephus, o frágil triunvirato composto por Herodes, sua esposa, a intrigante
Herodíada e a enteada Salomé, que é conhecida pela 'Dança dos Sete Véus', estavam todos exilados na
cidade romana de Lugdunum Convenarum, em Gaul, no que hoje é St-Bertrand-de-Conuninges.
Herodes desapareceu sem deixar rastro, mas Salomé morreu em um córrego nas montanhas, e
Herodíada transformou-se em lenda local, tornando-se líder de um grupo de 'feiticeiras'.
Outra lenda pitoresca de Languedoc se refere à 'Rainha do Sul' (Reine du Midi), um título das condessas
de Toulouse. No folclore, a protetora de Toulouse é La Reine Pedauque (a Rainha Ganso). Isso pode ser
uma referência, na cifrada e esotérica 'linguagem dos pássaros', para o Pays d'Oc, mas os pesquisadores
franceses identificaram essa figura com a deusa síria Anath, que por sua vez está intimamente ligada a
Ísis. E também há a associação óbvia com Lilith.
Um outro personagem legendário da região é Meridiana. Seu nome parece ligá-la ao meio-dia e ao sul
(ambos midi em francês). Sua aparição mais famosa aconteceu quando Gerbert d'Aurillac (940-1003),
que mais tarde tornar-se-ia o Papa Silvestre II, rumou para a Espanha a fim de aprender os segredos da
alquimia. Silvestre, que tinha como oráculo uma cabeça falante, recebeu sua sabedoria desta Meridiana,
que lhe ofereceu 'seu corpo, riquezas e a sabedoria da magia', com certeza algum tipo de conhecimento
alquímico e esotérico transmitido através de rituais de iniciação sexual.A escritora e pesquisadora
americana Barbara G.Walker deriva o nome Meridiana de 'Maria-Diana', unindo assim essa complexa
deusa pagã com a lendária Madalena do Sul da França.
Foi também o Languedoc que abrigou, sem dúvida nenhuma, a maior concentração de cavaleiros
templários na Europa, até que fossem suprimidos, no início do século XIV. A região é toda pontilhada
com as evocativas ruínas dos castelos e edificações militares da ordem.
Se, como suspeitamos, existiram muitas outras ramificações do culto 'herético' de Maria Madalena, além
das que encontramos na Provença, então, com certeza, o Languedoc seria o lugar para encontrá-las.
Uma das maiores cidades por onde passaríamos, ao viajar pela auto-estrada de Marselha, viu o despertar
de incontroláveis paixões em nome dela; e milhares de pessoas haviam sido, de modo horrível, levadas à
morte em virtude do significado que ela tinha para eles.
A cidade de Béziers, hoje pertence à província de Hérault, no Languedoc-Roussillon é uma cidade
populosa a cerca de dez quilômetros do Golfo dos Leões, no Mediterrâneo. Em 1209, porém, todos os
habitantes da cidade, até o último deles, foram caçados e mortos impiedosamente pelos cruzados da
albigense. Mesmo para uma cruzada marcada pela quantidade de sangue derramado, essa passagem é
uma história particularmente bizarra.
Essa história já foi relatada por vários comentadores contemporâneos, mas aqui nos limitaremos ao
relato de Pierre des Vaux-de-Cemat, um monge de Cister (Ordem austera baseada nas regras
beneditinas, fundada em 1098, na cidade de Cister, França), escrito em 1213. Ele não esteve presente
aos eventos, mas baseou seu relato nos dos cruzados que lá estiveram.
Béziers tornou-se algo como um reduto para hereges, razão da existência, à época do ataque dos
cruzados, de um enclave de 222 cátaros, que lá viviam sem serem molestados pela população. Embora
não se saiba ao certo se o Conde de Béziers seria ele mesmo um cátaro ou apenas um simpatizante, o
certo é que ele nada fez para persegui-los ou suprimi-los, e isso era o que, em particular, enfurecia os
cruzados.
Eles ordenaram que os citadinos, os católicos comuns, ou entregassem os cátaros ou deixassem a cidade,
para que pudessem lidar com os cátaros com mais facilidade. Apesar dessa exigência ter sido feita sob
pena de excomunhão - uma questão de extrema importância para uma época em que o inferno era uma
realidade concreta - e a alternativa oferecida parecesse bastante generosa, pois representava uma chance
de escapar ao iminente massacre, uma coisa surpreendente aconteceu. Os citadinos se recusaram a
obedecer a qualquer exigência. Como escreveu des Vaux-de-Cemat, eles preferiram 'morrer como
hereges em vez de viverem como cristãos'. E de acordo com o relatório enviado ao Papa por aqueles que
o representavam, os citadinos juraram defender os hereges.
Sendo assim, em julho de 1209, os cruzados marcharam em direção a Béziers e, sem qualquer
dificuldade, tomaram a cidade, matando todos os que lá estavam, homens, mulheres, crianças e padres, e
então atearam fogo ao local. Entre 15.000 e 20.000 pessoas foram mortas: destas, apenas 200 eram
heréticas. 'Nada poderia salvá-los, nem a cruz, nem o altar, nem o crucifixo'. Quando os cruzados
perguntaram aos delegados do Papa como eles separariam os hereges do resto do povo da cidade,
receberam a hoje notória resposta: 'Mate-os todos. Deus saberá separá-los' .
Embora seja fácil pensar que os habitantes tenham querido defender sua cidade contra as depredações
habituais dos exércitos, chamamos a atenção para o fato de que havia sido oferecida a eles a
oportunidade de partirem e se, a manutenção intacta de suas propriedades fosse algo de suprema
importância para eles, poderiam simplesmente entregar os hereges aos cruzados e voltar para o cotidiano
de suas vidas sem sequer olhar para trás. Porém, escolheram ficar na cidade, assinando assim a sentença
de morte de todos, e reafirmaram-na ao jurarem lutar em defesa dos cátaros. Mas o que realmente estava
acontecendo em Béziers?
Primeiro, deve-se levar em conta a data precisa do massacre. Era 22 de julho, o dia dedicado a Maria
Madalena, algo apontado por vários escritores contemporâneos como tendo um significado singular. E
foi na igreja de Maria Madalena em Béziers que, quarenta anos antes, o senhor local, Raymond
Trencavel I, foi morto, embora não se saiba exatamente o porquê. Em Béziers pelo menos, a ligação
entre Madalena e a heresia não era meramente acidental, e isso nos dá uma visão mais aguçada sobre o
pano de fundo da cruzada dos albigenses.
Como escreveu Pierre des Vaux-de-Cernat:

Béziers foi ocupada no Dia de Santa Maria Madalena. Oh!, justiça suprema da Providência!... Os
hereges afirmavam que Santa Maria Madalena era concubina de Jesus Cristo... foi então uma causa
justa esses cães asquerosos terem sido massacrados no dia das festividades daquela que haviam
insultado...

Talvez para os bondosos monges e para os cruzados essa idéia possa ter sido um tanto chocante, mas,
obviamente, não o era para a grande maioria do povo da cidade, que tinha escolhido apoiar os hereges
até a morte. Está claro que essa crença era uma tradição local extremamente poderosa nos corações e
mentes daquelas pessoas. Como já vimos, os Evangelhos Gnósticos e outros textos antigos não hesitam
em descrever a relação entre Maria Madalena e Jesus como sendo aberta e publicamente sexual. Mas
como será que essa idéia chegou aos ouvidos desses moradores urbanos da França medieval? Os
Evangelhos Gnósticos ainda não haviam sido descobertos (e mesmo que já o tivessem é improvável já
terem sido disseminados entre eles). Assim, de onde será que veio essa tradição?
A cruzada foi apenas o tiro de partida da guerra contra os albigenses, como um todo, que iria saquear o
Languedoc durante mais de quarenta anos, causando cicatrizes tão profundas na psique coletiva das
pessoas que não há nada de estranho em afirmar que perduram até hoje. Então, quem eram esses cátaros,
cujas crenças foram a causa de uma cruzada especialmente montada para lutar contra eles? O que
possuíam que fosse capaz de provocar tanto terror ao Sistema a ponto de ter-se criado a Santa Inquisição
especificamente para ser uma arma mortal apontada para eles?
Ninguém pode, com alguma segurança, estabelecer a gênese da fé dos cátaros, mas eles rapidamente
tornaram-se um poder a ser levado em conta no Languedoc do século XI. Para os languedocianos, os
cátaros não eram tratados com o desdém ou o ridículo com que nossa própria cultura tende a considerar
os cultos religiosos minoritários; ao contrário, eram a religião dominante da região e, localmente, a
tratavam com extremo respeito. As famílias nobres da região ou eram reconhecidamente cátaras ou
então simpatizantes destes, dando-lhes um apoio efetivo. O catarismo era, virtualmente, a religião oficial
do Languedoc.
Conhecidos como Les Bonhommes ou Les Bons Chrétiens, homens bons ou os bons cristãos, os cátaros
aparentemente não ofendiam ninguém. Comentadores contemporâneos, especialmente aqueles que têm
uma visão da "nova era" , afirmam que os cátaros representavam um movimento autêntico com o intuito
de voltar aos fundamentos do cristianismo. Embora, como veremos, tivessem absorvido muitas outras
idéias e tivessem uma ideologia própria um tanto confusa, é verdade que seu modo de vida era uma
tentativa de obedecer aos ensinamentos de Jesus. Acusavam a Igreja Católica de ter se desviado muito
do conceito original do cristianismo. Consideravam como anátema a riqueza e a pompa da Igreja, que
viam como o oposto do que Jesus havia pregado a seus seguidores.Vistos de modo superficial, poderiam
parecer os precursores do movimento protestante, mas, apesar de certas semelhanças, não era esse o
caso.
Os cátaros levavam vidas muito simples. Preferiam passar o tempo ao ar livre ou em casas simples do
que em igrejas, e embora tivessem uma hierarquia administrativa que incluía bispos, todos os membros
batizados eram espiritualmente iguais e considerados padres. Para aquela época o mais surpreendente
talvez fosse a ênfase que davam à igualdade entre os sexos, embora a culta região do Languedoc já
possuísse uma atitude mais iluminada em relação às mulheres do que era habitual. Eram vegetarianos
que comiam peixes (por razões ligeiramente relacionadas à saúde, como discutiremos mais tarde), eram
pacifistas e acreditavam em uma forma de reencarnação. Eram também pregadores itinerantes, viajando
em pares, vivendo com simplicidade e em extrema pobreza, parando onde quer que fosse para ajudar e
curar os que pudessem. De qualquer ponto de vista, os Homens Bons não pareciam representar ameaça
alguma para quem quer que fosse. No entanto, a Igreja encontrou razões suficientes para persegui-los.
A Igreja e os cátaros eram visceralmente antagônicos no que dizia respeito ao simbolismo da cruz, pois
estes viam na cruz uma lembrança horrível e doentia do instrumento de tortura que levou Jesus à morte.
Tinham também um ódio mortal ao culto aos mortos e ao comércio de relíquias que dele decorria, e que
constituía um dos principais meios utilizados naquela época para alimentar os cofres de Roma. Mas a
principal razão dos cátaros terem caído em desgraça perante a Igreja foi a sua recusa em reconhecer a
autoridade do Papa.
Ao longo do século XII, vários conselhos da Igreja condenaram os cátaros, mas finalmente, em 1179,
eles e seus protetores foram 'excomungados'. Até então a Igreja havia enviado os missionários
adequados, oradores talentosos daquela época, a fim de tentar trazer os languedocianos de volta à 'fé
verdadeira', mas tais missões foram recebidas com apatia. Até mesmo o grande São Bernardo de
Clairvaux (1090-1153) foi enviado àquela região apenas para voltar exasperado. Porém, o que é bastante
significativo, no relatório que enviou ao Papa, tomou o cuidado de explicar que embora os cátaros, no
que concerne à doutrina, caíssem em erro, se fosse 'examinado o seu modo de vida, não se acharia nada
mais impecável'. Essa constatação tornou-se senso comum entre todos os cruzados, até o ponto de
mesmo os inimigos dos cátaros 'terem que admitir que o estilo de vida deles era exemplar' .
A estratégia seguinte da Igreja foi tentar bater os hereges em seu próprio campo, enviando para a região
sua própria versão de pregadores itinerantes. Entre os primeiros, em 1205, estava o famoso Dominic
Guzman, um monge espanhol que para lá fora enviado com a missão de fundar a Ordem dos Frades
Oradores (mais tarde chamada de Ordem de São Domingos, cujos membros, tempos depois, seriam
encarregados dos tribunais da Santa Inquisição).
A partir de então, os dois lados viram-se jogados em uma série de disputas abertas, um tipo de debate
em público terrivelmente sério, que nada solucionou. Finalmente, em 1207, o Papa Inocêncio III perdeu
a paciência e excomungou o Conde de Toulouse, Raymond VI, por não ter entrado em ação contra os
hereges. Esse passo era obviamente impopular, pois o próprio delegado papal encarregado de transmitir
ao conde essas notícias foi morto por um dos cavaleiros de Raymond. Essa foi a gota d'água: o Papa
convocou uma cruzada de todos contra os cátaros e os que os apoiavam ou com eles simpatizavam. A
cruzada se reuniu em 24 de junho de 1209, dia comemorativo de São João Batista.
Até então, todas as cruzadas haviam sido convocadas para lutar contra os muçulmanos, contra os
'bárbaros estrangeiros' que viviam em terras tão distantes a ponto de serem, literalmente, inimagináveis.
Mas essa cruzada seria uma guerra de cristãos contra cristãos, quase que às portas do palácio do próprio
Papa. Havia, portanto, toda a probabilidade dos cruzados conhecerem pessoalmente alguns dos hereges
que eles haviam jurado exterminar.
A cruzada dos albigenses, que começou em Béziers, em 1209, prosseguiu com extrema brutalidade,
enquanto cidade após cidade caía ante os soldados, que estavam sob as ordens de Simon de Montfort. A
campanha durou até 1244, um período bastante considerável, durante o qual os cruzados realizaram tudo
o que se possa imaginar de pior. Ainda hoje há lugares no Languedoc onde o nome de Simon de
Montfort evoca um sentimento misto de medo e abominação.
Na ocasião, as razões religiosas tornadas públicas para justificar a campanha logo foram acompanhadas
pelos motivos políticos mais cínicos. A maioria dos cruzados veio do norte da França: a riqueza e poder
do Languedoc era atraente demais para ser ignorada. No começo da cruzada essa região desfrutava de
considerável independência; no final fazia, definitivamente, parte da França.
Esse episódio da história européia foi, sob quaisquer padrões, de significado extremo. Não só fora o
primeiro genocídio europeu, como também um movimento crucial para a unificação da França, e deu o
motivo necessário para a criação da Santa Inquisição. Para nós, entretanto, há muito mais nessa cruzada
dos albigenses do que uma campanha plena de atrocidades que, curiosamente, foi relegada ao
esquecimento.
Os cátaros eram pacifistas que desprezavam 'o imundo invólucro da carne' a ponto de estarem ansiosos
por esvaziá-lo, mesmo que os meios necessários para tal significassem o martírio de ser queimado vivo.
Durante a campanha, muitos milhares de cátaros terminaram seus dias na fogueira, e muitos sequer
deixaram transparecer o mais leve horror ou medo em face disso. Alguns, aparentemente, chegaram
ainda mais longe e não demonstraram sentir dor alguma. Tal feito foi particularmente notável no cerco
final ao último refúgio dos cátaros, em Montségur.
Uma parada essencial para os turistas contemporâneos, Montségur tornou-se um lugar um tanto mítico,
bastante similar ao rochedo de Glastonbury. Mas embora aqueles que estão fora de forma possam achar
que este último representa uma subida íngreme e difícil demais, não é nada quando comparado com a
estrada que leva ao topo do 'château' de Montségur: uma fortaleza de pedra, encravada quase que de
uma maneira impossível nas alturas vertiginosas de uma montanha escarpada, toscamente parecida com
um pão de açúcar, contemplando do alto o povoado e um vale tornado perigoso devido às constantes
quedas de pedras dos precipícios. Sinais em vários idiomas advertem contra rompantes no sentido de
escalar o 'château' até mesmo por aqueles que estão, sem sombra de dúvida, no auge de suas forças e
forma física: mesmo os andarilhos mais contumazes acham essa trilha particularmente dura. É difícil
imaginar como os cátaros e seus suprimentos chegavam até o topo. Uma vez lá, porém, era
relativamente fácil imaginá-los tranqüilamente sentados, pois para os cruzados, com suas armaduras e
cavalos, nem sequer valia a pena tentar a escalada.
Montségur havia se tornado o quartel-general dos cátaros remanescentes, no início dos 1240, quando os
cruzados os haviam forçado a recuar até os contrafortes dos Pireneus. Um lar para cerca de 300 cátaros,
e em particular para os líderes principais, Montségur era um prêmio reluzente para os homens do Papa.
A Rainha da França, Blanche de Castilha, reforçou a importância dada a Montségur quando, ao relatar
sobre sua captura, escreveu: ‘ [devemos] cortar fora a cabeça do dragão'.
Durante os dez meses de cerco a Montségur, um fenômeno curioso aconteceu. Vários dos soldados
sitiantes desertaram e juntaram-se aos cátaros apesar de saberem exatamente como tudo aquilo
terminaria, inclusive para eles. O que poderia ter causado tão absurda defecção? Alguns sugeriram que
eles ficaram impressionados com o comportamento exemplar dos cátaros e assim foram tomados por
uma conversão interna e profunda.
Como já vimos, os cátaros viam a morte certa, através de tortura, não só com estoicismo, mas com total
tranqüilidade, mesmo quando, dizem, as chamas começavam a dançar em volta deles. Para os que
podem se lembrar dos anos 70, vem imediatamente à mente a imagem assombrosa daquele solitário
monge budista que se imolou em protesto contra a Guerra do Vietnã. E permaneceu sentado e ereto, em
um transe desenvolvido após longo treinamento e inimaginável disciplina, enquanto o fogo o matava. Os
cátaros estavam conscientemente preparados para a morte, tendo feito até mesmo um juramento que
especificamente prometia a submissão de todos à própria fé em face de quaisquer tipos de tortura.
Teriam eles também o conhecimento de uma técnica de transe semelhante, que lhes permitisse superar a
agonia mais extrema? Com certeza, esse seria um segredo que todos os soldados de qualquer época
gostariam de conhecer.
Seja como for, a queda de Montségur deu vida a muitos mistérios duradouros que foram fonte de
fascinação para muitas gerações, inclusive para os nazistas caçadores de tesouro, e para aqueles que
estavam em busca do Santo Graal. O mistério mais persistente de todos está relacionado com o chamado
Tesouro dos Cátaros, que quatro deles supostamente teriam conseguido carregar na noite anterior ao
massacre final. Esses intrépidos hereges teriam de alguma forma conseguido escapar, sendo descidos
por cordas, no meio da noite, pelo lado particularmente escarpado da montanha.
Embora formalmente os cátaros tenham se rendido no dia 2 de março de 1244, foi-lhes dada permissão
para permanecer na fortaleza durante mais quinze dias, por razões que nunca foram bem explicadas;
depois de tal período eles se dirigiram por vontade própria para a fogueira. Alguns relatos os descrevem
como tendo de fato corrido montanha abaixo e pulado para dentro das fogueiras que os esperavam na
planície. Especulou-se que eles haviam pedido esse tempo extra para executar algum tipo de ritual, mas
ninguém jamais saberá realmente a verdade sobre isso.
A natureza exata do tesouro dos cátaros é assunto de intensa especulação. Julgando pela rota perigosa
percorrida pelos quatro fugitivos, provavelmente não poderiam ter carregado bolsas com pesadas barras
de ouro. Alguns especularam que era o próprio Santo Graal - ou algum outro objeto ritualístico de
grande significado -, enquanto outros afirmam que o que eles levavam eram escrituras, ou
conhecimentos, e até mesmo que os quatro cátaros, eles mesmos, é que eram o tesouro, devido à sua
própria importância. Eles poderiam representar uma linha de autoridade, talvez até mesmo encarnando,
literalmente, lendária linhagem sangüínea descendente de Jesus.
Mas se o tesouro dos cátaros fosse na verdade algum conhecimento secreto, qual seria seu formato? No
que realmente os cátaros acreditavam? É difícil acessar suas crenças com alguma segurança, porque eles
deixaram poucos registros escritos e muito do que é dito sobre suas crenças vem dos documentos de sua
inimiga, a Santa Inquisição. E como Walter Birks e R.A. Gilbert sabiamente apontam em seu livro The
Treasure of Montségur (1987), coloca-se muita ênfase na teologia que lhes é imputada quando, com
certeza, seu estilo de vida é o que mereceria mais atenção. Contudo, a religião originou-se de uma visão
específica do mundo, e essas origens permanecem discutíveis.
Os cátaros eram um ramo dos bogomilos, um movimento herético que surgiu e floresceu em primeiro
lugar nos Bálcãs, na metade do século X, e que se manteve influente na região, mesmo depois de os
cátaros terem sido destruídos. O bogomilismo se difundiu amplamente, até pelo menos onde hoje é
Constantinopla, e foi considerado uma séria ameaça à ortodoxia religiosa.
Os bogomilos da Bulgária são os herdeiros de uma longa linhagem de 'heresias', tendo adquirido uma
reputação um tanto pitoresca dentre seus oponentes. Por exemplo, a palavra inglesa 'bugger' (sodomita)
deriva do nome búlgaro, denotando o significado pejorativo, tanto literalmente - pois todos os hereges
são acusados de desvio sexual, seja a acusação justa ou não -, quanto em um sentido geral.
Os bogomilos e seus diversos ramos, como os cátaros, eram dualistas e gnósticos: para eles, o mundo é
inerentemente mal, o espírito preso em um corpo de imundices, e o único modo para se tornar livre era
por meio da Gnosis, a revelação pessoal que conduz a alma à perfeição e ao conhecimento de Deus. Há
uma variedade de possíveis raízes para o Gnosticismo; a filosofia grega antiga, os cultos de mistério
como o Dionisismo, e religiões dualistas, como Zoroastrismo, são possíveis candidatos. (Detalhamento
mais profundo pode ser obtido no estudo magistral de Yuri Stoyanov, The Hidden Tradition in Europe
(1994).
Diante do tipo de literatura sobre o catarismo disponível em muitas lojas turísticas do Languedoc, pode-
se perdoar aqueles que pensam que esse era um tipo de religião da Nova Era, com uma teologia clara e
simplista. Há dúzias de livros e folhetos que celebram o humanitarismo e as crenças dos cátaros
inseridos nos conceitos 'modernos' como reencarnação e vegetarianismo. Em geral, porém, isso é uma
tolice sentimental. Os cátaros praticavam o vegetarianismo não porque amavam os animais, mas sim
devido ao ódio que devotavam à procriação, e só comiam peixe porque acreditavam erroneamente que a
reprodução destes era assexuada. Por outro lado, a noção que tinham da reencarnação baseava-se no
conceito do 'bom final' (morte), que normalmente significava ser martirizado em razão da própria fé. Se
se deparassem com tal fim não havia nenhuma dúvida de que não reencarnariam mais neste desprezível
vale de lágrimas; se assim não fosse, então eles voltariam até que fizessem isso direito.
Alguns tentaram argumentar que o catarismo era um produto restrito ao Languedoc: esse argumento é
manifestamente impreciso, embora tenha incorporado material típico da região para a construção de sua
teologia. Uma coisa que era unicamente dos cátaros era a crença de que Maria Madalena foi mulher de
Jesus, ou então sua concubina. Julgava-se, porém, que esse conhecimento não era apropriado para todos
os cátaros, devendo ser restrito aos iniciados de alto grau, o círculo interno, e só. Os cátaros eram
visceralmente contra o sexo e até mesmo contra o matrimônio, e assim tal convicção era algo bastante
difícil de reconciliar e, portanto, eles deveriam ficar tão horrorizados em relação a isso que reservaram
tal conhecimento para os que já haviam, sobejamente, provado sua fé.
Os cátaros achavam-se, com freqüência, em uma posição teológica delicada, pois, por um lado, eles
encorajavam seus seguidores a lerem a Bíblia (contrastando com o catolicismo ortodoxo que se
opunham ao acesso popular à Bíblia); por outro lado, porém, tomavam a atitude radical de reinterpretar
os eventos bíblicos a fim de ajustá-los às suas próprias crenças. O principal exemplo de suas
reinvenções do Novo Testamento é a visão que tinham da crucificação: afirmavam que um Jesus de puro
espírito é que fora pregado à cruz. Embora não haja nenhuma evidência bíblica sobre isso, eles se viram
obrigados a inventar esse 'outro' Jesus em razão da repugnância que tinham do corpo físico e, portanto,
ter um crucificado corpóreo era inconcebível para eles.
Assim, a idéia de Jesus e Maria Madalena serem parceiros sexuais não poderia ser resultado de algum
tipo de pensamento tendencioso. Na realidade, eles se engalfinhavam com várias justificativas
teológicas diferentes, na tentativa de explicar o matrimônio, algo em que não empregariam tanto tempo
e energia se sentissem que poderiam simplesmente desconsiderar a história todo como sendo um
completo absurdo. O que isso parece indicar é a prevalência no Languedoc dessa época da idéia do
relacionamento de Jesus com Madalena. Isso não apenas era parte daquilo que as pessoas comuns
acreditavam sem qualquer questionamento, como também era algo central para o mundo cristão daquela
região como um todo, a tal ponto que era melhor tratar abertamente do assunto do que tentar ignorá-lo.
E como escreve Yuri Stoyanov:

O conhecimento de Maria Madalena como a 'mulher' ou 'concubina' de Cristo parece ser, além de
tudo, uma tradição original dos cátaros que não encontra nenhuma contraparte nas doutrinas dos
bogomilos.

Embora Madalena fosse, e ainda seja, uma santa curiosamente popular na Provença, onde se supõe que
tenha vivido, foi no Languedoc que ela se tornou o centro de convergência para as crenças abertamente
heréticas, e, como iremos descobrir, foi também nessa região que essas mesmas crenças deram origem a
paixões surpreendentes, rumores bárbaros e obscuros segredos.
Como já vimos, a idéia de Jesus e Maria Madalena serem amantes também pode ser encontrada nos
Evangelhos de Nag Hammadi, que foram escondidos no Egito no século IV. Seria razoável imaginar
que as semelhanças com as crenças do Languedoc se originassem daqueles ou de uma fonte em comum?
Alguns eruditos, com destaque para Marjorie Malvern, têm especulado que o culto do sul da França a
Madalena preservou essas antigas idéias gnósticas. E há alguma evidência de que seja realmente esse o
caso.
Nos anos de 1330 um tratado extraordinário intitulado Schwester Katrei (Irmã Catarina) foi publicado
em Estrasburgo, supostamente escrito pelo místico alemão Meister Eckhart. Os eruditos, porém,
concordam que o autor verdadeiro era uma das suas seguidoras. Esse livro apresenta uma série de
diálogos entre a 'Irmã Catarina' e seu confessor sobre a experiência religiosa de uma mulher e, embora
incorpore muitas idéias ortodoxas, também mostra várias outras que são, decididamente, bem menos.
Por exemplo, há essa declaração: 'Deus é a Mãe Universal...' e de modo claro revela uma forte
inspiração dos cátaros, além daquela advinda das tradições dos trovadores (minnesinger).
Esse tratado franco e incomum une Madalena a Minne, a Senhora do Amor dos minnesingers, e, ainda
mais estimulante, deu o que pensar aos eruditos porque contém idéias sobre Maria Madalena que só são
encontradas nos Evangelhos de Nag Hammadi: ela é descrita como sendo superior a Pedro, devido à
maior compreensão que tem de Jesus, e há aqui a mesma tensão entre Maria e Pedro. Além disso,
incidentes realmente descritos nos textos de Nag Hammadi são mencionados no tratado da Irmã
Catarina.
A professora Barbara Newman, da Universidade da Pensilvânia, destaca o dilema acadêmico da
seguinte forma: "a utilização desses temas na 'Irmã Catarina' coloca uma questão espinhosa no que tange
à transmissão histórica" e confessa que isso é 'um fenômeno real, mesmo sendo desconcertante'. Como
poderia o autor de Irmã Catarina, em pleno século XIV, ter tido acesso a textos que só seriam
descobertos no século XX? Não pode ser mera coincidência o tratado mostrar a influência dos cátaros e
trovadores do Languedoc, e a conclusão óbvia é que foi através deles que o conhecimento dos
Evangelhos Gnósticos relativos a Maria Madalena foi transmitido; seus segredos não só podem
estender-se sobre o que conhecemos como os textos de Nag Hammadi, como também sobre documentos
semelhantes e de igual valor que, contudo, ainda não foram redescobertos.
É interessante que haja uma crença duradoura no sul da França sobre a natureza sexual da relação entre
Madalena e Jesus. A pesquisa inédita de John Saul revelou muitas referências na literatura do sul da
França, do século VII, sobre tal união, especificamente nas obras de homens que estavam associados ao
Monastério de Sion, como César, o filho de Nostradamus (cuja obra foi editada em Toulouse).

Tínhamos visto na Provença que onde quer que houvesse centros de culto a Maria Madalena havia,
normalmente, locais associados a João Batista. Como os cátaros pareciam tê-la em alta conta, então
talvez eles também demonstrassem a mesma reverência para com o Batista. Muito pelo contrário,
porém, os cátaros pareciam sentir total repugnância para com o Batista, a ponto do descrevê-lo como
sendo um 'demônio'. Essa repugnância vem diretamente dos bogomilos, alguns destes se referindo a ele
(de um modo um tanto confuso) como 'o precursor do anticristo'.
Um dos poucos textos santos remanescentes dos cátaros é o Livro de João, também conhecido como
Liber Secretum, que é uma versão gnóstica do Evangelho de um João completamente diferente: grande
parte é exatamente igual ao Evangelho canônico, porém, contém algumas 'revelações' extras
pretensamente dadas pessoalmente a João, o 'Discípulo Amado'. Foram essas idéias de caráter dualista e
gnóstico que concorreram para a formação da teologia geral dos cátaros.
Nesse livro, Jesus diz a seus discípulos que João Batista, na verdade, era o emissário de Satanás (o Deus
do mundo material), enviado com o intuito de antecipar-se à sua missão redentora. Esse texto era
originalmente dos bogomilos e não foi totalmente aceito, nem pelos cátaros, nem por todos os
bogomilos. Muitos membros de outras facções dos cátaros se entretinham com idéias bastante mais
ortodoxas sobre João, e existem sinais de que, na verdade, os bogomilos dos Bálcãs realizavam um
ritual comemorativo todo 24 de junho.
O certo é que os cátaros tinham uma consideração especial para com o Evangelho de João, que no geral
é tido pelos eruditos como sendo o mais gnóstico dos textos do Novo Testamento. (Em círculos ocultos
vicejam rumores de que os cátaros tinham uma outra versão, hoje perdida, do Evangelho de João.
Muitos ocultistas vasculharam a região ao redor de Montségur na esperança de encontrá-lo, sem sucesso
porém).
Está claro que os cátaros tinham idéias pouco ortodoxas, mesmo que um tanto confusas, sobre João
Batista. Mas havia alguma coisa de verdadeiro em seu conceito de um João mau e um Jesus bom?
Talvez não muito, mas, como sugerem vários comentadores contemporâneos, a relação entre esses dois
homens pode não ter sido tão claramente definida quanto a maioria dos cristãos é levada a acreditar.
Essa idéia dos cátaros pode representar o caráter dualista de sua filosofia, do modo mais simplista
possível: um dos dois é o bem e o outro é o mal. Nesse caso, entretanto, a conclusão lógica é que eles os
consideraram iguais porém opostos. Os cátaros, portanto, deviam vê-los como rivais, o que não é de
forma alguma uma visão cristã tradicional. E isso demonstra que dúvidas desconcertantes sobre o
suposto apoio de João à missão de Jesus já existiam há muito tempo naquela região. Assim como a
relação de Madalena com Jesus, a de João e Jesus parece compreender uma versão radicalmente
diferente daquela ensinada pela Igreja.
Buscar nos cátaros uma confirmação da importância da figura de João para os movimentos heréticos é
trilha certa para a decepção, ao menos superficialmente. Mas há uma organização historicamente
bastante significativa que mais do que contrabalança esse desapontamento. Estamos falando, é claro,
dos cavaleiros templários, para quem João Batista sempre foi, inexplicavelmente, objeto de grande
devoção. E do mesmo modo que a cruzada contra os cátaros deixou uma marca traumática indelével na
paisagem do Languedoc, assim também os castelos desses cavaleiros enigmáticos ainda apontam entre
brancas névoas nos recônditos mais remotos daquela zona rural.
Os templários hoje tornaram-se uma espécie de clichê esotérico, como bem sabe qualquer um que esteja
familiarizado com a ficção de Umberto Eco, e a maioria dos historiadores não sente nem um pingo de
remorso sequer ao tratar com absoluto desdém qualquer coisa que chame atenção para seus 'segredos'.
No entanto, qualquer mistério que esteja conectado com o Monastério de Sion também envolve esses
monges-guerreiros, e, portanto, são uma parte inerente desta investigação.
Um terço de todas as propriedades dos templários na Europa se encontrava no Languedoc. Suas ruínas
contribuem para tornar ainda mais bela essa região selvagem. Uma das lendas locais mais pitorescas é a
de que todo 13 de outubro que caía em uma sexta-feira (o dia do mês e da semana em que a Ordem foi
suprimida de forma súbita e brutal) faz com que apareçam luzes estranhas nas ruínas, além de negras
figuras que podem ser vistas se movendo dentro delas. Infelizmente, nas sextas-feiras que passamos
naquela região, não vimos nem ouvimos nada além do que o alarmante grunhido de javalis selvagens.
Ao menos essa história demonstra o quanto os templários se tornaram parte da lenda local.
Os templários mantiveram-se vivos na memória dos habitantes locais, através de recordações que não
são de forma alguma negativas. Mesmo em nosso século, ainda encontramos vestígios que atestam isso,
como nos conta a famosa cantora de ópera Emma Calvé, nascida na região de Aveyron, no norte do
Languedoc. Emma registrou em suas memórias que o povo local, quando queria dizer que um menino
era especialmente bonito ou inteligente, usava o seguinte dito popular: 'Ele é um verdadeiro filho dos
templários'.
Os principais fatos relativos aos cavaleiros templários são bastante simples. Oficialmente denominados
como A Ordem dos Cavaleiros Pobres do Templo de Salomão, a ordem foi formada em 1118 pelo nobre
francês Hugues de Payens, para servirem de escolta dos peregrinos que se dirigiam para a Terra Santa.
Nos primeiros nove anos eram apenas nove cavaleiros. Então a Ordem foi reconhecida oficialmente e
logo se estabeleceu como uma força a ser levada em consideração, não só no Oriente Médio como
também em toda a Europa.
Depois do reconhecimento da Ordem, o próprio Hugues de Payens empreendeu uma viagem através da
Europa, solicitando, à realeza e à nobreza, terras e dinheiro. Em 1129 visitou a Inglaterra, onde fundou a
primeira sede dos templários naquele país, no lugar onde hoje está a estação Holborn do metrô londrino.
Como todos os outros monges, os cavaleiros fizeram voto de pobreza, castidade e obediência. Mas eles
eram homens do mundo e assim empunhavam sua espada sempre que fosse necessário lutar contra os
inimigos de Cristo. A imagem dos templários vinculou-se, de forma inseparável, à das cruzadas, que
foram organizadas para expulsar o infiel de Jerusalém, mantendo-a cristã.
O Conselho de Troyes reconheceu oficialmente os templários como uma ordem religiosa e militar, em
1128. A figura principal por trás dessas operações era Bernard de Clairvaux, o cabeça da Ordem de
Cister, que tempos depois seria canonizado. Mas como escreve Bamber Gascoigne:

Ele era agressivo e abusivo... e era um político trapaceiro e sem qualquer escrúpulo nos métodos
que utilizava a fim de derrubar seus inimigos.

Foi Bernard quem escreveu a Regra dos Templários, baseada na dos cistercienses, e foi um de seus
protegidos, na posição de Papa Inocêncio II, quem declarou, em 1139, que os templários, dali em
diante, só responderiam diretamente ao papado. Como os templários e a Ordem de Cister desenvolviam-
se em paralelo, podemos inferir que havia uma certa e deliberada coordenação entre eles. Por exemplo,
o Conde de Champagne, senhor de Hugues de Payens, doou a Bernard as terras de Clairvaux, onde
então construiu seu 'império' monástico. E é bastante significativo que André de Montbard, um daqueles
nove Cavaleiros que fundaram a ordem, fosse tio de Bernard. Chegou-se a sugerir que os templários e
cistercienses agiam em comum acordo por meio de um plano pré-organizado, a fim de assumir o
domínio sobre a cristandade, mas o esquema não vingou.
Dificilmente exageraríamos ao falarmos do prestígio e do poder financeiro dos templários no período
em que sua influência na Europa estava no auge. Praticamente não havia nenhuma área civilizada
importante onde eles não tivessem uma preceptoria, como atestam, por exemplo, vários locais
espalhados pela Inglaterra, como o Templo da Fortuna, o Templo da Barra (Londres) e o Templo das
Pradarias (Bristol). Porém, à medida que seu império se espalhava, crescia também sua arrogância, o
que fez com que suas relações com as autoridades principais começassem a se envenenar.
A riqueza dos templários em parte resultava de sua Regra: todos os novos membros deviam entregar
todas as propriedades à Ordem, além de amealharem uma fortuna considerável por meio de volumosas
doações de terra e dinheiro de muitos reis e nobres. Seus cofres logo ficaram abarrotados também
devido ao fato deles terem desenvolvido uma impressionante astúcia financeira, o que fez com que se
tornassem os primeiros banqueiros internacionais, cujas avaliações de crédito serviam de parâmetro para
todos os outros financistas. Com certeza esse era um meio seguro para se estabelecerem como um dos
principais centros de poder. Em um período bastante curto o título de 'Cavaleiros Pobres' tornou-se uma
piada, embora seus soldados permanecessem bem pobres.
Além de sua incrível riqueza, os templários também eram conhecidos por sua habilidade e coragem no
campo de batalha, chegando às vezes a serem até temerários. Tinham regras específicas que
determinavam sua conduta como combatentes: era-lhes, por exemplo, proibido render-se, a menos que o
inimigo estivesse em vantagem numérica de pelo menos três para um, e mesmo assim deviam antes
obter a permissão de seu superior. Eles eram os Serviços Especiais daquela época, uma tropa de elite
com Deus (e o dinheiro) a seu lado.
Apesar de todos os esforços, a Terra Santa foi dominada pelos sarracenos, pedaço por pedaço, até que,
em 1291, o último território ainda em poder do mundo cristão, a cidade de Acre, fosse tomada por mãos
inimigas. Não havia mais nada que os templários pudessem fazer a não ser voltar à Europa e planejar a
eventual reconquista de Jerusalém. Infelizmente, porém, até mesmo a motivação para uma campanha
como essa havia desaparecido da mente dos vários reis que poderiam financiá-la. A principal razão de
sua existência havia se reduzido a um grande nada. Desempregados, mas ainda ricos e arrogantes,
tinham contra si um ressentimento generalizado, pois estavam isentos de tributação e deviam submissão
apenas ao Papa.
Assim, em 1307, eles, inevitavelmente, caíram em desgraça. O todo-poderoso Rei francês, Filipe, o
Belo, começou a orquestrar a queda dos templários, com a devida conivência do Papa, que de qualquer
forma era alguém que Filipe tinha no bolso. Foram emitidas ordens secretas aos representantes
aristocráticos do rei, e os templários foram reunidos numa sexta-feira, no dia 13 de outubro de 1307,
sendo então presos, torturados e queimados.
Pelo menos, é essa a história que se conta na maioria das obras relativas a esse assunto. Essas obras nos
levam a entender que a Ordem, toda ela, conheceu sua horrível destruição final naquele exato dia, e que
os templários foram efetivamente varridos da face da terra, para sempre. Contudo, a verdade não é
absolutamente essa.
Para começar, apenas alguns poucos templários foram de fato executados, embora a maioria dos que
foram capturados fossem 'submetidos a interrogatório' , um bem conhecido eufemismo para designar
uma tortura excruciante. Relativamente poucos enfrentaram a fogueira, embora o Grão Mestre Jacques
de Molay tenha sido 'assado' lentamente até a morte na Île de la Cité, à sombra da Catedral de Notre-
Dame, em Paris. Dos outros milhares de templários, apenas aqueles que se recusaram a confessar, ou
renegaram suas confissões, foram executados. Mas que validade poderiam ter essas confissões obtidas
através de ferros em brasa e do aperto de parafusos das máquinas de tortura? E o que exatamente era
esperado que eles confessassem?
O relato das confissões dos templários são bastante pitorescas, para dizer o mínimo. Lemos que eles
adoravam um gato, ou se compraziam em orgias homossexuais como parte de seus deveres
cavalheirescos, ou veneravam um demônio conhecido como Baphomet e/ou uma cabeça decapitada.
Também foi dito que eles haviam pisoteado e batido na cruz em um rito de iniciação.Tudo isso, é claro,
era para fazer parecer um total absurdo a idéia de que eles eram Cavaleiros dedicados a Cristo,
verdadeiros sustentáculos do ideal cristão. Quanto mais eles eram torturados, mais aparente ficava essa
divergência.
Isso não causa surpresa: não são muitas as vítimas de tortura que conseguem retesar os próprios dentes e
recusar-se a concordar com as palavras que são colocadas em suas bocas por seus algozes. Nesse caso,
contudo, existem muito mais coisas do que parece haver à primeira vista. Por um lado, houve
insinuações de que todas as acusações levantadas contra os templários eram fraudulentas, manipuladas
por aqueles que invejavam sua riqueza e exasperavam-se com o poder que tinham. Estes, então,
tramaram uma boa desculpa para que o rei francês pudesse se livrar das dificuldades econômicas
vigentes apropriando-se da enorme riqueza dos templários. Por outro lado, embora as acusações
pudessem não ser estritamente verdadeiras, existem evidências de que os templários estavam metidos
com algo misterioso, talvez algo 'negro' no sentido oculto do termo. Claro está que essas duas visões não
são, necessariamente, mutuamente exclusivas.
Muita tinta já foi gasta com argumentações sobre as acusações feitas contra os templários, e as
conseqüentes confissões. Teriam eles realmente cometido todos os atos que confessaram, ou os
inquisidores inventaram previamente as acusações e, então, simplesmente torturaram os cavaleiros até
que eles concordassem em confessá-las? (Alguns cavaleiros, por exemplo, testemunharam afirmando
que haviam dito que Jesus era um 'falso profeta'.) É impossível adotar conclusivamente qualquer uma
das hipóteses.
Há, entretanto, ao menos uma confissão em particular que nos faz parar e refletir. É a confissão de um
certo Fulk de Troyes, que disse que os templários lhe mostraram um crucifixo e lhe disseram: 'Não
coloque tanta fé nisso, pois é algo muito recente'. Parece haver pouca probabilidade dessa declaração
enigmática ter sido formulada por um inquisidor, dada a pouca educação histórica vigente na época.

É certo que o Monastério de Sion afirma ser o poder criador que estava por trás do surgimento dos
cavaleiros templários: se esse é o caso, então esse é um dos segredos mais bem guardados da história.
Mesmo assim, dizem que as duas ordens eram virtualmente a mesma, até o momento do cisma em 1188,
depois do qual seguiram caminhos separados. E na verdade parece ter havido algum tipo de conspiração
relacionada com o surgimento dos templários. O bom senso sugere que deve ter sido necessário mais do
que os nove cavaleiros originais para proteger e prover refúgio a todos os peregrinos que iam visitar a
Terra Santa, e ainda por cima durante nove anos; além disso, há muito pouca evidência de que eles
tenham feito qualquer tentativa séria de realizar tal escolta. Os templários logo se transformaram nos
queridinhos da Europa, tendo recebido privilégios e honras totalmente desproporcionais em relação ao
que realmente mereciam. Por exemplo, foi-lhes concedido uma ala inteira do palácio real, em Jerusalém,
um lugar que antes fora uma mesquita. Por sua vez, foi dito, erroneamente, que tal palácio havia sido
construído sobre as fundações do Templo de Salomão, de onde os templários tiraram seu nome oficial.
Outro mistério relacionado aos inícios dos templários centra-se no fato de haver evidências de que a
Ordem de fato já existia bem antes de 1118, embora o motivo de a data ter sido falsificada permaneça
obscuro. Muitos comentadores sugeriram que o primeiro relato conhecido sobre a criação dos
templários, de William de Tiro, que o escreveu há cerca de cinqüenta anos após o evento, era
simplesmente uma história para despistar. (Embora William fosse profundamente hostil ao templários,
presume-se que ele estava recontando a história conforme seu entendimento.) Uma vez mais, porém,
podemos apenas especular sobre qual era o motivo para tal tentativa de despistamento.
Hugues de Payens e seus nove companheiros vieram todos ou de Champagne ou, inclusive, do
Languedoc, Condado da Provença, e é certo que eles foram à Terra Santa com uma missão específica
em mente. Talvez, como já se sugeriu, estivessem à procura da Arca da Aliança ou de algum outro
tesouro antigo ou mesmo de documentos que pudessem conduzi-los a isso ou a algum tipo de
conhecimento secreto que lhes desse domínio sobre as pessoas e suas riquezas. Recentemente,
Christopher Knight e Robert Lomas argumentaram em seu livro The Hiram Key, que os templários
buscaram e encontraram o esconderijo de documentos que tinham a mesma origem dos Manuscritos do
Mar Morto. No entanto, tão intrigante quanto possa ser tal sugestão, ela não fornece qualquer evidência
convincente e, como veremos, a questão relacionada às origens dos Manuscritos do Mar Morto está
repleta de concepções erradas e míticas. Existem, porém, evidências reais de que os templários
buscavam obter novos conhecimentos dos árabes e dos outros povos que encontravam em suas viagens.
Para nós uma das coisas mais fascinantes sobre os templários é a forte e incomum reverência a João
Batista, que parece ser para eles muito mais importante do que teria sido um mero santo protetor. O
Monastério de Sion, que uma vez fora, como afirmam, inseparável dos templários, chama todos os seus
Grão-Mestres de 'João', quem sabe em reverência ao Batista. No entanto, é totalmente impossível
descobrir a razão de tal submissão, por parte dos templários, em quaisquer das obras a eles dedicadas; a
explicação habitual é a de que João lhes era especial por ter sido professor de Jesus. Alguns sugeriram
que a cabeça decapitada que alguns afirmam ter sido fonte de veneração dos templários era a do próprio
Batista. Porém, tal adoração a um totem como esse implica em ver os templários como sendo algo muito
diferente do que simples cavaleiros cristãos.
Até mesmo muito de seu simbolismo, aparentemente ortodoxo, esconde específicas insinuações a 'João'.
Por exemplo, o Cordeiro de Deus era uma de suas imagens mais importantes. A maioria dos cristãos o
tomam como sendo Jesus - o Batista tendo dito aparentemente referindo-se a ele: 'Eis o Cordeiro de
Deus' - mas em muitos lugares, como as partes ocidentais da Grã-Bretanha, esse símbolo é utilizado
como referência ao próprio João, e para os templários também parece ser esse o significado. O símbolo
Cordeiro de Deus foi adotado pelos templários em seu selo oficial; esse selo era específico da Ordem no
sul de França.
Uma pista de que a reverência dos templários para com João Batista não era uma simples questão de
prestar homenagem ao seu santo protetor, mas que na verdade ocultava algo muito mais radical, pode
ser encontrada na obra de um padre erudito chamado Lambert de St Omer. Lambert estava associado a
Godefroi de St Omer, um dos nove cavaleiros fundadores e o segundo em comando das forças de
Hugues de Payens. Em The Hiram Key, Christopher Knight e Robert Lomas reproduzem uma ilustração
de Lambert retratando 'a celestial Jerusalém' , e observam que ela:

...aparentemente mostra o fundador [da celestial Jerusalém] como sendo João Batista. Não há
nenhuma menção a Jesus nesse, assim chamado, documento cristão.

Como no simbolismo das pinturas de Leonardo, a conclusão é que João, o Batista, é importante por si
mesmo, e não meramente em decorrência de seu papel como precursor de Jesus.
Dois anos depois das prisões em massa, enquanto os cavaleiros ainda estavam sendo julgados, o catalão
visionário e ocultista Ramon Lull (1232-c.1316), anteriormente um leal partidário da Ordem, escreveu
que os julgamentos revelavam as 'ameaças à barca de São Pedro', e acrescentou:

Existem, talvez, muitos segredos no cristianismo, dentre os quais há um (em particular) capaz de causar
uma incrível revelação, assim como aquele (que está) emergindo através dos templários... tal pública e
manifesta infâmia pode por si mesma colocar em perigo a barca de São Pedro.

Lull parece não só estar se referindo aos perigos para a Igreja causados pelas revelações sobre os
templários, como também a outros segredos, de igual magnitude. Ele também parece aceitar as
acusações levantadas contra a Ordem, embora, àquela altura dos fatos, não fosse uma idéia muito
inteligente colocá-las em questão.
Poderia o Languedoc, que foi o local de maior concentração de templários na Europa, fornecer alguma
pista que nos levasse à verdade sobre a Ordem? Ainda hoje, após tanto tempo, essa região conta com
muitas recordações persistentes, e continua a ser saudavelmente desatenta em relação ao convencional.
Como vimos, os cátaros e os templários floresceram aqui e ao mesmo tempo, mas posto o que
geralmente é entendido como seus valores relativos, parece que esses dois grupos altamente influentes
deveriam estar em lados opostos. Realmente, a cruz vermelha sobre um fundo branco, símbolo dos
templários, é com freqüência vista como um símbolo tipicamente pertencente às cruzadas. Porém,
existem muitas indicações de que os templários eram, senão ativamente apoiados, vistos com certa
simpatia pelos 'hereges' das montanhas, e é incontestável que os templários se notabilizaram por sua
ausência na cruzada dos albigenses. Os cavaleiros admitiam abertamente que seu interesse primário na
ocasião estava na longínqua Terra Santa, além de muitos deles terem saído das mesmas famílias que os
cátaros, mas nenhuma dessas razões pode explicar totalmente a falta de interesse dos templários em sair
ao encalço dos cátaros.
Quais eram, porém, os verdadeiros interesses e motivações dos templários? Eles eram apenas os
monges-guerreiros que afirmavam ser, ou havia algo de secreto em seus planos, uma outra dimensão
oculta?

CAPÍTULO V
Guardiães do Graal

A corrente acadêmica afirma que idéias ‘ocultistas’ sobre os templários são apenas tolice: a maioria dos
historiadores atesta que eles eram apenas e tão-somente os monges-guerreiros que afirmavam ser, e
qualquer insinuação que se faça de que eles estavam, mesmo que remotamente, envolvidos em qualquer
coisa esotérica é resultado de fértil imaginação ou de pesquisa mal conduzida. Sendo isso um consenso,
os historiadores que têm algum interesse nesse aspecto da Ordem não o demonstram abertamente por
temerem perder suas reputações (e os fundos de pesquisa acadêmica). Tal tipo de pesquisa ou é evitada
ou, se levada a cabo, permanece inédita. (Há vários historiadores de renome que reservadamente
reconhecem que o aspecto esotérico dos templários é importante, mas nunca o dirão publicamente).
Essa atitude fez com que se negligenciasse o estudo de alguns locais importantes relacionados com os
templários. E descobrimos que a região que foi a maior vítima desse fenômeno, a um grau que beira a
mistificação, é a área de nosso maior interesse: o Languedoc-Roussillon. Sem contar a Terra Santa, essa
era a pátria da Ordem. Mais de 30 por cento de todas as fortalezas e edificações templárias em toda a
Europa ficavam nessa pequena região. Contudo, apenas um volume desprezível de trabalho
arqueológico foi lá realizado, e existem várias localizações importantes que não mereceram qualquer
investigação.
Felizmente a negligência oficial é contrabalançada por muitos pesquisadores privados que têm um
interesse apaixonado por esses misteriosos cavaleiros, e muitos dos moradores locais vêem como seu
dever preservar e proteger os antigos locais relacionados com os templários. Há também vários
'amadores' (no sentido de que eles não são bancados por fundos de pesquisa) e organizações de
pesquisa, como o Centro de Estudos e Pesquisa dos Templários, dirigido por Georges Kiess, em
Espéraza (Aude), de excelente qualidade. As descobertas feitas por esses entusiastas, através do estudo
tanto dos locais quanto dos muitos documentos relativos aos templários, que estão intactos e
armazenados em arquivos locais, são impressionantes. Especialmente dada a falta de recursos oficiais e
a completa frustração de lidar com arquivistas apáticos.
Um desses grupos de pesquisa é o Abraxas, dirigido pelo britânico expatriado Nicole Dawe e pelo
texano Charles Bywaters, na estância hidromineral de Rennes-les-Bains, Aude. Suas pesquisas, em
conjunto com as da rede de grupos semelhantes, realizaram descobertas sólidas e documentadas que,
literalmente, reescrevem os estudos dedicados aos templários. Nadando contra a maré da apatia oficial,
por um lado, e, por outro lado, tentando controlar o entusiasmo extremo dos caçadores de tesouro
locais, que representam uma ameaça bastante real aos sítios arqueológicos de pesquisa, Nicole e
Charles descobriram locais fundamentais relativos aos templários que, no entanto, nunca haviam sido
tocados pelas pás dos arqueólogos. Grande parte de seus trabalhos ainda permanece inédito, embora
eles planejem publicá-los em um futuro próximo.
Portanto, se quisermos saber mais sobre a vida dos templários, nesse berço da heresia que é o
Languedoc-Roussillon, não devemos procurar os centros acadêmicos, mas sim Charles e Nicole.
Sentados no apartamento de Charles em Rennes-les-Bains, localizado na rua principal (na verdade
praticamente a única), começamos perguntando a ele e a Nicole sobre a possível conexão entre os
templários e os cátaros.
. Eles responderam que havia claras ligações entre os dois grupos e que essas foram bem além de meros
laços familiares, os quais eram geralmente negligenciados pelos historiadores. Por exemplo, até mesmo
no auge da cruzada dos albigenses, os templários abrigaram cátaros fugitivos, e existem exemplos
documentados de que também prestaram socorro aos cavaleiros que abertamente lutaram ao lado dos
cátaros contra os cruzados.
Como disse Nicole:

Você só precisa cruzar os sobrenomes cátaros dos documentos da Santa Inquisição com os nomes dos
templários do mesmo período para perceber que são os mesmos. No entanto, mais particularmente, é
inegável que algumas edificações dos templários alojaram, deram abrigo, e até mesmo enterraram os
cátaros em chão sagrado.
Alguns têm sido cínicos a ponto de sugerir que isso ocorreu porque essas pessoas, a fim de se tornarem
membros seculares do Templo, doaram-lhes todas as suas posses e bens. Na verdade, temos provas de
cátaros que se socorreram junto aos templários depois de terem perdido completamente tudo o que
possuíam, e não só foram recolhidos em determinados abrigos, como lá foram enterrados ao morrerem.
Mais tarde, os templários algumas vezes faziam o que estivesse ao seu alcance para assegurar às família
cátaras, ou a seus descendentes, que tivessem suas terras de volta.

Charles prosseguiu:

Em uma área em particular, os templários, claramente, permitiram que houvesse atividade hostil
partindo de suas edificações. Os cavaleiros cátaros continuavam a lutar, e quando se retiravam seguiam
para uma propriedade dos templários. Esses fatos estão fartamente documentados.

Isso representava algo bastante significativo para nós porque, dado que algumas das acusações
levantadas contra os templários foram indubitavelmente forjadas, a única coisa não usada como
evidência contra eles foi a íntima relação que mantinham com os cátaros desterrados. Que a Inquisição
estava completamente ciente desse fato é revelado pelas escavações que fez nas propriedades
templárias, desenterrando os corpos dos cátaros a fim de queimá-los e dessa forma intimidar outros
possíveis hereges, mesmo já tendo se passado mais de trinta anos desde o final da Cruzada. (E foi a
Inquisição que torturou os templários, portanto, se alguém sabia da conexão destes com os cátaros, esse
alguém era a própria Santa Inquisição.) Era óbvio que havia mais coisas acontecendo, talvez até mesmo
algo que fosse do conhecimento da Coroa Francesa, mas era algo considerado tão perigoso se fosse
tornado público que nem uma palavra sobre esse assunto veio à tona. Durante toda a nossa pesquisa
sobre os templários tivemos o desconfortável - e crescente - sentimento de que algum segredo
monumental estava à espreita, abaixo da superfície da história oficial. Poderia ser que os templários e
os cátaros compartilhassem algum conhecimento potencialmente explosivo? E esse segredo poderia ter
sido o real motivo de Filipe, o Belo, ter arquitetado essa muito bem planejada campanha contra os
templários?
Nem todos os templários pereceram naquela sexta-feira fatídica do século XIII. Há muitos permitiu-se
que vivessem e recomeçassem usando um outro nome. Dois países em particular ofereceram moradias
seguras para os cavaleiros fugitivos, a Escócia e Portugal. (Neste último, os templários tornaram-se
conhecidos como os Cavaleiros de Cristo.) A região ao redor do Languedoc, aprendemos com Charles
e Nicole, foi testemunha de uma curiosa exceção no padrão geral empregado na perseguição. Roussil-
lon, parte leste da região, na verdade vivia sob proteção do reino espanhol de Aragon, enquanto o norte,
que incluía Carcassonne, fazia parte da França. Os Templários de Roussilion foram presos, julgados e
inocentados. Quando o Papa fechou oficialmente a Ordem, eles ou se juntaram a outras fraternidades
semelhantes ou passaram o resto das vidas em suas terras, vivendo de pensão.
Como sugeriram vários comentadores, os templários sobreviveram à tentativa de exterminá-los
totalmente e continuaram existindo até hoje em dia, embora haja evidências de que eles sofreram
muitos cismas e operaram através de diferentes organizações, todas afirmando ser descendentes diretas
da Ordem original.
Se os templários estivessem escondendo algo que fosse julgado extremamente perigoso pelo rei francês,
a ponto de fazê-lo tomar uma ação drástica contra eles, o que poderia ser? Quem estava usando quem
entre o Papa e Filipe? De qualquer ângulo que vejamos essa história, parece que um elo crucial está
faltando.
Suponha que esse componente evasivo fosse do interesse do Monastério de Sion. Como já vimos,
existem indicações de uma presença sombria por trás do próprio surgimento dos templários, e esse
mesmo grupo de manipuladores (quem quer que eles fossem) parecia dirigir as cenas conforme sua
vontade. Charles e Nicole não têm nenhuma dúvida sobre a existência de um 'círculo secreto'
organizado dentro da própria liderança dos templários, o qual ante datou o início oficial da Ordem. Eles
assim prosseguem até o ponto de argumentar que o movimento templário fora criado para dar a esse
círculo secreto uma face pública, na mesma época em que a Terra Santa fora aberta aos viajantes
europeus.
Outros pesquisadores também chegaram à mesma conclusão. Como o escritor francês Jean Robin
(utilizando-se das pesquisas de Georges Cagger) afirma:

A Ordem do Templo constituía-se na verdade de sete círculos 'externos', dedicados aos mistérios
secundários, e de três círculos 'internos', correspondendo à iniciação nos grandes mistérios. E o 'núcleo'
era composto por aqueles setenta templários 'interrogados' por Clemente V [após terem sido presos em
1307].

De modo semelhante, no seu The Sign and the Seal, o autor britânico Graham Hancock escreve:

...a pesquisa que eu havia conduzido sobre as crenças e comportamentos desse estranho grupo de
monges-guerreiros, convenceram-me de que eles haviam deparado com alguma tradição de sabedoria
sumamente antiga...

Constituir um grupo interno secreto era algo bastante possível, pois os templários eram, essencialmente,
uma escola de mistério, isso é; eles operavam como um sistema hierárquico que se baseava na iniciação
e no segredo. É, portanto, bastante provável que não só os templários de patente rasa soubessem
consideravelmente menos do que seus superiores, como que as crenças desses últimos fossem bastante
diferentes. É provável que a maioria dos cavaleiros templários não fosse mais do que os simples solda-
dos cristãos que aparentavam ser. O círculo secreto, porém, era algo muito diferente.
A razão da existência do círculo secreto dos templários parece ter sido a de acelerar o avanço das
pesquisas sobre questões esotéricas e religiosas.
Talvez uma das razões para que se mantivessem em segredo fosse o fato de lidarem com aspectos
enigmáticos relacionados aos mundos judeu e islâmico. Eles buscavam, literalmente, os segredos do
universo, onde quer que suspeitassem que poderiam ser encontrados, e em sua rota geográfica e
intelectual de incessantes questionamentos talvez viessem a tolerar, e até mesmo a abraçar, algumas
crenças não muito ortodoxas.
Naqueles dias, a busca incessante de conhecimento deve ter sido uma força motriz particularmente forte
e irresistível. Os templários, porém, não se interessariam de vontade própria por essas complexas
pesquisas, afinal eles eram pessoas intrinsecamente práticas. Quando seguiam uma linha de pesquisa em
particular, era por uma razão muito boa e, por causa disso, deixaram certas pistas sobre o que realmente
importava para eles.
Uma dessas pistas encontra-se nas obsessões de Bernard de Clairvaux, éminence grise (Eminência
parda) dos templários. Esse ferino monge intelectual aparentemente devotava-se totalmente à Virgem
Maria, como bem mostram muitos de seus sermões. No entanto, parece-nos que a Virgem não era objeto
do verdadeiro amor espiritual de Bernard. Era uma Maria completamente diferente, cuja real identidade
é sugerida pelo fato dele ter sido particularmente apaixonado pelas Madonas Negras. Também chegou a
escrever quase noventa sermões sobre o Cântico dos Cânticos, e pregou de modo muito mais explícito
ligando a 'Noiva' a Maria de Betânia, que naquela época era inquestionavelmente a própria Maria
Madalena.
'Sou negra, mas graciosa', diz a amante, uma frase que também une o Cântico dos Cânticos ao culto das
Madonas Negras, a quem Bernard (que nasceu em Fontaines perto de Dijon, lugar central do culto das
Madonas Negras) era excepcionalmente dedicado. Ele afirmou ter recebido sua inspiração como uma
criança que recebe três gotas do leite milagroso do peito da Madona Negra de Chântillon. Especulou-se
que isso era uma referência codificada à iniciação dele, Bernard, ao culto das Madonas. E quando
Bernard rezou pela Segunda Cruzada, escolheu fazê-lo em Vézalay, centro fundamental ao culto de
Maria Madalena.
Então, é provável que a aparente devoção de Bernard para com a Virgem fosse simplesmente uma
cortina de fumaça para sua verdadeira paixão por Madalena, embora, é claro, as duas não sejam
mutuamente exclusivas. Contudo, ao criar a Regra dos Templários, Bernard recomendou que os
cavaleiros prestassem 'obediência a Betânia e ao castelo de Maria e de Marta'. E ele é bem conhecido
por ter repassado tal devoção particular à Ordem. Até mesmo em face da total extinção, os cavaleiros
aprisionados com o Grão-Mestre Jacques de Molay, nas masmorras da fortaleza de Chinon,
compuseram uma oração dedicada a 'Notre Dame' (Nossa Senhora) na qual mencionam São Bernardo
como fundador da religião da Santificada Virgem Maria. Em face, porém, de todas as outras evidências,
essa também pode ter sido uma outra referência codificada ao culto de Madalena.
É bastante significativo que o juramento dos templários fosse a 'Deus e a Nossa Senhora', Ou com
freqüência a 'Deus e a Santa Maria'. Alguns insinuam que a 'Nossa Senhora' do juramento não é a
Virgem, o que é reforçado pelas palavras da Absolvição dos Templários: 'eu peço a Deus que perdoe os
meus pecados, como perdoou os de Santa Maria Madalena e os do ladrão que foi pregado na cruz'. Isso
pelo menos demonstra a importância de Madalena para os templários. (É notável que no caso dos
templários de Roussillon, durante seu cativeiro, as condições em que se encontravam fossem deliberada
e especificamente pioradas - por ordem do próprio Papa - no exato dia em que se comemorava Santa
Maria Madalena. Lembremos que o massacre de Béziers também aconteceu no dia das festividades a
Madalena para deixar bem claro a natureza da 'heresia'.)
Na realidade, os templários estavam preocupados com a idéia do Feminino como um todo, um conceito
que pode parecer estar seriamente em conflito com sua imagem de guerreiros. Contudo, como Charles e
Nicole descobriram, a Ordem do Templo incluía mulheres. Durante os primeiros anos de sua existência
muitas mulheres fizeram o juramento da Ordem, embora tenham permanecido como membros seculares
do Templo. Embora não haja nenhuma indicação de que havia um enclave de rainhas guerreiras dentro
da Ordem dos Templários, como afirmaram Michael Baigent e Richard Leigh em The Temple and the
Lodge (1989):

... um antigo relato do século XII, na Inglaterra, fala de uma mulher que é recebida no Templo como
uma Irmã, e insinua de modo bastante claro haver algum tipo de ala ou anexo feminino na Ordem.
Contudo, nenhuma elaboração ou esclarecimento foi encontrado sobre esse assunto. Mesmo tal
informação, que poderia estar contida nos registros oficiais da Inquisição, já há muito tempo
desapareceu ou foi suprimida.

Nicole e Charles, partindo de estudo profundo dos documentos dos templários, são bem mais enfáticos:

Se você voltar aos documentos do século XII, verá que há inúmeros exemplos de mulheres que haviam
se juntado à Ordem, com certeza em seu primeiro século de existência. Qualquer pessoa que ingressasse
na ordem deveria em juramento 'dar minha casa, minhas terras e meu corpo e alma à Ordem do Templo'.
Você tem os nomes de mulheres no término desses documentos, assim como de homens também, e você
tem com freqüência casais que ingressavam em conjunto e, portanto, as mulheres também deveriam
fazer o juramento. Esses documentos são principalmente dessa região [o Languedoc], e existem muitos
exemplos que demonstram que deve ter havido um número bastante grande de mulheres envolvidas em
determinada época.

Os documentos também indicam que houve uma mudança posterior nas regras, naquelas que
especificamente proibiam que os templários tivessem mulheres, ficando subentendido que até aquele
momento eles haviam procedido em conformidade com a regra.
Quando expressamos nossa surpresa quanto a isso não ser mais amplamente conhecido, e certamente,
tirando algumas vagas sugestões, o envolvimento das mulheres não aparecer nas obras comuns
dedicadas aos templários, Charles explicou:

Às vezes parece que muitas dessas informações foram intencionalmente negligenciadas. O que você
obtém nos livros é um punhado de informações redundantes, a mesma coisa repetida inúmeras vezes.
Isso faz com que tenhamos apenas duas opções possíveis: ou essas pessoas são cegas ou por alguma
razão muito específica elas não estão interessadas naquelas informações. Se você é um pesquisador, o
que supostamente essas pessoas são, essas informações deveriam faze-los saltar. Porém, elas nem sequer
levam isso em consideração.

É notável que o arrastão geral de 13 de outubro de 1307 ocorresse sem derramamento de sangue. Por
toda a França, os senescais do rei receberam ordens lacradas que lhes ordenavam que organizassem
tropas suficientes para prender os mais bem treinados guerreiros da cristandade, algo como uma
delegacia de polícia receber ordens para prender tropas da Polícia do exército estacionadas na região.A
maioria dos templários na França parece ter sido levada como cordeiros para o matadouro. É estranho
que os cavaleiros não tenham pedido reforços de fora da França.
De modo significativo, alguns dos cavaleiros, inclusive o tesoureiro da Ordem, conseguiram escapulir,
de um modo que indica que eles teriam sido avisados com antecedência. Além disso, a famosa frota dos
templários, fundeada na França, simplesmente desaparecera naquele momento. Em todos os registros
das pilhagens dos templários pelo rei francês, não há um único navio listado. Onde a frota foi parar?
Dificilmente teria desaparecido no ar.
O círculo secreto dos templários, porém, parece ter caminhado grandes distâncias a fim de preservar seu
conhecimento secreto. Como o respeitado estudioso do Novo Testamento, Hugh Schonfield,
demonstrou, os templários utilizaram um código conhecido como a Cifra de Atbash. Isso é algo
verdadeiramente notável pois esse mesmo código havia sido usado pelos autores de alguns dos
Manuscritos do Mar Morto mil anos antes da fundação da Ordem dos Templários. O que quer que isso
signifique, por si só já revela que os templários eram peritos em manter seus segredos através dos mais
engenhosos meios, além de mostrar que seus conhecimentos vinham de fontes longínquas e esotéricas.
Schonfield revela que, quando o código é aplicado ao nome do misterioso ídolo decapitado venerado
pelos templários, Baphomet, esse então se transforma na palavra grega Sophia. Graham Hancock es-
creve, em The Sign and tbe Seal, que 'Sophia' significa nada mais nem menos que 'sabedoria' . Na
realidade, porém, significa muito mais do que isso, e seu significado total acrescenta uma luz diferente a
toda raison d'être dos templários.
Citada significando simplesmente 'Sabedoria', em hebreu Chokmah, uma figura feminina que aparece
no Antigo Testamento, especificamente no Livro dos Provérbios, Sophia tem causado muito embaraço
entre os estudiosos judeus e cristãos porque é apresentada como sendo a parceira de Deus, a que exerce
influência sobre ele e de fato o aconselha.
Sophia também era fundamental para a cosmologia gnóstica; na verdade, nos textos Pistis Sophia do
Nag Hammadi, está intimamente associada a Maria Madalena. E, assim como Chokmah, ela é a chave
para se compreender o gnosticismo da Cabala (o importante e muito influente sistema esotérico que deu
base para a magia do período medieval e do Renascimento). Para os gnósticos ela era a deusa grega
Atenas e a deusa egípcia Ísis, que às vezes também era chamada de Sophia.
Tomado de forma isolada, é claro que o uso da palavra Sophia pelos templários, como a decodificação
da palavra 'Baphomet', não revela qualquer reverência especial em relação ao mundo feminino. Eles
podiam muito bem estar apenas reverenciando a busca da sabedoria. Entretanto, existem muitas outras
indicações de que isso fazia parte de uma profunda obsessão em relação ao princípio feminino, que vai
muito além de uma mera questão semântica, a ponto dos templários, e na verdade vários outros grupos
esotéricos, estarem bastante interessados nessa questão.
Como nos diz o pesquisador escocês Niven Sinclair, cujo conhecimento sobre os templários é
particularmente extenso: 'Os templários decididamente acreditavam no poder feminino'. Niven não tem
qualquer dúvida a esse respeito, e não há nada de estranho nisso.
Os templários habitualmente davam um formato circular a suas igrejas, pois acreditavam que essa era a
forma do Templo de Salomão. Por outro lado, isso pode ter simbolizado a idéia de um universo
redondo, mas é mais provável que representasse o Feminino. Círculos e ciclos sempre estiveram
associados às deusas e a tudo o que é feminino, seja esotérico ou biológico. É um símbolo arquetípico
recorrente na história da civilização: as sepulturas da era pré-histórica eram montículos arredondados
porque representavam o útero da mãe-terra, que tomaria de volta o defunto para que então renascesse
entre os espíritos. E todos nós estamos familiarizados com o arredondamento de uma barriga grávida, e
com o símbolo da fase 'Mãe' das deusas, a lua cheia.
Qualquer que seja o significado preciso do formato circular para os templários, não há nenhuma dúvida
de que esses sempre foram eminentemente masculinos. E após a época dos templários, a construção de
igrejas em formato circular foi oficialmente considerada herética pela Igreja. Porém, como já notamos, a
igreja francesa em Londres é redonda, uma característica que se repete e é reforçada por outros motivos
decorativos, tanto internos quanto externos.
Os templários, parece, haviam acumulado conhecimento exótico e herético, mas isso foi acidental ou
proposital? As evidências apontam para esta última hipótese: eles estavam em busca de certos segredos
que, uma vez sob seu poder, lhes permitiriam optar entre aplicá-los ou retê-los. Uma vez que muitos de
seus segredos ainda permaneciam sob sua guarda, os templários deixaram algumas pistas de alguns
deles em forma de códigos, algumas até mesmo esculpidas em pedra.

Os cavaleiros templários eram a força motriz por trás da construção das grandes catedrais góticas,
especialmente a de Chartres. Sendo os principais, e com freqüência os únicos, 'desenvolvimentistas' nos
grandes centros culturais europeus, também estavam por trás da formação das guildas de construtores,
incluindo a de pedreiros, que se tornaram membros seculares da Ordem dos Templários, com vantagens
que incluíam a isenção do pagamento de taxas.
Por toda a longa história das grandes catedrais, o estranho simbolismo dos motivos de decoração e do
projeto confundiram peritos das mais diversas disciplinas. Foi apenas recentemente que tal simbolismo
passou a ser visto como o que realmente era: a codificação do conhecimento esotérico dos templários.
Graham Hancock, ao discutir a arquitetura sagrada dos antigos egípcios, nota que 'ela só foi igualada na
Europa pelas grandes catedrais góticas da Idade Média, como a de Chartres', e coloca a seguinte
questão: 'Terá sido mero acidente?' Hancock continua:

Já suspeitara há muito tempo que realmente tinha havido uma conexão e que os cavaleiros templários,
através de suas descobertas durante as Cruzadas, poderiam ter formado o elo perdido na cadeia de
transmissão dos conhecimentos arquitetônicos secretos... São Bernardo, o protetor dos templários, havia
definido Deus, o que é inacreditável tratando-se de um cristão, como 'comprimento, altura, largura e
profundidade'. Também não poderia deixar de lembrar que os próprios templários haviam sido grandes
construtores e grandes arquitetos, ou que a ordem monástica dos cistercienses, a qual São Bernardo
pertencera, também se superara nesse campo em particular da atividade humana.

O projeto das catedrais foi especificamente elaborado para levar em conta, para exemplificar, os
princípios da geometria sagrada. É a idéia de que a proporção geométrica traz dentro de si uma
ressonância da harmonia divina, e a de que algumas proporções em particular são mais divinas do que
outras. É isso que está por trás da rude declaração de Pitágoras de que 'o número é tudo', e reforça o
conceito hermético de que as matemáticas são o código através do qual os deuses falam com a
humanidade. Os artistas e projetistas do Renascimento eram grandes adeptos dessa arquitetura esotérica
em particular, para quem a 'relação áurea' - para eles a proporção perfeita - era quase que uma panacéia
universal. Porém, de modo algum se limitaram a essa aplicação, e o conceito da geometria sagrada per-
meou todos os aspectos de suas vidas intelectuais. Os desenhos de Leonardo, sejam de homens ou de
máquinas, o interior das flores ou o formato de uma onda, comunicava a convicção do artista de que
havia significados nos padrões e harmonia nas proporções, e um de seus desenhos mais famosos, O
Homem Vitruviano, literalmente incorpora a relação áurea.
O legendário Templo de Salomão era, para os templários e para os maçons, que vieram depois, a jóia da
coroa e o melhor exemplar da geometria sagrada. Não apenas era uma suprema delícia para os olhos de
qualquer um que o observasse ou rezasse dentro dele, como seu alcance ia muito além dos cinco
sentidos. Foi pensado para ressonar, de um modo transcendental e sem igual, com a própria harmonia
celestial; seu comprimento e largura, altura e profundidade estão completamente de acordo com as pro-
porções mais adoradas pelo universo. O Templo de Salomão era, se você preferir, a própria alma de
Deus escrita na rocha.
Muitos dos atuais visitantes ficam perplexos com os motivos, de clara natureza astrológica, gravados nas
pedras das antigas catedrais. Com certeza, alguém hoje poderia chegar a pensar que o inconfundível
símbolo de Áries esculpido na entrada principal de tão veneráveis edificações deve ser uma aberração,
uma excentricidade pessoal de algum dos pedreiros. No entanto, em muitas catedrais diferentes esses
sinais se repetem, e nunca de forma fortuita.
Todo o grandioso simbolismo encontrado nas catedrais era entendido pelos iniciados da época como um
reflexo do antigo provérbio hermético: assim em cima, assim embaixo. Acreditava-se que a frase tivesse
vindo da Tábua de Esmeralda, de Hermes Trismegistus, o lendário mágico, ou mago, egípcio, embora
as palavras que a compõe possam ser muito mais antigas. Elas querem dizer que tudo o que há na terra
tem uma contrapartida no céu e vice-versa, conceito que Platão tornou popular com sua noção do
Mundo das Idéias. De acordo com isso, tudo o que existe, de uma colher até um homem, é somente uma
versão de um modelo ideal que existe em algum tipo de dimensão alternativa, plena de modelos
perfeitos. Os magos, ou magi, foram mais adiante. Acreditavam que todo pensamento ou ato refletia-se
em outro plano, e que ambas as dimensões afetavam uma à outra de um modo irresistível. Existem
ressonâncias desse conceito na moderna idéia científica de universos paralelos, assim como nas histórias
dos deuses antigos, com os seus ciúmes insignificantes e, com freqüência, sórdidas obsessões, que eram
vistos como sendo os representantes arquetípicos da raça humana. Para nossos ancestrais, não havia
nenhuma discrepância em prostrar-se humildemente perante o grande deus do Olimpo, Zeus, e ao
mesmo tempo acreditar que ele, ocasionalmente, tomava a forma de um animal para seduzir as moças da
Terra. Era esperado de um deus que se comportasse como um homem, porém, o inverso desse conceito é
a idéia, 'herética' para judeus e cristãos, de que um homem pudesse se tornar um deus.
Nada disso era novidade para os templários. O projeto das catedrais revela uma compreensão dos
princípios herméticos por parte dos pedreiros, assim como dos cavaleiros que patrocinavam a
construção. Eles, de todos os povos medievais, apreciavam especialmente a aplicação prática, onde
quer que fosse possível, de todo e qualquer conhecimento esotérico. Para eles, a codificação das
mensagens secretas nas próprias pedras das catedrais ia muito além de mera fantasia. Como Baigent e
Leigh dizem no seu livro The Temple and the Lodge: Deus havia ensinado a aplicação prática da
geometria sagrada através da arquitetura'. E novamente nos vimos caminhando em direção ao Templo
de Salomão.
Filho do legendário herói judeu, o Rei Davi, Salomão construiu um Templo de profunda beleza,
utilizando os melhores e mais caros materiais. Foram usados mármores e pedras preciosas, madeiras
aromáticas e os tecidos mais raros para criar um lugar que faria os sentidos dos veneradores flutuar em
delícia, onde o próprio Deus se sentiria em casa. No centro de tudo ficava o mais sagrado dentre o
sagrado, e aí o sacerdote poderia receber o Todo Poderoso por meio do mais misterioso dos
instrumentos, a Arca da Aliança. Esse dispositivo notoriamente temperamental era, por um lado,
conhecido por conceder grandes bênçãos àqueles que eram 'virtuosos', mas, por outro lado, destruiria os
malfeitores ou aqueles a quem não houvesse sido dito como combater os efeitos de sua presença
maligna. Para os templários isso talvez se parecesse como a arma suprema, e, portanto, saíram em sua
busca, conforme alguns têm sugerido.
Talvez existam pistas daquilo que os templários realmente acreditavam ser o significado da 'Arca',
presente nos motivos decorativos das catedrais. Por exemplo, a Catedral de Chartres, fruto da
imaginação de sua éminence grise, Bernard de Clairvaux, contém uma escultura de pedra que parece ser
a Virgem Maria, na qual está gravada a 'marca' arcis foederis: Arca da Aliança. Isso por si só não é
muito significativo, pois esse era um símbolo cristão comum no período medieval. Mas como Chartres
era um ponto central para o culto da Madona Negra, estaria a Arca sendo comparada com aquela outra
Maria, a Madalena, ou até mesmo com uma deusa pagã muito mais antiga? Talvez seja o próprio
princípio Feminino que esteja sendo evocado, utilizando-se, para despistar, o símbolo de Maria. Isso não
pode ser uma referência à própria Virgem, pois os arquitetos da catedral gótica tinham uma razão
especial para evocar o arquétipo de uma mulher sexualmente ativa. (É também significativo que as
primeiras representações da lenda da vida de Maria Madalena na França estivessem nos vitrais da Cate-
dral de Chartres.)
Na verdade, é a difamada e bem pouco compreendida alquimia que, com freqüência, está por trás dos
motivos aparentemente bizarros das construções góticas (e era realmente a alquimia que aparentava ser
o dado em comum entre a maioria dos Grão-Mestres do Monastério de Sion).
Acredita-se que a alquimia tenha sido transmitida pelo Egito antigo através dos árabes (a própria
palavra, aliás, deriva do árabe). A alquimia significava mais do que ciência: a prática compreendia uma
bem concatenada teia de atividades encadeadas e modos de pensar, da magia à química, da filosofia e
hermetismo à geometria sagrada e à cosmologia.Também pesquisava o que hoje chamaríamos de
engenharia genética, métodos para retardar o processo de envelhecimento, e a tentativa de conquistar a
imortalidade física. Os alquimistas ansiavam por conhecimento e não tinham tempo a perder com
antagonismos da Igreja contra as experimentações. Eles, então, se ocultaram e continuaram suas
pesquisas secretamente. Para os alquimistas não existia tal coisa chamada heresia, enquanto que para a
Igreja não existia um alquimista que não fosse herético; conseqüentemente, a prática da alquimia
tornou-se conhecida como 'Magia Negra'.
A alquimia compreendia diversos níveis: o externo, ou esotérico, que se dirigia à manipulação e
experimentação dos metais, mas havia outros níveis, muito mais secretos e que incluíam a realização da
misteriosa 'Grande Obra'. Tal coisa era vista como o momento supremo da vida de um alquimista, quan-
do então, finalmente, transforma-se metal comum em ouro. Nos círculos esotéricos, porém, isso
também é visto como o ponto em que a pessoa se torna espiritualmente iluminada e fisicamente
revitalizada, através de um 'trabalho' de magia que gira em torno da sexualidade. (Discutiremos esse
assunto em detalhes mais adiante.) Parece que a Grande Obra representava um ato de iniciação
suprema.
Talvez se acreditasse que esse ritual fosse capaz de proporcionar a longevidade: existem rumores que
afirmam que Nicolas Flamel, supostamente Grão-Mestre do Monastério de Sion, realizou a Grande
Obra em companhia de sua mulher Perenelle, no dia 17 de janeiro de 1382, e que teria, após tal
realização, vivido durante um tempo excepcionalmente longo.
Em alquimia, o símbolo para designar a consecução da Grande Obra é o hermafrodita, literalmente a
junção do deus Hermes com a deusa Afrodite. Leonardo era fascinado pelos hermafroditas, chegando a
ponto de preencher páginas e mais páginas com esboços destes, de um modo um tanto pornográfico. Um
estudo recente sobre o retrato mais famoso do mundo, o maliciosamente enigmático sorriso de Mona
Lisa, mostrou, de forma persuasiva, que 'ela' era ninguém mais ninguém menos que o próprio Leonardo.
Os pesquisadores Dr. Digby Quested, do Hospital de Maudsley, em Londres, e Lillian Schwartz, dos
Laboratórios Bell, nos E.U.A, utilizaram as mais sofisticadas técnicas de computação,
independentemente um do outro, para sobrepor a face do retrato com a face do artista, e o resultado foi
uma justaposição perfeita.Talvez essa fosse mais uma das inacreditáveis e inteligentes piadas que ele
legou para a posteridade, mas há também a possibilidade de que Leonardo, sendo um alquimista,
estivesse sumariando o fato de ter realizado a Grande Obra.
Alguns acreditam que tal feito poderia ocasionar uma transformação física tão profunda que o bem-
sucedido alquimista poderia até mesmo ter mudado de sexo. Talvez fosse esse o conceito por trás da
Mona Lisa. Mas o símbolo do hermafrodita também representa o momento do orgasmo, quando tanto o
macho quanto a fêmea participantes do ritual são tomados pela sensação de união de um com o outro, de
expansão dos próprios limites em direção a uma consciência mística de si mesmos e do universo.
As catedrais góticas ostentam muitas figuras curiosas, de demônios a Homens Verdes. Alguns, porém,
ultrapassam o estranhamento: uma escultura na Catedral de Nantes mostra uma mulher olhando para um
espelho, embora o reflexo seja, na verdade, o de um homem velho . E em Chartres a escultura da
'Rainha de Sabá', de fato, porta uma barba! Os símbolos alquímicos podem ser encontrados em muitas
das catedrais associadas aos cavaleiros templários.
Essas correlações são implícitas, mas Charles Bywaters e Nicole Dawe descobriram locais relacionados
com os templários, no Languedoc-Roussillon, que continham um simbolismo alquímico explícito:

Nossa pesquisa mostrou, entre outras coisas, que eles estavam de alguma forma bastante familiarizados
com as propriedades do solo. Em uma área em particular eles construíram um hospital para os
templários que voltavam da Terra Santa, pois ali a terra tinha propriedades curativas. Existem símbolos
alquímicos nesse local...
Fica bastante claro que estavam familiarizados com a alquimia. É significativo encontrar-se um local
que fora especificamente escolhido em virtude da natureza da terra, onde existem evidentes símbolos
alquímicos em sua estrutura e além de muitos elementos vinculados aos cátaros e aos muçulmanos. E
essa evidência é consistente, documentada; é bastante fácil de ser provada.

Durante nossas viagens na França, repetidamente vimos que as cidades que haviam sido propriedade
dos templários, como Utelle, na Provença e Alet-les-Bains, no Languedoc, subseqüentemente haviam
se tornado centros de alquimia. Também é significativo que os alquimistas, assim como os templários,
reverenciassem a figura de João Batista de um modo especia1.
Como já vimos, as grandes catedrais e muitas das igrejas mais famosas foram construídas em locais
conhecidos por terem sidos consagrados a deusas antigas. Por exemplo, Notre-Dame, em Paris, erigiu-
se sobre as fundações de um templo dedicado a Diana, e St Sulpice, em Paris, foi construída sobre as
ruínas de um templo dedicado a Ísis. Tomado isoladamente esse ponto nada tem de incomum, pois por
toda a parte na Europa foram construídas igrejas cristãs sobre antigos locais pagãos, como um
movimento deliberado por parte da Igreja a fim de demonstrar que essa havia triunfado sobre os pagãos.
Mas, com freqüência, o que na verdade acontecia era que os habitantes locais simplesmente adaptavam
seus costumes pagãos ao cristianismo, e, então, viam o local da nova igreja como sendo complementar
e não oposto à antiga Religião. No entanto, em face dos evidentes interesses mais profundos dos tem-
plários, não poderia ser que no caso das catedrais eles pretendessem dar continuidade à veneração do
princípio feminino ao invés de suprimi-lo?Talvez as catedrais fossem hinos às deusas esculpidos na
rocha. E 'Notre Dame', a quem tantos deles eram dedicados, era na verdade o próprio princípio femi-
nino ou, Sophia...
A maioria das pessoas hoje pensa na arquitetura gótica como algo essencialmente 'masculino', com seus
pináculos desafiando as alturas e naves em forma de cruz, mas a maior parte da decoração interna é
intensamente feminina, especialmente as esplêndidas janelas em forma de rosa. Barbara G. Walker
indica outros significados:

...a Rosa, que os antigos romanos conheciam como Flor de Vênus, [era] o distintivo das prostitutas
sagradas. As coisas ditas 'debaixo da rosa' (sub rosa) eram parte dos mistérios sexuais de Vênus, que
não seriam revelados aos não iniciados...
Na época áurea da construção das catedrais, quando Maria era venerada como uma Deusa em seu
'Palácio da Rainha Celestial', ou Notre-Dame, ela foi com freqüência chamada de Rosa, Rosa-arbusto,
Rosa-guirlanda... Rosa mística... Assim como um templo pagão, a catedral gótica representava o corpo
da Deusa que também era o universo, enquanto continha a essência de divindade masculina dentro de si
mesma...

A rosa, como veremos, também era um símbolo adotado pelos trovadores, esses cantores de canções de
amor do sul da França que estão intimamente ligados com os mistérios eróticos.
Outros símbolos encontrados nas catedrais góticas portam potentes mensagens subliminares sobre o
poder Feminino.As teias de aranha esculpidas, uma imagem que se repete na cúpula em forma de
clarabóia da igreja de Notre-Dame de France, em Londres, representa Arachne, a deusa-aranha que rege
o destino do Homem, ou Ísis, no papel de tecelã dos destinos. Da mesma forma, o grande labirinto
pintado no chão da Catedral de Chartres refere-se aos mistérios femininos, e através dele o iniciado só
consegue encontrar o caminho se seguir o fio de linha fornecido pela deusa. Esse lugar, portanto, não foi
planejado para ser palco de veneração da Virgem Maria, em particular porque também abriga uma
Madona Negra, Notre Dame de Souterrain (Nossa Senhora do Subterrâneo). Em Chartres também há um
vitral que descreve a chegada de barco de Madalena à França, combinando assim uma referência à lenda
desta com a de Ísis, para quem os barcos também eram um meio de transporte predileto. (Talvez o
Nautonnier, o timoneiro, título do Grão-Mestre do Monastério, decorra de seu papel assumido no Navio
de Ísis). Esse vitral é a mais antiga representação da lenda de Madalena na França, e, em uma catedral
há muitos quilômetros da Provença, foi considerado pelos arquitetos como sendo de grande significado.

Ao mesmo tempo em que as catedrais estavam sendo construídas, a heresia encontrava outra porta, desta
feita assegurando-se de que sua mensagem seria lembrada pela história, embora, como na Última Ceia,
de Leonardo, as decodificações através das quais essas mensagens encontram expressão sejam, com
freqüência, marcadas pela pouca compreensão em relação ao que está realmente sendo dito. Essa outra
tradição herética era a das lendas do Graal.
Hoje o termo 'Santo Graal' é freqüentemente utilizado com o significado de uma meta fugidia, o prêmio
resplandecente que irá coroar o trabalho de toda uma vida. A maioria das pessoas percebe que isso está
relacionado com algo mais antigo e religioso em sua natureza, e no geral com a taça em que Jesus bebeu
na Última Ceia. Uma lenda conta que José de Arimatéia, o rico amigo de Jesus, nela coletou o sangue
derramado na Crucificação, sangue em que foram encontradas propriedades curativas. A procura do
Santo Graal é vista como uma busca repleta de perigos físicos e espirituais, em que aquele que procura
tem que bater-se com as mais diversas espécies de inimigo, incluindo os do reino sobrenatural. Em todas
as versões da história a taça é um objeto, literal e simbolicamente, da perfeição. Ela representa algo que
pertence a duas dimensões, a real e a mítica, e é capaz de cativar a imaginação como nenhuma outra
coisa.
O Graal pode ser visto como um objeto misterioso, um tesouro verdadeiro que está em algum lugar de
alguma caverna, mas que, entretanto, sempre carrega a idéia implícita de que simboliza algo inefável,
muito além do mundo cotidiano. Essa aura de busca espiritual surgiu não só das lendas originais do
Graal, como também da cultura onde ela pela primeira vez apareceu.
Em nossa opinião, dentre as milhões de palavras que foram dedicadas a esse assunto no decorrer dos
séculos, algumas das mais sábias podem ser encontradas no livro The Holy Grail de Malcolm Godwin,
publicado em 1994. Esse livro é um sumário notável de todas as lendas e interpretações disparatadas,
com a percepção de chegar diretamente ao cerne da matéria através da verbosidade dos estilos.
Colocando de lado as habituais visões cristãs e celtas dos romances sobre o Graal dos séculos XII e
XIII, Godwin também identifica uma outra visão igualmente importante, a alquímica. Ele revela que as
versões mais antigas da história do Graal sem dúvida beberam nas fontes dos mitos celtas que
permeiam os contos do grande herói Rei Artur e sua corte, e muitos dos elementos desses contos
focalizavam os aspectos da veneração das divindades pelos celtas.As histórias do Graal redefinem as
antigas lendas celtas e as estendem a fim de abarcar as idéias heréticas que estavam em voga no século
XIII.
O primeiro dos romances sobre o Graal foi o inacabado Le Conte dei Graal (c.1190), de Chrétien de
Troyes.A cidade de Troyes, de onde Chrétien tirou seu sobrenome, era um centro cabalístico e o local
da preceptoria original dos templários, além de ser a cidade onde o Conde de Champagne estabeleceu
sua corte. (Na verdade, a maioria dos nove primeiros cavaleiros templários eram vassalos deste.) A
igreja mais famosa de Troyes é dedicada a Maria Madalena.
Na versão de Chrétien não há nenhuma menção de o Graal ser uma taça, nem há qualquer conexão
explícita com a Última Ceia ou com Jesus Cristo. Na realidade, não há qualquer conotação religiosa, e
já foi dito que sua ambientação original é claramente pagã. Aqui, no entanto, o Graal era uma bandeja
ou prato, o que, como veremos, é algo bastante significativo. Na verdade, Chrétien se inspirou em um
antigo conto celta no qual o herói Peredur, deveria, em sua busca, se deparar com uma procissão
horripilante e aparentemente extremamente ritualística, em um castelo remoto. Sendo levada nessa
procissão havia, entre outras coisas, uma lança que gotejava sangue e uma cabeça decapitada em uma
bandeja. Uma característica comum nas histórias do Graal é aquele momento crítico em que o herói
falha ao tentar formular uma pergunta importante, e é esse pecado de omissão que o coloca em grande
perigo. Como diz Malcolm Godwin: 'Aqui, a pergunta que não é feita está relacionada com a natureza
da cabeça. Se Peredur tivesse perguntado de quem era a cabeça, e que relação tinha com ele, ficaria
sabendo como quebrar os encantamentos da Terra Devastada'. (A terra havia sido amaldiçoada e
tornara-se infértil.)
Mesmo não tendo um fim, a história de Chrétien era de uma fuga bem sucedida que deu origem a uma
série enorme de imitações, a maioria de caráter explicitamente cristão. Mas, como diz Malcolm
Godwin, falando dos monges que lhe escreveram:

Eles manobraram a fim de esconder uma obra de profunda heresia dentro desse mistério piedoso, de
modo que tanto a lenda quanto o autor sobreviveram ao zelo ígneo dos padres da Igreja. As mentes
ortodoxas da Roma papal, embora nunca tivessem reconhecido, de fato, a existência do Graal,
surpreendentemente se acovardavam em denunciar tal heresia... E é mais curioso ainda que a lenda
sobrevivesse intacta ante a queda dos cátaros heréticos... e até mesmo a dos Cavaleiros Templários,que
estavam claramente caracterizados em vários textos.

Uma dessas versões cristianizadas era Perlesvaus, que foi, segundo alguns, escrito por um monge na
Abadia de Glastonbury, em 1205, enquanto que para outros essa é uma obra de um templário
anônimo.Esse conto, na verdade, fala sobre duas buscas que estão entrelaçadas. O Cavaleiro Gawain
procura a espada que decapitou João Batista, a qual magicamente sangra diariamente ao meio-dia. Em
um episódio o herói encontra uma carroça que continha 150 cabeças decapitadas de cavaleiros: algumas
estavam marcadas com ouro, algumas com prata e outras com chumbo. E há também uma estranha
donzela que carrega em uma das mãos a cabeça de um rei, marcada com prata, e na outra a de uma
rainha, selada com chumbo.
Em Perlesvaus os servos de elite do Graal usavam artigos de vestuário brancos com seu brasão gravado,
uma cruz vermelha, exatamente como os templários.Também há uma cruz vermelha que estava [meada
em uma floresta, e que se tornou um grande tormento para um dos padres, pois esse bateu nela 'em todas
as partes' com uma vara, um episódio que tem uma clara conexão com a acusação de que os templários
haviam batido e pisoteado na cruz. E, mais uma vez, há uma cena curiosa que envolve cabeças
decapitadas. Um dos guardiães do Graal diz ao herói, Percival, 'Existem as cabeças marcadas em prata,
cabeças marcadas em chumbo, e os corpos a quem essas cabeças pertencem: eu digo o que você tem que
fazer, vá lá e pegue as cabeças do Rei e da Rainha'.
O simbolismo alquímico é pródigo: metais preciosos e comuns, reis e rainhas.Tal imaginário também é
encontrado em abundância em outra grande obra reescrita sobre a lenda do Graal, como ainda veremos.
Apesar da tácita aversão da Igreja para com o Graal, a versão mais cristianizada foi escrita por uma
equipe de monges cistercienses. Denominada Queste del san Graal, é notável pelo fato de utilizar-se do
Cântico dos Cânticos para compor seu poderoso simbolismo místico.
De todas as bastante estranhas histórias do Graal a mais estranha e mais provocante de todas foi
Parzival, do poeta bávaro Wolfram van Eschenbach (1220). Nela o autor declara estar deliberadamente
corrigindo a versão de Chrétien de Troyes, que não contém toda a informação disponível. Ele afirma que
sua história é a mais precisa porque ele conseguiu a verdadeira história com um Kyot, da Provença, que
foi identificado como Guiot de Provins, um monge que tanto falava pelos templários como cantava
como um trovador. Como Wolfram escreve em Parzival: 'O conto autêntico com a conclusão para o
romance foi enviado da Provença para as terras alemãs.
Mas qual era essa conclusão? Em Parzival o Castelo do Graal é um lugar secreto, vigiado pelos
templários - que Wolfram chama de os 'homens batizados', o que é bastante significativo -, que são
enviados para espalhar sua fé em segredo. O sigilo absoluto e a aversão da Companhia do Graal em ser
interrogada são pontos bastante realçados.
No final da história Repanse de Schoye (a portadora do Graal) e o meio-irmão de Parzival, Fierefiz,
partem para a Índia e têm um filho chamado João, o famoso Prester João, que é o primeiro de uma
linhagem que sempre recebe o nome de João... Seria essa uma referência codificada ao Monastério de
Sion, cujos Grão-Mestres, supostamente, recebem esse mesmo nome?
O conceito de linhagem é fundamental para as teorias relativas ao Graal de Baigent, Leigh e Lincoln.
Como o título do primeiro livro deixa claro, para eles o 'Santo Graal' era de fato o 'Santo Sangue'. Isso
se baseia na idéia de que o original francês sangraal, que é comumente entendido como san graal
(Santo Graal), deveria ter sua leitura corrigida para sang real, o sangue real, que para eles significa uma
linhagem sangüínea hereditária. Baigent, Leigh e Lincoln conectam a ênfase dada à linhagem nas
lendas do Graal com o que eles acreditam ser o grande segredo relacionado a Jesus e a Madalena, que
teriam sido marido e mulher, e propõe sua própria teoria: o Graal das lendas era uma referência
simbólica aos descendentes de Jesus e Maria Madalena. De acordo com essa teoria, os guardiães do
Graal eram aqueles que conheciam essa linhagem sagrada secreta, como, por exemplo, os templários e
o Monastério de Sion.
Entretanto, existe um problema com essa idéia: nas histórias do Graal a ênfase está na linhagem dos
guardiães do Graal e na dos descobridores do Graal: o próprio Graal é o que os está separando.
Embora fosse bem possível que as lendas se referissem à guarda de um segredo mantido por certas
famílias, e que foi passado de geração para geração, parece improvável que eles realmente estivessem
aludindo a uma linhagem sangüínea. Afinal, quando a idéia passou a ser cogitada, ela veio à tona na
forma de uma única palavra francesa sangraal, e, como já vimos, existem sérias dificuldades em uma
hipótese que se alicerça na idéia de continuidade de uma 'linhagem sangüínea pura' através dos tempos.
A ligação entre as histórias do Graal e o legado dos templários parece ser verdadeira o suficiente.
Wolfram von Eschenbach é crível por ter viajado bastante e por conhecer os centros templários do
Oriente Médio, e por seu conto ser, de longe, o mais explicitamente templário de todos os romances
sobre o Graal. Como diz Malcohn Godwin: 'Ao longo de Parzival Wolfram entremeia seu relato com
discussões sobre a astrologia, a alquimia, a cabala e as novas idéias espirituais do Oriente. Ele inclui
também um óbvio simbolismo que nos remete diretamente ao Tarô.
É nessa versão que os Guardiães do Graal no Castelo Montsalvasch são explicitamente chamados de
templários. O castelo original foi identificado como sendo o de Montségur, a última das grandes
fortalezas dos cátaros. A narrativa, em um outro poema de Wolfram, invoca o Senhor do Graal do Cas-
telo de Perilla. O verdadeiro Senhor de Montségur à época do poeta era Ramon de Perella. Mais uma
vez encontramos uma ligação entre templários e cátaros, entre si e com um indefinido, porém
extremamente valioso tesouro.
Não há qualquer taça dotada de poderes sobrenaturais na versão de Wolfram; aqui o Graal é uma pedra,
lapsit exillis, que provavelmente significa a Pedra da Morte, embora isso seja mera especulação.
Ninguém sabe realmente. Outras explicações afirmam que a pedra era uma jóia que se soltou da coroa
de Lúcifer quando este decaiu do céu para a terra, ou que é a famosa Pedra Filosofal (lapis elixir) dos
alquimistas. Dentro do contexto, essa última interpretação é a mais provável: o texto todo é farto em
simbolismo alquímico.
Alguns escritores viram a personagem Cundrie, a 'mensageira do Graal' em Parzival, como sendo a
representação de Maria Madalena. (Certamente Wagner assim o fez: em sua ópera Parsifal (1882), sua
Kundry possui um frasco de 'bálsamo' e lava os pés do herói, e então, como se fosse Madalena, seca-os
com os próprios cabelos.) Talvez haja alguma ressonância da taça do Graal na jarra de alabastro que
Madalena carrega na tradicional iconografia cristã.
Em todas as histórias, porém, a busca do Graal é uma alegoria para uma viagem espiritual do herói em
direção - e para além - da transformação pessoal. E como já vimos, um dos principais motivos de toda
alquimia séria era exatamente esse. Mas foi apenas esse subtexto alquímico que fez com que todas as
lendas de Graal fossem 'heréticas'?
A Igreja, sem dúvida, sentia-se mortalmente ofendida pelo fato de as histórias do Graal ignorarem ou
absterem-se de afirmar sua autoridade e a sucessão apostólica. O herói age por si só, embora
ocasionalmente receba ajuda, em busca de esclarecimento espiritual e transformação. Assim, em es-
sência, as lendas do Graal são textos gnósticos que enfatizam a responsabilidade do indivíduo para com
o estágio de evolução de sua própria alma.
Porém, existem muito mais coisas capazes de ofender a sensibilidade da Igreja que estão implícitas em
todas as histórias do Graal. Pois a busca do Graal é, inevitavelmente, apresentada como sendo reservada
apenas para os iniciados do mais alto grau, a nata da elite, algo que está muito além até mesmo da
transcendência da missa. Além disso, em todas as histórias do Graal, o próprio objeto, qualquer que seja
ele, é guardado por mulheres. Até mesmo na história celta de Peredur os jovens até podem portar uma
lança, mas são as damas que levam o que podemos chamar de protótipo do Graal, a bandeja com a
cabeça. Mas como poderiam as mulheres realizar um papel de autoridade em algo que era efetivamente
uma forma mais sublime de Missa? (Lembremos que os cátaros, cuja fortaleza de Montségur era quase
com certeza o original para o Castelo do Graal de Wolfram, mantinham um sistema de igualdade sexual,
de forma que homens e mulheres poderiam ser chamados de 'padres' .)
No entanto, é a conexão com os templários que é mais difundida nas histórias do Graal. Como vários
comentadores apontaram, a acusação de que os cavaleiros adoravam uma cabeça decapitada, que se
acreditava ser a de Baphomet, tem ressonâncias com os romances de Graal nos quais, como já vimos, as
cabeças decapitadas aparecem em toda parte. Os templários foram acusados de atribuir a esse Baphomet
poderes semelhantes aos do Graal: ele poderia fazer com que as árvores florescessem e a terra se
tornasse fértil. Na verdade, os templários não só foram acusados de idolatrar essa cabeça, como também
mantinham em seu poder um relicário de prata, na forma de um crânio feminino, no qual estava gravado
simplesmente caput (cabeça).
Hugh Schonfield, ao considerar as implicações relacionadas a essa cabeça feminina, juntamente com sua
'interpretação' da palavra Baphomet como significando Sopbia, escreve:

Parece haver pouca dúvida de que a bela cabeça feminina dos templários representasse Sophia em
seu aspecto feminino, assim como também Ísis, e ela estava conectada com Maria Madalena na
interpretação cristã.
As relíquias dos templários também têm a reputação de incluírem o (suposto) dedo indicador de João
Batista. Isso pode ser bem mais significativo do que parece à primeira vista. Como nós vimos no
Capítulo I, Leonardo com freqüência retratou alguns personagens em cenas religiosas que deliberada e
ritualisticamente colocavam em riste seu dedo indicador, e esse gesto parece estar conectado com João
Batista. Por exemplo, vimos como um indivíduo que parecia estar venerando uma alfarrobeira em A
Adoração dos Reis Magos estava fazendo esse gesto: tanto a árvore quanto o gesto estão relacionados a
João. A relíquia que afirmam ter pertencido aos templários pode ter sido a razão material que fez com
que Leonardo adotasse tal imagem.
(Jacobus de Voragine em seu livro Golden Legend narra uma tradição que diz que o dedo de João
Batista, a única parte do cadáver sem cabeça que escapou da destruição ordenada pelo Imperador
Juliano, foi trazido para a França por Santa Thecla, e então, talvez possa haver alguma razão para se
acreditar que a relíquia dos templários e aquela da lenda sejam a mesma. E de Voragine também registra
a lenda que conta que a cabeça do Batista foi enterrada debaixo do Templo de Herodes, em Jerusalém,
onde os templários escavaram.)
Os templários são constantemente vinculados ao Graal. A escritora viajante britânica Nina Epton
descreve, em seu livro The Valley of Pyrene (1955), como ela escalou até as ruínas do castelo de
Montréal-de-Sos, dos templários, no Ariège, para ver os murais que retratam uma lança com três gotas
de sangue e um cálice, uma imagem que foi, claramente, tomada diretamente das lendas do Graal.
Outra pintura estranha foi encontrada no castelo em Domme, onde muitos templários foram presos. Ean
e Deike Begg descrevem uma estranha cena da Crucificação na qual José de Arimatéia (segurando uma
cruz de Lorraine) é mostrado, à direita, colhendo gotas do sangue de Jesus. À esquerda está uma mulher
grávida e nua que segura uma vara ou um bastão.
Existem outras ligações ainda mais curiosas. Em St-Martin-du-Vésuvie, na Provença, que, como vimos,
é um centro renomado de Madonas Negras e de locais associados aos templários, há uma lenda que
incorpora elementos interessantes das histórias do Graal. Afirma-se que os templários foram todos
decapitados durante sua supressão - algo que, dada a falta completa de verificação oficial, parece ser
extremamente improvável - e que eles amaldiçoaram a terra com mangra. Os homens ficariam
impotentes ou estéreis e a terra infértil. Qualquer que seja a verdade sobre esse assunto, é um fato
histórico que em 1560 o Duque Emmanuel Filibert de Savoy mandou exorcizar a terra, pois essa se
encontrava em um estado lastimável. Na verdade, um dos cumes das redondezas ainda é conhecido
como Maledia (que pode ser traduzido como 'doença'). Mas a parte mais significativa desse conto
pesaroso é a que vincula a decapitação dos templários com a mangra espalhada na terra, dois dos
principais elementos do cânone do Graal. Para os escritores de histórias do Graal havia algo sobre as
cabeças decapitadas, ou talvez a cabeça decapitada, que havia trazido a destruição da terra, embora
também pudesse representar uma dádiva àqueles a quem ela favorecesse.
As diferentes histórias do Graal e as várias correntes existentes podem parecer algo confusas, mas em
seu monumental estudo sobre as lendas do Santo Graal, Tbe Hidden Church of the Holy Grail (1902), o
grande erudito do ocultismo, A.E.Waite, destacou a presença de uma tradição secreta dentro do
cristianismo, que estava por trás de todo o conceito das lendas. Waite foi um dos primeiros a reconhecer
os elementos alquímicos, herméticos e gnósticos dessas histórias. Embora estivesse certo de que existem
fortes indícios sobre a existência dessa 'igreja oculta' das lendas do Graal, ele não chega a qualquer
conclusão realmente firme sobre sua natureza, mas dá uma posição proeminente àquilo que chamou de
'Tradição Joanina' . Ele se refere a uma idéia há muito defendida em círculos esotéricos de uma escola
mística de cristianismo que fora fundada por João, o Evangelista, baseado nos ensinamentos secretos
que recebera de Jesus. Esse conhecimento enigmático não aparece no cristianismo externo, ou esotérico,
que se desenvolveu através dos ensinamentos de Pedro. É bastante significativo que Waite achasse que
essa tradição chegara à Europa através de Gaul, no sul de França, antes de ter sido filtrada pela recente
Igreja Celta da Bretanha.
Apesar dos elementos celtas nas histórias do Graal, Waite entende que a influência joanina nelas
presente origina-se no Oriente Médio, via templários. Astutamente, ele não afirma que essa é a única
conexão possível, pois não há evidência conclusiva para isso, mas acredita que essa é a mais plausível.
Porém, ele tem certeza de que os romances do Graal baseavam-se em algum tipo de 'igreja oculta' que
estava ligada aos templários.
A ênfase de Waite em uma 'tradição joanina' era um tanto tantalizante; ele não elaborou o suficiente tal
assunto, e suas fontes permanecem misteriosas. Mas parece que isso poderia propiciar uma
potencialmente explosiva ligação entre as histórias do Graal e um determinado São João que, como
veremos no próximo capítulo, daria sentido a grande parte da aparente confusão que envolve esse
assunto.
As histórias do Graal também são uma outra manifestação das idéias nascidas no submundo, que
estavam circulando na França medieval sob os auspícios dos templários, como o culto das Madonas
Negras.A conexão entre os dois é impressionante. Ambos baseiam-se em antigos temas pagãos: as
histórias do Graal em mitos celtas e o culto das Madonas Negras em santuários dedicados a deusas
pagãs.Ambos floresceram nos séculos XII e XIII devido ao contato, através dos templários, com a Terra
Santa.
Os templários eram um repositório do conhecimento de diversas fontes esotéricas, incluindo a alquimia
e a sexualidade sagrada. (A conexão entre as Madonas Negras, templários e alquimia é assunto de um
estudo do historiador francês Jacques Huynen, chamado L'enigme des Vierges Noires (O Enigma das
Virgens Negras, 1972.) E a 'ponte' entre suas idéias exóticas e esotéricas e o mundo cristão de sua época
estava personificado na imagem de uma mulher: Maria Madalena.
Tudo isso aconteceu há muito tempo atrás. Os cátaros já há muito se foram, e a Ordem dos Templários
se foi logo depois. Mas estará esse conhecimento secreto, essa consciência mística e alquímica do
Feminino, também enterrada debaixo do pó de todos esses séculos?
Talvez não. Talvez isso tenha se tornado o mais excitante, e o mais perigoso, segredo mantido vivo no
submundo da Europa atual.

CAPÍTULO VI
O Legado dos Templários
A maioria dos historiadores enxerga os violentos eventos do início do século XIV como o crepúsculo
dos templários, e portanto não procuram qualquer sinal de uma possível continuidade de sua existência.
A tradição ocultista, entretanto, sempre falou de descendentes espirituais desses cavaleiros templários
que continuam a viver em nosso meio hoje, e há sociedades modernas que reivindicam ser esses
descendentes. Além disso, um enorme volume de pesquisas recentes demonstrou, de um modo bastante
convincente, que a Ordem sobreviveu e exerceu grande influência na cultura ocidental.
As implicações relacionadas a isso são profundas e amplas. Pois se eles eram, como nós e outros
pesquisadores acreditamos, colecionadores de conhecimento esotérico e alquímico, então a
sobrevivência dos templários aponta para algum tipo de continuação de grandes segredos, através de
uma tradição oculta que pode ainda existir em nossos dias. Esses segredos,incluindo, talvez,
conhecimentos científicos dos antigos alquimistas e práticas mágicas das tradições esotéricas orientais,
ainda podem subsistir, mesmo em nossa própria sociedade. Se assim é, então, sendo exemplos
primordiais de um antigo sistema de crença e prática herética, os atuais templários bem que poderiam
jogar alguma luz em nossa própria investigação. Antes porém, temos que nos convencer de que os
templários, de fato, não desapareceram.
O bom senso nos diz ser pouco provável que os muito bem organizados templários humildemente
aguardassem o momento de morrer. Para começar, nem todos os cavaleiros que estavam na Europa
foram simultaneamente reunidos naquela sexta-feira, 13. O cataclismo que se abateu sobre a Ordem só
aconteceu na França, e mesmo lá alguns cavaleiros puderam escapar. Em outros países aconteceu,
digamos, uma escala variável de perseguição e supressão. Na Inglaterra, por exemplo, Eduardo II
recusou-se a acreditar que os templários fossem culpados daquilo que eram acusados, chegando mesmo
a debater, acaloradamente, essa questão com o Papa.E recusou-se, terminantemente, a torturar os
cavaleiros.
Na Alemanha, aconteceu uma cena profundamente hilariante. Hugo de Gumbach Mestre Templário da
Alemanha,fez uma entrada teatral no conselho convocado pelo Arcebispo de Metz. Portando armadura
completa e acompanhado de vinte cavaleiros, endurecidos pelas batalhas e escolhidos a dedo, ele
proclamou que o Papa era o mal e deveria ser deposto; que a Ordem era inocente e, a propósito, seus
homens estavam dispostos a resistir ao julgamento, entrando em combate, se necessário, contra o
conselho reunido... Depois de um silêncio aterrador, entretanto, o assunto foi esquecido, e os cavaleiros
viveram para afirmar sua inocência em algum outro dia.
Em Aragon e Castela, os bispos conduziram o julgamento dos templários apenas para, no final,
inocentá-los. Contudo, não importando quão suave ou liberal os juízes desejassem ser com os
cavaleiros, nenhum deles poderia simplesmente ignorar o comando do Papa para dissolver a Ordem em
1312. No entanto, mesmo na França, relativamente poucos foram executados. Muitos foram libertados
depois de se retratarem, e em outros países eles simplesmente passaram a usar outro nome, ou uniram-
se a outras ordens já existentes, como a dos Cavaleiros Teutônicos.
Portanto, as evidências históricas de que os Cavaleiros Templários foram efetivamente exterminados
são poucas e frágeis. E é claro que eles teriam, a partir dali, que agir secretamente se quisessem se
reagrupar e formar a irmandade novamente. Na verdade, o modo como eles foram destruídos
virtualmente garante isso.
Lembremos que os monges-guerreiros de baixa patente eram bem diferentes daqueles do círculo
secreto, cavaleiros de elite que não só dirigiam a organização, como também eram o repositório do
conhecimento secreto. É muito provável que cavaleiros de ambos os níveis resolvessem sumir e fundar
seus próprios movimentos secretos, dando início a duas organizações separadas, cada uma das quais
reivindicando ser a verdadeira herdeira dos templários.
Depois da debandada dos templários, a maior parte de suas terras foi dada a seus rivais, os Cavaleiros
Hospitalários. Na Escócia e Inglaterra, porém, essa cessão de propriedades não aconteceu em larga
escala, e há evidências de que as antigas propriedades dos templários em Londres, até o ano de 1650,
ainda estavam em posse das famílias de descendentes dos templários. Entretanto, para nós o que
realmente interessava não era a continuidade da propriedade das terras e edificações, mas sim a
perpetuação do conhecimento esotérico dos templários.
Embora não haja qualquer evidência conclusiva de que os Templários fossem os idealizadores que
estavam por trás da rede secreta de alquimistas, sabemos que o 'círculo secreto' interessava-se por
alquimia, bastando observar a proximidade dos centros alquímicos, como Alet-les-Bains, em relação às
edificações templárias. E, como já vimos, os alquimistas, assim como os templários, tinham uma
veneração especial por João Batista.
Recentemente vários comentadores apresentaram indicações bastante convincentes de que a maçonaria
originou-se do templarismo: tanto The Temple and the Lodge, de Michael Baigent e Richard Leigh,
como Born in Blood, do escritor-pesquisador histórico americano John J. Robinson, chegaram a essa
conclusão, embora abordem a questão sob pontos de vista completamente diferentes.
Os primeiros rastreiam a continuidade dos templários pela Escócia, enquanto que o último procura a
trilha partindo do ritual maçônico atual até suas origens, chegando, então, aos templários. Eles, portanto,
na verdade se complementam, proporcionando um quadro mais completo da ligação entre essas duas
grandes organizações ocultas.
O único ponto importante em que há discordância entre Baigent/Leigh e Robinson, é que os primeiros
acreditam que a maçonaria desenvolveu-se a partir dos templários isolados na Escócia, e que então
seguiram para a Inglaterra, em 1603, com a ascensão do rei escocês James VI ao trono inglês e a
subseqüente afluência de aristocracia escocesa. Por outro lado, Robinson acredita que os templários
tornaram-se maçons na Inglaterra. Ele argumenta, de modo persuasivo, que os templários estavam por
trás da Revolta dos Camponeses de 1381, os quais atacaram especificamente propriedades da Igreja e
dos Cavaleiros Hospitalários, os dois maiores inimigos dos templários, enquanto evitavam a todo custo
danificar as construções pertencentes a estes.
Para a maioria das pessoas a maçonaria é um clube de velhos esquisitos, uma rede exclusiva que garante
para seus sócios influência e contatos lucrativos. Seu lado ritualístico é visto como algo ridículo, com
irmãos dobrando a barra de suas calças e fazendo juramentos arcaicos e sem sentido. Pode ser que as
coisas tenham mudado, mas em seus primórdios a maçonaria era uma escola de mistério, com iniciações
solenes que utilizavam antigas tradições ocultas especificamente projetadas para levar o iniciado a um
estado de elevação transcendental, além de aproximá-lo mais de seus irmãos.
Originalmente, era uma organização oculta, cujo interesse explícito era a transmissão de conhecimentos
sagrados. Muito do que hoje chamaríamos de ciência tomou forma naquela fraternidade, como podemos
reconhecer através da formação da Sociedade Real, na Inglaterra, em 1662, cujo objetivo era, e continua
a ser, obter e divulgar o conhecimento científico. A Sociedade foi a institucionalização oficial da
Academia Invisível' dos maçons, que foi formada em 1645. (E da mesma forma que na época de
Leonardo, o conhecimento oculto e o científico, longe de serem antitéticos, eram vistos como o mesmo
e único.)
Embora não haja dúvida de que muitos dos maçons atuais realizam suas iniciações solenemente e com
alto senso de espiritualidade, o quadro geral é o de uma organização que esqueceu de seu significado
original. Na verdade, a corrente maçônica majoritária atualmente é a do Grande Oriente, que é
relativamente recente, tendo sido instituída no dia de João Batista (24 junho), em 1717. Antes dessa
época, a maçonaria era uma sociedade secreta verdadeira, mas o aparecimento do Grande Oriente
marcou uma era em que,na verdade, ela já havia se tornado um renomado clube para jantares, uma
organização semi-pública, pois já não tinha nenhum segredo para guardar.
Então, quão antiga é a maçonaria? A referência mais antiga conhecida é de 1641, mas se há realmente
uma ligação com os templários, essa data deve remontar bastante no tempo. John J. Robinson cita
evidências da existência de lojas maçônicas em 1380, e um tratado alquímico que data de1450 utiliza
explicitamente o termo 'Maçonaria'.
Os próprios maçons afirmam terem se originado das guildas de pedreiros da Inglaterra medieval, que
desenvolvera gestos secretos e códigos de reconhecimento porque estavam em posse do conhecimento
da geometria sagrada, que era potencialmente perigosa. Entretanto, como demonstra a meticulosa e
extensa pesquisa de John J. Robinson, e contra todas as expectativas, essas guildas eram notáveis
justamente por sua inexistência na Inglaterra medieval. Outro mito maçônico é a afirmação de que os
pedreiros herdaram seu conhecimento secreto diretamente dos construtores do fabuloso Templo de
Salomão. Nesse caso, por que então eles ignorariam um outro grupo que tinha óbvias ligações com
aquele templo? Eles parecem estar evitando a ligação mais óbvia de todas: o grupo cujo nome completo
era a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo e o Templo de Salomão, em outras palavras, os templários.
Antes mesmo da formação do Grande Oriente os maçons já difundiam o mesmo tipo de informação,
sobre geometria sagrada, alquimia e hermetismo, que os templários. Por exemplo, os primeiros maçons
interessavam-se bastante pela alquimia: um tratado alquímico da metade do século XV, refere-se aos
maçons como 'os obreiros da alquimia', e um dos primeiros maçons iniciados foi registrado como Elias
Ashmole (iniciado em 1646), fundador do Ashmolean Museum em Oxford, e que era alquimista,
hermético e rosa-cruz . (Ashmole foi também a primeira pessoa a escrever sobre os templários de
maneira positiva desde a supressão destes).
A jóia da coroa da maçonaria é a curiosa e constrangedora construção chamada Capela de Rosslyn,
alguns poucos quilômetros fora de Edimburgo. Vista do exterior parece estar dilapidada a ponto de
sugerir um iminente e completo desmoronamento, mas o interior é extremamente robusto como,
realmente, teria que ser, porque a Capela de Rosslyn é o centro reconhecido para os maçons de hoje e de
muitas organizações templárias.
Construída entre 1450 e 1480 por Sir William St Clair, proprietário das terras de Rosslyn, originalmente
pretendia-se que essa fosse apenas a capela de sua senhora, de um prédio muito maior que,
supostamente, baseava-se no projeto do Templo de Salomão, e que no, entanto, nunca foi construído. Os
St Clairs (mais tarde passaram a se chamar Sinclair) eram os protetores hereditários da maçonaria na
Escócia, do século XV em diante: com certeza, não é coincidência que antes dessa data eles tivessem
exercido a mesma função para os templários.
Desde seu início, a Ordem dos Templários esteve ligada aos Sinclairs e a Rosslyn: o fundador, Grão-
Mestre Hugues de Payens, se casou com Catherine St Clair. Descendentes de vikings, os St
Clairs/Sinclairs são uma das famílias mais intrigantes e notáveis da história, e eram proeminentes na
Escócia e França do século XI. (O sobrenome deles veio do mártir escocês Saint Clair, que fora
decapitado.) Hugues e Catherine percorreram as propriedades de St Clair, próximas a Rosslyn, e
estabeleceram o primeiro comando dos templários na Escócia, que se tornou a sede destes.
(Como já vimos,Pierre Plantard adotou o nome 'de St Clair', ligando-se assim, deliberadamente, ao ramo
francês dessa antiga família. Vários comentadores gostariam de saber se ele foi autorizado a usar essa
designação, mas há pelo menos uma boa razão para que ele assine seu nome dessa forma).
Os cavaleiros fizeram da Escócia um de seus principais refúgios, após a supressão oficial, talvez porque
fosse a terra de Robert Bruce, que se auto-excomungou para que assim o Papa não tivesse nenhum poder
sobre a Escócia. E Baigent e Leigh argumentam de modo bastante persuasivo que a frota perdida dos
templários foi parar nas costas escocesas.
Um dos eventos históricos mais críticos das ilhas britânicas foi, sem dúvida, a Batalha de Bannockburn,
que aconteceu em 24 de junho (Dia de João Batista), em 1314, quando as forças de Robert Bruce
bateram as forças inglesas de modo decisivo. Porém, todos os indícios mostram que eles contaram com
uma ajuda formidável na forma de um contingente de cavaleiros templários que à última hora lhes
salvou a pele. Com certeza, é nisso que acreditam os atuais cavaleiros templários da Escócia (que
afirmam ser descendentes dos cavaleiros fugitivos), pois comemoram na Capela de Rosslyn a Batalha de
Bannockburn, no dia de seu aniversário, como sendo a ocasião em que 'o Véu foi tirado da fronte dos
cavaleiros templários'. Um dos cavaleiros que haviam lutado ao lado de Robert Bruce em Bannockburn
foi (outro) Sir William St Clair, que morreu em 1330 e foi enterrado em Rosslyn, em uma típica tumba
templária.
A Capela de Rosslyn contém algumas anomalias aparentes em sua decoração. Cada pedaço do interior
da capela está coberto com símbolos esculpidos, e o prédio foi projetado em concordância com os mais
altos ideais da geometria sagrada. Grande parte da capela é inegavelmente maçônica. Ostenta o 'Pilar
Aprendiz', um paralelo explícito com o mito maçônico de Hiram Abiff, e o aprendiz está retratado
representando aquele que é conhecido como 'o Filho da Viúva', um termo maçônico de significado
extremo (que é igualmente importante para essa investigação). O lintel próximo a esse pilar traz a
seguinte inscrição:

Vinho é forte, o Rei é mais forte, as mulheres são as mais fortes, mas a VERDADE conquista a tudo
e a todos.

Embora grande parte do simbolismo de Rosslyn seja claramente maçônico, no mínimo uma mesma
quantidade é definitivamente templária: o desenho do chão da capela baseia-se na cruz dos templários, e
há esculturas que incluem a famosa imagem de dois-homens-em-um-cavalo representada em seu selo. E
um antigo bosque ali perto foi plantado de modo a formar o desenho da cruz dos templários.
Tudo isso é muito curioso, pois, de acordo com os clássicos textos históricos, a maçonaria data de não
antes que 1500, e, após 1312, os templários não eram mais uma força a ser levada em consideração.
Assim, a imagem na capela, que data de cerca de 1460, deveria ser muito recente para a primeira e
muito tardia para os últimos.
Há, porém, muito simbolismo na Capela de Rosslyn que não é classicamente nem maçônico, nem
templário. Há uma pletora de imaginário pagão e até mesmo algo pertencente ao islamismo. E no lado
de fora da capela há uma representação esculpida de Hermes, uma clara insinuação ao hermetismo,
enquanto o interior é adornado com mais de cem representações do Homem Verde, o deus ce1ta pagão
da vegetação.Tim Wallace-Murphy, em sua história oficial sobre a Capela de Rosslyn, associa o
Homem Verde com o agonizante-e-ressurrecto deus babilônico Tammuz.Todos esses deuses tinham
atributos semelhantes e foram descritos, com freqüência, como tendo as faces verdes, embora o deus
descrito com mais freqüência desse modo seja Osíris, o cônjuge de Ísis.
Quando visitamos Niven Sinclair, um dos membros dessa ilustre família, ficamos completamente
atordoados com a evidência de que os Sinclairs não só tinham sido templários, como também pagãos.
Niven, que é um pesquisador apaixonado da história de Rosslyn e dos Sinclairs, nos passou algumas de
suas próprias e bastante esclarecedoras percepções sobre o que teria acontecido com o conhecimento
perdido dos templários. Disse que esse estava presente, todo codificado, no prédio da Capela de
Rosslyn, para que pudesse ser passado para as gerações futuras. Em suas palavras, 'o conde William St
Clair construiu a capela em uma época em que os livros podiam ser queimados ou proibidos. Ele quis
deixar uma mensagem para a posteridade' .
Conforme Niven se soltava mais ao falar sobre esse assunto deixava gravada em nossas mentes a grande
engenhosidade de seu antepassado, Sir William, ao criar esse livro escrito na rocha. Nas palavras dele,
'Se você for à Catedral de St Paul, você pode conhecê-la em uma única visita. Se você for à Capela de
Rosslyn, você não pode. Acredito que o número de vezes que lá estive chega às centenas, e toda vez que
vou encontro algo novo. Essa é a beleza do lugar' .
Rosslyn está longe de ser uma típica capela cristã. Na verdade, Niven chegou a ponto de dizer 'que se
afirmava que o conde William construiu a Capela de Rosslyn para a "maior glória de Deus". Se assim
foi, é de se notar como são poucos os símbolos cristãos que você encontra lá dentro'.
Na Idade Média, os Sinclairs patrocinaram várias celebrações pagãs e propiciaram um refúgio seguro
para os ciganos (de quem se dizia estar entre os últimos a manter vivo o culto às Deusas na Europa). E,
o que é impressionante, muitas autoridades acreditam que na cripta da Capela de Rosslyn costumava
haver uma Madona Negra.
Viríamos a descobrir, um tanto chocados, que os templários não eram de modo algum os educados
cavaleiros cristãos da imaginação popular. A imagem que haviam criado para eles mesmos, como uma
capa, havia sido muito bem construída. Eles, porém, pretendiam deixar pistas sobre suas preocupações
verdadeiras, obviamente 'para aqueles que têm olhos que vêem'. A decoração da Capela de Rosslyn era
apenas mais um exemplo dessas mensagens codificadas porém reveladoras.
O amor que os templários tinham pelo conhecimento e sua preservação pode ser vislumbrado pelo fato
de também encontrarmos na capela Rosslyn o 'Manuscrito Rosslyn-Hay' que é a obra escocesa mais
antiga em prosa. Esse manuscrito é uma tradução dos textos de René d'Anjou sobre o cavalheirismo e a
arte de governar, e em sua capa há as seguintes palavras inscritas: 'JHESUS [sic] - MARIA -
JOHANNES (Jesus, Maria, João). Como Andrew Sinclair coloca em seu livro The Sword and the Grail
(1992):

A inclusão do nome de São João junto ao de Jesus e Maria é incomum, mas ele era venerado pelo
gnósticos e templários... Outra notável característica da capa é o uso de Agnus Dei, o Cordeiro de
Deus... Na Capela de Rosslyn, também está esculpido o Brasão dosTemplários com o Cordeiro de Deus.

O Conde William e René d' Anjou eram bastante próximos, e ambos eram membros da Ordem do
Velocino de Ouro, um grupo cuja declarada intenção era restabelecer os antigos ideais de cavalheirismo
e fraternidade dos templários.
Está claro que os templários sobreviveram na Escócia e continuaram trabalhando abertamente, não
só em Rosslyn como também em vários outros locais. Em 1329, no entanto, sua vida encantada estava,
uma vez mais, sob ameaça, quando a excomunhão de Robert Bruce foi retirada e a sombra da autoridade
do Papa voltou a assombrá-los. Em um determinado momento chegou a haver a possibilidade real de
uma cruzada ser lançada contra a Escócia, e embora tal não ocorresse, os templários escoceses acharam
mais prudente permanecer em segredo, como muitos de seus irmãos europeus; e foi, afirma-se, a partir
daí que a maçonaria deu seus primeiros passos.
Certos ramos da maçonaria sempre afirmaram ser descendentes dos templários e originárias da Escócia,
mas poucos historiadores, mesmo os de dentro da própria maçonaria, os levaram a sério. Esses maçons
'templaristas' podem realmente ter herdado segredos genuínos dos templários, ao menos em parte. Seu
conhecimento, que inclui a sabedoria hermética e alquimia, além da geometria sagrada, ainda é
considerado uma preciosidade, talvez porque nos remetam a assuntos bastante diferentes dos do mundo
atual.
Foi um escocês, Andrew Michael Ramsay, quem entregou aos maçons de Paris, em 1737, aquilo que
ficou conhecido como a 'Oração de Ramsay' . Cavaleiro da Ordem de São Lázaro e tutor do Belo
Príncipe Charlie, 'Chevalier' Ramsay fez questão de frisar que a fraternidade descendia dos Cavaleiros
das Cruzadas, o que era uma referência quase explícita aos templários. Era do seu interesse usar essa
terminologia oblíqua, pois os templários ainda eram um anátema para a sociedade francesa. A 'Oração'
também afirmava, de um modo controverso, que os maçons originaram-se das escolas de mistério das
deusas Diana, Minerva e Ísis.
Durante anos a Oração atraiu apenas desprezo, não apenas em razão da declaração sobre sua origem na
adoração às Deusas, mas também porque Chevalier Ramsay afirmou que a Ordem não descendia dos
pedreiros medievais.As autoridades no assunto, referindo-se a essa declaração, disseram que como isso
era obviamente inverídico colocava todo o resto da Oração em dúvida. Como já vimos, porém, recentes
pesquisas demonstraram que não havia guildas de pedreiros na Inglaterra medieval, portanto talvez
pudéssemos dar ao velho e bom Chevalier ao menos o benefício da dúvida, nessa e em outras
declarações suas.
Pela primeira vez, através da Oração, de 1737, sugeriu-se publicamente que a maçonaria descendia dos
templários; haveria alguma conexão entre isso e o fato de, pouco mais de um ano depois, o Papa ter
acusado a toda a fraternidade dos maçons? É espantoso que, mesmo nessa época já recente, a Inquisição
tenha prendido e torturado maçons como um resultado direto da bula papal.
Depois das quase explícitas insinuações de Ramsay sobre a conexão com os templários, veio à tona
uma declaração ainda mais afirmativa e impositiva. Em um dos episódios mais controversos da história
dos maçons, Karl Gotthelf, o Barão von Hund und Alten-Grotkau, afirmou que fora iniciado em uma
Ordem Maçônica do Templo em Paris, em 1743, que lhe haviam transmitido a 'verdadeira' história da
maçonaria, e que fora devidamente autorizado a abrir lojas maçônicas pela linha de autoridade
competente, que ele chamou de 'Estrita Observância Templária', conhecida na Alemanha como Os
Irmãos de João Batista, o que é bastante significativo. A verdadeira história que havia sido transmitida a
ele incluía a informação de que alguns dos cavaleiros templários, quando a ordem foi suprimida,
haviam fugido para a Escócia e lá se estabeleceram. O Barão von Hund possuía uma lista que ele
afirmava ser os nomes dos Grão-Mestres que sucederam Jacques de Molay no movimento secreto dos
templários após sua supressão.
As lojas de Von Hund alcançaram quase que imediatamente um êxito enorme. Infelizmente, porém, ele
não fez nenhum amigo entre os historiadores, que o denunciaram como um rematado charlatão e
classificaram sua versão da 'verdadeira história' como uma completa tolice. Também desdenharam sua
lista de supostos Grão-Mestres.A razão principal para esse desprezo generalizado era que suas
afirmações estavam baseadas nas palavras de fontes anônimas, que ele chamou de 'Superiores
Desconhecidos', e portanto, parecia que ele, simplesmente, havia forjado tudo. Na verdade, fontes
anônimas são ocorrências freqüentes nos grupos ocultos, como podemos testemunhar pessoalmente, e
recentemente alguns nomes bastante críveis foram atribuídos aos Superiores Desconhecidos, e então
pode ser que, afinal de contas, ele tenha dito a verdade sobre seus contatos.
É bastante significativo que os historiadores nunca tenham sido capazes de produzir uma lista definitiva
dos Grão-Mestres dos templários históricos, em virtude da natureza incompleta dos arquivos
disponíveis. A lista de von Hund, porém, é idêntica à que aparece nos Dossiês secretos do Monastério
de Sion. A pesquisa de Baigent, Leigh e Lincoln os convenceu de que a lista do Monastério é a mais
precisa das que estão disponíveis. Essa lista resiste ao escrutínio acadêmico e pode ser que esteja
correta, embora, devido à falta de registros, não possamos estar totalmente seguros. No entanto, embora
a lista do Monastério possa, sejamos cínicos, ter sido fabricada na década de 50, é improvável que von
Hund também pudesse ter inventado algo semelhante por volta de 1750, quando não havia nenhum
registro disponível e nenhuma pesquisa histórica sobre os templários. No mínimo, esse elo revela uma
tradição compatível entre a Estrita Observância Templária e o Monastério.
Embora muitas palavras tenham sido escritas sobre as declarações de von Hund e de sua organização, há
uma curiosa ausência de especulação sobre qual poderia ter sido sua motivação subjacente. Na verdade,
a Estrita Observância era basicamente uma rede a/química, e ele era primordialmente um alquimista.
Estaria Von Hund dando continuidade à tradição dos templários?
Qualquer que seja a verdade por trás daquela organização e das preocupações de von Hund, a maçonaria
templarista logo se estabeleceu e rapidamente se tornaria um formato maçônico majoritário em ambos
os lados do Atlântico. (Tem sido colocada a idéia de que os templários efetivamente se 'esconderam' nos
altos graus da maçonaria.) A maçonaria templarista também teve influência em um outro ramo que se
tornaria importante para nossa própria linha de pesquisa: a Maçonaria Ritual Escocesa, especialmente o
formato conhecido como o Ritual Escocês Purificado, que é particularmente forte na França.
Os maçons franceses têm uma curiosa lenda sobre 'Maitre Jacques', uma figura mítica que era o protetor
da guilda dos pedreiros franceses na Idade Média. Ele era, de acordo com a história, um dos mestres-de-
obras que trabalharam no Templo de Salomão.Após a morte de Hiram Abiff, ele deixou a Palestina e,
junto com treze artífices, embarcou para Marselha. Os partidários de seu grande inimigo, o mestre-de-
obras Pai Soubise, queriam matá-lo. Ele, então, se escondeu na caverna de Sainte-Baume, a mesma que
tempos depois seria ocupada por Maria Madalena.Tudo em vão: foi traído e assassinado. Os maçons
ainda realizam uma peregrinação ao local todo dia 22 de julho.
Outro forte candidato ao papel de herdeiro do conhecimento esotérico dos templários é o movimento
rosa-cruz. Já tendo sido muito ridicularizado pelos historiadores como uma invenção do início do século
XVII, hoje é crescente o reconhecimento de que eles, verdadeiramente, têm raízes nas tradições do
Renascimento. 'O Rosa-crucianismo' como ideal, ou atitude, se não mesmo como a própria
representação, é reconhecido como uma das forças motrizes da Renascença, um ideal simbolizado por
Leonardo. Como escreveu Dame Frances Yates:

Seria possível que uma pessoa com a personalidade como a de Leonardo fosse capaz de coordenar
seus estudos matemáticos e mecânicos com seu trabalho artístico se sua perspectiva não fosse a de um
Mago?

Com certeza, Leonardo viveu em um período em que grandes movimentos místicos e intelectuais agiam
como um ímã para aqueles que estavam famintos por conhecimento e poder. Devido à hostilidade da
Igreja, esses movimentos tiveram que permanecer secretos, mas os três ramos principais que
floresceram em segredo eram a alquimia, o hermetismo e o gnosticismo. O hermetismo, que forneceu
um impulso importante para o iluminismo Renascentista/Rosa-cruciano, e o gnosticismo, que deu
origem aos cátaros, são dois desdobramentos de uma mesma idéia cosmológica. Em uma hierarquia de
'mundos' ou 'esferas', para usar uma terminologia que lhes era própria, ou 'planos' e 'dimensões' como se
diz hoje em dia, o mundo da matéria é o mais baixo. E o mais alto é Deus. O homem, um ser que já fora
divino, foi 'aprisionado' em seu corpo material, mas ainda possui uma centelha divina. (Um ditado
hermético muito citado era 'Sabias que não és isso, mas que sois deuses?') É possível, na verdade isso é
um dever do Homem, tentar unir-se com o Divino. Os gnósticos expressaram tal tentativa em termos
religiosos (vendo a união com o Divino como uma salvação), enquanto os herméticos colocaram isso em
termos mágicos; a idéia básica, no entanto, é a mesma. É impossível demarcar uma linha clara entre o
gnosticismo e o hermetismo, da mesma maneira que é impossível separar claramente religião e magia.
Além disso, tanto o gnosticismo quanto o hermetismo, se rastreados de volta no tempo, nos levam à
mesma época e ao mesmo lugar: a efervescência de idéias que aconteceu no Egito, especialmente em
Alexandria, nos séculos I e II a.C. Hermetismo e gnosticismo, um enorme caldo de cultura de idéias
religiosas e filosóficas que se utilizaram das crenças de diversas culturas, como a do antigo Egito, grega,
persa, judia, até mesmo as religiões do Extremo Oriente, com o intuito de criar idéias que sustentem a
nossa cultura como um todo. (A relação íntima entre gnosticismo e hermetismo é demonstrada pelo fato
de que os 'Evangelhos Gnósticos' encontrados no Hag Hammadi incluíam tratados que continham
diálogos de Hermes Trismegistus.)
A cosmologia do Pistis Sophia, o Evangelho Gnóstico no qual Maria Madalena tem um papel
fundamental, não difere em sua essência da dos magos do Renascimento, como Marsilio Ficino,
Cornelius Agrippa ou Robert Fludd. As mesmas idéias, e a mesma cultura, época e lugar deram origem
à alquimia. Embora também tenha se utilizado de muitos conceitos mais antigos, a alquimia era, no
sentido em que é compreendida hoje em dia, um produto do Egito do início da era cristã. As raízes da
alquimia, e seus paralelos com o hermetismo e o gnosticismo, são explorados em The Origins of
Alchemy in Graeco-Roman Egypt (1970), de Jack Lindsay.
Não é difícil de entender o apelo do gnosticismo, embora essa opção não fosse fácil, dada a ênfase
colocada na responsabilidade pessoal pelas próprias ações. E é óbvia a ameaça que isso representava
para a Igreja de Roma. Como HermesTrismegistus, supõem-se, escreveu: 'Oh! Que milagre é o
Homem!', uma frase que abarca a idéia de que a humanidade possui a centelha divina. Nem os gnósticos
nem os herméticos se prostravam perante Deus. Ao contrário dos católicos, eles não viam a si mesmos
como criaturas humildes e más que estavam destinadas a ir para o purgatório, se não mesmo para o
próprio inferno. Reconheciam automaticamente a centelha divina que lhes fora concedida, o que hoje
chamaríamos de 'auto-estima' ou confiança, o ingrediente mágico do processo para o pleno alcance do
potencial de cada um. Essa era a senha do Renascimento, e a intrepidez a que isso induz. pode ser
percebido com a súbita expansão do mundo através da circunavegação e dos descobrimentos. Pior ainda,
no que tangia à Igreja, essa noção de potencial individual para a divindade implicava que as mulheres
eram tão boas quanto os homens, ao menos espiritualmente. Mulheres gnósticas sempre tiveram voz, e
até mesmo oficializaram cerimônias religiosas: essa era um das principais ameaças que o gnosticismo
colocava para a Igreja Católica. Além disso, a idéia do estado essencialmente divino do ser humano não
estava de acordo com a idéia cristã de 'pecado original', a idéia de que todos os homens e mulheres
nascem pecadores em razão da Queda de Adão e Eva (especialmente da última). Pois todas as crianças
são fruto do 'vergonhoso' ato sexual, essa idéia que uniu mulheres e crianças, de modo inextricável, em
uma espécie de conspiração perpétua contra os homens puros e um Deus vingativo. Gnósticos e
herméticos, em geral, não tinham nenhuma noção de 'pecado original'.
Cada indivíduo era encorajado a explorar mundos externos e internos por si mesmo, experienciando a
gnoses, o conhecimento do Divino. Essa ênfase na salvação individual era totalmente antitética à
insistência da Igreja de que apenas os padres eram os canais através dos quais Deus poderia comunicar-
se com a humanidade. A idéia gnóstica, de uma linha direta com Deus, representava uma ameaça real à
própria existência da Igreja. Sem um sacerdote para guiar o rebanho, que chance a Igreja teria de manter
seu controle? Do mesmo modo que a alquimia, seria prudente manter o gnosticismo e o hermetismo
escondidos dos olhos da Igreja.
A combinação de ciência proibida e filosofia anatematizada significava que os praticantes dessas
crenças haviam ultrapassado a linha do aceitável e, portanto, associar-se em uma rede secreta era algo
inevitável. Muitas dessas pessoas (e os alquimistas do Renascimento incluíam as mulheres) também
tinham crenças incomuns sobre assuntos como arquitetura e matemática, além de apreciarem idéias
teológicas excepcionalmente pouco ortodoxas. Essas pessoas eram perigosas, duplamente perigosas em
razão do poder do segredo, que tem o costume de intensificar a heterodoxia. Uma das principais
manifestações dessa heresia era o movimento dos rosa-cruzes.
O termo 'rosa-cruz' data do início do século XVII, mas certamente foi instituído para descrever um
movimento que naquela época já estava bem estabelecido. Seu primeiro grande desabrochar, como o de
tantos outros movimentos significativos, ocorreu durante o Renascimento. Na verdade não é exagero
dizer que o rosa-crucianismo foi o Renascimento.
A segunda metade do século XV viu explodir o interesse pelo hermetismo e pelas ciências ocultas.
Muito pouco da informação envolvida era realmente nova, embora, é claro,houvesse influências e
personalidades que eram contemporâneas, e essa época assistiu a uma vontade sem precedentes de
explorar tudo o que estivesse relacionado com o hermetismo. E de repente, tornou-se um assunto para
debates intelectuais que iam além dos guetos secretos que, até então, haviam sido seus guardiães. Se
dependesse apenas dos entusiastas renascentistas, o hermetismo teria deixado de ser 'oculto'.
Esse surto de fascinação com tudo que fosse referente ao hermetismo tinha seu foco na corte dos
Mediei, em Florença (uma influência poderosa para Leonardo da Vinci e para muitos outros grandes
pensadores). Sob o patronato dos Medicis, especialmente de Cosimo, o Ancião (1389-1464) e de seu
neto Lorenzo, o Magnífico (1449-1492), foi realizada a primeira grande síntese das diversas e
discrepantes idéias ocultistas. Cosimo não só enviou emissários para que procurassem tomos
legendários como o Corpus Hermeticum, supostamente escrito pelo próprio Hermes Trismegistus,
como também patrocinou sua tradução. A corte dos Medici era um salão para os famosos, e quem sabe
notórios, pensadores do ocultismo como Marsilio Ficino (1433-1499), tradutor do Corpus Hermeticum,
e Pico della Mirandola (1463-1494). A maior contribuição deste foi introduzir a teoria e a prática
cabalística nesse cadinho de cultura de idéias ousadas.
Mirandola, talvez em decorrência de um falso senso de segurança dado por seu protetor aristocrático,
era muito franco ao falar de suas idéias ocultas, e logo seus livros foram colocados no Index Papal,
enquanto ele mesmo estava sendo ameaçado pelo Papa Inocêncio VIII. Durante um certo tempo parecia
que Mirandola iria tomar o mesmo rumo de todos aqueles que se opunham ao Vaticano, mas algo
estranho aconteceu. O novo papa, Alexandre VI, pertencente à família dos Borgia, retirou,
misteriosamente, todas as acusações e ameaças contra ele, chegando mesmo a escrever-lhe uma carta
pessoal de apoio. Mas por quê? Talvez uma pista seja o fato de que esse Papa tenha decorado seu
aposento particular no Vaticano com murais que retratavam temas do antigo Egito, incluindo a deusa
Ísis.
Historiadores contemporâneos tendem a desprezar o poder e a influência do ocultismo. Se chegam a
discutir o assunto é apenas para sublinhar, através da comparação, o triunfo do Iluminismo, quando
todas essas 'tolas superstições' foram rejeitadas por qualquer um que fosse minimamente racional. O
ocultismo, porém, manteve-se vivo, e na verdade tornou-se a principal influência do Renascimento.
Essa fascinação pelo ocultismo não era um sintoma da abertura para novas idéias, mas, na verdade, a
sua causa.
Dame Frances Yates retratou a história do verdadeiro papel do ocultismo no progresso do
Renascimento em uma série de livros. Como ela demonstra, a nova filosofia ocultista se difundiu da
Itália para o resto da Europa, culminando com a campanha européia do grande pregador hermético,
Giordano Bruno (1548-1600).Viajando extensamente através de países como a Alemanha e Inglaterra,
ele pregou o retorno ao que era, essencialmente, a antiga religião egípcia, e era caracteristicamente
franco sobre aquilo que considerava como o mal da corrente principal do cristianismo.
O hermetismo, como já vimos, teria sido fundado pelo próprio 'Hermes Três Vezes Grande' através do
fragmento da Tábua de Esmeralda, na qual estão inscritos muitos segredos profundos. Embora poucos
herméticos realmente acreditassem nesse mito, acreditavam na continuidade do significado do panteão
egípcio. Mas enquanto a maioria dos herméticos do Renascimento acreditavam que seus segredos
teriam vindo do Egito dos Faraós da época de Moisés, eles na verdade vinham de um período bem mais
próximo à época de Jesus. As raízes de suas idéias podem ser localizadas no Egito dos três primeiros
séculos: para além desse período temos que levar em conta a influência de várias outras culturas.
Estudos recentes reconheceram, porém, que, considerando que as gerações anteriores tendiam a
acentuar a influência da filosofia grega, as idéias que remontam à antiga religião dos egípcios tiveram
mais influência no desenvolvimento das idéias herméticas do que se pensava.
Os herméticos reconheceram que, embora a Grécia antiga tivesse muito a oferecer ao homem de idéias,
era o Egito, acima de tudo, que retinha as chaves do conhecimento que eles buscavam. Também
perceberam que esse conhecimento não estava simplesmente esperando para ser colhido: o sistema
egípcio havia sido codificado em uma escola de mistério, e os segredos exigiam estudo dedicado, a fim
de obtê-los através de árduas fases de iniciação progressiva.
Giordano Bruno chegou à Inglaterra em 1583 e rapidamente travou contato com luminares como Sir
Philip Sydney, autor de Arcadia, entre outras obras. Sydney, que era um estudioso do grande ocultista
inglês Dr. John Dee (1527-1606), era uma das figuras principais desse mundo sombrio, e Bruno
dedicou-lhe duas de suas obras durante o período em que esteve na Inglaterra. E há a possibilidade de
uma outra figura dos círculos interligados da sociedade elizabetiana e ocultista ter estado presente ao
encontro de Bruno e Sydney, William Shakespeare. (O teatro de Shakespeare, Global Theatre, em
Londres foi construído segundo os princípios herméticos da geometria sagrada, e talvez sua última peça,
A Tempestade, tenha sido sobre Dr. Dee, e incorpore uma grande variedade de conceitos rosa-cruzes;
pelo menos é o que alguns afirmam.)
A figura de Bruno se equipara à de Lutero ou Calvino, mas seu nome raramente é mencionado na
história que é ensinada nas escolas. Assim como esses grandes nomes da reforma, Bruno não tinha
nenhum compromisso nem poderia se reconciliar com os costumes de sua época. Mas ao contrário
daqueles, Bruno não estava pregando uma versão aceitável do cristianismo, e em razão disso seus dias
estavam contados. Some-se a isso sua própria natureza bombástica e não é nada difícil predizer qual
seria seu destino. Bruno foi queimado na fogueira em 1600, em Roma, depois de ter sido traído e denun-
ciado à Inquisição por um discípulo desencantado.
Bruno fundou sua própria sociedade secreta, a Giordanista, na Alemanha. Pouco se conhece sobre ela,
mas sabe-se que essa sociedade tornou-se uma das maiores influências para o desenvolvimento do
movimento dos rosa-cruzes na Europa. Igual reconhecimento deveria ser dado ao Dr.John Dee, um ver-
dadeiro feiticeiro gaulês. Homem de muitas faces, ele não só era o astrólogo e conselheiro de Elizabete
I, como era também um mestre da espionagem, além de alquimista e necromante. (E algo que não é
muito conhecido é que o cognome do Dr. Dee como espião era '007'!).
Dessas raízes o rosa-crucianismo cresceu, sendo um dos movimentos mais misteriosos da história. Sua
existência tornou-se pública quando dois tratados anônimos, o Fama Fraternitatis, ou Uma Revelação
da Fraternidade da Nobre Ordem da Rosa Cruz, e a Confessio Fraternitatis, ou O Credo da Louvável
Fraternidade da Mais que Honorável Ordem da Rosa Cruz, circulou pela Alemanha em 1614 e 1615.39
Essas publicações anunciaram a existência de uma fraternidade secreta de adeptos da magia, os rosa-
cruzes, cujo nome era uma homenagem a seu fundador mítico Christian Rosenkreutz (Cristiano Rosa
Cruz).
Esse herói supostamente viajou pelo Egito e Terra Santa coletando segredos e conhecimento que então
transmitiu para uma nova geração de adeptos. Mas se sua vida era incomum, sua morte e enterro foram
ainda mais estranhos. Dizem que Rosenkreutz tinha 106 anos quando morreu, em 1484, sendo enterrado
em um local secreto que era mantido iluminado por um 'Sol interno' . Também dizia-se que seu corpo
era 'indestrutível', tendo permanecido natural, sem se decompor (um fenômeno que parece ocorrer a um
número surpreendente de defuntos, que na maioria dos casos, contudo, são de santos católicos).
Esses Manifestos Rosa-cruzes, como logo ficaram conhecidas suas publicações, não reproduziam
nenhum de seus segredos, mas ao anunciarem a existência da fraternidade também insinuavam que
qualquer um que quisesse saber mais deveria entrar em contato com eles. Provavelmente, isso era algum
tipo de teste de iniciativa pois não era fornecido nenhum endereço para correspondência. Essa
abordagem era o suficiente para que os Manifestos sofressem o desprezo de todos os historiadores da
corrente principal de pensamento, que os desdenhavam como algum tipo esquisito de trapaça. Mas,
como mostrou Frances Yates, aqueles que escreviam os Manifestos revelavam ter um conhecimento
profundo e genuíno da sabedoria hermética e alquímica. Era bastante significativo que eles
considerassem a alquimia como uma disciplina espiritual e não estivessem interessados na fabricação de
ouro, o que consideravam algo 'ímpio e amaldiçoado' .
Qualquer que seja a verdade sobre as origens dos rosa-cruzes, eles influenciaram um grande número de
renomados pensadores, como Robert Fludd (1574-1637) e Sir Isaac Newton.Até mesmo,
inesperadamente, o afamado racionalista Francis Bacon era, em essência, um rosa-cruz. E isso fazia
sentido, pois o movimento dos rosa-cruzes era uma síntese de todos os conceitos herméticos e ocultistas:
a única coisa verdadeiramente nova no rosa-crucianismo era o nome. E Frances Yates não teve nenhum
temor em dizer que Leonardo, dentre tantas pessoas, foi um dos 'primeiros rosa-cruz' .
Como já vimos, o nome de Leonardo aparece na lista dos Grão-Mestres do Monastério de Sion, mas ele
não poderia dizer que era um rosa-cruz pois o termo ainda não tinha sido cunhado em sua época. Outros
daquela lista, porém, não tiveram o mesmo problema, como Johann Valentin Andrea (1586-1654), o
dramaturgo e poeta alemão que também havia sido pastor luterano. Os Dossiês secretos afirmam que ele
foi um dos dirigentes do Monastério, de 1637 a 1654, porém, acredita-se muito mais que ele teria escrito
os Manifestos Rosa-cruzes, ou pelo menos que estava por trás destes.
Andrea, com certeza, escreveu o terceiro Manifesto, O Casamento Alquímico de Christian Rosenkreutz,
em 1616, muitos anos antes da época em que dizem que ele se tornou chefe supremo do Monastério.
Talvez seu papel como líder rosa-cruz é que lhe tenha assegurado o posto no Monastério. Realmente,
parece que o tema rosa-cruz era o traço comum que ligava todos os (supostos) quatro Grão-Mestres do
século XVII. Então, de certo modo, isso aumenta a credibilidade da lista, pois foi apenas nos anos
setenta que Frances Yates confirmou a existência e influência do legado dos rosa-cruzes.
A sucessão de rosa-cruzes entre os Grão-Mestres do Monastério começou, até onde sabemos, com
Robert Fludd, o alquimista inglês cujo período no cargo durou de 1595 a 1637. Fludd afirmou que havia
tentado encontrar os rosa-cruzes, com idéias de se unir a eles, após ter lido os Manifestos, porém, não
os achou. Não obstante, escreveu bastante sobre o assunto e incorporou idéias dos Manifestos em suas
próprias obras, que eram muito influentes, como Utriusque cosmi historia (História dos Dois Mundos)
(1617). (O comentador ocultista Lewis Spence notou que Robert Fludd, ao escrever na década de 1630,
utiliza 'um idioma com fortes traços maçônicos', e que ele também organizou 'sua sociedade' em graus.)
Depois de Fludd veio o próprio Andrea, que foi Grão-Mestre até sua morte em 1654, e foi sucedido por
Robert Boyle, o químico de Oxford.
Até onde pode ser averiguado, Boyle nunca mencionou a palavra 'rosa-cruz' em seus textos, mas eles
denotam bem mais do que uma certa familiaridade com os conteúdos dos Manifestos. E quando fundou
o que viria a se tornar a Sociedade Real, sob o nome de O Colégio Invisível, essa era uma referência
irônica à descrição comum que os rosa-cruzes faziam de si mesmos como uma sociedade 'Invisível' .
Chegamos então a Isaac Newton, que afirmam ter sido Grão-Mestre do Monastério de 1691 a 1727.
Bastante conhecido como praticante de alquimia, ele também possuía uma cópia da tradução inglesa
dos Manifestos, embora haja evidências de que via na história de Rosenkreutz apenas um mito, que era
como deveria ser visto. (Comentadores esotéricos, ao menos, sempre afirmaram que nunca se pretendeu
que fossem vistos como uma verdade literal.) Apenas recentemente reconheceu-se a total extensão do
envolvimento de Newton com o ocultismo: mais de 10 por cento de seus livros eram tratados
alquímicos. Talvez ainda mais impressionante, ele também desenhou a planta baixa do Templo de
Salomão.
O rosa-crucianismo tinha também uma forte conexão com o florescer da maçonaria. Os dois maçons
ingleses mais conhecidos, Elias Ashmole e o alquimista Sir Robert Moray, estavam ligados ao
movimento dos rosa-cruzes. Ashmole, em particular, era um rosa-cruz conhecido, enquanto Moray, de
acordo com Frances Yates, 'fez, provavelmente, mais do que qualquer outro indivíduo para fomentar a
fundação da Sociedade Real'.50 Existiam, também, várias referências na antiga literatura maçônica que
explicitamente vinculavam 'os Irmãos da Rosa Cruz' com os maçons, embora também parecessem
indicar que eles estavam relacionados, mas continuavam a ser sociedades distintas.
A interconexão entre rosa-cruzes, maçonaria, hermetismo e alquimia, prévia e esmeradamente
reconstituída por historiadores como FrancesYates, tem sido dramaticamente confirmada nos anos
recentes pela descoberta de uma coleção de documentos que ilustram até que ponto tais movimentos e
assuntos estavam integrados. Em 1984, Joy Hancox, professor de música de Manchester, como
resultado de suas pesquisas sobre a história da casa onde ela morou, deparou-se com uma coleção de
documentos, principalmente diagramas e desenhos geométricos, que tinham sido reunidos por John
Byrom (1691-1763) e que haviam sido guardados por seus descendentes que não tinham idéia de seu
significado. Esses documentos, cerca de 500, relacionam-se principalmente com a geometria e a
arquitetura sagradas, e simbolismo cabalístico, maçônico, hermético e alquímico.
A importância da 'Coleção Byrom' está na luz que ela joga nas inter-relações desses assuntos, e nos
indivíduos, a nata dos círculos intelectual e científico da época, que se ocupavam deles. Byrom, uma
das principais figuras do movimento jacobino que intentava o restabelecimento dos Stuarts no trono
inglês, era membro da Sociedade Real e da maçonaria. Fazia parte do 'Clube da Cabala', conhecido
como o Clube do Sol, que se reunia em um edifício no Adro de St Paul, que também era a casa de uma
das quatro lojas do Grande Oriente da Maçonaria Inglesa. Seu diário revela que ele havia entrado em
contato com os principais intelectuais da época.
A obra incorporada em sua coleção foi extraída de todas as sociedades e indivíduos sobre os quais
vimos discutindo, inclusive os rosa-cruzes, John Dee (de quem Byrom era aparentado, via casamento),
Robert Fludd, Robert Boyle e até mesmo os cavaleiros templários.
A coleção inclui diagramas que detalham a geometria sagrada de numerosas construções de diversos
períodos, mostrando, então, a continuidade do conhecimento dos princípios subjacentes a essas
construções. Por exemplo, um dos diagramas mostra que o projeto da capela de meados do século XV,
do Kings College (Faculdade dos Reis), Cambridge, 'uma das últimas grandes estruturas góticas
construídas nesse país', baseava-se na cabalística Árvore da Vida (uma conclusão a que já havia
chegado Nigel Pennick, uma autoridade em simbolismo esotérico). O projeto da capela foi
aparentemente derivado da catedral de Albi, no Languedoc, datada do século XIV; anteriormente um
dos centros cátaros. A coleção também inclui um diagrama da Igreja do Templo, em Londres, como
também de outras construções templárias, mostrando mais uma vez que todas essas construções faziam
parte de uma tradição contínua e que os membros das fraternidades rosa-cruz/maçônica do século
XVIII estavam conscientes disso. A coleção de Byrom também contém material relativo ao Templo de
Salomão e à Arca da Aliança.
Se, como parece ser o caso, os maçons fossem os descendentes dos templários, seria possível que os
rosa-cruzes também pertencessem à mesma linhagem? O próprio nome 'Rosa Cruz' alude fortemente a
esses cavaleiros, cujo emblema era uma cruz vermelha, ou roseate. No livro Chemical Wedding de
Andrea, a cruz vermelha sobre um fundo branco é um tema recorrente, e sua obra, de um modo geral,
tem fortes conotações das histórias do Graal e, portanto, dos templários. E a presença de material dos
templários nos documentos predominantemente rosa-cruzes de Byrom indicam que essa fraternidade e
a dos maçons compartilhavam uma origem comum.
Entretanto, enquanto os maçons eram, e ainda são, uma organização definida, com membros e locais
conhecidos onde se reúnem, os rosa-cruzes normalmente eram vistos como sendo mais esquivos, a
ponto de a palavra 'rosa-cruz' ser usada como o significado de um ideal ao invés de descrever uma
sociedade. Realmente, os próprios Manifestos se referem aos rosa-cruzes como uma 'sociedade
invisível'. No entanto, a primeira sociedade rosa-cruz 'concreta e visível' foi a Ordem da Dourada e
Rósea Cruz, fundada na Alemanha, em 1710, por Sigmund Richter, cujo propósito primário era a
pesquisa alquímica. Porém, passados sessenta anos, essa Ordem foi transformada na Loja Maçônica da
Estrita Observância Templária, embora ainda mantivesse sua natureza alquímica. Sob essa forma teve
muitos membros influentes, inclusive Franz Anton Mesmer (1734-1815), o descobridor do magnetismo
animal (embora não seja, como freqüentemente é declarado, o pioneiro do hipnotismo). O próprio fato
de uma sociedade rosa-cruz transformar-se tão prontamente em uma Loja de Estrita Observância
Templária revela a herança comum entre elas.

Após 1750, a história torna-se desesperadamente confusa. Onde antes havia claras distinções entre
maçons, rosa-cruzes e as organizações que afirmavam ser originárias dos templários, de repente todos
esses grupos tornam-se tão intimamente entrelaçados que parecem ser o mesmo e único. Por exemplo,
em alguns tipos de maçonaria, os iniciados usavam o título de 'Cavaleiro Templário' e de 'Rosa Cruz', e
é impossível determinar se isso ocorria porque havia uma linhagem genuína de descendência ou
simplesmente porque esses títulos lhes soavam grandiosos. Estima-se que foram acrescentados mais de
800 graus e rituais à maçonaria entre 1700 e 1800.
As tentativas de localizar uma linhagem direta de sucessão dos templários na maçonaria e no rosa-
crucianismo logo mostraram-se aflitivas, em razão da enorme proliferação de ritos e sistemas
maçônicos. Isso é particularmente confuso porque em muitos casos é impossível estabelecer quais
sistemas eram inovações do século XVIII e quais eram genuinamente mais antigos.
Entretanto, é possível encontrar uma linha comum entre certos sistemas maçônicos que não haviam sido
admitidos ou foram rejeitados pela corrente principal da maçonaria. Essas são variações da maçonaria
'ocultista', e todas são originárias da Estrita Observância Templária, do Barão von Hund. O
desenvolvimento dessas aconteceu principalmente na França (veja Apêndice). A chave para se entender
isso é um sistema maçônico conhecido como o Ritual Escocês Purificado, que se dedicava
especificamente a estudos sobre o ocultismo e coloca bastante ênfase em suas origens templárias.
Também é essa forma de maçonaria que tem as ligações mais íntimas com as sociedades rosa-cruzes.
O uso da palavra 'Templária' tornara-se um problema para essa escola maçônica. Havia atrito entre seus
membros e a corrente maçônica majoritária, que oficialmente rejeitava as afirmações de uma origem
templária, irritando-se, particularmente, com a declaração de von Hund de que 'Todo maçom é um
templário'. Mais preocupante ainda eram as suspeitas que eles atraíram das autoridades. Havia um
grande número de boatos que diziam que os templários tinham um plano secreto para se vingar da
monarquia francesa e do papado, em razão da supressão de sua Ordem e da execução de Jacques de
Molay. Por causa disso, realizou-se uma Convenção de Maçons 'Templaristas' em Lyon, em 1778, no
qual o Ritual Escocês Purificado foi criado, com uma ordem interna chamada Chevalier Bienfaisant de
la Cité Sainte. No entanto, esse era apenas um outro nome para 'Templária' .
Uma influência importante na Convenção de Lyon, e do subseqüente esoterismo francês,foi o filósofo
ocultista Louis Claude de Saint-Martin (17431804). Embora fosse provavelmente celibatário, sua
filosofia centrava-se na reverência ao Feminino na forma de Sophia, a quem considerou como 'a forma
feminina do Grande Arquiteto'. O 'martinismo' era a filosofia ocultista mais influente, não apenas
naqueles tipos de maçonaria ocultista, como também nas sociedades rosa-cruzes da França do século
XIX, que serão discutidas de forma completa no próximo capítulo.
Alguns anos depois da reunião de Lyon, em 1782, outra grande conferência maçônica, dessa feita com
representantes de todos os grupos maçônicos da Europa, aconteceu em Wilhehnsbad, em Hessen, sob a
presidência do Duque de Brunswick. Seu propósito era cicatrizar as profundas divisões internas da
maçonaria, resolvendo de uma vez por todas as querelas entre a maçonaria e os cavaleiros templários. O
resultado representou uma humilhação para o Barão von Hund, que viera para discutir o caso dos
templários, e isso importava efetivamente no fim da Estrita Observância Templária. Entretanto, os
templaristas ganharam uma batalha: a convenção, concordou em aceitar o Ritual Escocês Purificado,
que era exatamente a mesma coisa que a Estrita Observância Templária com um outro nome.
Também importantes para a maçonaria ocultista eram os sistemas conhecidos como 'Rituais Egípcios',
que iriam assumir grande relevância em nossa investigação. Todos eles, contudo, derivavam da Estrita
Observância Templária tão amada por von Hund, e estão, portanto, muito próximos do Ritual Escocês
Purificado. Ao contrário da imagem habitual da maçonaria, eles davam especial ênfase no Feminino
(alguns tipos incluíam lojas femininas ativas).Todos os maçons veneravam o misterioso 'filho da viúva'.
Nos Rituais Egípcios, a 'viúva' era Ísis.
O Monastério de Sion, com sua própria e conhecida ênfase em Ísis, afirma que a origem disso foi o
círculo interno da Ordem dos Templários, e naturalmente desenvolveu-se ao longo dos anos, granjeando
outras associações esotéricas, algumas delas bastante notáveis.Uma das principais influências parece ter
sido Jacques-Étienne Marconis de Negre (1795-1865), que fundou um dos Rituais Egípcios da
Maçonaria ocultista, em 1838, conhecido como o 'Ritual de Memphis' . Essa, afirma-se, também era
fruto da tradição 'templarista' de von Hund.
Marconis de Negre esboçou um elaborado 'princípio mitológico' para sua organização, fazendo a
habitual declaração grandiosa de que o ritual remontava à Antigüidade, para um grupo chamado
Sociedade dos Irmãos da Rosa-cruz do Leste. Esta, por sua vez, havia sido fundada por um sacerdote da
antiga religião egípcia chamado Ormus, que se converteu ao cristianismo pelas mãos de São Marcos, e
cujos discípulos incluíam vários essênios.
O mito de Ormus é fruto de quatro influências: rosa-cruz, egípcia, esoterismo hebreu, como a cabala
(acredita-se que os essênios eram cabalistas), e cristã, de um tipo herético, talvez.
O que realmente nos interessou sobre esse mito foi que, como sabem os leitores de The Holy Blood and
the Holy Grail, o Monastério de Sion tomou o nome 'Ormus' como seu 'subtítulo'. E iríamos aprender
que a história de Ormus antes aparecera conectada à Ordem do Dourado e Róseo, quando esta se tornou
a Loja da Estrita Observância Templária, em 1770. Mas, como veremos, a história por trás disso tem
implicações mais amplas, no que se refere aos tópicos desta investigação.

Talvez não seja surpreendente que existam sociedades que afirmem ser as sucessoras oficiais dos
templários. A maioria pode ser facilmente descartada, embora a Antiga Ordem Militar do Templo de
Jerusalém seja um caso a ser levado em consideração. Está atualmente baseada em Portugal, e seus
membros declaram se concentrar no trabalho da caridade e pesquisa histórica, embora haja um pequeno
grupo que opera sob o evocativo nome de Sion na Suíça. Suas origens, porém, em sua forma
ressurrecta, estavam na França.
A Antiga Ordem Militar do Templo de Jerusalém foi fundada em 1804, por um doutor com o sonoro
nome de Bernard Raymond Fabré-Palaprat, que afirmava ter obtido seu poder através da Tbe Charter of
Transmission of Larmenius (A Escritura de Transmissão de Larmenius), mais conhecida simplesmente
como a Escritura de Larmenius. Se isso é verdade, teríamos que percorrer um longo caminho até
concluir que Fabré-Palaprat realmente pertencia à verdadeira linhagem dos templários, pois essa
Escritura deve ter sido escrita em 1324 por Johannes Mareus Larmenius, que tinha sido designado
Grão-Mestre pelo próprio Jacques de Molay. O manuscrito supostamente porta as assinaturas de todos
os Grão-Mestres subseqüentes da Ordem, o que é significativo porque, depois da execução de Molay,
supunha-se que não haveria mais nenhum outro.
Já era de se esperar que os historiadores caracterizassem a Escritura como sendo uma falsificação. Até
mesmo escritores mais liberais como Baigent e Leigh concordam que isso foi uma brincadeira. Como
de costume, porém, os críticos nunca chegaram realmente a vê-la, baseando suas objeções em uma
tradução do original, do século XIX. (O documento foi escrito em latim, que foi transcrito em um
código baseado na geometria da cruz dos templários.) Uma das razões de ter sido considerado uma
falsificação é que o latim é muito bom para a época, pois o latim medieval era notoriamente coloquial.
O que aconteceu na verdade foi que o tradutor corrigiu a gramática. Os mesmos críticos também
desconsideraram a lista de declarações dos Grão-Mestres porque o formato das palavras em cada uma é
exatamente o mesmo, algo bastante improvável de acontecer em um lapso de tempo tão grande quanto
entre 1324 a 1804. Mais uma vez, a razão é simples: o transcritor as padronizou, no original elas eram
todas diferentes. Assim, as duas objeções principais à Escritura de Larmenius não tinham qualquer
consistência.
Outra razão da Escritura ter sido criticada é a de que contém uma fulminação contra 'os desertores
templários escoceses' que, Larmenius assevera, deveriam ser 'destruídos pela excomunhão' (junto com
os Cavaleiros Hospitalários). Pressupondo que esses desertores eram os maçons da Estrita Observância,
do Barão von Hund, os historiadores tomam isso como se fosse a prova de que a Escritura era uma
fraude, porque acreditam que o barão tinha inventado a 'transmissão escocesa' por volta de 1750. Mas se
ele estava contando a verdade sobre as reais origens dos maçons, um quadro radicalmente diferente se
faz presente.
Na realidade, a Antiga Ordem Militar do Templo afirma que a Escritura já tinha pelo menos cem anos
de existência antes de Fabré-Palaprat torná-la pública, quando Filipe, Duque de Orléans, e próximo
regente da França, usou essa declaração pública como a razão para convocar uma assembléia dos
membros do Templo, em Versalhes. Se isso é verdadeiro, então esse evento já torna clara a continuidade
da existência dos templários na Europa. (Foi o mesmo Duque de Orléans quem introduziu Chevalier
Ramsay na Ordem de São Lázaro.)
Além da Escritura de Larmenius, Fabré-Palaprat possuía outro documento importante, que também foi
desconsiderado sem ter sido visto pela maioria dos comentadores. Esse documento era o Levitikon, uma
versão do Evangelho de João com ruidosos desdobramentos gnósticos, e que fora encontrado em um
sebo de livros. Mais uma vez, o documento parece estar bem escrito demais, mas se for autêntico, lança
alguma luz sobre as razões verdadeiras de se manter grande parte do conhecimento gnóstico em segredo.
Pois o Levitikon, uma versão do Evangelho de São João datado do século XI, conta uma história muito
diferente da que se encontra no livro de mesmo nome do Novo Testamento.
Fabré-Palaprat usou o Levitikon como base para fundar a Igreja Joanina Neo-Templária, no ano de 1828,
em Paris, onde seus próprios discípulos, no devido tempo, foram iniciados. Dez anos após sua morte, Sir
William Sydney Smith, o alto dirigente da maçonaria e herói das Guerras Napoleônicas, assumiu o
poder.
O Levitikon, que havia sido traduzido do latim para o grego, consiste de duas partes. A primeira contém
as doutrinas religiosas ensinadas ao iniciado, inclusive rituais relativos aos nove graus da Ordem dos
Templários. Descreve a templária 'Igreja de João' e explica o fato deles se auto-proclamarem 'joaninos',
ou 'cristãos da origem'.
A segunda parte é igual ao Evangelho de João, com exceção de algumas significativas omissões. Os
capítulos 20 e 21, os dois últimos do Evangelho, estão perdidos. Isso elimina também qualquer idéia de
milagre advindo das histórias de água transmudando-se em vinho, os pães e os peixes, e a ressurreição
de Lázaro. E certas referências a São Pedro foram suprimidas, inclusive a histórica frase de Jesus,
'Sobre essa pedra edificarei minha igreja'.
Se isso, porém, é um tanto confuso, o Levitikon também contém material surpreendente, chocante até:
Jesus é apresentado como tendo sido um iniciado nos mistérios de Osíris, o principal deus egípcio
daquela época.
Osíris era o cônjuge de sua irmã, a bela deusa Ísis, que governava o amor, a cura e a magia, entre
muitos outros atributos. (Tal relação incestuosa pode parecer chocante hoje em dia, mas era parte da
tradição faraônica, e teria parecido perfeitamente normal a qualquer adorador do Egito antigo.) Seu
irmão, Set, queria que Ísis fosse dele e tramou a morte de Osíris. Ele foi pego de surpresa pelos
companheiros de Set, que retalhou seu corpo e espalhou seus restos mortais. Terrivelmente angustiada,
Ísis vagou pelo mundo à procura dos restos mortais de Osíris, tendo sido ajudada em sua busca pela
deusa Nepthys, esposa de Set, que desaprovou o crime de seu marido. As duas deusas encontraram
todos os pedaços de Osíris, menos o falo. Reagrupando-os, Ísis utilizou um falo artificial com o qual ela
magicamente concebeu a criança Horus. Em algumas versões da história ela então teve um caso com
Set, embora seus motivos não fiquem muito claros, mas parece que o elemento vingança estava
presente nesse relacionamento: Horus, então já um rapaz, enfurece-se com essa união, pois a vê como
uma traição à memória de seu pai Osíris. Assim, ele trava um duelo com Set. Como resultado do duelo,
Horus perde um olho, mas mata Set. Horus é então curado, e o Olho de Horus torna-se o talismã
mágico favorito do Egito.
O Levitikon, além de fazer a extraordinária afirmação de que Jesus era um iniciado nos mistérios de
Osíris, também declara que ele havia passado esse conhecimento esotérico a seu discípulo João, 'o
Amado'. Afirma, também, que Paulo e os outros Apóstolos, embora tenham fundado a Igreja Cristã, o
fizeram sem qualquer conhecimento dos verdadeiros ensinamentos de Jesus. Eles não faziam parte do
círculo secreto de Jesus. De acordo com Fabré-Palaprat, eram os ensinamentos secretos, como o que
fora transmitido a João, o Amado, que haviam sido preservados e provavelmente influenciado os cav-
aleiros templários.
O Levitikon registra uma tradição que foi supostamente passada de geração para geração de uma seita,
ou Igreja, de joaninos cristãos no Oriente Médio. Eles se julgam os herdeiros dos 'ensinamentos secretos'
e da verdadeira história de Jesus, a quem se referem como 'Yeshu, o Ungido'. Na verdade, se existe tal
seita, sua versão da história de Jesus é tão pouco ortodoxa que perguntaríamos como é que eles se auto-
intitulavam 'cristãos'. Para eles, não só Jesus era um iniciado nos mistérios de Osíris, como também era
apenas um homem, e não o Filho de Deus.Além disso, ele era filho ilegítimo de Maria, e não havia
nenhuma sugestão de um rebento milagrosamente nascido de uma Virgem. Eles atribuíram todas essas
colocações a uma engenhosa, se não ultrajante, história de cobertura que os escritores dos Evangelhos
haviam inventado para obscurecer a ilegitimidade de Jesus, e o fato de sua mãe não ter a menor idéia
sobre a identidade de seu pai!
Para a seita joanina o título 'Cristo' não pertencia unicamente a Jesus: a palavra grega original Christos
significava apenas 'Ungido', um termo que poderia ser aplicado a muitos, inclusive reis e funcionários
romanos. Por conseguinte, os líderes joaninos sempre usavam o título de 'Cristo'. (É bastante
significativo que o Evangelho de Filipe, do Nag Hammadi, aplique o termo 'Cristo' a todos os iniciados
no gnosticismo).
Dizia-se que o grupo era uma seita gnóstica que preservara vários segredos esotéricos, incluindo o da
cabala. E também conceberam um plano a fim de se tornarem uma organização secreta que iria (nas
palavras do escritor Éliphas Lévi, do século XIX) 'ser o repositório exclusivo dos grandes segredos
religiosos e sociais, que faria Reis e Pontífices, sem se expor à corrupção do poder', i.e., uma
organização misteriosa que não estaria sujeita aos caprichos e incertezas das mudanças políticas e
sociais. Seu instrumento de ação seriam os cavaleiros templários, e Hugues de Payens e os outros
cavaleiros fundadores eram, na realidade, iniciados no joanismo. Os próprios templários, porém, foram
corrompidos pelo amor ao poder e à riqueza, e em conseqüência foram suprimidos. O rei francês e o
Papa não podiam deixar que a verdadeira natureza do perigo representado pelos templários se tornasse
conhecida; assim, eles se valeram das acusações de idolatria, heresia e imoralidade. Antes de sua
execução, Jacques de Molay, mais uma vez nas palavras de Lévi, 'organizou e instituiu a maçonaria
ocultista' .
Se isso é verdade, essa afirmação por si só modifica completamente a versão aceita pela história. Ela
fornece uma ligação direta e autorizada entre um determinado tipo de maçonaria e os antigos templários.
E, portanto, poder-se-ia concluir que esses maçons em particular tinham algo a nos ensinar sobre os
conhecimentos dos templários.
Como já vimos, Éliphas Lévi dedica uma seção do seu History of Magic à tradição joanina, conforme
descrita no Levitikon. Lemos esse texto pela primeira vez na tradução para o inglês de A. E. Waite.
Entretanto, encontramos uma outra tradução daquele trecho em particular na obra Morais and Dogma of
the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemansonry, de Alben Pike, o erudito estudioso da
maçonaria e Grão-Mestre do Antigo e Aceito Ritual Escocês na América (1871). Essa versão tem muitas
diferenças. Qual delas, porém, é autêntica?
Comparamos com a edição francesa original da obra de Lévi e descobrimos que Pike tinha feito certos
acréscimos ou correções, presumivelmente baseando-se em seu próprio entendimento sobre essa
tradição. Por exemplo, ele reproduz a última parte daquela do título da obra citada acima como
'Maçonaria Oculta, Hermética ou Escocesa'. Ele também emenda as palavras de Lévi no que se refere a
uma ligação entre o joanismo, templário e os rosa-cruzes. Lévi escreve (na tradução fiel de A.E. Waite):

Os sucessores dos antigos rosa-cruzes modificaram pouco a pouco os métodos austeros e


hierárquicos de seus precursores na iniciação, tendo se tornado uma seita mística e abraçado
zelosamente as mágicas doutrinas templárias, o que resultou em considerarem a si mesmos como os
exclusivos depositários [sic] dos segredos anunciados no Evangelho de acordo com São João.

Pike, de modo inacreditável, substitui a parte grifada por:

...e tendo se unido a muitos dos templários, o dogma dos dois mescla-se...

As mudanças de Pike são significativas porque, considerando que Lévi era um observador e
comentador do mundo oculto e maçônico, e de certa forma um intruso, Pike, ao contrário, era alguém
de dentro, alguém que fazia parte daquilo. Ele decidiu retificar a versão de Lévi, de modo que, em vez
de falar sobre os rosa-cruzes que adotavam 'doutrinas dos templários', Pike na verdade os está fundindo
com o grupo dos templários sobreviventes.
Mas a correção mais significativa de Pike é algo completamente novo. Depois da frase sobre a
instigação de Jacques de Molay do 'Maçonaria Ocultista, Hermética ou Escocesa', Pike acrescenta que
essa Ordem:

Adotou São João, o Evangelista, como um de seus protetores, associando-se a ele, a fim de não
despertar as suspeitas de Roma. São João Batista...

Isso é curioso, para dizer o mínimo. Visto que tanto João, o Evangelista, quanto João, o Batista, são
reconhecidos santos católicos, por que a reverência a um seria necessária para 'encobrir' a reverência
outorgada ao outro? Contudo, Pike, o mais erudito dos estudiosos da maçonaria, não inseriria essa
informação nas passagens reproduzidas da obra de uma outra pessoa se não fosse por uma boa razão.
Precisávamos, com certeza, nos aprofundar mais nessa questão do joanismo com a tradição maçônica.
Como vimos no capítulo anterior, A. E. Waite havia se referido a uma 'tradição joanina', que teria
influenciado as lendas do Graal, e que no princípio pareciam ser apenas mistificação. Agora, porém, as
coisas estavam começando a fazer sentido: era óbvio que a 'tradição joanina' estava de alguma forma
conectada ou com João, o Evangelista, ou com João, o Batista.
Esses aspectos subjacentes não representavam algo de novo para esta investigação. A 'tradição joanina',
claramente ligada a São João, também é um ponto central para o Monastério de Sion. Para eles, como já
percebemos, João Batista é superior.
Como já vimos no Capítulo Dois, o Monastério afirma que Godefroi de Bouillon representava uma
misteriosa 'Igreja de João', em outras palavras, os Irmãos de Ormus, e como resultado daquele encontro
decidiu formar um 'governo secreto'. Os cavaleiros templários e o Monastério de Sion foram criados
como parte desse plano geral. Não poderíamos enfatizar em demasia que, pelo menos de acordo com
essa história, tanto o Monastério quanto os templários foram criados em conformidade com os ideais
dessa misteriosa Igreja de João. À parte alguns detalhes secundários, essa história é idêntica àquela do
Levitikon, e, no mínimo, isso estabelece que os atuais Monastério e Ordem dos Templários são parte de
uma mesma tradição.
O conceito dos templários como uma organização secreta com autoridade para proclamar e destronar os
reis, se compara àquela dos Cavaleiros Templários do Graal do Parzival, de Wolfram von Eschenbach;
com certeza há evidências de que os templários assim o afirmavam. O problema é que a maioria dessas
exóticas declarações de uma longa genealogia histórica só remonta no tempo até as organizações neo-
templárias do século XIX. No entanto, elas podem ter alguma solidez se puderem ser confirmadas por
evidências independentes que unam seus movimentos com organizações que definitivamente existiam
há muitos séculos, como a ligação entre rosa-cruzes e maçonaria.
Outra dificuldade é que duas afirmações diferentes estão sendo feitas: uma é a de que certas formas de
maçonaria descendem diretamente dos templários.A outra é a de que os próprios templários eram uma
continuação de uma tradição herética mais antiga, que era anterior à época de Jesus. Infelizmente,
certificar a primeira não significa automaticamente corroborar a segunda.
A ênfase, porém, em uma versão idiossincrática do Evangelho de João é provocante, embora pareça
haver um pouco de confusão entre João, o Evangelista, e João, o Batista. A declaração de Albert Pike de
que os maçons adotaram o Batista apenas para encobrir sua secreta veneração a João, o Evangelista é,
como vimos, um total absurdo. Por que eles esconderiam sua reverência a qualquer um dos santos,
quando ambos eram perfeitamente aceitos pela Igreja? Pike realmente conseguiu chamar atenção para os
dois Santos João, amealhando para ambos uma aura de mistério e intriga. Talvez fosse exatamente essa
sua intenção. Em outro lugar A. E. Waite cita textos maçônicos sobre a maçonaria joanina, que afirma
estar conectada com um cristianismo joanino centrado na figura do Batista e que o considera como 'o
único e verdadeiro profeta'.
Como já vimos, João Batista era o santo protetor dos cavaleiros templários e dos maçons. Realmente, o
Grande Oriente da Inglaterra foi fundado no dia 24 junho, dia de João Batista. E o chão de todo templo
maçônico contém duas linhas paralelas: uma representa os discípulos de João, o Evangelista (outro
nome para João, o Amado), enquanto a outra linha representa os do Batista.Ambos os Joãos são de suma
importância para a fraternidade, embora seja o mais velho quem tem precedência. Além disso, o
juramento maçônico é para os 'sagrados Santos João'. Os maçons de hoje, como eles mesmos admitem,
não têm nenhuma idéia do porquê de os dois Joãos serem tão venerados. Existe a possibilidade de que
os dois personagens bíblicos foram, durante anos, confundidos, e que o termo 'joanismo' , visto como
significando os discípulos do Amado, possa na verdade estar se referindo aos do Batista. Mas se é o
João mais jovem ou mais velho, ou ambos, que eram reverenciados pelos maçons, há um nome que se
distingue por sua ausência nas lojas: outro senão o próprio Jesus que não aparece em parte alguma.
Supostamente isso decorre do fato de os maçons não serem uma organização propriamente cristã; basta
ser um teísta para poder se juntar a eles. Nesse caso, porém, por que eles deviam submissão aos cristãos
Santos João?
A idéia de que o Evangelho de João esconde segredos enigmáticos, ou que haja uma outra versão deste,
é recorrente ao longo desta investigação. Afirma-se que os cátaros tinham uma alternativa herética, e
Sir Isaac Newton era obcecado com isso. (Como Graham Hancock escreve: '...a despeito de sua
devoção às suas próprias crenças religiosas, ele parecia em alguns períodos ver em Cristo um homem
especialmente talentoso... em vez de o Filho de Deus.
Então, os maçons do Ritual Escocês e a templária 'Transmissão de Larmenius' podem muito bem ter
preservado os segredos originais dos templários, e ambos localizam as origens dos templários na 'seita
joanina' . Embora não haja nada de abertamente joanino nos Rituais Egípcios da Maçonaria, todos esses
sistemas derivam da Estrita Observância Templária, do Barão von Hund. E o próprio Monastério de
Sion se conecta com esses três sistemas
Como já vimos, Pierre Plantard de Saint-Clair descreveu os objetivos da Ordem do Templo como sendo
'os soldados da Igreja de João e os proclamadores da primeira dinastia, o exército que obedece ao
espírito de Sion'. O objetivo final desse grande plano era o 'renascimento espiritual' que faria com que o
'cristianismo virasse de cabeça para baixo'. Isso, é óbvio, não aconteceu ainda, embora nossas
investigações mostrem que a revelação que poderia conduzir a um motim como esse já está à espreita,
pronta a fazer seu dramático aparecimento no palco do mundo, talvez na forma do Monastério ou de
correlatas escolas de mistério como os Ionistas.
Em todo caso, havíamos descoberto uma coisa ainda mais incrível: começamos com a aparente obsessão
de Leonardo para com João Batista e então seguimos a tênue pista da possibilidade de o Monastério de
Sion, de alguma forma, também estar envolvido com aquele santo. Naquela estágio não havíamos
conseguido muita coisa, mas, conforme seguíamos as pistas dos templários aos maçons e então para os
grupos ocultistas, uma conexão muito mais persuasiva tomou forma ante nossos olhos. A heresia joanina
estava por trás e embasava todos os diversos formatos do submundo ocultista, e é a essa tradição que o
Monastério pertence, como eles mesmos admitem.
Embora várias e importantes perguntas ainda precisem ser respondidas, um quadro coerente estava
começando a emergir, um quadro que, de alguma forma unia João Batista com uma tradição oculta
complexamente sustentada. No entanto, isso era apenas uma parte do que ainda estava por emergir como
uma heresia com dois ramos de desenvolvimento, o outro sendo a devoção secreta a uma deusa, o
princípio Feminino.
Claro que este último ramo é difícil de conciliar com os formatos externos de organizações como a dos
maçons, que parecem ter uma orientação essencialmente masculina. No entanto, os segredos por trás
desses dois ramos, o Feminino e os joaninos, são bastante valiosos, pois foram guardados, defendidos e
protegidos contra qualquer ameaça, e parecem ter provocado uma especial hostilidade da Igreja de
Roma. Isso não é surpreendente, pois o segundo ramo de antigos segredos esotéricos, a reverência ao
princípio Feminino, tomou a forma de um sexo mágico transcendental, com todas as implicações
relacionadas ao poder feminino.

CAPÍTULO VII
Sexo: O Sumo Sacramento
Antigos textos alquímicos estão, deliberadamente, repletos de um imaginário elaborado e confuso, pois
sua intenção era desencorajar o não-iniciado para que não tentasse descobrir seus segredos. Como
vimos, porém, a alquimia, em seu nível mais profundo, estava em busca da transformação pessoal,
espiritual e sexual. Seus segredos estavam relacionados com as técnicas necessárias para se realizar a
'Grande Obra'. Realmente, reconhecendo o profundo interesse da alquimia pelo imaterial e pelo sexo,
C.G. Jung viu nela a precursora da psicanálise.
Como vimos, a 'Grande Obra' dos alquimistas era uma rara experiência capaz de transformar a própria
vida, embora ninguém saiba ao certo como se manifesta. No entanto, Nicholas Flamel (suposto Grão-
Mestre do Monastério de Sion), que teria alcançado essa meta extraordinária em 17 de janeiro de 1382,
em Paris, deixou bem claro que o havia feito na companhia de sua mulher, Perenelle. Parece que eles
eram particularmente dedicados um ao outro: ela também parece ter sido uma alquimista, muitas
mulheres eram, em segredo. Mas Flamel enfatizou sua presença naquele fatídico dia como uma
indicação da verdadeira natureza da Grande Obra? Será uma sugestão de que se trata de uma espécie de
rito sexual?
Não há dúvida sobre a existência de pelo menos um componente sexual na prática da alquimia, como
revela o clássico texto alquímico The Crowne of Nature, citado no Alchemy, de Johannes Fabricius:

Alva senhora, amorosamente unida a seu rubicundo marido, entrelaçados nos braços um do outro, no
êxtase da união conjugal. Fundir e dissolver quando chegam à meta da perfeição: Eles eram dois, agora
tornaram-se um, como um único corpo.

Existem duas disciplinas orientais que enfatizam a transcendência religiosa e espiritual da sexualidade: o
tantra da Índia e o Taoísmo Chinês. Ambos são antigos, e extremamente respeitados em suas culturas.
Enfatizam o potencial de certas práticas sexuais para o alcance da consciência mística, regeneração
física e longevidade, e união com Deus. Grande parte dessas práticas já são bastante conhecidas
atualmente, mas o que não se sabe a não ser nos grupos de iniciados é que, surpreendentemente, existe
um ramo alquímico, tanto no tantra quanto no taoísmo. Como veremos, isso se encaixa perfeitamente
com a verdadeira natureza da alquimia ocidental.
Por exemplo, no tantrismo, a terminologia 'química' é entendida como uma demonstração das práticas
sexuais. Como escritor ocultista Benjamim Wa1ker diz em Man, Myth & Magic:

Embora interessada de um modo ostensivo na transmutação de metais comuns em ouro, e em


recipientes, ferramentas e utensílios, instrumentos para o comércio, e com os movimentos rituais do
alquimista em seu local de trabalho, o lugar da verdadeira alquimia é dentro do próprio corpo.

A ironia está em que os elementos sexuais de alquimia ocidental tem sido costumeiramente tomados
como uma metáfora para processos químicos! Como Brian Innes observa em seu artigo para The
Unexplained, sobre a alquimia sexual do tantra e do taoísmo:
A íntima semelhança do imaginário - e das substâncias utilizadas - da alquimia em todas essas culturas é
incrível. Mas uma das principais diferenças é que a alquimia européia medieval parece não ter qualquer
base sexual explícita.

Havia, entretanto, uma enorme diferença entre a imagem pública e os níveis de aceitabilidade da
alquimia no Ocidente e no Oriente. Na China e na Índia a alquimia não era uma ciência proibida, e as
atitudes em relação ao sexo não eram tão neuróticas e reprimidas quanto na Europa; então, podia-se ser
mais aberto e honesto em relação ao trabalho alquímico.
Recentemente, a 'sexualidade sagrada' foi 'descoberta' pelo Ocidente. Em resumo, sexualidade sagrada é
a noção de que a sexualidade é o maior dos sacramentos, proporcionando não só alegria como também
unicidade com o Divino e com o universo. O sexo é visto como a ponte entre o céu e a terra, trazendo a
liberação de uma enorme energia criativa, além de revitalizar os amantes de um modo inigualável, até
mesmo no nível celular. Saber sobre a sexualidade sagrada significa que os antigos textos alquímicos
podem, finalmente, ser completamente entendidos no Ocidente, embora (como sempre) sejam os
pesquisadores franceses que estejam mais desejosos de explorar esse aspecto daqueles textos. Dos
poucos escritores anglo-saxãos que não se inibem com o assunto, A.T. Mann e Jane Lyle dizem em seu
livro Sacred Sexuality (1995):

É difícil colocar em dúvida que os ensinamentos alquímicos contenham mágicos segredos sexuais
que estão bem próximos do conhecimento tântrico. Em razão de sua complexidade e diversidade, a
alquimia disfarçou outros mistérios sob o manto de alegorias poéticas que só a mente do iniciado é
capaz de penetrar.

André Nataf, um dos muitos escritores franceses que tocam nesse assunto, diz: ‘... o segredo que a
maioria dos alquimistas perseguia era erótico... a alquimia é, simplesmente, a conquista do amor, a
"fusão" entre o erótico e o espiritual'.

O tantrismo e o taoísmo são há muito tempo reconhecidos como os canais da tradição oriental para a
sexualidade sagrada, mas não existe no Ocidente uma tradição desse tipo que seja claramente definida e
facilmente determinável, a menos que fosse simplesmente conhecida como alquimia.
O imaginário sexual dos textos alquímicos só se tornou óbvio em nossa época pós-freudiana: a Lua diz
para seu cônjuge, o Sol: 'Oh! Sol, tu nada fazes sozinho se eu não estiver presente com minha força,
como um galo se desespera na ausência de uma galinha'. Experiências químicas tomavam a forma de
'casamentos' ou 'cópulas', exatamente como o tratado de Johann Valentin Andrea que se chamava The
Chemical Wedding (O Casamento Químico).
Obviamente poderia ser que tal imaginário simplesmente significasse exatamente o que dizia: uma
'cópula' sendo apenas isso, e que não havia nenhum segredo escondido dentro do simbolismo alquímico.
Porém, as palavras foram cuidadosamente escolhidas a fim de transmitir complexas instruções, cobrindo
um significado tanto sexual quanto químico. Os textos alquímicos, essencialmente, continham lições
que eram ao mesmo tempo sobre a magia do sexo e sobre química.
Curiosamente talvez, dado o óbvio tom sexual da maior parte da tarefa, o senso histórico comum
relativo à alquimia sempre foi o de vê-la apenas como um processo químico, sendo todo o seu
simbolismo algo meramente fantasioso. Assim foi, até que os mistérios do Oriente se tornassem mais
amplamente conhecidos; antes disso nada existia onde fosse possível encaixar a idéia da alquimia
sexual. Hoje, porém, tal problema já não ocorre, e esse conceito vem, rapidamente, ganhando
reconhecimento.
Barbara G. Walker revela, sobre o significado subjacente da alquimia:

Alguns dos segredos se perderam, devido à preponderância do simbolismo sexual na literatura


alquímica. 'Cópula de Atenas e Hermes' poderia significar misturar enxofre [sic] e mercúrio em um
frasco; ou poderia significar o 'processo' sexual do alquimista e sua amada. As ilustrações presentes em
livros alquímicos sugerem com mais freqüência o misticismo sexual.
Mercúrio ou Hermes era o herói alquímico que fertiliza o Vaso Sagrado, uma esfera em forma de útero
ou ovo de onde nasceu o filius philosophorum.
Esse vaso pode ter sido real, um frasco de laboratório ou um recipiente; com mais freqüência, parecia
ser um símbolo místico. Dizia-se que o fruto do Diadema Real aparecia na menstro meretricis, 'no
sangue menstrual de uma puta', que poderia ser a Grande Prostituta, um antigo epíteto da Deusa...

(Walker, porém, não capta o essencial ao sugerir que, durante a procura do vas hermeticum, o Vaso de
Hermes, os alquimistas o identificam com o vas spirituale, o vaso espiritual ou o útero, da Virgem
Maria. Qual é a outra Maria habitualmente retratada portando um vaso ou jarro? Quem é tradicional-
mente mostrada usando um vestido vermelho-sangue ou encoberta sob o próprio cabelo vermelho?
Qual outra Maria está associada com a idéia de prostituição e sexualidade? Mais uma vez vemos a
Virgem Maria sendo usada para disfarçar o culto secreto a Madalena.)
Atualmente com freqüência falamos em 'química sexual'; para o alquimista, entretanto, isso tinha um
significado muito mais profundo do que a idéia de atração imediata. Na revista esotérica francesa
L'Originel, Denis Labouré, autoridade em ocultismo, discute a noção de alquimia 'interna' como oposta
à alquimia 'metálica' e seu paralelo com o tantrismo, mas insiste em que isso era parte de uma 'herança
da tradição Ocidental' (itálico nosso). Ele afirma:

Se a alquimia interna é bem conhecida pelo taoísmo ou hinduísmo, restrições históricas [i.e. a Igreja]
obrigaram os autores ocidentais a serem mais prudentes. Não obstante, certos textos fazem uma
insinuação clara a esse tipo de alquimia.

Ele então cita um tratado de Cesare Della Riviera, de 1605, e acrescenta:

Na Europa, a trilha desses antigos rituais [sexuais] passava pelas escolas gnósticas, a corrente
alquímica e cabalística da Idade Média e do Renascimento, onde diversos textos alquímicos podem ser
lidos em dois níveis diferentes, até que os encontremos novamente nas organizações ocultistas
instituídas e estruturadas, principalmente na Alemanha, no século XVII.

Na verdade, o uso de simbolismo 'metalúrgico' remonta ao próprio surgimento da alquimia em


Alexandria, entre os séculos I e III. Foram encontradas, nos feitiços da magia egípcia, metáforas
metalúrgicas para o sexo: os alquimistas simplesmente adotaram o imaginário. Esse é um exemplo de
um feitiço de amor egípcio atribuído a Hermes Trismegistus, datando do século I a.C., no mínimo, que
se concentra na manufatura simbólica de uma espada:

Traga-a [a espada] para mim, temperada com o sangue de Osíris, e coloque-a na mão de Ísis... e tudo
que se forja neste fogão de fogo também é soprado para dentro do coração e do fígado, no ventre e no
quadril de [o nome da mulher]. Conduza-a para a casa de [o nome do homem] e faça com que ela passe
para as mãos dele o que nas mãos dela está, para a boca dele o que na boca dela está, para o corpo dele o
que no corpo dela está, para a vara dele o que no útero dela está.

A alquimia praticada na rede oculta e secreta da era medieval tomou forma originalmente no Egito,
muitos séculos antes da era cristã. Ísis tinha um papel importante na alquimia daquele tempo. Em um
tratado intitulado Isis the Prophetess to her son Horus (Ísis, a Profetiza de seu filho Horus), Ísis conta
como obteve os segredos da alquimia de um 'anjo e profeta', através de sua astúcia feminina. Ela o enc-
orajou a alimentar a própria luxúria por ela até que não fosse mais possível contê-la; então recusou-se a
se entregar até que ele lhe revelasse seus segredos, uma clara referência à natureza sexual da iniciação
alquímica. (Isso lembra a história do Papa Silvestre II e Meridiana, examinada no Capítulo Quatro, onde
se narra como ele obteve seu conhecimento alquímico ao ter feito sexo com aquela figura feminina
arquetípica.)
Outro tratado antigo, atribuído a uma alquimista chamada Cleópatra, uma iniciada da escola fundada
pela legendária Maria, a Judia, contém um explícito imaginário sexual: 'Veja a completude da arte na
união entre noivo e noiva, tornando-se um único'. Isso é incrivelmente semelhante a um texto gnóstico
contemporâneo em que se lê:

Quando o macho atinge o momento supremo e a semente salta adiante, naquele momento a mulher
recebe a força do macho e o macho recebe a força da mulher... É em razão disso que o mistério da união
dos corpos é praticada em segredo, pois assim a conjunção da natureza não pode ser degradada como
aconteceria se fosse vista pela multidão que menosprezaria o trabalho.

Os textos alquímicos antigos estão repletos de um simbolismo que indica as técnicas secretas da
sexualidade sagrada, que, provavelmente, derivam de um equivalente egípcio para o tantrismo e o
taoísmo. A existência de uma tradição como essa é revelada no texto conhecido como o 'Papiro Erótico
de Turim' (onde hoje está guardado), que há muito é considerado como um exemplo da pornografia
egípcia. Uma vez mais estamos diante de uma típica reação equivocada do mundo ocidental. O que se
julga pornográfico é, na verdade, um ritual religioso. Alguns dos mais antigos rituais sagrados do Egito
eram de natureza sexual. Por exemplo, uma das práticas religiosas diárias do Faraó e sua cônjuge,
provavelmente, envolvia ser ele masturbado por ela. Essa prática era uma reinterpretação simbólica da
criação do universo pelo deus Ptah, que o fez por meios semelhantes. As imagens religiosas nos palácios
e templos retratam inequivocamente esse ato, que contudo foi julgado tão ultrajante pelos arqueólogos e
historiadores que só recentemente seu significado foi conhecido, e, mesmo assim, o assunto ainda é
discutido em tons hesitantes e apologéticos. O Ocidente ainda tem um longo caminho a percorrer antes
de conseguir apreender a aceitação total que os egípcios tinham do sexo como um sacramento.
Essa relutância em aceitar o significado que o sexo tinha para os antigos não é um fenômeno novo. Para
os eruditos dos séculos I e II, o assunto não representava um problema, mas como nota Jack Lindsay,
por volta do século VII, o simbolismo sexual presente nos tratados alquímicos são discutidos de um
modo 'evasivo e oculto' .
Assim, desde o início, a alquimia ocidental tinha um forte aspecto sexual. Devemos então acreditar que
na Idade Média essa profunda e influente tradição teria desaparecido completamente?

Algumas das antigas seitas gnósticas, como os carpocranianos de Alexandria, praticavam rituais
sexuais. Não é de se surpreender que tenham sido condenados como corrompidos e repugnantes pelos
padres da Igreja, e na ausência de registros menos hostis não temos como saber qual era o formato
daqueles rituais.
Ao longo da história do cristianismo, as seitas 'heréticas' incorporavam uma atitude mais libertária em
relação ao sexo, mas eram invariavelmente condenadas e suprimidas. Por exemplo, afirmou-se que os
Irmãos e Irmãs de Espírito Livre, também conhecidos como adamitas, praticavam um 'segredo sexual',
desde os séculos XIII ou XIV. A filosofia dos adamitas foi uma influência marcante no tratado
Schwester Katrei, o qual, como vimos, inclui indícios de familiaridade com a descrição de Maria
Madalena nos Evangelhos Gnósticos, e a autora parece ter pertencido àquela seita.
Outro grupo envolvido com misticismo erótico, embora não fosse conhecido como uma seita religiosa,
eram os trovadores do sudoeste da França, os famosos cantores do culto ao amor, cujos equivalentes
alemães eram os minnesingers. Minne era uma mulher idealizada ou uma deusa. O amor do cavaleiro
por sua senhora reflete uma devoção a, e uma reverência para com, o Princípio Feminino. E o conteúdo
dos poemas, uma mistura entre 'o espiritual e o carnal', pode ser visto como uma série de insinuações
levemente veladas à sexualidade sagrada. Até mesmo a acadêmica Bárbara Newman, ao sumariar essa
tradição, não pôde escapar de utilizar o saboroso idioma da sexualidade sagrada ao descrevê-la como:

... um jogo erótico com uma desconcertante variedade de opções: a pessoa poderia tornar-se a noiva
de um Deus ou o amante de uma Deusa, ou fundir-se totalmente com o Amado e tornar-se ela própria
divina...

Muito da tradição do amor cortês envolve a compreensão de técnicas específicas, por exemplo, a da
maithuna, a retenção deliberada do orgasmo para induzir sensações de êxtase e consciência mística.
Como diz o autor e poeta britânico Peter Redgrove:

É possível localizar uma tradição inteira de maithuna (sexualidade tântrica visionária) na literatura
romântica.

Os trovadores tinham a rosa como seu símbolo, talvez porque seu nome (tanto em francês como em
inglês) seja um anagrama de Eros, o deus do amor erótico.Também há a possibilidade de que a
onipresente 'senhora', aquela que deve ser seguida, ao menos de uma casta distância, devesse ser
entendida como tendo um outro significado em uma leitura esotérica, como sugere o nome trovador em
alemão, minnesinger.
Essa senhora arquetípica não poderia ter sido a Virgem Maria, pois embora tenha se pensado que a rosa
fosse o seu símbolo na Idade Média, a verdade é que seu culto não precisava se esconder atrás de
códigos. Além do mais, a flor que descrevia melhor suas qualidades não era a rosa erótica, mas o mais
evocativo lírio branco: bonito mas austero, sem qualquer sugestão de carnalidade. Portanto, quem mais
as canções dos trovadores celebrariam? Quem mais seria a tão amada 'deusa' dos grupos heréticos da
época? Quem mais senão Maria Madalena?
As grandes janelas em forma de rosa das catedrais góticas sempre estão voltadas para o oeste, que é,
tradicionalmente, a direção consagrada às deidades femininas, e nunca estão muito longe de um
santuário dedicado à Madona (Minha Senhora) Negra. E, como vimos, essas estátuas enigmáticas são
deusas pagãs com uma outra roupagem, são a personificação da antiga celebração da sexualidade
feminina.
Sem contar a rosa sagrada, as catedrais góticas também continham outros imaginários pagãos. Por
exemplo, o simbolismo do labirinto/teia de aranha de Chartres e outras catedrais é uma referência direta
à Grande Deusa em sua manifestação como tecelã e senhora dos destinos do Homem, mas muitas outras
igrejas também têm imagens de anfitriãs femininas. Algumas delas são tão explícitas que, uma vez que
sejam completamente compreendidas, os cristãos podem não ter mais o mesmo sentimento em relação a
sua igreja. Por exemplo, as grandes entradas góticas por onde passaram inocentemente gerações de
cristãos, são na verdade representações da parte mais íntima da deusa. Atraindo o adorador para o escuro
útero/interior da Mãe Igreja, elas são entalhadas com cumes afunilados, e em sua grande maioria têm até
mesmo um botão de rosa no topo do arco que lembra um clitóris. Uma vez dentro, o devoto católico
pára defronte da pia de água benta que, freqüentemente, é representada por uma concha gigantesca,
símbolo da natividade da deusa; como Botticelli, suposto Grão-Mestre do Monastério de Sion
imediatamente antes de Leonardo, retratou de modo atordoante em sua obra O Nascimento de Vênus. (O
búzio, que já fora o emblema dos peregrinos cristãos, é reconhecidamente um símbolo clássico para a
vulva). Todos esses símbolos foram empregados deliberadamente pelos adeptos do Princípio Feminino,
e embora sejam usados de um modo subliminar, ainda assim provocam um efeito inquietante no
inconsciente. Somando-se a isso uma música sublime, luz de vela e o aroma de incenso, não admira que
freqüentar uma igreja inspire um fervor peculiar!
Para os iniciados nos mistérios, o Feminino era um conceito ao mesmo tempo carnal, místico e
religioso. Sua energia e poder vinham da sua sexualidade e sabedoria, às vezes conhecida como a
'sabedoria da prostituta', obtida com o conhecimento da 'rosa', eros.
Como diz o ditado, 'Conhecimento é poder' , e segredos dessa natureza propiciavam um poder sem
igual, e, portanto, representavam uma ameaça única para a Igreja de Roma, e até mesmo para todos os
matizes de opinião cristã. O sexo só era, e em muitos casos ainda é, julgado aceitável entre aqueles cuja
união era realizada com o intuito de procriar. Por essa razão, não existe um conceito cristão para o sexo
como ato de prazer, e muito menos como algo que possa trazer iluminação espiritual, como acontece no
tantrismo ou na alquimia. (E enquanto a Igreja Católica proíbe a contracepção, outros grupos cristãos
vão ainda mais longe: por exemplo, os mórmons desaprovam o sexo após a menopausa.)
Entretanto, o que todas essas regras inibitórias objetivam realmente é ter controle sobre as mulheres.
Elas têm que aprender a ver o sexo com apreensão, ou porque ele é desagradável, mero dever
matrimonial e nada mais, ou porque inevitavelmente conduz à dor do parto. Isso é fundamental para se
entender como as mulheres eram vistas ao longo dos séculos pela Igreja, e pelos homens em geral: se as
mulheres pudessem remover o medo da dor do parto, o caos se instalaria, indubitavelmente.
Um dos principais motivos por trás das atrocidades cometidas durante o período de caça às bruxas era
o ódio e o medo às parteiras, cujo conhecimento de como aliviar a dor do parto representava uma
ameaça para a civilização decente: Kramer e Sprenger, autores do infame Malleus Maleficarum, o livro
de cabeceira dos caçadores de bruxas europeus, escolheram especificamente as parteiras para
receberem o pior tratamento possível. O terror causado pela sexualidade das mulheres resultou em
centenas de milhares de mortos, a maior parte mulheres, no decorrer de três séculos de julgamentos de
feitiçaria.
Desde os dias de misoginia dos primórdios da Igreja, quando duvidava-se até mesmo que as mulheres
tivessem alma, tudo se fez para que elas se sentissem profundamente inferiores, em todos os aspectos.
Não só eram consideradas como intrinsecamente pecadoras, como também eram a maior, às vezes a
única, causa dos pecados dos homens. Foi também ensinado aos homens que, ao terem pensamentos
verdadeiramente luxuriantes, apenas estavam reagindo à astúcia diabólica da mulher, que os enfeitiçava
fazendo com que tomassem atitudes que de outra forma sequer considerariam. Um exemplo extremo
dessa atitude pode ser encontrada na idéia da Igreja medieval de que uma mulher que fosse estuprada
não só seria responsabilizada por ter provocado o ato, como também pela perdição da alma do estupra-
dor, a quem ela teria que fazer uma reparação no Dia do Juízo Final.
Como escreve R.E.L. Masters:

Praticamente toda a culpa pelo horrível pesadelo que foi a caça às bruxas, e grande parte da culpa
pelo envenenamento da vida sexual do Ocidente, deve ser imputada à Igreja Católica Apostólica
Romana.

A Inquisição, que fora especificamente criada para ser usada contra os cátaros, logo e com extrema
facilidade incorporou o novo papel de caçadora de bruxa, torturadora e assassina, embora os protestantes
também a ela se juntassem, com muito gosto. Os primeiros julgamentos de bruxas aconteceram em
Toulouse, sede da Inquisição anti-cátaros. Teriam esses julgamentos cruciais acontecido em virtude do
ódio a um possível catarismo residual, ou era um sintoma do medo que as mulheres do Languedoc
instilaram nos inquisidores obcecados por sexo?
Subjacente ao ódio e medo de mulheres, estava o conhecimento de que elas têm uma capacidade sem
igual para desfrutar o sexo. Os homens medievais podem não ter tido o benefício do ensino atual de
anatomia, mas investigações pessoais não falhariam em revelar a existência desse órgão curiosamente
ameaçador, o clitóris.Aquela minúscula protuberância, tão inteligentemente, se não subliminarmente,
celebrada como o botão de rosa no topo do arco gótico, é o único órgão humano cuja função é somente o
de dar prazer. As implicações disso são, e sempre foram, enormes, sendo a causa, por um lado, de toda
repressão patriarcal, e, por outro lado, do tantrismo e de todo ritual sexual místico. O clitóris, que
mesmo hoje é considerado um assunto pouco conveniente para ser discutido, revela que as mulheres são
feitas para o êxtase sexual, talvez ao contrário dos homens, cujo órgão sexual tem a dupla finalidade de
urinar e procriar.
E a tradição misógina do patriarcado judeu-cristão teve um tal êxito que apenas no século XX foi aceita
no Ocidente a noção de que as mulheres desfrutem de sua sexualidade, o que até hoje ainda não foi
aceito pela Igreja. Embora seja verdade que a desigualdade sexual e o puritanismo não são um
desdobramento exclusivo das três grandes religiões patriarcais, o cristianismo, o judaísmo e o
islamismo - basta olhar o costume da Índia de queimar as viúvas juntamente com os esposos mortos -,
ainda assim, a idéia de que o sexo é inerentemente sujo e vergonhoso é uma tradição ocidental. E onde
quer que tal atitude prevaleça haverá o desejo reprimido e a culpa que darão origem, inevitavelmente, a
crimes contra mulheres, talvez até mesmo à caça a bruxas. O puritanismo ocidental e seu medo e ódio
ao sexo deixaram um terrível legado para o fim do milênio, na forma de espancamento de esposas,
pedofilia e estupro. Pois onde quer que o sexo seja visto como algo suspeito, também o parto e as
crianças serão vistas como intrinsecamente sujas, e as jovens serão vítimas da mesma violência sofrida
por suas mães.
O Jeová do Antigo Testamento, um tanto contraditório e irascível, criou Eva e, é claro, viveu o
suficiente para se lamentar disso. Quase logo depois de ter 'nascido' , ela revelou uma capacidade para
pensar sobre si mesma que estava muito além da de Adão. Eva e a 'serpente' formaram uma equipe
poderosa: isso dificilmente causaria surpresa, pois as cobras são símbolos antigos de Sophia,
representando sabedoria e não maldade. Deus, porém, não se mostrou contente quando a mulher que
havia criado mostrou iniciativa e autonomia ao comer da Árvore do Conhecimento, querendo aprender.
Após revelar uma curiosa falta de previsão em relação às capacidades de Eva, especialmente sendo
onipotente e onisciente e criador de universos, Deus a condenou a uma vida de sofrimento, começando,
vale notar, com a maldição de costurar... (pois ela e o infeliz Adão tiveram que fazer tangas com folhas
de parreira para encobrir a nudez.) Eva e Adão foram assim apresentados ao conceito de vergonha em
relação aos próprios corpos e, é claro, sobre a própria sexualidade. Grotescamente, somos levados a
entender que o próprio Deus ficara horrorizado pela visão dos corpos nus que ele mesmo criara.
Esse mito ingênuo proporcionou uma justificativa em retrospectiva para a degradação das mulheres, e
desencorajou o possível alívio ginecológico e a agonia do parto. Negou voz às mulheres por milhares de
anos, e humilhou, degradou e até mesmo demonizou o ato sexual, que deveria ser mágico e pleno de
prazer. Substituiu por vergonha e culpa o amor e o êxtase, e incutiu um medo neurótico de um Deus
masculino que era aparentemente tão cheio de ódio a si mesmo que detestou sua melhor criação, a
humanidade.
Desse mesmo maligno conto surgiu o conceito de pecado original, que condena até mesmo o inocente
recém-nascido ao purgatório; até recentemente, esse conceito havia encoberto o maravilhoso milagre do
nascimento com um manto de superstição e estorvo, e retirou o poder inigualável da fêmea, para o qual,
é claro, ela foi preparada em primeiro lugar.

Embora ainda haja uma quantidade surpreendente de medo e ignorância em relação ao sexo em nossa
cultura, as coisas estão bem melhores hoje do que há dez anos atrás. Diversos livros têm desbravado
terras novas, ou talvez redescoberto um solo antigo. Entre estes está The Art of Sexual Ecstasy, de
Margo Anand (1990), e Sacred Sexuality, de A. T. Mann e Jane Lyle (1995); ambos celebram o sexo
como um meio para a iluminação e transformação espiritual.
Como já vimos, outras culturas não sofrem desse mesmo problema (a menos que estejam contaminadas
pelo pensamento ocidental). E em certas culturas o sexo foi elevado até mesmo para além da arte: foi
considerado um sacramento, algo que permite aos participantes tornarem-se um com o Divino. Essa é a
raison d'être do tantrismo, esse sistema místico de união com o divino através de técnicas sexuais como
karezza, ou o atingimento do êxtase sem orgasmo. O tantrismo é a 'arte marcial' da prática sexual,
necessitando uma incrível disciplina e um longo treinamento tanto de homens quanto de mulheres, que
são considerados como iguais.
A arte tântrica, no entanto, não é exclusiva do exótico mundo oriental. Hoje em dia pode-se encontrar
escolas sobre o tantra pululando em Londres, Paris e Nova York, embora o extremo rigor da arte afaste
muitos; pode-se, por exemplo, levar meses para se aprender a respirar da maneira correta. No entanto, a
noção do sexo como um sacramento não é nova para o mundo ocidental.
Vimos o quão sexual eram as raízes da alquimia, e como o culto à rosa dos trovadores pode ser
entendido como a veneração a eros. Notamos como os construtores das grandes catedrais, como a de
Chartres, investiram tanto no símbolo da rosa vermelha e construíram santuários para a Madona Negra
com suas poderosas associações pagãs.
Também pudemos ver que o Graal, enquanto taça, é um símbolo feminino, de um modo
excepcionalmente descarado, na história de Tristão e Isolda. E como o grande herói do Graal muda seu
nome de Tristão para Tantris... De fato, o romancista Lindsay Clarke descreve a poesia amorosa dos
trovadores como sendo' os manuscritos tântricos do Ocidente'.
Nas lendas do Graal, a mangra jogada na terra está relacionada com a perda da potência sexual "do rei,
com freqüência simbolizada por ele ter sido 'ferido na coxa'. No Parzival de Wolfram isso está mais
explícito; a ferida é nos órgãos genitais. Isso tem sido visto como uma resposta à repressão da
sexualidade natural pela Igreja. A estagnação espiritual resultante só poderia ser eliminada pela busca do
Graal que, como já vimos, sempre esteve especificamente vinculado às mulheres. Em uma pintura
italiana do século XV, de cavaleiros do Graal adorando Vênus (ver primeira ilustração), não há qualquer
razão para se duvidar da natureza da busca.
O que é acentuado tanto nas lendas de Graal quanto na tradição do amor cortês dos trovadores é a
elevação espiritual das mulheres, e o respeito por elas. Achamos bastante significativo que ambos os
ramos dessa tradição tenham ao menos parte de suas raízes no sudoeste da França.
A maioria dos pesquisadores contemporâneos acredita que o tantrismo chegou à Europa através do
contato com a seita mística islâmica dos sufis, que incorporou as idéias da sexualidade sagrada em suas
crenças e práticas. Não há realmente como negar a existência de paralelismos entre as linguagens
utilizadas para expressar essas idéias pelos trovadores e sufis. Será, entretanto, que o tantrismo sufi
tenha criado raízes na Provença e no Languedoc porque já havia uma tradição semelhante naquela
região? Já vimos que o Languedoc tinha uma tradição em apoiar a igualdade entre os sexos. E quando a
caça às bruxas pela primeira vez caiu como uma sombra escura sobre a cidade de Toulouse, o que
realmente se esperava que fosse erradicado? E uma vez mais nos deparamos com a personificação
daquele culto ao amor, Maria Madalena.
Outra mulher que tinha uma estimativa do potencial místico do sexo foi Santa Hildegard de Bingen
(1098-1179), relativamente pouco conhecida, até recentemente.

Segundo Mann e Lyle:

Uma grande visionária, Hildegard falava sobre o feminino, sobre a imagem inconfundível de uma
deusa, que veio até ela após profunda contemplação: "Então, parecia que eu estava vendo uma menina
de uma beleza radiante insuperável, com tal brilho irradiando de seu rosto que eu mal podia encará-la.
Usava um manto mais branco que a neve, mais luminoso que as estrelas; seus sapatos eram de puro
ouro. Em sua mão direita segurava o sol e a lua, acariciando-os amorosamente. Em um de seus seios
tinha uma placa de marfim onde aparecia, em tons de azul safira, a imagem de um homem. E toda a
criação chamou essa menina de senhora soberana.A menina começou a falar com a imagem em seu
seio: 'Eu estava no princípio com você, no amanhecer de tudo que é sagrado, eu o atraí para fora do
útero antes do dia começar'. E então ouvi uma voz que me dizia. 'A menina que você vê é o Amor: sua
morada é na eternidade'''.
Hildegard, como todos os corteses amantes medievais, acreditava que homens e mulheres podiam
atingir a divindade amando um ao outro, e assim 'toda a terra tornar-se-ia um único jardim de amor'. E
esse amor seria inteiro, uma expressão completa da união que envolve corpo e alma pois, como ela
escreveu, "é o próprio poder da eternidade que criou a união física e decretou que dois seres humanos
deveriam tornar-se fisicamente um".

Hildegard era uma mulher notável, imensamente instruída, especialmente em assuntos médicos. Seu
grau de educação não pode ser explicado, ela própria o atribuiu às suas visões. Talvez essa seja uma
referência velada a alguma escola de mistério ou repositório semelhante de conhecimento. Muitos de
seus textos conhecidos demonstram familiaridade com a filosofia hermética.
Essa aclamada abadessa também descreveu em detalhes, e com grande precisão, o orgasmo feminino, as
contrações uterinas e tudo o mais. Parece que seu conhecimento era mais do que meramente teórico, o
que é, dizem, incomum para uma santa. Quaisquer que sejam os segredos sobre suas informações
particulares, ela exercia grande influência em São Bernardo de Clairvaux, protetor e inspirador dos
templários.
Esses monges-guerreiros aparentemente poderiam representar uma forte objeção à idéia de continuidade
de uma tradição herética e secreta relacionada com o culto ao amor. Ostensivamente celibatários
(embora houvesse rumores persistentes de uma difundida homossexualidade templária), parece bastante
improvável que fossem representantes de uma prática filosófica que celebrava a sexualidade feminina.
Mas há claras indicações de tal uma ligação nas obras de um de seus partidários mais dedicados, o
grande poeta florentino, Dante Alighieri (1265-1321).
Há muito tempo já se percebera que seus textos continham material gnóstico e hermético. Por exemplo,
um século atrás Éliphas Lévi descreveu o Inferno de Dante como sendo 'joanino e gnóstico'.
O poeta fora diretamente inspirado pelos trovadores do sul da França, e era membro de uma sociedade
de poetas que se autodenominavam o fidele d'amore, 'os fiéis devotos do amor'. Há muito considerado
como sendo um círculo estético, estudos recentes começaram a desvendar outras motivações, mais
secretas e esotéricas.
O respeitado acadêmico William Anderson, em seu estudo Dante the Maker, descreve o fidele d'amore
como 'uma fraternidade reclusa dedicada a alcançar a harmonia entre o lado sexual e emocional de suas
próprias naturezas e as aspirações intelectuais e místicas. Ele se utiliza da pesquisa de eruditos franceses
e italianos que concluíram que 'as senhoras que todos esses poetas veneravam não eram mulheres de
carne e osso, pelo contrário, eram representações de um ideal Feminino, Sapientia ou Sabedoria
Sagrada' e 'que a Senhora desses poetas era... uma alegoria da Divina Sabedoria que também se
buscava'.
Anderson, como Henry Corbin, outro erudito, vê o caminho espiritual de Dante como a busca da
iluminação através do misticismo sexual, como faziam os trovadores. Henry Corbin afirma:

O fidele d'amore, companheiros de Dante, professam uma religião secreta... a união que une o
intelecto potencial da alma humana com a Inteligência Ativa... Anjo do Conhecimento, ou Sabedoria-
Sophia, é visualizada e experienciada como a união do amor.

Entretanto, mais notável é a ligação que Dante e seus místicos companheiros estabelecem com os
cavaleiros templários. Ele era um de seus partidários mais entusiásticos, mesmo depois de sua
supressão, quando não era aconselhável ser vinculado a eles. Na Divina Comédia, ele estigmatiza
Filipe, o Justo, como 'o novo Pilatos', por suas ações contra os cavaleiros. Acredita-se que o próprio
Dante fora membro de uma Ordem dos Templários terciária chamada La Fede Santa. As conexões são
sugestivas o suficiente para serem simplesmente desconsideradas; talvez Dante não fosse a exceção,
mas sim a regra, de um templário que estava envolvido com um culto ao amor.
Anderson afirma:

Em face disso, os templários, como uma ordem militar celibatária... seriam um canal bastante
improvável para assuntos dedicados ao elogio de belas senhoras. Por outro lado, muitos templários
estavam envolvidos com a cultura oriental e alguns deles bem que poderiam ter entrado em contato com
escolas sufis.

E prossegue falando sobre as conclusões de Henry Corbin:

A ligação entre Sapientia [Sabedoria] e o imaginário do Templo de Salomão, junto com suas
associações com o Grande Ciclo de peregrinação, leva à suposição de uma conexão entre o fidele
d'amore e os cavaleiros templários, chegando até mesmo ao ponto de considera-los como uma
confraternidade secular da ordem.

Juntamente com a evidência revolucionária que foi revelada por pesquisadores como Niven Sinclair,
Charles Bywaters e Nicole Dawe, isso sugere que pelo menos a ordem interna dos cavaleiros realmente
fazia parte de uma tradição secreta que venerava o Princípio Feminino.
Da mesma forma, aquele disputado ramo dos templários, o Monastério de Sion, sempre teve membros
mulheres - e a lista dos Grão-Mestres inclui quatro mulheres -, o que é particularmente estranho porque
seus nomes aparecem no período medieval, quando seria de se esperar que o sexismo fosse
prevalecente. Como Grãs-Mestra essas mulheres teriam exercido um poder real, e esse papel, sem
dúvida alguma, exigia padrões particularmente altos de integridade e habilidade para lidar com os
diversos níveis de interesses e egos contraditórios. Embora possa parecer estranho que mulheres tenham
estado no topo de uma organização que, supõe-se, era extremamente poderosa, e em uma época em que
até mesmo a alfabetização feminina não era de forma alguma comum, parece menos estranho quando
visto dentro do contexto de uma tradição secreta devotada à deusa.
Apoiando muitas das escolas de mistério citadas estavam os rosa-cruzes, cujo interesse pelo misticismo
sexual está presente até mesmo em seu nome: a cruz fálica e a coligada rosa feminina. Esse símbolo de
união sexual é remanescente da cruz ansada (ankh) dos egípcios antigos: a vertical sendo o falo e a volta
ovalada a vulva. Os rosa-cruzes, com sua mistura de sabedoria alquímica e gnóstica, entendiam
perfeitamente os princípios subjacentes, como o alquimista rosa-cruz Thomas Vaughan, do século XVII,
explicou:' ... a própria vida nada mais é que a união dos princípios masculino e feminino, e aquele que
perfeitamente sabe esse segredo sabe... como deve usar sua esposa...' (Lembre-se da enorme rosa ao pé
da cruz no mural de Cocteau em Londres, uma clara alusão aos rosa-cruzes. E a imagem da rosa-cruz é
encontrada na tumba do templário SirWilliam Saint Clair...)
Mesmo que haja, como já vimos, evidências de que os templários, os alquimistas e o Monastério sejam
devotos de um culto ao amor, parece haver pouca possibilidade de que a resoluta linhagem masculina de
filósofos herméticos tivesse qualquer ligação com uma organização feminina, ou talvez feminista.
Contudo, aqui também a imagem superficial é enganadora.
O próprio Leonardo é considerado um homossexual misógino, e é verdade que ele demonstrou ter pouco
amor pelas mulheres, ao menos até onde sabemos. Sua mãe, a misteriosa Caterina, parece tê-lo
abandonado à sua própria sorte quando ele ainda era criança, embora possa ter vivido seus últimos dias
ao lado dele, muitos anos depois, e é certo que Leonardo teve uma empregada a quem se referia,
ironicamente, como 'La Caterina', e cujo funeral ele pagou. Ele pode ter sido um homossexual, mas isso
nunca representou qualquer empecilho à devoção dos homens ao Princípio Feminino, muito pelo
contrário. Os ícones dos gays tradicionalmente são mulheres fortes e vivazes que tiveram vidas
traumáticas, exatamente como Madalena e a própria Ísis. Além disso, Leonardo é conhecido por sua
intimidade com Isabella d'Este, uma mulher educada e inteligente. Embora talvez seja levar muito longe
a especulação sugerir que ela era membro do Monastério ou de alguma outra escola secreta 'feminista',
isso pode significar, pelo menos, que Leonardo aprovava a alfabetização feminina.
O hermético florentino Pico della Mirandola dedicou muitas palavras ao tema do poder feminino. Seu
livro La Strega (A Bruxa) relaciona a história de um culto italiano baseado em orgias sexuais e dirigido
por uma deusa. E ainda mais notável, ele equiparou essa deusa com a 'Mãe de Deus'.
Até mesmo Giordano Bruno, notoriamente masculino, estava fortemente envolvido com o feminino.
Durante sua estada na Inglaterra, entre 1583-85, publicou várias obras que esboçavam a filosofia
hermética, que pode ser encontrada em qualquer livro didático de história. No entanto, costuma-se ig-
norar o fato de que ele também havia publicado um volume de poesia de amor passional chamado De gli
eroici furori (No Frenesi Heróico), que foi dedicado a seu amigo e protetor Sir Philip Sydney. Este não
era nenhum hino a uma obsessão passageira, ou mesmo um olhar rápido na, até então, desconhecida
vida secreta de um sedutor. Embora se reconheça que havia um nível mais profundo nessa poesia, a
maioria das autoridades acredita que isso era apenas uma expressão alegórica da experiência hermética.
Na verdade, o amor cantado nessas obras não era alegórico, mas sim literal.
O furori do título é, citando Frances Yates: 'Uma experiência que faz a alma "divina e heróica" e pode
ser comparada ao êxtase do furor do amor passional'. Em outras palavras, estamos mais uma vez
olhando para um conhecimento do poder de transmutação do sexo.
Nesses poemas Bruno estava se referindo a um estado alterado de consciência no qual o hermético
percebe sua própria divindade potencial. Esta é vista como o êxtase da união completa com a outra
metade. Como Dame Frances afirma: '...Penso que a experiência religiosa do Eroici furori na verdade
aponta para a gnosis hermética; essa é a poesia do amor místico do Mago, que foi criado divino, com
poderes divinos, e está no processo de se tornar divino novamente, com poderes divinos'.
Mesmo considerando a tradição que Bruno estava seguindo, está claro que tais sentimentos não eram
meramente metafóricos. Essa ênfase na iluminação através do sexo fazia parte da filosofia e da prática
hermética. O conceito de sexualidade sagrada está em total concordância com as palavras do próprio
Hermes Trismegistus no seu Corpus Hermeticum: 'Se você odeia seu corpo, minha criança, você não
pode se amar'.
Os herméticos, como Marsilio Ficino, identificavam quatro tipos de estado alterado no qual a alma se
unia com o Divino, cada um dos quais estava associada a uma figura mitológica: inspiração poética
associada às Musas, entusiasmo religioso associado a Dioniso, transe profético associado a Apolo e
todas as formas de amor intenso associado a Vênus. O último é o clímax em todos os sentidos, pois é
quando a alma realmente completa sua união com o Divino.
Os historiadores sempre tomaram literalmente o primeiro desses três estados alterados, mas escolheram
ler o último, o ritual de Vênus, como uma simples alegoria ou como uma espécie de amor impessoal ou
espiritual. Se fosse esse o caso, os herméticos dificilmente o teriam categorizado em associação com
Vênus! A aparente timidez dos historiadores nesse assunto é devida à ampla ignorância sobre a tradição
secreta. Este, no entanto, é um outro exemplo de conceitos que se pensou uma vez serem obscuros e
que se tornam cristalinos assim que a idéia da sexualidade sagrada é levada em conta.
O grande mago hermético Henry Cornelius Agrippa (1486-1535) trata a questão de um modo bastante
explícito. Ele escreveu em sua clássica obra De occulta philosophia: 'Quanto ao quarto furor, vindo de
Vênus, ele revira e transmuda o espírito do homem em um deus pelo ardor do amor, e o faz
completamente como Deus, como a verdadeira imagem de Deus'. Observe o uso do termo alquímico
transmudar, que é geralmente empregado como referência à preocupação tola e fútil de tentar
transformar o chumbo em ouro. Aqui, entretanto, busca-se um outro tipo de artigo precioso completa-
mente diferente. Agrippa também enfatiza que a união sexual é 'plena de mágica doação',
O lugar de Agrippa nessa tradição herética não deveria ser subestimado, Seu tratado De nobilitate et
praecellentia foeminei sexus (Da Nobreza e Superioridade do Sexo Feminino), que foi publicado em
1529, mas baseava-se em uma dissertação sua vinte anos mais antiga, é muito mais do que uma
reivindicação incrivelmente moderna pelos direitos das mulheres, Esse trabalho surpreendente de
Agrippa foi bastante negligenciado até bem recentemente, devido a uma tristemente previsível razão.
Em virtude dessa obra ter defendido a igualdade sexual, chegando até a argumentar em favor da orde-
nação de mulheres, foi interpretada como sendo uma sátira! Que uma obra apaixonada em favor das
mulheres tenha sido vista como uma piada, reflete a inflexibilidade de nossa cultura. Parece claro,
porém, que Agrippa não estava brincando.
Ele não estava apenas discutindo o assunto em virtude do que hoje chamaríamos de direitos da mulher,
para a redefinição do estado político da mulher, estava, sim, tentando transmitir o princípio que se
encontra por trás de tal campanha. Como a professora Bárbara Newman, da Northwest University, diz,
em seu estudo sobre o tratado:

...até mesmo um leitor simpatizante poderia não ter certeza se Agrippa estava reivindicando que se
passasse por cima da questão do gênero, que houvesse igualdade de oportunidades na Igreja ou uma
espécie de culto de mulheres.

Newman e outros eruditos ao rastrearem as fontes da inspiração de Agrippa chegaram a várias raízes
que incluíam a cabala, a alquimia, o hermetismo, o neoplatonismo e a tradição dos trovadores. E, uma
vez mais, a busca de Sophia é citada como uma das principais influências.
Seria um engano pensar que Agrippa estivesse apenas reivindicando o respeito e a igualdade para as
mulheres. Ele foi muito além. Sua colocação era a de que as mulheres deveriam ser, literalmente,
cultuadas:

Qualquer um que não esteja totalmente cego não pode deixar de ver que Deus reuniu toda a beleza
que há no mundo inteiro na figura da mulher, assim toda a criação poderia se deslumbrar com ela, amá-
la e venerá-la sob diversos nomes.
(E é significativo que Agrippa, como os alquimistas, acreditasse que o sangue menstrual tivesse uma
aplicação prática e mística em particular. Eles acreditavam que esse sangue continha um tipo de
substância química ou elixir única e inigualável, que ao ser ingerido de uma certa maneira, utilizando
técnicas antigas, garantiria o rejuvenescimento físico e proporcionaria sabedoria. Claro que nada poderia
estar mais distante da posição da Igreja.)
Agrippa não era um mero teórico, e nem um covarde. Não só fora casado três vezes, como também teve
sucesso no que pareceria ter sido impossível: defendeu uma mulher acusada de feitiçaria, e ganhou.
Claro que Vaughan, Bruno e Agrippa eram todos homens, e é tentador suspeitar que simplesmente
desfrutaram do êxtase sexual em benefício próprio, mesmo se isso fosse algo profundamente espiritual.
Porém, embora seja verdade dizer que qualquer mulher que ousasse escrever sobre tais assuntos teria
sido presa e acusada de feitiçaria, também é verdade que o ritual de Vênus só seria considerado como
'realizado' se ambos os participantes atingissem as mesmas metas. A idéia era fazer com que opostos e
iguais trabalhassem para alcançar a mesma meta e receber a mesma iluminação enquanto parceiros, da
mesma forma que na idéia chinesa de que a totalidade é composta de Yin e Yang.
Giordano Bruno não era o tipo de pessoa que guarda as próprias crenças para si mesmo. Em suas
últimas obras publicadas, ele empregou um imaginário sexual ainda mais explícito, mas até mesmo isso
foi colocado de lado pelos historiadores; se e quando essa questão é mencionada nas obras usuais
relacionadas a Giordano, normalmente seu sentido é explicado como sendo alegórico. Não apenas essa
como outras referências explícitas e relacionadas, colocadas em suas obras, também são habitualmente
mal interpretadas. Quando Bruno falou de uma 'deusa', referindo-se à senhora anônima para quem
escrevia uma poesia de amor, isso foi compreendido como sendo um epíteto afetuoso. E depois, quando
deu adeus à Alemanha, dizendo de modo abrupto que a deusa Minerva era Sophia (sabedoria), isso
também foi tomado como sendo outra alegoria. Suas verdadeiras palavras, no entanto, eram ine-
quivocamente as de quem estava venerando uma deusa:

Ela, a quem tenho amado e procurado desde minha mocidade, e desejado para minha esposa, e fez-
me um enamorado de sua aparência... e rogo para que... ela possa ser enviada para comigo viver, e
comigo trabalhar, para que então eu saiba o que é que me faltava...

Ainda mais interessante, no entanto, é o fato de sua dedicatória do Eroici furori comparar essa obra ao
Cântico dos Cânticos. Uma vez mais, nos encontramos em face do culto à Madona Negra e, por
associação, com o de Madalena. (Claro que aquele outro grande escritor hermético/rosa-cruz da época,
conhecido como William Shakespeare, dedicava seus sonetos a uma misteriosa Senhora Escura, cuja
identidade tem sido fonte infinita de combustível para a discussão de gerações de críticos. Embora essa
mulher possa muito bem ter sido de carne e osso, ou quem sabe um homem, é também provável que ela
representasse au fond (no fundo) a Madona Negra, a deusa escura. Realmente, o herméticos
simbolizaram um particular estado alterado, um tipo de transe específico, como uma senhora de
aparência escura.)
Os potentes ataques de Bruno às tradições e crenças cristãs o conduziram a uma morte terrível, servindo
como aviso a outras almas que pretendessem ser valentes. As atrocidades cometidas nos julgamentos
das bruxas, como já vimos, também reforçaram a necessidade de circunspeção por parte dos 'hereges'(e
devemos lembrar que, embora as fogueiras há muito já tivessem sido abolidas, o último processo contra
uma mulher sob a acusação de Ato de Feitiçaria no Reino Unido aconteceu no recente ano de 1944).
Contudo, a prática do amor transcendental, um segredo específico do mundo ocultista, não se limitava a
indivíduos isolados, e não desapareceu junto com eles.
Há uma certa dificuldade em localizar na Europa uma tradição que seja claramente devotada à
sexualidade sagrada, em razão do antagonismo da Igreja e a conseqüente necessidade de segredo entre
os guardiães desse conhecimento. No entanto, nos séculos XVII e XVIII, a Alemanha pareceu ter se tor-
nado o lar dessa tradição, embora pouca pesquisa sobre essa questão tenha sido feita até recentemente.
De acordo com pesquisadores franceses contemporâneos, como Denis Labouré, a prática da 'alquimia
interna' na Alemanha tornou-se o ponto central de várias sociedades ocultas. Outra pesquisa recente,
incluindo a do Dr. Stephen E. Flores, confirmou que o ocultismo alemão desse período era, em sua
natureza, essencialmente sexual.

Um problema para pesquisadores dessa área é que, de modo geral, as evidências da existência de cultos
dedicados ao sexo tendem a vir da Igreja, ou pelo menos dos que vêem satanismo em tudo que esteja
conectado ao sexo. Tais movimentos, ao serem perseguidos, têm seus registros ou destruídos ou
censurados, e tudo o que resta é a versão dos acontecimentos conforme vistos por seus inimigos. Isso
aconteceu com os cátaros e templários, alcançando seu aterrador ápice com o julgamento das bruxas.
Vemos esse processo acontecer sempre que as idéias sobre sexualidade sagrada são expressadas, como
aconteceu mais uma vez na França do século XIX.
Naquela época, emergiram vários movimentos inter-relacionados que, embora florescessem de dentro da
própria Igreja católica e fossem centrados em pessoas que se consideravam bons católicos, incluía
conceitos de sexualidade sagrada e de sublimação do Feminino (normalmente expressado na figura da
Virgem Maria) e estavam conectados com uma obscura sociedade 'joanina', dessa feita especificamente
ocupada com João Batista.
Essa é uma série de eventos de extrema complexidade a serem desvendados, em grande parte porque, a
despeito das idéias e conceitos religiosos não ortodoxos e da sexualidade que os levou a serem tachados
como imorais, também estavam estreitamente ligados a causas políticas, o que atraiu a hostilidade das
autoridades. Portanto, quase que a totalidade dos relatos que temos sobre eles vem de seus inimigos.
Os motivos políticos desses grupos estão fora do escopo desta investigação, embora fossem muito
importantes para os que na época estavam envolvidos. Basta dizer que apoiavam as pretensões de um
certo Charles Guillaume Naündorff (1785-1845), que alardeava ser Luís XVII (e que se acredita ter sido
assassinado ainda criança junto com seu pai, Luís XVI, durante a Revolução Francesa).
Um desses grupos era a Igreja de Carmela, também conhecida como o Oeuvre de la Misericorde (Obra
da Misericórdia), estabelecida no início dos 1840 por Eugene Vintras (1807-1875). Pregador
carismático e entusiasmante, Vintras atraiu a nata da sociedade para seu movimento que, não obstante,
logo passou a sofrer acusações de demonismo. Com certeza, os rituais tinham alguma espécie de
conteúdo sexual, no qual (nas palavras de Ean Begg) 'o maior sacramento era o ato sexual'.
Para tornar as coisas ainda piores em relação às autoridades, Vintras e Naündorff endossavam um ao
outro. Assim, inevitavelmente,Vintras colocou-se em uma posição que claramente o expunha a ir a
julgamento. Acusado de fraude, embora até mesmo as supostas vítimas negassem ter havido qualquer
crime, foi condenado a cinco anos de prisão, em 1842. Ao ser libertado seguiu para Londres. Foi nesse
momento, então, que um dos antigos membros de sua Igreja, um padre chamado Gozzoli, escreveu um
folheto em que o acusava de realizar orgias sexuais de todos os tipos. Embora isso pareça ter sido
basicamente fruto de uma imaginação fértil, ao menos em parte pode ter se baseado em fatos. Em 1848,
a seita foi declarada herética pelo Papa e todos os seus membros foram excomungados. A partir de
então a seita tornou-se independente, contando com padres homens e mulheres, do mesmo modo que os
cátaros, embora não se tenha certeza se o culto de Vintras seguia os mais altos princípios destes.
Por trás de Vintras e Naündorff estava uma seita obscura conhecida como 'os Salvadores de Luís XVII',
ou como os joaninos. Esse grupo remonta aos anos de 1770, e parece ter tomado parte na agitação
social que precedeu a Revolução.Ao contrário dos joaninos 'maçônicos' examinados anteriormente, não
tinham nenhuma dúvida sobre qual São João veneravam, era o Batista.
Após a Revolução, os joaninos passaram a se ocupar com a restauração da monarquia. Eles, em grande
parte, eram os responsáveis pelo lançamento de Naündorff como pretendente ao trono, e também
estavam por trás de movimentos 'proféticos' como o de Vintras. Outro autodenominado 'guru' da época,
Thomas Martin, que tinha meteoricamente passado de simples camponês para conselheiro de rei, tinha
o apoio dos joaninos, e além disso parecem ter de algum modo 'fabricado' algumas visões da Virgem,
como as de La Salette, nos contrafortes dos Alpes ocidentais, em 1846. O que estava exatamente
acontecendo é difícil dizer, mas é possível identificar as linhas gerais que transpassavam determinados
eventos que estavam aparentemente associados.
Primeiro, havia uma tentativa de regenerar o catolicismo de dentro de si mesmo. Isso significava
substituir o dogma popular, baseado na autoridade de Pedro, por um cristianismo místico e esotérico, na
crença de que estava amanhecendo a era na qual o Espírito Santo estaria em supremacia. Um aspecto
dessa supremacia era a ascensão do Feminino, cuja representação era a Virgem, que logo assumiu um
caráter sexual mais explícito e começou a tornar-se algo ativamente hostil para a Igreja. A visão de La
Salette, que fora condenada pela Igreja, era um ponto central nesse plano. E de alguma maneira o papel
de João Batista era crucial nesses desdobramentos.
O movimento também apoiava a tentativa de fazer com que Naündorff fosse reconhecido como o rei
legítimo da França, provavelmente porque, se tivesse tido sucesso, ele teria sido favorável a essa nova
forma de religião (pois já havia endossado Vintras). Melanie Calvet, a menina que teve a visão de La
Salette, apoiava Naündorff. E é interessante que a Igreja tenha reagido a isso enviando-a para um
convento em Darlington, no nordeste da Inglaterra, onde não poderia causar mais nenhum problema.
As forças combinadas da Igreja e do Estado impediram que o grande plano do movimento fosse bem-
sucedido, e o que quer que tenha realmente acontecido está agora enterrado sob uma avalanche de
escândalos e insinuações. Mas é sem dúvida significativo que a reação da Igreja para essa ameaça fosse
fazer da Imaculada Conceição de Maria um artigo de fé, em 1854. (Essa doutrina seria
convenientemente endossada pela própria Virgem Maria quando apareceu para a menina camponesa
Bernadette Soubirous, em Lourdes, cerca de quatro anos depois, embora esta a princípio tenha descrito
sua visão como, simplesmente, 'aquela coisa'.)
Profetas como Martin e Vintras parecem ter sido 'manobrados' pelos joaninos, em vez de realmente
terem feito parte da seita. A ligação de Vintras com a seita era a sua mentora, uma certa Madame
Bouche, que morou na Praça de St. Sulpice, em Paris, e usou o nome, esplendidamente evocativo, de
'Irmã Salomé'. (A Igreja de Carmela, de Vintras, ainda funcionava em Paris nos anos quarenta, e houve
rumores de um grupo operando em Londres nos anos 60).
Havia um outro movimento, os Irmãos da Doutrina Cristã, que se fundiu com a Igreja de Carmela, mas
na realidade havia sido fundado anteriormente, em 1838, pelos três irmãos Baillard, todos padres. Eles
montaram duas casas religiosas, St. Odile, na Alsácia, e Sion-Vaudémont, em Lorraine, nas montanhas,
continuando a se considerar católicos. Ambos são locais importantes em suas regiões, e é um mistério
que os irmãos Baillard os pudessem ter adquirido.
Sion-Vaudémont era um local importante para o culto pagão na Antigüidade, consagrado à deusa
Rosamerta, e, como pode ser inferido de seu nome, já há muito estava ligado ao Monastério de Sion. Na
realidade, uma Ordre de Notre-Dame de Sion, historicamente reconhecida, foi lá fundada no século
XIV por Ferri de Vaudémont, cuja escritura a unia à abadia de Monte Sion, em Jerusalém, de onde o
Monastério afirma ter tirado seu nome. O filho de Ferri casou-se com Iolande Trancam, Grã-Mestra do
Monastério entre 1480 e 1483, e filha de Renê d' Anjou, o Grão-Mestre que a antecedeu. Iolande
transformou o Sion-Vaudémont em um importante centro para peregrinação, focado em sua Madona
Negra. A própria estátua foi destruída durante a Revolução e substituída por uma Virgem medieval que
não era negra, retirada da igreja de Vaudémont, que é consagrada a João Batista.
Assim parece ser significativo que uma das novas igrejas dos irmãos de Baillard estivesse baseada
naquele lugar. Suas idéias eram semelhantes às de Vintras, inclusive a ênfase no início iminente da era
do Espírito Santo e da sexualidade sagrada, portanto não é de se surpreender que tivessem saído da
mesma fonte. Seu movimento recebeu grande apoio, incluindo o da Casa dos Habsburgos. No entanto,
como outros, também foi suprimido, em 1852.
Depois da morte de Vintras, em 1875, o movimento foi assumido pelo abade Joseph Boullan (1824-
1893), uma figura ainda mais controversa. Algum tempo antes ele havia seduzido uma jovem freira do
convento de La Salette, Adèle Chevalier, e os dois fundaram a Sociedade para a Reparação das Almas,
em 1859. Esta, definitivamente, baseava-se em rituais sexuais, sendo sua filosofia geral a de que a
humanidade encontraria a redenção através do sexo, se este fosse visto como um sacramento. Embora
isso possa parecer puro e alquímico em sua natureza, de modo bastante impróprio Boullan estendeu os
benefícios desse ritual ao reino animal.
Há informações de que Boullan e Adèle Chevalier teriam sacrificado seu próprio filho durante um ritual
de magia negra, em 1860. Contudo, embora isso seja relatado como fato em toda a literatura moderna, é
impossível voltar às origens dos acontecimentos e encontrar uma fonte segura. Se Boullan era
conhecido por ter cometido um crime, então, ele parece ter escapado de uma acusação formal. É
verdade que foi suspenso de suas obrigações como padre naquele ano, mas tal suspensão foi retirada
após alguns meses. Em 1861, ele e Adèle foram presos por fraude (o modo usual, talvez, das
autoridades lidarem com aqueles a quem tinham aversão mas a quem, no entanto, nada podiam
imputar). Após ser condenado, Boullan foi novamente suspenso de seus deveres sacerdotais, mas mais
uma vez a decisão foi revertida. Após sair da prisão ele voluntariamente se apresentou ao Santo Ofício
(então o nome oficial da Santa Inquisição) em Roma, que não lhe imputou nenhuma culpa, liberando-o
para que voltasse a Paris.
Enquanto esteve em Roma, Boullan escreveu suas doutrinas em um caderno (conhecido como o cahier
rose (caderno rosa), basicamente em razão da cor da sua capa) que foi encontrado pelo escritor J. K.
Huysmans entre os documentos de Boullan após sua morte, em 1893. Os detalhes precisos do conteúdo
do caderno são desconhecidos, embora tenha sido descrito como um 'documento chocante'. Atualmente
está trancado a sete chaves na Biblioteca do Vaticano, que nega todos os pedidos de acesso ao caderno.
Existem, com certeza, muito mais coisas nessa história de Boullan. Olhando de modo superficial, parece
ser mais a história de um clube de pervertidos. Contudo, parece que a Igreja, até certo ponto, realmente
protegeu Boullan. Por exemplo, a Igreja emitiu uma instrução ordenando que não fosse molestado, e há
indicações de que ele estava em posse de algum tipo de segredo que propiciava tal proteção. A história
de Boullan encaixa-se no clássico padrão do agente provocador que se infiltra em uma organização com
a intenção deliberada de desacreditá-la, em interesse de um outro grupo. Isso explicaria as enormes
discrepâncias entre sua conduta e as medidas oficiais tomadas contra ele.
Após ter voltado de Roma, Boullan ingressou na Igreja de Carmela, de Vintras, tornando-se seu líder.
Isso provocou um cisma: os membros do culto que o aceitaram o acompanharam até Lyon, onde
montaram sua sede. Seguiram-se, então, cenas desenfreadas de licenciosidade sexual, o que, uma vez
mais, parece estar em total conflito com as afirmações do próprio Boullan de que ele era a reencarnação
de João Batista.
Essa última colocação pode bem ter sido a fonte que inspirou J. K. Huysmans (devoto do culto da
Madona Negra) a escolher o nome de 'Dr. Johannes' para o personagem inspirado em Boullan, no seu
romance sobre o satanismo em Paris, Là-Bas (Lá Embaixo) (1891). Contudo, seria um engano nos
lançarmos a uma conclusão óbvia. Dr. Johannes foi retratado como um padre que praticava magia para
se contrapor ao satanismo e que foi mal compreendido pela Igreja, que, claro, tachava qualquer tipo de
magia como pertencente ao Diabo. Huysmans ajudou Boullan e hospedou-se com ele em Lyon,
enquanto realizava as pesquisas para o seu romance, mas embora ele certamente tivesse muito
conhecimento sobre magia, sempre foi tido e se via como um verdadeiro filho da Igreja, ao menos em
teoria.
Là-Bas é hoje lembrado principalmente por sua lúgubre descrição de uma missa negra, descrição que
parece ser o depoimento de uma testemunha ocular. Os verdadeiros vilões da história, contudo, são os
rosa-cruzes, devido a notória batalha travada no campo da magia entre Boullan e membros de certas
ordens de rosa-cruzes que naquela época floresciam na França. Pode parecer incongruente que
justamente os rosa-cruzes se opusessem de forma tão ferrenha a Boullan e a tudo que por ventura
representasse. Claro que o conflito poderia somente ter sido uma dessas brigas de ego que comumente
atingem tais movimentos. Por outro lado, talvez alguns rosa-cruzes estivessem alarmados com a
franqueza de Boullan em relação a seus segredos.
A França havia se tornado o lar de vários centros ocultistas. Muitas ordens rosa-cruzes eram um
desdobramento da mistura dos movimentos templaristas-maçônicos-rosacrucianos encontrados no
sudoeste da França. Embora estas não fossem ordens estritamente maçônicas, certamente estavam
alinhadas com os sistemas maçônicos ocultos, como o Ritual Escocês Purificado e os Rituais Egípcios.
Tanto os grupos maçônicos quanto os de rosa-cruzes abraçaram a filosofia dos martinistas, os
ensinamentos ocultos de Louis Claude de Saint-Martin. Na realidade, a importância do martinismo não
deveria ser subestimada: os maçons do Ritual Escocês Purificado atual são recrutados exclusivamente
dentre os martinistas.
A primeira dessas organizações de rosa-cruzes parece ter sido uma filial de uma loja maçônica um tanto
irregular conhecida como La Sagesse (Sabedoria ou Sophia), em Toulouse. Por volta de 1850, um de
seus membros, o Visconde de Lapasse, (1792-1867), um respeitado médico e alquimista, fundou a
Ordre de La Rose-Croix, du Temple et du Graal (Ordem da Rosa-Cruz, do Templo e do Graal). A
segunda pessoa mais importante dessa ordem era Joséphin Péladan (1859-1918), que também era de
Toulouse e tornou-se uma espécie de padrinho das sociedades de rosa-cruzes francesas daquele tempo.
Péladan era um grande conhecedor do ocultismo, depois de ter sido inspirado pelo escritor francês
Éliphas Lévi (cujo nome verdadeiro era Alphonse Louis Constant, 1810-75). Péladan desenvolveu um
sistema de magia que foi descrito como 'um erótico catolicismo-com-magia', e organizou o popular
Salon de La Rose + Croix. (Um cartaz de publicidade mostrava uma dessas reuniões, e nele Dante é
retratado como sendo Hugues de Payens, primeiro Grão-Mestre dos templários, e Leonardo é descrito
como o Guardião do Graal [ver ilustração].) Péladan acreditava que a Igreja católica era um repositório
de conhecimento do qual ela mesma havia se esquecido, e ele estava particularmente interessado no
Evangelho de João.Também estava à frente de avançados estudos nos quais via o fidele d' amore como
uma sociedade esotérica, especificamente vinculada aos rosa-cruzes do século XVII.
Péladan conheceu um outro ocultista, Stanislas Guaita (1861-1898), e em 1888 os dois formaram a
Ordre Kabbalistique de La Rosa-Croix (Ordem Cabalística da Rosa-Cruz). Foi Guaita quem se infiltrou
na Igreja de Carmela de Boullan e, em conjunto com Oswald Wirth, um membro que havia se des-
encantado com o culto, escreveu o livro The Temple of Satan, que expôs o movimento como sendo
diabólico. Isso conduziu à batalha mágica na qual Boullan e Guaita acusaram-se de usar os poderes da
magia com a intenção de causar a morte um do outro. Pode ser um tanto desapontador, mas Boullan
parece ter morrido de causas naturais, mas, como já era de se esperar, a rixa entre eles resultou em dois
duelos de carne e osso, um entre Guaita e um dos discípulos de Boullan, Jules Bois, e o outro entre este
último e um rosa-cruz, Gérard Encausse (mais conhecido como Papus). Ambos os duelos terminaram
em empate.
Esse episódio é um dos prediletos entre os escritores do ocultismo, mas nunca é explicado de modo
satisfatório. Por que Guatta e os rosa-cruzes parisienses empreenderiam uma vendeta contra Boullan?
(Não custa lembrar que temos apenas a versão de Guatta e Wirth sobre as supostas depravações
cometidas por Boullan e seus discípulos.) Em face disso, não há conexão real, ou base de disputa, entre
as lojas maçônicas ocultas e a ordem essencialmente religiosa de Boullan.
Porém, se cavarmos um pouco mais fundo encontraremos a verdadeira razão: Guatta e um tribunal de
rosa-cruzes haviam condenado Boullan por 'profanar' e revelar 'segredos cabalísticos', ou seja, os
ensinamentos que se julgava serem exclusivos dos rosa-cruzes. (E a condenação de Boullan ocorreu no
dia 23 de maio de 1887, antes, portanto, de Guatta ter se infiltrado no seu grupo.) Essa era a razão
verdadeira deles sentirem a necessidade de silenciar Boullan.
Outros comentadores parecem não ter notado as implicações decorrentes disso: se os rituais de Boullan
foram considerados como usurpadores de algo que pertencia aos rosa-cruzes, então eles também
deveriam praticar rituais de cunho sexual. O erro de Boullan, aos olhos dos rosa-cruzes, foi tê-los
tornado público.
A Paris do século XIX abrigou muita filosofia e ocultismo eruditos, refletindo, talvez, a busca do fin de
siecle por um significado mais profundo da vida. Tal busca atraía toda sorte de pensadores e artistas,
como Oscar Wilde, Debussy e W. B. Yeats. (Como sempre, a verdadeira união européia era uma
fraternidade secreta.) Os salões estavam repletos de rostos famosos, ansiosos tanto para descobrir uma
fórmula mágica quanto para fabricar fofocas, entre eles Marcel Proust, Maurice Maeterlinck e a cantora
de ópera Emma Calvé (1858-1942). Famosa por sua beleza, ela abria as portas de seus próprios saraus a
qualquer um que eventualmente tivesse algo de interessante para compartilhar, de preferência algum
grande segredo ocultista. Esses círculos também incluíam tipos como Joséphin Péladan, Papus e Jules
Bois (que era um dos muitos amantes de Emma Calvé).
Muitos dos que eram a energia propulsora desses círculos vieram do Languedoc, inclusive a própria
Emma Calvé. (Ela não era nenhuma iniciante no misticismo: foi uma parente sua, Melanie Calvet, quem
teve a famosa visão de La Salette. E, o que é interessante, Adele Chevalier, a freira que fora seduzida
por Boullan e tornou-se sua sócia, era uma das amigas de Melanie.) Emma Calvé iria representar um
importante papel na confusa história do abade Sauniere, padre de paróquia da aldeia Rennes-le-Château,
no Languedoc, assunto que será examinado mais à frente.
Sugestivamente, em 1894, ela comprou o castelo de Cabrieres (Aveyron), próximo do local onde
nasceu, em Millau, que se dizia ter sido, no século XVII, o lugar onde fora escondido o Livro de
Abraham, o judeu, há muito procurado, e que fora utilizado por Flamel para completar a Grande Obra.
Em sua autobiografia, Calvé conta que seu castelo 'fora o refúgio de um certo grupo de cavaleiros
templários', mas, para nossa frustração, não faz mais nenhum comentário.
Alguns outros grupos ocultistas importantes começaram no Languedoc e haviam se conectado com as
sociedades rosa-cruzes. Foram influenciados pela Maçonaria da Estrita Observância Templária, do
Barão von Hund, embora a influência principal tenha vindo de uma figura bastante difamada, o Conde
Cagliostro (1743-1795).
Denunciado como um charlatão, esse ator natural era um genuíno investigador do conhecimento oculto.
Nascido Giuseppe Balsamo, recebeu o título de Conde Alessandro Cagliostro de sua madrinha. Foi
apresentado ao ocultismo quando tinha vinte e três anos, durante uma visita a Malta, onde conheceu o
Grão-Mestre dos Cavaleiros de Malta, que era alquimista e rosa-cruz. O próprio Cagliostro pegou o
vírus do ocultismo e tornou-se alquimista e maçom, sendo fortemente influenciado pela Estrita
Observância Templária. Sua entrada na maçonaria se deu na rua Gerrard, no Soho, em Londres, onde foi
iniciado em uma loja da Estrita Observância Templária, em abril de 1777. Viajou bastante pela Europa,
mas passou a maior parte do seu tempo na Alemanha, procurando especificamente pelo conhecimento
perdido dos templários. Também tinha reputação como curandeiro.
Em 1789, foi a Roma em visita, após ter recebido a permissão do Papa. Quando lá chegou logo caiu nas
garras da Santa Inquisição, a mando do Papa, que o acusou de heresia e conspiração política,
condenando-o à prisão perpétua. Morreu nos calabouços da fortaleza de San Leo, em 1795.
Cagliostro havia estabelecido o sistema da maçonaria 'egípcia' (a loja-mãe foi montada em Lyon, em
1782), que consistia em lojas masculinas e femininas, estas sendo comandadas por sua esposa, Serafina.
Lévi disse que isso era uma tentativa de 'ressuscitar o mistério da devoção a Ísis'.
Os frutos das pesquisas de Cagliostro nas sociedades ocultas da Europa foi um corpo de conhecimentos
denominado o Arcana Arcanorum (Segredo dos Segredos), ou A.A.. Esse nome foi tomado do original
rosacruciano do século XVII. O texto consiste de descrições de práticas mágicas que davam ênfase
especial à 'alquimia interna'. Como já vimos, essas técnicas são essencialmente sexuais, similares às do
tantra, embora Cagliostro as tenha aprendido na Alemanha, de grupos rosa-cruzes.
Foi sob o comando de Cagliostro que o Ritual de Misraïm (hebreu para 'egípcios') instituiu-se em
Veneza, em 1788. Por volta de 1810 os três irmãos Bédarride trouxeram o sistema para a França, onde
foi incorporado ao Ritual Escocês Purificado.
O Ritual de Misraïm era o antecessor direto do Ritual de Memphis, que fora, como já vimos, fundado
por Jacques-Étienne Marconis de Negre e com o qual o próprio Monastério de Sion estava associado.
(Os dois sistemas unificaram-se sob a figura do Ritual de Memphis-Misraïm, em 1899, sob o Grão
Magistério de Papus, que permaneceu no comando até sua morte, em 1918.)
O Ritual de Memphis também estava intimamente ligado a uma sociedade secreta chamada os
Filadelfianos, que fora fundado pelo Marquês de Chefdebien, em 1780, um outro ramo da Estrita
Observância Templária de von Hund, embora tivesse sido especificamente formado para adquirir
conhecimento ocultista. Marconis Negre enfatizou os laços íntimos com os Filadelfianos e deu este
nome a um dos graus de seu movimento.
Nenhum dos rituais, o de Memphis e o Misraïm, eram por si mesmos particularmente influentes.
Tomados em conjunto, como Memphis-Misraïm, no entanto, eram um poder a ser levado em
consideração, e sua influência se espalhou como uma gigantesca onda por entre o mundo ocultista
europeu. Entre seus membros estavam celebridades sombrias como o ocultista britânico Aleister
Crowley e luminares do misticismo como Rudolf Steiner. E havia também Karl Kellner, que mais tarde
iria fundar, com Theodore Reuss, a Ordem dos Templários do Oriente, mais conhecida simplesmente
como OTO.
Essa organização estava, e está, explicitamente relacionada com a magia de sexo. E embora fosse
bastante difundido que ela era a representante do tantra ocidentalizado, também era o desenvolvimento
lógico dos segredos ensinados em Memphis-Misraïm, os quais, por sua vez, derivavam do conhecimento
adquirido por Cagliostro junto aos grupos rosa cruzes alquímicos da Alemanha e das lojas da Estrita
Observância Templária.
Crowley deixou o Memphis-Misraïm para unir-se à OTO, tornando-se Grão-Mestre. Rudolf Steiner era
outra figura importante que também havia saído do Memphis-Misraïm para ingressar na OTO. Ele é
famoso principalmente em razão de sua marca mística 'pura', a antroposofia, e deliberadamente tratou de
diminuir sua associação com a OTO a ponto de muitos de seus discípulos contemporâneos mais
fervorosos não terem a menor idéia de que ele fizera parte daquela Ordem. No entanto, quando morreu
foi enterrado em seu traje ritual da OTO.
De modo significativo, Theodore Reuss escreveu que a magia de sexo da OTO era: 'a CHAVE que abre
todos os segredos maçônicos e herméticos...' E também, de um modo um tanto abrupto, que a magia de
sexo era o segredo dos cavaleiros templários.
Outro desdobramento do movimento Memphis-Misraïm tomou forma na Inglaterra, no século XIX. Era
a hermética Ordem da Aurora Dourada, cujos membros incluíam Bram Stocker, o gerente de teatro mais
conhecido por ser o autor de Dracula; Aleister Crowley, o poeta, patriota e místico irlandês, W. B.
Yeats, e Constance Wilde, a dama de sociedade esposa do condenado Oscar. Fundada em 1888 por
Macgregor Mathers e W. Wynn Westcott, sua linha direta de descendência remonta à Dourada e Rósea
Cruz, à ordem da Estrita Observância Templária, da Alemanha, examinada no capítulo anterior. A
Aurora Dourada também se utilizou de rituais do Memphis-Misraïm. No final das contas, entretanto, a
ordem deve seu direito de existir ao Barão von Hund. Tanto as influências francesas como as alemãs no
fundo partem dele e de seus rituais templários.
A Aurora Dourada é bem mais conhecida no mundo de língua inglesa que aqueles outros grupos
europeus, bem mais exóticos. Tem a reputação de ser extremamente íntegra e, à primeira vista, parece
ser uma sociedade de esotéricos que gostavam de vestir trajes rituais e proferir encantamentos, mas que
na verdade era pouco mais que um grupo de ocultistas de final de semana, com altos ideais. Contudo,
entre os estudiosos franceses do ocultismo, a Aurora Dourada tem uma reputação bem mais sinistra;
quando abriu sua filial em Paris, em 1891, ela aceitou muitos dos duvidosos personagens discutidos
acima, inclusive o aparentemente onipresente Jules Bois.
Na realidade, até mesmo a Aurora Dourada inglesa tinha um aspecto pouco conhecido, porém mais
profundo. Consistia, na verdade, duas Ordens separadas: de um lado tinha uma face pública bem
conhecida, respeitável, e, de outro, havia uma ordem interna chamada a Rosa de Rubi e a Cruz de Ouro,
na qual a iniciação só era possível através de convite. A Ordem externa parecia agir como uma base de
recrutamento para a Ordem interna, um círculo secreto cujas práticas incluíam rituais sexuais.
Certamente a Aurora Dourada guardou muito bem seus segredos internos. Durante anos até mesmo
aqueles escritores, como Katan Shu'al, que também faziam parte do mundo ocultista, poderiam apenas
especular sobre os rituais sexuais daquela Ordem. No entanto, parece que eles realmente existiram,
embora as evidências sejam bastante fragmentadas. Na verdade, parece que os elementos sexuais já
estavam presentes na época da fundação da Ordem. A Aurora Dourada cresceu de dentro de outra
sociedade, a Societas Rosacruciana, em Anglia, que contava entre seus fundadores com Hargrave Jen-
nings (1817-1890), cujos textos eram tão explícitos quanto um cavalheiro vitoriano poderia ser quando
o assunto era a magia do sexo. Em sua volumosa obra The Rosacrucians: Their Rites and Mysteries
(1870), Jennings, nas palavras do autor PeterTompkins, 'insinuou tão diretamente quanto pôde que ess-
es rituais e mistérios eram de uma natureza fundamentalmente sexual'. Por exemplo, discutindo o
simbolismo sexual dos triângulos interligados que compõem o Selo de Salomão (ou a Estrela de Davi),
Jennings acrescenta de modo explícito:

...a pirâmide indica o correspondente poder feminino tumefato ou ascendente - não submisso, mas
responsivamente sugestivo, sincronizado no clitóris anatômico... aquele excêntrico objeto diminuto que
tudo significa na anatomia dos rosa-cruzes.

Em 18 de julho de 1921, Moina Mathers, uma das fundadoras da Aurora Dourada (e irmã do filósofo
Henri Bergson), escreveu a Paul Foster Case, que era o responsável pela filial de Nova York da Ordem,
ao ouvir dizer que ele estava ensinando sexo ritualístico:
Eu lamento que qualquer coisa relacionada com a Questão Sexual tivesse sido introduzida no Templo
nesta fase atual, pois apenas agora estamos começando a tratar diretamente dos assuntos sexuais, em
graus muito mais elevados...

Então, quando a escritora ocultista e membro da Aurora Dourada, Dion Fortune (cujo nome verdadeiro
era Violet Firth) escreveu artigos sobre sexo, Moina a quis expulsar por trair os segredos da Ordem. Mas
por fim teve que admitir que Dion Fortune não poderia realmente tê-los conhecido, pois não havia ainda
atingido os graus necessários.
Comentadores como Maria K. O Greer hoje aceitam que haja evidências para apoiar a noção de que a
Aurora Dourada realmente praticava o sexo mágico, que era claramente considerado muito poderoso, e
precioso demais para ser desperdiçado com seus recrutas mais novos e com os graus baixos.
Sugestões sobre os segredos mais íntimos da Aurora Dourada também podem ser encontradas nas
palavras que descrevem uma visão em comum que Florence Farr e Elaine Simpson, duas adeptas
daquele sistema, tiveram nos anos de 1890. Florence, uma atriz famosa do palco londrino, era também
bastante conhecida pelos casos que tinha com vários homens, inclusive George Bernard Shaw e o
companheiro ocultista W. B. Yeats. Florence e sua colega de magia, Elaine, empreenderam em conjunto
uma viagem astral, um tipo de aventura dentro dos Canais Internos ou uma alucinação compartilhada.
Esse fenômeno é algo bastante comum nos treinamentos de magia, e normalmente faz parte da
cabalística 'abertura do caminho', um tipo de projeção mental ou associação de imagens que são
classicamente estruturadas na figura da 'Árvore de Vida'.
Florence e Elaine pretendiam visitar a 'esfera de Vênus' com os olhos da mente. O ápice de suas viagens
astrais se deu em um encontro com um notável arquétipo feminino, que alegremente disse:

Eu sou a poderosa Mãe Ísis; a mais poderosa em todo o mundo, eu sou a que não luta, mas é sempre
vitoriosa. Eu sou aquela Bela Adormecida a quem os homens sempre buscaram. Os caminhos que
conduzem a meu castelo estão envoltos em perigos e ilusões. Como não me achará, durma; ou sempre
pode apressar-se na procura de Fata Morgana, que sempre desvia do caminho quem sente aquela
influência ilusória. Eu me ergo sobre o alto e atraio os homens até mim. Eu sou o desejo do mundo, mas
poucos há que me encontrem. Quando meu segredo é dito, é o segredo do Santo Graal...
Tenho dado meu coração para o mundo, aí está minha força. O Amor é a Mãe do Homem-deus, doando
a quintessência de sua vida para salvar a raça humana da destruição, e mostrar adiante o caminho para a
vida eterna. Amor é a Mãe do Espírito-Cristo, e este Cristo é o mais elevado amor. Cristo é o coração do
amor, o coração da Grande Mãe Ísis, a Ísis da Natureza. Ele é a expressão do poder dela. Ela é o Santo
Graal, e Ele é o sangue da vida do Espírito que é encontrado na taça.

Imagens vívidas de uma taça contendo um líquido cor de rubi e uma cruz de três barras acompanhavam
essas palavras.
À primeira vista isso parece um arrazoado típico da 'Nova Era', com Jesus e a deusa egípcia Ísis
misturados com a idéia do Santo Graal apenas porque soa enigmático e místico. Porém, como escreveu
recentemente o perito em ocultismo Francis X. King, existem dois pontos significativos: 'O primeiro é a
identificação da Virgem Santíssima, "Mãe do Homem-deus", com Vênus, deusa do amor, ou seja, amor
sexual, eros e não agapé. A segunda é a identificação do Graal... com Vênus, o yoni arquetípico ou
órgão feminino da geração.
Os leitores modernos poderiam cinicamente interpretar a visão dessas senhoras como uma espécie de
realização de um desejo, uma fantasia sexual em comum, especialmente se considerarmos a reputação
da esfuziante Florence Farr, a contraparte britânica de Emma Calvé. No entanto, supostamente, a visão
havia revelado um segredo que estava de acordo com a filosofia mágica da Aurora Dourada, e
certamente Francis X. King mostrou-se perplexo ao pensar sobre de onde as mulheres poderiam ter
tirado esse imaginário, considerando que a sociedade não estava, ao menos teoricamente, conectada
com qualquer tipo de ritual sexual. Essa visão, porém, indica fortemente que estava, embora, mais uma
vez, os rituais implicados parecessem ser exclusivos dos iniciados nos graus mais altos, o círculo in-
terno.
É significativo que a visão una Ísis ao Graal e ao sexo, o que não causaria estranheza aos alquimistas,
gnósticos ou trovadores. Que o Graal, visto aqui na forma tradicional de taça, é um símbolo feminino é
facilmente compreendido em nosso mundo pós-freudiano, mas ainda era bastante revelador para os que
viveram antes. Mas aqui o líquido vermelho, o sangue que contém, é levado por Ísis...
Bastante interessante também, o tema da Bela Adormecida, que é mencionado no relato da visão das
mulheres, também figura em grande parte do Le serpente ruge, aquele texto chave do Monastério de
Sion. A procura da Bela Adormecida é um motivo repetido e está entrelaçado com aquele da busca de
uma rainha de um reino perdido. Como já vimos, aquele documento também revela uma preocupação
com Maria Madalena e Ísis, combinando-as caracteristicamente na mesma figura.
A busca de uma rainha é um imaginário alquímico, e por isso não deveríamos ser pegos de surpresa ao
encontrar essas personificações da sexualidade, Madalena e Ísis, como seu objeto. Embora mesmo hoje
em dia o papel da sexualidade nos movimentos heréticos e ocultos seja bem pouco reconhecido ou
admitido, sua importância dificilmente pode ser superestimada. Sexo nunca foi um assunto secundário
ou um mero passatempo particular, pois sempre esteve no centro da maioria das mais poderosas orga-
nizações secretas.
A tradição que mais nos interessa e que está por trás desta investigação, na verdade, é dependente da
idéia da sexualidade sagrada. Como já vimos, essa tradição parece conter duas grandes correntes: a que
reverencia Madalena e a que reverencia João Batista. Naquela altura de nossa pesquisa nos
encontrávamos diante da possibilidade de que Madalena fosse apenas uma figura simbólica que
representava o sexo, e que sua imagem não estava realmente relacionada a qualquer figura histórica. De
qualquer forma, a conexão entre Maria Madalena e sexo não é difícil de compreender e parece ser
perfeitamente natural.
Não é bem assim, é claro, se considerarmos a corrente concernente a João Batista, associada à
sexualidade sagrada. O relato bíblico e a tradição cristã têm criado uma atraente e duradoura visão de
um homem que era asceta ao extremo, uma espécie de personagem de John Knox, de moral inflexível e
celibato inabalável. Como poderia justamente ele ter se tornado tão importante aos cultos baseados em
práticas sexuais? Visto da superfície parece nunca ter havido, e nunca poderia ter acontecido, qualquer
espécie de conexão, e mais uma vez nossa investigação revelou que gerações após gerações de ocultistas
acreditavam, para dizer o mínimo, na existência dessa conexão. E como vimos no caso da Aurora
Dourada, a primeira impressão de qualquer grupo ocultista pode ser bastante enganadora. A sua
verdadeira raison d'être pode causar grandes surpresas.
Florence Farr e seus companheiros da Aurora Dourada pertenciam a um grande círculo de ocultistas
internacionais, que incluía Péladan e Emma Calvé. As sociedades às quais eles estavam associados eram
extremamente influentes, e foi a rede de sociedades que forneceu a moldura de um dos mistérios
franceses mais famosos e que estava intimamente relacionado com o Monastério de Sion.
O ponto central dos Dossiês secretos e materiais semelhantes que procediam do Monastério de Sion é,
sem qualquer dúvida, o mistério de Rennes-le-Château. Por exemplo, Le serpent rouge repetidamente
faz alusão a locais nas proximidades dessa aldeia. Dificilmente poderíamos evitar de focar nossa atenção
em Rennes-le-Château, e mais uma vez nos vimos de volta ao Languedoe, o berço da heresia.

CAPÍTULO VIII
"Este é um Lugar Terrível"
Rennes-le-Château já se tornou – até agora pelo menos – uma espécie de clichê do mundo ocultista,
quase que do mesmo quilate que o Graal e tão evasivo quanto. No entanto, esse lugar existe de verdade,
e foi aqui que encontramos os esclarecimentos que buscávamos. Essa aldeia pode ser comparada com a
britânica Glanstonbury, pois os dois lugares parecem conter mistérios profundos, embora proporcionem
os mitos e as suposições mais jocosas, e bastante disseminadas.
Rennes-le-Château fica na região do Languedoc conhecida como Aude, próxima à cidade de Limoux,
que dá nome a seu famoso blanquette, ou vinho espumante, na área que nos séculos VIII e IX era
conhecida como Razès. Partindo da pequena cidade de Couiza, grandes placas sinalizam uma pequena
estrada onde um cartaz indica 'Domaine de Abbé Sauniere'. Seguindo essas indicações, os motoristas se
vêem em uma curiosa estrada que sobe como uma escada em caracol até chegar ao topo, onde fica o
vilarejo de Rennes-le-Château.
Para nós, como para muitos hoje em dia, essa rota é excitante. Graças principalmente ao The Holy Blood
and the Holy Grail, mas também à lenda transmitida oralmente, essa viagem simples às montanhas
francesas rapidamente torna-se quase que uma espécie de iniciação. No entanto, o local onde os
visitantes costumeiramente fazem sua parada é bastante prosaico. O caminho de acesso leva
inevitavelmente a um estacionamento, através de uma estreita 'grand rue' que não tem nem mesmo uma
agência de correio ou uma pequena loja de departamentos, mas que, no entanto, conta com uma livraria
especializada em esoterismo, um bar/restaurante, o arruinado castelo que dá nome à aldeia, e pequenas
ruelas que vão dar na igreja notavelmente pequena e no presbitério.
Esse lugar tem uma história sinistra e, mesmo, uma reputação obscura, ainda que um tanto vaga. Em
resumo, a história é a de que François Berénger Sauniere (1852-1917), um padre comum, nascido e
criado na aldeia de Montazels, a apenas três quilômetros de Rennes-le-Château, fez uma descoberta
durante uma das intermináveis reformas que realizou em sua paróquia do século X, há apenas cem anos
atrás. Como resultado de sua descoberta, ou em virtude de seu valor intrínseco, ou porque isso o levou a
algo que poderia significar vantagem financeira, tornou-se imensamente rico.
As especulações têm variado ao longo dos anos em relação à verdadeira natureza da descoberta: de
modo bastante prosaico tem se sugerido, no mais das vezes, que ele teria encontrado um enorme
tesouro, enquanto outros acreditam que o que ele descobriu foi algo bem mais assombroso, algo como a
Arca da Aliança, ou o tesouro do Templo de Jerusalém, o Santo Graal, ou até mesmo a tumba de Cristo,
uma idéia que foi recentemente expressa na obra The Tomb of God, de Richard Andrews e Paul
Schellenberger (1996).
Tínhamos que ir a Rennes-le-Château porque, de acordo com os Dossiês secretos e com o The Holy
Blood and the Holy Grail, esse lugar era particularmente significativo para o Monastério de Sion,
embora permaneça obscura a razão para isso. O Monastério afirma que Sauniere descobrira alguns
pergaminhos que continham a informação da árvore genealógica que prova a continuidade da dinastia
merovíngia, e estabelece o direito de certos indivíduos de reivindicar o trono da França, como Pierre
Plantard, de Saint-Clair. Entretanto, como ninguém que não pertencesse ao Monastério realmente
examinou esses pergaminhos, e toda a história da continuidade da linhagem da dinastia merovíngia é
duvidosa, para dizer o mínimo, há poucas razões para realmente nos aprofundarmos nessa questão.
Existe ainda um outro problema, uma gritante inconsistência, na história do Monastério. Se esse
realmente tivesse existido, por séculos, unicamente para proteger os descendentes merovíngios e
estabelecer o direito de determinados indivíduos de reivindicar o trono da França, é bastante curioso que
os membros do Monastério tenham recebido de bom grado as informações concernentes a quem
deveriam ser esses descendentes. Pois, com certeza, eles mais do que ninguém deveriam saber quem
eram os que haviam jurado defender, do contrário dificilmente teriam essa espécie de zelo fanático, que
perdurava por séculos e que, por sua vez, manteve viva a organização por tanto tempo! Confiar no que,
aparentemente, é apenas uma raison d'être em retrospectiva é suspeito, para dizer o mínimo.
Não obstante, ficamos intrigados com a importância atribuída à aldeia pelo Monastério. Existem duas
possíveis razões para isso: uma é que o vilarejo realmente tem um grande significado, mas não pelas
razões colocadas nos Dossiês; a outra é que a história de Sauniere não tem nenhuma conexão real com o
Monastério e que esse apropriou-se do mistério por outras razões. Devemos, então, descobrir qual das
duas hipóteses está mais próxima da verdade.
Ao chegar ao estacionamento da aldeia, o visitante se depara com uma visão estonteante do Vale do
Aude, com os picos dos Pireneus cobertos de neve. É fácil perceber por que, no passado, esse vilarejo
aparentemente insignificante era considerado de alta importância estratégica, pois com certeza a visão
da possível chegada de um inimigo era algo inigualável. Essa é a razão de Rennes-le-Château ter sido no
passado uma fortaleza visigoda: alguns chegam a ponto de identificá-la como a cidade perdida de
Rhedae, que era parecida com Carcassonne e Narbonne, embora seja difícil acreditar que já houve um
tempo em que esse agrupamento isolado de casas foi uma barulhenta metrópole. No entanto, o lugar
ainda tem seu magnetismo: embora apenas cerca de cem pessoas realmente morem em Rennes-le-
Château, o vilarejo recebe cerca de 25.000 visitantes por ano.
A torre de água, que se ergue dentro do estacionamento, contém os símbolos do zodíaco, um motivo que
é repetido acima das portas de alguns chalés. Para nosso desapontamento, porém, isso é apenas um
costume da região. Contudo, todos os olhos voltam-se para o extravagante prédio construído na beirada
do despenhadeiro, parecendo brotar da face escarpada da aldeia, quase como uma gota de água que se
equilibra na boca da torneira antes de cair. Esse prédio é a biblioteca e sala de estudos particular de
Sauniere, conhecida como Tour Magdala (Torre de Magdala). Faz parte de seu domaine e foi aberta
recentemente ao público. Parece-se com aquelas torres de ataque dos castelos medievais, numa versão
menor. A torre em um de seus lados nos leva a uma comprida plataforma, que vai até uma abandonada
estufa de plantas. Nas salas que ficam abaixo da plataforma existe um museu, que é dedicado à vida de
Sauniere e ao mistério que o rodeou. Um jardim separa a torre da casa grande, Villa Bethania, que foi
construída com a riqueza inexplicável amealhada por Sauniere, e onde algumas das salas estão abertas
ao público. Logo em frente, ao redor de um caminho de cascalhos, há uma pequena gruta construída
pelo próprio padre com pedras especialmente escolhidas e trazidas de um vale nas redondezas,
provavelmente com muito esforço. Então, chega-se ao cemitério e à dilapidada igreja, que é dedicada a
Maria Madalena.
Dada a fama da igreja ficamos um tanto surpresos ao verificar como é tão pequena; qualquer
desapontamento, porém, é mais do que suplantado pela famosa e bizarra decoração feita pelo abade
Sauniere. Essa, no mínimo, foi feita com a deliberada intenção de causar estupefação.
Sobre o pórtico, com seus quase cômicos pássaros de gesso branco de segunda categoria e telhas
amarelas quebradas, estão gravadas as seguintes palavras: Terribilis est locus iste ('Este é um lugar
terrível'), uma citação do Livro do Gênesis (28:17) que é complementada, em latim, no arco sobre o
pórtico: 'Esta é a casa de Deus e o Portão Celestial'. Destaca-se uma estátua de Maria Madalena
colocada sobre a porta, enquanto o painel é decorado com triângulos equiláteros e rosas esculpidos em
cruzes. Muito mais interessante, porém, é a visão de um demônio de gesso, todo contorcido, que
aparentemente guarda a entrada, que está imediatamente após o pórtico. Curvado e careteiro, curva-se
de um modo significativo, enquanto segura em seus ombros a pia batismal. Esta, por sua vez, porta
quatro anjos, cada um fazendo um dos gestos que envolve o sinal da cruz, enquanto as palavras Par ce
signe tu le vaincras ('Por este sinal vós o conquistareis') estão inscritas na parte de baixo. Na parede há
um quadro mostrando o batizado de Jesus, que foi retratado em uma posição que é precisamente a
imagem do demônio no espelho. Tanto o demônio quanto Jesus olham fixamente para uma parte do
chão, que se parece com um tabuleiro de xadrez. No quadro, repete-se o motivo da pia batismal em
forma de concha que é segurada pelo demônio. Há um claro paralelo entre as duas imagens, entre o
demônio e o batizado de Jesus. (Em abril de 1996, em um dos muitos atos de vandalismo a que a capela
já esteve sujeita, o demônio e sua cabeça foram serrados e roubados por um desconhecido).
Se nos postarmos sobre o chão xadrez preto-e-branco e olharmos a pequena paróquia de Santa
Madalena, em um primeiro momento parece ser uma típica igreja católica da época e da região.
Exageradamente decorada com santos de gesso extravagantes, como Santo Antônio, o Ermitão, e São
Rocha, ela contém o costumeiro mobiliário de uma igreja. No entanto, ela merece um exame mais
profundo, pois há por toda parte um certo toque idiossincrático. Por exemplo, a Via Sacra, que
geralmente é em sentido anti-horário, aqui inclui um garoto metido em um kilt e uma pequenina criança
negra. E o toldo sobre o púlpito tem o formato do Templo de Salomão.
O baixo-relevo defronte ao altar era, pelo menos assim se afirma, o orgulho e a paixão de Sauniere: ele
próprio deu os retoques finais nessa obra. O baixo-relevo retrata uma Madalena em traje dourado,
curvada em atitude de oração, um livro aberto em frente a ela e uma caveira a seus pés. Seus dedos
estão, curiosamente, cruzados de um modo conhecido como latté. Uma cruz aparentemente feita de uma
árvore delgada, com uma folha incompleta, eleva-se em frente a ela, e além da gruta de pedra onde ela
se prostra pode-se ver uma distinta forma de construções recortadas contra a linha do horizonte.
Curiosamente, embora a caveira e o livro aberto sejam partes aceitáveis da iconografia de Madalena, a
tradicional jarra de óleo de nardo está ausente.
Ela também aparece no vitral sobre o altar, onde parece estar se levantando de uma mesa para untar os
pés de Jesus com o precioso ungüento. Em toda a igreja existem quatro imagens de Madalena, o que,
mesmo levando-se em conta o fato de ela ser a santa padroeira da igreja, parece ser algo um tanto
excessivo para uma construção tão pequena. O envolvimento de Sauniere com Madalena é reforçado
pelo nome de sua biblioteca, a Torre de Magdala, e de sua casa, a Villa Betânia. Betânia foi o lar bíblico
da família que incluía Lázaro, Marta e Maria.
Há uma sala secreta por trás do armário da sacristia, mas até mesmo isso raramente é percebido pelos
visitantes. Sua única janela, que não é claramente visível do lado de fora, parece descrever em seu vitral
a tradicional cena da crucificação. Contudo, como virtualmente qualquer coisa nesse 'lugar terrível' ,
nada é exatamente o que parece ser. Somos atraídos para a paisagem ao longe, que pode ser vista por
debaixo dos braços do homem que está na cruz; a paisagem é claramente o foco verdadeiro da pintura.
Nessa, mais uma vez, está o Templo de Salomão.
Até mesmo a entrada para o cemitério é incomum: o arco da entrada é decorado com uma caveira de
metal e ossos cruzados, um emblema dos cavaleiros templários, e há ainda um bizarro sorriso
arreganhado mostrando 22 dentes. Entre os túmulos, ornamentados com elaborados arranjos florais e fo-
tografias dos que já partiram, comum em vários dos típicos cemitérios franceses, está o da família dos
Bonhommes. Em qualquer outro lugar, talvez, isso dificilmente poderia ser fonte de qualquer
comentário; nesse lugar, porém, tal nome nos remete aos cátaros - les Bonhommes - e sugere algo
particularmente pungente. O túmulo de Sauniere, com um baixo-relevo retratando seu perfil,
recentemente danificado levemente por vândalos, está colocado no muro que separa o cemitério de seu
domaine. Marie Dénamaud, sua leal governanta, se não muito mais que isso, está enterrada a seu lado.
Não é nosso propósito entrar em detalhes sobre o que na verdade é uma história completamente banal.
Suspeitando, porém, que o mistério de Rennes iria resultar em algumas pistas sobre a continuidade da
tradição secreta, não nos sentíamos nem desapontados nem enganados. Como já vimos, encontramos
evidências de uma complexa série de conexões que remetiam para a tradição gnóstica da região, um
lugar que sempre fora notório por seus 'hereges', sejam os cátaros, os templários ou as assim chamadas
'bruxas'. Desde a desgraça da Cruzada de Albi, o povo local nunca mais acreditou totalmente no
Vaticano, e assim este passou a ser o berço ideal para idéias não ortodoxas, além daquelas relacionadas
com os interesses políticos das minorias. No Languedoc, com suas longas e amargas memórias, a
heresia e a política sempre andaram de mãos dadas, como talvez ainda o façam.
Em Sauniere encontramos um pároco rebelde e apóstata. Dificilmente poderíamos dizer que era um
típico clérigo de uma cidadezinha. Conhecia o grego bem como o latim, e era subscritor regular de um
periódico alemão. Tenha encontrado ou não um tesouro ou um segredo, é improvável que 'o negócio de
Rennes' tenha sido uma completa farsa. Existem, porém, muitas razões para se pensar que a história do
modo como é contada seja uma completa empulhação.
A seqüência exata dos fatos é de difícil reconstrução, já que se baseia muito mais na memória dos
habitantes do lugar do que em documentação comprovada. Sauniere assumiu seu posto como pároco no
início de junho de 1885. Em poucos meses ele se viu envolvido em problemas por ter proferido de seu
púlpito um inflamado sermão anti-republicano (durante as eleições do ano), e foi temporariamente
afastado de suas obrigações. Reinstalado no verão de 1886, recebeu como presente 3.000 francos da
Condessa de Chambord - viúva de um pretendente ao trono francês, Henri de Bourbon, que reivindicava
o título de Henrique V -, em reconhecimento por seus serviços em favor da causa monarquista.
Aparentemente, usou o dinheiro para reformar a antiga igreja, e em muitos relatos é dito que foi nessa
época que o pilar visigodo, que suportava o altar, foi removido, e dentro dele, segundo se diz, ele
encontrou certos pergaminhos codificados. Isso, no entanto, parece improvável, pois seu comportamento
excêntrico e seus projetos ambiciosos não tiveram início senão no ano de 1891. Foi mais ou menos
nessa época que o sineiro, Antoine Captier, encontrou algo importante. Alguns dizem que foi um
cilindro de madeira, enquanto outros afirmam que foi um frasco de vidro: seja lá o que for, acredita-se
que nele estavam contidos pergaminhos enrolados ou documentos que ele deu a Sauniere. E parece que
foi essa descoberta que deu início às ações peculiares do pároco.
A versão tradicional diz que Sauniere apresentou os pergaminhos a seu bispo, Félix-Arsene Billard, em
Carcassonne, e que isso precipitou sua viagem a Paris. Costuma-se dizer que Sauniere fora aconselhado
a levar os documentos para que fossem decodificados por um especialista, um tal de Émile Hoffet, que
na época era um jovem seminarista, mas que na verdade tinha um profundo conhecimento sobre o
ocultismo e o mundo das sociedades secretas (mais tarde ele ensinou na igreja de Notre-Dame de
Lumieres, em Goult, local de uma Madona Negra que tem especial importância para o Monastério de
Sion). O tio de Hoffet era diretor do Seminário do Santo Sepulcro em Paris.
A igreja de St. Sulpice (Santo Sepulcro) distingue-se pelo fato do meridiano de Paris, que passa bem
próximo de Rennes-le-Château, estar demarcado por uma linha de cobre que cruza o chão. Construída
sobre as fundações de um templo dedicado a Ísis, em 1645, foi fundada por Jean-Jaques Olier, que a
projetara de acordo com a Razão Áurea da geometria sagrada. Seu nome era uma homenagem ao bispo
de Bourges na época do rei merovíngio Dagoberto II, e seu dia comemorativo é 17 de janeiro, uma data
que nos traz à memória os mistérios do Monastério e de Rennes-le-Château. Grande parte do romance
satânico de J. K. Huysmans, Là-Bas, ocorre em Saint Sulpice, e o seminário vinculado à igreja era
notoriamente pouco ortodoxo (para dizer o mínimo), no final do século XIX. Também serviu como
sede de uma misteriosa sociedade secreta chamada Compagnie du Saint-Sacrement, que - já foi
insinuado - servia de testa-de-ferro para o Monastério de Sion.
Durante a estada de Sauniere em Paris, que ocorreu ou no verão de 1891 ou na primavera de 1892,
Hoffet o apresentou à crescente sociedade ocultista que estava centrada na figura de Emma Calvé, e que
incluía alguns personagens como Joséphin Péladan, Stanislas de Gualta, Jules Bois e Papus (Gérard
Encausse). Existe um persistente boato de que Sauniere e Emma foram amantes.
Diz-se que Sauniere visitou a igreja de Saint Sulpice e examinou certas pinturas que lá havia, e, de
acordo com a história que tradicionalmente se conta, comprou reproduções de pinturas específicas do
Louvre (o que será examinado mais adiante). Ao retornar para Rennes-le-Château, começou a decorar
sua igreja e as construções de seu domaine.
A visita a Paris é uma parte essencial do mistério de Sauniere, e tem sido objeto de intenso exame por
parte de pesquisadores, desde então. Não existe nenhuma prova direta de que ela realmente tenha
acontecido. Uma fotografia de Sauniere em que está inscrito o nome de um estúdio em Paris, que
sempre fora tida como a prova da existência da viagem, recentemente certificou-se ser, na verdade, de
seu irmão mais novo, Alfred (padre também). Afirma-se também que a assinatura de Sauniere aparece
no livro de missa de Saint Sulpice, mas isso nunca foi confirmado. O escritor Gérard de Sède, que
possui alguns dos documentos de Hoffet, afirma que eles contêm uma nota do encontro com Sauniere
em Paris (sem data, infelizmente), mas até onde sabemos não existe nenhuma comprovação
independente disso, tampouco. Como grande parte dessa história, baseia-se na memória dos aldeões e
de outros. Por exemplo, Claire Captier, nascida Corbu, filha de um homem que em 1946 comprou o
domaine de Sauniere de Marie Dénarnaud - que viveu com os Corbus até sua morte em 1953 - afirma
enfaticamente que a viagem a Paris realmente aconteceu.
Seja lá o que for que Sauniere tenha encontrado, aparentemente o tornou rapidamente muito rico.
Quando pela primeira vez ele assumiu sua posição, seus estipêndios eram de 75 francos por mês. No
entanto, entre 1896 e a data de sua morte, em 1917, ele gastou uma quantia bastante grande, talvez não
23 milhões de francos, como afirmam alguns, mas certamente algo como 160 mil francos por
mês.Tinha contas em bancos em Paris, Perpignan, Toulouse e Budapeste, e investiu pesadamente em
ações, fundos e apólices, de modo algum aplicações financeiras apropriadas ou comuns para um padre
do interior. Foi dito que ele ganhou seu dinheiro comercializando suas missas (cobrando para rezar
missas que livrariam o pagante de alguns anos no purgatório), mas embora com certeza tenha feito isso,
como dizem historiadores franceses, como René Descadeillas, conhecido como o homem que liderou o
desmascaramento do mistério de Sauniere, isso não poderia ter 'produzido os fundos necessários para
que fosse possível erguer tantas construções e ao mesmo tempo viver de forma tão folgada. Portanto,
devia haver algo mais'.' De qualquer forma, seria o caso de se perguntar o porquê de tantas pessoas
quererem assistir a missa de Sauniere, um padre rural insignificante de uma paróquia remota.
Ele e Marie Dénarnaud foram criticados por terem um estilo de vida dispendioso: ela sempre estava
vestida conforme os ditames da última moda de Paris (dizem que essa é a razão de seu apelido, 'La
Madonne', a Madona) e se divertiam de um modo totalmente desproporcionado, confrontando-se os
rendimentos que oficialmente recebiam, ou em relação à sua posição social. Além disso, os ricos e
famosos faziam a penosa viagem até Rennes-le-Château apenas para ficarem com eles (em virtude de
alguma estranha razão, contudo, Sauniere só ocupava a Villa Bethania para se divertir, preferindo morar
no presbitério que ficava ao lado da igreja). Seus visitantes incluíam o príncipe Habsburgo, que preferia
ser chamado pelo evocativo nome de Johann Salvator von Habsburg, um ministro do governo e Emma
Calvé.
Contudo, não era apenas a oferta de uma estadia luxuosa que atraía a hostilidade de muitos: Sauniere e
Marie começaram a cavar no cemitério durante a noite. Embora de modo geral possamos apenas
especular sobre o que eles estavam procurando, é sabido que apagaram as inscrições da lápide e da laje
que cobria a sepultura de Marie de Negre d'Ables - uma mulher da região pertencente à nobreza e que
morreu em 17 de janeiro de 1781 -, provavelmente para destruir a informação que nela estava contida.
Eles nem sequer ficaram sabendo que todo esse esforço foi em vão, pois já havia uma cópia da
inscrição graças a visitantes que eram membros de sociedade de antiquários da região. Como veremos,
a ansiedade de Sauniere em destruir a inscrição tem um grande significado para nossa investigação.
Mais ou menos na época da suposta viagem a Paris, Sauniere removeu a 'Pedra dos Cavaleiros', perto
do altar, uma placa esculpida datando da época dos visigodos, que retratava um cavaleiro em seu cavalo
com uma criança. Parece que ele encontrou algo de suma importância embaixo dela, talvez um outro
rolo de documentos ou artefatos, ou a entrada de uma cripta. Ninguém sabe ao certo se Sauniere
recolocou o piso, mas em seu diário está registrado, no dia 21 de setembro de 1891, a seguinte e
enigmática frase:'Carta de Granes. Descoberta de uma tumba. Choveu.'
As escavações noturnas de Sauniere provocaram escândalo, mas foi o comércio de missas que provocou
a fúria das autoridades a ponto dele ter sido proibido de exercer suas funções como padre. Chegou a ser
enviado para uma outra paróquia, mas recusou-se terminantemente a obedecer, e resolutamente
continuou a morar em Rennes-le-Château, com Marie. Quando a Igreja enviou um outro padre para a
aldeia, Sauniere simplesmente celebrou uma missa não-oficial na Villa Bethania para os aldeões, que
haviam permanecido leais a ele.
De todos os mistérios que cercam Sauniere, talvez um dos mais duradouros seja o que se seguiu a sua
morte. Ele adoeceu em 17 de janeiro de 1917: cinco dias depois estava morto, e seu corpo foi colocado
na plataforma do terraço de sua propriedade, sentado em uma cadeira, a céu aberto, para que os aldeões,
e outros que chegaram a fazer viagens bem longas para ali estar, fizessem uma fila para arrancar
pompoms vermelhos de seu manto. Sua última confissão foi ouvida pelo padre do lugarejo vizinho de
Espéraza, e seja lá o que for que tenha dito, produziu um efeito profundo, pois como afirma René
Descadeillas: . ...daquele dia em diante, o velho padre não foi mais o mesmo; ele realmente sofreu um
choque'.
Após sua morte, a leal Marie Dénarnaud morou na Villa Bethania. Sauniere, que, como padre, não tinha
o direito de possuir quaisquer bens, havia comprado as terras no nome dela. Ela tornou-se mais e mais
reclusa, terminando por receber a pecha de irascível, resistindo às muitas tentativas de compra de sua
cada vez mais abandonada propriedade. Contudo, finalmente em 1946, no dia de comemoração à Maria
Madalena, ela a vendeu para Noêl Corbu, um homem de negócios, com a condição de poder passar o
resto de seus dias lá.
A filha de Corbu, Claire Captier, lembrava-se de ter morado lá quando era criança. De acordo com ela,
Marie visitava a cova de Sauniere todos os dias, e no meio de todas as noites. Marie falou à jovem
Claire sobre um fenômeno extraordinário que ocorria com alguns visitantes. Ela teria dito, 'nessa noite
fui seguida por vários fogos-fátuos do cemitério'. Perguntada se havia ficado com medo, ela respondeu,
'estou acostumada com isso... ando devagar, e eles me seguem... quando paro, eles também param, e
quando fecho os portões do cemitério, todos eles desaparecem.'
Claire Capter também se lembra de Marie dizer, 'Com o que o Senhor Cura deixou, poder-se-ia
alimentar toda Rennes por uma centena de anos e ainda sobraria.' E quando perguntada por que, se tanto
dinheiro havia sido deixado para ela, vivia como se fosse uma pobretona, ela retrucou, 'Não posso tocá-
lo'. E em 1949, quando soube que os negócios de Corbu passavam por dificuldades, ela disse,' Não se
preocupe tanto, meu bom Noêl... um dia lhe direi um segredo que o fará um homem rico... muito rico!
'Infelizmente, nos meses que se passaram até sua morte em janeiro de 1953, ela tornou-se senil, e o
segredo foi enterrado com ela.
Mas do que se trata, afinal, a história de Sauniere? Parece que ele estava sendo pago por alguma
agência secreta para permanecer na aldeia (mesmo quando já era rico e não mais o padre de paróquia
que havia escolhido ser), embora os pagamentos pudessem ser incertos. Sua riqueza não consistia de
um único amontoado de dinheiro, como alguns chegaram a sugerir, pois seu fluxo de caixa era variável.
Com freqüência vivia períodos de vacas magras, para então se recuperar e viver, durante meses, cercado
de grande luxo. Na época de sua morte estava comprometido com grandes projetos, que teriam custado
pelo menos 8 milhões de francos: construir uma via decente para a vila, pela qual pudesse trafegar um
carro que pretendia comprar, levar água encanada a todas as casas, construir uma piscina batismal e
uma torre de 70 metros, de onde pretendia conclamar seus paroquianos a orar.
Fortes candidatos a serem os pagantes são os monarquistas, e nesse caso existe um outro, e diferente,
mistério. Que tipo de serviço Sauniere poderia prestar a estes que resultasse no pagamento de tão
grandes somas? Sua obsessão por Maria Madalena poderia de algum modo indicar a razão subjacente
para receber gratificações tão estupendas? Há, com certeza, outras coisas mais nesse enriquecimento do
que um envolvimento em uma conspiração política. Suas poucas memórias remanescentes revelam,
conforme nos diz Gèrard de Sède:

uma curiosa devoção ao Bona Dea, ao eterno princípio feminino que, nas palavras de Bérenger
[Sauniere], parecem transcender crenças e fé."

Mais uma vez encontramos segredos relacionados com o Princípio Feminino, personificados na figura
de Madalena...e com uma clara conexão com o Monastério de Sion, cuja veneração por Ísis e pela
Madona Negra é pública e notória. E, como ainda veremos, os arredores de Rennes-le-Château possuem
muitas outras pistas relacionadas com a continuidade do culto a essas deusas.
E em relação aos pergaminhos supostamente encontrados por Sauniere (de acordo com fontes do
Monastério de Sion)? Os pergaminhos consistiriam de duas genealogias relativas à sobrevivência da
dinastia merovíngia e outras duas relacionadas a excertos dos Evangelhos, nos quais algumas letras, que
estão marcadas, conteriam mensagens codificadas. Os pergaminhos na verdade nunca foram vistos, mas
supostas cópias dos textos em código foram fartamente publicadas, sendo sua primeira aparição em
1967, no L'Or de Rennes, de Gérard de Sède e sua mulher Sophie. Na verdade, embora não seja
merecedor de muito crédito, Pierre Plantard de Saint-Clair afirmou ser co-autor desse livro. ..
Esses textos já foram assunto de dezenas de trabalhos e de prolongadas especulações. As letras
marcadas no pergaminho, no relato do Novo Testamento sobre Jesus e seus discípulos no campo de
trigo no Sabbath, quando lidas simplesmente em seguida, resultam em:

A DAGOBERT II ET A SION EST CE TRESOR ET IL EST LA MORT (PARA/POR DAGOBERTO


II REI E PARA/POR SION É ESSE TESOURO E ELE É A MORTE ou E ELE ESTÁ LÁ MORTO)

O outro texto explicitamente descreve Jesus sendo ungido por Maria de Betânia .A versão decodificada
é geralmente esta:

BERGERE PAS DE TENTATION QUE POUSSIN TENIERS GRADENTE LA CLEF PAX 681
PAR LA CROIX ET CE CHEVAL DE DIEU J'ACHEVE CE DAEMON DE GARDIEN A MIDI
POMMES BLEUE

(PASTORA NÃO CREIAS QUE POUSSIN TENIERS TEM A CHAVE PARA A PAZ 681 PELA
CRUZ E ESSE CAVALO DE DEUS EU COMPLETO [OU MATO] ESSE DEMÔNIO GUARDIÃO
DAS MAÇÃS AZUIS DO MEIO-DIA [OU DO SUL])

Decifrar esse código foi muito mais complexo do que o primeiro. Ao ler as letras marcadas nesse caso
obtém-se 'REX MUNDI' (expressão latina para 'Rei do Mundo', um termo gnóstico para o deus desta
terra, que era utilizado pelos cátaros), mas outras 140 palavras estranhas foram acrescentadas, tomando
a decodificação um processo extremamente tortuoso para se obter a mensagem 'Pastora não creias'''. (O
sistema utilizado foi inventado pelo alquimista francês Blaise de Vignère, que era secretário de Lorenzo
de Medici). A mensagem final é um anagrama perfeito da inscrição da lápide de Marie de Nègres
(assunto que será discutido no próximo capítulo).
Embora não haja qualquer dúvida de que a decodificação da mensagem está correta, houve por sua vez
muitas tentativas inventivas e imaginativas para explicar ou dar sentido a tudo isso. Nenhuma delas,
contudo, é completamente satisfatória.
O problema com esses pergaminhos é que aquele Philippe de Chérisey, parceiro de Pierre Plantard de
Saint-Clair (e provavelmente seu sucessor como Grão-Mestre do Monastério de Sion, em 1984), mais
tarde admitiu que as havia produzido em 1956 (quando confrontado com isso pelos autores de The Holy
Blood and the Holy Grail em 1979, Plantard de Saint-Clair afirmou que Chérisey apenas as copiara,
mas não foi totalmente convincente."). De qualquer ângulo que sejam vistos os pergaminhos, temos que
admitir que esse é um plano muito bem-sucedido para fazer com que muita gente gaste e perca boa
parte de seu tempo, e são muito pouco confiáveis para fornecer direcionamentos para uma investigação
acerca da história de Sauniere.
No entanto, se o padre não encontrou nenhum pergaminho, talvez tenha realmente encontrado algum
tipo de tesouro, como acreditam muitas pessoas. Com certeza, ele encontrou um esconderijo de moedas
antigas e jóias, na igreja, porém, como toda a região é rica em achados arqueológicos, tal descoberta
dificilmente teria atraído tanto interesse para a história de Sauniere. Muitas pessoas acreditam que ele
encontrou a genuína caverna de Aladim com suntuosos tesouros, tão valiosos que ele e seus amigos não
conseguiram consumi-los totalmente, e haveria ainda um bocado dele esperando que algum aventureiro
intrépido o encontre. Foi sugerido que o elaborado simbolismo presente na igreja, em conjunto com
várias outras mensagens codificadas, como 'Maçãs Azuis' do pergaminho, pretendem dar ao aventureiro
pistas de onde possa estar o restante do tesouro encontrado por Sauniere.
Embora seja uma idéia muito romântica, é um total e completo absurdo. Primeiro, é pouco provável que
essa hipótese seja capaz de explicar seus constantes problemas de caixa; segundo, ele inventou os assim
chamados mapas do tesouro (o simbolismo da sua igreja), o que não é uma coisa lá muito inteligente se
acaso ele tencionasse guardar o dinheiro para si mesmo. Por último, se a igreja é essencialmente um
grande mapa do tesouro aberto ao público em geral (não importa o quão antigo), e se ele queria que
apenas determinadas pessoas o encontrassem, então por que ele simplesmente não contou a elas? E seu
achado dificilmente explicaria a razão da riqueza e influência das pessoas que queriam visitá-lo em sua
remota paróquia no alto da montanha.
Dadas todas essas evidências, parece que Sauniere estava sendo pago por alguém ou algo, algum tipo de
serviço que envolvia sua permanência em Rennes-le-Château, onde ele insistia em morar mesmo
quando lhe ordenavam que se mudasse. Suas atividades revelam que ele definitivamente buscava
alguma coisa: suas escavações noturnas no cemitério, suas longas caminhadas pelas redondezas, e
mesmo as viagens para locais distantes, que duravam vários dias. No entanto, era de suma importância
que se pensasse que ele ainda estava em Rennes-le-Château, a ponto de fazer com que durante suas
ausências Marie Dénarnaud regularmente respondesse às cartas que lhe eram enviadas, dizendo que ele
estava muito ocupado para poder responder pessoalmente daquela vez (alguns desses estoques de
respostas foram encontrados nos documentos dele após sua morte).
Um novo ângulo apareceu na história de Sauniere em 1995, quando o esoterista André Douzet construiu
uma maquete com uma paisagem em relevo, que Sauniere supostamente encomendou pouco antes de
sua morte'. A maquete mostra vales e colinas e o que parecem ser estradas ou rios atravessando-a.
Existe um único prédio, um quadrado em uma das colinas. Ostensivamente, ela retrata a região ao redor
de Jerusalém, e locais bíblicos como o Jardim de Gethsemane e o Gólgota são indicados. Entretanto, a
paisagem da maquete de forma alguma bate com aquela de Jerusalém: talvez porque na verdade ela
retrate a região ao redor de Rennes-le-Château. Teria Sauniere tentado transformar sua propriedade em
uma Nova Jerusalém?"

É possível passar toda uma vida estudando as possibilidades relacionadas ao mistério de Rennes-le-
Château: realmente talvez seja essa sua função, ser glorificado e encobrir os assuntos reais. Não
obstante, esse assunto sem dúvida é significativo, e desviou toda a atenção de um outro envolvimento
igualmente sugestivo na região ao redor.
Outros padres das paróquias vizinhas estavam implicados no caso, incluindo o superior de Sauniere,
Félix-Arsene Billard, Bispo de Carcassonne. Ele supostamente enviou Sauniere a Paris e colocou uma
venda nos olhos para não enxergar o comportamento excêntrico e escandaloso deste (foi apenas após a
morte de Billard, em 1902, e com a nomeação de seu sucessor, que Sauniere foi processado). E o
próprio Billard estava envolvido em algum tipo de jogo financeiro duvidoso.'.
O mais conhecido do círculo de amigos em torno de Sauniere era o abade Henri Boudet (1837-1915),
que tinha sido padre em Rennes-le-Château desde 1872. Homem sábio, erudito e reservado - em termos
de temperamento o oposto de Sauniere -, também estava engajado em atividades estranhas. Em 1886
publicou um livro esquisito, Le vraie langue celtique et le cromleck de Rennes-les-Bains (A Verdadeira
Linguagem dos Celtas e o Cromlech de Rennes-le-Balis), que deixou os pesquisadores perplexos desde
sua publicação. O livro trata, primordialmente, de dois assuntos: uma teoria perversa que afirma que
línguas antigas, como o celta, o hebreu e outras, derivam do anglo-saxão, e inclui vários exemplos
hilariantes de como nomes de lugares da região de Rennes-les-Bains tinham raízes inglesas, e a
descrição de vários documentos megalíticos da região. Boudet era um historiador e antiquário local
bastante respeitado, e as teorias propostas são de tal forma improváveis que muitos chegaram à
conclusão de que elas deveriam esconder uma mensagem profunda e secreta, a contra parte literária da
decoração da igreja de Sauniere. Alguns chegaram a sugerir que as duas se complementavam, e que ao
serem colocadas uma ao lado da outra dariam as direções para se chegar ao 'tesouro'. Se é assim,
ninguém apresentou um sistema que decifrasse tal mensagem de modo satisfatório, e o livro de Boudet
continua tão confuso quanto era na época em que foi publicado. Suas outras atividades, entretanto,
também se desenvolvem em paralelo com as de Sauniere, e, como este, também é conhecido por ter
alterado as inscrições nas lápides do cemitério e mudado de lugar vários pontos de referência.
Alguns vêem em Boudet a mente por trás da obra de Sauniere, e chegam a sugerir, assim como Pierre
Plantard de Saint-Clair, sem qualquer consistência, porém, que Boudet era quem pagava Sauniere. No
entanto, Boudet também é parte importante em um outro mistério bastante complexo: Plantard Saint-
Clair escreveu ele próprio o prefácio da edição de Le vrai langue celtique... de 1978, e adquiriu terras
nas redondezas de Rennes-les-Bains. Pode-se ver na lápide de Boudet, na velha igreja, a marcação do
local reservado pelo próprio Plantard Saint-Clair.
Um outro contemporâneo de Sauniere pertencente ao clero era o abade Antoine Gélis, pároco da aldeia
de Coustassa, que fica do outro lado do vale do Rio Sais, vindo de Rennes-le-Château. Em 1° de
novembro de 1897, o mais velho dos Gélis (então com 70 anos) foi encontrado morto, vítima de um
brutal assassinato, tendo morrido em virtude de repetidas e violentas pancadas na cabeça,
aparentemente desferidas por um assaltante que ele havia deixado entrar no presbitério e com quem
estava conversando. Sauniere era amigo de Gélis, e registra um encontro com ele e muitos outros na
página de 29 de setembro de 1891 de seu diário, apenas oito dias depois do registro da 'descoberta de
uma tumba' .No período anterior a sua morte, Gélis vivia aparentemente com medo, mantendo sua porta
trancada e vendo apenas seu sobrinho, que lhe levava mantimentos. E havia recebido há pouco tempo
uma grande soma de dinheiro, cerca de 14 mil francos, que ninguém conseguiu esclarecer de onde
provinha. Escondeu essa soma em sua própria casa e igreja, e documentos foram encontrados que
revelavam os locais dos esconderijos. No entanto, virtualmente todo o dinheiro ainda permanecia nesses
locais após sua morte. O assassino, que nunca foi encontrado, revirou a casa, mas não pegou sequer os
cerca de 800 francos que estavam bem à mão. Mais estranho ainda, o assassino posicionou o corpo de
Gélis ritualisticamente, com os braços cruzados sobre o peito e deixou uma mensagem em um pedaço
de papel com as palavras 'viva Angelina'. Não foi possível encontrar qualquer motivo para a ocorrência
do crime.
Existe uma dupla de acontecimentos particularmente estranhos relacionados com o assassinato de Gélis.
Sua lápide no cemitério da igreja em Coustassa, foi posicionada, a única entre todas as outras lápides,
de modo a ficar direcionada para Rennes-le-Château, que está bem visível no alto da colina oposta. A
sepultura também tem uma insígnia de rosa-cruz. E embora esse crime brutal de um senhor velho e
frágil chocasse a população local, a diocese parece que quis que todo o assunto fosse esquecido tão
rapidamente quanto possível. Quando Gérard de Sède tentou investigar essa questão, no início dos anos
60, não pôde encontrar nenhum registro sobre o assassinato nos arquivos da diocese em
Carcassonne.Apenas em 1975 dois advogados reconstruíram a história através dos registros da polícia e
do poder judiciário locais}'
Chegou-se mesmo a sugerir que Sauniere foi o responsável pelo assassinato de Gélis, mas isso é pura
especulação. Parece, entretanto, que alguma coisa sinistra estava acontecendo e que envolvia os padres
locais além dos limites de Rennes-le-Château.

Sem sombra de dúvida, o vilarejo de Rennes-le-Château é importante por si mesmo, mas talvez tenha se
colocado muita ênfase sobre isso, pois toda a região vizinha também foi envolvida no mistério.A
maioria dos pesquisadores reconhece o fato de que existem outros lugares igualmente estranhos e
atrativos nas redondezas, mas a tendência é vê-los apenas como pano de fundo para a história de
Sauniere. Contudo, se ele fez uma descoberta, existem diversos lugares onde o poderia ter feito. Sem
contar suas ausências do vilarejo, que algumas vezes chegavam a levar semanas ou meses, ele também
era conhecido por dar longas caminhadas nas vizinhanças (e seu entusiasmo pela caça e pesca bem
poderia ser um meio de encobrir alguma outra atividade).
Os Dossiês secretos afirmam que Sauniere estava trabalhando para o Monastério de Sion, mas existe
alguma prova de sua influência na região? Vimos que Pierre Plantard de Saint-Clair possuía terras
próximas a Rennes-les-Bains, e comprou uma cova para si no cemitério da cidade, mas será que as
aparentes preocupações da organização realmente têm seu reflexo nessa região?
Dada a extraordinária mistura de culturas das sociedades secretas no Languedoc seria surpreendente se
assim não fosse. De fato, um estudo sobre a região próxima a Rennes-le-Château resultou em muitas
pistas, não apenas em relação ao Monastério como também sobre uma tradição secreta muito mais
ampla, uma tradição que já suspeitávamos que existisse. Estávamos a ponto de descobrir aquilo que
podemos chamar de a Grande Heresia da Europa, a extrema veneração, mesmo que oculta, a Maria
Madalena e João Batista.
Existe uma incrível proliferação de igrejas dedicadas ao Batista nessa região. No geral elas são
fundadas em enclaves; por exemplo, existem três igrejas de 'João' na pequena região de Belveze-du-
Razes (grande parte dessa região chama-se La Magdalene).
É bastante interessante também que a atual igreja de 'Madalena' em Rennes-le-Château antes fosse
somente a capela de um castelo, enquanto uma outra igreja abençoava o vilarejo, e era dedicada a João
Batista." Esta foi destruída no século XIV quando Rennes-le-Château foi capturada por tropas da
nobreza espanhola, aparentemente tendo sido demolida pedra por pedra na crença de que algum tesouro
ali se escondia."
Uma inexplicada reviravolta aconteceu no vilarejo vizinho de Arques, quando a igreja original de João
Batista passou a ser dedicada a Santa Ana. Esse evento é algo particularmente singular porque ela ainda
mantém uma relíquia do Batista.
Arques e Couiza, onde há uma outra igreja de 'João', pertencera à família de Joyeuse até 1646, quando
Henriette-Catherine de Joyeuse vendeu todas as terras que possuía no Languedoc à monarquia francesa.
Ela era a viúva de Charles, Duque de Guise, que fora torturado por Robert Fludd, trazido especialmente
da Inglaterra para realizar a tarefa.
Havia em Couiza ou em Arques uma Madona Negra, conhecida como Notre-Dame de la Paix, que foi
levada para Paris pelos de Joyeuse em 1576, onde ainda pode ser vista na igreja das Irmãs do Sagrado
Coração (na décima-segunda circunscrição).'. Estranhamente, Sauniere correspondia-se com o superior
dessa Ordem, para quem era alguém claramente especial. Em uma carta enviada a ele, a Irmã Augustine
Marie, Secretária da Ordem, em 5 de fevereiro de 1903," pediu-lhe que rezasse missas especificamente
em honra de suas Madonas Negras, oferecendo vender-lhe uma estátua do Petit Jésus de Prague (que
ainda pode ser visto na Villa Bethania), e, de um modo um tanto misterioso, agradeceu 'pela devoção
que você demonstrou ao nosso amado Rei'. Isso poderia ser uma referência a algum pretendente ao
trono francês ou a Jesus, embora, como veremos, houvesse um outro 'Rei' que era venerado por grupos
heterodoxos. Há, no entanto, uma sugestão de um significado diferente,ou talvez codificado, nas
palavras da Irmã Augustine Marie, e a curiosa implicação de que era algo especial relacionado com o
pároco (e os paroquianos) de Rennes-le-Château.
A família de Joyeuse também comprou o João Batista da igreja de Arques, que foi construída sobre as
ruínas de um antigo castelo que fora destruído pelos homens de Simon de Monfort. A atual torre do
sino e a parede principal faziam parte do castelo original. Como já vimos, a igreja fora uma vez
dedicada a João Batista, mas agora era dedicada a Santa Ana, embora nem mesmo o prefeito de Arques
pudesse nos explicar a razão da mudança.
Seu predecessor nos anos 30 e 40 foi Déodat Roché, um grande estudioso da história esotérica da região
e que estava por trás de uma das mais honestas tentativas de restabelecer uma Igreja Cátara na região.
Um dos tios de Roché era o médico de Sauniere, e um outro era seu tabelião.
No meio do caminho entre Rennes-le-Château e Limoux fica o balneário de Alet-les-Bains.
Antigamente' sede do bispado (antes desse mudar-se para Carcassonne), Alet era na Idade Média um
centro alquímico de renome. A família de Nostradamus veio dessa cidade, e é possível que o famoso
profeta tivesse vivido ali durante algum tempo. A cidade tinha conexões templárias, que remontavam
aos primórdios da Ordem - muitas leis que lhes garantiram a doação de terras foram lá assinadas na
década de 1330 -, e símbolos templários podem ser vistos gravados na madeira de algumas das
pitorescas casas medievais da cidade; realmente, a cota de armas da cidade porta uma cruz templária. A
imponente igreja, de Santo André, tem uma curiosa ligação com a Ordem. O escritor e pesquisador
Franck Marie' demonstrou que (como a capela de Rosslyn) esta foi projetada com base na geometria da
cruz dos templários, embora a igreja tenha sido construída no século XIV, após a supressão da Ordem.
O prédio também é notável por suas janelas que portam o símbolo da estrela de seis pontas, a Estrela de
Davi. Sem contar a óbvia associação com os judeus (o que é, para dizer o mínimo, bastante estranho em
uma igreja cristã medieval), O símbolo também tem conotações com a magia tradicional, simbolizando
a união dos princípios masculino e feminino.

A rua principal de Alet-les-Bains é a avenida Nicolas Pavillon, em homenagem a seu bispo mais
famoso (cujo bispado durou de 1637 até 1677). É uma figura significativa, que esteve envolvida nos
eventos relacionados com o Monastério de Sion. Pavillon, junto com dois outros clérigos, o famoso São
Vicente de Paulo e Jean-Jacques Olier (o construtor de St Sulpice), eram a força motriz por trás da
Compagnie du Sant-Sacrament, que também era conhecida entre seus membros como 'a Conspiração
dos Devotos'. Publicamente uma instituição dedicada à caridade, hoje é reconhecida pelos historiadores
como sendo a sociedade secreta político-religiosa que manipulou líderes proeminentes da época,
chegando mesmo a influenciar o próprio monarca. A Compagnie ocultou tão bem suas reais intenções
que os historiadores ainda não concordam totalmente sobre a sua verdadeira natureza; algumas vezes
parece que segue a corrente principal da Igreja Católica,outras,porém,parece ser totalmente herética.
Argumentou-se que ela era, na verdade, testa-de-ferro do Monastério de Sion.'. Como já vimos, sua
sede ficava no Seminário de St Sulpice, em Paris.
Um desses conspiradores, o misterioso São Vicente de Paulo (15801660), que estranhamente afirmava
ter estudado alquimia, é venerado em outro local que figura entre um dos mais enigmáticos do
Languedoc.Trata-se da basílica de Notre-Dame de Marceille, que fica ao norte de Limoux, logo na
saída da cidade. Em seu terreno há uma estátua de São Vicente, para marcar O fato de que ele fundou a
Ordem dos Padres Lazaristas, que, desde 1876, esteve encarregada da basílica (significativamente, os
padres lazaristas de Notre-Dame de Marceille eram proeminentes entre aqueles convidados para as ce-
rimônias que Sauniere realizava ao inaugurar as diversas partes de seu domaine).
Esse lugar tem muitas ligações provocantes com as 'heresias' que estávamos investigando." Para
começar, apesar de ser escrito de forma diferente, 'Marceille' (cuja derivação é desconhecida) evoca a
Madalena através da conexão com 'Marseilles'. A basílica foi construída no local de um antigo santuário
pagão, ao redor de uma fonte que tem a reputação de ter propriedades curativas, em particular para os
olhos. A igreja tomou seu nome de uma Madona Negra do século XI, que ainda está à mostra nessa
igreja, e com a qual muitos milagres estão relacionados. Talvez, com esse passado, não devesse causar
nenhuma surpresa descobrir que o lugar pertencera aos templários. Durante séculos esse local foi um
centro de peregrinações.
Ao longo dos anos, por alguma razão, sempre ocorreram disputas entre várias ordens religiosas para
deter algum tipo de controle sobre esse local. Originalmente pertencia à abadia beneditina de St.
Hilaire, que durante a Cruzada de Albi foi fonte de comentários hostis devido à sua política de neutral-
idade em relação aos cátaros (toda a população de Limoux foi excomungada em determinado momento
por abrigar os cátaros). No século XIII a disputa se dava entre o arcebispo de Narbonne, a Ordem
Beneditina e os dominicanos. O rei mais tarde teve que intervir em uma disputa em torno da posse
sobre o lugar, entre o arcebispo, o Lorde de Limoux e Guillaume de Voisins, Lorde de Rennes-le-
Château. Em 14 de março de 1344 (o centésimo aniversário da misteriosa cerimônia cátara em
Montségur, na noite anterior àquela em que alguns voluntariamente se atiraram na fogueira) o Papa
Clemente VI deu a igreja para o Colégio de Narbonne em Paris, em cuja posse ficou até a metade do
século XVII, quando passou para o bispo de Alet-les-Bains (a principal fonte de renda para o Colégio
de Narbonne eram os rendimentos da igreja de Maria Madalena em Azille, no Aude"). Durante a
revolução, a igreja e as terras foram vendidas, mas a Madona Negra foi escondida pelo Monastério da
Ordem dos Penitentes Azuis, um curioso grupo que tinha ligações com os maçons do Ritual Escocês
Purificado e com a família Chefdebien, que, como ainda veremos, tem um papel significativo nessa
trama." A igreja foi restaurada como um local de culto em 1795.
Uma outra disputa aconteceu durante a época de Sauniere, envolvendo seu superior, Montseigneur
Billard, bispo de Carcassonne. O lugar foi então comprado e dividido entre vários proprietários, mas
através de uma série de movimentos bastante inteligentes, e nem sempre éticos, ele contratou os
serviços de um banqueiro como 'testa-de-ferro' a fim de comprar todas as partes. A venda foi realizada
em 17 de janeiro de 1893 (embora Billard, de algum modo, tenha tomado posse da Madona Negra, que
foi mantida em Limoux por algum tempo).Após um período de quatro meses, entretanto, o novo dono a
vendeu de volta para o bispado e Billard então teve o total controle: que tanto queria.
Em 1912, o Papa Pio X decretou que a igreja deveria receber a condição de basílica, uma honra rara e
totalmente inexplicável para um lugar até certo ponto bastante humilde. O status de basílica é
tradicionalmente outorgado a igrejas que tenham um significado especial, como é o caso de St.
Maximin na Provença, que supostamente guarda os restos mortais de Maria Madalena.
A região ao redor de Notre-Dame de Marceille também é notável por ter sido, até bem recentemente,
um lugar de interesse particular para os ciganos, que costumavam acampar entre a igreja e o Rio Aude,
que está a algumas centenas de metros na direção oeste.
Notre-Dame de Marceille é especialmente mencionada no livro enigmático do abade Boudet, Le vraie
langue celtique...e foi isso que trouxe o pesquisador Jos Berthaulet para o local." Ele fez uma
interessante descoberta nas antigas terras da igreja, agora em mãos particulares: no aterro de Aude há
uma galeria subterrânea. Essa galeria consiste de duas grandes câmaras que datam ou do último período
de dominação de Roma ou do início do período de dominação dos visigodos (século III ou IV). Com
cerca de seis metros de altura, a primeira dessas câmaras tem uma clarabóia no teto abobadado, mas a
única entrada é bastante estreita, um túnel de um metro de altura, que aparentemente foi construído
posteriormente e que estava escondido dentro de uma pequena e hoje arruinada casa (que parece ter
sido construída especialmente para esse propósito).A função da galeria é desconhecida. Alguns
especulam afirmando que servia como uma câmara funerária para os visigodos, embora esteja vazia, ou
como um local de iniciação para alguma escola de mistério. Qualquer que seja sua função, há alguma
evidência de que ela esteve em uso até o início do século XX, embora sua existência fosse tão secreta
que, como iríamos descobrir sob circunstâncias traumáticas, mesmo os padres da basílica a
desconheciam. Talvez fosse essa curiosa câmara subterrânea que Billard estava tão ansioso para ter em
mãos.
Durante uma viagem de pesquisa para a França, no verão de 1995, Clive Prince visitou a região com
seu irmão Keith. Recebemos a informação relativa à galeria, incluindo as indicações de como chegar até
ela - cujo valor é inestimável, pois a entrada estava coberta por um formidável emaranhado de relva - do
pesquisador belga Filip Coppens. Jos Bertaulet havia coberto parcialmente a clarabóia, construída para
permitir a entrada de luz na primeira câmara, com pedras, a fim de prevenir acidentes. Havia ainda, o
que iríamos descobrir de um modo bastante doloroso, um buraco de cerca de seis metros de
profundidade.
Keith, tendo descido até a primeira câmara com uma corda (pois as escadas de madeira já há muito
haviam apodrecido), escorregou em um cascalho coberto de húmus e caiu pesadamente no chão.
Deitado no escuro entre escombros e ruínas, à primeira vista Kelth havia quebrado a perna, e embora
mais tarde ficássemos sabendo que ele tivera apenas um ligamento rompido, não estava em condições
de manter-se de pé, e assim escalar de volta para fora da câmara. Clive não tinha outra opção a não ser
buscar por socorro (que chegou em um número tão grande que parecia que o apuro de Kelth era a coisa
mais excitante que acontecia em muito tempo em Limoux). Após quatro horas uma equipe de resgate
finalmente o retirou através da abertura no teto. E o levaram ao hospital de Carcassonne (uma coisa
surgida desse episódio foi que, quando Clive foi pedir socorro na basílica, os funcionários
demonstraram que não tinham o menor conhecimento da existência da galeria).
Infelizmente, em virtude desse acidente, as investigações posteriores no subterrâneo da câmara
tornaram-se impossíveis. Talvez uma conseqüência mais séria fosse a ameaça das autoridades em selar
a entrada para impedir que outros sofressem qualquer acidente. Foi um alívio quando soubemos que tal
não acontecera, embora as entradas estivessem cobertas na época em que lá voltamos em companhia de
Charles Bywaters, na primavera de 1996. Nessa ocasião, embora não fizéssemos nenhuma tentativa de
explorar a câmara principal, investigamos o túnel que levava até ela e fizemos uma descoberta muito
significativa.
O túnel parece se direcionar para uma parede, mas, seguindo a sugestão de Filip Coppens, examinamos
essa parede e descobrimos que ela antes era uma porta.Foi deliberadamente selada - recentemente, ao
que parece -, e as barras de ferro que foram colocadas na pedra poderiam ter sido maçanetas.A julgar
pelo desconhecimento das autoridades locais sobre a existência da galeria, não poderiam ter sido eles a
selar a porta. Então quem o fez, e, em qualquer caso, por que selar justo uma das câmara dessa forma?
Pelas condições das barras de ferro estimamos que a porta deveria ter cerca de cem anos, época em que
Billard havia obtido o controle da propriedade. Teria ele escondido alguma coisa atrás dessa porta
emparedada? Talvez o tenha feito, embora suas ações revelassem um desespero total em possuir essa
propriedade, o que sugere que ele não estava escondendo, mas sim procurando por algo. E seja lá o que
for, no mínimo deve existir pelo menos alguma pista naquele lugar úmido e secreto sobre o de que se
tratava, senão não teria sido selado com tanto esmero.
Pouco antes de ser vitima de câncer,em 1995, Jos Bertaulet afirmou ter decodificado a estranha obra de
Boudet, Le vraie langue Celtique... e concluiu que falava de um relicário que continha a cabeça de 'um
Rei sagrado' e fora escondida naquela galeria subterrânea. Depois declarou que Boudet vinculou a
câmara com as lendas do Santo Graal. Como já vimos, o tema de reis sagrados decapitados faz parte
dessas histórias (e Saunière foi agraciado pela devoção que demonstrou ao 'nosso amável Rei' pelas
Irmãs do Sagrado Coração em Paris). E, significativamente, Notre-Dame de Marceille foi uma
propriedade dos templários.
Pesquisas mais aprofundadas estão na dependência de se atravessar a porta selada, e parecia
improvável, ao menos na época em que escrevemos, que a permissão para tanto pudesse ser obtida. No
entanto, muitos temas que são centrais a essa investigação parecem estar reunidos nesse local: as
Madonas Negras, os templários, Madalena e as lendas do Graal. E a história da cabeça decapitada, na
região tão repleta de igrejas dedicadas a ele, certamente evoca a figura de João Batista. Claramente, a
região de um modo geral, e o local de Notre-Dame de Marceille em particular, ainda guardam um
grande segredo.
É difícil ver como exatamente Sauniere se encaixa nesse quadro geral, mas ao mesmo tempo realmente
parece que ele tomou parte nisso tudo. É bastante provável que tenha encontrado algo de suma
importância, mas é impossível dizer o que foi, com alguma certeza. Entretanto, nossa investigação
angariou muitas pistas surpreendentes do tipo de companhia que ele mantinha e os contatos que
deliberadamente buscava. De fato, as provas que com cuidado juntamos, relacionadas às verdadeiras
associações de Sauniere mudaram radicalmente e para sempre o padrão da imagem de humilde pároco
do interior que sem querer encontrou um tesouro- Qualquer que seja a verdade sobre ele, sua
importância se estende bem além dos limites desse curioso vilarejo de Rennes-le-Château.

CAPÍTULO IX

Um Tesouro Curioso
Os cépticos alegam não existir mistério algum relacionado com Rennes-le-Château. Para esses,
Sauniere simplesmente ficou rico comercializando sua missa, ou talvez através de outros negócios
duvidosos, e a história do tesouro foi cinicamente construída unicamente para servir como atração
turística. Em relação à ênfase dada nos Dossiês secretos ao vilarejo e aos mitos com ele relacionados,
afirmam que o Monastério criou uma aura de mistério para proveito próprio. Além disso, a história
conforme a conhecemos só pode ser rastreada até o ano de 1956, época em que Noêl Corbu gravou um
relato próprio com o qual entretinha seus convidados em Villa Bethania, que ele transformou em um
hotel-restaurante.
Entretanto, investigações demonstram que existe um mistério: realmente, o vilarejo era um óbvio centro
para pesquisadores esotéricos já antes daquela data. Por exemplo, em 1950 alguém foi até lá
especificamente para realizar pesquisas sobre a lenda do tesouro dos cátaros, o qual, acreditava-se, fora
levado de Montségur para Rennes.' Talvez isso também explique a curiosa presença de oficiais alemães
na Villa Bethania, onde ficaram aquartelados durante a II Guerra Mundial. Como muitos hoje sabem, os
nazistas tinham uma verdadeira obsessão por artefatos religiosos e ocultistas e gastaram muito tempo,
meses, durante a guerra escavando Montségur. Dizem que estavam à procura do Santo Graal: sabe-se
que Ütto Rahn, o arqueólogo nazista, concentrou seus esforços, nos anos 3D, em procurar o Graal
naquela região.
Noêl Corbu tem uma participação especial nos eventos relacionados ao mistério de Rennes-le-Château.
Seu papel vai além do de simples hoteleiro e contador de histórias, como pode ser inferido de sua
participação na publicação dos incríveis pergaminhos codificados. Como já vimos, eles apareceram pela
primeira vez em um livro de Gérard de Sède, em 1967; mais tarde, porém, um colega de Pierre Plantard
de Saint-Clair e membro do Monastério de Sion, Phillippe de Chérisey, confessou ter armado tudo.
Em seu livro mais recente sobre o caso Rennes-le-Château, de 1988, Gérard de Sède declarou que
publicara os textos de boa-fé, tendo-os recebido de alguém ligado a Rennes-le-Château que afirmava
serem esses cópias daqueles que Sauniere havia dado ao prefeito do vilarejo, antes de ter enviado os
originais a Paris. No entanto, de Sede toma o cuidado de manter esse 'alguém' anônimo.
Entretanto, sua identidade é revelada na obra de Jean Robin: era Noel Corbu.' Isso é significativo
porque se de Chérisey forjou os pergaminhos, então Corbu só os poderia ter tido em mãos através de
um contato com o Monastério de Sion.
Quanto mais investigamos as circunstâncias relacionadas à compra da propriedade de Sauniere por
Corbu, mais intrigante isso se toma. A história que geralmente é contada afirma que Corbu chegou até
ao vilarejo por pura sorte, durante a II Guerra Mundial, tornando-se amigo de Marie Dénarnaud, e então
achou que a Vila seria um bom lugar para se morar.A história verdadeira, porém, parece ser a de que ele
já estava interessado na figura de Sauniere há algum tempo, e no Início dos anos 40 desviou-se de seu
caminho natural para estabelecer relações com Marie e tentar descobrir mais coisas.'
A coisa toda então se complica ainda mais: a Igreja sempre esteve, por alguma razão, ansiosa em ter a
propriedade de Sauniere sob seu poder, e ao mesmo tempo fazia de tudo para que assim não parecesse.
De fato, ela fez várias tentativas de persuadir Marie a vender, mas ela recusou-se. Ao que parece,
através da mediação de um padre chamado Gau, a igreja convenceu Corbu a agir em seu nome,
provavelmente com a concordância de que, assim que Marie vendesse a propriedade para ele, esse a
revenderia. Alguma coisa, porém, parece ter dado errado: talvez Corbu tenha se recusado a cumprir o
acordo com a Igreja.'
Tempos depois ele foi diretamente ao Vaticano com o Intuito de requisitar uma verba, assunto para o
qual foi dada uma importância que não era a de costume, pois o Vaticano despachou o embaixador
papal, em pessoa, a Carcassonne, especialmente para que fizesse perguntas à diocese. E esse
embaixador era ninguém mais, ninguém menos do que O cardeal Roncalli, mais tarde Papa João XXIII
(que, de acordo com o The Holy Blood and the Holy Grail, também fazia parte do Monastério). O relato
da diocese aparentemente foi desfavorável, e recomendou que a verba fosse recusada. No entanto,
mesmo assim o Vaticano a autorizou.
A conexão de Corbu é um ponto importante para se compreender a história de Rennes-le-Château: o
mistério não termina com a morte de Sauniere. E como Corbu morou com Marle Dénarnaud por cerca
de sete anos, parece que ele estava em boa posição para descobrir o tal segredo. O que quer que esse
seja, ele não o inventou (foi dito que Corbu, junto com Pierre Plantard de Saint-Clair, era um dos
responsáveis pelo surgimento do Monastério aos olhos do público nos anos 50; esses boatos, entretanto,
nunca se provaram consistentes.).
No capítulo anterior vimos que Sauniere era apenas uma pessoa envolvida em um mistério muito maior
relacionado com aquela região, em eventos que envolviam altas somas de dinheiro e que levaram
alguém a recorrer ao assassinato.
Sem dúvida o mistério envolvia os grupos com os quais Sauniere mantinha contato em Paris. Mas é
interessante que as figuras principais nos círculos de Emma Calvé, como a própria Emma, fossem de
origem do Languedoc. Argumenta-se, com bastante propriedade, que não havia a necessidade de
Sauniere ir a Paris a fim de encontrar-se com essas figuras, pois elas com freqüência visitavam
Toulouse, o 'berço do seu circulo'. Mais uma vez a trilha nos leva de volta para as pessoas e grupos
cujos nomes e associações já são familiares a esta investigação.
Essas conexões são excepcionalmente significativas: elas não apenas lançam alguma, e muito
necessária, luz sobre o próprio Sauniere, como também mostram que a história de Rennes-le-Château
realmente é parte integrante de nossa investigação. Voltar no tempo, através de Sauniere, até chegarmos
à elaborada 'árvore genealógica' dos grupos ocultistas que discutimos anteriormente foi um ato que nos
muniu com percepções e revelações completamente inesperadas sobre a verdadeira natureza do grande
mistério do Languedoc, que, segundo saibamos, nunca fora antes publicado em língua inglesa.
No entanto, é estranho que, dado todo o tempo e trabalho que tem sido investido na tentativa de
desvendar o mistério, algumas das respostas estejam literalmente bem na cara do investigador. Pistas
relacionadas com as associações particulares de Sauniere podem ser encontradas dentro da própria
igreja de Rennes. Enquanto os cépticos sugerem que toda a decoração peculiar e espalhafatosa poderia
ser atribuída ao mau gosto de Sauniere ou a alguma aberração mental, outros pesquisadores têm
afirmado que existe bem mais, ao invés de menos, mistérios naquele lugar 'terrível'.
Suspeitamos que a igreja e suas circunvizinhanças imediatas tenham sido projetadas e construídas em
acordo com um plano enigmático bastante específico. Seus temas principais parecem estar invertidos, a
imagem de um espelho e o equilíbrio dos opostos: por exemplo, a contraparte da Torre de Magdala é a
estufa na outra ponta da plataforma. Embora a primeira tenha sido construída com rocha sólida e tenha
vinte e dois degraus até o topo da pequena torre, a última foi feita com material pouco resistente e seus
vinte e dois degraus descem para uma sala subterrânea. E o desenho do jardim de Sauniere e o Calvário
do lado de fora da igreja claramente se conformam a um padrão geométrico pré-concebido, e
provavelmente pleno de significado.
Essas observações foram confirmadas por Alain Féral, um artista bem conhecido que mora no vilarejo,
e que é um pupilo de Jean Cocteau. Féral, que mora em Rennes desde o início dos anos 80, fez as
mensurações mais detalhadas dos planos da igreja e dos prédios vizinhos e concluiu que eles revelam
temas recorrentes (pode ser, é claro, que Sauniere não tenha sido o responsável por isso, talvez tenha
sido Henri Boudet, ou o arquiteto que este trouxe para realizar a obra, ou mesmo um dos superiores do
grupo de que Sauniere fizesse parte, e que estivesse envolvido com essa questão).
Reforçando nossa idéia de um tema invertido como a imagem do espelho, Féral indica que o pilar dos
visigodos (que antes apoiava o altar), portava uma cruz esculpida, que Sauniere colocou de cabeça para
baixo. Ele também aponta para o significado do número vinte e dois: sem contar os degraus da torre e
da estufa, esse número aparece em todos os lugares do domaine. Dois segmentos de calçadas nos levam
do jardim ao terraço, ambos contendo onze passos cada. As duas inscrições na igreja, que tem atraído
muita atenção, Terribillis est locus iste, sobre o pórtico, e Par ce signe tu le vaincras, sobre a pia de
água benta, são ambas constituídas de vinte e duas letras (a frase em latim, que é mais conhecida na
forma Terribilis est hic locus, e o estranho le da frase em francês, parecem ter sido enxertado para que a
soma desse vinte e duas letras). Há uma boa razão para se dar tanta ênfase ao onze e ao vinte e dois:
esses são 'números Mestres' no ocultismo. São particularmente significativos nos estudos cabalísticos.
E então há o curioso padrão heterodoxo criado por quatro objetos, dois do lado de dentro e dois do lado
de fora da igreja: o confessionário, que está diretamente em frente ao altar; o próprio altar; a estátua de
Notre-Dame de Lourdes (com a inscrição 'Penitência! Penitência!'), que está do lado de fora da igreja
no pilar visigodo invertido, e o 'Calvário' no pequeno jardim de Sauniere, construído com todo esmero
por ele mesmo. Esses quatro objetos não só formam um quadrado perfeito como também portam uma
mensagem simbólica. O confessionário e a inscrição de 'penitência' referem-se ao arrependimento e
estão de frente, respectivamente, para o altar e para o Calvário, que são o símbolo da salvação. Os dois
pares parecem simbolizar uma jornada espiritual, caminho ou iniciação, do arrependimento ao perdão e
então à salvação.- Isso foi tão cuidadosamente planejado que deve conter algum tipo de mensagem.
Estaria Sauniere tentando dizer que o perdão e a salvação também podem ser encontradas fora da
Igreja? E há algo mais sendo indicado aqui, alguma coisa conectada com as figuras que representam
arrependimento e penitência, João Batista e Maria Madalena?
A frase 'Penitência! Penitência!' é aquela que fora supostamente proferida pela Virgem Maria durante a
aparição em La Salette. Das duas jovens que tiveram a visão, uma era a pastora chamada Melaine
Calvet, que era aparentada de Emma Calvé (Emma mudou a grafia de seu sobrenome ao tornar-se
cantora de ópera). Por algum tempo a visão de La Salette chegou a rivalizar com a de Lourdes, mas a
Igreja Católica decidiu que se tratava apenas de um embuste. A visão de La Salette, entretanto, foi
defendida pelo movimento dos joaninos/Naündorff/Vintras (ver Capítulo Sete). Sauniere também
escreveu em defesa da visão de La Salette.'
Como já vimos, é pouco provável que a célebre decoração da igreja represente um mapa para encontrar
algum grande tesouro. Se Sauniere encontrou alguma coisa que o tornara rico, ele dificilmente decoraria
sua igreja com indicações codificadas do local onde o tesouro fora encontrado. É mais provável que a
decoração seja uma tentativa de esconder algo, ou pela menos fazer uma declaração que só seria óbvia
para um outro iniciado.A melhor analogia, e nas circunstâncias provavelmente a mais conveniente, é a
de uma loja maçônica. Para um não-iniciado os várias símbolos empregadas em tal templo, como por
exemplo o compasso, os quadrados e outros emblemas, simplesmente não são passíveis de ser
'decodificados' e assim fornecer um quadra coerente do verdadeira significado da maçonaria. Deve-se
conhecer a filosofia subjacente, a história e o segreda que eles simbolizam para compreender o que
estão fazendo ali.
Muitos discerniram na decoração da igreja símbolos de várias sociedades ocultistas e secretas, os rosa-
cruzes, os cavaleiros templários, os maçons.As rosas e Cruzes no tímpano são uma clara referência aos
rosa-cruzes. Uma das anomalias mais freqüentemente citadas em relação à Via Crucis é a da Oitava
Estação, na qual Jesus (carregando, já sem forças, sua cruz) encontra uma mulher que está vestindo o
que parece ser um traje de viúva, e que tem em seus braças um menina que está envolto na que parece
ser um tecido xadrez. Isso é tido como uma referência aos maçons, que chamam a si mesmos de 'Os
Filhos da Viúva' (e talvez seja significativa que a oitava casa da astrologia governe os mistérios do
sexo, morte e renascimento, e o oculta). O piso branco e preto enxadrezado da igreja e o azul do teto
com suas estrelas douradas em cima da altar nas remetem à ornamentação padrão de uma loja
maçônica.
Em nossa opinião, um dos elementos mais importantes de toda a igreja é a primeira coisa que o
visitante vê quando nela entra. O demônio na entrada, recentemente vandalizado, sempre foi chamada
de 'Asmodeus', aquele que tradicionalmente guarda o tesouro enterrado, embora nada haja que ligue
essa estátua de modo explícito ao demônio desse nome. Na entanto, discutimos isso com Robert
Howells, que, como administrador de uma das mais famosas livrarias especializadas em assuntos
esotéricos, tem um extraordinário e largo conhecimento sobre o simbolismo do ocultismo, e cujas
pesquisas sobre o mistério de Rennes-le-Château são exemplares, sensatas e exaustivas. Ele mostrou
haver uma antiga lenda judia sobre a construção da Templo de Salomão na qual o rei previne vários
demônios de interferirem na obra através de quaisquer de suas diversas habilidades. Um dos demônios,
Asmodeus, era mantido dentro dos limites sob a ameaça de ter que carregar água, o único elemento
capaz de controlá-lo." Tais lendas foram incorporadas à tradição maçônica, e certamente não é
coincidência encontrar um quadro na igreja de Sauniere onde Asmodeus é controlado ao se jogar água
sobre ele, e na qual estão inscritas essas palavras, 'Por esse sinal você o conquistará'. E os ornamentos
da pia batismal, anjos, salamandras, pia batismal e demônio, representam os quatro clássicos elementos
da ar, fogo, água e terra, que são essenciais em qualquer trabalho esotérico.
Se a ligação com o Asmodeus estiver correta, então é bastante curioso, pois o quadro do demônio e
aquele do batismo de Jesus têm, como já vimos, a clara intenção de serem considerados em conjunto.
Assim como o demônio está sendo amansado pela água, estará ocorrendo o mesmo quando João verte
água sobre Jesus? E há então a inversão peculiar da ordem tradicional das duas letras gregas alfa e
ômega, a primeira e a última, que estão associadas a Jesus. Poder-se-ia esperar que alfa fosse mostrada
sob João, o suposto precursor, e ômega sob Jesus, a culminação. Acontece, porém, o inverso.
A prevalência das imagens sugere que o Templo de Salomão, tanto no lado de dentro quanto no de fora
da igreja, poderia se referir ou aos maçons ou aos cavaleiros templários. O fato de que as letras
anômalas colocadas na frase Par ce signe tu le vaincras, grafada erroneamente (o ‘le’ é totalmente
supérfluo e muda o significado da sentença), que se encontra entre os quatro anjos e o demônio, são a
décima terceira e a décima quarta, alguns pensam que isso evoca o ano de 1314, quando Jacques de
Molay, chefe dos templários, foi queimado na fogueira.
Todos esses simbolismos foram exaustivamente pesquisados por dezenas de investigadores
competentes durante anos, e os resultados têm sido quase sempre tão diversos quanto as interpretações.
No entanto, as respostas podem ser muito simples e talvez desapontadoramente óbvias. De fato, o
simbolismo da Igreja de Rennes-le-Château nunca foi um mistério para aqueles versados na tradição
maçônica. Esse simbolismo é simplesmente uma indicação da condição particular de Sauniere, que era
maçom. Isso é confirmado pela escolha de Sauniere para o escultor da Via Crucis e das outras estátuas,
um certo Giscard, que vivia em Toulouse, e cuja bizarra decoração de sua casa e estúdio ainda podem
ser vistos na Avenue de la Colonne, naquela cidade. Giscard era um maçom conhecido, embora tenha
se especializado em decoração de Igrejas, e outros exemplos de seu trabalho podem ser vistos por todo
o Languedoc. Curiosamente, na igreja de João Batista em Couiza, que fica no sopé da colina abaixo de
Rennes, pode-se encontrar Via Crucis idêntica àquela feita por Giscard, mas é uma versão
monocromática, e as anomalias tão notáveis na igreja de Sauniere estão ausentes. É quase como se as
duas Igrejas, que estão a apenas uns poucos quilômetros uma da outra, tivessem a clara intenção de
serem comparadas a fim de realçar as excentricidades da versão de Sauniere.
Jean Robin, em seu livro sobre Rennes-le-Château, declara que as ligações de Sauniere com a
maçonaria são confirmadas por registros nos arquivos da diocese". Como já vimos, entretanto, a
maçonaria consiste de uma variedade de tradições distintas. A qual delas pertencia Sauniere? Aqui
novamente, os bem informados pesquisadores franceses estão de acordo; sua filiação era com o Ritual
Escocês Purificado, o braço da maçonaria 'ocultista', que especificamente afirmava ser descendente
direto dos templários.
Antoine Captier, o neto do sineiro de Sauniere, que foi uma fonte para a pesquisa em Rennes-le-
Château e no caso Sauniere, nos disse: 'Sabemos que ele pertenceu a uma loja maçônica. Ele foi
enviado para um lugar onde havia algo [significativo]. Ele encontrou algumas coisas. Mais uma vez, no
entanto, não estava sozinho. Ele não trabalhava sozinho:" Mais tarde, ao longo de nossas conversas, foi
mais preciso: as ligações de Sauniere eram com o Ritual Escocês Purificado; acrescentou, entretanto,
'Isso não é segredo'. Foi a essa conclusão que também chegou Gerard de Sede, que tem pesquisado o
caso por cerca de trinta anos. De fato, de Sede acredita que algo do simbolismo na Nona Estação da Via
Crucis evoca diretamente o grau de Chevalier Bienfaisant de la Cité Sainte, um eufemismo para
designar 'templário'."
Há uma outra indicação da possível afiliação de Sauniere. Sua escolha das estátuas de santos na igreja,
Madalena à parte, tem sido extremamente debatida pelos pesquisadores: São Germano, São Pedro e os
dois Antônios, o de Pádua e o Ermitão,e,acima do púlpito,São Lucas.Alain Féral mostrou que, se esses
forem colocados em conjunto com o formato de "M" do piso da igreja, suas iniciais formam a palavra
Graal."
Com o símbolo da rosa-cruz no tímpano e a prevalência de imagens do Templo de Saio mão, esses
pontos convergem em direção à Ordre dela Rose-Croix, du Temple et du Graal, uma ordem fundada em
Toulouse por volta de 1850, e algum tempo depois liderada por ninguém menos que Joséphin Péladan,
o patrono de grupos ocultistas eróticos.

No início de nossa investigação, pensávamos que a tendência de muitos outros pesquisadores em


acreditar que todos os caminhos levavam a Rennes-le-Château era um engano.No entanto, de certo
modo eles estão certos, embora na maior parte das vezes pelos motivos errados. Certamente, foi
atordoante destrinchar a intricada rede de grupos ocultistas e maçônicos que discutimos previamente e
que traçamos de volta no tempo até Sauniere e sua aldeia. Não é mera coincidência: isso fazia parte de
um elaborado e meticuloso plano que estava muito bem estabelecido já antes dele ter nascido e que
continua até os dias de hoje.
Já vimos que Sauniere demonstrou grande interesse pela tumba de Marie de Negre d'Ables, Dama
d'Hautpoul de Balanchfort, que foi erigida por Antoine Bigou, pároco de Rennes-le-Château, em 1791.
Ela era a última descendente em linha direta dos que haviam dado o título a Rennes-le-Château, embora
outros ramos da família continuassem. Marie de Negre d'Ables casou-se com o último Marquês de
Blanchefort, em 1732. O nome vinha do 'castelo' nos arredores (embora pareça, na verdade, que foi
apenas uma espécie de torre) de Blanchefort, cujas ruínas ainda podem ser vistas. A família de Marie,
entretanto, tinha algumas conexões bem interessantes. Já discutimos a influência do Ritual de Menphis.
que mais tarde iria se fundir com o de Misraïn. Este foi fundado em 1838 por Jacques-Étienne Marconis
de Negre, que realmente era da mesma família da Marie da história de Rennes-le-Château,' E foi um
dos Hautpouls, Jean-Marie Alexandré, que participou da criação do grau, do Ritual Escocês Purificado,
de Chevalier Bienfaisant de la Cité Sainte, o eufemismo para templário, em 1778. Membros da mesma
família eram proeminentes na loja maçônica La Sagesse, de onde surgiu a Ordre dela Rose-Croix, du
Temple et du Graal. O sobrinho e herdeiro de Marie de Negre,Armand d'Hautpoul, estava com certeza
conectado com indivíduos ligados ao Monastério, incluindo Charles Nodiere, que foi Grão-Mestre de
1801 até 1844." Armand d'Hautpoul era também o tutor do Conde de Chambord, cuja viúva foi tão
generosa para com Sauniere. ,.
O Ritual de Menphis de Marconis de Negre estava proximamente conectado com a sociedade conhecida
como os Filadelfianos, que foi criada pelo Marques de Chefdebien, um maçom do Ritual Escocês
Purificado, em Narbonne, em 1780" Essa é uma outra sociedade templarista maçônica influenciada
pelas idéias do Barão von Hund: Chefdebien havia estado no famoso Convento de Wilhelmsbad, de
1782, o qual tentara resolver de uma vez por todas as querelas relacionadas com as origens dos
templaristas maçônicos, e declarou estar do lado de von Hund. Os Filadelfianos, como o Ritual de
Menphis, estavam primordialmente interessados na aquisição de conhecimento ocultista; ambos tinham
graus exclusivamente dedicados a essa tarefa. Os Filadelfianos, além disso, almejavam destrinchar a
complicada história da maçonaria, com sua proliferação de hierarquias, graus e rituais concorrentes, em
uma tentativa de descobrir seus propósitos e segredos originais. Eles tornaram-se um repositório de
informações sobre a maçonaria e sociedades similares, as quais lhes eram dadas de boa-fé ou chegavam
como resultado de operações de infiltração em outras organizações. Portanto, é significativo que o
irmão de Sauniere, Alfred (também um padre) fosse o tutor da família de Chefdebien, e que fosse
demitido por ter roubado parte dos arquivos da família.
Sem dúvida Alfred Sauniere é uma figura-chave nos estranhos acontecimentos nos quais seu irmão
mais velho, e mais famoso,se envolveu, e mereceria uma pesquisa mais profunda. Entretanto, é difícil
encontrar muitas coisas relativas a ele, embora seja sabido que era amante da ocultista Marquesa du
Bourg de Bozas, uma das visitas que se divertiam na Villa Bethania. Alfred morreu alcoólatra em 1905,
após ter sido excomungado.
Após a morte de Alfred, Sauniere, em uma carta para seu bispo, referiu-se ao sentimento de que
'deveria-se esperar que eu reparasse os erros de meu irmão, o abade, que morreu tão cedo'."
Uma vez que tenhamos entendido as conexões de Sauniere com o Ritual Escocês Purificado, grande
parte do quadro geral passa a fazer sentido. E longe de ser uma obsessão pessoal, a reverência de
Sauniere por Madalena na verdade surgiu como sendo parte da Grande Heresia Européia. O ponto-
chave para se entender suas associações está nas pessoas que ele conhecia.
De fato, é possível se chegar ao ponto de estabelecer uma conexão entre Sauniere e Pierre Plantard de
Saint-Clair através de um único homem: Georges Monti." Também conhecido pelos cognomes Conde
Israel Monti e Marcus Vella, ele é uma das figuras mais poderosas e implacáveis das sociedades
secretas do século XX, embora de forma alguma seja a mais conhecida. Esse venerável mago preferia
exercer sua influência a partir das sombras, ao invés de sair em busca de publicidade, como fez seu
companheiro Aleister Crowley. Por toda a sua vida, ele ascendeu através dos escalões de muitas
sociedades ocultistas, mágicas e maçônicas, muitas vezes com o intuito de infiltrar-se nelas em
benefício de outros.Também era um agente-duplo dos serviços secretos da França e da Alemanha;
como no caso de John Dee, e possivelmente no de Leonardo, os dois mundos da espionagem e o
ocultismo com freqüência andam lado a lado. Sua vida era de tal forma complexa que é impossível
dizer ao certo para que lado pendia sua lealdade. Provavelmente pendia para seu lado e seu amor pela
intriga e pelo poder pessoal.
Quaisquer que sejam os verdadeiros motivos de Monti, ele foi assombrosamente bem-sucedido em sua
vida secreta, constantemente alcançando altos postos em sociedades secretas hostis e opostas, ou sem
que tivessem conhecimento uma da outra, ou com cada uma crendo que ele estava infiltrado no outro
grupo para favorecer o primeiro. Por exemplo, embora alguns dos grupos fossem, como o próprio
Monti, marcadamente anti-semitas, ele também foi bem-sucedido em se infiltrar na B'nai B'rith, uma
sociedade judia semi-maçônica fundada nos Estados Unidos, chegando mesmo a converter-se ao
judaísmo para consegui-lo.
Monti nasceu em Toulouse em 1880, foi abandonado por seus pais italianos e criado pelos jesuítas.
Desde cedo se interessava pelo mundo sombrio das sociedades ocultistas.Viajou por toda a Europa, e
passou bastante tempo no Egito e na Argélia. Entre as muitas sociedades a que se juntou, estava a Holy
Vehm, uma organização alemã especializada em assassinatos políticos. Também afirmava ter 'as chaves
que abrem' as portas da maçonaria italiana. Entre seus muitos conhecidos estava Aleister Crowley - na
verdade, ele era descrito como o 'representante de Crowley na França'" -, e fazia parte da OTO quando
aquele extravagante inglês era o Grão-Mestre. Como já era de se esperar, a vida dupla de Monti foi
descoberta, e por isso foi envenenado em Paris, em outubro de 1936.
Ele foi incluído na presente investigação por ter sido secretário de Josephin Péladan, no início de sua
vivência no mundo ocultista parisiense, e a partir daí passou a fazer parte do círculo de Emma Calvé.
Como já vimos, Sauniere era conhecido por ter conexões com Péladan e seu grupo, e por ter conhecido
Emma Calvé, e portanto deve ter se encontrado com Monti. Além disso, Monti era do Languedoc, e
freqüentemente residia em Toulouse ou em alguma parte do Midi.
Em 1934, Monti fundou a Ordre Alpha-Galates, da qual Pierre Plantard de Saint-Clair tornou-se Grão-
Mestre em 1942, com a pouca, embora significativa, idade de vinte e dois anos. E mesmo que Plantard
tivesse apenas dezesseis quando Monti morreu, ele o conhecia: a ex-mulher de Plantard de Saint-Clair,
Anne Léa Hisler, escreveu em um artigo de 1960 que Plantard inequivocamente 'conhecia o Conde
George Monti muito bem'.'" Monti pode muito bem ter sido seu professor e mestre no mundo ocultista.
Portanto, parece haver uma clara ligação entre Sauniere e Plantard de Saint-Clair, através de Georges
Monti, talvez representando uma continuação de uma determinada tradição esotérica.

...

Então, o que podemos deduzir da história de Sauniere? Conseguir adentrar por entre tudo o que é
obscuro, todos os mitos e suposições superpostas, não é uma tarefa pequena, mas realmente parece que
o padre estava procurando alguma coisa, e que ele não estava trabalhando sozinho. As evidências
apontam para a existência de um patrocinador secreto, possivelmente ligado às influentes sociedades
secretas de Paris e do Languedoc. Essa explicação não é somente a mais lógica, como é também a única
que Sauniere forneceu. Quando o sucessor de Billard como bispo de Carcassonne ordenou que Sauniere
fizesse um relatório sobre o seu extravagante estilo de vida, o padre espirituosamente respondeu:
eu não sou obrigado... a divulgar os nomes de meus doadores...Torná-los públicos sem a devida
permissão traria o risco de levar a discórdia para o selo de certas famílias e lares... cujos membros
doaram sem o conhecimento de seus marido, filhos ou herdeiros.

Tempos depois, entretanto, ele disse que daria ao bispo os nomes dos doadores, mas apenas no segredo
da confissão. O fraseado de uma carta de apoio a Sauniere escrita por um amigo íntimo, em 1910,
emprega uma linguagem mais sugestiva:

Você deve ter recebido o dinheiro. Esse é para que ninguém penetre no segredo que você guarda...
Se alguém deu-lhe o dinheiro sob a condição natural de que o segredo fosse mantido, você é obrigado a
fazê-lo, e nada pode demovê-lo disso...'"

Alfred, irmão de Sauniere, também tinha, ao que parece, conhecimento do segredo. Em resposta às
perguntas das autoridades sobre suas extravagâncias, Sauniere disse:

Meu Irmão, sendo um padre, tem inúmeros contatos. Ele serviu como intermediário para essas almas
generosas."
Porém, embora Rennes-le-Château possa ter sido o começo da busca misteriosa de Sauniere, a qual,
aparentemente, foi empreendida em favor de outros, parece que o objeto da busca ficava em outro local.
Recentemente muitos pesquisadores encontraram várias pistas intrigantes espalhadas em seu domaine
sobre os reais interesses e motivações de Sauniere. Durante uma das nossas viagens à região, em 1995,
levamos conosco Lucien Morgan, um apresentador de televisão e uma autoridade no tantra, que estava
estupefato com a descoberta de que a Torre de Magdala e as plataformas foram construídas de acordo
com antigos princípios de um certo tipo de rito sexual. Ele acreditava que Sauniere e seu círculo secreto
praticavam rituais sexuais esotéricos que eram propostos com o intuito de facilitar a clarividência,
estabelecer contato com os deuses - indo de encontro, na verdade, aos antigos alquimistas da Grande
Tarefa - e assegurar algum poder material e influência. Outros viram indicações de sexo mágico: os
autores britânicos Lionel e Patrícia Fanthorpe citam o perito em ocultismo Bremma Agostini, que disse
que Sauniere estava realizando um ritual de magia sexual conhecido como a 'Convocação de Vênus', do
qual Marie Dénarnaud e Emma Calvé participavam.'.
Até os limites dessa investigação, o que é realmente significativo em toda a construção de Sauniere em
Rennes-le-Château é a ênfase dada a Maria Madalena. A Igreja da aldeia já era a ela dedicada muito
antes dele sequer ter nascido, mas mesmo isso não era mera coincidência, pois essa costumava ser a
capela da família dominante local, a de Marie de Nègre. E dada a sua íntima relação com o Ritual
Escocês Purificado, a dedicação poderia ser significativa. Sauniere também nomeou a sua torre-
biblioteca e sua casa em homenagem àquela que, de acordo com a interpretação do Novo Testamento,
havia vivido com seu irmão Lázaro e sua irmã Marta. E de toda a decoração da igreja é o baixo-relevo
defronte ao altar, retratando Madalena, que escolheu para pintar com sua próprias mãos.
Descobrimos que ele também tinha feito uma pequena estátua de bronze de Madalena, a qual colocou
no lado de fora da caverna. Ela tinha apenas um metro de altura e pesava cerca de 85 quilos, e era a
imagem invertida no espelho, ou por outro lado idêntica à do baixo-relevo. Essa estátua há muito
desapareceu, mas André Galaup, um jornalista aposentado de Limoux, tem fotografias dela."
A legenda 'Terribilis est locus iste' está bem visível sobre a porta da igreja. Como Keith Prince nos
mostrou, a frase vem do Gênesis 29:17 e conta como Jacó sonhou com uma escada na qual anjos
subiam e desciam.Ao acordar, sussurrou aquelas palavras. Ele chamou o lugar de Bethel, que significa
Casa de Deus. Mas, no Antigo Testamento, Bethel se torna um poderoso centro rival a Jerusalém, o que
lhe dá a conotação de local alternativo ou rival ao centro religioso 'oficial'. Na França, entretanto, a
implicação é mais óbvia: um dicionário francês define 'Bethel' como um 'templo de uma seita
dissidente'." Seria isso o que Sauniere estava querendo transmitir? Os Dossiês secretos afirmam que
Sauniere, nos últimos anos, planejava iniciar 'uma nova religião' e enviar uma cruzada por toda a região.
As últimas construções planejadas para seu domaine, a torre alta e a piscina batismal, faziam parte
dessa ambição. "
Decidimos nos concentrar naquilo que Sauniere havia encontrado em sua chegada a Rennes-le-Château,
e que poderia tê-lo inspirado em sua busca. Deixando de lado a tentativa de desvio do assunto que eram
os pergaminhos, ficamos chocados com a aparente contradição do comportamento de Sauniere. Muitas
pessoas pensam que ele estava tentando deixar pistas na decoração de sua igreja, mesmo que se saiba
que ele cuidadosamente destruíra certas coisas encontradas lá, especificamente as inscrições nas duas
pedras que haviam marcado a sepultura de Marie de Nègre. Ele também as retirou do túmulo, o que
sugere que queria dificultar sua exata localização.
Como já vimos, essas pedras, uma lápide e uma laje de pedra, foram colocadas na sepultura de Marie de
Negre por Antoine Bigou, cerca de cem anos antes de Sauniere chegar. Já havia, então, algo
extravagante: Bigou colocou as pedras em 1791, dez anos depois da morte da mulher supostamente
enterrada, ao mesmo tempo em que colocou a 'Pedra do Cavaleiro' na igreja virada do lado contrário (a
descoberta dessa pedra, à primeira vista, foi um passo importante para a busca de Sauniere). Há ainda
um outro indicador de que Sauniere estava de algum modo seguindo os passos de Bigou: antes de se
tornar pároco de Rennes-le-Château, Bigou serviu no pequeno vilarejo de Le Clat, nas montanhas, a
cerca de vinte quilômetros dali. Sauniere também havia sido padre em Le Clat, imediatamente antes de
ir para Rennes-le-Château. Estaria Sauniere procurando por algo que estivesse ligado a Bigou e,
portanto, aos d'Hautpoul ou aos de Nègre?
A obra de Bigou na sepultura pode ter sido acelerada pelos eventos na França que tiveram lugar entre a
morte de Marie, em 1791, e o início do terror da Revolução Francesa. Os revolucionários eram hostis à
Igreja Católica, e muitas relíquias, ícones e ornamentos foram destruídos ou pilhados
nessa época. Logo após terminar seu trabalho em Rennes-le-Château, Bigou, que se opunha à república,
fugiu em direção à fronteira com a Espanha, onde morreu em 1793.
Houve um outro acontecimento estranho relacionado com o sepultamento de Marie. Os senhores de
Rennes, a família d'Hatoupoul, habitualmente eram enterrados no jazigo pertencente à família, que
dizem ser debaixo da igreja. Então, por que o enterro de Marie não foi realizado conforme o costume?
Sabemos que a cripta existia, pois há uma referência a ela nos registros da paróquia, que cobre os anos
de 1694 a 1726, e que estão expostos no museu. De acordo com estes a entrada da cripta é dentro da
igreja. Contudo, a entrada não existe mais, embora pareça certo que Sauniere a tenha descoberto; talvez
os documentos que encontrou indicassem o local onde deveria procurar.
O relato da história de Sauniere registrado pelos irmãos Antoine e Marcel Captier, e baseado nas
memórias de sua família, “dizia que o padre havia descoberto a entrada da cripta embaixo da Pedra do
Cavaleiro, e que realmente havia entrado nela. Mas então ele escondeu a entrada novamente, agora sob
o novo piso da igreja, provavelmente não querendo que tal segredo fosse descoberto.Antoine Bigou
deve ter tido a mesma preocupação, porque foi ele quem colocou a Pedra do Cavaleiro virada ao
contrário, em 1791, encobrindo a entrada. Por que ambos os padres, com cem anos de distância,
estariam tão preocupados em garantir que ninguém mais entrasse na cripta dos senhores de Rennes-le-
Château?
Há uma resposta simples. Se Sauniere tivesse entrado no jazigo e encontrado o túmulo de Marie de
Negre, no lugar onde ele deveria estar em primeiro lugar, teria descoberto imediatamente que alguma
coisa estranha estava acontecendo: a mulher teria dois túmulos. O segundo, porém, que ficava no
cemitério, foi colocado lá por Bigou dez anos após sua morte. Obviamente, Marie não foi enterrada no
cemitério; nesse caso, quem ou o que foi?
Uma hipótese razoável é a de que Bigou, provavelmente em virtude dos distúrbios decorrentes da
Revolução de 1789, que o ameaçaram pessoalmente, tivesse escondido algo no cemitério de Rennes-le-
Château antes de fugir para a Espanha. Mas o que poderia ter sido? Um outro corpo, um objeto ou
documentos de algum tipo? Talvez fosse algo muito difícil para Bigou levar consigo até a Espanha, ou
talvez fosse algo que realmente pertencesse a Rennes-le-Château. Talvez nunca fiquemos sabendo, mas
parece que Sauniere sabia, pois ele abriu a sepultura para olhar dentro. E estava ansioso para que a
mensagem dos túmulos se perdesse, ao menos a da laje horizontal, na qual rasurou a inscrição. Poderia
a mensagem render alguma pista sobre o que a sepultura realmente continha?
A inscrição da lápide do túmulo de Marie de Nègre continha um grande erro, que não poderia apenas
ter sido resultado de um trabalho malfeito." Palavras soletradas erroneamente. letras perdidas, espaços
ou omitidos ou acrescentados onde não são necessários. Das vinte e duas palavras na inscrição, não
menos do que cinco contêm erros. Alguns parecem ser totalmente inócuos, mas uma palavra em
particular estava tão malfeita que deveria ter causado grande ofensa para a família. As palavras finais
deveriam ser lidas como o convencional RESQUIESCAT IN PACE, 'descanse em paz', mas elas
aparecem como REQUIES CATIN PACE. A palavra francesa catin é a gíria para 'puta'. Isso é
reforçado pelo erro no nome da família: d'Hautpoul aparece como DHAUPOUL. Esse erro específico
pode não ter mudado o significado da frase mas com certeza atrai nossa atenção para a palavra. E poule
(galinha) é uma outra gíria para prostituta; de fato, hautpoul poderia significar 'prostituta de alta
classe’...
Do mesmo modo o nome na tumba ecoa temas que são importantes para esta pesquisa. Chega a ser
tentador pensar que Marie de Nègre existiu apenas como um nome. um código para alguma coisa
realmente atordoante.
Pois Blanchefort, embora seja um nome de um marco local, também significa ou 'torre branca' ou
'branco poderoso', um termo alquímico. E 'Marie de Nègre' evoca as Madonas Negras e sua associação
com Maria Madalena, O que é reforçado pela referência de hautpoul a 'prostituta de alta classe',
sabedoria da puta. Mais uma vez, encontramos conexões aparentes que evocam a sexualidade sagrada, e
talvez, no contexto dos boatos sobre o 'tesouro', aspectos sexuais da Grande Obra alquímica. E talvez
ainda mais significativo, há um outro erro de grafia na tumba: D'ABLES está escrito como D'ARLES.
Se isso é, como suspeitamos, uma referência à cidade de Arles na Provença, pode evocar o fato de que
essa era um antigo centro para o culto a Ísis. De qualquer forma, Arles está muito próximo de Santes-
Maries-de-la-Mer.
O desenho na segunda pedra no túmulo de Marie de Nègre, a laje horizontal, é mais controverso, já que
existem algumas discrepâncias nos vários relatos publicados sobre o assunto." Em muitas versões há
duas inscrições principais: a frase, em latim escrita, curiosamente, com caracteres gregos, Et in Arcadia
ego; e as quatro palavras em latim Reddis Regis Cellis Arcis que cruzam a pedra. O significado desta
última não está claro, e tem sido fonte das mais diferentes interpretações, mas ao que parece refere-se a
um jazigo ou tumba pertencente à nobreza, talvez conectada com Rhedae e/ou o vilarejo de Arques (a
palavra Arcis tem muitos significados possíveis, de palavras conectadas com o 'arc', (arco) da língua
inglesa, até palavras que significam 'incluso' ou 'dentro', ou apenas uma alusão a Arques, ou de seu
nome antigo Archis, ou da pronúncia fonética moderna de seu nome).
O lema Etin Arcadia ego também é encontrado na tumba inserida na pintura Os Pastores de Arcádia, de
Nicolas Poussin (1593-1665), que de modo inacreditável lembra uma outra que parece sempre ter
estado, de um modo ou de outro, às margens da estrada de Rennes-le-Château e Couiza à Arques (a
versão mais recente foi dinamitada em 1988 porque o fazendeiro, em cuja terra foi construída, não
estava nem um pouco disposto a tolerar centenas de turistas passando de lá para cá em sua propriedade.
Infelizmente, essa medida drástica de nada adiantou: agora os turistas vão até lá para tirar fotografias do
local onde a tumba costumava estar).
Dizem que Sauniere ao voltar de sua viagem a Paris trouxe consigo cópias de determinadas pinturas,
uma das quais era o Os Pastores de Arcadia, de Poussin.'" Esse quadro, datado de cerca de 1640,
mostra um grupo de três pastores examinando uma tumba, observados por uma mulher que geralmente
é tomada como sendo uma pastora. Na tumba está a inscrição em latim Et in Arcadia ego, uma frase
cuja gramática está completamente errada e que chegou a ser interpretada das mais variadas formas,
mas é geralmente considerada como a representação de um memento mori, uma meditação sobre a
morte: mesmo em uma terra paradisíaca como Arcadia a morte está presente. O lema tem uma forte
conexão com a história do Monastério de Sion, e está presente no brasão de Pierre Plantard de Saint-
Clair. Também, como já vimos, se diz que foi incorporado na ornamentação da laje do túmulo de Marie
de Nègre. O tema da pintura não foi uma criação de Poussin: o mais antigo exemplar conhecido sobre
esse motivo pertence a Giovanni Francesco Guercino, realizado cerca de vinte anos antes. Entretanto, O
homem que encomendou a versão de Poussin, Cardeal Rospigliosi, parece que também havia sugerido o
mesmo tema a Guercino. E a mais antiga aparição da frase Et in Arcadia ego no mundo das artes foi no
século XVI, em uma gravura de um alemão intitulada O Rei do Novo Sion é destronado após inaugurar
a Era de Ouro..."
Analisando Poussin é interessante notar uma carta que o abade Louis Fouquet escreveu de Roma para
seu irmão Nicolas, Superintendente Financeiro de Louis XIV; em 1656:

[Poussin] e eu planejamos certas coisas das quais falarei a você em detalhes brevemente, [e que trará
a você, através de M. Poussin, vantagens que os reis teriam grande trabalho para dele obter, e que, no
que depender dele, talvez ninguém nos séculos que virão poderá retomar; e mais, isso só seria possível
com uma grande despesa ainda que produzisse lucro, e essas coisas são tão difíceis de encontrar que
nada nem ninguém na terra agora poderia ter algo melhor, nem, quem sabe, fortuna igual.

Bastante significativo, foi Charles Fouquet, irmão de Louis e Nicolas, quem, na condição de bispo de
Narbonne, mais tarde obteve o controle total de Notre-Dame de Marceille por um período de quatorze
anos."
A razão do quadro de Poussin ser de interesse para os pesquisadores de Rennes é que a paisagem como
é vista na pintura parece bastante similar àquela da região ao redor dos locais da tumba de Arques, e
mesmo a própria Rennes-le-Château pode ser vista à distância. Contudo, a paisagem, mesmo que
similar, não é idêntica e isso tem sido tomado como prova de que a semelhança é mera coincidência.
Em nossa opinião, porém, a paisagem está bastante próxima do original, o que implica na possibilidade
de que Poussin estava realmente tentando retratar os arredores de Rennes.
Contudo, a coisa toda torna-se ainda mais complicada. A data conhecida da tumba de Arques é do
início do século XX. Ela foi construída em 1903 por um fabricante local, Jean Galibert, e
subseqüentemente vendida para um americano chamado Lawrence. Existem, entretanto, rumores de que
essa tumba seria simplesmente a réplica de uma anterior. Nosso amigo John Stephenson, que morou na
região por muitos anos, confirmou que os moradores locais diziam que 'sempre houve uma tumba
naquele local'. Portanto, é bem possível que Poussin realmente tivesse apenas pintado o que estava
vendo. John Stephenson também nos disse que a conexão com a obra de Poussin já era conhecida há
um bom tempo na região, o que certamente é um contra-argumento para a idéia dos cépticos de que ela
era uma invenção dos anos 50 e 60. O lugar sempre foi significativo.
Também é dito que o lema de Arcadia foi adotado por Plantard de Saint-Clair e o Monastério de Sion
apenas no século XX, bem como a suposta ligação com a pintura de Poussin e a tumba de Marie de
Negre.A frase, porém, já estava conectada com a região muito antes da chegada de Sauniere. Em 1832,
um certo Auguste de Laboulse-Rochefort escreveu um livro intitulado Voyage à Rennes-le-Bains, que
inclui referências a um tesouro escondido ligado a Rennes-le-Château e Blanchefort. Laboulse-
Rochefort escreveu um outro livro, Les Amants, à Éléonore (Os Amantes, para Eleonor), que incluía a
frase na primeira página.
A tumba é localmente conhecida como a 'Tumba de Arques', o que, embora mais acurada do que a frase
"tumba de Poussin', ainda não é precisamente verdadeira, pois o vilarejo de Arques está a três
quilômetros mais a oeste da rodovia principal. Embora a tumba esteja muito mais perto do vilarejo de
Serres, a palavra Arques tem uma relação muito próxima com a palavra Arcadia, e portanto é de se
esperar que seja explorada.
De acordo com Deloux e Brétigny, no seu livro Rennes-le-Château: capitale secrète de l'histoire de
France, a laje do túmulo de Marie de Nègre foi na verdade trazida até sua sepultura pelo abade Bigou,
de uma versão mais antiga da tumba de Arques." Se isso for verdade, levanta-se uma possibilidade
intrigante. Poderia Poussin ter simplesmente pintado algo que ele realmente vira, ou seja, a tumba com
essas palavras inscritas, Et in Arcadia ego?
John Stephenson nos contou uma lenda local relativa à tumba de Arques: a de que essa era ou o lugar
do repouso final de Maria Madalena ou servia como um marcador ou indicador de algum modo, e a
inscrição na laje da tumba de Marie de Nègre realmente tinha uma flecha apontando para o centro.
Porém, a laje foi movida, e portanto não podemos mais saber qual a direção que a flecha originalmente
apontava.
A evidência indica que Sauniere acreditava que o corpo de Maria Madalena seria encontrado em algum
lugar; ou estava nas vizinhanças de Rennes-le-Château, ou o vilarejo possuía algum tipo de pista de
onde deveria estar. O que fora escondido no segundo túmulo de Marie de Nègre? Será que a inscrição
codificada que aparentemente fazia referência a uma 'prostituta de alta classe' realmente significava
Madalena? (Talvez o termo pudesse ser lido como 'Alta Sacerdotisa', assim ligando um conceito de
sexualidade sagrada com uma antiga, ao invés de moderna, prática ocultista.)
Sauniere parecia estar procurando por alguma coisa em especial e poderosa, algo que fosse precioso e
que estava conectado com sua amada Maria Madalena. E o que poderia ser mais precioso que seus
ossos? É claro que isso poderia ser apenas uma obsessão particular de sua parte e ele poderia ter
imaginado que os restos dela estavam lá para serem encontrados. Por outro lado, como já vimos,
Sauniere estava trabalhando para, e provavelmente era financiado por, uma grande e obscura
organização. Estaria ele também sendo iludido?Talvez não.As evidências sugerem que o padre estava
agindo por meio de informações fidedignas acerca da existência real de um objeto.
Enquanto nossa investigação prosseguia, nos tomamos mais e mais convencidos dessa hipótese
relacionada com Madalena, mas logo descobrimos que, pelo menos entre os pesquisadores britânicos
desse assunto, estávamos sozinhos. E, portanto, foi reconfortante termos encontrado pesquisadores
franceses que estavam trabalhando na mesma linha de pesquisa que nós. Para eles, assim como para
nós, não era algo inconcebível que Sauniere e seus misteriosos financiadores estivessem procurando
pela própria Maria Madalena.
Durante uma de nossas viagens à região, na primavera de 1995, Nicole Dadwe bondosamente nos
ofereceu um jantar para que pudéssemos encontrar Antoine e Claire Captier, além de Charles Bywaters.
Antoine, neto do sineiro que encontrou o cilindro de madeira que continha os documentos que ele deu a
Sauniere, viveu com o mistério toda a sua vida, assim como Claire, que era filha de Noël Corbu.
Antoine era franco: ele não tinha o menor interesse em remexer nesse mistério. 'Não vou dizer-lhes o
que não sei', adiantou." Disse que achava bastante difícil que pudéssemos perguntar algo que fosse
novidade para ele, mas se surpreendeu quando perguntamos sobre a possível conexão de Sauniere com
o culto de Madalena, porque esse era um ângulo que havia sido ignorado até recentemente, mas nosso
interesse nisso era estranhamente paralelo com o de certos pesquisadores franceses.
Antoine nos disse que Sauniere tinha pesquisado a lenda de Madalena, isso havia aparecido em um
jornal chamado Cep d'Or de Pyla, que é produzido por André Douzet, o homem que encontrou a
maquete discutida no capitulo anterior, e que mora em Narbonne. Douzet e seu círculo são entusiastas e
conhecidos pesquisadores da história esotérica da França. Antoine disse que a próxima edição do jornal
'seria interessante para nós... porque vocês encontrarão algo profundo, relacionado com a Madalena'.
Mais uma vez graças a Nicole, nos encontramos mais tarde com André Douzet, que nos disse que ele e
alguns outros, principalmente Antoine Bruzeau, haviam empreendido uma pesquisa específica
relacionada com o interesse de Sauniere em Madalena, mas isso fazia parecer com que a chave para o
mistério estivesse a alguma distância de Rennes-le-Château. André não havia, de início, sido atraído
para o mistério de Sauniere, mas chegara a esse por uma via indireta: alguns lugares de interesse para
ele em sua cidade natal de Lyon o levaram até lá.
A conexão remonta a Gérard de Roussilon, que, no século IX, havia fundado a abadia em Vézelau, em
Burgundy, onde, como mais tarde foi declarado, ele havia encontrado o corpo de Maria Madalena.
Lembramos que (ver Capítulo Três) essa afirmação foi depois desautorizada por St. Maximim, na
Provença, quando os monges de Vézelau não puderam apresentar as relíquias.Também podemos
relembrar que esses acontecimentos colocaram Charles d'Anjou II a postos para realizar uma busca
febril a fim de encontrá-los, convencido que estava de que os ossos ainda estavam em algum lugar na
Provença.
Gérard de Roussillon era conde de Barcelona, Narbonne e Provença, uma grande e vasta área. Sua
família também era proprietária de terras na região de Le Pilat, hoje o Parque Nacional de Le Pilat, no
sul de Lyon. Eles eram devotos passionais de Madalena, e a região era um centro para o seu culto (uma
Capela de Sainte-Madalene na região de Le Pilat possuía o que era tido como os restos de Lázaro).
No século XIII, o conde reinante, Guillaume de Roussillon, morreu nas cruzadas e sua pesarosa viúva,
Béatrix, refugiou-se nas colinas de Le Pilat, onde encontrou um convento cartesiano, Saint-Croix-en-
Jarez, passando lá o resto de sua vida. Contudo, a partir de então o convento pareceu adquirir uma
estranha associação com Maria Madalena.
Antoine Bruzeau argumenta que a família possuía os verdadeiros restos mortais de Maria Madalena, e
que Béatrix os havia levado para Sainte-Croix (ou talvez ele simplesmente confiou o segredo da
localização desses ao abade local). Ele também sugeriu que o lugar verdadeiro da chegada de Madalena
na França não foi Camargue, mas a costa de Roussillon, em um lugar que é ainda chamado de Mas de
la Madeleine. De acordo com sua teoria, ela viveu o resto de sua vida não na Provença, mas no
Languedoc, na região circunvizinha a Rennes-le-Château."
Por alguma razão a família Roussillon sentiu que era seu dever não apenas manter os restos mortais,
mas também fazê-lo em absoluto segredo. Isso é bastante estranho em uma época em que as relíquias
representavam um negócio lucrativo, e sugerem que eles deveriam ter outros motivos do que apenas a
simples veneração à santa do Novo Testamento. Talvez fosse algo conectado com o verdadeiro papel da
Madalena.
No século XIV um mural curioso foi acrescido à abadia de Sainte-Croix, que mostrava Jesus sendo
crucificado em uma árvore viva. Mais tarde o mural foi coberto, mas em 1896 foi descoberto, pouco
antes de Sauniere pessoalmente pintar o baixo-relevo de seu altar, mostrando a Madalena contemplando
a cruz feita de madeira ainda viva.
Mais tarde, no século XVII, um dos frades de Sainte-Croix, Dom Polycarpe de la Riviere, erudito
renomado, empreendeu algumas reformas no mosteiro, chegando a escavar em alguns lugares. Estava
particularmente interessado na Madalena, sobre quem escreveu um livro que, infelizmente, agora está
perdido, além de um outro sobre a região de Aix-en-Provence, St. Maximin e Sainte Baume, que o
Vaticano suprimiu. De la Riviere também estava conectado com Nicolas Poussin, e a pesquisa de
Bruzeau sugere que os dois faziam parte de uma sociedade secreta conhecida com Société Angélique."
Nas colinas de Le Pilat uma antiga estrada sobe o Mont Pilat em direção a uma capela dedicada a Maria
Madalena. A estrada começa no vilarejo de Malleval, cuja Igreja contém estátuas de Antônio de Pádua
e de São Germano que são Idênticas àquelas de Rennes-le-château.A trilha passa por uma capela
dedicada a Santo Antônio, o Ermitão, um outro santo venerado na Igreja de Sauniere (e cujo dia
comemorativo é 17 de janeiro). E na capela de Madalena há um quadro do santo em sua caverna que é,
espantosamente, semelhante àquela em Rennes-le-Château. Bruzeau aponta para o fato de que nos
fundos da obra no altar de Sauniere há um arco e uma coluna: em celta o primeiro é pyla, em latim a
segunda é pila; foneticamente, ambas nos remetem à região de Le Pilat. E os picos mostrados no
horizonte parecem os mesmos da região de Le Pilat.
Sempre nos intrigou que, em seu baixo relevo, Sauniere deixara fora a principal característica
iconográfica de Maria Madalena, sua jarra de bálsamo,ou sainte baume... Seria essa a forma que
encontrara para dizer que os verdadeiros restos mortais dela não estavam em St-Maximim-la-Sainte-
Baume, na Provença, afinal de contas?
Com certeza, a julgar pelas notas fiscais da contratação de cocheiros e cavalos na região de Lyon, entre
1898 e 1899.'. parece que Sauniere vasculhou a região de Le Pilat, talvez procurando por aquilo que
fora deixado por sua amada Maria Madalena.
A pergunta nunca feita é por que alguém se daria tanto trabalho para encontrar o que afinal de contas
não passa de um saco de ossos. Pois embora os católicos sempre tenham tido uma predileção por restos
mortais, deve ser lembrado que muitos daqueles que aparentemente buscavam os ossos de Madalena ou
eram ocultistas ou católicos rebeldes. De qualquer forma, eles não pareciam ser pessoas sentimentais e
a era de comércio de relíquias já passara há muito tempo; então, por que devotaram tanto tempo e
tiveram tanto trabalho para procurá-los?
Talvez não fosse simplesmente um esqueleto o que estavam procurando: acreditava-se que o caixão ou
o túmulo continha um segredo, ou algo relacionado com o próprio corpo ou algo que estava dentro dele.
Henry Lincoln, provavelmente sendo irônico, sugeriu à imprensa francesa que esse 'algo' poderia ser
um certificado de casamento de Jesus e Madalena. Falando seriamente, o segredo deve ser algo
parecido, algo que prove isso inequivocamente, e que, se tornado público, provocaria uma grande
exaltação.
Face aos interesses específicos de grupos que haviam investigado, isso deve ser algo essencialmente
herético, cuja natureza poderia provocar uma profunda desestabilização da Igreja. Mas o que poderia
representar tamanha ameaça? Por que algo que, provavelmente, já tem 2000 anos de idade, teria
qualquer significado em nossa sociedade moderna?

CAPÍTULO X
Decifrando os Caminhos Secretos
A esta altura de nossa investigação nos deparamos novamente mente com a evidente importância de
Maria Madalena para a rede herética e secreta. Voltamos para onde começamos, para o simbolismo
inteligente e subliminar da "Senhora M" de Leonardo em sua obra A Última Ceia. Contudo, nos anos
que se passaram desde que fomos pela primeira vez atraídos pelo mundo obscuro da heresia européia,
cobrimos um enorme espaço de chão, em todos os sentidos. Chegara a hora de fazer um balanço: o que
havíamos descoberto?
A "Senhora M", que acreditávamos ser Maria Madalena, era obviamente de enorme importância para
Leonardo, que, assim se dizia, fora Grão-Mestre do Monastério de Sion. Nossos próprios encontros com
os membros do atual Monastério haviam reforçado nossas suspeitas de que ela também representava
algo de grande valor para eles. E o mesmo se aplica a João Batista, uma figura que dominou o trabalho
de Leonardo e a quem o Monastério parecia venerar com especial devoção.
As muitas viagens que fizemos ao sul da França revelaram que havia certo fundamento para se levar a
sério a lenda de que Maria Madalena ali vivera, mas suas ligações com o culto da Madona Negra
sugerem uma conexão pagã. Tudo o que se relaciona com a veneração a Madalena está fortemente
impregnado de sexualidade, o que é particularmente evidente na associação entre ela e o poema de amor
erótico do Antigo Testamento, o Cântico dos Cânticos.
Mas há aqui um claro paradoxo. Pois se de um lado existem indícios de que Madalena era a mulher de
Jesus, ou pelo menos sua amante, por outro lado ela é persistentemente associada com as deusas do
mundo pagão. Isso nos parece totalmente irracional - por que diabos a esposa do Cântico dos Cânticos
estaria vinculada dessa forma com personagens como Diana, a Caçadora, e com a deusa egípcia do
amor e da magia, Ísis? Essa era uma pergunta recorrente em nossas pesquisas.
Durante toda a nossa investigação, indivíduos e grupos, como os templários, São Bernardo de Clairvaux
e o abade Sauniere, eram freqüentemente encontrados girando em torno do tema central do Feminino.
Embora para alguns deles isso não passasse talvez de um mero ideal filosófico, o próprio fato de se ter
atribuído ao tema um rosto distintamente feminino indica uma devoção mais específica. Ela era, se não
Madalena, então Ísis, a antiga Rainha dos Céus e consorte do deus morto-ressurrecto Osíris. Com
certeza, essa cadeia de associações, Madalena/Madona Negra/Ísis, sempre envolvera os assuntos do
Monastério. Para esses a Madona Negra representava tanto Madalena quanto Ísis, simultaneamente.
Isso, contudo, é muito estranho, pois a primeira é uma santa do cristianismo e a segunda é uma deusa
pagã: qual seria a possível conexão entre elas?
Como já vimos, os cátaros tinham, ao que parece, visões inaceitáveis e heterodoxas sobre Madalena: na
verdade, toda a cidade de Béziers foi trespassada pela lâmina das espadas em razão dessa heresia. Para
eles, ela havia sido a concubina de Jesus, uma idéia que curiosamente encontra eco nos Evangelhos
Gnósticos, que a descrevem como a mulher a quem Jesus freqüentemente beijava na boca e a quem
amava acima de todos. Os cátaros realmente acreditavam nisso, embora com a maior relutância, pois a
sua própria versão do gnosticismo considerava o sexo e a procriação como sendo, na melhor das
hipóteses, um mal necessário. Essa idéia do relacionamento de Madalena com Jesus não lhes foi
passada pelos Bogomils, seus precursores, sendo na verdade uma visão comum no sul da França
naquela época, em uma cultura que buscava exaltar o Feminino de todas as formas, como demonstra o
florescer da tradição trovadoresca. E, como já vimos, o tratado "Irmã Catarina' revela que as idéias
sobre Maria Madalena encontradas nos Evangelhos Gnósticos foram, de algum modo, transmitidas ao
século XIV.
Curiosamente, descobrimos que aqueles epítomes da masculinidade, os cavaleiros templários, ou pelo
menos seu círculo interno, estavam totalmente comprometidos com a idéia da exaltação do Feminino.A
intensidade de sua veneração às Madonas Negras não tinha rival, e sua busca cavalheiresca pelo amor
transcendental estava por trás das grandes lendas do Santo Graal.
Os templários tinham uma paixão insaciável por conhecimento, e a busca por tal tesouro era sua
principal motivação. Pilhavam conhecimento onde quer que o encontrassem: dos árabes, tomaram os
princípios da geometria sagrada, e seus aparentemente íntimos contatos com os cátaros acrescentaram
um verniz extra de gnosticismo às suas já heterodoxas idéias religiosas. Já nos seus primórdios os
interesses dessa ordem de cavaleiros eram essencialmente ocultistas: a pouco convincente história de
suas origens como protetores dos peregrinos cristãos à Terra Santa pelo menos chama nossa atenção
para os fatos estranhos que circundavam a Ordem.
A maior concentração de propriedades templárias na Europa encontrava-se no Languedoc, essa estranha
região do sudoeste da França que parece ter funcionado como ímã para muitos grupos heréticos. O
catarismo, no seu apogeu, praticamente se tornara a religião oficial da região, e foi lá que o movimento
dos trovadores nasceu e prosperou. Pesquisas recentes demonstraram que os templários praticavam
alquimia. As construções de várias cidades no Languedoc, como a de Alet-les-Bains, ainda portam
símbolos alquímicos complexos e têm também fortes ligações com os templários.
Após os sinistros eventos relacionados com a supressão oficial dos templários, a Ordem passou a fazer
parte do mundo oculto e continuou a exercer influência sobre muitas outras organizações. Como os
templários fizeram isso, e quem realmente herdou seu conhecimento, nunca se soube ao certo, até os
últimos dez anos. Gradualmente veio à tona que os templários continuaram a existir como rosa-cruzes e
maçons, e que o conhecimento adquirido por eles fora passado a essas sociedades.
Um exame cuidadoso desses grupos revelou suas recorrentes preocupações subjacentes. Uma delas é a
grande, talvez excessiva, veneração por um ou ambos os Santos João; João Evangelista (ou O Amado) e
João Batista. Isso causa certa perplexidade, pois os grupos que parecem considerá-los tão sagrados
dificilmente são cristãos ortodoxos, chegando mesmo a considerar Jesus com certa frieza. Um desses
grupos é o Monastério de Sion. Mais desconcertante, porém, nesse contexto, é o fato de que embora o
Monastério dê a seus sucessivos Grão-Mestres o nome de João, Pierre Plantard de Saint-Clair afirma
que o título do primeiro dessa linhagem, "João I", é "simbolicamente reservado a Cristo".' É o caso de
perguntar por que seria uma honra para Cristo ser chamado de João.
Talvez a resposta esteja na idéia, compartilhada por essas sociedades, de que Jesus passou seus
ensinamentos secretos para o jovem São João, e essa é a tradição mantida de forma tão zelosa pelos
templários, rosa cruzes e maçons. E, ao que parece, João Evangelista foi confundido, aparentemente de
modo deliberado, com João Batista.
A própria idéia de existir um Evangelho secreto de João era comum entre os "heréticos", dos cátaros do
século XII ao Levitikon. É curioso que esse veio joanita permeie, de modo tão consistente e difundido,
esses grupos, porque é também um dos menos conhecidos. Talvez assim seja simplesmente porque o
manto do segredo foi particularmente bem-sucedido em ocultá-lo dos olhos do mundo durante tanto
tempo.
O outro tema principal que percorre os diversos afluentes dos "caminhos secretos" da heresia é o da
exaltação do Princípio Feminino, especificamente o reconhecimento do sexo como um sacramento. Os
alquimistas da Grande Obra, por exemplo, têm evidentes paralelos com os rituais sexuais do tantra,
embora só recentemente essas conotações tenham sido compreendidas. Ironicamente, foi só quando
nossa cultura tomou conhecimento do tantra que as práticas de muitas tradições ocidentais antigas
finalmente passaram a fazer sentido.
Desde há muito tempo se busca a sabedoria feminina, tanto no sentido filosófico como naquele segundo
o qual ela era conferida magicamente, através do ato sexual. Essa busca pela sabedoria feminina,
Sophia, é o fio que une todos os grupos que investigamos: por exemplo, os primeiros gnósticos, os
grupos herméticos, os templários e seus sucessores da Maçonaria do Ritual Escocês Purificado. O texto
gnóstico Pistis Sophia liga Sofia a Maria Madalena, e Sofia também estava intimamente associada com
Ísis - talvez isso ajude a explicar a aparente mistura que o Monastério de Sion faz da santa com a deusa.
Contudo, isso é apenas uma pista, não a resposta.
A persistente importância de Madalena não está sendo posta em dúvida. Contudo, seus restos mortais
foram procurados, e possivelmente ainda o são, com um fervor inexplicável. No século XIII, Charles II
d'Anjou empreendeu essa busca com um zelo fanático, embora seu fracasso tenha sido notório, pois
dois séculos depois um descendente seu, o mais famoso René d'Anjou, ainda estava à procura deles. Já
no final do século XIX, o mesmo desejo ardente de encontrar os restos físicos de sua amada Madalena
parece ter consumido o abade Sauniere de Rennes-le-Château.
De um jeito ou de outro, a Madalena guarda a chave de um grande mistério, um mistério que se tem
mantido zelosa e cruelmente em segredo através dos séculos. E parte desse segredo envolve
intimamente João Batista (e/ou talvez João Evangelista). Quando, finalmente, percebemos que tal
segredo existia, começamos rapidamente a retirar o pó e as teias de aranha da história oficial, na
tentativa de assim lançar-lhe alguma luz. Essa tarefa, porém, não era nada fácil; os grupos e
organizações que ao longo dos anos haviam guardado esse conhecimento desenvolveram meios de
manter os forasteiros bem longe da verdade. Embora alguns poucos nos tenham dado pistas e
indicações, ninguém estava disposto a nos entregar o segredo central. Tudo o que sabíamos era que
todos os indícios sugeriam que o mistério fora erigido sobre um alicerce que essencialmente incluía
Sophia e João. Esses temas eram fundamentais, mas não tínhamos nenhuma idéia do porquê, embora
uma das pistas esteja no fato de que esse segredo, qualquer que seja ele, com certeza não iria reforçar a
autoridade da Igreja. Com efeito, essa grande e desconhecida heresia pareceria encerrar a maior de
todas as ameaças, não apenas ao catolicismo mas ao cristianismo tal como o conhecemos. Os grupos
que guardaram o segredo realmente acreditavam estar de posse de algum conhecimento sobre as
verdadeiras origens do cristianismo e mesmo sobre o próprio Jesus.
Qualquer que seja a natureza desse segredo, é algo de óbvia relevância e significado para os séculos
XIX e XX. Em Rennes-le-Château, Sauniere entretinha não apenas representantes da alta sociedade
parisiense, como Emma Calvé, como também políticos e membros das famílias imperiais. Em nossa
época, Pierre Plantard de Saint-Clair e o Monastério de Sion estiveram associados a figuras como
Charles de Gaulle e Alain Poher, proeminente estadista francês que por duas vezes foi presidente
provisório.' Boatos recentes estabeleceram um elo entre o ex-presidente francês François Mitterand e
Pierre Plantard de Saint-Clair. 'Mitterand visitou Rennes-le-Château em 1981, quando foi fotografado
junto à torre Magdala e próximo à estátua de Asmodeus, na igreja.' Talvez seja significativo que ele
tenha nascido em Jarnac, onde foi enterrado em uma cerimônia privada, enquanto líderes mundiais
assistiam aos serviços religiosos na igreja de Notre-Dame, em Paris. De acordo com os estatutos do
Monastério de Sion da década de 1950, Jarnac há muito era uma de suas sedes.'
É muito difundida a crença de que o Monastério de Sion exerce uma influência real na política européia
e mesmo mundial. Mas por que o assunto que estamos investigando interessaria ao mosteiro, por mais
interessante que seja do ponto de vista histórico e filosófico? Estaria isso ligado com a promessa de
"virar o cristianismo de cabeça para baixo" anunciada pela união do Monastério de Sion com a "Igreja
de João" que discutimos anteriormente?
A única coisa que Maria Madalena e João Batista tinham em comum era o fato de ambos serem santos e
personagens históricos encontrados no Novo Testamento. A única rota lógica para pesquisas mais
profundas seria investigar suas vidas e ações, na esperança de que isso pudesse revelar a razão de seu
persistente apelo para o mundo das tradições heréticas ocultas. Se tivéssemos alguma esperança de
chegar a compreender a suprema importância conferida a eles pelos iniciados da maioria dos grupos
esotéricos sérios e esclarecidos, então teríamos que começar por ler a Bíblia atentamente.

Parte Dois
As Teias da Verdade
CAPÍTULO XI

As Inverdades do Evangelho
Na Páscoa de 1996, a mídia britânica dedicou grande atenção ao que parecia ser uma descoberta
surpreendente - um ossário, encontrado em Jerusalém, que continha os ossos de um pequeno grupo de
pessoas, entre as quais estava "Jesus filho de José". As outras ossadas eram de duas Marias (uma das
quais trazia uma inscrição em grego) - dentro desse contexto, possivelmente a Virgem e a Madalena -,
um José, um Mateus e um "Judas, filho de Jesus". Obviamente, esses nomes, encontrados assim juntos,
provocaram certo alvoroço entre os cristãos, embora as implicações de tal descoberta não fossem,
necessariamente, do seu agrado, afinal; o cristianismo foi fundado sobre a crença de que Jesus retornara
dos mortos e ascendera em carne e osso aos céus. Encontrar seus ossos seria devastador. Contudo,
seriam realmente seus ossos e, os outros, os de sua família?
Deve-se admitir que muito provavelmente não eram. É bem possível que não passe de mera
coincidência, pois apesar da repercussão especial que os nomes têm entre os cristãos eram nomes
comuns na Palestina, do primeiro século. A razão, porém, pela qual essa descoberta ganhou importância
foi a intensidade do crescente debate que causou. Os programas de televisão e a imprensa escrita de
qualidade se confinavam a uma única questão: se pudesse ser comprovada a suposta origem daqueles
ossos, o que isso significaria para o cristianismo? E para nós um dos aspectos mais reveladores sobre o
assunto é que muitos cristãos sentiram-se atordoados e afrontados diante da idéia de que Jesus pudesse
ter sido um homem comum. Para muitos, chega mesmo a ser surpresa o fato de que o nome Jesus fosse
comum naquela época.
Embora seja compreensível que os cristãos devotados desejem manter intocada sua visão de Jesus como
o Filho de Deus, e talvez decidam simplesmente ignorar o que os não-cristãos possam dizer sobre ele,
ainda assim é estranho que tantos cristãos ignorem a quantidade de imprecisões contidas nos relatos dos
Evangelhos. Nunca houve tanta informação disponível sobre o assunto; ao longo dos últimos cinqüenta
anos, escreveram-se livros que apresentam uma enorme diversidade de opiniões relativas a Jesus e seu
movimento e que oferecem as mais variadas (e algumas até divertidas) teorias. Entre as hipóteses
divertidas existem idéias como as de que Jesus era um pai divorciado com três filhos, um maçom, um
budista, um feiticeiro, um hipnotizador, o iniciador de uma linhagem de reis franceses, um filósofo
cínico, um cogumelo alucinógeno e até mesmo uma mulher! Essa explosão de idéias bizarras e
fantásticas resultam em parte da prontidão da civilização moderna para questionar, mas a razão que
possibilitou o surgimento de tais idéias é que os estudos mais recentes revelaram que a história
tradicional de Jesus é cheia de falhas e portanto bastante frágil. Contudo, embora essas idéias possam
florescer em virtude do vácuo existente, todas se apóiam no fato de os Evangelhos terem sido não
apenas reinterpretados, mas praticamente reescritos.
Esse vácuo só pôde ser percebido quando as pesquisas dos fatos forneceram um contexto histórico.
Descobertas arqueológicas, tais como os textos Nag Hammadi e os Manuscritos do Mar Morto, têm
revelado muito mais informações sobre a época e a cultura em que Jesus viveu, e de repente parece que
muitos aspectos do cristianismo que sempre foram considerados exclusivos, não o eram. Mesmo os
conceitos cristãos mais batidos e familiares agora podem ser vistos como imbuídos de um significado
completamente diferente dentro do contexto da Palestina do primeiro século.
Por exemplo, um lema que os cristãos evangélicos particularmente gostam de exibir na fachada de suas
igrejas é "Jesus Cristo é o Senhor". Para eles essa frase incorpora a idéia de que Jesus era literalmente
divino, o Senhor, Deus encarnado. A frase foi extraída dos Evangelhos na crença de que se tratava de
um título dado a Jesus por seus discípulos, em reconhecimento de sua condição única. Porém, como nos
diz o respeitado estudioso da Bíblia, Geza Vermes, era apenas um termo comum utilizado para
demonstrar respeito, como o que as crianças usavam quando se dirigiam aos pais ou uma esposa ao
falar com o marido, o equivalente a "senhor". " Não passa de um costume comum, que certamente não
tem nada de espiritual ou divino. Ao longo dos séculos, porém, a frase ganhou vida própria e é aceita
quase como uma prova de que Jesus é o Senhor Absoluto.
Um outro exemplo de como a tradição cristã tornou-se fato histórico é o das comemorações da Páscoa e
do Natal, as mais importantes do cristianismo. Todo ano milhões de cristãos em todo o mundo celebram
o nascimento do menino Jesus no dia 25 de dezembro. A história da natividade é amplamente
conhecida: Maria era uma virgem que concebeu através da intervenção do Espírito Santo; não havia
nenhum quarto na hospedaria para ela e seu marido José, então a criança nasceu em uma estrebaria (ou
numa caverna, segundo algumas versões), e os três reis magos e os pastores vieram adorar o recém-
nascido Salvador. Esse relato pode não ser o favorito dos cristãos e teólogos mais sofisticados, mas é
uma das primeiras histórias que se contam às crianças, tornando-se um "Evangelho" desde tenra idade.
Quando o papa considerou prudente explicar que Jesus não nascera realmente em 25 de dezembro, mas
que a data fora escolhida porque já era um festival do solstício do inverno para os antigos pagãos, a
declaração causou um certo alvoroço. Para a maioria dos cristãos comuns até isso representou uma
grande revelação. É quase inacreditável que tal declaração tenha sido feita apenas em 1994. No entanto,
é apenas a ponta do iceberg, pois os teólogos já sabiam há muito tempo que toda a história do Natal é
apenas um mito.
A extensão do quanto os cristãos são mantidos deliberadamente na ignorância, por aqueles que sabem
mais, vai muito, muito longe: a data natalina de 25 de dezembro não é só a suposta data de nascimento
de Jesus; é também a de muitos deuses pagãos como Osíris, Attis, Tammuz, Adonis, Dioniso e muitos
outros.
Eles também nasceram em condições humildes, tais como cavernas, e seu nascimento também foi
testemunhado por pastores e precedido por sinais e prodígios, inclusive a visão de uma nova estrela. E
entre os seus muitos títulos estava o de "Bom Pastor" e "Redentor da Humanidade". Se confrontado
com os indícios de Jesus ter sido apenas mais um, em uma longa fila de tradições de "deuses-mortos-
ressurrectos", o clero tende a refugiar-se no conceito pouco satisfatório de que os pagãos antigos de
algum modo tinham uma vaga idéia de que algum dia haveria um verdadeiro deus salvador, mas
tiveram de se contentar com uma grotesca paródia do cristianismo que estava por vir.
Embora abordemos detalhadamente as verdadeiras origens do cristianismo mais à frente, é suficiente
por ora dizer que a data comum de 25 de dezembro não é a única semelhança entre a história de Jesus e
a dos deuses pagãos. Osíris, por exemplo, consorte de Ísis, morreu pelas mãos dos ímpios em uma
sexta-feira e magicamente "ressuscitou', após ter estado entre os mortos por três dias. E os mistérios de
Dioniso eram celebrados pela ingestão do deus através de uma refeição mágica composta de pão e
vinho, simbolizando seu sangue e sua carne. Esses "deuses-mortos-ressurrectos' já foram reconhecidos
há muitos anos pelos teólogos, historiadores e estudiosos da Bíblia, embora ainda pareça haver uma
conspiração tácita para manter tal conhecimento apartado do "rebanho' da Igreja.
Com toda a recente enxurrada de novos materiais relacionados com as origens do cristianismo, é
simplesmente muito fácil ser tomado de entusiasmo e abraçar uma certa idéia sem a precaução e o
discernimento necessários. Se as fontes são mal interpretadas, então as conclusões obtidas podem estar
muito longe da verdade. Por exemplo, uma vasta quantidade de palavras foram dedicadas aos
Manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947: alguns deles parecem lançar nova luz sobre os
primórdios do cristianismo. Certas passagens dos manuscritos convenceram muitos de que Jesus e João
Batista faziam parte dos essênios, uma seita com sede em Qumran, nas proximidades do Mar Morto.
Não é exagero dizer que tal é considerado por muitas pessoas como incontestavelmente comprovado.
De fato, não existe nenhuma prova de que os manuscritos sejam de origem essênia - essa foi apenas a
suposição imediata ao terem sido encontrados. Há uma outra suposição: de que os documentos eram
textos pertencentes a uma única seita, os essênios ou alguma das muitas outras que se refugiaram
naquela região. Contudo, o proeminente professor de história judaica Norman Golb, que acompanhou
bem de perto a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto e o desdobramento dos estudos a eles
relacionados, recentemente desafiou tal suposição. Ele demonstrou que a alegação de serem
provenientes de uma única comunidade, ou mesmo de que algum dia houve uma comunidade religiosa
em Qumran, não encontra apoio nem nos achados arqueológicos, nem nos próprios manuscritos. Golb
acredita que os manuscritos são de fato parte da biblioteca do Templo, e que foram escondidos ali
durante a revolta judia em 70 d.C.
Se Golb estiver certo, e tudo indica que sim, então praticamente todos os livros escritos sobre os
Manuscritos do Mar Morto são supérfluos. Basicamente o que muitos autores fizeram foi tentar
reconstruir as crenças de uma suposta seita a partir de uma coleção de documentos que na verdade
provêm de uma variedade de grupos diferentes. É como deduzir as crenças de alguém observando o que
ele guarda na sua estante: nossa própria biblioteca particular, por exemplo, revela abertamente nosso
interesse em assuntos religiosos e esotéricos, mas como nossos livros cobrem uma extensa gama de
pontos de vista -céticos, racionais e crédulos -, obviamente não podem representar aquilo em que
realmente acreditamos. (A título de comparação, os textos do Nag Hammadi nunca foram considerados
como produto de uma única seita.)
Embora a conexão dos manuscritos do Mar Morto com os "essênios" seja uma falácia, apesar de seu
status de mito moderno, eles continuam a ter uma importância histórica profunda para a compreensão
do judaísmo daquela época. Porém, como é improvável que sejam de grande utilidade para qualquer
estudo sobre as origens do cristianismo, os manuscritos não ocupam muito espaço nessa nossa
investigação.
O perigo de basear conclusões de alcance tão amplo em premissas insuficientes é exemplificado pelo
livro The Hiram Key, de Knight e Lomas. Eles argumentam que, como alguns dos Manuscritos do Mar
Morto contêm idéias similares às da maçonaria, e como afirmam que "não há dúvidas hoje de que os
autores dos Manuscritos do Mar Morto (...) foram os essênios" então seria de deduzir que os essênios
foram os precursores da maçonaria. Junte-se a isso sua convicção de que Jesus era essênio e a conclusão
é óbvia: Jesus era maçom.
Entretanto, como já vimos, os Manuscritos não foram escritos pelos essênios e não está provado que
Jesus pertenceu a essa seita, de modo que o argumento todo cai por terra. No mínimo, isso serve de
alerta aos pesquisadores excessivamente entusiasmados.

Percebemos então, no ponto em que estávamos de nossa investigação, que há muito tempo se pedia uma
reavaliação radical do status de João Batista e de Maria Madalena. Afinal, parecia que essas duas
figuras históricas haviam conquistado um persuasivo direito de serem levadas a sério, pelo menos no
que diz respeito a um tenaz movimento secreto europeu, que incluíra algumas das mentes mais
brilhantes de cada época.
O tema principal daquilo que chamamos de Grande Heresia Européia era a veneração inexplicável,
chegando em muitos casos à própria adoração, a Maria Madalena e João Batista. No entanto, isso
representava mais do que algum tipo de não ortodoxia deliberada, uma rebeldia persistente contra a
Igreja apenas e tão somente pelo gosto de ser rebelde? Haveria alguma substância por trás dessas
heresias? Para descobrirmos se havia alguma base factual para tais crenças, nos voltamos para o Novo
Testamento, em particular para os quatro Evangelhos canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Confessamos que de início ficamos um tanto espantados com a conexão "herética" entre o Batista e a
Madalena. Não só nada havia na versão oficial do cristianismo que os ligasse, apesar da clara devoção
de ambos a Jesus, como também uma investigação superficial das próprias heresias foi infrutífera no
sentido de propiciar uma base comum plausível. Suas imagens representavam pólos opostos. João
Batista figura como um asceta que morreu em virtude de seus inflexíveis padrões morais, embora, o que
é interessante, não tenha morrido como um mártir do cristianismo. (De fato, não há nenhuma indicação
de que ele tenha invocado os ensinamentos ou a moral de Jesus quando de seu encontro fatídico com
Herodes Antipas.) E, por outro lado, acredita-se que Madalena era uma prostituta, embora, de acordo
com o relato tradicional, tenha se arrependido e passado o restante de sua longa vida em penitência. De
algum modo João e Maria não parecem ser parceiros naturais: pelo menos não de acordo com os
Evangelhos, nos quais não há qualquer menção de que eles sequer tenham se conhecido.
Contudo, existem indicações de que eles pelo menos sabiam um do outro. Os estudiosos reconhecem
que o Batista era bastante afamado, em sua época e lugar, como um pregador virtuoso - que saiu do
deserto para conclamar os homens a se arrependerem -, enquanto Maria era uma das seguidoras ou
discípulas de Jesus, e tinha um papel importante no grupo. E acredita-se que João e Jesus eram primos,
ou pelo menos parentes sangüíneos. Lendo nas entrelinhas podemos imaginar que talvez João
conhecesse Madalena como a mulher que lavava os pés dos homens, trazia-lhes toalhas limpas e para
eles cozinhava. Talvez conhecesse vagamente sua reputação passada e desaprovasse sua presença como
sendo "impura'" - a menos, é claro, que ele próprio a tivesse batizado. Não existe registro de que isso
tenha acontecido, mas não há também nenhum registro de que algum dos apóstolos, nem mesmo São
Pedro, tenha sido batizado.
Contudo, investigações mais aprofundadas dos acontecimentos relacionados com as histórias contadas
na Bíblia dão algumas pistas sobre a ligação entre a Madalena e o Batista. A primeira grande ligação é a
de seus papéis complementares na carreira de Jesus como pregador. É João quem representa seu início e
Maria quem simboliza seu final.
João é quem inicia o ministério de Jesus através do ritual do batismo. Maria é o personagem central nos
acontecimentos relativos a sua morte e ressurreição.A conexão principal é a de que ambos realizaram
uma espécie de unção. O batismo de João com água é claramente análogo à unção com óleo de nardo de
Maria de Betânia, que muitos consideram ser a mesma pessoa que Maria Madalena. E foi esta última
quem ungiu o corpo de Jesus com mirra e babosa para que fosse enterrado.
A única grande semelhança entre esses dois personagens curiosamente atraentes, contudo, é a de que,
embora ambos obviamente cumprissem uma função ritual fundamental na vida de Jesus, somente foram
incluídos nos relatos evangélicos por condescendência. Eles entram e saem das páginas da Bíblia de
modo tão repentino como se fosse apenas para criar um peculiar efeito de dissonância. Se por um lado
lê-se a execução de João pelas mãos dos homens de Herodes, por outro lado, porém, não há qualquer
menção de Jesus ter sofrido por isso, ou de ter exortado seus seguidores a mostrar reverência pela
memória de João. Madalena subitamente aparece na história na hora da crucificação, em um papel que
demonstra claramente ser íntima de Jesus, e é a primeira a presenciar a Ressurreição - então por que ela
não é especificamente mencionada antes? Talvez porque os autores dos Evangelhos não tinham como
negar que João e Madalena desempenharam papéis tão fundamentais na história de Jesus que não
podiam ser totalmente excluídos; do contrário, porém, talvez nunca tivessem sido mencionados. Então o
que havia em João Batista e Maria Madalena que era tão ofensivo para os autores dos Evangelhos e
para os primeiros padres da Igreja?
Facilmente se percebe essa marginalização deliberada no caso de Madalena. Se por um lado sua
importância é óbvia na história de Jesus, por outro não há praticamente qualquer informação sobre ela
nos Evangelhos. Afora uma menção encontrada no Evangelho de Lucas, por exemplo, ela faz sua
primeira aparição real como testemunha da crucificação. Não nos dizem como ela se tornara uma
seguidora, exceto pela insinuação, no relato da "expulsão dos sete demônios”, de que ela fora curada
por Jesus. Tampouco nos dizem qual foi precisamente o papel que ela exerceu, em especial no
sepultamento de Jesus.
De início supomos ingenuamente que qualquer mulher que fosse seguidora de Jesus teria recebido esse
tratamento pouco respeitoso pelo simples fato de ser mulher e, portanto, um cidadão de segunda-classe
para os judeus do primeiro século. Mesmo assim, as coisas devem ter mudado desde os tempos de Rute
e Naomi, cujas vidas são muito bem narradas no Antigo Testamento. E há a curiosa ênfase no
sobrenome ou título de Maria, Madalena. Pois, embora discutamos sua derivação mais adiante, ainda é
possível reconhecer - no próprio fato de ter sido utilizado pelos autores dos Evangelhos uma indicação
de que ela era uma mulher financeiramente independente. Todas as outras mulheres nos Evangelhos são
definidas por sua condição de esposa, mãe ou irmã de algum homem importante. Mas aqui temos
apenas Maria Madalena. É como se os autores dos Evangelhos esperassem que seus leitores soubessem
quem ela era.
Os Evangelhos falam que as mulheres seguidoras de Jesus “lhe assistiam com suas posses”, indicando
que elas tinham algumas posses para a ele assistir. Faria ela parte de um grupo de mulheres
independentes e de recursos que essencialmente mantinham o grupo de Jesus? Muitos estudiosos assim
o acreditam. Porém, qualquer que fosse sua condição financeira, Maria Madalena, quando mencionada
com o nome inteiro, sempre está no topo da lista das mulheres discípulas, antes mesmo de Maria, a Mãe
- exceto quando há uma razão específica para se colocar a Virgem em primeiro lugar.
O Monastério de Sion acredita que Maria Madalena é a mesma Maria de Betânia, irmã de Lázaro, e a
que untou os pés de Jesus. Se assim é, então o tratamento rude que lhe dispensam os autores dos
Evangelhos chama ainda mais a atenção. Parece que eles deliberadamente tornaram sua identidade e
papel ainda mais difíceis de determinar. Os Evangelhos Sinópticos chegam ao ponto de deixar anônima
a mulher que unge os pés de Jesus, embora seja muito provável que os autores soubessem quem ela era
e a razão de sua importância.
Esse processo de marginalização também parece ter sido aplicado a João Batista. Estudiosos
contemporâneos do Novo Testamento reconhecem que o relacionamento entre João e Jesus não pode
ser precisamente definido. Muitos deles assinalam a demasiada ênfase dada ao papel de João como
mero precursor de Jesus, sugerindo que ele “protesta demais”. É significativo que o Evangelho de
Marcos - provavelmente o mais antigo e no qual Mateus e Lucas se basearam - seja menos insistente
que esses dois outros textos no que tange ao papel secundário de João. Isso levou muitos estudiosos a
concluir que a subserviência de João a Jesus, que é repetida ad nauseam, na verdade era uma forma de
encobrir uma rivalidade entre os dois e entre seus respectivos grupos de discípulos.
Um exame escrupuloso dos Evangelhos dá pistas dessa rivalidade. Para começar, uma leitura sem
vieses revela que muitos dos primeiros discípulos de Jesus, e os mais famosos, saíram na verdade das
fileiras dos seguidores de João. Por exemplo, muitos admitem que o jovem João, "o Amado" (que,
como vimos, era figura central em muitas crenças "heréticas"), fora um dos acólitos do Batista, de quem
inclusive adotara o nome em sinal de respeito. Os discípulos de João continuaram após a decapitação de
seu líder como um grupo separado: dizem-nos que alguns deles foram buscar o corpo de João, e existem
passagens no Novo Testamento nas quais os seguidores de Jesus debatem com os de João sobre seus
respectivos estilos de vida.
Ainda mais revelador, no entanto, é o registro de que João teria dúvidas sobre Jesus ser realmente o
Messias - em uma passagem sobre a qual a Igreja pouco se manifesta -, o que não chega a surpreender.
Quando João é encarcerado na prisão de Herodes, envia dois de seus discípulos para perguntar a Jesus:
"És tu o que hás de vir, ou devemos esperar por outro?"' Esse episódio é particularmente embaraçoso
para os teólogos. Por um lado, vêm João Batista como aquele que fora designado por Deus para
preparar o caminho para o Messias e mostrá-lo como tal aos povos, reconhecendo assim nele alguma
orientação divina - porém, o "precursor" então questiona se fez ou não a escolha certa!
Existem alguns outros sinais menos óbvios, mas igualmente reveladores, da rivalidade entre os dois
homens até mesmo nas palavras registradas de Jesus. O primeiro está na bem conhecida passagem na
qual Jesus parece glorificar João perante a multidão, dizendo que "entre os nascidos das mulheres, não
veio ao mundo outro maior que João Batista." Entretanto, ele em seguida acrescenta a confusa ressalva
de que "o que é menor no reino dos céus, é maior do que ele" . O significado exato dessa passagem tem
sido objeto de intenso debate. O eminente estudioso do Novo Testamento, Geza Vermes, comparou
esse uso da frase "menor no reino dos céus" com outros exemplos e concluiu que se tratava de um
circunlóquio - uma frase impessoal e formal - que também se referia ao próprio orador." Em outras
palavras, Jesus estava dizendo à multidão que "João pode ter sido um grande homem, mas eu sou
maior."
Entretanto, há uma outra interpretação muito mais óbvia que nunca vimos ser discutida por nenhum
estudioso da Bíblia. É o reconhecimento de que a frase "nascidos das mulheres" pode ser tomada como
um insulto, pois sugeria fraqueza," - nesse caso, toda a passagem ganha um matiz completamente
diferente. Talvez a declaração de Jesus "entre os nascidos das mulheres, não veio ao mundo outro maior
que João Batista" possa ser tomada como um insulto direto. Esse insulto parece ser reforçado pelo
comentário seguinte "o que é o menor no reino dos céus, é maior do que ele." Se Geza Vermes estiver
correto, ou seja, que Jesus estava dizendo que ele era maior, então dificilmente isso poderia ser um
elogio a João. No entanto, pode ter sido um tremendo insulto, significando que "mesmo o menor dos
meus seguidores é maior do que ele."
Foi sugerido que há também uma outra desfeita levemente velada a João - que teria sido óbvia para os
judeus do primeiro século - nos comentários de Jesus durante a discussão entre seus discípulos e os de
João: “Ninguém deita vinho novo em odre velho". Naquela época e lugar o vinho era muitas vezes
carregado em "garrafas" feitas com pele de animais, e João vestia peles de animais... No contexto dessa
discussão em particular, é muito provável que esse comentário fosse uma referência a João.
Está claro que essa rivalidade era bem conhecida pelos autores dos Evangelhos mesmo cinqüenta anos
após a crucificação (que é mais ou menos a época em que os textos foram escritos). Talvez os quatro
Evangelhos tenham sido escritos com a intenção oculta de minimizar a infame rivalidade e assegurar
que Jesus se sobressaísse como alguém em posição superior. De fato, não há dúvida de que os
evangelistas teriam ficado muito mais felizes se tivessem podido ignorar João completamente.
Portanto, é claro que o Batista e a Madalena - aquele que batizou Jesus e a que foi a primeira
testemunha de um aspecto fundamental do cristianismo, a Ressurreição - estão unidos pelo fato de que
os autores dos Evangelhos se sentiam, para dizer o mínimo, desconfortáveis com eles. Seria possível,
entretanto, descobrir o porquê, reconstruir seus verdadeiros papéis e restabelecer sua importância
original?

O problema principal é que os livros que compõem o Novo Testamento são pouco confiáveis como
fonte de informação. Como todos os textos antigos, é claro, foram submetidos a um inflexível processo
de edição, seleção, tradução e interpretação. Ao longo dos séculos, várias partes foram acrescentadas às
obras originais, algumas das quais não chegam a ter relevância, ao passo que outras são extremamente
significativas. Por exemplo, na primeira Epístola de João, sabe-se que a frase “Porque são três os que
dão testemunho no céu, o Pai, o Verbo e o Espírito Santo, e estes três são uma só coisa" foi
acrescentada tempos depois. Além disso, a história da "mulher pega em adultério" aparece somente no
Evangelho de João, e suas primeiras versões conhecidas não falam desse episódio". Sua autenticidade é
assunto de grande debate.
Um bom exemplo da confusão gerada pelas extravagâncias da tradução é a equivocada e generalizada
idéia de que Jesus era um humilde carpinteiro. A palavra utilizada no original em aramaico era naggar,
que pode significar um artífice da madeira ou um erudito ou homem instruído. No contexto, o último
significado é o que parece fazer mais sentido, pois não há nenhuma outra indicação em qualquer outro
lugar de que Jesus fosse uma espécie de artesão, e seus conhecimentos causavam comentários especiais
daqueles que o ouviam: a palavra naggar somente é utilizada quando as pessoas estão discutindo
especificamente sua erudição. Contudo, a idéia de que Jesus era carpinteiro está agora tão
indelevelmente gravada na história do cristianismo quanto o "fato” de que ele nasceu em 25 de
dezembro.
As datas em que os Evangelhos canônicos foram escritos têm sido objeto de intenso debate e
controvérsia. Como A. N. Wilson escreve:
Uma das mais curiosas características do estudo do Novo Testamento é o fato de que, embora
homens instruídos tenham passado séculos debruçados sobre documentos, nunca puderam responder,
para além de qualquer dúvida, a questões simples como onde foram escritos os Evangelhos, ou quando
foram escritos ou, ainda menos, por quem foram escritos.

Os manuscritos completos mais antigos de que se tem notícia datam do século IV; mas são claramente
cópias de textos mais antigos. Assim, os estudiosos tentaram estabelecer sua procedência analisando a
linguagem dos fragmentos remanescentes. Embora a questão não esteja conclusivamente resolvida, o
consenso atual é de que o Evangelho de Marcos é o mais antigo, tendo sido escrito talvez no começo
dos anos 70 d.C. Concorda-se também que os de Mateus e Lucas basearam-se em grande parte no de
Marcos e, portanto, devem ter sido escritos mais tarde, embora também incorporem materiais de outras
fontes. Acredita-se que o Evangelho de João seja o mais recente de todos, escrito provavelmente entre
90 e 120 d.C.
O quarto Evangelho,o de João, sempre foi considerado uma espécie de enigma. Mateus, Marcos e
Lucas, conhecidos coletivamente como Evangelhos Sinópticos, contam mais ou menos a mesma
história, colocando os acontecimentos praticamente na mesma seqüência e descrevendo Jesus de modo
semelhante, embora ainda haja muitas discrepâncias e incongruências em episódios isolados. Um bom
exemplo disso são os números e nomes diferentes, entre os três autores, das mulheres que foram visitar
o túmulo de Jesus. O Evangelho de João, entretanto, conta a história de Jesus em uma ordem muito
diferente e também inclui acontecimentos que os outros não mencionam.
Dois exemplos são as bodas em Caná, onde Jesus realiza seu primeiro milagre - transformando a água
em vinho -, e a ressurreição de Lázaro, que se torna, em João, um dos acontecimentos centrais. Que os
outros cronistas não tivessem ciência desses importantes episódios sempre foi motivo de perplexidade
para os historiadores bíblicos.
Entretanto, o Evangelho de João também difere na imagem que apresenta de Jesus. Enquanto os
Evangelhos Sinópticos contam a história de um professor de religião e realizador de milagres que se
encaixa perfeitamente dentro do panorama judaico, o Evangelho de João é muito mais místico e mais
gnóstico em seu estilo, dando muito mais ênfase à divindade de Jesus. Também busca explicar o
significado por trás da história à medida que ela se desenrola.
A visão comum hoje é a de que Jesus era um líder religioso judeu que foi rejeitado por seu povo.
Muitos comentadores contemporâneos nem sequer chegam a levar em consideração a hipótese de que
ele queria fundar uma nova religião, e que o cristianismo tenha sido quase acidental, pois os
ensinamentos de Jesus prosperaram em todo o restante do Império Romano. Isso explica, dizem eles,
idéias como a da deificação de Jesus: ele tornou-se conhecido como o Filho de Deus, literalmente o
Deus encarnado, para atrair a simpatia do mundo romanizado, que estava acostumado com a idéia de
que seus governantes e heróis tornavam-se deuses. Em razão do Evangelho de João discorrer sobre
esses temas, presume-se que tenha sido escrito em um estágio posterior do desenvolvimento do
cristianismo, quando este estava se firmando no contexto mais amplo do Império Romano.
O problema é que o Evangelho de João é o único que realmente afirma estar baseado no testemunho
ocular de alguém que presenciara a maioria dos acontecimentos da vida de Jesus: “o discípulo amado”,
tradicionalmente considerado como sendo o jovem João - daí atribuir-se a ele a autoria do Evangelho.
O Evangelho de João com certeza contém os detalhes mais circunstanciais, como os nomes dos
indivíduos que aparecem anonimamente nas outras versões. Por isso, alguns estudiosos" argumentam
que João é o primeiro dos Evangelhos, embora haja várias outras interpretações, desde a idéia de que
João simplesmente tinha uma imaginação melhor até a hipótese de ter usado o testemunho em primeira
mão, porém acrescentando-lhe mais tarde sua própria interpretação.
O Evangelho de João, sob qualquer ponto de vista, é muito estranho. Há muito ele tem desnorteado até
mesmo os estudiosos mais eruditos em virtude de suas mensagens confusas: de fato, seu tom
inconfundível é frontalmente contradito pelos fatos que ele tem o cuidado de colocar perante o leitor.
Em razão das informações detalhadas que fornece, o Evangelho de João é reconhecido como o mais
valioso historicamente, ainda que seja considerado como o mais distante no tempo em relação à vida de
Jesus. Demonstra um conhecimento mais preciso sobre as práticas religiosas judaicas, embora seja o
menos judaico e o mais helenista de modo geral. É de longe o mais hostil aos judeus - suas violentas
críticas a eles revelam verdadeiro ódio -, embora deixe mais claro do que os outros Evangelhos que
foram os romanos, não os judeus, os responsáveis pela execução de Jesus. E é também o mais estridente
na sua marginalização de João Batista, devotando muitas palavras a sua suposta inferioridade e
ignorando completamente o destino subseqüente do Batista - ainda que, ao contrário dos Evangelhos
Sinópticos, nos conte que Jesus recrutou dentre o grupo de João seus primeiros discípulos e que os
seguidores de ambos os líderes continuaram a ser rivais, revelando assim que João tinha sua
importância.
Essa evidente confusão, entretanto, é facilmente explicada pelas muitas fontes que foram utilizadas a
fim de compilar o Evangelho de João, inclusive os relatos das testemunhas da missão de Jesus. E, como
veremos, algumas dessas fontes são particularmente reveladoras.
Muitos cristãos modernos acreditam que o Novo Testamento foi uma espécie de inspiração divina.
Contudo, os fatos dizem o contrário: foi apenas em 325 que o Concílio de Nicéia reuniu-se para debater
quais dos muitos livros seriam incluídos no que iria se tornar o Novo Testamento. Não existem dúvidas
de que os homens presentes no Concílio colocaram nessa tarefa seus próprios preconceitos e interesses,
e ainda, infelizmente, que estamos colhendo o que eles plantaram. Por fim, o Concílio estabeleceu que
apenas os quatro Evangelhos seriam incluídos no Novo Testamento, rejeitando assim os cinqüenta e
tantos outros livros que tinham mais ou menos o mesmo direito de ser considerados autênticos."
Com um único golpe, as visões expressas, implícita ou explicitamente, no material rejeitado tornaram-
se sinônimo de heresia. (De fato, a palavra heresia originalmente significava apenas escolha.) De certa
forma o mesmo tipo de processo de seleção empregado pelo Concilio de Nicéia no século IV ainda
continua a ser utilizado nos dias de hoje. Não é permitido ao público, de maneira geral, tirar suas
próprias conclusões sobre os textos remanescentes. Por exemplo, o Evangelho de Tomé, cuja existência
é conhecida há muito tempo, somente foi descoberto totalmente quando os textos do Nag Hammadi
foram revelados ao mundo em 1945. Porém, qualquer regozijo relacionado com sua descoberta deve ser
moderado pelo reconhecimento da verdadeira razão de sua aceitação pelos teólogos: o texto estava de
acordo com os quatro Evangelhos existentes, e foi por essa razão que se permitiu que eles passassem
pelo cânon não oficial (embora a Igreja Católica o declarasse herético). Outros textos, datando mais ou
menos da mesma época, foram descartados porque a ótica religiosa inserida neles não estava de acordo
com a do Novo Testamento. Trata-se geralmente dos textos que têm uma base gnóstica.
Os cristãos são criados com a noção de que a 'verdade dos Evangelhos' significa fatos de inspiração
divina, inequívocos, literais e sem qualquer ambigüidade. Muito poucos estudiosos contemporâneos,
entretanto, aceitam que o Novo Testamento seja a palavra de Deus, pois sabem que as palavras contidas
no Novo Testamento não são mais ou menos válidas do que qualquer outro relato que as pessoas fazem
cinqüenta anos ou mais depois da ocorrência dos acontecimentos que descrevem.
Será coincidência que os Evangelhos tenham sido escritos apenas após o primeiro missionário, Paulo,
ter evangelizado muitos países a leste do Mediterrâneo? Em suas cartas, Paulo não faz nenhuma
menção de que conhecia algo mais da vida e da obra de Jesus além do fato de que ele morrera e
retornara dentre os mortos. Será então que os Evangelhos foram criados para reforçar sua versão do
cristianismo ou para contradizê-la? Os autores dificilmente não teriam conhecimento do ministério de
Paulo.
Os relatos dos Evangelhos, como vimos, foram escritos pelo menos quatro décadas após a crucificação,
e as coisas tinham se modificado desde então - entre outras coisas, porque a “chegada do reino de
Deus”, conforme prometido por Jesus, não se havia materializado. Até mesmo esse lapso de tempo, é
claro, constitui enorme problema ao se avaliar a autenticidade dos Evangelhos, pois não há como saber
quais passagens foram baseadas em acontecimentos históricos reais, em boatos, em extrapolações de
boatos ou em completa e deliberada invenção. Muitas das palavras que hoje pensamos ter saído
diretamente da boca de Jesus podem não ter sido registradas de modo literal, ou mesmo não terem sido
ditas nunca, por ninguém. Algumas delas podem ter sido lembradas incorretamente mesmo por seus
seguidores (embora os povos de tradição oral, como os judeus, possivelmente mantivessem as narrações
muito “mais puras”, e por um período mais longo, do que faríamos hoje), e as palavras de alguma outra
pessoa podem ter sido atribuídas a Jesus. Ironicamente, entretanto, uma das únicas maneiras de
averiguar a autenticidade de um dito é o “princípio da dessemelhança": ou seja, verificar se ele
contradiz a mensagem dos Evangelhos de um modo gera1.Afinal, se contraria o espírito da maior parte
do texto, então é improvável que o autor o tenha formulado."

Ao longo de grande parte destes últimos dois mil anos, os Evangelhos foram considerados como sendo
de inspiração divina e contendo a mais absoluta verdade sobre Jesus, seus ensinamentos e sua
mensagem para a humanidade. Acredita-se que ele era o Filho de Deus, enviado para redimir o Homem
de seus pecados por um supremo ato de sacrifício e para estabelecer uma nova Igreja que suplantasse a
religião do Antigo Testamento - e, por conseqüência, a religião de todos os pagãos do mundo greco-
romano. Foi somente nos últimos duzentos anos que a Bíblia passou a ser objeto do mesmo tipo de
análise crítica que recebem outros documentos históricos, e que se buscou ajustar os ensinamentos e a
vida de Jesus ao contexto de sua época.
Seria de esperar que tal processo esclarecesse vários aspectos sobre o caráter e as motivações de Jesus.
Na verdade, tem acontecido o oposto. Embora essa abordagem tenha revelado que muitos pressupostos
estavam errados - por exemplo, Jesus não foi executado por iniciativa dos líderes religiosos judeus, mas
em razão de acusações de intriga política pelos romanos -, de nada serviu para responder a algumas das
questões mais fundamentais sobre ele. Podemos dizer o que Jesus não era, mas ainda é difícil afirmar o
que ele era."
O resultado disso é que, hoje em dia, o estudo do Novo Testamento está em crise. Não é possível entrar
em acordo sobre questões fundamentais como: Jesus afirmou ser o Messias? Afirmou ser o Filho de
Deus? Declarou ser o Rei dos Judeus? E é completamente impossível explicar o significado de muitas
coisas que ele fez. Não se pode nem mesmo propor uma explicação convincente para sua crucificação,
porque não há nada que Jesus tenha dito ou feito - nos moldes do que é relatado nos Evangelhos - que
pudesse ter ofendido tanto os líderes religiosos judeus ou os regentes romanos a ponto de os levar a
querer seu sangue. Muitas de suas ações simbólicas, como quando derruba as mesas dos banqueiros no
templo, ou mesmo o evento crucial da instituição da eucaristia na Última Ceia, não têm qualquer
relação com o judaísmo.
Mais surpreendente de tudo, entretanto, é o fato de que os estudiosos do Novo Testamento têm grande
dificuldade em explicar por que a religião deveria ter sido fundada em nome de Jesus em primeiro
lugar. Se Jesus realmente era o tão esperado Messias do povo judeu, então ele fracassou nesse papel,
pois foi humilhado, torturado e morto. Contudo, seus seguidores não só continuaram a venerá-lo como
também, levados pela devoção a ele, apartaram-se dos outros judeus.
Um bom exemplo dessa confusão acadêmica pode ser vista nas obras de dois proeminentes estudiosos
do Novo Testamento, Hugh Schonfield e Geza Vermes. Os paralelos entre os dois professores são
notáveis. Ambos eram judeus e desde cedo demonstraram grande interesse pelas origens do
cristianismo, devotando a maior parte de suas ilustres carreiras a esse assunto. Ambos perceberam que a
maioria dos estudiosos do cristianismo não conseguira enquadrar a busca pelo Jesus histórico no
contexto mais amplo da cultura judaica de sua época e lugar. Ambos esperavam encontrar as respostas
através de uma comparação cuidadosa dos relatos evangélicos com o judaísmo dos tempos de Jesus, e
ambos, além de muitos trabalhos acadêmicos, publicaram livros extremamente bem-sucedidos nos
quais apresentavam o resultado final do trabalho de suas vidas - Schonfield com The Passover Plot
(1965) e Vermes com Jesus the Jew (1973). As conclusões a que eles chegaram, entretanto, não
poderiam ser mais diferentes.
Vermes apresenta Jesus como um Hasid, espécie de herdeiros dos profetas do Antigo Testamento
semelhantes a xamãs, conhecidos por sua independência em relação ao judaísmo institucional e também
por seus milagres.
Ele argumenta que não há nada no Novo Testamento que indique que Jesus alguma vez tenha declarado
ser o Messias, muito menos o Filho de Deus - esses títulos foram atribuídos a ele posteriormente, por
seus seguidores. Schonfield, por outro lado, vê Jesus primordialmente como uma figura política que
trabalhava pela independência da Palestina do domínio romano e que, conscientemente, moldou suas
ações para que correspondessem às do Messias esperado, chegando mesmo ao ponto de
voluntariamente arquitetar sua própria morte na cruz.
Foi o The Passover Plot de Schonfield que revelou muitas outras razões ainda para sermos cautelosos
quanto a aceitar a “verdade dos Evangelhos". Sua obra mostra que por trás de Jesus e de seus
seguidores conhecidos havia um outro grupo, secreto, com uma agenda própria e interesse em
manipular sua história. Embora o argumento de Schonfield seja conhecido, vale a pena resumi-lo aqui.
Em todas as histórias dos Evangelhos, Jesus repetidamente depara com certas pessoas que não são nem
seus discípulos mais próximos, nem parte da multidão de seus seguidores, e que geralmente são
bastante prósperas – como José de Arimatéia, que aparece de repente, vindo de lugar nenhum, para
monopolizar os preparativos do sepultamento de Jesus. Os personagens centrais dessa organização eram
o grupo de Betânia, que Schonfield chama de a "base de operação"" de Jesus.
Esse grupo parece ter se assegurado de que Jesus cumpriria o papel do esperado Messias, especialmente
na entrada em Jerusalém. O jumento no qual Jesus veio montado, cumprindo assim a profecia de
Zacarias (9:9), foi algo pré-arranjado e executado com uma senha a fim de que o animal lhe fosse
cedido no momento devido - embora os discípulos de Jesus nada soubessem sobre isso. Depois, a sala
da Última Ceia está pronta e à espera, embora fosse a época mais agitada do ano e Jerusalém estivesse
transbordando de gente. Jesus diz a seus discípulos para irem até a cidade e procurar por um homem
carregando um jarro de água (o que seria fácil identificar, pois apenas mulheres realizavam essas tarefas
servis); novamente, senhas deveriam ser trocadas, e ele em seguida os levaria para o local da ceia."
Isso indica que os discípulos não tinham conhecimento de grande parte do que estava acontecendo, e
que Jesus executava algum tipo de plano pré-preparado, no qual os membros da família de Betânia
eram os principais participantes. Esse é um outro exemplo de que os Evangelhos não fornecem um
quadro completo da história de Jesus.
A maioria das pessoas hoje tem consciência de que se atribuem motivações políticas a Jesus. Sabe-se
que entre os discípulos havia membros de diferentes facções, algumas delas tão extremadas que
poderíamos hoje chamá-las de terroristas. O segundo nome de Judas, que usualmente é "Iscariotes", é
hoje considerado pela maioria dos estudiosos como sendo uma derivação de sicaril, o nome de um
desses grupos. Simão, o Zelote, é outro exemplo da estreita proximidade de Jesus com homens
violentos."
As obras de Schonfield e Vermes são relativamente bem conhecidas e fáceis de encontrar. A obra de
um outro pesquisador da Bíblia, entretanto, embora merecedora de um público bem maior, recebeu na
verdade muito pouca atenção.
Uma descoberta bastante significativa foi realizada em 1958 pelo Dr. Morton Smith (subseqüentemente
catedrático de História Antiga da Universidade de Colúmbia, Nova York) na biblioteca de Mar Saba,
uma comunidade isolada e fechada da Igreja Ortodoxa Oriental, a cerca de dezoito quilômetros de
Jerusalém. Smith fora até o mosteiro pela primeira vez durante a II Guerra Mundial quando, como
estudante, viu-se em dificuldades financeiras na Palestina. Percebendo a importância potencial dos
documentos que haviam sido reunidos naquela biblioteca durante séculos, voltou lá em 1958.
Sua descoberta mais significativa em Mar Saba foram alguns fragmentos de um "Evangelho Secreto"
que se dizia ter sido escrito por Marcos. O que ele realmente encontrou foi a cópia de uma carta do
chefe da Igreja no século II, Clemente de Alexandria. A cópia, datada do início da segunda metade do
século XVII, fora escrita nas páginas finais de um livro de 1646 (uma prática comum quando
documentos antigos começavam a deteriorar). Porém, a partir da análise do estilo, que contém muitas
das conhecidas idiossincrasias de Clemente, os paleógrafos chegaram à conclusão de que o original
havia sido escrito por ele. Também existem peculiaridades, nos trechos retirados do "Evangelho
Secreto" e citados na carta, que tornam bastante provável sua autenticidade. (Por exemplo, descrevem
Jesus ficando furioso. Dos Evangelhos canônicos apenas o de Marcos atribui a Jesus emoções humanas
comuns; os outros extirparam de seus relatos esses elementos, e dificilmente os patriarcas da Igreja,
como Clemente, teriam inventado tal coisa.)
A carta de Clemente é uma resposta a alguém chamado Theodore, que aparentemente escrevera a ele
pedindo conselhos sobre como lidar com uma seita herética conhecida como carpocratianos (em razão
de seu fundador, Carpócrates).Tratava-se de um culto gnóstico cujas práticas incluíam ritos sexuais, que
eram, previsivelmente, condenados por Clemente e outros patriarcas da Igreja. As doutrinas da seita
aparentemente baseavam-se em um outro Evangelho de Marcos. Em sua carta Clemente admitia que tal
Evangelho existia e era autêntico - embora acusasse os carpocratianos de fazerem interpretações
errôneas e falsificar algumas delas - e que continha ensinamentos esotéricos de Jesus que não eram para
ser revelados aos cristãos comuns. Esse "Evangelho Secreto de Marcos" era muito semelhante à bem
conhecida versão canônica, exceto que continha ao menos duas passagens que desta haviam sido
deliberadamente extirpadas para que fossem mantidas longe dos olhos dos "não iniciados".
A descoberta é significativa por três razões. Primeiro, pelo discernimento que nos oferece sobre os anos
de formação da Igreja cristã e sobre os métodos utilizados pelos patriarcas da Igreja para estabelecer o
cânon do dogma cristão. Isso demonstra que os textos estavam sendo editados e censurados, e que
mesmo as obras reconhecidas como sendo de mesmo valor que os Evangelhos canônicos estavam sendo
ocultadas aos devotos comuns. Mais ainda, revela que mesmo uma augusta figura como Clemente
estava disposto a mentir a fim de evitar que tal material se tornasse mais conhecido: embora admita a
Theodore que o Evangelho Secreto de Marcos realmente exista, aconselha-o a negar tal existência a
qualquer outra pessoa.
O segundo aspecto significativo é que a descoberta confirma que os Evangelhos canônicos, e os outros
livros do Novo Testamento não fornecem um quadro completo dos ensinamentos e das motivações de
Jesus, e que (como é sugerido por alguns relatos das palavras de Jesus nos Evangelhos canônicos) havia
pelo menos dois níveis de ensinamentos. Um era exotérico, para os seguidores comuns, e o outro era
esotérico, para os discípulos especiais - ou o verdadeiro círculo interno de iniciados.
O terceiro ponto significativo sobre a descoberta do Evangelho Secreto de Marcos, e que é de especial
relevância para a nossa pesquisa, é a natureza das duas passagens que Clemente cita em sua carta.
A primeira é um relato sobre a ressurreição de Lázaro, embora nessa versão seu nome não seja citado,
sendo descrito simplesmente como o "jovem" de Betânia. O relato é muito semelhante àquele que se
encontra no Evangelho de João, exceto que nessa versão há uma continuação: seis dias depois o jovem
veio a Jesus "usando uma veste de linho sobre o corpo nu" e ficou com ele por uma noite, durante a
qual lhe foi "ensinado... o mistério do reino de Deus"." Mais do que uma miraculosa ressurreição,
portanto, o despertar de Lázaro parece ter sido parte de uma espécie de rito de iniciação no qual o
iniciado passa por uma morte simbólica e renasce antes de serem ministrados os ensinamentos
secretos.Tal ritual é uma parte comum dos mistérios religiosos que eram amplamente praticados no
mundo greco-romano - mas isso incluiria também, como podem deduzir alguns leitores, uma iniciação
homossexual?
Morton Smith especula que isso pode ter sido possível, a julgar pela alusão específica a uma única peça
de roupa cobrindo a nudez do jovem e o fato de ele passar uma noite a sós com seu professor, Jesus. Em
nossa opinião, entretanto, essa é uma interpretação por demais moderna, e muito superficial, pois as
escolas de mistério comumente envolviam tanto a nudez quanto longas horas de reclusão com o
Iniciador, sem que isso necessariamente incluísse alguma atividade sexual.
O fato de que o relato seja sobre o despertar de Lázaro também é importante. Como já vimos, esse é um
dos episódios no Evangelho de João que não aparece em nenhum dos outros, e é citado pelos críticos
como prova de que o Evangelho não é autêntico. O fato de que o acontecimento tenha sido citado em
pelo menos um dos outros Evangelhos, embora depois deliberadamente removido, dá apoio à
autenticidade do Evangelho de João e explica por que eventos tão importantes foram censurados, pois
dão pistas de um ensinamento secreto que estava reservado para o círculo íntimo de Jesus.
A outra passagem menor, citada por Clemente, também é interessante porque preenche uma notória
lacuna histórica que já havia sido apontada pelos estudiosos. No Evangelho canônico de Marcos (11:46)
há essa curiosa declaração: "E chegaram (Jesus e seus discípulos) a Jericó. E, ao sair de Jericó, ele e os
seus discípulos e uma grande multidão, o cego Bartimeu, o filho de Timeu, estava sentado junto ao
caminho pedindo esmola." Como não há nenhum sentido em contar que Jesus chegou a Jericó e
imediatamente saiu, é óbvio que está faltando algo no relato. A carta de Clemente confirma isso ao
fornecer a passagem censurada:

E a irmã do jovem que Jesus amava e a mãe dele e Salomé estavam lá, e Jesus não os recebeu.

Esse verso que foi omitido parece bastante inócuo, e não atraiu o mesmo interesse da passagem de
"Lázaro", mas é, na verdade, consideravelmente mais significativo do que parece à primeira vista. O
"jovem que Jesus amava" é Lázaro, e é com esta frase que João se refere a ele no seu Evangelho. (E
como a frase também é usada para designar o discípulo em cujo testemunho o Evangelho se baseia, ou
seja, "João", há no mínimo uma boa razão para supor que o "Discípulo Amado" e Lázaro são a mesma
pessoa.) As irmãs de Lázaro são Maria e Marta de Betânia, e se é aceito que essa Maria seja a própria
Maria Madalena, então ela seria uma das três mulheres que Jesus evitou em Jericó.
Em virtude de sua brevidade, essa passagem não contém as implicações teológicas do longo relato
sobre Lázaro acima citado. O que é significativo, contudo, é que, por alguma razão, essa frase
aparentemente inofensiva teve que ser suprimida muito cedo. Que razão teria tido a Igreja para negar a
seus seguidores o conhecimento de que teria havido algum tipo de situação envolvendo Jesus e a irmã
de Lázaro, possivelmente Maria Madalena, sua mãe e a mulher chamada Salomé?
Os estudiosos reagiram à descoberta de Smith ignorando as implicações e declarando-a muito pouco
substancial para ser analisada de maneira apropriada. Em nossa opinião, contudo, essa passagem suscita
algumas questões interessantes.
Clemente acreditava que Marcos escrevera o "Evangelho Secreto" quando vivia no Egito, na cidade de
Alexandria. Tendo em mente que o "mito da fundação" do Monastério de Sion e do Ritual de Mênfis
vincula o sacerdote egípcio Ormuz com São Marcos, poderia ser essa uma referência velada relativa a
essa tradição secreta?
O achado do Evangelho Secreto de Marcos confirma que os livros do Novo Testamento, conforme os
conhecemos hoje, não são relatos fiéis e desapaixonados sobre Jesus e seu ministério.Até certo ponto,
são obras para propaganda. Poderia parecer impossível ter alguma esperança de reconstruir um quadro
preciso daqueles primeiros dias do cristianismo por meio de suas páginas. A situação, porém, não é
totalmente sem esperança. A propaganda pode ser usada para extrair conclusões razoáveis desde que
seja reconhecida por aquilo que realmente é. Pode ser utilizada para revelar aquilo que tenciona
esconder, se for analisada cuidadosamente. Por exemplo, as passagens suspeitas são aquelas em que o
obscurecimento é óbvio ou os nomes são omitidos sem uma razão aparente.
No entanto, é encorajador saber que grande parte do material "proibido", que foi retirado dos textos
originais do Novo Testamento ou que apareceu nos outros Evangelhos suprimidos do Novo Testamento
pelo Concílio de Nicéia, foram mantidos em segredo pelos "heréticos", cuja heresia em muitos casos era
devida ao simples fato de conhecerem a verdade sobre as passagens censuradas. O que poderia conter
esse material editado que fosse tão potencialmente danoso para a Igreja, a ponto de fazê-la perseguir
implacavelmente, capturar e mandar para a fogueira aqueles que o conheciam?
Partindo das pistas obtidas com nossas investigações entre os movimentos secretos europeus,
começamos a reavaliar a história de Jesus e de seus ensinamentos. Por anos temos lutado com a enorme
massa de informações diversificadas que coletamos das mais variadas fontes, desde textos teológicos
padrão até entrevistas com os próprios 'hereges', desde páginas do Novo Testamento e dos textos
gnósticos e apócrifos às obras dos alquimistas e hermetistas. Um padrão finalmente começou a surgir, e
foi tão surpreendente, tão diferente da versão dos acontecimentos conforme ensinada nas igrejas, que à
primeira vista duvidamos de nossas próprias conclusões.
E se muitos dos chamados 'hereges', com seus conhecimentos secretos da verdadeira história de Jesus,
fossem realmente os verdadeiros cristãos? O que uma análise verdadeiramente imparcial da história
pode nos dizer sobre aqueles eventos momentosos da Palestina do primeiro século? Era chegada a hora
de deixar cair as vendas do preconceito e ver para além do mito.

CAPÍTULO XII

A Mulher que Jesus Beijava


A mulher conhecida como Maria Madalena tem uma enorme e evidente importância para os antigos
movimentos secretos "herético” da Europa - ainda que, à primeira vista, isso cause certa perplexidade.
Suas ligações com o culto da Madona Negra, com os trovadores medievais e com as catedrais góticas,
com o mistério que ronda o abade Sauniere de Rennes-le-Château, e com o Monastério de Sion,
indicam haver algo sobre ela que sempre foi considerado perigoso pela Igreja.
Como já vimos, muitas lendas nasceram ao redor dessa enigmática e poderosa mulher. Mas quem era
ela, e qual seu segredo?
Existem, como já vimos, poucas referências explícitas a "Maria Madalena. nos Evangelhos do Novo
Testamento. No entanto, fica claro, pela forma como ela é mencionada, que Madalena era, entre as
mulheres, a discípula mais importante de Jesus. Na verdade, todas as mulheres que seguiam Jesus são
ainda quase que totalmente ignoradas pela Igreja. As menções a elas geralmente subentendem que a
palavra "discípulo” tem mais peso quando aplicada aos homens. De fato, o papel das discípulas foi
deploravelmente minimizado pelos comentadores que vieram muito depois dos autores dos Evangelhos.
Pois embora os judeus do primeiro século pudessem ter problemas sociológicos e religiosos com
relação ao conceito da importância da mulher, em razão simplesmente de sua cultura, críticos de época
mais recente não têm tal desculpa. No entanto, o debate sobre mulheres sacerdotes na igreja anglicana,
para citar apenas um exemplo, mostra que pouco mudou em dois mil anos. Para aqueles que freqüentam
a igreja, em qualquer lugar, "os discípulos” são automaticamente e exclusivamente proeminentes
personagens masculinos, como Pedro, Tiago, Lucas e assim por diante, e não "Maria Madalena, Joana,
Salomé...”, apesar do fato de que essas mulheres são listadas até mesmo pelos autores dos Evangelhos.
Durante as infindáveis discussões sobre as mulheres sacerdotes (mesmo as mulheres diretamente
envolvidas tinham escrúpulos suficientes para não utilizar o termo "pagão” sacerdotisa), distorções
inacreditáveis dos seguidores de Jesus foram apresentadas como ”provas" de que as mulheres não
deveriam fazer parte do clero. Por exemplo, diz-se que Jesus escolheu seus discípulos apenas entre os
homens, embora, como já vimos, haja mulheres que são nominalmente citadas como parte do seu
séquito, ainda que a tradição judaica da época tivesse permitido aos autores dos Evangelhos a opção de
ignorá-las totalmente, se assim fosse possível. O fato de terem sido citadas indica que tiveram um papel
significativo e inegável no ministério papel que, com certeza, perdurou nas gerações cristãs seguintes.
Pois como demonstraram conclusivamente Giorgio Otranto, professor italiano de história da Igreja, e
outros estudiosos, por muitas centenas de anos as mulheres não só foram membros da congregação
como realmente foram sacerdotes e mesmo bispos.
Como afirma Karen Jo Torjesen, especialista em estudos sobre as mulheres dos primórdios do
cristianismo, em seu livro When Women Were Priests (1993):

Sob um alto arco da basílica de Roma, dedicado a duas santas mulheres, Prudentiana e Praxedis, está
um mosaico retratando quatro figuras femininas: as duas santas, Maria, e uma quarta mulher cujos
cabelos estão encobertos e cuja cabeça está encimada por um halo quadrado - uma técnica artística que
indicava que a pessoa ainda estava viva à época da realização da obra. As quatro faces, sobre um fundo
dourado reluzente, lançam olhares serenos. As faces de Maria e das duas santas são facilmente
reconhecíveis A identidade da quarta, porém, é menos evidente. Uma inscrição cuidadosamente gravada
identifica o rosto da esquerda como sendo de Theodora Episcopa, o que significa Bispa Theodora. A
forma masculina para bispo em latim é episcopus; a forma feminina é episcopa. A evidência visual do
mosaico e a evidência gramatical da inscrição indicam, sem margem para enganos, que a Bispa
Theodora era uma mulher. O a de Theodora, porém, foi parcialmente apagado por raspagens feitas
sobre a cerâmica do mosaico, levando à atordoante conclusão de que houve tentativas de eliminar a
terminação feminina do nome, talvez já na Antigüidade.

Sacerdotes homens talvez tenham se enrodilhado em nós lógicos na tentativa de explicar essas
representações de mulheres sacerdotes - alguns até tentaram descrever Theodora como a mãe de um
bispo -, mas os fatos falam por si mesmos.As mulheres não eram apenas úteis para as tarefas
equivalentes, no primeiro século, a preparar o café e fazer sanduíches; elas oficiavam a eucaristia e
lideravam a congregação nos cultos. Não há indicações, naqueles primeiros dias, de que uma mulher
sacerdote menstruada poderia de algum modo corromper o simbolismo do vinho e do pão, como
acontece em tempos recentes.
Foi somente em novembro de 1992 que a Igreja da Inglaterra finalmente votou a espinhosa questão das
mulheres sacerdotes e, por uma margem de apenas dois votos, decidiu permitir que elas fossem
ordenadas. Embora não seja nossa intenção estender-nos sobre a controvérsia das mulheres sacerdotes,
queremos expressar nossa simpatia para com as muitas mulheres que têm lutado contra tudo e contra
todos para explicar a seus “superiores" homens que tudo o que estão pedindo é o retorno ao que ocorria
nos primórdios da era cristã, e não um tipo de reinterpretação radical do século XX. Ao reclamarem
permissão para serem ordenadas, essas mulheres pediam apenas que lhes fossem devolvidos os direitos
que já tinham tido séculos atrás. (Surpreendentemente, o status real das mulheres no início da Igreja
parece ter sido conhecido no século XVI: um tratado de Agripa sobre a superioridade das mulheres,
discutido no capítulo 7, inclui as palavras "[nós não] ignoramos que muitas de nossas santas abadessas e
freiras eram na Antigüidade, sem escárnio, chamadas de sacerdotes.)
Havia, entretanto, razões muito boas para as mulheres serem tão proeminentes no culto de Jesus, o que,
infelizmente, tornou inevitável que certos tipos de homens procurassem suprimi-las e denegri-las.
Embora tratemos dessa questão mais à frente, adiantaremos por agora que não há dúvida de que as
mulheres desempenhavam as funções típicas de um sacerdote, nos primeiros anos da Igreja cristã,
funções que eram pelo menos iguais às dos homens.
Uma das maiores defesas em favor do pressuposto de que somente os homens eram sacerdotes é a de
que as mulheres citadas nas Epístolas e nos Atos apenas ofereciam hospitalidade aos apóstolos homens,
enquanto estes seguiam pregando e batizando. Mulheres como Luculla e Filipa são reconhecidas por
seu patronato, e é claro que muitas dessas mulheres eram ricas e talvez surpreendentemente
independentes para sua época e cultura. Embora desafiemos a visão de que essa era sua única função,
fica claro, a partir do modo como Maria Madalena é descrita, que ela foi uma das primeiras mulheres
patronas.
Ela e outras mulheres "assistiam-lhes (Jesus e seus discípulos homens] com suas posses", indicando que
elas os apoiavam financeiramente. Em todos os lugares as mulheres são descritas como “seguidoras
dele", e as palavras originais realmente sugeriam total participação nas atividades e práticas do grupo.
Como já vimos, Maria Madalena é a única mulher nos Evangelhos não identificada por sua relação com
um homem - como irmã, mãe, filha ou esposa. Simplesmente é mencionada por seu nome. Embora isso
possa indicar que os cronistas da época ignoravam sua identidade, é mais provável que ela fosse tão
conhecida que seria inconcebível que algum cristão não soubesse imediatamente de quem se tratava.
Embora, porém, suas relações com os outros sejam discutíveis, uma coisa claramente se depreende dos
relatos dos Evangelhos: Maria Madalena era uma mulher independente. E, como assinala Susan
Haskins, isso encerra a evidente sugestão de que ela "tinha algumas posses".
É significativo que muito poucos personagens dos Evangelhos sejam denominados como Maria (a)
Madalena, e desses os dois que nos saltam à vista são Jesus (o) Nazareno e João (o) Batista (ou
Batizador, que está se tornando o epíteto preferido).
Qual o significado do nome dela? "Madalena" parece significar "de Magdala" - segundo se diz, uma
referência à cidade pesqueira de el Mejdel, na Galiléia. Não existe, porém, nenhuma prova de que seja
isso, ou de que a cidade fosse conhecida como Magdala na época de Jesus. (De fato, el Mejdel era
chamada de Tarichea por Josefo.) Havia, entretanto, uma cidade de Magdolum no nordeste do Egito,
próxima da fronteira com a Judéia - provavelmente a Migdol mencionada em Ezequiel.
O significado de Magdala, por si só, abre-se a muitas interpretações possíveis, como "o local da
pomba", "o local da torre" e "a torre-templo"."
Pode ser até mesmo que o nome de Maria seja tanto uma referência a um lugar como a um título, pois
no Antigo Testamento há uma espantosa profecia (Miquéias 4:8):

E tu, torre do rebanho, fortaleza da filha de Sião, sobre ti cairá o primeiro poder; o reino da
filha de Jerusalém virá.

Pois, como cita Margaret Starbird em seu estudo sobre o culto a Madalena, de 1993, The Woman with
the Alabaster Jar, as palavras traduzidas como "torre do rebanho" são Magdal-eder, e acrescenta:

Em hebreu, o epíteto Magdala significa literalmente "torre" ou "elevado, grande,


magnificente".

Seria a associação de Madalena com a torre e, mais significativamente, com a restauração de Sion,
conhecida enquanto ela estava viva? É também muito interessante que Magdal-eder signifique "torre do
rebanho", o que sugere uma torre de vigia ou guardiã dos pequenos seres - talvez até mesmo o "Bom
Pastor" .

Maria Madalena já causou comoção em nossa época, quando se afirmou em The Holy Blood and the
Holy Grail que ela fora mulher de Jesus. Embora essa sugestão não fosse de fato inédita, foi a primeira
vez que a maioria das pessoas ouviu falar nisso, e, como era de esperar, a afirmação causou enorme
alvoroço. A culpa associada com o sexo está tão profundamente arraigada em nossa cultura que
qualquer indicação de que Jesus tenha tido uma parceira sexual - mesmo no contexto de um casamento
monogâmico e amoroso - é vista por muitos como algo sacrílego e abominável. A idéia de um Jesus
casado continua a ser considerada, de modo geral, muito improvável, na melhor das hipóteses, e obra do
demônio, na pior. Contudo, existem razões suficientes para acreditar que Jesus realmente tinha uma
relação íntima - e muito provavelmente com Maria Madalena.
Muitos comentadores observam que é muito estranho o silêncio total por parte do Novo Testamento
sobre o estado civil de Jesus. Os cronistas daquela época e lugar costumavam descrever as pessoas em
termos daquilo que as diferenciava das outras, e um homem com mais de trinta anos que ainda não
fosse casado com certeza seria considerado algo muito peculiar. É preciso lembrar que nos baseamos na
imagem de Jesus que nos foi pintada pelos autores dos Evangelhos e suas fontes, e que a perspectiva
destes era essencialmente judaica. Os judeus consideravam o celibato como impróprio, pois sugeria
uma relutância em procriar uma nova geração do povo escolhido pelo Senhor, e era alvo de reprovação
por parte dos anciãos da sinagoga. Alguns rabinos do século II, de acordo com Geza Vermes,
"comparam a abstenção deliberada em procriar com assassinato". As genealogias contidas na Bíblia,
com freqüência sem qualquer base, provam que os judeus eram uma raça orgulhosamente dinástica, e,
na verdade, eles ainda prezam fortemente os laços familiares. O casamento sempre foi fundamental para
o modo de vida dos judeus, ainda mais quando a nação estava sob ameaça, como no período em que
esteve sob o jugo romano. Um pregador carismático e famoso que não fosse marido e pai seria motivo
de escândalo, e somente por milagre seu grupo duraria muito tempo, ainda mais depois da morte de seu
fundador. .
De acordo com o Novo Testamento, Jesus e seus seguidores tinham muitos inimigos. No entanto, não
existem acusações, pelo menos que tenham chegado até nós, de que fossem homossexuais - como
certamente haveria se tivessem sido um grupo de homens celibatários. Se tal escândalo tivesse ocorrido,
com certeza teria chegado até Roma e saberíamos disso hoje. Insultos desse tipo não são propriedade
exclusiva dos tablóides modernos; Pilatos e sua corte eram romanos sofisticados e cosmopolitas, e os
judeus reconheciam a existência do homossexualismo, ainda que apenas como algo que condenavam.
Se Jesus e seus discípulos fossem celibatários e pregassem o celibato, isso por si só teria causado
grande tumulto entre as autoridades.
Os eruditos costumam evitar a questão do celibato, aceitando como fato a postura tradicional da Igreja
de que Jesus não era casado. Quando o assunto é discutido, porém, as dificuldades em provar seu estado
civil emergem de modo muito claro. Por exemplo, como já vimos, Geza Vermes, em sua tentativa de
definir o Jesus histórico, chegou à conclusão de que ele se encaixa melhor na figura de um Hasidim, os
herdeiros dos profetas do Antigo Testamento. Vermes tentou relacionar - algumas vezes com sucesso,
outras nem tanto - as ações e os ensinamentos de Jesus segundo esse papel, comparando-os com os de
um conhecido Hasidim daquela época e lugar. Entretanto, quando chega à questão do celibato de Jesus
(que ele aceita), vê-se metido em dificuldades. Termina por admitir que a maioria dos indivíduos
Hasidim que serviram de comparação eram casados e tinham filhos. Na verdade, ele apenas consegue
trazer à baila uma outra figura daquela cultura que glorificava o celibato, Pinhas ben Yair, que viveu
um século depois de Jesus e nem sequer era realmente um Hasid! E isso, por mais incrível que possa
parecer, foi suficiente para Vermes concluir que Jesus tinha um estilo de vida semelhante. Mas há
outros que não se convencem tão facilmente. De fato, o celibato de Pinhas era tão incomum que por si
só lhe angariou notoriedade. Não há qualquer indicação de que o estilo de vida ou a mensagem de Jesus
enfatizasse ou promovesse o celibato: se assim fosse, com certeza saberíamos.
É verdade que havia algumas seitas judaicas, como a dos essênios, que eram celibatárias, embora, mais
uma vez, saibamos disso porque tal fato era incomum o bastante para merecer um comentário
específico. Alguns utilizaram isso em favor do argumento de que Jesus era essênio. Entretanto, a seita
não é mencionada uma única vez sequer em todo o Novo Testamento, o que dificilmente seria o caso se
Jesus fosse seu membro mais famoso.
A hipótese de que Jesus fosse casado já foi citada muitas vezes por comentadores modernos, mas o
silêncio dos Evangelhos sobre o assunto pode gerar uma outra interpretação. Pode ser que ele tivesse
uma parceira sexual que não fosse sua esposa, ou com a qual vivesse uma forma de casamento que não
era reconhecida pelos judeus.
(Devemos lembrar que a tradição herética enfatiza que Jesus e Madalena eram parceiros sexuais, não
marido e mulher. Como vimos, os Evangelhos Gnósticos, os cátaros e outros pertencentes à rede
secreta, quando não se referem a ela especificamente como "concubina" ou "consorte" de Jesus, são
cuidadosos ao utilizar tais termos ambíguos para referir-se à "união" deles.)
Como prova positiva do estado civil de Jesus, argumenta-se que as bodas em Canã, quando Jesus
transformou água em vinho, foram de fato as suas próprias. No relato, sua condição parece ser a de
recém-casado. É esperado, por razões de outro modo inexplicáveis, que ele forneça o vinho para a festa
de casamento. Novamente, é interessante que esse acontecimento importante, no qual Jesus realiza seu
primeiro milagre público, apareça apenas no Evangelho de João e não seja mencionado nos outros três.
Pode haver, entretanto, uma outra interpretação para esse acontecimento, que será discutida mais à
frente.
Para contrabalançar esses argumentos há as seguintes questões: se Jesus era casado, então por que não
há menção específica a sua mulher ou família nos Evangelhos? Se foi casado, quem era sua esposa? Por
que seus seguidores desejariam apagar qualquer vestígio relacionado a ela? Talvez eles a evitassem
porque seu relacionamento com Jesus os ofendesse e poderia criar embaraços para suas missões. Se eles
não eram casados, mas tinham um íntimo relacionamento sexual e espiritual, então os discípulos
homens teriam preferido esquecê-lo.
Essa é precisamente a situação descrita de modo tão vívido nos Evangelhos Gnósticos, nos quais a
identidade da parceira de Jesus é esclarecida. Maria Madalena era a parceira sexual de Jesus, e os
discípulos homens ressentiam-se da influência dela sobre seu líder.
Quanto ao motivo para se encobrir o relacionamento de Jesus com Madalena, o que hoje pode parecer
óbvio não se encaixa no contexto do primeiro século. Podemos pensar que a razão para ocultá-lo foi que
a Igreja cristã sempre atribuiu à mulher, aparentemente, uma posição de subordinação e considerou a
procriação como um mal necessário. No entanto, tudo indica que essa atitude contrária ao casamento é
o resultado, não a causa, desse ocultamento. De fato, a Igreja nos seus primórdios, antes de ter se
tornado uma instituição e estabelecido uma hierarquia, não tinha qualquer preconceito contra as
mulheres, como já pudemos ver.
Que houve um ocultamento deliberado do relacionamento de Jesus e Madalena é evidente, mas a
misoginia não serve de explicação. Um outro fator deve ter inspirado essa campanha contra Madalena.
Provavelmente isso está vinculado, de algum modo, com seu caráter ou identidade, e/ou com a natureza
de sua relação com Jesus. Em outras palavras, o problema não era o fato de que Jesus fosse casado, mas
sim com quem ele se casara.
Várias vezes, no decurso de nossa investigação, deparamos com indícios de que Madalena era de algum
modo considerada indecente. Agora temos que descobrir o que teria criado essa aura de perigo, que
fatores outros, além da mera misoginia, estariam por trás do curioso e antigo temor a essa influente
amiga de Jesus.

A verdadeira identidade de Maria Madalena, de Maria de Betânia (irmã de Lázaro) e da "pecadora sem
nome" que ungiu Jesus no Evangelho de Lucas, sempre foi motivo de intensos debates. A Igreja
Católica decidiu logo no início de sua existência que essas três personagens eram uma só, embora tenha
mudado de opinião em 1969. A Igreja Ortodoxa do Oriente sempre tratou Maria Madalena e Maria de
Betânia como figuras distintas.
Com certeza, discrepâncias e contradições obscurecem a questão, mas tal confusão é significativa por si
só, já que os Evangelhos, como alguém que se sente culpado, tendem a se tornar obviamente evasivos
quando tentam encobrir algo. O fato de que tais evasivas rodeiem todas as descrições relativas à
Betânia, à família que vivia lá - Lázaro, Maria e Marta - e aos acontecimentos que lá tiveram lugar,
torna tudo ainda mais sugestivo.
Como vimos, as descobertas de Morton Smith provam que a ausência do episódio da ressurreição de
Lázaro no Evangelho de Marcos foi um ato deliberado de censura. Contudo, em sua única versão
canônica sobrevivente, no Evangelho de João, esse é um dos acontecimentos mais importantes de todo
o relato. Por que então os primeiros cristãos, que se deram ao trabalho de removê-lo de pelo menos um
dos Evangelhos, sentiam-se tão desconfortáveis com ele? Seria, mais uma vez, porque a história incluía
Marta? Ou era o lugar, Betânia, também um tanto corrupto?
O Evangelho de Lucas (10:38) descreve um episódio no qual Jesus visita a casa das duas irmãs Maria e
Marta, mas não há qualquer menção a um irmão, nem o local é claramente denominado - o que é
significativo. É simplesmente chamado de "uma certa aldeia" de modo tão indiferente que chega a
levantar suspeitas.Afinal, o nome do local não era totalmente desconhecido para os outros cronistas.
Lázaro, também, é deliberadamente omitido em Lucas. O que havia com respeito àquele lugar e à
família que lá vivia? (Talvez haja uma pista no fato de João Batista ter começado seu ministério em um
lugar chamado Betânia.)
É também o Evangelho de Lucas (7:36-50) que apresenta o relato mais obscuro sobre a unção dos pés
de Jesus. Ele é o único entre os autores dos Evangelhos a situar os acontecimentos em Cafarnaum, no
início do ministério de Jesus, e não nomeia a mulher que aparentemente interrompera a refeição de
Jesus para ungir-lhe a cabeça e os pés com o precioso óleo de nardo, secando-o depois com o próprio
cabelo.
O Evangelho de João (12:1-8), entretanto, é explícito nessa questão. A unção se dá na casa de Lázaro,
Maria e Marta, na Betânia, e é Maria quem o unge. O relato de João (11:2) sobre a ressurreição de
Lázaro também enfatiza que a última das irmãs, Maria, é quem mais tarde ungiu Jesus.
Nem Marcos (14:3-9) nem Mateus (26:6-13) denominam a mulher em questão, mas concordam que
isso aconteceu em Betânia, dois dias (não os seis de João) antes da Última Ceia. Mesmo assim, de
acordo com eles a unção se deu na casa de um certo Simão, o Leproso. Parece que tudo o que estava
relacionado a Betânia e àquela família causava grande inquietação entre os cronistas sinópticos, a ponto
de "camuflarem" o assunto, embora tenham sido obrigados a incluir a passagem. A história de Betânia
os incomodava, talvez pela mesma razão que levou outros a torná-la de grande importância para o
mundo herético.
Betânia também é significativa porque foi de lá que Jesus partiu para sua jornada fatal em direção a
Jerusalém - para a Última Ceia e subseqüente prisão e crucificação. E embora os discípulos parecessem
nada saber sobre a tragédia que se avizinhava, existem indícios de que a família de Betânia não estava
de todo despreparada, e, como vimos, talvez até tenham feito alguns arranjos, como fornecer o jumento
que Jesus montava quando entrou na capital.
Maria de Betânia e a mulher sem nome que ungiu Jesus eram obviamente a mesma pessoa, mas seria
ela Maria Madalena? Muitos estudiosos contemporâneos acreditam que Maria Madalena e Maria de
Betânia eram duas mulheres distintas. A questão, porém, permanece: por que, afinal de contas, os
autores dos Evangelhos iriam querer "camuflar" o assunto?
Alguns eruditos certamente defendem a opinião de que Madalena e Maria de Betânia eram a mesma
pessoa.William E. Phipps, por exemplo, acha estranho que Maria de Betânia - que com certeza era
amiga íntima de Jesus – não tenha sido citada especificamente como estando presente no momento da
crucificação, e que Maria Madalena de repente apareça aos pés da cruz sem nunca antes ter sido
mencionada." Phipps também observa ser possível que dois epítetos distintos, "de Betânia" e "de
Magdala", sejam aplicados a uma mesma pessoa, dependendo do contexto. Isso se tornaria ainda mais
provável se os autores estivessem deliberadamente tentando obscurecer a questão.
Entretanto, os eruditos, de modo geral, não chegam nem mesmo a considerar a possibilidade de que os
censores dos autores dos Evangelhos deliberadamente deturparam certos aspectos da história que
escolheram contar. (Alguns, principalmente Hugh Schonfield, admitem existir algo sobre o grupo de
Betânia que os autores dos Evangelhos propositadamente nos negaram, ou algo sobre o assunto que os
autores simplesmente não entendiam ou não sabiam.) Uma vez admitida essa "camuflagem", passa a ser
possível que Maria de Betânia e Maria Madalena fossem a mesma pessoa.
Esta investigação começou com o exame da tradição secreta, exemplificada por Leonardo da Vinci e
sua suposta irmandade, o Monastério de Sion. Como vimos, a primeira vez que os leitores de língua
inglesa ouviram falar sobre o Monastério foi no The Holy Blood and The Holy Grail, e esse livro
inequivocamente argumenta que Maria Madalena e Maria de Betânia eram a mesma pessoa. É
significativo que a versão revisada de 1996 apresente um material novo, incluindo o "documento
Montgomery" que, como vimos, parece reforçar as bases em que se firma o livro. Especificamente,
nesse contexto, o documento declara que Jesus era casado com "Miriam de Betânia", que foi para a
França e teve uma filha. Supõe-se claramente que se tratava de Maria Madalena, embora o ponto
importante aqui seja que os defensores do Monastério acreditam que isso é verdade. E deve-se lembrar
que todos os relatos tradicionais da ida de Maria Madalena para a França - como o The Golden Legend
- partem do pressuposto de que ela e Maria de Betânia são a mesma pessoa. Existe, porém, alguma
evidência que apóie essa afirmação?
Há uma pista em Lucas, que, após descrever a unção de Jesus pela "pecadora sem nome",
imediatamente apresenta Madalena pela primeira vez (8:1-3). Parece que, ao menos inconscientemente,
para Lucas a associação era por demais forte para ser ignorada.
Significativamente, o próprio Jesus vincula não só o ato da unção como também a pessoa que o unge ao
seu sepultamento que se avizinha, como, por exemplo, em Marcos (14:8): "Ela fez o que podia:
embalsamou com antecipação o meu corpo para a sepultura." É uma ligação implícita entre a mulher de
Betânia e Maria Madalena, pois é esta última que vai à tumba para ungir O corpo de Jesus para o
enterro alguns dias depois. Tanto a unção de Jesus vivo como a futura unção de seu defunto são atos
rituais de grande significado, que no mínimo vinculam as duas mulheres. Em todo caso, é de extrema
importância que a pessoa que unge Jesus - preparando-o para enfrentar seu verdadeiro destino - seja
uma mulher.
Embora não seja impossível que elas fossem a mesma, é melhor manter a mente aberta com respeito a
essa questão, enquanto pesquisamos mais profundamente o relato bíblico sobre o papel e as ações de
Madalena e Maria de Betânia.
Significativamente, a idéia persistente de que Maria Madalena era uma prostituta vem da associação (ou
confusão) tradicional de sua figura com Maria de Betânia, que é descrita como "uma pecadora". É claro,
se Maria de Betânia era uma prostituta e também a mesma pessoa que Maria Madalena, então isso
contribuiria muito para explicar a extrema cautela dos autores dos Evangelhos - e a deliberada
obscuridade - em relação à última. Precisamos examinar o caráter de Maria de Betânia para ver que luz
pode ser lançada sobre o assunto.

Nos Evangelhos Sinópticos a mulher que unge Jesus não é denominada, embora seja assinalado que ela
é uma pecadora; no Evangelho de João, porém, ela é explicitamente identificada como Maria de Betânia
e sua condição moral não é mencionada. Isso por si só parece um tanto suspeito.
Em Lucas, a mulher que unge Jesus é descrita como "uma mulher que era pecadora na cidade", embora
o original grego para "pecadora" harmartolos, que significa alguém que violou a lei e se tomou um
transgressor - não necessariamente implique prostituição nesse contexto. A outra referência a ela
associada, de usar os cabelos soltos - coisa que as mulheres de respeito não faziam -, sugere algum tipo
de pecado sexual, pelo menos aos olhos dos autores dos Evangelhos."
No contexto da cultura judaica da época, havia algo desabonador em Maria de Betânia, o que não
significa necessariamente que ela era uma prostituta comum exercendo seu oficio nas ruas. (O óleo de
nardo, que vem de uma rara e apreciada planta da índia, era tão proibitivamente caro que estaria
totalmente fora dos recursos de uma prostituta de rua. Segundo William E. Phipps, o óleo de nardo
custaria a ela o equivalente ao salário obtido em um ano de trabalho na agricultura.) E mesmo que
Maria fosse uma rica "madame" dona de bordel, parece improvável que ela morasse com seus irmãos
Lázaro e Marta - nenhum dos quais, aparentemente, tinha má reputação, sendo claramente grandes
amigos de Jesus, que se hospedava em sua casa. Então qual seria a verdadeira natureza de seu
"pecado"?
Harmartolos era um termo emprestado da arte do arco e flecha, significando errar o alvo: nesse contexto
significa simplesmente alguém que não segue a lei judaica ou não observa os rituais, ou porque não
manteve as práticas descritas, ou porque não é de modo algum judeu. Se a mulher não era, de fato,
judia, então isso pode explicar a atitude dos autores dos Evangelhos. Entretanto, é o detalhe de seus
cabelos soltos e a atitude dos discípulos com respeito a ela que dão margem para que se suspeite de
alguma transgressão relacionada ao sexo.
É essa impressão de repugnância que, intencionalmente ou não, depreciou o verdadeiro significado da
unção de Jesus. Há um outro ponto importante sobre esse ato que tem atraído muito pouca atenção, mas
no qual o cristianismo realmente se baseia. É de conhecimento geral que o termo "Cristo” vem do grego
Christos, que por sua vez é a tradução do hebreu "Messias”. Porém, ao contrário do que amplamente se
acredita, o termo não encerra nenhuma conotação de divindade: Christos significa simplesmente “O
Ungido”. (Com base nessa interpretação, qualquer funcionário oficial que fosse ungido seria um
“Cristo”, desde Pôncio Pilatos até a rainha da Inglaterra.) A idéia de um Cristo divino foi uma
interpretação posterior dos cristãos: esperava-se que o Messias judeu fosse simplesmente um grande
líder político e militar, embora escolhido por Deus. Naquela época, o termo “Messias” ou “Cristo”,
quando aplicado a Jesus, significaria apenas “ungido”.
Há, é claro, apenas uma única unção de Jesus mencionada nos Evangelhos. Embora alguns argumentem
que sua “unção” foi de fato o batismo pelas mãos de João, se assim fosse toda a multidão que se banhou
no Jordão também seria chamada de "Cristo”. Permanece embaraçoso o fato de que a pessoa que
"cristianizou” Jesus foi uma mulher.
Ironicamente, está registrado que Jesus fez o seguinte comentário em sua unção (Marcos 14:9):

Em verdade vos digo, onde quer que for pregado este evangelho por todo o mundo, será
também contado para sua memória o que ela fez.
É curioso que a Igreja, que tradicionalmente afirma que a mulher que fez a unção foi a Santa Maria
Madalena, tenha ignorado essa injunção. Considerando o pouco caso com que Madalena geralmente é
tratada nos púlpitos de todo o mundo, parece que as palavras de Jesus são, como tudo o mais no Novo
Testamento, objeto de um inexorável processo de seletividade. Nesse caso as palavras de Jesus são
quase totalmente ignoradas. E mesmo nas raras ocasiões em que se dá a elas a importância que
merecem por esse episódio, nada se diz sobre o significado dele.
Apenas duas pessoas são citadas no Novo Testamento como tendo oficiado rituais importantes na vida
de Jesus: João, que o batizou no início de seu ministério, e Maria de Betânia, que o ungiu em seu final.
Contudo, como vimos, ambos foram marginalizados pelos autores evangélicos - é como se somente
tivessem sido incluídos porque aquilo que fizeram era importante demais para ser completamente
ignorado. E há uma outra grande razão para isso: o batismo e a unção implicam autoridade por parte
daquele que oficia. Pois uma vez que um batizador e um ungidor conferem autoridade a alguém - do
mesmo modo que o arcebispo de Canterbury conferiu condição real à rainha Elizabeth II, em 1953 -,
eles próprios devem ter autoridade para fazê-lo.
Examinaremos a questão da autoridade de João mais tarde, mas considere o fato curioso de que o
episódio da unção foi efetivamente registrado, o que não teria acontecido se tivesse sido um episódio
frívolo ou insignificante. Contudo, segundo nos contam, os discípulos, especialmente Judas,
condenaram Maria por usar o raro e caríssimo óleo de nardo para ungir Jesus, alegando que o óleo
poderia ter sido vendido para levantar dinheiro para os pobres. Jesus responde que sempre existirão
pobres, mas ele não estará ali para sempre (a fim de ser honrado). Essa reprovação de Jesus - além de
depor contra a idéia de que ele era uma espécie de proto-marxista - não apenas justifica a ação de
Maria, como também sugere fortemente que apenas ele e ela realmente compreendiam seu significado.
Os discípulos, como sempre, pareciam ter dificuldades para entender os aspectos mais sutis desse ritual
extremamente significativo, e eram francamente hostis às ações de Maria, embora o próprio Jesus
tivesse o cuidado de reforçar a autoridade dela. Esse episódio teve um outro significado importante:
marcou o momento em que Judas se tornou o traidor - imediatamente depois ele vende Jesus aos
sacerdotes.
Maria de Betânia "cristianizou" Jesus com o óleo de nardo, um ungüento que, muito provavelmente,
tinha sido guardado para essa ocasião especifica e estava associado com os rituais de sepultamento. O
próprio Jesus diz, ao comentar sobre a unção (Marcos 14:8): "...[ela] embalsamou com antecipação o
meu corpo para a sepultura." Para ele, pelo menos, a intenção da unção era servir de ritual.
É evidente que a unção teve um significado profundo, mas qual foi exatamente o seu propósito? E por
que, naquela sociedade e naquele tempo, foi realizada por uma mulher? Dado o gênero e a reputação
(mesmo que imerecida) da mulher que o ungiu, a cerimônia dificilmente seria típica da prática judaica.
Talvez haja uma pista para a verdadeira natureza da unção nos "documentos Montgomery".
Como vimos, esse relato fala do casamento de Jesus com Miriam de Betânia, que é descrita como a
"sacerdotisa de um culto feminino" - uma tradição de veneração às deusas. Se for verdadeiro, isso pode
explicar por que a unção parecia tão estranha aos outros discípulos, embora a tolerância de Jesus
permaneça inexplicada. E se ela era realmente uma sacerdotisa pagã, isso explicaria por que os
discípulos homens achavam que ela tinha uma moral e um caráter duvidosos.
Se Maria de Betânia foi realmente uma sacerdotisa pagã, por que ungiu Jesus? Indo mais direto ao
ponto, por que ele lhe permitiu fazer isso? Existe algum paralelo entre esse ritual e aqueles comumente
associados com o paganismo da época? De fato, há um antigo ritual que é de extrema importância: a
unção do rei sagrado. A idéia por trás disso era a de que o verdadeiro rei ou sacerdote só poderia
receber todo o seu poder divino através da autoridade da suprema sacerdotisa. Isso tradicionalmente
tomou a forma do hieros gamos, ou casamento sagrado: o rei-sacerdote unindo-se com a rainha-
sacerdotisa. Era através da união sexual com ela que ele verdadeiramente se tornava o rei reconhecido.
Sem ela, ele não era nada.
Nada há na vida moderna do Ocidente algo que se aproxime de tal conceito ou prática, e é difícil para as
pessoas de hoje entender a noção do hieros gamos. Fora do universo íntimo dos casais, individualmente
considerados, não temos nenhum conceito de sexualidade sagrada. Contudo, não se trata meramente de
sexo ou erotismo, por mais elevados que supostamente sejam: no matrimônio sagrado, o homem e a
mulher realmente tornam-se deuses. A suprema sacerdotisa torna-se a própria deusa, que então concede
a benção maior da regeneração - assim como na alquimia - ao homem, que corporifica o deus.
Acreditava-se que a união dos dois impregnava ambos e o mundo ao redor com um bálsamo
regenerativo, evocando o impulso criativo do nascimento do planeta. "
O hieros gamos era a expressão final daquilo que se denomina "prostituição no templo", onde o homem
visitava uma sacerdotisa para receber a gnose - para experimentar o divino por si mesmo através do ato
de amor carnal. Significativamente, a palavra original para sacerdotisa é hierodule, que significa "serva
sagrada"; a palavra "prostituta", com todo o juízo moral que ela encerra, foi impingida por uma
tradução da era vitoriana. Mais ainda, a serva desse templo, ao contrário da prostituta secular, tem total
controle da situação e do homem que a visita, e ambos são beneficiados com poderes físicos, espirituais
e mágicos. O corpo da sacerdotisa torna-se, literal e metaforicamente, um portal para se chegar até os
deuses - o que é praticamente inconcebível para os amantes ocidentais de hoje.
Claro que nada poderia estar mais longe da atitude da Igreja, mesmo da Igreja moderna, no que tange ao
sexo e à mulher. Pois não só a chamada prostituição no templo proporcionava iluminação espiritual -
um processo conhecido como horasis -, como sem o "conhecimento" carnal da hierodule o homem
permaneceria espiritualmente insatisfeito. Por si mesmo ele tinha pouca esperança de alcançar o êxtase
proporcionado pelo contato com Deus ou deuses, mas as mulheres não necessitavam de nenhuma
cerimônia; para os pagãos, as mulheres estavam naturalmente em contato com o Divino.
É possível que a "unção" realizada em Jesus simbolizasse a penetração sexual. Embora não seja
necessário pensar nesses termos para compreender a solenidade do ritual, existem associações
inevitáveis com os rituais antigos nos quais as sacerdotisas, que representavam as deusas, eram
fisicamente preparadas para "receber" o homem que fora escolhido para simbolizar o rei sagrado, ou
deus salvador. Todas as escolas de mistério de Osíris, Tamus, Dioniso, Atis etc. incluem um ritual -
desempenhado por substitutos humanos no qual o deus era ungido pela deusa antes de sua morte
simbólica ou verdadeira, o que tornaria a terra fértil mais uma vez. Segundo a tradição, três dias após,
graças à mágica intervenção da sacerdotisa/deusa, ele renascia e a nação podia então respirar aliviada
até o próximo ano. (A deusa na encenação do mistério dizia: "Eles levaram meu Senhor e não sei onde
encontrá-lo," praticamente as mesmas palavras atribuídas a Maria Madalena no jardim. Discutiremos
isso em detalhes mais à frente.)
Pistas relacionadas com o real significado da unção de Jesus podem ser encontradas no Antigo
Testamento, no Cântico dos Cânticos (1: 12), onde o "Amado" diz: "Estando o rei sentado à sua mesa, o
meu nardo exalou o seu aroma por tudo." Devemos lembrar que o próprio Jesus associa sua unção com
seu sepultamento, assim o verso que se segue assume um outro significado:"O meu amado é para mim
como um ramalhete de mirra: ele irá repousar toda a noite entre os meus seios."
Isso é uma óbvia ligação entre a unção de Jesus e o Cântico dos Cânticos. Muitas autoridades acreditam
que, na verdade, o Cântico dos Cânticos era a liturgia do ritual sagrado do casamento, assinalando suas
muitas semelhanças com liturgias do Egito e de outros países do Oriente Médio.
Há uma em particular que tem uma ressonância impressionante, como nos diz Margaret Starbird:

Versos idênticos e equivalentes àqueles do Cântico dos Cânticos são encontrados no poema litúrgico do
culto à deusa egípcia Ísis, irmã-noiva do mutilado... Osíris.

A deusa/sacerdotisa une-se com o deus/sacerdote no sagrado matrimônio por razões complexas.


Superficialmente é um ritual da fertilidade, para assegurar a fecundidade pessoal e nacional, para
garantir o futuro do povo e de sua terra. Mas é também através do êxtase e da intimidade do rito sexual
que a deusa/sacerdotisa confere sabedoria a seu parceiro. A analista junguiana Nancy Qualls-Corbett,
no seu livro The Sacred Prostitute (1988), coloca grande ênfase na ligação entre a puta sagrada e o
Princípio Feminino simbolizado por Sofia (Sabedoria). Como vimos, Sofia repete-se recorrentemente
em nossas investigações - ela era particularmente venerada pelos templários - e está fortemente
associada a Madalena e Ísis.
A unção de Jesus foi um ritual pagão: a mulher que o executou, Maria de Betânia, era uma sacerdotisa.
Levando-se em conta esse novo cenário, é bem mais do que provável que seu papel no círculo íntimo de
Jesus fosse o de iniciadora sexual. Recordemos, porém, que tanto os hereges como a Igreja Católica há
muito acreditam que Maria de Betânia e Maria Madalena eram a mesma pessoa: nessa figura da
iniciadora sexual finalmente encontramos a razão que faltava para a confusão acerca do verdadeiro
papel e significado de Madalena na vida de Jesus. Se ela realmente era uma hierodule operando no
mundo patriarcal do judaísmo, seria inevitavelmente considerada como pária moral. No entanto,
enquanto esteve junto a Jesus ela era protegida, se não de outras coisas, pelo menos dos efeitos do
ultraje à sua virtude, como os vários entreveros com Simão Pedro (conforme os Evangelhos Gnósticos)
claramente o demonstram.
O Monastério de Sion, como já observamos, é devotado à deusa - na forma de Madona Negra, de Maria
Madalena ou da própria Isis. Eles claramente associam Maria Madalena com Isis - associação que é
fundamental à sua própria raison d'être, embora à primeira vista isso cause certa perplexidade.
Entretanto, está claro que vêem Maria Madalena como uma sacerdotisa pagã - o que, no mínimo, é um
outro paralelo entre ela e Maria de Betânia.
O papel de Maria Madalena como sacerdotisa pagã é reconhecido por Baigent, Leigh e Lincoln; porém,
eles não parecem considerar que as implicações disso cheguem a merecer maior atenção. Por exemplo,
enquanto discutem se a Madalena estava associada ao culto às deusas, concluem que "anteriormente à
sua associação com Jesus, a Madalena poderia muito bem ter estado ligada a tal culto". E então mudam
de assunto. No entanto, a frase crucial aqui é "anteriormente à sua associação com Jesus", pressupondo
que ele a convertera e reproduzindo a visão tradicional de que ela se regenerou através de sua relação
com ele. Essa visão, todavia, é um tanto ingênua, embora desafiá-la signifique evocar um outro cenário
profundamente inquietante.
Qualls-Corbett também cita a conexão entre a Puta Sagrada, Sofia e a Madona Negra, realçando assim
os vínculos que descrevemos na Parte I". Essa personificação multifacetada do Princípio Feminino
lança alguma luz sobre o grande, e zelosamente guardado, segredo erótico da tradição oculta ocidental.
Pois Sofia é a Puta, que também é a "Ternamente Amada" do casamento sagrado, e que é Maria
Madalena, Madona Negra e Isis. A sexualidade sagrada implícita na Grande Obra dos alquimistas é
uma continuação direta dessa antiga tradição, na qual o rito sexual confere iluminação espiritual e
mesmo transformação física. É após essa suprema experiência com a deusa/sacerdotisa que o
deus/sacerdote modifica-se a tal ponto que não pode mais ser reconhecido e "ressuscita" para uma nova
vida.
Significativamente, como assinalam Nancy Qualls-Cobertt e outros comentadores recentes, a descrição
de Maria Madalena nos Evangelhos Gnósticos é a de uma iluminatrix e iluminadora - Maria Lúcifer, a
que traz luz, a que concede iluminação através do sexo sagrado. E, tomado em conjunto com nossas
conclusões sobre Maria de Betânia, parece que ela e Maria Madalena realmente eram a mesma mulher.
Esse cenário também reforça a idéia de que Maria era a mulher de Jesus, embora isso essencialmente dê
um novo sentido à palavra. Ela era sua parceira num casamento sagrado, que não era necessariamente
um encontro amoroso. Como já vimos, o Cântico dos Cânticos é uma liturgia do casamento sagrado, e
isso sempre esteve relacionado com Maria Madalena.
A sexualidade sagrada - um anátema para a Igreja de Roma - encontra expressão no conceito de
casamento sagrado e "prostituição sagrada' nos antigos sistemas orientais do taoísmo e do tantrismo e
na alquimia.
Como Marvin H. Pope diz em seu exaustivo estudo sobre o Cântico dos Cânticos (1977):

Os hinos tântricos às Deusas fornecem uns dos paralelos mais instigantes com o Cânticos dos
Cânticos.
E conforme expõe Peter Redgrove no seu livro The Black Goddess (1989), ao discutir as artes sexuais
do taoísmo:

É interessante comparar isso com as práticas religiosas sexuais do Oriente Médio e com a imagem
delas que nos foi legada. Mari-Ishtar, a Grande Meretriz, unge seu consorte Tamus (com quem Jesus
era identificado), fazendo dele um Cristo. E o faz para prepará-lo para sua descida ao mundo inferior,
do qual ele retornaria por ordem dela. Ela, ou sua sacerdotisa, era chamada de Grande Meretriz porque
esse era um rito sexual de horasis, do orgasmo de corpo inteiro que levaria o consorte ao continuum
visionário cognoscível. Era um rito de passagem, do qual ele retornaria transformado. No mesmo
sentido Jesus diz que Maria Madalena o ungiu para seu sepultamento. Somente mulheres podiam
desempenhar tais rituais em nome da deusa, e é por essa razão que nenhum homem compareceu à sua
tumba, apenas Maria Madalena e as outras mulheres. Um símbolo fundamental de Madalena na arte
cristã era o frasco de óleo sagrado - o sinal exterior do batismo interior experimentado pelo taoísta..."

Existe ainda um outro aspecto de grande importância acerca do frasco de óleo com que Madalena ungiu
Jesus. Como já vimos, os Evangelhos nos dizem que o óleo era de nardo, um ungüento
excepcionalmente caro. A razão de seu alto preço era o fato de ser trazido da índia, lar da antiga arte
sexual do tantra. E na tradição do tantra, perfumes e óleos diferentes são designados para regiões
especificas do corpo: óleo de nardo era para os cabelos e os pés...
No Épico de Gilgamesh, diz-se dos reis sacrificados: "A meretriz que vos ungiu com o fragrante óleo,
por vós agora chora". Uma frase semelhante era utilizada nos mistérios da morte do deus Tamus, cujo
culto predominava em Jerusalém na época de Jesus." E, significativamente, os "sete demônios" que
Jesus supostamente expulsou de Madalena podem ser vistos como os sete espíritos Maskim, dos
sumérios e acadianos, que governavam as sete esferas sagradas e que haviam nascido da deusa Mari.
Na tradição do matrimônio sagrado, era a noiva do rei sacrificial - a Alta Sacerdotisa - quem escolhia o
momento de sua morte, quem realizava seu funeral e com sua magia o trazia de volta do mundo inferior
para gozar uma nova vida. Na maioria dos casos, é claro, essa "ressurreição" era puramente simbólica,
sendo vista como o renovar da vida representado pela primavera - ou, no caso de Osíris, pela cheia
anual do vale do Nilo que renovava a fertilidade da terra.
Podemos, portanto, ver a unção de Maria Madalena como um anúncio de que o momento do sacrifício
de Jesus havia chegado e, também, como um ritual reservado ao rei sagrado, que ela, como sacerdotisa,
tinha autoridade para realizar. Que esse papel é diametralmente em oposição ao que a Igreja
tradicionalmente atribuiu a ela já não deveria mais ser motivo de surpresa.
Em nossa opinião, a Igreja Católica jamais quis que seus membros realmente soubessem da verdadeira
relação entre Jesus e Maria, razão pela qual os Evangelhos Gnósticos não foram incluídos no Novo
Testamento e os cristão nem sequer tomaram conhecimento da existência deles. O Concílio de Nicéia,
ao rejeitar grande parte dos Evangelhos Gnósticos e votar pela inclusão apenas de Mateus, Marcos,
Lucas e João no Novo Testamento, não tinha qualquer mandado divino para exercer tal ato de censura.
Agiram assim por auto-preservação, pois naquela época, século IV, o poder de Madalena e de seus
seguidores já havia se espalhado a tal ponto que os patriarcas da Igreja não tinham como detê-lo.
De acordo com esse material censurado - que foi deliberadamente suprimido para evitar que os fatos
verdadeiros fossem conhecidos - Jesus deu a Madalena o título de "Apóstolo dos Apóstolos" e "Mulher
que Conhecia o Todo". Ele disse que ela seria elevada acima de todos os outros discípulos e governaria
o Reino da Luz que estava por vir. Como já vimos, ele também a chamava de Maria Lúcifer, "Maria,
aquela que traz a luz" - e afirma-se que ele trouxera Lázaro de volta dentre os mortos em razão do amor
que por ela sentia, não havendo nada que não fizesse por ela, nada que lhe recusasse. O Evangelho
Gnóstico de Felipe relata que os outros discípulos não gostavam dela, e que Pedro, em particular,
tentava argumentar sobre a condição dela com Jesus, chegando mesmo a perguntar-lhe, ingenuamente,
por que ele preferia ela aos outros discípulos e por que sempre a beijava na boca! No Evangelho
Gnóstico de Maria, a Madalena diz que Pedro odiava não só a ela como "toda a raça das mulheres", e,
no Evangelho de Tomé, Pedro diz: "Deixe que Maria se vá, pois as mulheres não merecem viver" -
preliminares da severa batalha entre a Igreja de Roma, que foi fundada por Pedro, e o movimento
herético que pertencia a Maria. (É instrutivo relembrar que isso começou como um rusga pessoal entre
dois indivíduos, e um deles era a consorte de Jesus.)
Significativamente, o Evangelho Gnóstico de Felipe (que se refere especificamente à Madalena como
parceira sexual de Jesus) está repleto de alusões a uniões entre homens e mulheres, entre noivo e noiva.
A iluminação final é simbolizada pelos frutos da união do noivo com a noiva: aqui Jesus é o noivo, e
sua noiva é Sofia, e Jesus engravidando-a é o ápice da gnose. (É interessante notar que mesmo nos
Evangelhos canônicos Jesus freqüentemente refere-se a si mesmo como "o Noivo”.) O Evangelho de
Felipe também estabelece uma clara associação entre Maria Madalena e Sofia."
Esse Evangelho Gnóstico lista cinco rituais iniciatórios ou sacramentos: batismo, crisma (unção),
eucaristia, redenção e, o mais elevado de todos, "a câmara nupcial":

A crisma é superior ao batismo... e Cristo é (assim) chamado por causa da crisma... Ele que é
ungido possui o Todo. Ele possui a ressurreição, a luz, a Cruz, o Espírito Santo. O Pai deu-lhe este
na câmara nupcial.

Se o ritual do sacramento da crisma era superior ao do batismo, então isso sugere que a autoridade de
Maria era realmente maior que a de João Batista. Ainda mais significativo, entretanto, o Evangelho de
Felipe deixa claro que todos os gnósticos que seguiam aquele sistema, e não apenas Jesus, tornavam-se
"Cristos" ao serem ungidos. E o maior dos sacramentos era o da "câmara nupcial", que nunca é
explicado e permanece um mistério para os historiadores. Porém, sob a luz de nossas investigações,
pode-se fazer uma suposição astuta: certamente as palavras da passagem contêm uma pista sobre a
verdadeira natureza da relação entre Jesus e Maria. Como já vimos, a última também era conhecida nos
Evangelhos Gnósticos como "a mulher que conhecia o Todo", e aqui nos dizem que "ele que é ungido
possui o Todo". E o Evangelho Gnóstico de Felipe declara de modo abrupto: "Compreenda o grande
poder que possui o intercurso imaculado".
A escritura gnóstica do século III conhecida como Pistis Sophia apresenta o que se afirmou serem os
ensinamentos de Jesus, doze anos após sua ressurreição. Madalena é retratada no papel arquetípico da
catequista, questionando-o a evocar sua sabedoria - exatamente como a Shakti ou deusa oriental
ritualmente questiona seu consorte divino. É digno de nota que no Pistis Sophia Jesus utilize com Maria
os mesmos termos que se utilizavam para aquelas deusas, 'Ternamente Amada". Essas são também as
palavras que os parceiros usam entre si no matrimônio sagrado.
A intimidade de Jesus e Maria encerra outra implicação profunda. A comparação entre o
relacionamento de ambos com o de Jesus e seus discípulos deixa pouca dúvida quanto a quem privava
realmente de suas idéias, pensamentos e segredos. Os discípulos homens são com freqüência retratados
como um tanto "lerdos". Muitas vezes "não entendiam o que ele queria dizer" - uma qualidade nada
inspiradora nos homens que um dia, aparentemente, iriam fundar a Igreja de seu líder. Na verdade, os
Atos dos Apóstolos falam do fogo celeste do Pentecostes que conferiu certa sabedoria e poder aos
discípulos, mas os Evangelhos Gnósticos falam de um discípulo que não necessitava dessa intervenção
divina. De acordo com o material censurado, foi Madalena quem reuniu os desolados discípulos após a
crucificação e, graças apenas à força de suas palavras inspiradoras, estimulou-os a levar a causa adiante
quando já pareciam prestes a desistir. Está certo que ela vira Jesus ressuscitado com seus próprios
olhos, porém, mais uma vez, deparamos com a curiosa sensação de que faltavam a eles a motivação, a
fé e a coragem de Madalena.
Poderia ser que os Doze, na verdade, não fizessem parte do círculo interno dos seguidores de Jesus, que
simplesmente, na melhor das hipóteses, fossem os mais leais de seus devotos não iniciados? Olhando
em retrospecto, a ignorância deles era chocante. Por exemplo, embora a morte e a ressurreição de Jesus
fossem a quintessência de sua missão, os homens não esperavam que acontecessem: "Ainda não
entendiam a escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos".
Foi Maria Madalena e suas seguidoras femininas que foram até a tumba. Talvez suas palavras ao
"guardião" - na realidade Jesus ressurrecto -, de que seu "Senhor" fora levado e que ela "não sabia onde
o haviam colocado", poderiam significar que ela também ignorava, assim como os homens, o que
estava acontecendo. Mas existem razões que nos compelem a ver suas palavras no contexto de que ela
partilhava dos mistérios secretos - talvez até como sacerdotisa. Maria Madalena foi com toda
probabilidade consorte de Jesus e a primeira Apóstola, e parece provável que seu papel abrangesse
outro significado ritual, mais pagão e mais antigo.
Pressupõem-se que os homens não acorreram à tumba de Jesus porque isso não era o tipo de coisa que
os homens fariam naqueles dias. Porém, a julgar pelos relatos gnósticos sobre a estarrecedora apatia dos
discípulos após a crucificação, o costume por si só não poderia explicar sua ausência. Na tradição dos
mistérios, apenas as sacerdotisas proclamavam o clímax do sacrifício do rei - sua miraculosa
ressurreição.
Mesmo que as aparentes semelhanças entre a unção, morte e ressurreição de Jesus com as tradições
pagãs da época sejam aceitas, ainda resta saber por que um pregador judeu teria se envolvido em tais
ocorrências. Pois embora Maria Madalena de fato pareça ter pertencido a algum tipo de culto às
prostitutas sagradas, e sua influência sobre seu consorte fosse, sem sombra de dúvida, grande, que
possível razão teria tido Jesus para voltar as costas a séculos da arraigada tradição judaica? Como
poderia, dentre todas as pessoas, ter participado de um ritual pagão?
Essa questão confronta-nos com uma possibilidade até aqui inimaginável. Como já vimos, a realidade
sobre Jesus e sua missão pode ser muito diferente daquela ensinada pela Igreja. Se por um momento
suspendermos a descrença e considerarmos a hipótese dada acima como verdadeira, isso significaria
criar um cenário completamente novo. E se Jesus fosse o parceiro de um casamento sagrado e, portanto,
participasse de boa vontade de ritos sexuais pagãos; e se Maria Madalena fosse realmente a suprema
sacerdotisa de um culto às deusas e no mínimo igual a Jesus, espiritualmente falando; e se Pedro e
outros discípulos não fossem, de fato, parte do círculo interno do movimento? E isso leva a uma outra
questão: tendo em vista esse quadro totalmente diferente, mesmo que hipotético, que tipo de homem
estaria realmente no centro de tudo isso? Quem era realmente Jesus?

CAPÍTULO XIII

Filho da Deusa
Como vimos, os estudos históricos modernos ofereceram uma série de novas descobertas sobre as
origens do cristianismo que chamam à reflexão. No entanto, o abismo entre o que os estudiosos da
Bíblia sabem sobre a religião e o que os cristãos conhecem, continua a crescer. Burton L. Mack,
catedrático de Estudos do Novo Testamento da Escola de Teologia de Claremont, Califórnia,
recentemente lamentou a "espantosa falta de conhecimentos básicos, entre grande parte dos cristãos,
sobre a origem do Novo Testamento”.
O fato de que a análise do Novo Testamento, tal como a conhecemos, só tenha começado no século
XIX, reflete a quase supersticiosa relutância em examinar os textos originais, em decorrência da longa
proibição da Igreja de que a Bíblia fosse lida pelo o público em geral. Durante séculos, somente os
padres liam as Escrituras - de fato, na maioria dos casos, somente eles podiam aprender a ler e escrever.
A ascensão do protestantismo quebrou parcialmente essa exclusividade, propiciando que um número
maior de pessoas tivesse acesso aos textos considerados sagrados. Entretanto, todas as formas extremas
do movimento protestante - desde o puritanismo ao que é hoje conhecido como fundamentalismo -
enfatizaram a inspiração divina por trás das palavras do Novo Testamento, proibindo assim qualquer
insinuação de que talvez não fossem a verdade literal. Nos dias de hoje, milhões de cristãos ignoram as
evidências que sugerem ser o Novo Testamento uma mistura de mito, pura invenção, versões
deturpadas de relatos de testemunhas e material tomado de outras tradições. No entanto, ao evitar tais
evidências, eles não apenas deixam de entender, como também mantêm um sistema de crença que está
cada vez mais vulnerável à crítica.
Quando os estudiosos do século XIX começaram a empregar os mesmos critérios comumente utilizados
para analisar outros textos históricos, os resultados foram extremamente reveladores. Um dos primeiros
desdobramentos a surgir foi a assertiva de que Jesus na verdade nunca existiu, e que os Evangelhos
eram simplesmente uma coletânea de material mitológico e metafórico. Atualmente, poucos estudiosos
do Novo Testamento concordam com essa visão, embora, como veremos, ela ainda tenha seus
defensores. O argumento a favor da existência de um Jesus histórico é bastante sólido, mas será
instrutivo examinar as razões daqueles que duvidam disso, afirmando que Jesus foi uma total invenção
dos primeiros cristãos.
Aqueles que advogam essa visão dizem que, fora os próprios Evangelhos, não existe nenhuma
evidência independente de que Jesus tenha realmente existido. (Isso por si só é um choque para muitos
cristãos, pois supõem que, sendo ele tão fundamental ao seu próprio mundo, deve ter sido muito famoso
na época: na verdade, ele não é mencionado em nenhum texto seu contemporâneo.) Os outros livros do
Novo Testamento - por exemplo, as Epístolas de Paulo - partem do pressuposto da existência de Jesus
mas não oferecem nenhuma prova sólida disso. Paulo, cujas cartas são os mais antigos textos cristãos de
que se tem notícia, não fornece nenhum detalhe biográfico sobre Jesus a não ser aqueles que se
relacionam com a crucificação - nada fala sobre seus pais, seu nascimento ou o passado de sua vida.
Mas Paulo, assim como os outros autores do Novo Testamento, está mais preocupado com a teologia,
em manter vivo o movimento de Jesus e explicar seus ensinamentos, do que com a biografia de seu
fundador.
Muitos historiadores do século XIX preocupavam-se com a falta de registros contemporâneos sobre
Jesus. Como vimos, nenhum cronista do primeiro século faz qualquer menção a ele. E como escreveu
Bamber Gascoigne: "Durante os primeiros cinqüenta anos do que hoje chamamos de era cristã, não há
uma única palavra sobre Jesus ou seus seguidores."'
O escritor romano Tácito (em sua obra Anais, c. 115) registra o crescimento do cristianismo - que ele
chama de uma "superstição perigosa" – em Jerusalém e em Roma e menciona de passagem a execução
de seu fundador, mas não dá nenhum detalhe e se refere a ele simplesmente pelo título de "Cristo".
Suetônio, em sua obra As vidas de César (c.120), refere-se a agitações entre os judeus, no ano de 49,
instigadas por"Chrestus". Isso com freqüência é citado como evidência de uma ramificação romana do
cristianismo, mas não é necessariamente assim. Muitos se proclamaram Messias entre os judeus
daquela época, e todos poderiam ser chamados, em grego, de "Cristo"; Suetônio escreve como se
aquele, em particular, estivesse pessoalmente e ativamente incitando a rebelião judia em Roma na
época.
Outro romano notável que teve contato com os cristãos nos primeiros anos do século I foi Plínio, o
Jovem, que não dá nenhuma informação sobre eles, além de dizer que seu movimento foi fundado por
"Cristo". O que é particularmente interessante nesse relato, porém, é o fato de mostrar que esse Cristo já
era considerado como um deus.
Esses autores eram romanos, e, como a Palestina era para o império um lugar atrasado, não é de
surpreender que negligenciassem Jesus e os primeiros dias da Igreja Cristã. (Além disso, rebeldes e
criminosos não recebiam a atenção que hoje recebem em nossa época de celebridades. Mesmo a
rebelião do ex-escravo Espártaco recebeu pouco espaço dos cronistas da época.) Entretanto, seria de
imaginar que a vida e o ministério de Jesus tivessem sido citados nas obras de Flávio Josefo (38-c.100),
um judeu que trocou de lado na revolta dos judeus e escreveu dois livros contando a história do período.
Sua obra Antigüidades dos judeus (escrita por volta do ano de 93) menciona, de fato, outros
personagens da história dos Evangelhos, principalmente João Batista e Pôncio Pilatos. Há uma
referência a Jesus, mas infelizmente já há muito se reconheceu que esta foi acrescentada à obra por um
autor cristão muito tempo depois - provavelmente no início do século IV - precisamente a fim de
preencher o silêncio constrangedor em torno desse assunto. Na verdade, a referência a Jesus é por
demais reverente, a ponto de comentadores terem perguntado por que o autor nunca se converteu ao
cristianismo, já que falava de Jesus em termos tão glorificantes! A questão verdadeira, contudo, era
saber se essa inserção apenas cobria a ausência de uma referência, ou se substituía uma outra que era
menos lisonjeira sobre Jesus e seu movimento. Não podemos estar certos sobre nenhuma das hipóteses,
embora o peso da evidência indique que se trata de completa invenção; a passagem nem mesmo está
escrita no estilo de Josefo e se encaixa muito mal no fluxo da história. E mais, o escritor cristão
Orígenes, do final do século III, não parece estar ciente de nenhuma referência a Jesus na obra de Josefo
(Embora Eusébio cite a referência quando escreve no século seguinte.) Entretanto, a referência de
Josefo ao pregador João Batista e à sua execução por Herodes Antipas não se questiona.
É claro que a falta de referências a Jesus fora dos Evangelhos não significa que ele nunca tenha
existido. Pode significar apenas que seu impacto na época não foi grande o suficiente. Afinal, houve
muitos outros pretensos Messias naquele tempo que não mereceram nossa atenção.
Além disso, se tal personagem não existiu, por que alguém o teria inventado? E por que tantas pessoas
teriam acreditado na história a ponto de a religião que leva seu nome ter florescido tão rapidamente?
Como indica Geoffrey Ashe, o conceito de personagens fictícios, que está tão intricado em nossa
cultura, não era de forma alguma comum aos autores da época. Mesmo que o que estivessem
escrevendo fosse essencialmente ficção, era sempre baseado em um personagem real, como Alexandre,
o Grande. Só por essa razão parece bastante improvável que Jesus fosse uma completa invenção - e
mesmo que houvesse alguma grande demanda cultural e espiritual por um "Deus Mortal", já existiam
muitos na época que poderiam ser escolhidos, como veremos. Não havia necessidade de inventar um
outro.
Também é significativo que os autores dos Evangelhos tenham inserido Jesus no contexto de
personagens históricos conhecidos, como João Batista e Pilatos. Isso também conta a favor de sua
existência, e, além disso, nenhum dos primeiros críticos do cristianismo contestou a existência de seu
fundador, o que certamente teriam feito se houvesse alguma razão para dúvida.
E o modo como Jesus é retratado indica que ele era um homem real. Nenhum escritor se daria ao
trabalho de criar um Messias fictício e, ainda assim, descrevê-lo como sendo tão ambíguo, até mesmo
evasivo, com respeito ao seu papel; nem tampouco lhe atribuiria ensinamentos, frases e alusões tão
impenetráveis. A ambigüidade, as evidentes contradições e os modos de expressão às vezes
absolutamente ininteligíveis caracterizam os Evangelhos como relatos - um tanto confusos - das
palavras e feitos de um personagem histórico genuíno.
A falta de qualquer detalhe biográfico sobre Jesus em Paulo tem sido tomada pelos céticos como prova
de que Cristo nunca existiu. Ninguém, porém, afirma que Paulo era uma invenção, e ele definitivamente
conhecia as pessoas que haviam conhecido Jesus. Por exemplo, Paulo não só conheceu Pedro como
brigou com ele (e esse comportamento pouco honroso é evidência de que eles eram reais - nenhum
escritor naqueles dias teria colocado tal fraqueza em seus heróis). Portanto, parece provável que Jesus
tenha realmente existido, o que não significa, porém, que tudo o que está nos Evangelhos seja
verdadeiro.
Havia, porém, uma outra razão para que muitos estudiosos do século XIX duvidassem da existência de
Jesus. À medida que o conhecimento histórico crescia e o Novo Testamento tornava-se objeto de
crescente análise crítica, ficou evidente que a história de Jesus tinha paralelos estranhos e bastante
próximos com o de famosas figuras da mitologia - especialmente com os deuses mortos-ressurrectos do
antigo Oriente Médio, venerados em cultos misteriosos que floresceram à mesma época do cristianismo
e eram mais antigos do que este.
Uma das argumentações mais eruditas e persuasivas sobre esse tema está na obra Pagan Christis, de J.
M. Robertson, publicada em 1903. Em sua introdução a uma recente sinopse, Hector Hawton resumiu o
parecer de Robertson na seguinte questão:

...ninguém afirma seriamente que Adônis, Atis e Osíris eram personagens históricos... por que,
então, se faz uma exceção no caso do suposto fundador do cristianismo?'.
Esses paralelos estão relacionados com o cristianismo de dois modos. Primeiro, nos relatos dos
acontecimentos da vida de Jesus, como sua morte, ressurreição e a instituição da eucaristia na Última
Ceia; segundo, no significado atribuído a esses acontecimentos pelos primeiros cristãos. Um breve
resumo dos pontos mais relevantes, feito por Robertson e outros comentadores importantes, sublinham
o fato de que muitas das partes mais sagradas da história de Jesus são idênticas às de outras religiões
antigas.
Robertson diz:

Como Cristo, Adônis e Atis, Osíris e Dioniso também padeceram e ressuscitaram. Unir-se a eles é a
paixão mística de seus adoradores. Eles todos se assemelham no fato de que seus mistérios conferem
imortalidade. Do mitraísmo, Cristo toma as chaves simbólicas do céu e assume a função de Saoshayant,
o destruidor do Mal, nascido da Virgem.. ."

Em seus fundamentos, portanto, o cristianismo é paganismo com outra roupagem.


O mito cristão cresceu absorvendo detalhes de cultos pagãos... Como a imagem do deus-menino no
culto de Dioniso, foi retratado como um bebê enfaixado em um manjedoura. Nasceu em uma estrebaria
como Hórus - o templo-estábulo da deusa virgem Ísis, rainha dos céus. Novamente como Dioniso,
transformou água em vinho; como Esculápio, devolveu a vida a homens mortos e deu visão aos cegos;
como Atis e Adônis, foi pranteado e exaltado pelas mulheres. Sua ressurreição, como a de Mitra,
aconteceu em uma tumba de pedra...

Não há concepção associada a Cristo que não seja comum a algum ou todos os cultos de
Salvadores da Antigüidade."

Se é surpreendente que os pontos levantados por Robertson e outros tenham produzido tão pouco
impacto na época, é ainda mais impressionante que ainda sejam tão pouco conhecidos hoje em dia.
Uma voz mais recente sobre o assunto é a de Burton L. Mack, que escreveu em 1994:

Sucessivos estudos têm demonstrado que desde o início o cristianismo não era uma religião singular
mas que, na realidade, fora "influenciado” pelas religiões da Antigüidade... perturbadora foi a
descoberta de que em seus primórdios o cristianismo ostentava uma clara semelhança com os cultos de
mistério do helenismo, particularmente nos aspectos mais significativos, ou seja, nos mitos de deuses
que morrem e renascem e em seus rituais de batismo e refeições sagradas. "

Hugh Schonfield diz em seu livro The Passover Plot:

Os cristãos hoje continuam a se inquietar com as contradições das doutrinas da Igreja, que nasceram da
tentativa infeliz de misturar os ideais incompatíveis do paganismo e do judaísmo.'"

Estudiosos como Robertson achavam inconcebível que fosse apenas coincidência que tantos elementos
dos cultos dos deuses mortais pudessem ser encontrados na história de Jesus. Concluíram que os
Evangelhos haviam tomado emprestados os acontecimentos principais das histórias de Osíris, Atis e
outros, enxertando-os em um herói "doméstico", que nunca existiu.
Um defensor recente dessa idéia é Ahmed Osman, que, em sua obra House of the Messiah, propõe a
teoria de que os relatos dos Evangelhos na verdade registram uma peça de mistério que data de muitos
séculos atrás, do tempo do antigo Egito. Como seus predecessores, Osman baseia seus argumentos nos
incríveis paralelos entre o mito de Jesus e as histórias da antiga religião do Egito, e nas dúvidas
relativas à existência histórica de Jesus."
Mas por que alguém roubaria parte do mistério de outra tradição e introduziria nela pessoas reais como
João Batista? Osman acha que as narrativas dos Evangelhos foram uma invenção dos seguidores de
João Batista. De acordo com sua tese, eles inventaram Jesus a fim de cumprir a profecia de seu mestre
sobre aquele que viria depois dele, e cujo advento previsto foi, provavelmente, notável pela sua
ausência. Entretanto, isso é implausível por muitas razões: os seguidores de João dificilmente forjariam
uma história na qual seu próprio e amado mestre fosse tão marginalizado, sendo incluído apenas para
servir de cenário à glorificação de outro. E, como veremos, nem mesmo é certo que João tenha feito a
famosa profecia sobre um maior que viria depois dele.
De acordo com Osman, ninguém sabia da missão de Jesus como Redentor até sua morte, e, portanto, ele
não deve ter tido um grande número de seguidores enquanto estava vivo. Osman acredita que os judeus
estavam esperando um Messias que iria morrer por eles. Mas isso não é verdadeiro - os judeus nunca
esperaram que seu rei-herói fosse sacrificado ou humilhado daquela forma. A idéia toda da morte
redentora, conforme a conhecemos, é uma interpretação cristã posterior.
Poucos estudiosos duvidam hoje da existência de Jesus, embora a maioria deles ainda tenha problemas
com os evidentes exemplos de referências a escolas de mistérios presentes nos Evangelhos. Acreditando
ser impossível reconciliá-los com o mais óbvio material judaico, eles tendem a rejeitar as insinuações
de paganismo. Afirmam que estas foram acrescentadas quando os primeiros cristãos tomaram contato
com outros pontos do grande Império Romano, particularmente como resultado das viagens de Paulo. A
visão aceita é a de que a igreja de Jerusalém, liderada pelo irmão de Jesus, Tiago, o Justo, representava
a forma "pura" original do cristianismo. Infelizmente, em virtude de acidentes históricos, a igreja de
Tiago desapareceu durante a Revolta dos Judeus, de modo que a natureza de suas crenças continua
sendo objeto de especulação. Sabemos, entretanto, que seus seguidores oravam no Templo de
Jerusalém; portanto, é razoável supor que suas crenças se baseavam em práticas judaicas. Após o
colapso da Igreja de Jerusalém, o palco ficou livre e Paulo pôde então ocupá-lo. Tal fato parece fornecer
uma solução elegante para o problema de explicar por que se encontra tanto material de escolas de
mistério nos Evangelhos, conforme os conhecemos.
Pode haver uma outra explicação, se invertermos o argumento. E se a versão de Paulo do cristianismo
estivesse mais próxima dos ensinamentos de Jesus e fosse a Igreja de Jerusalém que tivesse caminhado
pela trilha errada? Irmãos não necessariamente compreendem um ao outro, e com certeza havia uma
marcante frieza entre Jesus e sua família; assim, não há razão para supor que o cristianismo de Tiago
estivesse mais próximo que o de Paulo dos ensinamentos originais de Jesus.
A opinião corrente acerca do desenvolvimento dos primórdios do cristianismo não consegue explicar
por que Paulo, que também era judeu, teria sentido necessidade de pregar uma forma paganizada da
religião que acabava de se instalar. Sua famosa conversão na estrada de Damasco provavelmente
aconteceu, no máximo, cinco anos após a crucificação - e como, antes disso, ele tinha a função de
perseguir os cristãos, é de presumir que ele tivesse uma boa idéia da razão por que os perseguia.
Nossas descobertas sobre a Madalena ser uma iniciadora de uma escola de mistério sugerem que o
próprio Jesus foi também um iniciado - talvez porque ela o tenha iniciado. Mas por que ele teria se
envolvido tanto com um culto pagão quando todo mundo sabia que era judeu?
Descobrimos que nada poderia ser dado como certo nessa história. Pensamos, então, que valeria a pena
desafiar os pressupostos costumeiros sobre os antecedentes religiosos de Jesus. Como Morton Smith diz
ironicamente em sua obra Jesus the Magician (que discutiremos em detalhes mais à frente):
É claro que Jesus era judeu, e também todos os discípulos - supostamente. A suposição não é segura.
Para começar, vale a pena perguntar como "sabemos” essas coisas sobre Jesus.
A visão corrente entre os acadêmicos, discutida acima, baseia-se em dois pressupostos que tentam
explicar a evidente contradição entre os elementos pagãos e judeus da história de Jesus. .
O primeiro pressuposto é o de que Jesus era judeu, embora não se saiba ao certo a que seita ele
pertencia. Como vimos, o segundo pressuposto é de que os aspectos claramente pagãos, relacionados a
cultos de mistério, presentes nos relatos dos Evangelhos, são resultado de invenções posteriores. O
argumento é que, como o cristianismo começou a se disseminar entre as comunidades não judaicas do
mundo romano, as afinidades com os mistérios tornaram-se visíveis e foram elaboradas, sobretudo
porque podiam ajudar a explicar o insuficiente desempenho de Jesus no papel de Messias dos judeus.
Foi um choque para nós descobrir que tudo era mera suposição, e não fatos comprovados. Nenhuma
dessas afinidades baseia-se na qualidade de evidência normalmente exigida pelos historiadores. Não há
provas concretas de que os elementos pagãos foram incorporados por Paulo. Podem muito bem ter sido
introduzidos por seus companheiros missionários - a propagação do cristianismo, apesar da bem-
sucedida publicidade de Paulo, não se deve inteiramente a ele. Quando ele chegou a Roma, por
exemplo, descobriu que já havia cristãos ali.
Ao que parece, mesmo no século XX, com todo o seu ceticismo, é tão disseminada a aceitação tácita da
história do cristianismo que até os críticos acadêmicos normalmente não conseguem reconhecer suas
próprias pré-concepções como tal. Por exemplo, A. N. Wilson, geralmente um comentador perspicaz e
analítico, escreveu as duas frases seguintes sem aparentemente notar a contradição entre elas:

... antes de começar [tentar responder às questões sobre o Jesus histórico], é necessário esvaziar a
mente e não tomar nada por certo. O centro dos ensinamentos de Jesus era sua crença em Deus e sua
crença no judaísmo.

Decidimos ver o que aconteceria se de fato questionássemos esses pressupostos.


A versão comum do desenvolvimento dos primórdios do cristianismo sempre repousa na premissa
básica de que Jesus era de religião judaica, O que significa que muitos outros aspectos do relato
evangélico, que de outra forma seriam intrigantes,ficam automaticamente rejeitados. Pesquisamos mais
a fundo o pressuposto judaísmo de Jesus - o que implica, sem dúvida, um substrato tanto étnico quanto
religioso - e logo nos vimos contestando essa suposição. (Ele pode ter sido etnicamente um judeu, mas
não de religião judaica: para os propósitos desse argumento iremos utilizar o termo "judeu" quando nos
referirmos a Jesus apenas no último sentido, a menos que esteja dito que o sentido é outro.)
Claro que nosso desafio a essa suposição nos provocou certo temor: estávamos, afinal, batendo de
frente com cerca de um século de estudos do Novo Testamento. Ficamos, então, mais do que aliviados
ao descobrir que a última tendência nos estudos do Novo Testamento baseava-se exatamente na mesma
questão: Jesus era realmente judeu?
A primeira obra relacionada com essa questão a alcançar repercussão popular foi The Lost Gospel, de
Burton L. Mack, de 1994, embora muitos outros estudiosos tenham publicado os resultados de
pesquisas que fizeram sobre o mesmo tema em periódicos especializados já no final dos anos 80.
Mack abordou o problema do ponto de vista dos ensinamentos de Jesus, não da história de vida dele.
Baseou seu argumento na fonte perdida dos Evangelhos Sinópticos, conhecida como Q (da palavra
alemã Quelle, que significa "fonte"), ou pelo menos no que pode ser reconstruído a partir da
comparação desses Evangelhos. Ele conclui que os ensinamentos de Jesus não provinham do judaísmo,
estando mais proximamente relacionados com os conceitos, e mesmo com o estilo, de certas escolas
filosóficas gregas, especialmente a dos cínicos.
Acredita-se seguramente que Q tenha sido uma coletânea de ditos e ensinamentos de Jesus, encaixando-
se de modo perfeito no gênero específico dos textos contemporâneos conhecidos como "literatura da
sabedoria", que se sabia existir entre os antigos hebreus, mas que não era de forma alguma exclusiva da
religião ou cultura judaica. Também era popular por todo o mundo helenístico, no Oriente Próximo e no
antigo Egito. Kloppenborg, uma autoridade no assunto, afirma que Q se aproxima mais do modelo dos
"livros de instrução" helenísticos. Q difere desses livros por incluir material profético e apocalíptico,
mas Mack acredita que somente os "ensinamentos de sabedoria" constituíam o Q original, e que o outro
material foi acrescentado depois.
Mack e os outros estudiosos que trabalhavam na mesma linha baseiam suas conclusões nos
ensinamentos e ditos de Jesus. Ainda rejeitam os acontecimentos tal como relatados nos Evangelhos
porque não se encaixam nas tradições dos judeus nem dos cínicos, e sugerem que o deus morto e
ressurrecto e os temas das escolas de mistério são invenções posteriores dos primeiros cristãos.
Fizemos a nós mesmos as seguintes perguntas: há alguma evidência que demonstre que Jesus não era
judeu? Por outro lado, havia alguma evidência que demonstrasse conclusivamente que era? Os
elementos das escolas de mistérios tornam mais fácil ou mais difícil encontrar uma explicação?
É certo que o ministério de Jesus tem lugar dentro de um contexto judeu - na Judéia do primeiro século
-, e muitos daqueles que o seguiam também eram judeus. Seus discípulos mais próximos e aqueles que
escreveram os Evangelhos parecem ter acreditado que ele era judeu. Entretanto, seus seguidores
aparentemente o consideravam uma espécie de enigma - por exemplo, não estavam certos de que ele era
o Messias -, e os autores dos Evangelhos claramente fizeram um enorme esforço para conciliar os
elementos contraditórios de sua vida e ensinamento. Parece que não tinham certeza sobre como falar
dele.
À primeira vista parece haver uma razão bastante boa para acreditar que Jesus era judeu. Ele falava com
freqüência nas figuras religiosas do Antigo Testamento, tais como Abraão e Moisés, e muitas vezes
engajava-se em debates com fariseus sobre pontos da lei judaica - se ele não fosse judeu certamente não
haveria qualquer razão para que fizesse isso de modo tão obsessivo.
Muitos estudiosos concordam, porém, que essas passagens são as menos prováveis de conter palavras
genuínas de Jesus. Foram acrescentadas depois porque os Apóstolos viram-se obrigados a debater
pontos da lei judaica e sentiram necessidade de criar uma justificativa anterior para seus argumentos,
utilizando o próprio Jesus. A prova disso é que os antagonistas nas histórias do Novo Testamento
geralmente são os fariseus, que na verdade não tinham nenhuma função ou autoridade especial, ainda
mais na Galiléia, no tempo de Jesus, enquanto que na época em que os Evangelhos estavam sendo
compilados eles gozavam de influência." Como diz Morton Smith:

Pode-se demonstrar que quase a totalidade das referências dos Evangelhos aos fariseus são derivadas
dos anos 70, 80 e 90, os últimos anos nos quais os Evangelhos estavam sendo editados.

A única maneira de entender as verdadeiras origens de Jesus é colocá-lo no contexto de sua época e
lugar. Embora haja um debate contínuo sobre onde nasceu e cresceu, como veremos, os Evangelhos
concordam que ele deu início a sua missão a partir da Galiléia. É improvável, porém, que fosse de lá,
porque embora os Evangelhos façam referência ao característico sotaque galileu dos discípulos - que
era considerado comicamente rústico pelos nascidos na Judéia -, não se diz a mesma coisa sobre Jesus."
Portanto, o que é que sabemos sobre a Galiléia da época de Jesus? Mack assim resume a visão
acadêmica corrente sobre aquele lugar naquela época:

No mundo da imaginação cristã, a Galiléia pertencia à Palestina, a religião da Palestina era o


judaísmo e, portanto, todos na Galiléia deveriam ser judeus. Uma vez que essa imagem está errada... o
leitor precisa ter em mente uma imagem mais verdadeira."

Aquilo que pensamos ser o judaísmo na época de Jesus - a partir da imagem que nos oferecem os
Evangelhos - na verdade era apenas o judaísmo de templo da Judéia, cujo centro de oração era o
Templo de Jerusalém. Foi fundado pelos judeus após sua traumática passagem pelo cativeiro na
Babilônia e estava em constante estado de mudança. Nem todos os judeus, porém, foram exilados, e sua
versão do judaísmo desenvolveu-se separadamente e era muito diferente daquela dos ex-cativos que
retornaram. A religião dos não-exilados era especialmente praticada na Samaria e na Galiléia, ao norte,
e na Iduméia, ao sul da Judéia.
A Galiléia, entretanto, dificilmente seria um lugar apropriado para o judaísmo fervoroso, de qualquer
tipo. Fizera parte, é verdade, do reino de Israel, mas por um breve período e muitos séculos antes de
Jesus aparecer, e desde então estivera sob influência de diversas culturas diferentes. Não sem razão a
Galiléia era conhecida como "a pátria dos gentios"." Chegava a ser mais cosmopolita do que Samaria,
que ficava entre a Judéia e a Galiléia. Como diz Mack: "Seria errado imaginar que a Galiléia
repentinamente foi convertida à lealdade e à cultura judaicas."
A Galiléia, com seu clima bom para a agricultura e pesca lucrativa no lago da Galiléia, era uma região
rica e fértil.Tinha amplas ligações comerciais com outras culturas do mundo helenístico e ficava no
centro de uma rede de rotas de comércio que levavam ao restante da Síria, Babilônia e Egito. Abrigava
povos de muitas terras e culturas e mesmo os homens das tribos beduínas eram visitantes comuns.
Como assinala Morton Smith, as influências principais na religião da Galiléia naquela época eram os
"nativos, os palestinos, o paganismo semítico, os gregos, persas, fenícios e egípcios".
A Galiléia era conhecida por sua bravia Independência. Porém, nas palavras de Mack, a região não
tinha "uma capital, nem templo e nem hierarquia de sacerdotes". Significativamente, a sinagoga mais
antiga conhecida na Galiléia data apenas do século III da era cristã.
A região fora anexada a Israel no ano 100 a.C. e logo depois, em 63 a.C., os romanos conquistaram toda
a Palestina e fizeram dela uma província de seu Império. Na época do nascimento de Jesus, toda a Israel
era governada por Herodes, o Grande - um rei-títere controlado pelos romanos -, que era na verdade um
indumiano politeísta. Quando Jesus iniciou seu ministério, porém, a terra estava dividida entre os três
filhos de Herodes. Herodes Antipas governava a Galiléia, e (após seu irmão Arquelau ter sido forçado a
se refugiar na propriedade da família de Herodes no sul da França) a Judéia era governada diretamente
por Roma, através de seu governador Pôncio Pilatos.
Na época de Jesus, a Galiléia era uma região próspera e cosmopolita não o lugar remoto e rústico da
imaginação popular - e não era nem mesmo predominantemente judia; para os galileus, as autoridades
em Jerusalém não prevaleciam mais do que seus senhores romanos.
Uma vez que se compreenda que a Galiléia era muito diferente da imagem tradicional que se tem do
lugar, imediatamente começam a brotar questões sobre as reais intenções e motivações de Cristo. Se a
Galiléia tinha realmente uma cultura sofisticada sem qualquer fanatismo contra os romanos ou a favor
dos judeus, então estaria realmente Jesus tentando sublevar a população para uma rebelião contra os
romanos, como sugerem alguns comentadores modernos? E seria a Galiléia o melhor lugar para iniciar
algum tipo de campanha de reforma do judaísmo, como acreditam outros?
Embora houvesse judeus na Galiléia, havia também muitas outras religiões que coexistiam em uma
invejável atmosfera de tolerância. Havia até mesmo algumas formas "heréticas" de judaísmo que lá
floresceram, o que torna ainda mais implausível a idéia de que aquele solo era promissor para se
implantar qualquer tipo de reforma judaica. Em uma região onde, aparentemente, várias formas
religiosas conviviam pacificamente, uma tentativa de redefinir a corrente principal do judaísmo estaria
fadada ao fracasso. E isso explicaria ainda menos a culminação da missão de Jesus em Jerusalém.
Como diz Schonfield em The Passover Plot:

...os judeus consideravam o norte da Palestina como a terra natural da heresia... Não sabemos muito
sobre a antiga religião israelita, mas parece que ela havia absorvido uma boa parte dos cultos sírios e
fenícios, que não estavam nem mesmo perto de ser erradicados, como acontecera no sul, pelo zelo
reformista de Ezra e seus sucessores.

Um outro território do norte que viria a ser importante para Jesus era a Samaria, celebrizada pela
história do Bom Samaritano. Devido a inúmeros sermões sobre o assunto, os freqüentadores de igreja
entendem que os samaritanos eram injuriados pelos outros judeus, e que a história do samaritano que
cruzou a estrada para socorrer uma vítima de assalto é um exemplo perfeito da necessidade de
reconhecer o potencial para o bem em qualquer pessoa.
Entretanto, há uma outra razão para se levar a Samaria seriamente em conta no contexto de nossa
investigação. Os samaritanos tinham suas próprias expectativas com respeito à chegada de um Messias,
que eles chamavam de Ta'eb e que era consideravelmente diferente daquele da versão judaica. No
Evangelho de João (4:6-10) lemos que Jesus encontrou num poço uma mulher samaritana que o
reconheceu como o Messias, provavelmente como Ta'eb, o que indica que seu judaísmo era, no
mínimo, heterodoxo. Talvez Jesus tenha inventado a parábola do Bom Samaritano como uma forma de
"agradecimento aos samaritanos por seu apoio.
Um outro engano sobre Jesus está na idéia de que ele era "Jesus de Nazaré. - ou seja, que ele viera da
cidade desse nome, que existe hoje na moderna Israel. Não existe, porém, nenhum registro desse lugar
até o século III.A palavra deve ser nazoreano, que identifica Jesus como membro de uma das muitas
seitas que coletivamente utilizavam esse nome, mas não como seu fundador. Os nazorenos eram um
grupo de seitas correlatas sobre as quais pouco se conhece. Entretanto, a palavra por si só é interessante,
já que deriva do hebreu notsrim, que significa "Guardiães ou Preservadores... os que guardam o
verdadeiro ensinamento e tradição, ou que cuidam de determinados segredos que não divulgavam para
outros "
Isso por si só vai contra um dos maiores princípios do cristianismo, que é o de que a religião é para
todos e não tem segredos - o extremo oposto das escolas de mistérios, que ofereciam diferentes graus de
conhecimento ou iluminação àqueles que galgavam os degraus cada vez mais íngremes da iniciação.
Para esses cultos, a sabedoria é oferecida somente se conquistada, e o pupilo obtém maiores percepções
apenas quando seus mestres espirituais consideram que ele está pronto. Essa era uma noção bastante
comum na época de Jesus: as escolas de mistério gregas, romanas, babilônias e egípcias costumavam
empregar essa estrutura de ensino e guardavam seus segredos zelosamente. Hoje em dia essa
abordagem das escolas de mistério é empregada em muitas escolas religiosas e filosóficas do Oriente
(incluindo o budismo zen), bem como por grupos como os maçons e templários. O próprio conceito da
iniciação é também o que dá nome ao ocultismo, pois, como vimos, a palavra significa apenas
"escondido. - os mistérios permanecem secretos até que tenha chegado o momento certo e o aluno
esteja pronto. Se os ensinamentos de Jesus não se destinavam às massas, então por sua própria natureza
eram elitistas e hierárquicos - e ocultos. E, como vimos quando reavaliamos o verdadeiro status de
Maria Madalena, as semelhanças entre as escolas de mistérios e o movimento de Jesus são numerosas
demais para ser ignoradas.
Há muitos outros equívocos sobre Jesus. Por exemplo, a história do natal é basicamente um conto de
fadas - relacionado com os mitos de natividade de outros deuses mortais -, e há dúvidas inclusive de
que Jesus tenha realmente nascido em Belém. De fato, o Evangelho de João (7:42) declara
explicitamente que ele não nasceu lá.
Embora muitos dos elementos da Natividade tenham derivado claramente dos mitos de nascimento de
outros deuses mortos e ressurrectos, a visita dos sábios vindos do Oriente baseia-se num relato da época
sobre a vida do imperador Nero. Algumas vezes essas figuras são conhecidas como magos, que é
exatamente o título dado a uma tradição dos magos, ou feiticeiros, persas. Parece ser muito estranho ter
o equivalente de três Aleister Crowley visitando o menino Jesus para dar-lhe presentes, sem uma
palavra sequer de crítica ou censura por parte dos autores dos Evangelhos. E a julgar pelo fato de que
afirmavam ter seguido a estrela de Belém, eram também astrólogos (a astronomia enquanto disciplina
separada era desconhecida naqueles dias). A história de feiticeiros dando a Jesus ouro, incenso e mirra
definitivamente é algo que deveria nos impressionar. (Como vimos, porém, Leonardo em sua Adoração
dos reis magos omitiu o ouro, símbolo de realeza e de perfeição.)
Vimos também que Jesus é mencionado como um naggar, que significa tanto carpinteiro como erudito
ou homem instruído - no caso dele, provavelmente o último. Tampouco seus discípulos mais famosos
eram os humildes pescadores da lenda: A. N. Wilson observa que na verdade eram donos de um
comércio de peixes no lago da Galiléia." (Além disso, como reforça Morton Marks, alguns dos
discípulos obviamente não eram judeus: Felipe é um nome grego, por exemplo.")
Muitos comentadores têm usado as parábolas como prova de que Jesus era de origem humilde: suas
analogias freqüentemente giravam em torno da vida rural cotidiana e de situações domésticas, e isso é
tomado como prova de que ele tinha experiência pessoal nessas coisas. Outros assinalam, entretanto,
que seu imaginário realmente revela apenas um conhecimento superficial das realidades mundanas da
vida - é como se ele fosse na verdade uma pessoa de classe social bem mais alta, que deliberadamente
tentava falar a linguagem das massas, como um aristocrata do partido conservador inglês dirigindo-se a
eleitores da classe trabalhadora com termos que ele espera serem familiares a estes.
Mesmo que o casamento em Canã não fosse, como acreditam alguns, a ocasião de seu próprio
casamento com Madalena, ainda assim demonstra que ele se movimentava entre os vários círculos da
“sociedade", a julgar pelas celebrações. E o episódio dos soldados romanos jogando dados aos pés da
cruz para ver quem ficava com as roupas de Jesus, sugere que valia a pena disputá-las. Ninguém aposta
para ganhar trapos.

Portanto, o quadro que surge sobre os antecedentes de Jesus é significativamente diferente daquele que
a maioria de nós cresceu ouvindo. A próxima questão é saber se há algum pressuposto sobre Jesus que
seja plenamente justificado? Por exemplo, há alguma evidência positiva nos Evangelhos para a noção
de que Jesus não era judeu?
Após o batismo, Jesus se retirou no deserto onde foi testado pelo Demônio, que tentou seduzi-lo a
revelar sua divindade. Mais uma vez, entretanto, isso de forma alguma é claro. Alguns sugerem que a
tentação revela apenas a implícita rejeição de Jesus ao próprio Jeová. Isso pode ser discutível, mas um
episódio reflete definitivamente sua atitude para com o Deus judeu.
Uma das passagens mais famosas do Novo Testamento é quando Jesus, irado ao ver os comerciantes de
dinheiro no Templo, derruba suas bancas. Embora esse pareça ser um episódio simples, na verdade
coloca um outro grande problema, há muito reconhecido por teólogos e estudiosos do Novo
Testamento.
Embora as ações de Jesus sejam geralmente explicadas pelo horror que ele sentiu ao ver um local
sagrado ser contaminado por transações financeiras, essa é uma atitude muito ocidental e bastante
recente na verdade. Pois a troca de dinheiro a fim de comprar animais para o sacrifício no Templo de
Jerusalém não era algo nem corrupto nem abusivo. Era uma parte fundamental da veneração. Como
enfatiza John Dominic Crossa, catedrático de Estudos Bíblicos da Universidade de Chicago: "Não há
nenhum indício de que alguém estivesse fazendo alguma coisa imprópria, nem em termos financeiros
nem de sacrifícios”. E segue dizendo que isso foi "um ataque direcionado à própria existência do
Templo... uma negação simbólica de tudo... o que representava o Templo".
Alguns tentaram explicar esse gesto - que foi central no ministério de Jesus - argumentando que ele
expressava sua insatisfação com o regime que então vigorava no Templo. Porém, no contexto da época
e do lugar, tal reação teria sido exagerada, a ponto de indicar desequilíbrio mental. Para fazer uma
analogia atual, seria como um anglicano que, para protestar contra a ordenação de mulheres, fosse à
abadia de Westminster e pisoteasse a cruz sobre o altar. Isso simplesmente não aconteceria, porque os
devotos sabem traçar o limite entre uma ação que é apropriada - por mais simbólica que seja - e o tipo
de protesto que se constitui na verdade em um sacrilégio. E o que Jesus fez foi um sacrilégio.
Assim, o judaísmo de Jesus era, para dizer o mínimo, heterodoxo. Isso abre caminho para novas
hipóteses sobre o que ele realmente era. E há claras indicações de que fazia parte de uma escola de
mistério. Existem, porém, episódios nos Evangelhos que indiquem ser esse o caso?
Foi quase um choque descobrir, logo no início de nossas investigações, que somente uns poucos
pesquisadores pareciam ter feito a pergunta que para nós era fundamental: "Onde será que João Batista
foi buscar o ritual do batismo?" Investigações posteriores revelaram não haver qualquer precedente
desse ritual no judaísmo, embora sejam encontradas referências de rituais de lavagem - imersões
repetidas simbolizando a purificação - nos Manuscritos do Mar Morto, Entretanto, não é correto
descrever esses rituais como "batismos": o que João propunha, na verdade, era um ato único de
iniciação, de mudança de vida, que era precedido pela confissão e arrependimento dos pecados. O fato
de que esse ritual não tinha precedente no judaísmo é indicado pelo título ou apelido de João - o Batista,
o único e não um entre muitos. Realmente, o batismo sempre foi tido como uma inovação introduzida
por João, embora haja de fato muitos precedentes e paralelos exatos fora do mundo judaico.
O batismo como um símbolo externo e visível de uma renovação espiritual interna fazia parte de muitos
cultos de mistério que existiam por todo o mundo helenístico naquela época.Tinha uma tradição
particularmente longa no culto à Isis do antigo Egito; e, significativamente, o batismo em seus templos,
às margens do Nilo, era precedido pelo arrependimento público e a confissão dos pecados ao sacerdote.
(Isso será discutido mais de perto no próximo capítulo,)
Além disso, aquele foi o único período na longa história da religião de Isis durante o qual foram
enviados missionários a países além das fronteiras do Egito; assim, parece provável que João tenha sido
particularmente influenciado pelo ritual de batismo dos egípcios. Como veremos, pode ser que ele tenha
tido uma experiência pessoal da religião de Isis no próprio Egito, pois, segundo antigas tradições
cristãs, a família de João teria fugido para o Egito a fim de escapar da fúria de Herodes - tradições que
encontraram expressão na Virgem dos rochedos de Leonardo da Vinci.
O batismo de Jesus apresenta diversos problemas. Primeiro, e de modo algum o menor deles, é a idéia
de que um Filho de Deus, e portanto sem pecados, realmente necessitasse purificar-se de seus pecados.
Dizer que Jesus estava dando um bom exemplo a seus seguidores - como muitos tentaram argumentar -
não serve, de modo algum, de explicação, pois em nenhum lugar nos Evangelhos é possível encontrar
algo que corrobore tal noção.Também há, por outro lado, significativas anomalias no próprio
imaginário que os relatos evangélicos empregam ao descrever o batismo de Jesus por João. Enquanto
Morton Smith diz que a aparição da pomba não tem paralelo ou precedente na tradição judaica,
Desmond Stewart vai mais além e encontra claras ligações com o simbolismo e as práticas do Egito.
Diz ele:

Embora Jeová supostamente tenha enviado corvos para alimentar um profeta, ele normalmente
não se manifestava na forma de pássaros descendo dos céus, As pombas, de qualquer modo, eram
sagradas para as deusas pagãs do amor, então conhecidas como Afrodite ou Astarte...
Para o que Jesus pensou ter visto, os egípcios têm uma explicação melhor... Quando Re [ou Ra,o sol-
deus dos egípcios] abraçou seu amado, o faraó, acolhendo-o em seu peito, ele o fez na aparência de
Horus, cujo símbolo mais comum era o falcão...
A adoção, em um ritual de batismo, de um mortal por uma deidade não representava um problema para
os egípcios.

A principal deidade egípcia geralmente associada com o símbolo de uma pomba é, entretanto, mais uma
vez, Ísis, conhecida como a "Rainha dos Céus", "Estrela do Mar" (Stella Maris) e "Mãe de Deus" muito
antes de que a "Virgem" Maria nascesse. Ísis era freqüentemente retratada amamentando Horus, o
mágico rebento de sua união com o morto Osíris. No festival anual que marcava a morte e ressurreição
de Osíris três dias depois, dizia-se que o sol tornara-se negro no instante de sua morte, quando ele
adentrou o Submundo. (E é um sol negro que brilha sobre a cena da crucificação no mural de Jean
Cocteau em Londres.)
Dado o zelo missionário incomum de alguns grupos devotos de Ísis na época, e a proximidade
geográfica do Egito - para não mencionar a natureza cosmopolita da Galiléia -, não é de surpreender
que João, Jesus e aqueles que os seguiam tivessem sido influenciados pelo culto a Ísis.
O que causa admiração é que a maioria dos cristãos ainda é encorajada a pensar que sua crença é única,
em todos e cada um de seus aspectos, incontaminada por nenhuma outra filosofia ou religião, quando
isso claramente não é verdade. Considere, por exemplo, a Última Ceia, na qual Jesus teria dado início
ao sacramento da refeição sagrada do pão e vinho, que representava o sacrifício de seu corpo e de seu
sangue.
A. N. Wilson escreve: "Isso apresenta fortes indícios dos cultos de mistério do Mediterrâneo e pouco
tem em comum com o judaísmo". Ele então utiliza esse paralelo como evidência para sua idéia de que a
Última Ceia foi uma invenção dos autores dos Evangelhos; mas e se ela realmente aconteceu como um
ritual pagão?
Desmond Stewart reforça o paralelo dizendo:

(Jesus) pegou o pão e o vinho, elementos do cotidiano da sociedade e que constituem no entanto, o
ápice do simbolismo de Osíris, e os transformou, não em sacrifício, mas em um elo entre dois estados
de ser.

Os cristãos vêem o sacramento do pão e vinho - o clímax da comunhão protestante e da missa católica -
como uma exclusividade de Jesus. De fato, isso já era uma prática comum de todos os principais
Deuses Mortais das escolas de mistério, incluindo as de Dioniso, Tamus e Osíris. Acreditava-se que tal
ritual era um meio de se tornar um com o deus em questão e alcançar elevação espiritual (embora os
romanos expressassem horror diante do antropofagismo aí implícito). Todos os outros cultos estavam
bem representados na Palestina da época da Última Ceia, portanto sua influência é compreensível.
De todos os quatro Evangelhos, talvez seja significativo que o de João fale da Ceia mas omita qualquer
menção à cerimônia do pão e vinho - talvez porque não tenha sido nessa ocasião que ela realmente teve
início. No Evangelho de João (6:54) está implícito que o sacramento do pão e vinho foi promovido
desde os primeiros dias da trajetória de Jesus na Galiléia.
O próprio conceito de comer e beber o deus - o ritual da missa - é abominável aos olhos dos judeus.
Como observa Desmond Stewart:

A noção de que o milho fosse o próprio Osíris era comum aos egípcios, e uma idéia semelhante
estava vinculada a Deméter e Perséfone [deusas] na própria Hélade [Grécia].

Um outro paralelo com as escolas de mistério - e que não encontra equivalente na crença ou prática
judaica - é a história da ressurreição de Lázaro. Trata-se claramente de um ato de iniciação: Lázaro é
"despertado" pela morte e renascimento simbólicos, um elemento comum das escolas de mistério da
época e que se repete em certos rituais da maçonaria atual. O único Evangelho canônico a registrar esse
episódio, o de João, faz dele um milagre, uma ressurreição literal dentre os mortos. O Evangelho
Secreto de Marcos, porém, deixa claro que é apenas um ato simbólico, frisando a "morte" do antigo ser
de Lázaro e seu renascimento como um ser mais espiritualizado. Provavelmente o episódio foi cortado
dos outros Evangelhos porque era uma alusão por demais óbvia às atividades das escolas de mistério.
Porém, no que diz respeito a esta investigação, o aspecto mais significativo sobre esse ritual é sua
correspondência mais direta com as cerimônias de "renascimento" do culto de Ísis no Egito. Como diz
Desmond Stewart (referindo-se ao misticismo do primeiro século, ligado a Ísis):

...a evidência de Betânia indica que Jesus praticava um tipo semelhante de mistério ao que Lúcio
Apuleio experimentou no culto de Ísis.

Mesmo a crucificação reforça a negação do povo judeu de que Jesus fosse o Messias esperado, pois
morrer em circunstâncias tão desonrosas seria a última coisa que se poderia esperar de um Messias que
a todos se imporia. No entanto, isso não causa qualquer desconforto entre os cristãos, pois sustentam
que o messiado de Jesus foi muito além, em termos espirituais, do que os judeus esperavam. Entretanto,
existem outros problemas com o relato do Novo Testamento sobre a morte de Jesus. Parece que a
interpretação cristã de que sua morte constitui o supremo sacrifício místico foi inventada, na verdade,
posteriormente, a fim de explicar a discrepância entre o que esperavam os judeus de seu Messias e o
que realmente aconteceu a Jesus.

Chegou-se a sugerir que Jesus e aqueles que pertenciam a seu círculo desenvolveram seu próprio
conceito do Messias, incorporando-lhe o ideal do Justo Sofredor, derivado da figura de José nos textos
apócrifos judeus. Significativamente, porém, no norte herético da Palestina, o José "sofredor" absorvera
algumas das características do culto sírio a Adônis-Tamus. Os estudiosos observaram também a
influência do deus pastor Tamus no Cântico dos Cânticos, que é, como vimos, de suma importância
para o culto da Madona Negra. É provável que Jesus chamasse a si mesmo de Bom Pastor em
referência a Tamus, e que seus seguidores na época estivessem familiarizados com o termo; Belém era
um dos principais centros do culto a Adônis-Tamus. (É interessante que cristãos, como São Jerônimo,
tenham se exasperado com a existência de um templo a Tamus no suposto local de nascimento de Jesus
em Belém.)
É digno de nota, entretanto, que embora muitos comentadores atuais reconheçam a presença de uma
forte influência pagã na vida e nos ensinamentos de Jesus, não se animem a explorá-la além da
superficialidade. Por exemplo, como diz Hugh Schonfield:

Deve-se a um nazoreano da Galiléia a percepção de que a morte e ressurreição era uma ponte entre
duas fases [do Justo Sofredor e do Rei Messiânico]. A própria tradição de uma terra onde Adônis
anualmente morria e renascia parecia clamar por isso.

Geoffrey Ashe admite: "Cristo tornou-se um Salvador visivelmente semelhante aos deus mortos-
ressurrectos dos Mistérios, Osíris, Adônis e os demais."
Entretanto, o arquétipo que mais se aproxima da vida e história de Jesus, tal como ela nos chegou, é a
do deus egípcio Osíris, consorte de Ísis. Tradicionalmente ele morria em uma sexta-feira e renascia
após três dias. E existem pistas de que nos primórdios do cristianismo o título Christos era confundido
com outra palavra grega, Chrestos, que significa gentil ou bondoso. Alguns dos primeiros manuscritos
gregos dos Evangelhos utilizam essas palavras no lugar de Christos. Porém, Chrestos era um dos
epítetos tradicionalmente dirigidos a Osíris -,e, o que é significativo, há também uma inscrição em
Delos para Chreste Isis.
A súplica de Jesus na cruz também abre espaço para uma interpretação dentro dos moldes do
paganismo. Tanto a versão de Marcos, "eloi eloi!" quanto a de Mateus, "eli eli!", são traduzidas como
"Meu Deus! Meu Deus! [por que me abandonaste?]", embora se registre que alguns dos circunstantes
entenderam mal o que ele dissera e pensaram que estivesse chamando pelo profeta Elias, a quem o
próprio Jesus especificamente associara a João Batista. Porém, em aramaico "Meu Deus" deveria ser
ilahi. Desmond Stewart sugere que a palavra era, na verdade , Helios, o nome do deus-sol - o que é
particularmente interessante porque a súplica está ligada ao anômalo período da escuridão em plena
tarde. De fato, um dos primeiros manuscritos conhecidos do Novo Testamento diz que os circunstantes
pensaram que Jesus estava chamando por Helios, cujo culto - bastante difundido na Síria até o século
IV - foi cristianizado com a substituição do nome por Elias. E obviamente um deus sol é a quintessência
do ciclo de morte e renascimento.
Podemos ver, portanto, que Jesus se enquadra facilmente na tradição do deus mortal, mas esse
arquétipo não constitui o quadro integral dos antigos mistérios. O deus - Osíris, Tamus, Atis, Dioniso
ou qualquer outro - era inevitavelmente associado com sua consorte, a deusa, que geralmente
desempenhava o papel principal no drama da ressurreição. Como coloca Geoffrey Ashe:

O deus companheiro era sempre o amante condenado e trágico da Deusa, que morria anualmente com o
verde da natureza e renascia na primavera. ..

Se Jesus de fato estava cumprindo uma tradição de "Deus Mortal", é evidente que algo estava faltando.
Ashe acrescenta:

Em seu papel de Salvador morto e renascido ele não poderia ser alguém solitário. Tais deuses
normalmente nunca faziam tal coisa... Não haveria Osíris sem Ísis, nem Atis sem Cibele.

Os críticos podem dizer que, como Jesus não tinha uma deusa-companheira, ele não poderia estar
representando o papel de um deus mortal. Ele era dizem - único em sua verdadeira divindade e não
precisava de mulher alguma para compartilhar isso com ele. Mas, e se ele realmente tivesse uma
companheira? E com certeza tinha - é esse conhecimento que tem sido acalentado em segredo por
gerações de "hereges". A "Ísis" de Jesus era Maria Madalena.
Os egípcios se dirigiam a sua rainha Ísis como "Soberana dos deuses... Tu, senhora, de vestes
vermelhas... soberana e senhora do sepulcro..." Madalena tradicionalmente é retratada com vestes
vermelhas, o que tem sido considerado como uma referência a ela ter sido uma "mulher escarlate"
(expressão pejorativa que designa uma mulher promíscua, uma prostituta). E foi Madalena quem
presidiu as cerimônias na tumba de Jesus.
Se aceitamos isso, grande parte do que foi perdido, deliberadamente obscurecido e distorcido
finalmente se encaixa, incluindo a própria natureza do que pode ser chamado de verdadeiro
cristianismo.
Apesar das primeiras impressões, o Princípio Feminino não está ausente dos Evangelhos - pelo menos
não dos textos originais. As famosas palavras iniciais do Quarto Evangelho são "No princípio era o
Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus". Embora o conceito do Verbo (Logos) seja
derivado das idéias do filósofo judeu neo-platônico Filo de Alexandria, contemporâneo de Jesus, nessa
versão de João ele parece ser explicitamente Feminino. Logos é um substantivo masculino mas,
paradoxalmente, o conceito que ele descreve parece ser feminino. É evidente que alguma confusão se
fez quando o Evangelho foi extraído de sua fonte original, e posteriormente viemos a perceber o
significado das origens verdadeiras dessa passagem.
A frase "e o Verbo estava em Deus" é uma péssima tradução, que modifica completamente o sentido
verdadeiro, mas, convenientemente, remove algumas implicações muito embaraçosas. Pois as palavras
gregas originais são pros ton theon, que literalmente significam "indo em direção a Deus" e expressam
o significado de um homem buscando unidade com uma mulher. Como nos diz George Witterschein:

... podemos até mesmo utilizar a palavra erótico para descrever o anseio de que a unidade sobrepuje
a separação.

A chave de tudo isso... era a atração entre homem e mulher, que equivale... à atração entre o Verbo e
Deus.
Em outras palavras, o Verbo é feminino. E, significativamente, a tradução mais exata das linhas iniciais
do Evangelho de João é:

No princípio era o Verbo, e o Verbo foi ao encontro de Deus, e Deus era o que o Verbo era. E
estava com Deus no princípio.

Portanto o Verbo era uma força distintamente separada de Deus. É significativo que geralmente se
entenda o Verbo e o Espírito Santo como uma só coisa, embora o termo original para o último fosse
inequivocamente feminino. Era Sophia.
Os conceitos evocados nessas linhas são claramente não-judaicos. Mas tampouco são originários dos
primórdios da "nova" religião emergente do cristianismo. O antropólogo norte-americano Karl Luckert,
que é também professor de História da Religião e realizou um importante estudo da religião egípcia e
sua influência sobre os conceitos teológicos e filosóficos posteriores, não tem qualquer dúvida sobre
sua verdadeira origem. Ele escreve:

...em toda a literatura religiosa do chamado período helenístico,não há um resumo melhor da antiga
teologia ortodoxa egípcia do que o prólogo ao Evangelho de João.

Desmond Stewart, em sua obra The Foreigner, argumenta que Jesus foi criado no Egito, se é que não
nasceu lá. Mesmo assim poderia ser judeu, pois havia grandes e prósperas comunidades judaicas no
Egito naquela época. Stewart assinala que muitas coisas sobre Jesus, desde a ausência de sotaque
galileu até a ênfase e a essência implícita de suas parábolas, sugerem uma formação egípcia. E, é claro,
o Novo Testamento nos diz que Maria, José e o menino Jesus fugiram para o Egito a fim de escapar da
fúria de Herodes. Afora o episódio de Jesus discutindo com os anciãos no Templo de Jerusalém quando
tinha doze anos, não há qualquer outra menção aos anos de sua juventude. Entretanto, mesmo esse
episódio é certamente uma invenção, pois nele Maria e José expressam sua ignorância sobre a
divindade de Jesus - imediatamente depois da história de seu miraculoso nascimento, que eles com
certeza deveriam conhecer! Então nada há de autêntico sobre Jesus nos Evangelhos canônicos desde sua
infância até sua maturidade. Por onde ele andou? Por que há esse silêncio sobre sua infância e
adolescência? Porém, se ele esteve fora do país, vivendo numa outra cultura, os autores podem ter
achado que seria impróprio - ou, mais provavelmente, que não tinham talento para forjar toda uma série
de eventos para preencher a lacuna.
Outras fontes confirmam essa visão. O Talmude, livro sagrado judeu, afirma dogmaticamente que Jesus
viera do Egito, não da Galiléia ou de Nazaré. Além disso, e talvez ainda mais revelador, o Talmude
afirma sem qualquer dúvida que Jesus foi preso sob a acusação de feitiçaria, e que ele era iniciado na
magia egípcia. Esse conceito foi também o ponto fundamental do livro de Morton Smith, Jesus the
Magician (1978), no qual sugere que tais milagres, como transformar a água em vinho e andar sobre a
água, são apenas parte do repertório tradicional dos feiticeiros egípcios, assim como o truque da corda
dos faquires orientais.
Smith dá muitos exemplos da semelhança entre os milagres de Jesus e os conjuros e encantamentos
encontrados nos textos dos papiros egípcios da mesma época, bem como paralelos com a vida e a obra
do famoso mago Apolônio de Tiana (um contemporâneo mais jovem de Jesus) e de Simão Mago. A
esses dois homens se creditavam habilidades quase idênticas às de Jesus.
Os cristãos podem dizer que isso não passou de um mal-entendido, por parte das massas crédulas, que
deu margem ao surgimento de um Jesus ocultista: seus milagres eram na verdade uma dádiva do
Espírito Santo. Entretanto, trata-se de uma interpretação tão subjetiva quanto a outra e, na verdade, tem
poucos argumentos a seu favor. Morton Smith chama a atenção para um outro grande paradoxo do
cristianismo:

...temos de levar em conta não apenas a tradição que tentou livrar Jesus da acusação de magia, mas
também aquela que o reverenciou como um grande mago.

Existiam muitos magos itinerantes - feiticeiros - mais ou menos célebres, no mundo greco-romano da
época de Jesus, e um lugar-comum de seu repertório era a cura e o exorcismo - como acontece hoje em
dia entre os homens santos indianos e os sacerdotes do vodu, entre outros. (É discutível se as supostas
curas são mesmo genuínas, mas o assombro das multidões é bastante real, e a propaganda boca a boca
contribui muito para criar a reputação do fazedor de milagres.)
Smith sugere que o termo "Filho de Deus" - que sempre intrigou os teólogos e estudiosos do Novo
Testamento, pois não existe precedente judaico e não era um conceito associado ao Messias - é ele
próprio derivado da tradição egípcio-greco-romana. O mago bem-sucedido conquistava suas
habilidades ao se permitir converter em um conduto de deus, como os xamãs tribais. Portanto, sugere
Smith, Jesus tornou-se o Filho de Deus ao ser magicamente possuído pela deidade.
O milagre da "água transformada em vinho" nas bodas de Canã revela suspeita semelhança com um
relato de uma cerimônia dionisíaca realizada em Sidon, até mesmo nas palavras utilizadas. E, no mundo
helenístico, Dioniso estava explicitamente associado a Osíris. Smith também extrai de dois textos
mágicos egípcios o paralelo com a eucaristia, o ritual de repartir o pão e o vinho - que é tão sagrado
para os cristãos porque acreditam que era praticado unicamente por Jesus. Diz Smith:

Estes são os paralelos mais próximos com o texto da eucaristia. Neles um deus-mago dá seu próprio
corpo e sangue para o receptor que, ao comê-lo, unir-se-á a ele em amor.

Até mesmo as palavras proferidas por Jesus são similares às dos textos de magia.
Existem outras pistas - na verdade nos próprios Evangelhos - de que muitos achavam que Jesus era um
mago. No Evangelho de João, os que entregam Jesus a Pilatos referem-se a ele como um "malfeitor".
No direito romano, esse era o termo utilizado para designar um feiticeiro.
Nesse contexto, o aspecto mais significativo da pesquisa de Morton Smith é que, embora baseiem-se
inteiramente na comparação entre os Evangelhos e os papiros sobre magia, suas conclusões se
encaixam exatamente no modo como Jesus é retratado no Talmude judeu e nos primeiros textos
rabínicos. Estes nunca descreveram Jesus como um judeu que inventou uma forma herética de
judaísmo, como muitos cristãos de hoje em dia acreditam. Consideram-no ou como um judeu
convertido a outra religião, ou como alguém que nunca fora na verdade judeu. De fato, eles o
denunciam especificamente como um praticante da magia egípcia. O próprio Talmude declara,
inequivocamente, que Jesus passou seus anos de juventude no Egito e que lá ele aprendeu magia.
Em um conto da literatura rabínica, Jesus é comparado a um personagem anterior chamado Ben Stada.
Este era um judeu que tentara introduzir o culto de outras deidades pagãs, paralelamente ao de Jeová, e
que tinha trazido as práticas da magia do Egito. O conto enfatiza que, de modo similar, Jesus trouxera
as práticas mágicas do Egito para os judeus. Outros textos rabínicos são igualmente explícitos nesse
ponto: Jesus "praticava magia e ludibriou e desencaminhou o povo de Israel".
Fica claro que os judeus contemporâneos de Jesus viam-no como um adepto da magia egípcia. Seu
crime, aos olhos destes, foi ter tentado introduzir idéias pagãs e deuses pagãos no território judeu.
O Talmude e outras coletâneas de textos rabínicos podem ser rastreados somente até o século III, dando
margem a acusações de difamação deliberada por parte dos inimigos de Jesus, os judeus. Entretanto,
essas acusações, que na essência são de feitiçaria, podem não ter nascido apenas da malícia, como à
primeira vista poderia parecer. São acusações incomuns para serem forjadas, e existem indícios de que
tais idéias sobre Jesus já eram correntes antes.
Justino Mártir, escrevendo por volta de 160 d.C., relata uma discussão com um judeu, Trifo, que chama
Jesus de "mago galileu". O filósofo platônico Celso, escrevendo por volta de 175 d.C., afirma que,
embora Jesus tenha crescido na Galiléia, trabalhou por algum tempo no Egito, onde aprendeu as
técnicas da magia.
Como vimos, os autores dos Evangelhos não consideram vergonhoso nem chocante registrar que os
magos prestaram homenagem a Jesus com seu ouro, incenso e mirra. Estes com certeza não eram
apenas sábios ou reis, mas membros de uma fraternidade oculta específica que se originou na Pérsia. E
embora alguns comentadores tentem explicar isso como o reconhecimento simbólico dos feiticeiros da
superioridade do jovem Filho de Deus, não há nenhuma indicação de tal interpretação nos próprios
Evangelhos, onde a visita dos magos tem a clara intenção de despertar respeito e admiração.
Morton Smith salienta que, embora a história tenha procurado minimizar o significado disso, os
primeiros cristãos, especialmente os que viviam no Egito, praticavam magia. Alguns dos primeiros
artefatos cristãos conhecidos são amuletos mágicos, portando imagens de Jesus e palavras mágicas. A
sugestão é óbvia: a primeira geração de seguidores de Jesus o reconhecia como mago, ou porque
sabiam que ele o era ou simplesmente porque ele se encaixava perfeitamente na descrição de um.
Há, entretanto, um boato muito mais obscuro, corrente na época de Jesus, sobre seu envolvimento com
a feitiçaria - boato que não apenas reforça o que está escrito nos textos rabínicos como, se verdadeiro,
pode resolver um persistente problema bíblico. Essa acusação bizarra e chocante, que será discutida
mais adiante, pode bem conter a chave para grande parte do mistério que envolve o relacionamento
entre Jesus e o Batista, e para a possível razão da importância do Batista para os grupos ocultos através
dos séculos.

Como já vimos, existem paralelos notáveis entre a vida de Jesus e a história de Osíris. Porém, talvez
ainda mais notável é que muitas das palavras de Jesus parecem ter sido retiradas na íntegra da religião
egípcia. Por exemplo, Jesus disse (João 12:24): "Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica
infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto." Esse conceito e imaginário indiscutivelmente originam-
se no culto de Osíris. E as palavras de Jesus "Na casa de meu Pai há muitas moradas" (João 14:2), que
têm intrigado gerações de cristãos, são explicitamente de Osíris e vêm diretamente do Livro dos Mortos
egípcio.
Mais apropriadamente chamado de Surgindo à luz do Dia, essa obra contém uma série de fórmulas
mágicas com as quais a alma podia vencer os terrores da vida após a morte, e era lida para os
agonizantes por um sacerdote ou sacerdotisa. O fato de Jesus conhecer o livro sugere que ele estava
familiarizado não apenas com os textos religiosos do culto de Ísis/Osíris como também com sua magia -
e como vimos, religião e magia eram a mesma coisa para os egípcios.
Osíris foi assassinado em uma sexta-feira e seu corpo, esquartejado, foi espalhado por diferentes
lugares. Após três dias, ele renasceu, graças à intervenção mágica de Ísis, que o havia pranteado por
toda a terra. Na cerimônia anual do mistério de Osíris no Egito, a alta sacerdotisa que representava Ísis
lamentava-se: "Homens maus mataram meu amado, e não sei onde seu corpo está". Quando finalmente
ela consegue juntar todas as partes do corpo, diz: "Vê, encontrei-te... ó!, Osíris, vive, levanta-te, ó
infeliz que aqui jazes! Eu sou Ísis". O sacerdote que representava Osíris então se levantava e se
mostrava a seus seguidores, que expressavam dúvida e assombro ante a milagrosa ressurreição.
Compare a primeira frase com as palavras de Maria Madalena ao "jardineiro" (que vem a ser Jesus):
"Eles levaram meu senhor e não sei onde o puseram". ("Meu Senhor" eram palavras comuns utilizadas
por uma esposa para se referir a seu marido naquela cultura.70) Talvez tenha havido um ritual na tumba
no qual Madalena pronunciou as palavras da deusa egípcia, antes de curá-lo de suas feridas. Nos
mistérios do Deus Mortal é a deusa quem, com suas ajudantes femininas, vai ao mundo dos mortos para
trazer de volta o deus ressurrecto, e o escuro Hades geralmente era representado como uma tumba.
Como, em nossa opinião, Jesus e Madalena estavam vivendo a história da morte e ressurreição de
Osíris, a escolha da crucificação fazia total sentido - pois a cruz era na verdade um antigo símbolo de
Osíris.
Foram Maria Madalena e suas companheiras que compareceram ao sepultamento de Jesus, não apenas
porque, como se sugere, essa era uma tarefa das mulheres naqueles dias, mas porque estavam
conscientemente representando sua própria parte na história de Osíris. Jesus fazia o papel do Deus
Mortal que ressuscitava graças à intervenção, mágica ou de outro tipo, de sua "deusa", sua parceira
sexual e espiritual, Maria Madalena. Foi ela quem lhe concedeu o messiado ao ungi-lo ritualmente com
óleo de nardo, e se a idéia de que ela era rica for correta, então talvez sua influência tenha tornado
possível o rito iniciatório e mágico da crucificação.
Com sua confiança no imaginário de Osíris e seu suposto passado egípcio, Jesus pode muito bem ter se
submetido voluntariamente ao horror da crucificação, mas por razões um tanto irônicas levando em
consideração o modo como ele é visto pelos cristãos. Para estes, Jesus é Deus encarnado, mas ele talvez
acreditasse que, por meio da morte e do renascimento simbólicos, poderia tornar-se um deus. A
crucificação pode muito bem ter sido deliberadamente organizada e preparada, com a ajuda de uma
certa quantia de suborno, para que assim Jesus, como Lázaro, pudesse renascer segundo os moldes da
escola de mistério de Osíris, ressuscitando na própria figura de Osíris. Tudo isso seria ainda mais
provável caso Jesus realmente se considerasse pertencente à realeza, descendente de Davi, pois um
faraó morto automaticamente tornava-se um Osíris, senhor dos céus e o terror do inferno, através da
mágica intervenção de Ísis. Esperava Jesus emergir da tumba imbuído de poder divino? Talvez a idéia
explique um dos mais duradouros mistérios da cristandade - teria ou não Jesus morrido na cruz?
Muitas pessoas acreditam que não. Certos Evangelhos Gnósticos, o Alcorão e alguns dos primeiros
cristãos hereges, e talvez o Monastério de Sion, abraçaram a idéia de que um substituto (possivelmente
Simão de Cirene) tomou seu lugar, enquanto outros acreditam que ele sofreu na cruz mas de lá foi
retirado com vida e que sua "ressurreição" simplesmente é uma referência ao fato de ter sido curado de
suas feridas. Leonardo com certeza acreditava que ele fora retirado com vida da cruz: o sangue ainda
corre na imagem do homem de seu falso "Santo" Sudário de Turim, e sangue não escorre de um
defunto. (Mesmo que nossa tese esteja errada, e Leonardo não tenha falsificado o Sudário, quem quer
que o tenha feito também acreditava que Jesus não morrera na cruz - e se, contra todas as evidências,
trata-se realmente do sudário de Jesus, então isso claramente prova que ele estava vivo na tumba.)
É claro que Jesus pode ter sido acidentalmente retirado da cruz com vida, e que a versão oficial de sua
prisão e crucificação seja a que mais se aproxima da verdade. Há, porém, muitos obstáculos lógicos. As
tropas de ocupação romanas eram compostas de homens práticos, que tinham muita experiência em
torturar e executar. Contudo, afirma-se que eles terminaram as execuções apressadamente naquela
sexta-feira - quebrando as pernas dos ladrões crucificados, por exemplo, para que pudessem ser
enterrados antes do início do Sabá. Devemos seriamente acreditar que os romanos se preocupavam a tal
ponto com os costumes judeus, ou que, se assim fosse, de algum modo esqueceram que o anoitecer da
sexta-feira marcaria o final da tortura e crucificação, mesmo que esta tivesse começado apenas algumas
horas antes?
A morte pela crucificação era a pior que se poderia imaginar porque, de costume, levava dias para que a
vítima morresse. Aí é que está. Sendo assim, por que alguém seria colocado na cruz na sexta-feira, na
Palestina, dia em que ao pôr-do-sol o crucificado deveria dela ser retirado, vivo ou morto?
Com certeza houve um julgamento e uma crucificação. No entanto, parece que Jesus e seu círculo
íntimo - que incluía a "Família de Betânia" deliberadamente manobraram os eventos para que pudessem
levar a cabo algum plano que haviam armado. Em The Passover Plot, Hugh Schonfield explica, de
maneira elegante e persuasiva, como isso aconteceu, mas fracassa ao tentar explicar por que, se Jesus
estava tramando para ser o Messias, escolheria a crucificação, já que tal morte humilhante nunca seria o
destino do tão esperado herói judeu.
No entanto, a direção de palco vai além da prisão e crucificação de Jesus. Existem anomalias nos
relatos dos Evangelhos que levantam graves suspeitas. O tempo de duração da crucificação de Jesus,
como vimos, foi notavelmente curto, e também nos dizem que, embora os ladrões tenham recebido o
golpe de misericórdia dos soldados romanos para que morressem antes do Sabá, Jesus simplesmente
lhes prestou o favor de morrer antes de o sol se pôr. Muitas pessoas chegaram a sugerir que algum tipo
de droga, um poderoso narcótico, pode ter sido dado a Jesus na esponja enquanto ele estava na cruz,
conferindo-lhe uma aparência de morte. Nesse caso, deve-se presumir que os conspiradores subornaram
os guardas para que olhassem para o outro lado. Essas pistas sugerem que a conspiração essencialmente
significou a montagem de uma representação muito cínica: a crucificação era o modo mais público de
anunciar uma morte, e, tendo esta ocorrido, qualquer aparente retorno à vida seria considerado
miraculoso.
A própria natureza desses arranjos revela por que deviam ser os romanos, não os judeus, a prender e
sentenciar Jesus. Se os judeus o achassem culpado, ele seria apedrejado, e então seria impossível forjar
sua morte.
Mas o que os conspiradores esperavam obter por meio desse elaborado, e arriscado, subterfúgio?
Afinal, como vimos, um criminoso crucificado nunca seria aceito como o Messias: os judeus não
esperavam que seu Messias fosse crucificado, nem que ele retornasse dentre os mortos. Essa
interpretação de suas expectativas simplesmente não existia.
O plano, portanto, não se encaixava nos moldes da tradição judaica. No entanto, conformava com um
conceito não-judaico - o do deus morto-ressurrecto, que era o fundamento dos grandes cultos das
escolas de mistério. Os judeus não tinham nada disso: para eles havia apenas um deus e era
inconcebível que ele fizesse parte de um culto sanguinolento, pois consideravam qualquer coisa
relacionada com sangue e sepultura como impura e abominável. Contudo, o Oriente Médio e os países
do Mediterrâneo estavam repletos de cultos de adoração a tais deidades.
Deixemos claro mais uma vez que a história da morte e ressurreição de Jesus não era um caso isolado e
único. No contexto da proliferação dos cultos aos deuses mortais da época, ele estava obviamente
tentando vincular-se a um deles. Qual seria? E o que ele esperava ganhar com esse doloroso e perigoso
plano?
Conforme vimos, a súplica de Jesus na cruz pode ser interpretada como sendo Helios! Helios! (Ó, Sol!
Ó, Sol!). A morte de Osíris é tradicionalmente representada como um sol negro, em outras palavras, o
desamparo da Luz, que também poderia ser deduzido da frase de Jesus na cruz "Ó, Sol! Ó, Sol! Por que
me abandonaste?"
Parece que Jesus estava de algum modo vivenciando toda a história de Osíris naquela remota sexta-
feira.

Existem muitas perguntas sem resposta em torno da ressurreição, admitindo que a idéia cristã de morte
e ressurreição literais de Jesus esteja errada. Por exemplo, em que estado ele se encontrava quando foi
retirado da cruz estaria em coma na tumba, ou simplesmente machucado, porém consciente? O que
então aconteceu a ele? Teria, como sugerem alguns, deixado a Palestina e viajado para lugares
longínquos, como a Índia? E o que aconteceu com seu relacionamento com Madalena, já que ela
aparentemente rumou para a Gália sem ele? Qualquer que seja a verdade sobre esse assunto, o Jesus dos
Evangelhos desaparece da história após sua suposta ressurreição.
Essencialmente, os Evangelhos desintegram-se após a descoberta da tumba vazia. Os relatos do Novo
Testamento da aparição de Jesus aos seus discípulos e a suposta ascensão aos céus são
desesperadamente confusos, inconsistentes até mesmo como mitos. É claro que os não cristãos lançam
mão dessas intricadas histórias para provar que foram forjadas, e certamente concordaríamos com eles.
No entanto, apesar da confusão, como observa Hugh Schonfield, uma das fontes pode ser claramente
identificada: o encontro de Jesus ressuscitado com dois discípulos no caminho para Emaús foi extraído
da obra de Lúcio Apuleio inspirada em Ísis, The Golden Ass.
Embora o conceito de uma futura ressurreição do corpo faça parte da crença judaica, o que aconteceu
quando Jesus supostamente renasceu não se conforma decerto com o pensamento judaico.A visão
tradicional é a de que todos os justos ressurgirão juntos no final dos tempos: Jesus aparentemente
desafiou esse plano, sendo trazido de volta à vida enquanto seus colegas ainda se decompunham nos
túmulos. Em seguida, ele ascendeu aos céus, sem deixar nenhum vestígio de seu corpo, embora tivesse
prometido que seu ser espiritual estaria prontamente disponível aos seus seguidores - na verdade, essa
presença espiritual contínua foi uma das principais razões pelas quais a florescente religião cristã
mostrou-se tão atrativa para o mundo romano e tem ainda hoje tal influência sobre milhões de corações
e mentes.
Como assinala Karl Luckert, os comentadores contemporâneos, embora reconheçam que esse conceito
da contínua presença espiritual de Jesus não seja judaico, não fornecem nenhuma idéia sobre seu
verdadeiro contexto e origem. Então de onde terá vindo tal conceito?
A análise erudita de Luckert mostra conclusivamente que os conceitos gêmeos da ressurreição de Jesus
e de sua presença espiritual contínua remontam sem qualquer sombra de dúvida à teologia egípcia. Ele
esclarece que a antiga teologia egípcia:

...tornou possível acreditar que o Filho de Deus ressuscitou dos mortos... e assim retornou ao Pai. E
explica também por que, antes que ele ascendesse aos céus, aparições de Cristo foram vistas... Também
em consonância com a lógica egípcia era a noção de que, mesmo tendo Cristo Jesus retornado ao Pai,
ele não obstante permanece eternamente entre seus seguidores.

Mais uma vez, vemos que conceitos fundamentais para a religião cristã - e que há muito tempo vêm
sendo acalentados como prova da singularidade e divindade de Jesus - não brotaram totalmente de sua
vida e ensinamentos. Nem eram fruto do tipo de judaísmo herético a que freqüentemente se recorre para
explicar sua gênese.
O conceito de ressurreição individual e de vida eterna do espírito no mundo do além veio do Egito,
onde era aceito como um fato consumado. E a noção da presença contínua e reconfortante do espírito
após a morte foi diretamente tirada das crenças que envolviam a morte dos faraós, os quais, segundo se
acreditava, guiavam as pessoas desde o mundo invisível.

Vimos que os eventos cruciais da vida de Jesus parecem se amoldar à história de Osíris, e que o papel
de sua companheira, Maria Madalena, era extremamente semelhante ao de Ísis. No entanto, há um outro
ponto importante a ser observado nesse contexto.
Embora o arquétipo de Osíris claramente se encaixe no papel conscientemente desempenhado por Jesus
- ao "morrer" na sexta-feira, ser pranteado por "Ísis" e voltar à vida três dias depois -, é a magia da
deusa que torna a ressurreição possível. Que o papel dela não era secundário é mais do que óbvio.
Ísis era vista como o Criador, conforme relatam as escrituras egípcias: "No início havia Ísis, a mais
Antiga entre os Antigos". Ela era a deusa "da qual tudo nasceu", e a tradição invoca: "...tu és a criadora
de todas as coisas boas". E, ainda mais do que isso, Ísis, não Osíris, era o salvador original, sendo
descrita por Aristides, um iniciado nos mistérios da deusa, como "uma Luz, e outras coisas
impronunciáveis, conduzindo à salvação", enquanto Lúcio Apuleio se dirige a ela nestes termos: "Ó
Santa e eterna Salvadora da raça humana... tu dás luz ao Sol.Tu esmagas a morte sob teus pés".
Os estudiosos aceitam que os primeiros cristãos absorveram em seu movimento certos aspectos do culto
de Ísis, tais como o conceito de que a crença na deusa levava à vida eterna. Também se apropriaram de
muitos templos dedicados a ela. Um deles ficava em Sais, uma antiga capital do Egito, que se tornou
uma igreja da Virgem Maria no século III. Mil anos antes, quando ainda era um templo da grande deusa
Ísis, tinha a seguinte inscrição "Eu sou tudo o que era, o que é, e o que há de vir" - palavras que muito
tempo depois apareceram nas páginas do Livro da Revelação (1:8) como sendo de Jeová.
A influência do culto de Ísis pode ser facilmente encontrada até mesmo nos Evangelhos canônicos. Por
exemplo, um dos ditos mais famosos de Jesus é "Vinde a mim os que sofrem, que eu os consolarei" .
Em razão da oferta de consolo e amor em meio à luta pela vida, com freqüência encontramos essas
palavras em cartazes colocados no lado de fora das igrejas, antecedidas pela frase: "Jesus disse". De
fato, essa frase, palavra por palavra, foi extraída inteiramente dos ditos de Ísis, podendo ser vista na
inscrição sobre a porta de um tempo dedicado a ela em Dendera. De qualquer modo, o socorro
oferecido na sentença é, com certeza, o de uma mãe.
Se, como acreditamos, Jesus e Maria Madalena eram iniciados nos mistérios de Ísis e Osíris, então o
"cristianismo" deve ter sido muito diferente da religião patriarcal, temente a Deus, em que logo se
converteu. E seu passado essencialmente pagão finalmente lança alguma luz sobre alguns dos enigmas
mais persistentes do Novo Testamento.
O dilema básico sempre foi tentar conciliar a existência de um Jesus histórico com os evidentes
elementos da escola de mistério egípcia presentes nas histórias a ele relacionadas. Como resultado
direto dessa questão, os comentadores tomaram um desses dois caminhos: ou, como Ahmed Osman,
chegaram à conclusão de que Jesus não existiu, ou, como A. N.Wilson, sustentam que as referências à
escola de mistério nunca fizeram parte da história original, tendo sido acrescentadas posteriormente.
Entretanto, esses dois elementos aparentemente irreconciliáveis podem, como temos demonstrado, fazer
sentido quando tomados em conjunto. O pressuposto de que Jesus era de religião judaica é o que tem
impedido que se reconheça uma solução clara e simples para essa questão. Se, por outro lado, sua
religião não pertencesse à tradição judaica, tudo se encaixaria em seu devido lugar.
Não significa dizer que os discípulos de Jesus não eram judeus, ou que ele não estava deliberadamente
se dirigindo ao povo judeu em sua campanha. No entanto, como vimos, é evidente que havia um grupo
de "manipuladores" por trás do movimento, parte dos quais era quase com certeza a "família de
Betânia".
O movimento de Jesus compreendia um círculo interno e um círculo externo, as versões esotérica e
exotérica do culto. Ironicamente, a maioria dos discípulos e as fontes que deram origem aos Evangelhos
faziam parte do último, o grupo que Jesus deliberadamente manteve na ignorância sobre sua verdadeira
agenda e mensagem. Por mais radical e estranho que possa parecer, é essa precisamente a situação
retratada repetidas vezes nos Evangelhos - nos quais discípulos como Pedro com freqüência confessam
estar totalmente perplexos sobre os ensinamentos e as intenções de Jesus. Ainda mais crucial, o círculo
externo de discípulos não tinha certeza sobre as ambições de Jesus e mesmo sobre seu verdadeiro papel.
Os estudiosos confessam-se aturdidos com respeito a uma questão que é básica: por que, dentre todos
os cultos messiânicos daquela época e lugar, foi o cristianismo que sobreviveu e prosperou. Como
vimos, a razão que levou o movimento de Jesus a ter sido praticamente o único grupo a conquistar
terreno duradouro fora da Judéia, foi o fato de já ser reconhecido como um culto de mistério. O segredo
de seu apelo era sua característica essencialmente híbrida, uma mistura de certos aspectos do judaísmo e
de elementos pagãos das escolas de mistério. O cristianismo era singular por ser reconfortantemente
familiar para muitos judeus e também para os gentios, ao mesmo tempo ser excitantemente diferente.
O cristianismo, como uma nova religião, foi fruto da dinâmica que lhe imprimiram os conversos de
várias etnias e religiões, com freqüência contraditórios, em seu esforço para dar sentido a seus próprios
elementos individuais dentro do novo híbrido. Os seguidores constantemente enfrentavam o desafio de
tentar encaixar o arquétipo do deus morto-ressurrecto no molde clássico do Messias e vice-versa, e foi
essa mistura impossível que se tornou a Igreja Cristã.
É claro que muitos podem contestar o passado egípcio do cristianismo, visto o tom predominantemente
judaico dos Evangelhos. Podem alegar, com razão, que essa é a única evidência que temos acerca da
natureza dos primórdios da religião - evidência que certamente indica sua origem judaica. Entretanto, o
Novo Testamento não contém a única evidência disponível, embora os textos sejam exatamente aqueles
que a Igreja escolheu tornar públicos. Como já vimos, a maior parte da obra conhecida coletivamente
como Evangelhos Gnósticos foi deliberadamente negada aos cristãos por muitos séculos - e o quadro
que pintam do início do cristianismo não é, com certeza, o de uma seita resultante de um cisma do
judaísmo. O que os Evangelhos Gnósticos descrevem é uma escola de mistério egípcia.
Estudiosos como Jean Doresse - em seu estudo sobre os textos do Nag Hammadi - reconhecem a ampla
influência da teologia egípcia nos Evangelhos Gnósticos. Várias vezes encontramos, nesses Evangelhos
por tanto tempo ignorados, conceitos que são obviamente egípcios. Isso é mais notável no Pistis Sophia,
cuja cosmologia corresponde à do Livro dos Mortos egípcio. Os Evangelhos Gnósticos empregam
inclusive a mesma terminologia: por exemplo, utilizam a palavra egípcia para "inferno", Amente.
Por séculos, os cristãos aceitaram que os Evangelhos do Novo Testamento estão "certos" - tanto do
ponto de vista histórico quanto espiritual enquanto os livros Gnósticos estão " errados". Acreditam que
Mateus, Marcos, Lucas e João foram divinamente inspirados, ao passo que os outros (se chegam a ser
conhecidos) são considerados absurdos. No entanto, como temos esperança de demonstrar, existem
razões que nos impelem a pensar que as obras gnósticas merecem, no mínimo, a mesma atenção.
Os Evangelhos Gnósticos foram rejeitados pelos patriarcas da Igreja por razões de auto-preservação,
pois esses textos apresentavam uma imagem muito diferente do cristianismo, imagem que não lhes
interessava apoiar. Não apenas os livros suprimidos tendem a enfatizar a importância de Maria
Madalena (e de outras mulheres discípulas), como também apresentam uma religião que tinha raízes, ao
contrário daquela do Novo Testamento, na teologia egípcia. O cristianismo não pretendia ser nem um
patriarcado nem um desdobramento, ainda que herético, do judaísmo. Não se nega que os Evangelhos
do Novo Testamento foram escritos pelos seguidores judeus de Jesus, mas, ironicamente, estes parecem
ser os que menos entenderam o que ele representava, os que tentaram explicá-lo a partir de seu próprio
contexto cultural e religioso. Por outro lado, parece que os Evangelhos Gnósticos apresentam um
quadro mais autêntico das origens de sua religião e mesmo do próprio passado e das crenças de Jesus.
Permanece porém a questão: o que Jesus e seu círculo interno esperavam ganhar ao disseminar uma
mensagem essencialmente pagã no berço do judaísmo?

A religião original dos hebreus, como a de outras culturas antigas, era politeísta, venerando tanto deuses
quanto deusas. Apenas mais tarde Jeová surge como uma deidade preeminente, e os sacerdotes
efetivamente reescreveram sua história para eliminar, de modo não muito compreensível, a antiga
adoração às deusas. (E, como resultado, a condição das mulheres declinou abruptamente, assim como
no início do cristianismo e pela mesma razão.)
Raphael Patai, antropólogo húngaro e estudioso da Bíblia, em seu principal trabalho The Hebrew
Goddess, demonstrou conclusivamente que os judeus outrora adoravam deidades femininas. Dentre os
muitos exemplos que cita dos cultos hebreus a deusas, está aquele relacionado com o Templo de
Salomão: apesar da tradição, este não foi construído para honrar apenas e tão somente Jeová, mas
também para celebrar a deusa Asherah. Patai diz:

...a adoração de Asherah como consorte de Jeová... era um elemento integrante da vida religiosa da
antiga Israel, anterior às reformas introduzidas pelo rei Josias em 621 a.C.
O Templo de Salomão foi construído nos moldes dos templos dos fenícios, que por sua vez tiveram
como modelo os templos do antigo Egito. E muitos estudiosos acreditam que as imagens gravadas na
Arca da Aliança na verdade retratam Jeová e uma deidade feminina. Os querubins que aparecem na
Arca também eram imagens da deusa - os entalhes de dois "querubins" encontrados no palácio do rei
Ahab, na Samaria, são idênticos às clássicas representações de Ísis.

Os cultos heréticos judaicos de adoração a deusas continuaram a prosperar em muitas regiões,


sobretudo no Egito.Mesmo na corrente principal do judaísmo a deusa sobreviveu "disfarçada" de dois
modos. Uma é a personificação de Israel como uma mulher; a outra, a figura da Sabedoria Chokmah,
em hebreu, ou Sophia, em grego. Embora geralmente descrita como uma alegoria para a sabedoria
divina de Deus, é claro que Chokmah tem um outro significado: a sabedoria é retratada como se fosse
feminina e coexistisse com Jeová desde o início.
Admite-se hoje que essa imagem tem origem nas deusas de culturas vizinhas. Em particular, Burton L.
Mack revelou a influência das deusas egípcias Ma'at e Ísis.
Na época de Jesus o judaísmo ainda não havia perdido completamente suas origens pagãs: de qualquer
modo, os judeus se converteram para religiões estrangeiras durante os períodos da dominação greco-
romana - por exemplo, a Revolta dos Macabeus na metade do século II a. C. foi causada, em grande
parte, pela ruptura dos judeus apóstatas que veneravam, entre outros deuses, Dioniso.
O elemento pagão de veneração às deusas do judaísmo herético pode explicar muita coisa em relação a
Jesus, seus motivos e sua missão. Sem o levar em conta, o que existe é uma evidente contradição:
embora praticamente tudo o que Jesus disse, se tomado isoladamente, remonte a uma escola de mistério
- a de Ísis e/ou Osíris, como é mais provável -, há no entanto evidências de que ele conscientemente
representou o papel de Messias dos judeus e de que a maioria das pessoas que o seguia acreditava que
ele fosse seu rei. Mesmo os mais respeitados eruditos na matéria rejeitaram por completo o material
messiânico quando este deixou de se encaixar em suas hipóteses: se eles estão corretos em fazer isso,
então Jesus era certamente iniciado em alguma escola de mistério. Para nós, porém, rejeitar esse
material é insatisfatório, pois significaria que muitos dos episódios dos Evangelhos tais como a entrada
de Jesus em Jerusalém em um jumento - foram pura invenção. Embora haja alguma ficção
demonstrável nos Evangelhos (principalmente no que se refere à infância de Jesus), há uma evidência
persuasiva de que esses episódios em particular são autênticos. Como vimos no Capítulo Onze, os
eventos que culminaram com a chegada triunfal de Jesus em Jerusalém parecem ter sido pré-arranjados
- como, por exemplo, o jumento no qual Jesus montaria a fim de cumprir as profecias sobre o Messias.
A evidência desses preparativos encontra-se nos próprios relatos evangélicos, embora esteja claro que
os autores não compreendem seu significado. Se eles tivessem inventado esse episódio, com certeza não
teriam plantado tal evidência.
Então, quais eram os reais motivos e metas de Jesus? Pode ser que ele estivesse utilizando a mania de
messianismo corrente na época a fim de reintroduzir o culto às deusas - afinal, mesmo que ele
pertencesse, como se afirmava, à linhagem real de Davi, isso dificilmente seria um obstáculo, pois o
próprio rei Davi venerava deusas, assim como o rei Salomão. Talvez Jesus fosse um sacerdote de Ísis
tentando apresentar uma versão aceitável da religião de Ísis/Osíris aos judeus, ou usar o anseio por um
Messias para planos mais secretos e de longo prazo, que envolviam iniciações esotéricas e culminavam
talvez com a crucificação. E, como "Jesus Nazoreano" , ele era parte de uma primitiva "família" de
seitas heréticas judaicas que, segundo se acredita, foram transmitidas na forma original da religião.
Podemos apenas especular sobre a natureza das crença nazoreanas, mas, no que diz respeito a Jesus,
elas claramente correspondiam a suas convicções esotéricas. Qualquer que seja a verdade sobre a
questão, Jesus não só era Filho de Deus mas também um devotado Filho da Deusa.
A idéia de que Jesus estava tentando reintroduzir o culto às deusas entre o povo de Israel se encaixa de
forma admirável no caso. Essa é precisamente a idéia atribuída a Jesus no Levitikon, o texto chave do
movimento joanita. Segundo ele, Jesus é um iniciado em Osíris que percebe que a religião original de
Moisés e das tribos de Israel era a do Egito e que os judeus tinham esquecido que havia também uma
deusa. É claro que nada disso constitui prova definitiva, mas há, como veremos no próximo capítulo,
um forte apoio a essa hipótese por parte de alguns setores surpreendentes.

Por mais chocante que possa parecer hoje em dia, as similaridades entre o cristianismo primitivo e o
culto de Ísis e Osíris eram na verdade reconhecidas pela Igreja dos primeiros tempos. De fato, as duas
religiões competiam abertamente pelos corações e espíritos do mesmo povo; exceto pela insistência dos
cristãos em que seu fundador havia sido um homem de carne e osso, suas doutrinas eram praticamente
idênticas.
O culto de Ísis que existia na época de Jesus não era exatamente o mesmo que florescera no Egito antes
da ascensão do império helenístico os atributos da deusa mudaram quando ela absorveu características
de outras deusas. No século IV a. C., durante o domínio dos gregos no Egito, surgiu um novo culto a
Ísis e Serápis (a forma grega de Osíris), que era essencialmente uma mistura das diferentes escolas de
mistério. Esse culto chegou a Roma antes de 200 a. C., depois de cruzar todo o império. O principal
centro de culto, entretanto, permanecia no Egito, no Serapeum em Alexandria, embora houvesse outro
centro em Delos.
As classes mais baixas de Roma acolheram o culto de Ísis com todo o entusiasmo. Tais movimentos de
massa eram sempre tratados com suspeita pelas autoridades, que viam neles o potencial para uma
subversão em larga escala; assim, os seguidores de culto em Roma sofriam freqüentes perseguições.
Finalmente, o senado ordenou a destruição dos templos de Ísis e Serápis; porém, apesar de estarem
plenamente cientes das conseqüências, não foi possível encontrar quem quisesse realizar o trabalho. O
culto foi oficialmente abolido por Júlio César.
Entretanto, no ano de 43 a. C., o triunvirato inesperadamente ordenou a construção de um novo templo
de Ísis-Serápis. Tal ordem pode ter sido resultado direto da notória ligação entre Marco Antônio e
Cleópatra, que muitas vezes era retratada como a própria Ísis, e seu amante como Osíris ou Dioniso. O
próprio Marco Antônio gostava de ser conhecido como o Novo Dioniso. Durante seu reinado, Cleópatra
manteve o culto de Ísis como a religião nacional do Egito.
A perseguição mais severa aos seguidores de Ísis em Roma aconteceu no império de Tibério, em 19
a.C., quando seus sacerdotes foram crucificados e 4.000 devotos exilados. Essa perseguição coincidiu
com a dos judeus. A razão para essa exagerada reação dupla, contudo, é pouco clara.Josefo registra o
episódio e o atribui a um escândalo envolvendo um dos sacerdotes de Ísis, que teria ajudado um nobre
romano a seduzir a mulher de outro homem no templo da deusa; porém, pelos tradicionais padrões
morais da alta sociedade romana, tal fato dificilmente provocaria sequer um bocejo. Parece que Josefo
estava tentando marcar uma distinção entre a perseguição dos seguidores de Ísis e a dos judeus, mas a
verdadeira razão, ao que parece, é que aqueles se envolveram em agitações civis.
Algo incomum estava acontecendo com a religião de Ísis na época. Como diz R. Merkelbach, em Man,
Myth & Magic:

Está claro que a "igreja" de Ísis tinha uma "missão" durante o período imperial... Não há, portanto,
qualquer dúvida de que a propaganda estava se espalhando.

No primeiro século da era cristã, o culto teve a boa sorte de obter algum apoio entre as classes mais
altas e mesmo entre os imperadores. Calígula - que dificilmente, no entanto, poderia ser tido como um
bom exemplo promoveu a construção de templos e instituiu o festival de Ísis. Cláudio e Nero eram
ambos atraídos pelos cultos de mistério de modo geral e expressaram particular interesse pelo de Ísis.
Muitos dos últimos imperadores romanos eram devotos.
A veneração a Ísis continuou pública até o final do século IV, mas seu grande rival foi o cristianismo.
Em 391 os cristãos destruíram o Serapeum de Alexandria e tomaram medidas para suprimir o culto
onde quer que ele fosse encontrado. O último festival oficial de Ísis dos velhos tempos foi celebrado em
Roma em 394.
Por que o culto de Ísis era tão popular? O que ele tinha a oferecer aos seus seguidores?
Como já vimos, estava relacionado com a salvação e redenção individual e fornecia aos seus devotos as
bênçãos de uma vida eterna após a morte. Como diz Sharon Kelly Heryob em sua obra The Cult of Isis
among Women in the Graeco-Roman World (1975):
Ísis finalmente tornou-se uma deusa salvadora no sentido preciso da palavra: a redenção individual
podia ser alcançada pela participação em seus mistérios. A crença de que se podia obter imortalidade foi
a mais persistente de suas doutrinas.

Enquanto Merkelbach diz, do culto de Ísis:

Era popular porque apelava ao desejo de salvação individual (como o cristianismo), e as idéias da
filosofia platônica tornaram-se associadas com ele [também com o cristianismo].
Os pecados eram confessados e perdoados pela imersão na água...

S.G.F. Brandon enfatiza que os dois conceitos - imersão para simbolizar a purificação espiritual e a
conseqüente regeneração - foram reunidos no Egito nos rituais da escola de mistério de Osíris, e que:

Esse processo duplo para se alcançar a bênção da imortalidade não é encontrado novamente até a
emergência do cristianismo.

Realmente, existem paralelos próximos entre a descrição do batismo que Paulo oferece e o das escolas
de mistério de Osíris.
Como no cristianismo, a salvação pessoal do devoto estava vinculada ao seu arrependimento. De fato,
no mundo romano, apenas essas duas religiões compartilhavam tal ênfase no arrependimento.
Há uma outra semelhança notável - e singular - entre as práticas do culto de Ísis e o posterior
cristianismo católico. Era o conceito de confissão: o devoto admitia ter cometido erros ao sacerdote,
que então rogava a Ísis em seu favor para que fosse perdoado.
Um outro costume que a igreja em seus primórdios compartilhava com os seguidores de Ísis - apesar da
errônea concepção atual - era o papel ativo da mulher, embora algumas estimativas sugiram que em
ambos os casos havia mais sacerdotes que sacerdotisas. Mesmo assim, em termos de participação e
status espiritual os sexos eram considerados em igualdade.
O culto de Ísis geralmente enfatizava o aspecto maternal da deusa, celebrando seus atributos como
esposa e mãe, embora não negligenciasse os outros aspectos da natureza feminina. Conseqüentemente,
como vimos, a trindade familiar de Ísis, Osíris e Hórus exercia uma poderosa influência na vida familiar
dos devotos: homens, mulheres e crianças sentiam-se compreendidos por seus deuses. Os leigos em
geral representavam um papel muito ativo na religião - ao contrário do controle total exercido pelos
sacerdotes de Roma -, e havia muitas associações "laicas" ligadas aos templos.
Sexualmente, os seguidores de Ísis eram encorajados à monogamia e a preservar a santidade da família.
E embora muitos autores romanos os acusassem de comportamento imoral, eles próprios se queixavam
dos períodos regulares de abstenção sexual a que tinham de se submeter as mulheres devotas de Ísis.
No apogeu da religião egípcia, a maior celebração de Ísis acontecia em 25 de dezembro, quando se
comemorava o nascimento de seu filho Hórus e então, doze dias depois, em 6 de janeiro, o de seu outro
filho, Aion. As duas datas foram tomadas pelos cristãos - a Igreja Ortodoxa celebra o Natal em 6 de
janeiro. No Egito, os cristãos do século IV celebravam a epifania de Jesus nesse dia, adotando também
elementos do festival de Aion, entre eles o ritual do batismo utilizando a água do rio Nilo. Em Man,
Myth & Magic, S.G.F. Brandon comenta a "evidente influência do festival de Ísis nos costumes
populares do cristianismo associados com a Epifania".
Entretanto, muitos cultos de mistério da época de Jesus envolviam práticas semelhantes. Por exemplo,
eles comumente declaravam que seus iniciados haviam "nascido de novo", e, como diz Marvin W.
Meyer em sua obra The Ancient Mysteries:

Geralmente, os mystai [iniciados] partilhavam a comida e a bebida nas celebrações rituais e,


algumas vezes, tornavam-se um com o divino pela participação numa refeição sacramental análoga à da
Eucaristia cristã. As loucas mênades de Dioniso, por exemplo, segundo diziam, tinham que devorar
carne crua de algum animal em sua omophagia, ou banquete da carne... as descrições do banquete de
carne crua sugerem que os participantes acreditavam estar consumindo o próprio deus... Nos mistérios
de Mitra, os iniciados partilhavam de uma cerimônia que lembrava a "Última Ceia" dos cristãos, o que
provocou certo embaraço no apologista cristão Justino Mártir. De acordo com Justino, os mystai do
mitraísmo comiam pão e bebiam água (talvez uma mistura de água e vinho) na refeição iniciatória -
uma diabólica imitação, ele se apressa em dizer, da eucaristia cristã.

Contudo, não importa o grau de semelhança que outros cultos de mistério parecem ter com os
primórdios do cristianismo e com os ensinamentos de Jesus; é o de Osíris, como vimos, que na verdade
constitui sua inspiração mais direta. S.G.F. Brandon descreve Osíris como um "protótipo de Cristo".
A história do início da Igreja no Egito é muito sugestiva no que diz respeito às semelhanças entre o
cristianismo e a escola de mistério de Ísis/Osíris. Os historiadores reconhecem que há um grande
mistério sobre as origens e o desenvolvimento do cristianismo no Egito: a única coisa de que eles têm
certeza é que havia ali um ramo muito precoce do movimento. De fato, para uma metrópole tão grande
e influente, Alexandria é praticamente ignorada pelos autores do Novo Testamento, sendo mencionada
apenas uma vez. (A referência, porém, como veremos, tem um significado especial para essa
investigação.) Há também uma completa ausência de registros escritos sobre a Igreja até o século III: os
estudiosos dizem que isso se deve a uma destruição total dos arquivos pela facção cristã dominante.
Com certeza, havia algo abominável sobre o ramo egípcio do movimento. Talvez uma pista sobre sua
natureza esteja implícita no fato de que quando o Serapeum foi destruído, em 391, muitos devotos se
bandearam para a Igreja Cristã Copta (egípcia).
A Igreja Copta permaneceu uma entidade distinta, independente da Igreja de Roma ou da Igreja
Ortodoxa Oriental. Significativamente, suas doutrinas são uma óbvia mistura das crenças egípcias
tradicionais e cristãs, e as duas foram assimiladas com extraordinária facilidade. Após 391 a Igreja
Copta adotou como símbolo o ankh - a cruz laçada egípcia -, e ainda o utiliza hoje em dia. Mircea
Eliade afirma claramente: "Os coptas consideravam-se os verdadeiros descendentes dos antigos
egípcios".
Isto aconteceu na mesma época e no mesmo lugar em que tantas partes essenciais de nosso quebra-
cabeça foram criados. A Alexandria daquela época foi o cadinho no qual se operou a síntese de grande
parte do conhecimento e de muitas das idéias que viriam a formar o hermetismo, o gnosticismo dos
textos de Nag Hammadi e a alquimia em seu formato "moderno". Estes eram, em essência, expressões
da mesma ênfase no poder transcendental do Feminino e na mágica fusão da deusa com seu deus.

O lado triste disso é que, embora todas as ligações entre o cristianismo e a religião de Ísis/Osíris sejam
muito bem conhecidas pelos eruditos, já há pelo menos sessenta anos, poucos cristãos sabem delas. É
claro que podem não dar a menor importância ao fato de Jesus pertencer a uma longa linhagem de
salvadores, de deuses mortos-ressurrectos, pois para eles a fé é mais importante do que um fato
histórico. Por outro lado, muitos cristãos de hoje sentiram-se completamente enganados pela Igreja
quando descobriram essas coisas por si mesmos.
O cristianismo não era a religião fundada pelo único Filho de Deus que morrera para expiar todos
nossos os pecados: era o culto a Ísis e Osíris com outra roupagem. Entretanto, logo se tornou um culto à
personalidade, centrado em Jesus.
Porém, se ele era essencialmente um missionário egípcio, estaria apenas trabalhando em benefício de
seus deuses? Seria suficiente para Jesus chegar aos corações e almas das multidões? Está faltando algo
nesse quadro, algo que é fundamental para nosso entendimento tanto do homem quanto de sua missão.
Jesus claramente também visava um objetivo terreno: havia uma agenda política que corria em paralelo
com suas ambições de converter as pessoas ao culto de Ísis/Osíris. Não por acaso ele foi um líder
proeminente que levou sua mensagem a muitas regiões da Palestina, alcançando tantas pessoas quanto
foi possível. Naquela época e lugar a política e a religião eram inseparáveis. Se você fosse um grande
líder religioso automaticamente era também uma influência política nada desprezível.
Entretanto, toda campanha com interesses tão altos inevitavelmente apresenta grandes desafios para sua
liderança; surgem as vozes dissidentes. Nesse caso a voz era de alguém que havia chegado antes, que
era ouvida clamando no deserto. E é para essa voz, para João Batista, que nos voltamos agora.
Na Parte Um identificamos as duas correntes principais, centradas em Maria Madalena e João Batista,
que corriam, como riachos subterrâneos, por todas as heresias que investigamos. E ambas as correntes
escondiam certo conhecimento poderoso e perigoso, algo que ameaçaria as próprias fundações da Igreja
se fosse tornado público. No caso de Maria Madalena, nossa investigação demonstrou com certeza que
isto é verdadeiro. E ela agora é a chave-mestra para revelar os próprios segredos de Jesus, há tanto
tempo escondidos. Através dela finalmente podemos ver que ele era um sacerdote da religião egípcia,
um adepto da magia que ela iniciara pelo ritual do sexo sagrado. É isto que o culto herético da
Madalena realmente significa e o que ele efetivamente representou para várias gerações de hereges.
Madalena não era apenas a representante da tradição pagã à qual ela e Jesus pertenciam; para a maioria
dos movimentos heréticos secretos, Maria Madalena era a deusa Ísis.
Mas os hereges também mantinham uma outra corrente secreta próxima de seus corações, e esta era
incorporada e codificada na figura de João Batista. E assim como Madalena, ele foi um personagem real
que conheceu e interagiu com Jesus. Então, que revelações ele tem a nos oferecer?

CAPÍTULO XIV

João Cristo
Ao pesquisar o papel desempenhado por Leonardo da Vinci na falsificação que é o Sudário de Turim,
ficamos surpresos ao descobrir com que freqüência João Batista aparece na vida do artista. Não apenas
Leonardo era um grande admirador do santo, como muitos dos lugares ligados ao Mestre eram, talvez
coincidentemente, dedicados a João. A maior parte ficava em Florença, a amada cidade de Leonardo,
que abriga em seu coração o extraordinário Batistério. Em 1995, quando fazíamos um documentário
para televisão sobre o Sudário, visitamos o local com uma pequena equipe de filmagem, o que nos
assegurou ter o local somente para nós durante algum tempo - o mágico acrônimo BBC é praticamente
um "abre-te sésamo" -, antes que suas portas fossem abertas ao público. O Batistério é uma estranha
construção octogonal que data do período da Primeira Cruzada e cujo formato incomum possivelmente
se deve aos templários, que (assim como suas características igrejas redondas) também promoviam a
forma octogonal, com base na crença de que assim era o Templo de Salomão em Jerusalém. Nosso
principal interesse em visitá-lo era que uma das paredes laterais da construção abrigava a única
escultura remanescente de Leonardo (um trabalho em conjunto com Giovanni Francesco Rustici).
Tratava-se, é claro, de uma estátua de João Batista. E, como em todas as imagens de João feitas por
Leonardo, ele é retratado com o dedo indicador em riste.
Como vimos, a Heresia Européia está parcialmente centrada na figura do Batista, embora as verdadeiras
razões disso permaneçam deliberadamente obscuras: de fato, desde que começamos nossa pesquisa
sobre o assunto, alguns anos atrás, logo tornou-se evidente que isso constituía um segredo interno de
organizações como as dos Cavaleiros Templários e a da Maçonaria. No entanto, por que ainda se
considera prudente manter esse segredo tão zelosamente guardado?

A visão tradicional que os cristãos têm de João Batista é bastante conhecida. Acredita-se que o
ministério de Jesus tem início com seu batismo por João - de fato, dois dos Evangelhos canônicos
começam com João pregando às margens do rio Jordão. A imagem que os autores criam de João é a de
um evangelista severo e asceta que deixa a vida de ermitão no deserto para conclamar o povo de Israel a
arrepender-se de seus pecados e ser batizado. Desde o início, há algo tão inflexível e frio em João que
faz com que os leitores atuais sintam-se desconfortáveis; na verdade, não há nada nos Evangelhos que
justifique a extrema veneração que lhe dedicaram várias gerações de hereges - com certeza nada da
reverência que lhe demonstraram homens de intelecto privilegiado como Leonardo da Vinci.
Os relatos dos Evangelhos, de fato, pouco revelam sobre João Batista. Eles nos dizem que o batismo
por ele ministrado era um sinal público de arrependimento, e que muitos responderam ao seu chamado
e foram ritualmente imersos nas águas do rio Jordão, inclusive Jesus. De acordo com Mateus, Marcos,
Lucas e João, o Batista proclamava-se um mero precursor do Messias profetizado, que ele reconhecia
ser Jesus. Tendo cumprido seu papel, praticamente desapareceu de cena, embora existam indicações de
que continuou a batizar durante algum tempo.
O Evangelho de Lucas conta-nos que Jesus e João eram primos, e, junto com o relato da concepção e do
nascimento de Jesus, oferece uma descrição da concepção e do nascimento de João - que acontecem
paralelamente aos de Jesus mas são claramente menos miraculosos. Os pais de João, o sacerdote
Zacarias e Isabel, não têm filhos e estão em idade avançada, mas são informados pelo anjo Gabriel de
que foram escolhidos para ter um filho; pouco tempo depois Isabel, já na menopausa, concebe. É ao
encontro de Isabel que vai Maria quando se descobre grávida de Jesus. Isabel está então com seis meses
de gravidez, e na presença de Maria seu filho ainda não nascido "saltou no seu ventre"; é assim que ela
fica sabendo que a criança de Maria é o tão aguardado Messias. Isabel então louva Maria, o que a
inspira a proclamar o "cântico" que hoje é conhecido como Magnificat.
Lemos nos Evangelhos que, logo após ter batizado Jesus, João foi preso a mando de Herodes Antipas.
A razão alegada é que João havia publicamente condenado o recente casamento de Herodes com
Herodíades, ex-mulher de seu meio-irmão Filipe - casamento que, sendo ela divorciada de Filipe,
contrariava as leis judaicas. Após um período incerto dentro da prisão, João é executado. Na história
conhecida, Salomé, filha de Herodíades com o ex-marido, dança para o padrasto na comemoração do
aniversário deste, deixando-o tão embevecido que ele promete dar a Salomé tudo o que ela desejar, até
mesmo "metade de seu reino". Induzida por Herodíades, ela pede a cabeça de João Batista em uma
bandeja. Sem poder voltar atrás em sua palavra, Herodes, que a essa altura já começara a admirar o
Batista, relutantemente concorda e manda decapitar João. Os discípulos de João obtêm permissão para
levar seu corpo e sepultá-lo, embora não se saiba ao certo se levaram também a cabeça.
A história tem todos os elementos - um rei tirânico, uma mãe madrasta, uma dançarina púbere e a morte
horrível de um famoso homem santo -, e por isso forneceu um fértil material para várias gerações de
artistas, poetas, músicos e dramaturgos. Seu fascínio parece não ter fim, o que talvez seja curioso para
um episódio que consiste em apenas alguns versos dos Evangelhos. Duas adaptações em particular
escandalizaram o público no início do século XX. Uma delas é a ópera Salomé, de Richard Strauss, que
retrata uma garota promíscua tentando seduzir João na prisão e, tendo sido repudiada, pede sua cabeça
em vingança, beijando então seus lábios já sem vida de modo triunfante. A peça de mesmo nome de
Oscar Wilde teve uma única apresentação devido ao terror causado pela pré-publicidade, que se centrou
basicamente no fato de que ele próprio representava o papel-título. Entretanto, o famoso cartaz de
Aubrey Beardsley para a peça ainda permanece como uma descrição gráfica da interpretação de Wilde
da história bíblica e, mais uma vez, centra-se na suposta luxúria necrófila de Salomé.
Esse inebriante coquetel de imaginação erótica tem pouca ligação com o seco relato do Novo
Testamento, cujo único propósito parece ser o de estabelecer, sem sombra de dúvida, que João era o
precursor de Jesus e espiritualmente inferior a este - e também preencher o papel profetizado do Elias
reencarnado, que deveria preceder a chegada do Messias.
Entretanto, há uma outra fonte facilmente acessível de informação acerca de João: o livro Antiquities of
the Jews, de Josefo. Ao contrário de sua suposta referência a Jesus, a autenticidade da referência a João
não está em debate porque se encaixa naturalmente dentro da narrativa, e é um relato impessoal que não
faz elogios a João - e difere dos relatos dos Evangelhos de modo significativo.
Josefo registra a pregação e o batismo ministrado por João, e o fato de que sua popularidade e
influência sobre as massas alarmavam Herodes Antipas, que então o mandou prender e executar em
uma espécie de "manobra preventiva". Josefo não fornece detalhes de sua prisão ou das circunstâncias
ou forma da sua execução, e não faz qualquer menção à suposta crítica de João ao casamento de
Herodes. Ele enfatiza o enorme apoio popular a João e acrescenta que, não muito tempo após sua
execução, Herodes sofreu uma séria derrota em batalha, o que o povo tomou como sinal de punição
pelo crime que ele cometera contra o Batista.
O que podemos concluir sobre João a partir dos relatos dos Evangelhos e de Josefo? Para começar, a
história de que ele batizou Jesus deve ser autêntica, pois sua inclusão sugere que esse fato era por
demais conhecido para ser excluído - mesmo considerando a tendência dos autores dos Evangelhos em
marginalizar João sempre que possível.
João pregava em Peréia, a leste do Jordão, um território que Herodes também governava, além da
Galiléia. A descrição em Mateus é contraditória; o Evangelho de João é mais específico e cita duas
pequenas cidades onde João batizava: "Betânia, do outro lado do Jordão" (1:28) - um vilarejo próximo à
principal rota comercial - e Enon, no norte do vale do Jordão (3:23). Os dois lugares são bastante
distantes um do outro, portanto parece que João viajou muito durante sua missão.
A impressão do ermitão asceta fomentada pelas traduções inglesas dos Evangelhos pode, de fato,
representar um erro de conceito. A palavra grega eremos, traduzida como "deserto" ou "local
despovoado", pode significar qualquer lugar isolado. É significativo que a mesma palavra seja utilizada
para designar o local onde Jesus alimentou os cinco mil. Carl Kraeling, em seu estudo sobre João,
considerado o texto acadêmico de referência sobre o assunto, também argumenta que a dieta de
"gafanhoto e mel" que João supostamente consumia, não implica especificamente um estilo de vida
ascético.
É provável também que a missão de João não se limitasse apenas aos judeus. O relato de Josefo,
embora de início apresente João exortando "os judeus" à piedade e a uma vida virtuosa, acrescenta que
"outros se juntavam [i.e. ao redor dele] (pois também ficavam extremamente entusiasmados ao ouvir
seus ensinamentos)". Alguns estudiosos acreditam que esses "outros" só podem ser não-judeus, e de
acordo com o britânico Robert L.Webb, estudioso da Bíblia,

...não há nada no conteúdo a sugerir que não poderiam ser gentios. A localização do ministério de
João sugere que ele poderia estar em contato com os gentios que viajavam pelas rotas de comércio
vindos do Oriente, bem como com os gentios que viviam na região da Transjordânia.

Uma outra concepção errônea é a da idade de João, que se considera ser mais ou menos a mesma de
Jesus. Entretanto, a conclusão a que se chega a partir dos quatro Evangelhos é de que João pregava já
há muitos anos quando batizou Jesus e que era, talvez por uma grande margem de diferença, o mais
velho dos dois. (A história do nascimento de João no Evangelho de Lucas é, como veremos, em grande
parte inventada e inverossímil.)
Como a de Jesus, a mensagem de João era um ataque implícito ao culto que se praticava no Templo de
Jerusalém, não apenas no que dizia respeito à possível corrupção de seus oficiantes, mas a tudo o que
ele representava. A convocação de João ao batismo pode ter irritado as autoridades do Templo, não
somente porque ele afirmava que o batismo era espiritualmente superior aos seus ritos, como também
porque era gratuito.
E há também as irregularidades presentes nas descrições sobre sua morte, especialmente quando
comparadas com o relato de Josefo. Os motivos imputados a Herodes - medo da influência política de
João (Josefo) e raiva por sua crítica ao casamento do governante (Evangelhos), não são mutuamente
excludentes. Os arranjos conjugais de Herodes Antipas tiveram, realmente, implicações políticas, mas
não por causa da mulher com quem ele se casara. A questão era a mulher de quem ele teve que se
divorciar para se casar novamente. Sua primeira esposa era uma princesa do reino árabe de Nabatéia, e
o insulto que a separação representou para essa família real deflagrara uma guerra entre os dois reinos.
Nabatéia fazia fronteira com o território de Peréia, governado por Herodes e onde João fazia suas
pregações. Portanto, a censura de João ao casamento de Herodes efetivamente o colocou do lado do rei
inimigo, Aretas, com a ameaça implícita de que, se a população concordasse com João, poderia acabar
apoiando Aretas contra Antipas.
Talvez isso pareça por demais acadêmico, mas intriga o fato de que os Evangelhos tenham "suavizado"
os verdadeiros motivos que levaram Herodes a executar João. Se reconhecemos que esses livros são
essencialmente material de propaganda e que quando obscurecem algum acontecimento o fazem de
modo deliberado, a outra possibilidade levanta a questão de por que os autores dos Evangelhos se
incomodariam com esse episódio.
É compreensível que os autores dos Evangelhos quisessem censurar qualquer sugestão de que João
gozava de grande popularidade - isto é compatível com o tratamento geral que dedicam a ele -, mas se
tivessem que inventar alguma coisa, seria de esperar que tramassem uma história que apoiasse Jesus de
algum modo. Por exemplo, poderiam ter dito que João fora preso por proclamar que Jesus era o
Messias.
Os relatos dos Evangelhos também cometem um engano. Dizem que João criticava Herodes Antipas
porque este se casara com a ex-mulher de seu meio-irmão Felipe. No entanto, embora as circunstâncias
do casamento sejam historicamente precisas, o meio-irmão em questão era na verdade um outro
Herodes, não Felipe. Este segundo Herodes era o pai de Salomé.
Apesar do fato de João, como Madalena, ter sido deliberadamente marginalizado pelos autores dos
Evangelhos, podem-se ainda encontrar pistas acerca de sua influência sobre os contemporâneos de
Jesus. Em um episódio cujas implicações parecem não ter ocorrido à maioria dos cristãos, os discípulos
de Jesus dizem a ele: "Senhor, ensina-nos a orar, assim como também João ensinou aos seus
discípulos". Lemos então que Jesus ensinou-lhes a oração que viria ser conhecida como Pai Nosso ("Pai
nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome...").
Já no século XIX o grande egiptólogo Sir E. A. Wallis observou que as palavras iniciais do "Pai Nosso"
se originavam de uma antiga oração egípcia para Osíris-Amon, que assim começa: "Amon, Amon que
estais no céu...". É claro que isso data de séculos antes de João e Jesus, e que o "Pai" invocado na
oração não é nem Jeová nem seu suposto filho, Jesus. De qualquer modo, o "Pai Nosso" não foi criado
por Jesus.
Diz-se que João prostrou-se em sinal de reverência ante a figura de Jesus ao batizá-lo. Ficamos com a
impressão de que toda a sua missão, talvez sua vida inteira, foi dirigida para esse único evento. Na
verdade, porém, existem claras indicações de que João e Jesus, embora estreitamente associados no
início da trajetória deste último, eram rivais irreconciliáveis. Isso não escapou à atenção da maioria dos
mais respeitados estudiosos da Bíblia. Como escreve Geza Vermes:

O objetivo dos autores dos Evangelhos era, sem dúvida, dar a impressão de amizade e estima mútua,
mas suas tentativas são superficiais, e um exame mais cuidadoso das fragmentárias evidências sugere
que, pelo menos no que diz respeito aos seus respectivos discípulos, os sentimentos de rivalidade não
estavam ausentes.

Vermes também descreve a insistência de Mateus e Lucas na precedência de Jesus sobre João como
algo "forçado". Realmente, para leitores objetivos, existe algo profundamente suspeito na repetida
ênfase, um tanto enjoativa, na superioridade "daquele que veio depois". Aqui temos um João Batista
que efetivamente rasteja perante Jesus.
Entretanto, como diz Hugh Schonfield:

Temos conhecimento, através de fontes do próprio cristianismo, de que havia uma importante seita
judaica que rivalizava com os seguidores de Jesus e afirmava que João Batista é que era o verdadeiro
Messias...

Schonfield também comenta "a rivalidade irreconciliável" entre seus respectivos seguidores, mas
acrescenta que, devido à influência de João sobre Jesus ser bastante conhecida, "eles não podiam
desprezar o Batista, e tiveram que inventar, em vez de enfatizar, seu lugar secundário" .
(Sem entender essa rivalidade, não se pode compreender plenamente o verdadeiro papel nem de João
nem de Jesus. Deixando de lado as amplas implicações para a própria teologia cristã, a recusa em
reconhecer a hostilidade entre Jesus e João torna a mais radical das novas teorias totalmente
insatisfatória. Por exemplo, como vimos, Ahmed Osman argumenta que Jesus foi inventado pelos
seguidores de João Batista a fim de que se cumprisse sua profecia sobre aquele que estava por vir. De
modo semelhante, Knight e Lomas, no livro The Hiram Key, chegam ao ponto de afirmar que Jesus e
João eram coMessias trabalhando em conjunto, uma teoria que implica uma íntima relação entre os dois
pregadores; nada poderia estar mais longe da verdade.)
A conclusão mais lógica é a de que Jesus começou como discípulo de João e se separou dele mais tarde
para formar seu próprio grupo. (É bastante provável que tenha sido batizado por João, mas como um
acólito, não como o Filho de Deus!) Os Evangelhos registram que Jesus recrutou seus primeiros
discípulos entre os seguidores de João.
De fato, o grande estudioso inglês da Bíblia C. H. Dodds traduz a frase do Evangelho de João, "aquele
que vem depois de mim" (ho opiso mou erchomenos), como "aquele que me segue". Isso poderia
significar "discípulo", dado que a ambigüidade é a mesma do inglês. Dodds achava que era exatamente
isso.
A crítica mais recente à Bíblia assinala que João jamais fez sua famosa proclamação sobre a
superioridade de Jesus, nem mesmo insinuou que este era o Messias. Essa idéia é corroborada por
vários fatos.
Os Evangelhos (de modo bastante ingênuo) registram que João, quando estava encarcerado, questionou
a autenticidade do messiado de Jesus. A sugestão é de que ele duvidava de sua própria afirmação
anterior de que Jesus era o Messias, mas isso poderia também ser um outro exemplo em que os autores
dos Evangelhos precisaram adaptar um episódio para seus próprios propósitos.Teria João
inequivocamente negado que Jesus era o Messias talvez chegando mesmo a denunciá-lo?
Do ponto de vista da mensagem cristã as implicações relativas ao episódio são, ou deveriam ser,
extremamente perturbadoras. Pois se por um lado os cristãos aceitam que João fora divinamente
inspirado para reconhecer Jesus como o Messias, por outro o questionamento de João na prisão indica,
no mínimo, que ele estava em dúvida. O cárcere certamente lhe dera muito tempo para pensar, ou talvez
a divina inspiração o tivesse abandonado.
Como veremos, os últimos seguidores de João, que Paulo encontrou em Éfeso e Corinto quando fazia
seu trabalho missionário, nada sabiam sobre a suposta declaração de João proclamando que alguém
maior viria depois dele.
Uma das evidências mais fortes a indicar que o Batista nunca declarou que Jesus era o Messias
esperado é a de que os próprios discípulos de Jesus não o reconheciam como tal, pelo menos no começo
de seu ministério. Ele era seu líder e professor, mas não há qualquer sugestão de que o seguiram de
início porque acreditavam que ele era o tão esperado Messias dos judeus. A identificação de Jesus como
o Messias parece ter se espalhado pouco a pouco entre os discípulos, à medida que seu ministério se
desenvolvia. No entanto, Jesus deu início à sua missão após ter sido batizado por João: então por que,
se João realmente havia anunciado Jesus como o Messias, ninguém mais na época sabia disso? (E os
próprios Evangelhos deixam claro que as pessoas o seguiam não porque ele fosse o Messias, mas por
alguma outra razão.)
E há uma outra consideração que nos faz pensar bastante. Quando o movimento de Jesus começou a
causar impacto, Herodes Antipas ficou temeroso e, aparentemente, começou a pensar que Jesus era
João ressurrecto ou reencarnado (Marcos 6:14):

Ora, o rei Herodes ouviu falar dele (pois seu nome era ouvido em toda a parte) e dizia: João Batista
ressuscitou dentre os mortos, e por isso os prodígios operam-se nele.
Essas palavras sempre foram motivo de confusão. O que Herodes quis dizer com elas: que Jesus era de
algum modo João reencarnado? No entanto, dificilmente poderia ser isso, pois João e Jesus viveram na
mesma época. Antes de examinarmos essa história com mais profundidade, assinalemos algumas
implicações de relativa importância das palavras de Herodes.
A primeira é que ele não sabia que João vaticinara que "um maior do que ele" viria depois, senão teria
chegado à óbvia conclusão de que Jesus era essa pessoa. Se a vinda do Messias fosse uma parte
evidente dos ensinamentos de João, como afirmam os Evangelhos, então Herodes deveria estar ciente
disso.
A segunda é que Herodes disse que "João... ressuscitou... e por isso os prodígios operam-se nele
Jesus]..." Isso sugere que João gozava de uma reputação própria como fazedor de milagres, o que,
entretanto, é absolutamente negado nos Evangelhos - de fato, o Evangelho de João (10:4) é tão enfático
a esse respeito que se chega a suspeitar de um encobrimento. Teria João transformado água em vinho,
alimentado milhares com um punhado de comida, curado doentes, até mesmo ressuscitado mortos?
Talvez sim. Mas uma coisa é certa: o Novo Testamento, sendo a propaganda do movimento de Jesus,
não é o lugar onde podemos esperar encontrar tais afirmações.
Uma explicação possível das confusas palavras de Herodes sobre João Batista ter renascido através de
Jesus é, ao menos superficialmente, impensável, tanto literal quanto metaforicamente. Contudo,
lembremos que estamos lidando com uma cultura e uma época tão diferentes da nossa que, em muitos
aspectos, parecia tratar-se de um outro mundo. Como observa Carl Kraeling, em 1940, as palavras de
Herodes só podem fazer sentido se entendidas como refletindo idéias ocultas que eram correntes no
mundo greco-romano da época de Jesus. Essa sugestão foi acatada e ampliada por Morton Smith em
seu livro Jesus the Magician, de 1978. Como vimos, Smith concluiu que a resposta para o enigma da
popularidade de Jesus reside em suas demonstrações de magia egípcia.
Naquela época acreditava-se que, para realizar magia, um feiticeiro necessitava ter poder sobre um
demônio ou espírito. Os Evangelhos aludem a isso em uma passagem em que Jesus faz referência à
acusação feita contra João de que "ele tinha um demônio". Não é, como à primeira vista parece, uma
referência à possessão por um espírito maligno, mas sim que João tinha um demônio sob seu poder.
A hipótese de Kraeling, dentro desse contexto, era de que as palavras de Herodes Antipas podiam ser
entendidas como uma referência a esse conceito, porque não eram apenas os demônios que podiam ser
"escravizados" dessa maneira, mas também o espírito de um ser humano, especialmente um que fora
assassinado. Um espírito ou alma assim escravizado poderia, acreditava-se, realizar as tarefas que seu
mestre comandasse. (Tal acusação foi algum tempo depois lançada contra Simão Mago, que, segundo
diziam, "escravizara” o espírito de um menino assassinado.)
Kraeling escreve:

Os detratores de João utilizaram-se da ocasião de sua morte para espalhar a idéia de que seu espírito
desencarnado estava a serviço de Jesus, como instrumento para a realização de trabalhos de magia
negra - um reconhecimento nada pequeno do poder de João.

Com essa explicação em mente, Morton Smith assim traduziu as palavras de Herodes:

João Batista ressuscitara dentre os mortos [através da necromancia de Jesus; Jesus agora o tinha em
seu poder]. E por isso [posto que Jesus-João pode controlá-los] prodígios [inferiores] são realizados
[seus milagres] por ele [i.e. sob suas ordens].

Em apoio a essa idéia, Smith cita um texto de magia presente num papiro que hoje se encontra em
Paris. A invocação - significativamente, talvez - é dirigida ao deus Hélios:

Dê-me autoridade sobre o espírito desse homem assassinado, de cujo corpo possuo uma parte...

De especial interesse nesse contexto são os dons que essa operação mágica pretende conferir ao mago: a
habilidade de curar e predizer se uma pessoa doente viverá ou morrerá, e a promessa de que "você será
venerado como um deus..."
Um outro episódio serve para ressaltar o fato de que a popularidade de João era, para dizer o mínimo,
maior do que a de Jesus. Tal episódio ocorre próximo do final do ministério de Jesus, quando este está
pregando para as multidões no Templo de Jerusalém. Os "príncipes dos sacerdotes e os anciãos"
confrontam-no abertamente, propondo questões traiçoeiras na esperança de pegá-lo em contradição -
questões que Jesus contorna com a presença de espírito típica de um político experiente. Eles exigem
que Jesus lhes diga quem lhe deu autoridade para falar como fala. Jesus responde com outra pergunta:
"Donde era o batismo de João? Do céu ou dos homens?"
A pergunta faz seus oponentes ponderarem:

E eles refletiam consigo, dizendo: Se lhe dissermos, do céu, ele dirá: Por que razão, pois, não crestes
nele?
E se lhe dissermos, dos homens, tememos o povo. Porque todos tinham João como um profeta.
Em face desse beco sem saída, declinaram de responder.
O que é significativo nessa disputa é que Jesus usou o temor dos sacerdotes à popularidade de João
contra eles mesmos, em vez de se apoiar na sua própria. Como vimos, Josefo destacou a influência e o
apoio que João tinha entre as pessoas: o Batista não era um pregador itinerante como outro qualquer,
mas um líder de grande carisma e poder que, por alguma razão, arrebanhou um grande número de
seguidores. De fato, de acordo com Josefo, tanto os judeus quanto os gentios "ficavam extremamente
entusiasmados ao ouvir seus ensinamentos".
Um curioso episódio, relatado no Evangelho apócrifo chamado Livro de Tiago ou Proto-evangelho,
indica que João era importante por si só. Esse Evangelho foi compilado muito tempo depois e inclui
vários relatos da infância de Jesus que ninguém hoje em dia leva a sério, mas que incorpora materiais
de diversas fontes e, portanto, pode conter pelo menos algumas pistas sobre tradições bem conhecidas.
É com certeza difícil entender como alguém familiarizado com os Evangelhos canônicos poderia tê-lo
inventado.
No relato da infância de Jesus e João - após a conhecida história do nascimento de Jesus e da visita dos
Sábios - Herodes ordena o Massacre dos Inocentes. À primeira vista isso é idêntico à versão presente no
Novo Testamento. Entretanto, logo toma um rumo radicalmente diferente.
A reação de Maria, ao ficar sabendo do massacre, é simplesmente enrolar o bebê com panos e colocá-lo
em uma manjedoura, provavelmente para escondê-lo dos soldados. No entanto, parece que João é que é
o objeto da busca. Lemos ali que Herodes envia seus homens para interrogar Zacarias, pai de João, e
eles voltam dizendo que ele não sabe onde estão sua mulher e filho:

Herodes ficou irado e disse: o filho dele será o rei de Israel.

Nessa versão, é Isabel que foge com João para o interior do país. Existem claros indícios aqui de uma
outra "Sagrada Família", talvez até mesmo rival.
Como vimos, João era muito popular e contava com grande número de seguidores, os quais, como no
movimento de Jesus, consistiam em um círculo de discípulos que o acompanhavam onde quer que ele
fosse e de pessoas que se aproximavam para ouvi-lo falar. Também como no caso de Jesus, após a
morte de João seus discípulos começaram a escrever relatos sobre sua vida e seus ensinamentos no que
seriam efetivamente as escrituras de João.
Os estudiosos reconhecem que tal corpo de "literatura sobre João" outrora existiu, mas não sabemos
onde está. Possivelmente foi destruído ou mantido em segredo pelos "hereges". No entanto, parece que
de fato continha material que não correspondia aos relatos do Novo Testamento - do contrário, de
alguma forma teria sido conservado em domínio público.
A descrição de Lucas das concepções "conjuntas" de João e Jesus é extremamente interessante
.Analisando o relato, os estudiosos estabeleceram, para além de qualquer dúvida, que na verdade se
trata de uma combinação de duas histórias separadas, uma contando a concepção de Jesus e a outra a de
João, que são (de acordo com Kraeling) "unificadas por materiais que basicamente não tinham qualquer
relação entre si". Em outras palavras, Lucas (ou a fonte que ele utilizou) pegou duas histórias distintas e
tentou juntá-las utilizando o recurso literário do encontro das duas mulheres grávidas, Maria e Isabel. A
conclusão lógica é que a história da infância de João era originariamente independente dos Evangelhos
e provavelmente anterior ao nascimento de Jesus. Isso contém importantes implicações. Uma é que já
havia histórias falando de João. A outra é que a versão de Lucas para a Natividade foi evocada
especificamente para se "sobrepor" à de João, que já era conhecida. Afinal, o "milagre" do nascimento
de João reside no simples fato de seus pais serem idosos, enquanto Lucas faz de Jesus o rebento de uma
mãe virgem. E o único motivo que Lucas teria tido para narrar tal história era que os seguidores de João
ainda existiam e rivalizavam com os de Jesus.
Essa hipótese se apóia em um fato que foi estabelecido pelos estudiosos, mas permanece desconhecido
para a maioria dos cristãos. O adorado "cântico" de Maria, o Magnificat, era de fato de Isabel e referia-
se ao filho desta. As palavras associam a mulher com a personagem Ana do Antigo Testamento, que
gerou pela primeira vez em idade já avançada, e portanto está mais de acordo com a condição de Isabel.
De fato, alguns dos primeiros manuscritos do Novo Testamento declaram que o cântico era de Isabel, e
o patriarca da Igreja Irineu (escrevendo por volta de 170) também afirma que ela, e não Maria, proferiu
as palavras.
Da mesma forma, na cerimônia da circuncisão de João, Zacarias declamou uma "profecia", ou hino,
conhecida como Benedictus, em louvor a seu filho recém-nascido. Obviamente isso deve ter sido parte
da história original do nascimento de "João Batista". Tanto o Magnificat quanto o Benedictus parecem
ter sido hinos dedicados a João e que foram incorporados ao "Evangelho de João" , adulterado então por
Lucas a fim de torná-lo mais aceitável para os seguidores de Jesus. Isso indica que as pessoas estavam
não só escrevendo relatos da vida de João como também fazendo elegias a ele em versos e canções.
Contudo, teriam essas tradições relativas a João realmente fornecido aos autores dos Evangelhos o
material no qual basearam seus relatos sobre Jesus? Como diz Schonfield em seu livro Essene Odyssey:

O contato com os seguidores de João Batista... familiarizaram os cristãos com as histórias da


natividade de João, nas quais ele figura como o jovem Messias das tradições sacerdotais, nascido em
Belém.

Além disso, os antigos textos da Igreja conhecidos como Considerações Clementinas afirmam que
alguns dos discípulos de João acreditavam que ele era o Messias. E Geza Vermes acha que alguns
episódios contidos nos Evangelhos e nos Atos dão indicações de que os seguidores de João acreditavam
que ele era o Messias.
O conhecimento de que existiu essa "literatura sobre João" responde a muitas questões sobre o Quarto
Evangelho, que se atribui ao discípulo João. Como vimos, existem muitas contradições internas nesse
Evangelho. Embora seja o único que se baseia no relato de uma testemunha ocular - afirmação
corroborada pelos detalhes circunstanciais encontrados no próprio texto -, ele contém evidentes
elementos gnósticos que não condizem nem com os outros Evangelhos, nem com o tom prosaico geral
do restante do próprio livro. Isso é particularmente perceptível no "prólogo" relativo a Deus e ao Verbo.
O Evangelho de João é o mais anti-Batista de todos quatro e, no entanto, é o único que nos diz
explicitamente que os primeiros discípulos de Jesus vieram das fileiras do Batista, incluindo o suposto
autor e testemunha, o próprio "discípulo amado".
Essas contradições, entretanto, não invalidam necessariamente os Evangelhos. Está claro que o autor
compilou os textos de diversas fontes, as quais ele reuniu e interpretou de acordo com suas próprias
crenças sobre Jesus, reescrevendo o material onde achou que era necessário. Quem quer que seja o
autor, o Evangelho parece conter o testemunho em primeira mão do "discípulo amado". No entanto,
muitos dos mais influentes estudiosos do Novo Testamento pensam que o autor também utilizou alguns
dos textos escritos por seguidores do Batista, os quais, de acordo com a autoridade em estudos sobre o
Oriente Médio, Edwin Yamauchi, "o Quarto Evangelista... desmistificou e cristianizou".
O material do Batista consiste principalmente no prólogo e no que se denominam "discursos da
revelação" entre Jesus e seus discípulos. O alemão Rudolf Bultmann, grande estudioso da Bíblia,
argumenta que estes
...se originaram, segundo se acreditava, de documentos dos seguidores de João Batista que
exaltavam João e lhe atribuíam o papel de Redentor enviado do mundo da Luz. Portanto, uma parte
considerável do Evangelho de João não é originariamente cristã, mas resultado da transformação da
tradição do Batista.

Esses elementos do Evangelho de João são os mais gnósticos e, portanto, foram os que mais causaram
problemas aos historiadores que o estudaram. Supõe-se com freqüência que, já que esses elementos não
se coadunam com os outros Evangelhos e o resto do Novo Testamento, o livro deve ter sido escrito
muito tempo depois que os outros. Entretanto, reconhecer que vieram de outra fonte que não os
seguidores de Jesus modifica totalmente o quadro, e muitos comentadores associam o Quarto
Evangelho a uma "fonte gnóstica pré-cristã", que foi adaptada pelo autor. Essa fonte parece ser João
Batista e seus seguidores, que, ao que tudo indica, eram gnósticos.
(Essas descobertas podem fornecer uma solução para a controvérsia sobre a data do Evangelho de
João. Como vimos, a visão comum é a de que, dado o material não judaico e gnóstico do Evangelho, ele
tenha sido escrito após os Evangelhos Sinópticos. Entretanto, se Jesus não era judeu, e grande parte do
material deriva dos seguidores de João Batista - que, como veremos, eram gnósticos -, então é bastante
possível que esse Evangelho seja contemporâneo, ou até mesmo anterior, aos outros.)
Não só João reuniu um grande número de devotados seguidores durante seu tempo de vida, como eles
continuaram a crescer após sua morte de um modo que é curiosamente paralelo ao crescimento do
cristianismo. Existem evidências de que o movimento de João iniciara uma Igreja própria que não se
confinou à Palestina. Em seu livro Jesus, de 1992, A. N. Wilson escreve:

Se a religião de João Batista (e sabemos que houve uma) tivesse se tornado dominante no
Mediterrâneo, em vez da religião de Jesus, provavelmente saberíamos mais do que sabemos sobre essa
cativante figura. Seu culto sobreviveu até pelo menos meados dos anos 50, como o autor dos Atos deixa
escapar. . . Em Éfeso, pensavam que "O Caminho" (como era conhecida a religião desses primeiros
crentes) significava seguir o "batismo de João". Tivesse Paulo tido uma personalidade mais fraca... ou
se nunca tivesse escrito as epístolas, o "batismo de João" bem poderia ter sido a religião que atrairia a
imaginação do mundo antigo, em lugar do batismo de Cristo... O culto poderia até mesmo ter se
desenvolvido a ponto de os então joanitas, ou batistas, acreditarem que... João era Divino...
Esse acidente da história, entretanto, não aconteceu.

Portanto, até mesmo o Novo Testamento descreve a existência da Igreja de João além das fronteiras de
Israel. Bamber Gascoigne escreve:

Um grupo de pessoas que Paulo encontrou em Éfeso oferece um intrigante vislumbre do potencial de
desenvolvimento da religião - que Paulo rapidamente cortou pela raiz.

Esse grupo de pessoas era, é claro, a Igreja de João. Sua própria existência como entidade distinta após
a morte de Jesus é um argumento de que João jamais pregou a vinda de "um maior" depois dele, ou de
que, se o tivesse feito, essa pessoa não poderia ser Jesus. Parece que quando os joanitas encontraram
Paulo não tinham a menor idéia de tal profecia. E eles não eram um culto insignificante. Foram
descritos como "um séquito internacional" que se estendia da Ásia Menor até Alexandria. Os Atos
registram que a religião de João fora levada até Éfeso por um alexandrino chamando Apolo - aliás é a
única referência a Alexandria em todo o Novo Testamento.
Então João Batista tinha um outro grupo forte de seguidores, que o perpetuaram como uma verdadeira
igreja. Entretanto, supõe-se - como nos comentários acima de A. N. Wilson - que esta foi absorvida pela
Igreja Cristã logo cedo. Com certeza, algumas de suas comunidades, como aquelas encontradas por
Paulo, foram suplantadas pela própria versão deste do movimento de Jesus. Mas há uma forte evidência
de que a Igreja de João realmente sobreviveu.
Esse corpo de evidências, entretanto, enfatiza o papel de um personagem que, à primeira vista, pode
parecer completamente deslocado nessa história, alguém que foi ultrajado ao longo da história cristã
como o "pai de todas as heresias" e adepto da magia negra do pior tipo. Seu nome passou até a
denominar um pecado, o de tentar comprar o Espírito Santo: simonia. Estamos falando, é claro, de
Simão Mago.

Ao contrário das duas outras figuras principais que estivemos discutindo - Maria Madalena e João
Batista -, Simão Mago não foi marginalizado pelos cronistas do cristianismo; na verdade foi-lhe
atribuído um papel quase proeminente nos primeiros textos do cristianismo. Entretanto, ainda é tachado
de maléfico, como o homem que tentou imitar Jesus e que, em determinado momento, chegou a se
infiltrar na embrionária Igreja a fim de conhecer seus segredos - até, é claro, ser desmascarado pelos
Apóstolos.
Algumas vezes conhecido como "o primeiro herege", Simão Mago é considerado alguém irredimível.
Uma indicação dos motivos disso está no fato de que os primeiros padres da igreja consideravam a
palavra gnóstico como sinônimo de "herege", e Simão era gnóstico (embora não tenha sido, como
acreditavam, o fundador do Gnosticismo).
Simão faz apenas uma breve aparição no Novo Testamento, nos Atos dos Apóstolos (8:9-24).
Significativamente, ele era um samaritano que, de acordo com os Atos, utilizava a magia para
"enfeitiçar" o povo de Samaria. Quando o apóstolo Felipe lá pregou, Simão ficou tão impressionado que
pediu para ser batizado. No entanto, esse ato foi considerado como apenas um artifício para que pudesse
obter para si o poder do Espírito Santo. Ele então ofereceu dinheiro a Pedro e João, para conseguir
aquele poder, e foi severamente repreendido. Temendo por sua alma, Simão se arrependeu e pediu-lhes
que orassem por ele.
Entretanto, os primeiros padres da igreja sabiam muito mais sobre esse personagem, e seus relatos
contradizem o simples conto moralista do livro dos Atos. Ele nascera na vila de Gita e era reputado por
suas habilidades de mago (daí seu codinome Mago). Durante o reinado de Cláudio (41-54, isto é, dez
anos depois da crucificação) ele partiu para Roma, onde foi honrado como um deus e até mesmo se
erigiu uma estátua em sua homenagem. Os samaritanos já o haviam reconhecido como um deus.
Simão Mago viajava com uma mulher chamada Helena, uma ex-prostituta da cidade fenícia de Tiro, a
quem ele chamava de Primeiro Pensamento (Ennoia), a Mãe de Tudo. Isso tinha origem em suas
crenças gnósticas: ele ensinava o "primeiro pensamento" de Deus - exatamente como a idéia judaica da
Sabedoria/Sofia discutida anteriormente - havia sido feminino, e que fora ela quem criara os anjos e
outros semi-deuses, que são os deuses deste mundo. Eles criaram a Terra sob as instruções dela, mas se
rebelaram e a aprisionaram na matéria, no mundo material. Ela ficou presa em uma série de corpos
femininos (incluindo o de Helena de Tróia), cada um dos quais sofrendo insuportáveis humilhações,
terminando por fim como uma prostituta em um porto de Tiro. Mas nem tudo estava perdido, porque
Deus também estava encarnado, na forma de Simão. Ele a procurou e a resgatou.
O conceito de um sistema cosmológico que compreendia uma série de mundos e planos superiores e
inferiores é bastante conhecido hoje em dia. Embora os detalhes precisos variem, é uma crença gnóstica
comum que chegou até os cátaros no período medieval e permeia a cosmologia hermética, que é a base
do ocultismo ocidental, passando pela alquimia até o hermetismo da Renascença. Existem também
espantosos e exatos paralelos com outros sistemas que já discutimos. O mais significativo é a
semelhança com o gnosticismo copta do Pistis Sophia, no qual Jesus sai em busca da aprisionada Sofia,
uma figura explicitamente vinculada nesse texto a Maria Madalena. (Simão também chamava Helena
de sua "ovelha desgarrada".)
A personificação da Sabedoria como uma mulher - e uma meretriz - já é algo com que estamos
familiarizados nesta investigação e que a atravessa por inteiro. No caso de Simão, essa incorporação era
literal, na pessoa de Helena.
Como escreve Hugh Schonfield:
...os simonianos veneravam Helena como Atenas (Deusa da Sabedoria), que por sua vez era
identificada no Egito com Ísis.

Scholfield também associa Helena e Sofia com Astarte.


Karl Luckert também remonta até Ísis o conceito de Simão, da Ennoia encarnada em Helena. Geoffrey
Ashe concorda, acrescentando: "[Helena] é colocada de volta no caminho da glória como Kyria ou
rainha celestial".
Uma outra fonte apócrifa, datando de cerca de 185, diz que Helena é "negra como uma etíope" e dança
com correntes, acrescentando: "Todo o poder de Simão e de seu Deus está nesta mulher que dança".
Irineu escreve que os sacerdotes iniciados por Simão "viviam na imoralidade", embora, infelizmente,
ele não se aprofunde muito nisso. Mas eles com certeza praticavam rituais ligados ao sexo, como revela
Epifânio em sua obra monumental Against Heresy:

E ele prescrevia os mistérios da obscenidade e... as emissões dos corpos, emissionum vironum,
feminarum menstruorum, e que eles deveriam colher os mistérios na mais asquerosa das coletas.

(G.R.S. Mead, como bom vitoriano, deixou essa pudica tradução com as frases em latim, mas parece
que a seita de Simão utilizava a magia sexual, envolvendo sêmen e sangue menstrual.)
Os padres da igreja ficaram profundamente temerosos de Simão Mago e sua influência. Parece que ele
representou uma séria ameaça para os primórdios da Igreja - o que é um tanto estranho, até que se
perceba o quanto Simão tinha em comum com Jesus.
Os padres fizeram muito esforço para mostrar que, embora Simão e Jesus dissessem e fizessem muitas
coisas semelhantes, incluindo milagres, a fonte de seu poder era muito diferente. Simão agia através de
feitiçaria, enquanto Jesus agia pelo poder do Espírito Santo. Com efeito, Simão era uma paródia
satânica de Jesus. Encontramos, por exemplo, Hipólito afirmando asperamente sobre Simão: "Ele não
era Cristo"
Epifânio revela mais ao escrever:

Desde a época de Cristo até a nossa, a primeira heresia foi a de Simão, o mago, e embora não fosse
corretamente e distintivamente uma heresia de nome cristão, no entanto provocou grande devastação
pela corrupção que gerou entre os cristãos.

Além disso, de acordo com Hipólito:

... ao comprar a liberdade de Helena, ele assim ofereceu salvação aos homens através do
conhecimento peculiar de si mesmo.

Um outro relato credita a Simão a capacidade de realizar milagres, inclusive transformar pedras em pão.
(Isto nos remete à Tentação de Jesus, quando é oferecido a ele o mesmo poder, mas ele recusa.
Entretanto, nos é dito mais tarde que Jesus alimentou cinco mil pessoas com apenas cinco pães e dois
peixes, o que é praticamente a mesma coisa.)
Jerônimo extrai a seguinte citação de uma das obras de Simão:

Eu sou a palavra de Deus, eu sou o glorioso, eu sou o Consolador, o Todo-Poderoso. Eu sou o


próprio Deus.

Em outras palavras, Simão se auto-proclamava divino e prometia a salvação a seus seguidores.


Nos Atos Apócrifos de Pedro e Paulo, Simão Mago e Pedro se engajam em uma disputa para ver quem
conseguiria trazer um defunto de volta à vida. Simão apenas consegue reanimar a cabeça, enquanto
Pedro realiza o truque perfeitamente. Existem muitos outros relatos nos textos apócrifos sobre batalhas
mágicas entre Simão Mago e Simão Pedro, todas terminando com o triunfo do cristão. O que elas
demonstram, entretanto, é que o primeiro era tão influente que histórias tinham de ser inventadas com o
intuito de conter seu poder sobre as massas.
O mago não era um simples feiticeiro itinerante, mas um filósofo que escrevia suas próprias idéias.
Desnecessário dizer que os originais se perderam, mas os padres da Igreja incluíram em suas obras
algumas extensas citações retiradas desses textos, com o propósito de cabalmente condená-las. Esses
fragmentos, contudo, revelam claramente o gnosticismo de Simão e a ênfase na existência de duas
forças opostas porém complementares - uma masculina e outra feminina. Por exemplo, esta é uma
citação da sua obra Great Revelation:

Dos Eões universais saem dois ramos... um manifesta-se de cima, é o Grande Poder, a Mente
Universal dirigindo todas as coisas, o masculino, e outra vinda de baixo, o Grande Pensamento,
feminino, produzindo todas as coisas. Acasalando-se um com o outro, eles se unem e manifestam na
Distância Média... aí está o Pai...
É Ele quem manteve, mantém e manterá o poder feminino-masculino no preexistente Poder
Ilimitado...

Aqui podemos ver reminiscências do hermafrodita alquímico, do andrógino simbólico que tanto
fascinava Leonardo. Mas de onde vinham as idéias de Simão Mago?
Karl Luckert remonta as "raízes ideológicas" dos ensinamentos de Simão às religiões do antigo Egito, e,
ao que parece, eles refletem, e talvez ainda perpetuem em forma adaptada, aqueles cultos. Embora,
como vimos, as escolas de Ísis/Osíris enfatizassem a natureza oposta e igual das duas deidades, a
feminina e a masculina, algumas vezes se considerava que ambas se haviam mesclado no caráter e no
corpo de Ísis. Esta ocasionalmente é retratada com barba, e atribui-se a ela a seguinte frase: "Embora
seja mulher, tornei-me homem..."
Simão Mago e Jesus eram, no que tange aos primórdios da Igreja, perigosamente parecidos em seus
ensinamentos, razão por que Simão foi acusado de ter tentado roubar o conhecimento dos cristãos. Essa
é uma admissão tácita de que seus próprios ensinamentos eram, de fato, compatíveis com os de Jesus,
talvez até mesmo parte do mesmo movimento. As implicações relacionadas a isso são perturbadoras.
Seriam os rituais sexuais praticados por Simão e Helena, por exemplo, também praticados por Jesus e
Madalena? De acordo com Epifânio, os gnósticos tinham um livro chamado As Grandes Questões de
Maria, que pretendia conter os ensinamentos secretos do movimento de Jesus, os quais tomavam a
forma de cerimônias "obscenas".
Pode-se ficar tentado a descartar tais rumores como sendo apenas fofocas escandalosas e grosseiras,
mas, como vimos, existem evidências de que Madalena era uma iniciadora sexual na tradição da
prostituta do templo, cuja função era conceder aos homens a dádiva da horasis: iluminação espiritual
através do ato sexual.
John Romer, em seu livro Testament, explicita o paralelo:

Helena, a Meretriz, como os cristãos a chamavam, era a Maria Madalena de Simão Mago.

Então, novamente, há uma outra ligação: a da provável origem egípcia. Karl Luckert fala de Simão:

Como "pai de todas as heresias" ele deve agora ser estudado não apenas como um oponente, mas
também como um notável concorrente de Cristo no início da igreja cristã, possivelmente até como um
aliado potencial.. .
A partir do fato de terem uma herança egípcia comum, pode-se deduzir a força da ameaça de Simão
Mago. O perigo aumentava com a possibilidade de que ele pudesse ser confundido com o próprio
Cristo...

E Luckert vê um estreito paralelo no que ele acredita ser a real missão desses dois homens. Ele
reconhece a evidente dicotomia na pregação de Jesus como uma mensagem essencialmente egípcia para
um público judeu, mas percebe a bastante próxima conexão entre a teologia hebraica original e a do
Egito. Ele diz, de Simão:

[ele]... via como sua missão consertar... o que devia estar errado; mais precisamente, a alienação da
dimensão feminina de Tefnut-Mahet-Nut-Ísis da divindade masculina.

Esse, é claro, é precisamente o motivo hipotético que apresentamos para a missão de Jesus na Judéia e
que é atribuído a ele no Levitikon. Luckert conclui que Jesus se sobrepôs a Simão Mago apenas por ter
chegado ao extremo de incluir sua própria morte no quadro geral. A ênfase modifica-se radicalmente,
entretanto, quando se leva em consideração a idéia de que a crucificação pode não ter terminado com a
morte de Jesus.
Além dos paralelos com Jesus, há um outro fato inquietante, e para nós revelador, sobre Simão: ele era
discípulo de João Batista. E não só isso, ele fora indicado por João para ser seu sucessor (embora, pelas
razões dadas abaixo, não devesse ser uma sucessão direta).
As implicações disso são estarrecedoras, pois Simão já era conhecido como feiticeiro e mago desde
antes da morte de João. Dificilmente se pode dizer que o discípulo pôs suas manguinhas de fora depois
que o guru puritano foi tirado de cena. João deve ter conhecido e aprovado os ensinamentos de Simão.
E se Simão era membro do círculo interno de João, ele aprendeu sua magia com o próprio Batista, bem
como outros discípulos em posição similar. Assim como Jesus...
O que se segue foi extraído das Considerações Clementinas, século III:

Foi em Alexandria que Simão aperfeiçoou seus estudos sobre magia, sendo adepto de João, um
Hemerobatista ["Dia-Batista": pouco se sabe sobre esse termo], através de quem ele veio a envolver-se
com doutrinas religiosas. João era o precursor de Jesus...
...De todos os discípulos de João, Simão era o favorito, mas quando da morte de seu mestre ele
estava ausente, em Alexandria, e então Dositheus, um condiscípulo, foi escolhido como chefe da escola.

Esse relato também adentra em razões numerológicas confusas para explicar por que João tinha trinta
discípulos - provavelmente apenas no círculo interno -, embora fossem na verdade vinte e nove e meio
porque um deles era uma mulher que não contava como pessoa inteira. Seu nome era Helena... Isso é
interessante porque sugere, nesse contexto, que se tratava da Helena de Simão Mago, e que ela,
também, fora discípula de João. Tudo isso nos deixa com a inquietante sensação de que o Batista, que
sempre fora tido como um asceta puritano, um tipo de monge, era de fato completamente diferente.
Quando Simão retornou de Alexandria, Dositheus entregou-lhe a liderança da Igreja de João, não sem
lutar porém. Mais uma vez, a cidade egípcia de Alexandria é importante nessa história, provavelmente
porque foi lá que os principais protagonistas aprenderam sua magia.
Dositheus também tinha uma seita com seu nome, que sobreviveu até o século VI. Orígenes registra:

...um certo Dositheus dos samaritanos chegou dizendo que era o Cristo profetizado: desde aquele dia
até hoje existem dositeanos, que escreveram as palavras de Dositheus e também alguns relatos sobre
ele, de modo que ele não conheceu a morte, mas ainda vive.

Os seguidores de Simão continuaram a existir até o século III. Seu sucessor imediato foi um certo
Menandro.
Os dositeanos "veneravam João Batista" como o "mais justo dos professores... dos Últimos Dias".
Contudo, tanto a seita de Dositheus quanto a de Simão foram erradicadas pela Igreja.
A implicação óbvia é de que João Batista não era o pregador ocasional de uma plebe ignara: ele era o
cabeça de uma organização, sediada em Alexandria. Como vimos, os primeiros prosélitos do
movimento de Jesus surpreenderam-se ao descobrir uma "Igreja de João" em Éfeso, lá erigida por
Apolo de Alexandria. Essa metrópole foi também a base de Simão Mago - o sucessor oficial de João e
um conhecido rival de Jesus -, que também era samaritano. Curiosamente, os cristãos veneraram a
suposta tumba do Batista em Samaria até que fosse destruída no século IV pelo imperador Juliano, o
que no mínimo sugere uma antiga tradição ligando João Batista a essa terra. (Talvez a parábola do Bom
Samaritano fosse na verdade uma astuta tentativa de apaziguar os discípulos de João ou de Simão
Mago.)
Entretanto, não há qualquer indicação de que Simão era judeu, nem mesmo originário da Samaria.
Mesmo nos mais virulentos ataques a ele dirigidos, os padres da Igreja nunca o atacaram por ser judeu,
e dada a violência com que os judeus foram acusados pelo assassinato do Filho de Deus, através dos
séculos, isso é particularmente interessante. Como vimos, João pregou a não-judeus e atacou o culto do
Templo de Jerusalém, a própria fundação da religião judaica. Ele tinha, com toda a probabilidade, fortes
ligações com Alexandria, e, o que é ainda mais significativo, seu sucessor também era um gentio. Tudo
isso sugere que o próprio João não era judeu e que estava familiarizado com a cultura egípcia.
É particularmente estranho que os primeiros padres da Igreja, entre eles Irineu, tenham rastreado as
origens das seitas "heréticas" justamente até João Batista. Afinal, os Evangelhos o têm como alguém
que inventou o batismo e que viveu, a bem dizer, apenas para preparar o caminho para Jesus. Mas
saberiam eles a verdade sobre João? Teriam percebido que ele não era o precursor mas um encarniçado
rival, venerado ele próprio como o Messias? Teriam reconhecido o fato aterrador de que João não era,
de modo algum, um cristão?
Os autores dos Evangelhos com efeito tiveram sua vingança contra João. Eles o reescreveram e, no
processo, "o subjugaram" e reposicionaram, de modo que aquele que um dia fora rival - talvez até
inimigo - de Jesus agora é visto como alguém que se prostrou em reverência à sua divindade. Eles
eliminaram os verdadeiros motivos, palavras e ações de João e os substituíram por outros que se
encaixavam na imagem que deliberadamente criaram de Jesus e seu movimento.
Como propaganda, esse artifício foi extremamente bem-sucedido, embora parte do sucesso se deva à
tendência inicial da Igreja em responder a qualquer questão" herética" com torturas e fogueiras. A
história cristã que em confiança aceitamos hoje é resultado do antigo reinado de terror da Igreja, bem
como da propaganda dos Evangelhos.
No entanto, longe da maligna influência da Igreja estabelecida, alguns dos seguidores de João fielmente
o mantiveram em sua memória como o "verdadeiro Messias" vivo. E eles existem até hoje.

CAPÍTULO XV

Os Devotos do Senhor da Luz


No século XVII, os missionários jesuítas que retornaram das regiões ao sul dos rios Tigre e Eufrates, no
atual Iraque, trouxeram consigo relatos sobre uma gente que eles diziam ser "cristãos de São João".
Embora esse grupo vivesse no mundo muçulmano e estivesse rodeado de árabes, ainda praticava uma
forma de cristianismo no qual João Batista era proeminente. Seus rituais religiosos centravam-se, todos
eles, no batismo, que não era uma cerimônia que acontecia uma única vez, como modo de iniciar e
acolher novos membros à congregação, mas tinha um importante papel em todos os seus rituais e
sacramentos.
Desde aqueles primeiros contatos, entretanto, ficou evidente que o termo "cristãos de São João" era uma
designação completamente imprópria. A seita em questão venerava especialmente João Batista, e seus
membros não poderiam ser chamados de "cristãos" no sentido usual do termo. Pois eles consideravam
Jesus um falso profeta, um mentiroso que deliberadamente desencaminhou seu próprio povo, além de
outros. Porém, tendo vivido sob constante ameaça de perseguição por parte de judeus, muçulmanos e
cristãos, por séculos, adotaram a estratégia de se apresentarem aos visitantes utilizando uma aparência
menos ofensiva. Foi por essa razão que adotaram o nome "cristãos de São João". Sua estratégia está
implícita nestas palavras extraídas do seu livro sagrado, o Ginza:

Quando Jesus os oprimir, então digam: Pertencemos a ti. Mas não o professem em seus corações,
nem neguem a voz de seu Mestre, o alto Senhor da Luz, pois para o Messias mentiroso o oculto não se
revela.

Essa seita, que ainda sobrevive nos pântanos do sul do Iraque e, em menor número, no sudoeste do Irã -
é hoje conhecida como madianitas. São um povo profundamente religioso e pacífico, cujas leis proíbem
a guerra e o derramamento de sangue. A maior parte deles vive em seus próprios vilarejos e
comunidades, embora alguns tenham se mudado para as cidades, onde tradicionalmente trabalham
como ourives, em ouro e prata, trabalho no qual alcançam a excelência. Mantêm sua língua e escrita
próprias, ambas derivadas do aramaico, a língua falada por Jesus e João. Em 1978 somavam pouco
menos de 15.000, mas a perseguição aos árabes dos pântanos por Saddam Hussein, após a Guerra do
Golfo, pode tê-los levados quase à extinção - a situação política no Iraque impede que se obtenham
dados precisos a esse respeito.
O nome madianitas literalmente significa gnóstico (de manda, gnose) e na verdade refere-se apenas aos
leigos, embora seja com freqüência aplicado à comunidade como um todo. Seus sacerdotes chamam-se
nazoreanos. Os árabes referem-se a eles como subbas, e aparecem no Alcorão com o nome de sabeítas.
Nenhum trabalho acadêmico sério foi realizado sobre os madianitas até à década de 1880. Os estudos
mais completos até hoje continuam sendo os de Ethel Stevens (mais tarde Lady Drower), realizados
logo antes do início da II Guerra Mundial. Os acadêmicos ainda se baseiam em grande parte no material
que ela coletou, que inclui fotografias dos rituais e cópias dos livros sagrados madianitas. Embora
recebam bem os estrangeiros, eles naturalmente são, e com toda razão, um povo fechado e reservado, e
Lady Drower levou muito tempo para merecer sua confiança a ponto de revelarem suas crenças,
doutrinas e história, e lhe permitirem acesso aos pergaminhos secretos que contêm seus textos sagrados.
(No século XIX, estudiosos franceses e alemães tentaram, sem sucesso, abrir uma porta nesse muro de
sigilo e segredo.) Porém, sem dúvida ainda existem mistérios que não são compartilhados com
forasteiros.
Os madianitas têm vários textos sagrados - toda a sua literatura é religiosa -, sendo o mais importante
deles o Ginza (Tesouro), também conhecido como Livro de Adão; o Sidra d'Yabya, ou Livro de João
(também conhecido como Livro dos Reis), e o Haran Gawaita, que relata a história da seita. O Ginza
data com certeza do século VII, ou antes, enquanto o Livro de João foi compilado, segundo se acredita,
algum tempo depois. O João do livro é o Batista, que no texto madianita tem dois nomes, Yohanna (que
é madianita) e Yahya, que é o nome árabe com que é citado no Alcorão. O último é utilizado com mais
freqüência, indicando que o livro foi escrito após os muçulmanos terem conquistado a região na metade
do século VII, embora o material contido nele seja muito mais antigo. A questão importante é: quanto
tempo mais antigo?
Acredita-se em geral que os madianitas criaram o Livro de João e elevaram o Batista à condição de seu
profeta como uma manobra inteligente para evitar a perseguição pelos muçulmanos, que toleravam
apenas aqueles a que chamavam de "povos do Livro", ou seja, povos com uma religião que tinha um
livro sagrado e um profeta; se assim não fosse, eram considerados pagãos. Entretanto, os madianitas
aparecem no próprio Alcorão, com o nome de sabeítas, como um "povo do Livro", o que demonstra que
eram conhecidos muito tempo antes de estarem sob a ameaça do domínio muçulmano. De qualquer
forma, eles foram perseguidos, particularmente no século XIV; quando os dominadores islâmicos quase
os eliminaram por completo.
Em constante fuga de seu perseguidores, os madianitas finalmente chegaram ao lugar onde estão até
hoje. Suas próprias lendas, e estudos modernos, mostram que eles originam-se da Palestina, de onde
foram expulsos no primeiro século da era cristã.Ao longo dos séculos rumaram para todos os lados,
mudando-se cada vez que deparavam com perseguidores. O que temos hoje é o remanescente de uma
religião muito mais difundida.
A religião dos madianitas é uma completa e retumbante mixórdia: diversos fragmentos do judaísmo do
Antigo Testamento, formas gnósticas heréticas do cristianismo e crenças dualistas iranianas estão todas
misturadas em sua teologia e cosmologia. O problema está em separar o que era sua crença original do
que foi incorporado posteriormente. Parece que os próprios madianitas esqueceram grande parte do
significado inicial de sua religião. No entanto, é possível fazer algumas generalizações a respeito, e uma
análise apurada permitiu que os estudiosos chegassem a certas conclusões sobre suas crenças remotas.
Foi essa análise que nos forneceu algumas pistas interessantes sobre a importância de João Batista e seu
verdadeiro relacionamento com Jesus.
Os madianitas representam a única religião gnóstica sobrevivente em todo o mundo: suas idéias
relativas ao universo, ao ato da criação e aos deuses são crenças gnósticas conhecidas. Acreditam numa
hierarquia de deuses e semi-deuses, tanto femininos quanto masculinos, com uma divisão fundamental
entre os da luz e os das trevas.
Seu ser supremo, que criou o universo e as deidades menores, aparece sob vários nomes que podem ser
traduzidos como "Vida" , Mente" , "Senhor da Luz" . Eles criaram cinco "seres da luz" , que
automaticamente originaram cinco entidades iguais mas opostas nas trevas. (Essa ênfase na associação
da luz com o bem supremo é uma característica gnóstica: quase todas as páginas do Pistis Sophia, por
exemplo, utilizam essa metáfora. Para os gnósticos ser iluminado significa literal e figurativamente
entrar em um mundo de luz.) Como em outros sistemas gnósticos, foram esses semi-deuses que criaram
e governam o universo material e a Terra. A humanidade também foi criada por um desses seres,
chamado (dependendo da versão do mito) Hiwel Ziwa ou Ptahil. Os primeiros humanos são o Adão e a
Eva físicos - Adão Paghia e Hawa Paghia - e suas contrapartes "ocultas", Adão Kasya e Hawa Kasya.
Os madianitas acreditam ser descendentes de genitores dos dois mundos, o material e o espiritual, Adão
Paghia e Hawa Kasya.
Seu equivalente mais próximo do Demônio é a deusa Ruha, que governa o reino das trevas, mas que
também é considerada como o Espírito Santo. Essa ênfase em forças iguais e opostas do bem e do mal,
masculino e feminino, é caracteristicamente gnóstica e está exemplificada nestas palavras:

...a terra é como uma mulher e o céu como um homem, pois eles tornam a terra fecunda.

Uma deusa importante, para qual muitas preces podem ser encontradas nos livros dos madianitas, é
Libat, que é identificada com Ishtar.
Para os madianitas, o celibato é um pecado; homens que morrem sem se casar são condenados a
reencarnar. Por outro lado, porém, os madianitas não acreditam no ciclo de renascimento. Ao morrer, a
alma retorna para o mundo da luz, de onde os madianitas outrora vieram, e é auxiliada em seu caminho
por muitas preces e cerimônias, muitas das quais claramente se originam dos rituais de sepultamento
dos antigos egípcios.
A religião permeia todos os aspectos da vida diária dos madianitas, mas seu principal sacramento é o
batismo, celebrado no casamento e mesmo nos serviços funerários. O batismo madianita consiste em
imersão total em lagos especialmente criados e ligados a um rio, que é conhecido como Jordão. Parte de
todo ritual é uma série complexa de apertos de mão entre o sacerdote e aquele que está sendo batizado.
O dia sagrado dos madianitas é o domingo. As comunidades são dirigidas pelos sacerdotes, que
recebem também o título de "rei" (malka), embora alguns deveres religiosos possam ser realizados
pelos leigos. O sacerdócio é hereditário e consiste em três níveis: os sacerdotes comuns, chamados de
"discípulos" (tarmide), os bispos e, acima de todos, o "cabeça do povo" embora ninguém tenha sido
considerado digno de assumir esse papel ao longo do século.
Os madianitas afirmam que já existiam muito tempo antes do Batista, a quem vêem como um grande
líder de sua seita, mas nada além disso. Dizem ter deixado a Palestina no primeiro século da era cristã,
sendo originários de uma região montanhosa que chamam de Tura d'Madai, até hoje não identificada
pelos estudiosos.
Quando os jesuítas os encontraram pela primeira vez, no século XVII, pensou-se que eram
descendentes dos judeus batizados por João. Hoje, no entanto, os estudiosos estão levando a sério suas
afirmações de que já existiam muito antes da época de João. Contudo, ainda preservam traços de sua
estada na Palestina do primeiro século: sua escrita é semelhante à de Nabatéia, o reino árabe que fazia
fronteira com Peréia, onde João Batista fez sua primeira aparição. Indicações no Hawan Gawaita
sugerem que eles deixaram a Palestina em 37, mais ou menos na época da crucificação, mas se isso foi
mera coincidência é impossível dizer. Teriam sido expulsos pelos seus rivais, os seguidores de Jesus?
Até recentemente os acadêmicos pensavam que a negação dos madianitas de serem uma seita judaica
distinta era mentira, mas agora se reconhece que eles não têm raízes judaicas. Pois embora seus textos
incluam nomes de alguns personagens do Antigo Testamento, eles realmente ignoram os costumes e as
práticas rituais dos judeus - por exemplo, os homens não são circuncidados e seu Sabá não é no sábado.
Tudo isso indica que eles viveram outrora próximos dos judeus, mas nunca realmente fizeram parte
desse povo.
Uma coisa sobre os madianitas que sempre intrigou os estudiosos é sua insistência em que suas origens
remontam ao Egito. De fato, nas palavras de Lady Drower, eles se consideram, de alguma forma,
"correligionários" dos antigos egípcios, pois um de seus textos sagrados diz que "o povo do Egito era da
nossa religião". A misteriosa região montanhosa de Tura d'Madai, que afirmam ser sua terra natal, foi
onde a religião surgiu - entre as pessoas, dizem eles, que vieram do Egito. O nome de seu semi-deus,
que governa mundo, Ptahil, tem uma semelhança incrivelmente próxima com o deus Ptah dos egípcios
e, como vimos, suas cerimônias fúnebres parecem dever muito às dos antigos egípcios.
Após terem fugido da Palestina, os madianitas viveram nas terras dos partos e na Pérsia sob o domínio
dos sassânidas, mas também se fixaram na cidade de Harran, que, como veremos, tem alguma
importância para esta investigação.

Os madianitas nunca afirmaram que João Batista foi seu fundador ou que inventou o batismo, e o
consideram não mais do que um grande - de fato, o maior - líder de sua seita, um Nasurai (adepto).
Dizem que Jesus também era um Nasurai, mas tornou-se "um rebelde, um herege, que desencaminhou
os homens [e] traiu as doutrinas secretas...".
O Livro de João conta a história de João e Jesus. O nascimento de João é profetizado em um sonho e
uma estrela aparece sobre Enishbai (Isabel). Seu pai é Zakhria (Zacarias), e os dois genitores, como na
história dos Evangelhos, são idosos e sem filhos. Após o nascimento, os judeus conspiram contra o
menino, que é levado por Anosh (Enoch) para sua proteção e escondido em uma montanha sagrada, da
qual retorna com a idade de 22 anos. Ele então torna-se o líder dos madianitas, e, o que é interessante, é
representado como alguém que tem o dom da cura.
João é chamado de Pescador de Almas e Bom Pastor. O primeiro termo era utilizado em referência a
Ísis e Maria Madalena e também - "Pescador de Homens" - a Simão Pedro e aos últimos dos vários
deuses do Mediterrâneo, incluindo Tamus e Osíris - além, é claro, de Jesus. O Livro de João inclui a
lamentação do Batista por uma ovelha perdida que se atolou na lama por ter ele reverenciado Jesus.
Na lenda dos madianitas, João tinha uma esposa, Anhar, mas ela não tem um papel preponderante na
história. Um elemento estranho na lenda é que os madianitas parecem desconhecer totalmente o
episódio da morte de João, que é uma parte muito dramática do Novo Testamento. Há uma sugestão no
Livro de João de que o Batista morreu pacificamente e sua alma foi levada pelo deus Manda-t-Haiy na
forma de uma criança, mas isso parece ser uma imagem poética daquilo que eles pensam que deve ter
acontecido ao Batista. Muitos de seus textos sobre João nunca tiveram a intenção de ser um relato
biográfico factual, mas ainda assim é intrigante que eles ignorem o que teria sido, essencialmente, a
morte de um mártir. Por outro lado, pode ser que o episódio seja central para seus mistérios mais
ocultos.
E o que faz Jesus no Livro de João? Ele aparece com os nomes de Yeshu Messiah e Messiah Paulis
(acredita-se que este último derive de uma palavra persa que significa "impostor") e, algumas vezes,
como "Cristo, o Romano". Ele aparece pela primeira vez na história se apresentando para tornar-se um
discípulo de João; o texto é pouco claro, mas sugere que Jesus não era membro da seita, mas um
forasteiro. Quando ele pela primeira vez vai até o Jordão e pede para ser batizado, João mostra-se
céptico quanto a seus reais motivos e merecimento e recusa, mas Jesus finalmente o persuade. Ao ser
batizado, Ruha, a deusa das trevas, aparece na forma de uma pomba e lança uma cruz de luz sobre o
Jordão.
Após se tornar discípulo de João - em um incrível paralelo com as histórias contadas pelos cristãos
sobre Simão Mago -, Jesus (nas palavras de Kurt Rudolph) "começa a perverter a palavra de João e
muda o batismo do Jordão, e torna-se sábio através da sabedoria de João" .
O Hawan Gawaita acusa Jesus com estas palavras:

Ele perverteu as palavras da luz e transformou-as em trevas e converteu aqueles que eram meus e
perverteu todos os cultos.

O Ginza diz: "Não acredite nele (Jesus) porque ele pratica feitiçaria e traição.
Os madianitas, com sua confusa cronologia, aguardam a chegada de um personagem chamado Anosh-
Uthra (Enoch) que irá "acusar Cristo, o Romano, o mentiroso, filho de uma mulher, que não vem da
luz" e irá "desmascarar Cristo, o Romano, como um mentiroso, e ele será amarrado pelas mãos dos
judeus, seus devotos irão amarrá-lo, e seu corpo será assassinado".
A seita tinha uma lenda sobre uma mulher chamada Miriai (Miriam ou Maria), que foge com seu
amante e cuja família a procura desesperadamente para trazê-la de volta (mas não sem antes lhe passar
uma descompostura, expressa em linguagem bastante forte, chamando-a de "puta no cio" e "alguidar
libertino"). Filha dos "governantes de Jerusalém", ela vai viver com seu marido madianita na foz do
Eufrates, onde se torna uma espécie de profetiza, sentada em um trono e lendo o “Livro da Verdade".
Se, como parece ser, a história é uma alegoria das viagens e perseguições da própria seita, indicaria
então que, numa época passada, uma facção judaica juntara forças com um grupo não-judeu e que,
como resultado dessa fusão, surgiram os madianitas. Entretanto, o nome Miriai e sua descrição como
uma "puta" incompreendida e perseguida também é sugestiva da tradição de Madalena, assim como os
detalhes sobre ela ter deixado sua terra natal e se tornado uma pregadora ou profetiza. De qualquer
modo, é interessante que os madianitas tenham adotado como seu próprio símbolo a figura de uma
mulher.

Os madianitas parecem ser uma simples curiosidade antropológica, um povo perdido e confuso que foi
congelado no tempo e absorveu algumas crenças bizarras ao longo dos anos. Entretanto, um estudo
cuidadoso de seus textos sagrados revelou alguns paralelos impressionantes com outra literatura antiga
que tem relação com nossa investigação.
Seus manuscritos sagrados são ilustrados com representações de deuses que portam incríveis
semelhanças com aquelas dos papiros sobre magia dos gregos e egípcios - do tipo utilizado por Morton
Smith em sua pesquisa.
Foram feitas comparações entre as doutrinas dos madianitas e a dos maniqueus, os seguidores do
professor gnóstico Mani (cerca de 216-76); de fato, existe um consenso de que a seita batismal de
Mughtasilah, à qual o pai de Mani pertencia e dentro da qual o próprio Mani foi criado, eram os
madianitas (ou durante seu longo êxodo em direção ao sul do Iraque ou em uma comunidade hoje
extinta). As doutrinas de Mani foram, sem dúvida, influenciadas pelos madianitas - e foram as doutrinas
deles, por sua vez, que exerceram enorme influência sobre as seitas gnósticas da Europa, incluindo a
dos cátaros.
Alguns estudiosos, como G. R. S. Mead, assinalaram notáveis semelhanças entre os textos sagrados dos
madianitas e o Pistis Sophia. De fato, uma seção do Livro de João chamada Tesouro do Amor é
considerada por ele como "reminiscências de uma fase anterior" daquela obra. Também existem fortes
paralelos com muitos documentos do Nag Hammadi que foram associados com os "movimentos
batismais" que existiam naquela época. E notam-se grandes semelhanças entre a teologia dos
madianitas e a de alguns dos Manuscritos do Mar Morto.
Há uma outra conexão intrigante. Sabe-se que os madianitas se fixaram em Harran, na Mesopotâmia,
que, até o século X, foi a sede de uma seita ou escola conhecida como sabeíta. Os sabeítas foram muito
importantes para a história do esoterismo. Eram filósofos herméticos e herdeiros do hermetismo
egípcio, e foram extremamente influentes em seitas místicas muçulmanas como a dos Sufis, cuja
influência por sua vez estendeu-se até a cultura do sul da França na Idade Média - como ilustram, por
exemplo, os cavaleiros templários. Como Jack Lindsay diz em seu livro The Origins of Alchemy in
Graeco-Roman Egypt:

Um estranho pacote de crenças herméticas, incluindo várias ligadas proximamente à alquimia,


persistiu entre os sabeítas de Harran, na Mesopotâmia. Eles sobreviveram com uma seita pagã inserida
no Islã... por pelo menos duzentos anos.
Os madianitas, como vimos, são ainda chamados de "sabeítas" (ou subbas) pelos muçulmanos de hoje,
e portanto está claro que sua filosofia é que era bastante influente em Harran. Além do seu hermetismo,
que outro legado deixaram para os templários? Teriam transmitido a eles sua reverência por João
Batista e talvez até mesmo o conhecimento secreto do Batista?
As ligações mais interessantes, entretanto, são com o enigmático quarto Evangelho. Kurt Rudolph, que
é provavelmente o principal perito em madianitas hoje em dia, escreve:

Os elementos mais antigos da literatura madianita preservaram para nós um testemunho do ambiente
Oriental do início do cristianismo, que pode ser utilizado na interpretação de certos textos do Novo
Testamento (em particular os joaninos).

Vimos que muitos dos mais respeitados e influentes estudiosos do Novo Testamento do século XX
consideram partes do Evangelho de João - principalmente o prólogo "No início era o Verbo..." e
algumas das discussões teológicas - como tendo sido "pinçadas" dos textos escritos pelos seguidores de
João Batista. Muitos desses mesmos acadêmicos concordam em que esses textos compartilham uma
origem comum: os livros sagrados dos madianitas. Já em 1926, H. H. Schaeder sugeriu que o prólogo
do Evangelho de João - com a palavra Verbo no feminino, era "um hino dos madianitas extraído dos
círculos do Batista". Outro estudioso, E. Schweizer, mostrou os paralelos entre o discurso sobre o Bom
Pastor no Evangelho de João do Novo Testamento e o trecho sobre o Bom Pastor do Livro de João dos
madianitas, concluindo que vieram da mesma fonte. É claro que essa fonte original não aplica a
analogia do Bom Pastor a Jesus, mas a João Batista: o Evangelho de João do Novo Testamento
efetivamente roubou-a dos madianitas/joanitas.
Alguns comentadores, como Rudolf Bultmann,concluíram que os madianitas atuais são, na verdade,
descendentes dos seguidores do Batista - eles são a esquiva Igreja de João, que discutimos
anteriormente. Embora existam razões suficientes para pensar que os madianitas atuais são apenas um
ramo da igreja joanita sobrevivente, ainda assim é elucidativo prestar atenção ao sumário de W.
Schmithals sobre as conclusões de Bultmann:

Por um lado [o Evangelho de] João manifesta grande proximidade com a concepção de mundo dos
gnósticos. A fonte dos discursos, de que João se apodera ou na qual se apóia, tem, de modo geral, uma
aparência gnóstica. Ela apresenta paralelos bastante próximos com os textos dos madianitas, sendo que
os mais antigos estratos de suas tradições remontam ao tempo do cristianismo primitivo.

Já se argumentou, de maneira ainda mais abrangente, que o material apocalíptico em Q, a fonte dos
Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, veio da mesma fonte do Ginza dos madianitas, e chegou-se
inclusive a sugerir que o batismo cristão se desenvolveu a partir dos rituais dos madianitas.
As implicações desse plágio das escrituras são enormes. Seria possível que grande parte desse material
tão estimado por gerações de cristãos - por conter ou representar as verdadeiras palavras de Jesus -
estivesse totalmente relacionado a outro homem? E que esse outro fosse seu ferrenho rival, o profeta
que não profetizou a vinda de Jesus, mas que era reverenciado como o próprio Messias - João Batista?
Investigações contínuas revelam mais e mais evidências de que os madianitas representam uma linha
direta que remonta aos seguidores originais de João. De fato, a mais antiga referência aos madianitas
data de 792, quando o teólogo sírio Theodore bar Konai, citando o Ginza, explicitamente afirma que
eles derivavam dos dositeanos. E, como já vimos, os dositeanos eram uma seita herética formada por
um dos primeiros discípulos de João, paralelamente ao grupo de Simão Mago.
E há mais. Vimos que Jesus era chamado de "nazoreano" ou "nazareno", que era também um título
aplicado aos primeiros cristãos, embora não tivesse sido cunhado com a intenção de descrevê-los. Esse
termo já existia e era utilizado por um grupo de seitas correlatas das regiões heréticas da Samaria e da
Galiléia, cujos membros se consideravam os guardiões da verdadeira religião de Israel. Quando usado
para designar Jesus, o termo "nazoreano" identifica-o como um membro regular de um culto que, a
partir de outra evidência, parece ter existido desde pelo menos 200 anos antes de seu nascimento.
Mas lembre que os madianitas também chamavam seus adeptos de "Nasurai": isso não é coincidência.
Hugh Schonfield, ao discutir os nazoreanos pré-cristãos, afirma:

Há uma boa razão para acreditar que os herdeiros desses nazarenos... são os atuais nazoreanos
(também conhecidos como madianitas) do baixo Eufrates.

O grande estudioso da Bíblia C. H. Dodds concluiu que os nazoreanos eram a seita à qual João
pertencia - ou , mais corretamente, que ele liderava -, e que Jesus começou sua carreira como discípulo
de João, mas deu início a seu próprio culto e levou o nome consigo.
É possível que os madianitas não estejam confinados ao Iraque e ao Irã de nossos dias (se é que
conseguiram sobreviver às depredações de Saddam), podendo também estar representados por uma
outra seita altamente secreta que ainda existe na Síria atual. São os Nusairiyeh ou Nosairi (algumas
vezes também conhecidos como Alawites em virtude da cadeia de montanhas onde vivem.) O nome é
obviamente próximo à "nazoreano". Mais uma vez aparentemente islâmicos, sabe-se que adotaram os
ornamentos dessa religião para se protegerem da perseguição. Embora seja sabido que sua "verdadeira"
religião é mantida em segredo, os detalhes dela, por razões óbvias, são difíceis de descobrir. Acredita-
se, entretanto, que se trata de alguma forma de cristianismo.
Um dos poucos europeus que conseguiu chegar perto dos ensinamentos internos dos Nosairis foi Walter
Birks, que escreveu um relato sobre eles em The Treasure of Montségur (em colaboração com R.A.
Gilbert). Birks passou algum tempo na região durante a II Guerra Mundial e fez amizade com alguns
dos sacerdotes. Seu relato é muito circunspecto, pois ele sempre honrou o pedido de segredo que lhe
fizeram, mas pelo que diz parece ser muito provável que se trata de uma seita gnóstica muito
semelhante à dos madianitas. Particularmente interessante é uma conversa entre Birks e um do
sacerdotes Nosairi após terem discutido a questão dos cátaros e a possível natureza do Santo Graal. (Ele
notou que alguns dos rituais centravam-se no uso de um cálice sagrado.) O sacerdote disse-lhe qual era
o "o grande segredo" de sua religião: "Este graal de que você fala é um símbolo que representa a
doutrina que Cristo ensinou a João, o Amado. Nós ainda o temos".
Recordemos a tradição" joanita" de algumas formas da maçonaria oculta européia e do Monastério de
Sion - que os cavaleiros templários adotaram a religião dos "joanitas do Oriente", a qual consistia nos
ensinamentos secretos que Jesus transmitiu a João, o discípulo amado. Estando claro que o Evangelho
de João era, originalmente, material sobre o batista, então explica-se a evidente confusão que
assinalamos anteriormente entre João, o Amado, e João Batista.

A tradição dos madianitas sobre João Batista e Jesus encaixam-se espantosamente bem com as
conclusões que delineamos no último capítulo: Jesus a princípio era um discípulo do Batista, mas se
separou dele e, no processo, levou consigo alguns dos seus discípulos. As duas escolas eram rivais, bem
como seus respectivos líderes.
Tomados em conjunto, esses elementos formam um quadro bastante consistente. Sabemos que João
Batista era uma figura altamente respeitada, com um grande número de seguidores - uma verdadeira
igreja - que, entretanto, desaparece dos registros "oficiais", após uma breve menção nos Atos. Esse
movimento, porém, tinha uma literatura própria, que foi suprimida, embora alguns de seus elementos
tenham sido "tomados de empréstimo" pelos Evangelhos cristãos - especificamente o nascimento de
João, em Lucas (ou sua fonte), e o Magnificat, o cântico a Maria. Mais surpreendente é a evidência,
dada acima, de que o mito do massacre dos inocentes ordenado por Herodes, mesmo sendo fictício,
estava anteriormente ligado ao nascimento de João, que Herodes temia ser o verdadeiro "rei de Israel".
Dois outros movimentos que representavam uma grande ameaça ao cristianismo emergente foram
fundados por outros discípulos de João: Simão Mago e Dositheus; ambas eram seitas gnósticas
influentes na Alexandria. Significativamente, o material "batista" que foi incorporado no Evangelho de
João do Novo Testamento também é gnóstico, e os madianitas são gnósticos. A conclusão óbvia é de
que João Batista era gnóstico.
Existem também impressionantes paralelos entre os textos dos madianitas, Simão Mago, do Evangelho
de João e dos coptas, principalmente o Pistis Sophia, que tem um papel importante em nossa
investigação sobre Maria Madalena.
Nenhuma das seitas - madianitas, simonianos e dositeanos - associadas com João Batista faz parte da
religião judaica, embora todas tenham se originado na Palestina, duas delas no norte, na herética
Samaria. E se esses grupos não eram de religião judaica, a conclusão clara é que João também não era
judeu. Pois embora o desenvolvimento dessas idéias gnósticas possa remontar a outros lugares e
culturas, principalmente o Irã, há uma clara linha de influência que nos remete à religião do antigo
Egito. Foi lá que encontramos os paralelos mais próximos com as idéias e ações de Jesus, e
significativamente, os madianitas afirmam descenderem dos antigos egípcios.
Apesar da confusão presente nos seus textos, muito do que os madianitas dizem sobre si mesmos foi
confirmado pelos estudiosos modernos que eram, para dizer o mínimo, inicialmente cépticos sobre suas
afirmações.
Os madianitas afirmam que os precursores de sua seita vieram do antigo Egito, embora a seita seja
originária da Palestina. Eles não eram judeus, mas viviam lado a lado com estes. Sua seita, conhecida
então como nazoreanos, era liderada por João Batista, mas já existia desde muito tempo antes. Eles o
veneram, mas não o consideram nada além de um grande líder e profeta. Sofreram perseguições,
primeiro por parte dos judeus, depois dos cristãos, e foram expulsos da Palestina, cada vez mais para
leste, até chegarem a sua terra atual.
Os madianitas viam em Jesus um mentiroso, um embusteiro, um feiticeiro do mal, o que corresponde
com a visão dos judeus expressa no Talmude, onde se diz que Cristo foi acusado de "desencaminhar" os
judeus e que sua sentença de morte lhe foi imputada por ter sido condenado como ocultista.
Todas as seitas vinculadas a João Batista, embora individualmente sejam relativamente pequenas, se
tomadas em conjunto representavam um enorme movimento. Os madianitas, simonianos, dositeanos e
os próprios cavaleiros templários (existem argumentos favoráveis para que sejam incluídos) foram
brutalmente perseguidos e suprimidos pela Igreja Católica em virtude de seu conhecimento sobre o
Batista e sua reverência a ele, permanecendo apenas o pequeno grupo de madianitas no Iraque. Nos
outros lugares, particularmente na Europa, os joanitas passaram talvez a se mover pelo submundo, mas
ainda existem.
Nos círculos ocultistas da Europa, dizia-se que os cavaleiros templários tinham obtido seu
conhecimento dos "joanitas do Oriente". Outros movimentos secretos e esotéricos, como os maçons -
especialmente as ordens que afirmam descender diretamente dos templários e também dos rituais
egípcios - e o Monastério de Sion, sempre tiveram uma veneração especial por João Batista.
Resumindo os pontos principais da tradição joanita:
1. Ela dá ênfase especial ao Evangelho de João, pois afirma que este contém ensinamentos
secretos transmitidos a João Evangelista ("o discípulo Amado") por "Cristo".
2. Há uma confusão evidente entre João Evangelista (o suposto autor do quarto Evangelho) e João
Batista. Essa confusão permanece como característica da corrente principal da maçonaria.

3. As "tradições secretas" referidas são especificamente gnósticas.

4. Embora afirme representar uma forma esotérica de cristianismo, que guarda os "ensinamentos
secretos" de Jesus, a tradição demonstra uma patente falta de respeito pelo próprio Jesus. Na melhor das
hipóteses, parece considerá-lo um mero mortal, ilegítimo, talvez mesmo alguém que sofresse de delírios
de grandeza. Para ao joanitas, o termo "Cristo" não significa divindade, sendo apenas um termo para
designar respeito - de fato, qualquer um de seus líderes é conhecido como "Cristo". Por essa razão,
quando um membro de tal grupo se diz "cristão", isto pode não significar exatamente o que parece.

5. A tradição também considera Jesus como um adepto da escola de mistério de Osíris, assim
como os segredos que ele ensinou também pertenciam ao círculo interno osiriano.

Em seu formato original, o Evangelho de João do Novo Testamento não era uma escritura do
movimento de Jesus, mas um documento que pertencera originariamente aos seguidores de João
Batista. Isso explica não só a alta consideração que os joanitas demonstraram a esse Evangelho, como
também a confusão entre João Evangelista e João Batista. Entretanto, no que diz respeito à tradição
joanita, essa confusão era deliberada.
Não existe qualquer evidência de um movimento "joanita" oriental que tenha formado uma igreja
esotérica a partir da figura de João Evangelista. Existem, entretanto, evidências consideráveis da
existência de uma tal igreja inspirada em João Batista. Esta ainda é representada pelos madianitas e
talvez pelos Nosairi. Sem dúvida, os madianitas eram encontrados em vários lugares do Oriente Médio,
embora as localizações sejam desconhecidas, mas hoje estão confinados a pequenas comunidades no
Iraque e no Irã. É mais do que possível que já existissem na época das cruzadas, e portanto poderiam ter
entrado em contato com os templários; e é também provável que a igreja oriental de João tenha se
tornado um movimento secreto ainda no início da era cristã.
Mesmo levando-se em consideração o tratamento atroz que receberam dos cristãos, é difícil explicar por
que os madianitas continuam a expressar um ódio mortal por Jesus. É verdade que o consideram um
falso messias que roubou os segredos do seu Mestre João e os usou para levar ao erro aqueles de suas
próprias fileiras, mas após todo esse tempo a veemência de sua hostilidade parece inexplicável. Nem a
perseguição que sofreram explica totalmente por que ainda dirigem um ódio tão fulminante a Jesus
pessoalmente. O que poderia ele ter feito para merecer tal depreciação contínua, por séculos e séculos?

CAPÍTULO XVI

A Grande Heresia
Temos consciência de que grande parte do que colocamos nos últimos capítulos deve ter sido um
choque para muitos dos leitores, particularmente se não estão familiarizados com os estudos recentes
sobre a Bíblia. Afirmar que o Novo Testamento está errado ao apresentar o Batista como alguém
subserviente a Jesus, e que o sucessor oficial de João era o mago do sexo e gnóstico Simão Mago, é tão
contrário à história "tradicional" que chega a sugerir uma rematada invenção. Como vimos, porém,
muitos estudiosos altamente respeitados do Novo Testamento realizaram tais descobertas de forma
totalmente independente: nós apenas as coletamos e comentamos.
A maioria dos estudiosos contemporâneos da Bíblia concorda que João Batista era um líder político
proeminente, cuja mensagem religiosa de algum modo ameaçava desestabilizar o status quo da
Palestina naquela época, e já há muito se reconhece que Jesus era uma figura do mesmo tipo. Porém, de
que modo a dimensão política de sua missão se relaciona com o que revelamos sobre sua formação nas
escolas de mistério egípcias?
Devemos lembrar que a religião e a política eram uma única coisa no mundo antigo, e que qualquer
pessoa com carisma para arrastar multidões era automaticamente considerada uma ameaça política
pelos poderes instituídos. E a própria multidão buscaria direção no líder, o que provocaria, no mínimo,
uma enorme dor de cabeça nas autoridades.A mistura de religião e política era exemplificada no
conceito do Rei Divino, ou de César visto como um deus. Os egípcios acreditavam que os faraós eram
deidades a partir do momento da sucessão: começavam como Hórus encarnado, o mágico rebento de
Ísis e Osíris, e ao se concluírem os rituais sagrados da morte eles se tornavam Osíris. Mesmo durante o
Império Romano, a família governante do Egito, a dinastia grega dos Ptolomeus - da qual Cleópatra é a
figura mais conhecida -, teve o cuidado de manter a tradição do faraó-deus. A Rainha do Nilo
identificava-se com a figura de Ísis, e com freqüência era retratada como a deusa.
Um dos conceitos mais duradouros relacionado a Jesus é o de sua realeza. "Cristo Rei" é uma expressão
usada com freqüência por cristãos, alternadamente com o termo "Cristo Senhor", e embora ambos
sejam utilizados simbolicamente, passam ainda a idéia de que ele pertencia à realeza - e a Bíblia
concorda.
O Novo Testamento é inequívoco nesse ponto: Jesus era descendente direto do rei Davi, embora a
exatidão dessa declaração não possa ser verificada. A questão crucial é que ou o próprio Jesus
acreditava pertencer a uma linhagem real, ou queria que seus seguidores nisso acreditassem. De
qualquer forma, não há dúvida de que Jesus afirmava ser o verdadeiro rei de toda Israel.
Isso pareceria estar em oposição à nossa idéia de que Jesus era de religião egípcia; afinal, por que os
judeus dariam ouvidos a um pregador não judeu e, mais do que isso, o aceitariam como seu rei
legítimo? Como vimos no Capítulo Treze, muitos seguidores de Jesus achavam que ele era judeu:
provavelmente isso era uma parte essencial de seu plano. Entretanto, a questão permanece - por que ele
desejaria ser o rei dos judeus? Se estivermos certos, e ele queria restaurar o que acreditava ser a religião
original do povo de Israel, trazer de volta ao rígido patriarcado judaico as deusas perdidas do Templo de
Salomão, nada melhor do que fincar sua própria imagem nos corações e mentes das massas como seu
legítimo governante.
Jesus queria o poder político; talvez isso explique o que ele esperava alcançar ao realizar o ritual de
iniciação da crucificação e a subseqüente "ressurreição", através da intervenção de sua sacerdotisa e
parceira no casamento sagrado, Maria Madalena. Talvez ele realmente acreditasse que, com sua
"morte" e renascimento, tornar-se-ia, assim como os faraós, Osíris, o próprio deus-rei. Como um
imortal deificado, Jesus teria então poderes terrenos ilimitados. Porém, algo com certeza deu muito
errado.
Como um exercício de aumento de poder, a crucificação foi algo próximo de um fiasco, e
provavelmente o esperado afluxo de energia mágica não se materializou. Como vimos, estudiosos como
Hugh Schonfield sugerem que Jesus muito provavelmente não morreu na cruz, nem como resultado
direto de seus tormentos. Contudo, ele parece ter ficado prostrado, ou de algum modo incapacitado,
pois não só a grande arrancada para o poder político não se concretizou como também a Madalena
deixou o país, indo para a França. Pode-se especular que sem Jesus, seu protetor, ela repentinamente
viu-se ameaçada pelos velhos oponentes, Simão Pedro e seus aliados.
A idéia de que algum judeu teria sido receptivo a um líder não judeu parece à primeira vista muito
improvável. Entretanto, esse cenário não é impossível, pois isso de fato aconteceu.
Em sua obra A guerra judaica, Josefo registra que, cerca de vinte anos após a crucificação, uma figura
conhecida na história apenas como "o Egípcio" entrou na Judéia e reuniu um considerável exército de
judeus a fim de derrotar os romanos. Referindo-se a ele como "um falso profeta", Josefo diz:

Chegando esse homem ao país, uma fraude portando-se como um profeta, reuniu cerca de 30.000
simplórios, conduziu-os por todo o deserto até o Monte das Oliveiras, e dali se preparou para entrar à
força em Jerusalém, subjugar o exército romano, e tomar o poder supremo tendo seus companheiros de
luta como guardiães.

Esse exército foi massacrado pelos romanos sob o comando de Félix (sucessor de Pilatos no governo),
embora o Egípcio tenha escapado e sumido para sempre dos registros históricos.
Embora houvesse colônias judias no Egito e portanto esse estrangeiro surgido do nada pudesse afinal de
contas ser um judeu, o episódio é ainda assim instrutivo porque alguém que pelo menos era tido como
um egípcio foi capaz de reunir um número substancial de judeus em seu próprio país. Outra evidência,
entretanto, sugere que esse líder não era judeu: o mesmo personagem é mencionado nos Atos dos
Apóstolos (21:38). Paulo acabara de ser resgatado da turba no Templo em Jerusalém e fora colocado
sob a "custódia de proteção" dos romanos, que estavam claramente em dúvida quanto à sua verdadeira
identidade. O capitão da guarda lhe pergunta:

Porventura não és tu aquele egípcio que, nos dias passados, levantaste um tumulto e levaste ao
deserto quatro mil sicários?

Ao que Paulo responde: "Sou um judeu, natural de Tarso..."


Esse episódio coloca algumas questões importantes: por que um egípcio se daria ao trabalho de liderar
uma revolta palestina contra os romanos? E, talvez ainda mais pertinente, por que os romanos
associariam Paulo, um pregador cristão, com aquele agitador egípcio? O que poderiam ter eles em
comum? Há então um outro ponto significativo: a palavra, traduzida como "assassino" na versão do rei
James, é na verdade sicarii , que era o nome dos judeus nacionalistas mais militantes, notórios por suas
táticas terroristas. O fato de terem se reunido em torno da figura de um estrangeiro naquela ocasião,
demonstra ser possível que tivessem feito o mesmo no caso de Jesus.

Nossa investigação sobre Maria Madalena e João Batista lançou nova luz sobre Jesus. Agora o vemos
de modo radicalmente diferente do Cristo tradicional. Parece haver duas correntes principais de
informações sobre ele: uma que o vincula a um passado não judeu - mais especificamente, egípcio e
outra na qual ele é visto como rival de João. Que quadro surgiria se combinássemos as duas correntes?
Os Evangelhos são muito cuidadosos ao apresentar um Jesus literalmente divino; portanto, qualquer
um, incluindo João, era espiritualmente inferior a ele. Mas quando se vê isso como mero artifício de
propaganda, a história finalmente começa a fazer sentido. A primeira grande diferença com relação à
história de Jesus comumente aceita é que, suposições à parte, ele de início não foi intitulado Filho de
Deus, nem seu nascimento presenciado por anjos celestiais. De fato, a história de seu miraculoso
nascimento era em parte um mito completo e em parte "pinçada" do (igualmente mítico) conto do
nascimento de João.
Os Evangelhos dizem que a carreira de Jesus começa quando João o batiza, e seus primeiros discípulos
são recrutados dentre os seguidores do Batista. E é como um discípulo de João que Jesus aparece nos
textos madianitas.
Entretanto, é bastante provável que Jesus fosse membro do círculo íntimo do Batista, e, embora João
nunca o tenha proclamado como o Messias aguardado, o relato deixa transparecer que houve um certo
elogio a ele. Há até a possibilidade de que, durante certo tempo, Jesus tenha sido o herdeiro do Batista,
mas algo muito sério aconteceu que levou João a pensar duas vezes e nomear, em vez de Jesus, Simão
Mago.
Parece ter havido algum movimento de ruptura no grupo de João: presumivelmente foi Jesus quem
liderou o cisma. Os Evangelhos registram o antagonismo entre os dois grupos de discípulos, e sabemos
que o movimento de João continuou após sua morte, independente do culto de Jesus. Com certeza
houve algum tipo de disputa ou briga de poder entre os dois líderes e seus seguidores: assim indicam as
dúvidas de João, na prisão, com respeito a Jesus.
Existem dois enredos possíveis. O cisma pode ter acontecido antes de João ser preso, e foi uma
separação súbita e total. Isso é sugerido no Evangelho de João (3:22-36), mas não nos outros (que se
concentram apenas em Jesus após o batismo). A outra hipótese é que, após a prisão de João, Jesus pode
ter tentado assumir a liderança - ou por iniciativa própria, ou como legítimo lugar-tenente de João.
Porém, por alguma razão, ele não foi aceito pelos seguidores do Batista.
Como vimos, as motivações de Jesus eram aparentemente complexas, mas parece inegável que ele
conscientemente representou dois dramas político-religiosos, um esotérico e outro exotérico -
respectivamente a história de Osíris e o profetizado papel do messias judeu. Seu ministério sugere uma
estratégia definida, que foi levada adiante em três estágios principais: primeiro, atrair as massas com
milagres e curas; segundo, assim que começassem a segui-lo, fazer discursos prometendo uma Era de
Ouro (o "Reino dos Céus") e uma vida melhor; e finalmente leva-los a reconhecê-lo como o Messias.
Em razão da hipersensibilidade das autoridades no que se refere a potenciais subversivos, não resta
dúvida de que ele deveria reivindicar o messiado de maneira implícita, em vez de afirmá-lo aberta e
ousadamente.
Muitas pessoas hoje aceitam que Jesus tinha uma agenda política, mas isso ainda é considerado
secundário em seus ensinamentos. Percebemos que precisávamos contrapor nossa hipótese sobre seu
caráter e ambições ao contexto daquilo que ele pregava. A crença de que ele advogava um sistema ético
coerente baseado na compaixão e no amor está tão disseminada que é tida como certa. Para quase todo
mundo, das mais diferentes religiões, Jesus é o epítome da gentileza e da bondade. Mesmo que hoje não
mais seja visto como o Filho de Deus, ainda é visto como um pacifista, um defensor dos excluídos e
amante das crianças. Para os cristãos, e também para uma vasta parcela de não cristãos, Jesus é a pessoa
que praticamente inventou a compaixão, o amor e o altruísmo. Claro está, entretanto, que não é assim:
obviamente sempre existiram pessoas boas em qualquer cultura e religião, mas a religião ligada ao culto
de Ísis, especificamente, colocava naquela época grande ênfase na responsabilidade pessoal e na
moralidade, na preservação dos valores familiares e no respeito por todas as pessoas.
Um exame objetivo das histórias dos Evangelhos revela algo completamente diferente do coerente
professor moral que se acreditava ser Jesus. Mesmo que os Evangelhos sejam efetivamente uma
propaganda pró-Jesus, o quadro que eles pintam do homem e seus ensinamentos é inconsistente e
evasivo.
Em resumo, os ensinamentos de Jesus conforme apresentados no Novo Testamento são contraditórios.
Por exemplo, se por um lado ele diz a seus seguidores para "dar a outra face" e perdoar seus inimigos, e
dar todas suas posses para o ladrão que lhes rouba algo, por outro lado declara: "Não vim trazer a paz,
mas a espada". Ele apóia o mandamento "honra teu pai e tua mãe mas depois diz:

Se algum vem a mim, e não aborrece seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e até a sua
vida, não pode ser meu discípulo.

Seus seguidores eram encorajados a odiar suas próprias vidas, mas ao mesmo tempo lhes era dito para
amar seus semelhantes como a si mesmos.
Teólogos tentam explicar essas discrepâncias afirmando que alguns ditados devem ser tomados de
forma literal, outros, porém, de modo metafórico. O problema nisso, entretanto, é que a teologia foi
inventada para lidar com essas contradições. Os teólogos cristãos partem do pressuposto de que Jesus
era Deus. Esse é um exemplo primário de raciocínio circular: para eles, tudo o que Jesus diz deve estar
correto porque ele o disse, e ele o disse por que era correto. Entretanto, a teoria cai por terra se Jesus
não for o Deus encarnado, e a patente contradição das palavras atribuídas a ele pode ser vista sob uma
ótica mais racional.
Os cristãos hoje tendem a pensar que a imagem de Jesus permaneceu inalterada por 2000 anos. Na
verdade, hoje ele é visto de modo muito diferente do que há dois séculos atrás, quando se destacava
como um juiz severo. Essa visão modifica-se de uma época para outra e de lugar para lugar. Jesus
enquanto juiz era a fonte da doutrina que dava apoio a atrocidades como a cruzada contra os cátaros e
os julgamentos das bruxas, mas desde a época vitoriana ele tornou-se cada vez mais "o gentil Jesus,
brando e humilde". Essas imagens contraditórias só são possíveis porque seus ensinamentos, conforme
transmitidos nos Evangelhos, podem significar praticamente qualquer coisa para qualquer homem.
Curiosamente, é essa mesma nebulosa qualidade que pode conter a chave para compreender as palavras
de Jesus. Os teólogos tendem a esquecer que ele estava se dirigindo a pessoas de carne e osso e que
vivia em um ambiente político real. Por exemplo, seus discursos pacifistas podem ter sido uma tentativa
de dissipar as suspeitas das autoridades sobre seu potencial subversivo. Em razão das agitações daquela
época, suas assembléias provavelmente incluíam informantes, e ele precisava tomar cuidado com o que
dizia. (Afinal, João fora preso em virtude das suspeitas de que poderia liderar uma rebelião.) Jesus
devia então ser bastante cuidadoso: se por um lado precisava conquistar o apoio popular, por outro
deveria aparentar que não representava qualquer ameaça ao status quo - pelo menos até que estivesse
pronto.
Sempre é importante compreender o contexto de cada coisa que Jesus dizia. Por exemplo, a frase
"deixai vir a mim as criancinhas" é quase universalmente considerada como um belo exemplo de sua
gentileza, acessibilidade e amor pelos inocentes. Deixando de lado o fato de que políticos astutos
sempre beijaram bebês, deve ser lembrado que Jesus gostava de escarnecer das convenções - ele vivia
na companhia de uma mulher de moral duvidosa e até mesmo de coletores de impostos. Quando os
discípulos tentaram manter as mulheres e crianças atrás, Jesus imediatamente interveio e disse-lhes que
passassem à frente. Isso pode ser um outro exemplo de seu prazer em quebrar as convenções ou,
simplesmente, em deixar claro para os discípulos que ele era o chefe.
De modo semelhante, quando Jesus diz das crianças:

E quem escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que lhe atassem à
roda do pescoço a mó que um asno faz girar, e que o lançassem ao mar.

A maioria das pessoas interpreta isso como uma declaração de seu amor/do amor de Deus pelas
crianças. Porém, poucas pessoas notam a qualificação "que crêem em mim". Nem todas as crianças
estavam qualificadas para compartilhar de seu amor, apenas aquelas que estavam entre seus seguidores.
De fato, ele está falando da insignificância das crianças, dizendo com efeito que "até uma criança que
me segue é importante" . A ênfase não está nos pequeninos, mas na importância dele.
Como vimos no Pai Nosso, as mais conhecidas e apreciadas palavras de Jesus são também,
ironicamente, as mais propícias a ser questionadas. "Pai nosso que estais no Céu" não foram palavras
inventadas por Jesus: parece que João Batista também as usava na mesma época e, de qualquer modo,
sua origem está nas preces a Osíris-Amon. O mesmo se dá com o Sermão da Montanha; Bamber
Gascoigne diz em seu livro The Christians: "Não há nada no Sermão da Montanha que seja
originalmente exclusivo de Cristo". Mais uma vez, descobrimos que Jesus fala palavras que foram
atribuídas primeiro a João Batista. Por exemplo, no Evangelho de Mateus (3:10) João diz: "... toda
árvore, pois, que não dá bom fruto, será cortada e lançada no fogo". Mais adiante, no mesmo
Evangelho, Jesus repete essa metáfora palavra por palavra, acrescentando: "Vós os conhecereis, pois,
pelos seus frutos".
Embora seja improvável que Jesus alguma vez tenha feito o discurso que hoje conhecemos como
Sermão da Montanha, é provável que este realmente represente os pontos principais de seus
ensinamentos - tal como compreendidos pelos autores dos Evangelhos. Embora pelo menos um trecho
seja já amplamente reconhecido como parte da mensagem de João, o Sermão é sem dúvida complexo:
inclui afirmações de cunho ético, espiritual e mesmo político, e portanto merece um exame mais
cuidadoso.
A evidência de Jesus ter tido uma agenda política é excepcionalmente forte. Admitindo isso, muitos de
seus ditos mais evasivos passam a fazer sentido. O Sermão da Montanha parece consistir numa série de
declarações de uma única linha, que são particularmente reconfortantes pela autoridade com que são
proferidos, tais como "Bem-aventurados os limpos de coração porque verão a Deus". Entretanto, os
cínicos talvez as considerem como uma mera seqüência de chavões ou de absurdas promessas ("Bem-
aventurados os humildes porque herdarão a terra"). Afinal, todos os revolucionários históricos tentaram
tornar-se populares entre as pessoas comuns, especialmente dirigindo-se aos desassistidos e
despossuídos, exatamente como hoje os políticos fazem suas promessas aos desempregados. Isso se
encaixa em sua agenda de um modo geral: seus repetidos ataques aos ricos são uma parte essencial de
seu apelo junto ao povo, já que os ricos sempre foram o foco para os descontentes.
Permanece o fato de que as palavras de Jesus - "ame seus inimigos/ bem-aventurados os mansos/bem-
aventurados os misericordiosos" - parecem ser as de um homem cheio de compaixão, amor e carinho.
Fosse ou não o Filho de Deus, ele parece ter incorporado um espírito maravilhoso. Se demonstramos
um certo cinismo sobre o homem e suas motivações, é somente porque acreditamos que as evidências
sugerem que tal se justifica. Para começar, como vimos, as palavras de Jesus, ao menos como
registradas nos Evangelhos, são com freqüência ambíguas e patentemente contraditórias, e às vezes
revelam ter sido originalmente proferidas por João Batista.
Mesmo assim, pode-se pensar que nossas próprias hipóteses são contraditórias: se por um lado
questionamos as motivações de Jesus e mesmo sua integridade, por outro lado o vinculamos fortemente
ao culto de Ísis, pleno de amor e compaixão. No entanto, não há qualquer contradição nisso: ao longo
da história, homens e mulheres foram atraídos pelos mais diferentes sistemas políticos e religiosos, dos
quais se tornaram fervorosos adeptos, apenas para utilizá-los, tempos depois, para alavancar suas
próprias causas, talvez até mesmo persuadindo a si próprios de que seus corações visavam apenas os
melhores interesses da organização. Assim como a história tem demonstrado que o cristianismo - que se
auto-proclama a religião do amor e da compaixão - produziu filhos e filhas que viveram vidas bem
menos do que exemplares, também a religião de Ísis muitas vezes aviltou a natureza humana ao longo
dos anos.
Portanto, Jesus era um mago que operava prodígios e que arrebanhou as multidões porque as entretinha.
Expulsar demônios devia ser um espetáculo sensacional e assegurava que o exorcismo fosse fonte de
comentário durante meses após ele ter deixado o lugarejo. Tendo conquistado a atenção das multidões,
Jesus começou a pregar, a fim de se estabelecer como o Messias aguardado.
Porém, como vimos, Jesus começou como discípulo de João, o que coloca a seguinte questão: teria o
Batista as mesmas ambições? Infelizmente, em virtude da escassa informação disponível, só podemos
especular. E embora a imagem que temos de João dificilmente seja a de um arrivista político, nosso
conceito sobre essa figura fria e severa vem das páginas da propaganda do movimento de Jesus - os
Evangelhos do Novo Testamento. De um lado, Herodes Antipas mandou prender João (de acordo com
o relato mais confiável de Josefo) porque o considerava um potencial subversivo, mas pode ter sido
mais uma manobra preventiva do que uma reação a algo que ele realmente disse ou fez. De outro lado,
os seguidores de João, incluindo os madianitas, não pareciam perceber nenhuma ambição política em
seu líder, mas isso talvez porque ele foi preso antes de poder mostrar sua verdadeira face ou
simplesmente porque nada sabiam de suas motivações secretas.
O acontecimento que marcou o início da atuação de Jesus parece ter sido a Multiplicação dos Pães. Os
Evangelhos o descrevem como uma espécie de piquenique miraculoso, em que o anfitrião assombra as
pessoas ao multiplicar o magro suprimento de cinco pães de cevada e dois pequeninos peixes para
poder alimentar a todos. Na época, porém, a história tinha um significado profundo que se perdeu:
primeiro, o milagre é totalmente diferente de qualquer outro atribuído a Jesus - os outros dirigidos ao
grande público eram todos relacionados com a cura de um modo ou de outro. Segundo, os próprios
Evangelhos sugerem que há algo significativo sobre o acontecimento que nem mesmo eles conseguem
entender. O próprio Jesus reforça isso ao dizer misteriosamente: "Vós buscais-me, não porque vistes os
milagres, mas porque comestes dos pães." Pelo menos no Evangelho de Marcos, ninguém fica
maravilhado com o evento. Como diz A. N. Wilson:

O milagre ou sinal se concentrava na alimentação, não na multiplicação do pão. Realmente, é


notável que no relato de Marcos ninguém expresse o menor assombro perante esse episódio. Quando
Jesus limpa um leproso, ou cura um cego, o acontecimento geralmente deixa todos "assombrados" ou
"maravilhados". Não há qualquer assombro em Marcos.

A importância da alimentação da multidão não estava em sua natureza para-normal. É possível que os
autores dos Evangelhos tenham inventado a parte miraculosa da história porque sabiam que tinham de
fazê-la sobressair-se por alguma razão, mas não sabiam exatamente por quê.
O ponto central é que havia, de acordo com os Evangelhos, cinco mil homens - deve ter havido também
um número não especificado de mulheres e crianças, mas estas são irrelevantes para essa história em
particular. O relato de início fala em cinco mil pessoas, mas especifica mais tarde que era uma multidão
de homens. Há um significado especial nisso: enfatiza-se que Jesus os fez sentar-se todos juntos. Como
nos diz A. N.Wilson:

Fazer os homem se sentarem! Fazer os essênios se sentarem! Fazer os fariseus se sentarem! Fazer
Iscariotes se sentar... e fazer Simão, o Zelote, se sentar, com seu bando patriótico de guerrilheiros
terroristas! Sentai-vos, ó homens de Israel!

Com efeito, Jesus estava fazendo com que facções até então em guerra se sentassem pacificamente para
uma refeição ritual em conjunto. Segundo argumenta A. N. Wilson, parece que houve literalmente uma
reunião de clãs, uma maciça assembléia de antigos inimigos, que temporariamente pelo menos se
uniram a Jesus, o ex-discípulo de João Batista.
A própria linguagem que Marcos (6:39-40) utiliza é extremamente indicativa de um acontecimento
militar:

E então mandou-lhes [os discípulos] que os fizesse recostar a todos, em ranchos, sobre a relva verde.
E recostaram-se em fileiras de cem e de cinqüenta.

De acordo com o Evangelho de João (6:15) foi como resultado direto da multiplicação dos "pães" que o
povo passou a querer Jesus como rei. Foi claramente um grande evento, mas parece ter mais do que o
significado óbvio, porque ocorreu imediatamente após a decapitação de João. Como a história é contada
em Mateus (14:13):

E, tendo Jesus ouvido isto [a morte de João], retirou-se dali numa barca a um lugar solitário afastado;
e, tendo sabido isto as turbas, seguiram-no a pé das cidades.

Jesus talvez tenha ficado tão pesaroso com a notícia da morte de João que sentiu necessidade de buscar
a paz do deserto, a qual infelizmente foi logo quebrada pela chegada de uma horda de pessoas que
queriam ouvi-lo pregar. Talvez precisassem assegurar-se de que os ideais de João não tinham morrido
com ele e que sua continuidade estava garantida através de Jesus.
De qualquer forma, a morte de João foi muito significativa para Jesus. Preparou o caminho para que ele
se tornasse líder do grupo e, possivelmente, de todo o povo. É provável que Jesus já tivesse assumido o
movimento de João após a prisão deste, e quando as pessoas ficaram sabendo da subseqüente execução
do Batista, acorreram para seguir seu lugar-tenente, Jesus.
Existem muitas perguntas sem resposta no episódio do encarceramento de João; mais uma vez, parece
que os Evangelhos estão escondendo algo de nós. Dizem que João foi preso por ter censurado o
casamento ilegal de Herodíades e Herodes, embora o relato de Josefo afirme que João era visto como
uma ameaça potencial ou real ao seu governo. Josefo não fornece detalhes em seu relato das
circunstâncias da morte do Batista ou da maneira como ele foi executado. E depois há a abrupta
mudança de sentimento de João com respeito ao messiado de Jesus: talvez ele tenha ouvido algo sobre
Jesus na cadeia que o fez duvidar. E, como vimos, há algo obviamente insatisfatório sobre as razões
dadas para a morte de João: de acordo com os Evangelhos, Herodes caiu em uma armadilha montada
por Herodíades para matar João, usando Salomé como intermediária.
Existem muitos problemas com o relato dos Evangelhos sobre a morte de João. Contam-nos que
Salomé, agindo sob as instruções de sua mãe Herodíades, pede a Herodes a cabeça de João Batista - e
ele concorda, embora com relutância. Esse enredo é extremamente improvável: pelo que hoje se sabe
sobre a extensão da popularidade de João, Herodes dificilmente seria tolo o bastante para matá-lo
apenas por um capricho perverso. João Batista pode ter sido uma ameaça enquanto vivo, mas seria de
supor que ele se tornaria ainda mais perigoso como um mártir. Herodes, é claro, pode ter considerado
que valia a pena correr o risco e exerceu sua autoridade, sem se importar com a quantidade de
seguidores do Batista. Nesse caso, ele teria ordenado diretamente a execução de João e com certeza não
teria tomado tal atitude, sobre uma questão tão séria, apenas para satisfazer sua sádica enteada. Dadas as
circunstâncias, parece estranho que não tenha ocorrido uma agitação civil em grande escala, ou mesmo
um levante. Como vimos, Josefo registra que o povo atribuiu a esmagadora derrota do exército de
Herodes, pouco tempo depois, à retaliação divina pela morte de João, o que no mínimo revela que a
tragédia teve um grande e poderoso impacto.
Entretanto, não ouve nenhum levante. Em vez disso, toda a tensão foi distendida por Jesus, que, como
vimos, imediatamente reuniu os cinco mil e os alimentou. Teria ele acalmado o povo? Teria conseguido
confortá-los da morte de seu amado Batista? É bem possível, mas não há qualquer menção sobre isso
nos Evangelhos. Com certeza, entretanto, muitos dos discípulos de João passaram a ver em Jesus o
sucessor de seu líder morto.
Então a versão dos autores dos Evangelhos da morte de João faz pouco sentido. Por que teriam
precisado inventar uma história tão enrolada? Afinal, se fosse simplesmente para diminuir o número de
seguidores de João, poderiam ter feito da morte dele o primeiro martírio do cristianismo.Em vez disso,
a descreveram como uma sórdida intriga palaciana - Herodes se dá por satisfeito em ter João como
prisioneiro, por isso é preciso ludibriá-lo para que execute João. Mas por que razão teriam os autores se
esforçado tanto em apresentar Herodes como um homem decente, trapaceado pela artimanha de duas
mulheres a tomar uma medida tão terrível? Parece, portanto, que houve uma intriga palaciana ao redor
da morte de João, bastante conhecida para que os autores dos Evangelhos a ignorassem. Porém, ao
reescrever a história para adaptá-la a seus próprios fins, eles sem querer criaram um absurdo.
Herodes Antipas não obteve nenhum benefício com a morte de João a censura do Batista ao seu
casamento estava provavelmente bastante difundida e o estrago já havia sido feito. Na verdade, deu-se o
inverso: a morte de João tornou as coisas ainda mais difíceis para ele.
Então, quem se beneficiou com a morte de João? De acordo com a teóloga australiana Barbara
Thiering, circularam rumores na época de que a facção de Jesus foi a culpada. Por mais chocante que tal
hipótese pareça à primeira vista, nenhum outro grupo se beneficiou mais com a eliminação de João
Batista. Só por essa razão os partidários de Jesus não deveriam ser negligenciados, se, como
suspeitamos, a morte de João foi na verdade um assassinato muito bem tramado. Afinal, sabemos que
ele duvidou da identidade do seu rival na prisão, no que foi, possivelmente, o seu último
pronunciamento público.
Entretanto, alimentar suspeitas é uma coisa; encontrar evidências corroborativas é outra completamente
diferente. Passados dois mil anos, é impossível, certamente, encontrar pistas claras e diretas sobre o que
de fato aconteceu, mas é ainda possível descobrir evidências circunstanciais que, sem dúvida, nos
fazem parar para refletir. Afinal, como vimos, deve ter havido razões específicas para o tratamento frio
que a tradição joanina, os hereges, dispensam a Jesus, e, no ponto mais extremo, para a ativa hostilidade
dos mandianitas contra ele. As razões recaem nas circunstâncias da morte de João.
Curiosamente, embora esse deva ser um dos episódios mais conhecidos do Novo Testamento, só
sabemos que a filha de Herodíades se chamava Salomé graças a Josefo. Os autores dos Evangelhos
cuidadosamente evitam mencioná-lo, embora registrem os nomes de todos os outros principais
envolvidos. Estariam escondendo deliberadamente o nome dela?
Jesus tinha uma discípula chamada Salomé. Entretanto, embora ela seja citada como uma das mulheres
que estava aos pés da cruz e acompanhou Madalena até a tumba no Evangelho de Marcos, em Mateus e
Lucas - que usaram Marcos como fonte - ela desaparece misteriosamente. Mais ainda, vimos antes a
curiosa omissão do aparentemente inócuo episódio no Evangelho de Marcos, revelado na obra de
Morton Smith, The Secret Gospel:

Ele então chegou a Jericó. E a irmã do jovem que Jesus amava estava lá com sua mãe e Salomé, mas
Jesus não os recebeu.

Ao contrário do episódio da ressurreição de Lázaro, não há aqui uma razão óbvia para se omitir essa
passagem. Assim, parece que os autores dos Evangelhos tinham motivos para não nos apresentar
Salomé. (Entretanto, ela aparece no Evangelho de Tomé - um dos textos do Nag Hammadi -, onde
dorme em um sofá com Jesus, no perdido Evangelho dos Egípcios, e no Pistis Sophia, onde é descrita
como discípula e catequista de Jesus.) Admitimos que Salomé era um nome comum, mas o fato de que
era importante o suficiente para ser removido tão cuidadosamente pelos autores dos Evangelhos tem o
efeito de atrair mais nossa atenção para a Salomé que seguia Jesus.
Com certeza João Batista se tornara uma espécie de empecilho para o dissidente movimento de Jesus.
Mesmo encarcerado ele conseguiu que suas dúvidas sobre o ex-discípulo se tornassem públicas - e eram
dúvidas tão preocupantes que, como vimos, João indicou Simão Mago como seu sucessor oficial, não
Jesus. Então esse carismático profeta, com seu considerável número de seguidores, é morto por um
capricho da família de Herodes, que não poderia ser tão ingênua a ponto de subestimar a possível
reação do povo.
Como vimos, Hugh Schonfleld e outros estudiosos argumentam de modo convincente sobre a existência
de um grupo obscuro que parece ter facilitado a missão de Jesus, e eles podem ter considerado prudente
remover o Batista de uma vez por todas. A história está repleta de exemplos de mortes convenientes,
como as de Dagoberto II e Thomas à Becket, que de uma tacada só removeram tanto os dissidentes
quanto o obstáculo final à ambição do novo regime. Talvez a execução de João entre nessa categoria.
Poderia esse grupo ter decidido que era hora de remover de cena o grande rival de Jesus? É claro que o
próprio Jesus poderia nada saber sobre o crime cometido em seu próprio beneficio, assim como
Henrique II nunca teve a intenção de que seus cavaleiros assassinassem o arcebispo Thomas à Becket.
O grupo por trás de Jesus parece ter sido influente e rico, de modo que bem poderiam ter tido contatos
dentro do palácio de Herodes. Sabemos que isso não é impossível porque até mesmo os seguidores
imediatos de Jesus tinham pelo menos um contato conhecido no palácio: os Evangelhos citam sua
discípula Joana como a mulher de Cusa, procurador de Herodes.
Qualquer que seja a verdade, o fato é que havia alguma coisa de errado na relação entre Jesus e o
Batista, algo que os hereges sustentaram por séculos e que os estudiosos finalmente começaram a
reconhecer – no mínimo que eles eram rivais. A antipatia dos hereges por Jesus pode estar baseada na
idéia de que ele não passava de um inescrupuloso oportunista, que explorou a morte de João em seu
próprio beneficio ao tomar as rédeas do movimento com uma pressa indecente - especialmente se o
sucessor legítimo de João era de fato Simão Mago.Talvez o mistério em volta da morte de João forneça
a chave para a inexplicável ênfase na veneração do Batista, em detrimento de Jesus, entre os grupos que
vimos discutindo ao longo de nossa investigação.
Como vimos, os madianitas se referem a João como o "Senhor da Luz", enquanto difamam Jesus como
um falso profeta que desviou seu povo do verdadeiro caminho - tal como ele é retratado no Talmude,
onde também é descrito como feiticeiro. Outros grupos, como o dos templários, parecem ter tido uma
visão um pouco menos radical, embora também venerassem João em vez de Jesus. Tal fato encontra
suprema expressão no quadro A Virgem dos rochedos, de Leonardo, e é reforçado pelos elementos
encontrados nas outras obras que discutimos no Capítulo Um.
Quando percebemos pela primeira vez a obsessão de Leonardo com a supremacia de João Batista, nos
perguntamos se isso seria apenas um capricho. Entretanto, após investigar exaustivamente o volume de
evidências indicando a existência de um culto difundido a João, chegamos à conclusão de que tal culto
não apenas existia, como existira desde sempre paralelamente à Igreja e mantendo seu segredo bem
guardado. A Igreja de João teve muitas faces ao longo dos séculos, como a dos antigos monges
guerreiros e seu braço político, o Monastério de Sion. Muitos veneram secretamente João quando se
ajoelham perante "Cristo" - como vimos, o Monastério, que dá aos Grão-Mestres de sua Ordem o título
de "João", começou essa tradição com "João II". Pierre Plantard de Saint-Clair explica isso com o que
parece ser um non sequitur: "João I" está reservado para Cristo.
É claro que fornecer argumentos sólidos para a existência de grupos que acreditavam ser Jesus um falso
profeta, ou mesmo que ele tivera alguma participação na morte de João Batista, não é o mesmo que
provar que as coisas foram realmente assim. O certo é que as duas Igrejas existiram lado a lado por
duzentos anos: a Igreja de Pedro que declara Jesus não só como o homem perfeito mas como o próprio
Deus encarnado, e a Igreja de João que vê em Jesus exatamente o oposto. Pode ser que nenhuma das
duas tenha o monopólio da verdade, e que aquilo que vemos refletido nessas facções opostas é apenas a
continuação da velha rixa entre os discípulos dos dois mestres.
No entanto, o próprio fato de existir uma tradição como a Igreja de João sugere fortemente que já é
mais que tempo de fazer uma reavaliação radical do caráter, do papel e do legado de João Batista e
Jesus "Cristo". Aqui, porém, há muito mais do que isso em jogo.
Se a Igreja de Jesus foi erigida sobre a verdade absoluta, então a Igreja de João foi erigida sobre a
mentira. Se a situação, porém, for inversa, então estamos frente à possibilidade de uma das mais
terríveis injustiças históricas. Não estamos dizendo que nossa cultura tem venerado o Cristo errado, pois
não há qualquer evidência de que João pretendeu exercer esse papel, ou que tal papel tenha mesmo
existido, nos termos em que hoje o entendemos, até Paulo o ter inventado especialmente para Jesus. De
qualquer modo, João foi assassinado por seus princípios, e estes, segundo acreditamos, provinham
diretamente da tradição da qual ele tomou o ritual do batismo. Era a antiga religião da gnose individual,
da iluminação, da transformação espiritual do indivíduo - os mistérios do culto de Ísis e Osíris.
Jesus, João Batista e Maria Madalena pregavam essencialmente a mesma mensagem, mas,
ironicamente, essa não era o que a maioria das pessoas supõe ser. Esse grupo do primeiro século levou
para a Palestina sua forma de intensa consciência gnóstica do Divino, batizando aqueles que buscavam
esse conhecimento místico para si mesmos, iniciando-os na antiga tradição oculta. Também eram parte
desse movimento Simão Mago e sua consorte Helena, cuja magia e milagres eram, como aqueles
associados a Jesus, uma parte intrínseca de suas práticas religiosas. O ritual era uma parte fundamental
desse movimento, desde o batismo inicial até a representação dos mistérios egípcios. A iniciação
suprema, porém, vinha através do êxtase sexual.
Entretanto, nenhuma religião, não importa o que ela professe, garante superioridade moral ou ética. A
natureza humana sempre se intromete, criando seus próprios sistemas híbridos, ou, em alguns casos, a
religião se torna um culto à personalidade. Esse movimento pode ter sido essencialmente ligado a Ísis,
com toda ênfase no amor e na tolerância que a religião busca inspirar, mas mesmo em sua terra natal,
no Egito, havia muitos casos registrados de corrupção entre os sacerdotes e sacerdotisas. E nos dias
turbulentos da Palestina do primeiro século, quando os homens febrilmente buscavam um messias, a
mensagem confundiu-se com a ambição pessoal. Como sempre, quanto mais elevados os interesses,
maior a probabilidade de se abusar do poder.
As conclusões e implicações desta investigação serão novidade para a maioria dos leitores e, sem
dúvida, chocarão a muitos. No entanto, como esperamos ter mostrado, esses achados surgiram passo a
passo enquanto procurávamos as evidências. Na maior parte dos casos, baseamo-nos em estudos
contemporâneos - que muitas pessoas jamais pensaram ser tão numerosos. E no final, pelo menos, o
quadro que surge é muito diferente daquele que conhecemos.
Esse novo quadro das origens do cristianismo e do homem em cujo nome a religião foi fundada, encerra
as mais espantosas e amplas implicações. E embora tais implicações possam ser novidade para a
maioria das pessoas, são reconhecidas há séculos por uma camada particularmente tenaz da sociedade
ocidental. É estranhamente perturbador considerar, mesmo por um momento, a possibilidade de que os
hereges estavam certos.
CAPÍTULO XVII

De Dentro do Egito
Dois mil anos depois de Jesus, João e Maria terem passado suas vidas peculiarmente significativas em
um lugar remoto do Império Romano, milhões de pessoas ainda acreditam na história que é contada nos
Evangelhos. Para elas, Jesus era o Filho de Deus e de uma virgem, e por acaso encarnou como judeu;
João Batista foi seu precursor e era espiritualmente inferior a ele; e Maria Madalena era uma mulher de
reputação duvidosa a quem Jesus curou e converteu.
Entretanto, nossa investigação revelou um quadro muito diferente. Jesus não era o Filho de Deus, nem
de religião judaica, embora etnicamente possa ter sido judeu. As evidências indicam que sua pregação
continha uma mensagem que não era originária do território onde montou sua campanha e deu início à
sua missão. Com certeza seus contemporâneos achavam que ele era um adepto da magia egípcia, uma
visão que também está expressa no Talmude.
Pode ser que isso não passe de um boato malicioso, mas muitos estudiosos, principalmente Morton
Smith, concordam em que os milagres de Jesus faziam parte do repertório típico da magia egípcia.
Além disso, ele foi entregue a Pilatos sob a acusação de ser um "malfeitor" - o que, na lei romana,
significava especificamente ser um feiticeiro.
João não reconheceu Jesus como o Messias. É provável que o tenha batizado, porque Jesus era um dos
seus discípulos e talvez até mesmo tenha chegado a ser seu lugar-tenente. Alguma coisa deu errado,
entretanto: João mudou de idéia e nomeou Simão Mago como seu sucessor. Pouco tempo depois João
foi executado.
Maria Madalena era uma sacerdotisa e foi a parceira de Jesus em um casamento sagrado, exatamente
como era Helena para Simão Mago.A natureza sexual de sua relação é atestada em muitos dos textos
gnósticos que a Igreja proibiu de serem incluídos no Novo Testamento. Ela era também a "Apóstola dos
Apóstolos" e uma pregadora de renome, chegando mesmo a reunir o grupo dos desalentados discípulos
após a crucificação. Simão Pedro a odiava, assim como a todas as mulheres, e é provável que ela tenha
ido para a França após a crucificação, porque temia o que ele lhe poderia fazer. E embora seja
impossível saber exatamente qual era a sua mensagem, é certo que devia ter pouca relação com o que
hoje se conhece como cristianismo. Maria Madalena pode ter sido qualquer coisa mas com certeza não
era uma pregadora cristã.
A influência egípcia na história dos Evangelhos é inegável: Jesus pode muito bem ter conscientemente
desempenhado o papel do Messias judeu a fim de obter apoio popular, mas ele e Maria parecem
também ter encenado o mito de Osíris e Ísis, provavelmente com propósitos iniciatórios.
A magia egípcia e os segredos esotéricos estavam por trás de sua missão, e seu mestre foi João Batista.
Dois dos discípulos de João - seu sucessor Simão Mago e a ex-prostituta Helena - faziam um paralelo
exato com Jesus e a Madalena. Provavelmente era assim que deveria ser. O conhecimento subjacente
era sexual - aquele do horasis, da iluminação através do sexo transcendental com uma sacerdotisa, que
era um conceito difundido no Oriente e também no Egito.
Apesar das afirmações da Igreja, não era Pedro o aliado mais próximo de Jesus, nem, a julgar por suas
repetidas dificuldades em compreender as palavras de seu mestre, fazia ele parte do círculo íntimo de
Jesus. Se houve um sucessor de Jesus, foi Madalena. (Devemos lembrar que eles estavam ativamente
disseminando os ensinamentos e práticas do já bastante antigo culto de Ísis/Osíris, e não uma espécie de
heresia judaica, como freqüentemente se acredita.) Maria Madalena e Simão Pedro empreenderam
jornadas diferentes; um fundou a Igreja de Roma, e a outra confiou seus mistérios para gerações
daqueles que entenderam o valor do Princípio Feminino: os "hereges" .
João, Jesus e Maria estavam inextricavelmente ligados por sua religião (a do antigo Egito), que eles
adaptaram à cultura judaica - assim como Simão Mago e Helena, que escolheram a Samaria como alvo
para sua mensagem. Simão Pedro e o restante do grupo dos Doze definitivamente não faziam parte
desse íntimo círculo de missionários egípcios.
Maria Madalena foi reverenciada pelo movimento ocultista europeu porque fundou sua própria "Igreja"
- não um culto cristão no sentido geral do termo, mas baseado na religião de Ísis/Osíris. Algo muito
próximo disso fora ensinado tanto por Jesus como por João.
João foi venerado pela mesma tradição de "hereges" porque estes eram os descendentes espirituais
diretos daqueles que o consideravam seu "rei sacrificado", o mártir de sua causa, que havia sido
eliminado em seu apogeu. O choque e a atrocidade de sua morte foram ressaltados pelas circunstâncias
dúbias que a envolveram, e pelo que foi percebido como uma insensível manipulação dos seguidores de
João por parte de seu velho rival.
Há, entretanto, um outro lado nessa história. Como já vimos, circulava o boato de que Jesus praticara
magia negra com o Batista morto. A obra de Carl Kraeling e Morton Smith demonstrou que Herodes
Antipas acreditava que Jesus escravizara a alma (ou consciência) de João a fim de obter poderes
mágicos, pois acreditava-se entre os magos egípcios e gregos que o espírito de um homem assassinado
era uma presa fácil para os feiticeiros, especialmente se possuíssem uma parte do corpo da vítima. Se
Jesus realizou ou não alguma cerimônia mágica de tal tipo, um boato de que a alma de João estava sob
o controle de seu antigo rival não teria causado qualquer prejuízo ao movimento de Jesus. Numa época
como aquela, de mentalidade voltada para a magia, seria praticamente garantido que os discípulos de
João passariam para o lado de Jesus, sobretudo porque este parecia ter poderes miraculosos. E como
Jesus já dissera a seus seguidores que João era o profeta Elias reencarnado, todos provavelmente
atribuíam a ele uma autoridade maior.
Contudo, apesar da noção peculiar de um Jesus que, segundo se acreditava, tinha o controle sobre as
almas de pelo menos dois outros profetas, o segredo da tradição secreta não tem qualquer relação com
ele. De fato, mesmo que venerem João e Madalena como indivíduos históricos reais, os hereges sempre
os viram como representantes de um antigo sistema de crença. O mais importante era aquilo que eles
representavam - a Suprema Sacerdotisa e o Supremo Sacerdote do Reino da Luz.
As duas tradições - uma centrada no Batista e a outra na Madalena - só se tornaram realmente
discerníveis ao redor do século XII, quando, por exemplo, os cátaros surgiram no Languedoc e os
templários estavam no auge de seu poder. Há uma lacuna evidente na transmissão das tradições: é como
se elas desaparecessem em um buraco negro mais ou menos entre os séculos IV e XII. Foi por volta do
ano 400 que os textos de Nag Hammadi - que enfatizavam o papel de Maria Madalena - foram
enterrados no Egito; como vimos na Parte Um, idéias notavelmente semelhantes sobre a importância de
Madalena persistiram na França, tendo alguma influência sobre os cátaros. E embora a Igreja de João
tenha aparentemente desaparecido a partir de 50 d.C., mais ou menos, a continuidade da sua existência
pode ser deduzida dos ataques fulminantes que a Igreja lançou contra os sucessores de João - Simão
Mago e Dositheus - por mais duzentos anos. Então, novamente no século XII, essa tradição emergiu
mais uma vez na veneração mística dos templários por João.
É impossível dizer com certeza o que exatamente aconteceu com ambas as tradições durante os anos em
que estiveram ausentes, mas no final de nossa própria investigação sentimos que podemos arriscar um
palpite. A "linhagem" de Madalena teve continuidade no sul da França, mas se houve algum registro
confirmando isso, foi destruído durante a sistemática devastação da cultura do Languedoc que
acompanhou a cruzada contra os cátaros. Ecos da tradição, porém, chegaram até nós através das crenças
dos cátaros relativas ao relacionamento de Madalena com Jesus e do tratado Schwester Katrei de
influência cátara, do qual algumas idéias foram claramente tomadas dos textos do Nag Hammadi.
É provável que a tradição de João tenha sobrevivido independentemente no Oriente Médio através dos
ancestrais dos madianitas e dos nosairis, embora saibamos que ela surge na Europa séculos depois. Mas
como a tradição chegou à Europa? Quem percebeu seu valor e em segredo decidiu apoiar suas crenças?
Mais uma vez encontramos a resposta nos monges-guerreiros, cujas operações militares no Oriente
Médio escondiam sua meta de buscar conhecimento esotérico. Os cavaleiros templários trouxeram a
tradição de João à Europa para juntá-la com a de Madalena, dando assim sentido àquilo que pareciam
ser mistérios masculinos e femininos separados. Devemos lembrar que os nove cavaleiros templários
originais eram fruto da cultura do Languedoc, o berço e a alma do culto a Madalena, e que a tradição
oculta afirma ter aprendido seus segredos com os "joaninos do Oriente".
Em nossa opinião é bastante improvável que a união dessas duas tradições pelos templários fosse mera
coincidência. Afinal, sua meta primária era buscar e fazer uso do conhecimento mais antigo. Hugues de
Payens e seus oito irmãos cavaleiros foram à Terra Santa com um propósito em mente: procuravam o
poder do conhecimento e talvez buscassem também um certo artefato de grande valor - valor que, muito
provavelmente, não era apenas monetário. Os templários pareciam saber da existência da tradição
joanina antes de encontrá-la, mas como souberam dela ninguém pode dizer.
É evidente que o que estava em jogo era muito mais do que algum vago ideal religioso: os templários
eram, essencialmente, homens práticos, interessados sobretudo na aquisição de poder material, e a pena
por sustentar suas crenças secretas foi de um horror inimaginável. Sempre é bom enfatizar que tais
crenças não consistiam apenas em noções espirituais que eles decidiram abraçar para o bem de suas
almas. Eram segredos mágicos e alquímicos que, no mínimo, podem ter-lhes conferido vantagem
naquilo que hoje chamaríamos de ciência. Certamente a superioridade de seu conhecimento em
matérias como geometria sagrada e arquitetura encontrou expressão nas catedrais góticas, esses secretos
livros de pedra que ainda hoje estão conosco e que contêm os frutos de suas aventuras no reino
esotérico. Em sua busca incessante pelo conhecimento terreno, os templários buscaram expandir sua
compreensão sobre astronomia, química, cosmologia, navegação, medicina e matemática, cujos
benefícios são evidentes por si mesmos.
Os templários, porém, eram ainda mais ambiciosos em sua busca pelo conhecimento oculto: eles
procuravam respostas para as questões eternas. E na alquimia podem ter encontrado pelo menos
algumas delas. Essa misteriosa ciência que abraçaram continha, segundo se acreditava, os segredos da
longevidade, talvez até mesmo da imortalidade física. Muito mais do que apenas aumentar seus
horizontes filosóficos e religiosos, os templários buscavam o maior dos poderes: ter domínio sobre o
tempo, sobre a tirania do nascer e morrer.
E após os templários vieram gerações e gerações de "hereges" que aceitaram o desafio e levaram
adiante a tradição com igual fervor. Esses segredos obviamente tinham um forte apelo, que inspirou um
número incalculável de pessoas a arriscar tudo para buscá-los - mas qual seria? O que havia nas
tradições de Madalena e de João que provocava tal fervor e devoção?
Não há uma resposta única para essas questões, mas existem três possibilidades.
A primeira é que as histórias de Madalena e João Batista trazem em si o segredo daquilo que
supostamente foi o "cristianismo" - sua missão original -, em total contraste com aquilo que realmente
se tornou.
Enquanto à sua volta as mulheres eram aviltadas e o sexo degradado, e os sacerdotes guardavam as
chaves do céu e do inferno, os hereges buscavam os segredos do Batista e da Madalena para obter
conforto e iluminação. Através desses dois "santos", puderam reencontrar a trilha perdida dos
veneradores gnósticos e pagãos que ruma diretamente para o antigo Egito (e mais além, possivelmente):
como Giordano Bruno ensinava, a religião egípcia era muito superior ao cristianismo em cada aspecto;
e, como vimos, pelo menos um templário rejeitou o símbolo primordial do cristianismo, a cruz, por ser
"recente demais".
Em vez do patriarcado rígido do Pai, do Filho e do Espírito Santo (hoje masculino), os adeptos dessa
tradição secreta encontraram o equilíbrio natural da antiga trindade do Pai, da Mãe e do Filho. Em vez
do sentimento de culpa relacionado ao sexo, sabiam por experiência própria que este na verdade era a
porta de entrada para se chegar a Deus. Em vez de sacerdotes para lhes dizer da condição de suas almas,
encontravam sua própria salvação pela gnose direta ou conhecimento do divino. Tudo isso foi punido
com a morte durante grande parte dos últimos dois mil anos, e era o que pregavam as tradições secretas
do Batista e da Madalena. Não admira que tivessem de ser mantidas em segredo.
A segunda razão para o apelo contínuo dessas tradições está em que os hereges também mantiveram o
conhecimento vivo. É muito fácil para nós hoje em dia subestimar o imenso poder que, em épocas
passadas, o saber propiciava àqueles que o possuíam: a invenção da imprensa causou furor, e mesmo a
capacidade de ler e escrever - especialmente entre as mulheres era rara e freqüentemente considerada
com grande suspeita pela Igreja. Contudo, essa tradição secreta encorajou ativamente a sede de
conhecimento mesmo entre as mulheres: homens e mulheres alquimistas trabalhavam longas horas atrás
de portas fechadas para descobrir os grandes segredos que cruzavam as fronteiras da magia, do sexo e
da ciência - e, ao que parece, muitas vezes os alcançaram.
A linhagem ininterrupta dessa tradição secreta inclui os construtores das pirâmides, talvez até aqueles
que levantaram a Esfinge, aqueles que construíram de acordo com os princípios da geometria sagrada e
cujos segredos encontraram expressão na arrojada beleza das grandes catedrais góticas. Estes foram os
criadores da civilização, a qual preservaram através da tradição secreta. (Com certeza não é
coincidência a crença de que Osíris dera à humanidade o conhecimento necessário para o
desenvolvimento da cultura e da civilização.) E, como revelam as obras recentes de Robert Bauval e
Graham Hancock, os antigos egípcios possuíam um conhecimento científico que estava além até
mesmo de nossa própria época. Uma parte inextricável dessa linhagem de cientistas hereges foram os
hermetistas da Renascença; sua exaltação de Sofia, a busca do conhecimento e a crença na divina
natureza do homem se desenvolveram originalmente das mesmas raízes que o gnosticismo.
Alquimia, hermetismo e gnosticismo, todos inevitavelmente remontavam à Alexandria da época de
Jesus, onde havia fermentado uma extraordinária mistura de idéias. Assim, descobrimos que as mesmas
idéias permeiam o Pistis Sophia, o Corpus Hermeticum de Hermes Trismegisto, o que resta das obras
de Simão Mago e os textos sagrados dos mandianitas.
Como vimos, Jesus estava explicitamente vinculado com a magia do Egito, e o Batista e seus
sucessores, Simão Mago e Dositheus, também foram citados como "graduados" nas escolas de
ocultismo de Alexandria. E todas as tradições esotéricas do Ocidente têm a mesma origem.
Seria um erro, entretanto, pensar que o conhecimento que os templários ou os hermetistas buscavam era
simplesmente o que hoje chamaríamos de filosofia, ou mesmo ciência. É verdade que essas disciplinas
faziam parte do que eles buscavam, mas há uma outra dimensão de suas tradições secretas, uma
dimensão que seria errado omitir. Subjacente a todos os empreendimentos arquitetônicos, científicos e
culturais dos heréticos estava a busca apaixonada pelo poder da magia. A importância que isso tinha
para eles estaria de alguma forma relacionada com os boatos de que Jesus "aprisionara a alma" de João
utilizando magia? Talvez seja significativo que os templários, cuja reverência pelo Batista não era
superada por nenhuma outra, fossem acusados de adorar uma cabeça decapitada em seus rituais mais
secretos.
A questão da validade e efetividade (ou não) do cerimonial da magia está fora do âmbito deste livro: o
que importa é aquilo em que outros acreditaram durante séculos, e que papel teve isso em suas
motivações, suas conspirações e nos planos que colocavam em ação.
O ocultismo foi a verdadeira força motriz por trás de muitos pensadores que pareciam ser
"racionalistas" - como Leonardo da Vinci e Sir Isaac Newton - e por trás do círculo íntimo de
organizações como a dos templários, de algumas facções da maçonaria e do Monastério de Sion. E essa
longa linhagem de magos secretos, os magi, pode muito bem incluir o Batista e Jesus. .
Uma das menos conhecidas histórias do Graal tem, como objeto da busca, a cabeça decapitada de um
homem barbudo em uma bandeja. Seria uma referência à cabeça de João, ao estranho poder mágico que
ela supostamente possuía e concederia a quem a encontrasse? Mais uma vez, é muito fácil entregar-se
ao ceticismo característico do final do século XX. O importante é que, de algum modo, a cabeça de
João era considerada não apenas sagrada como também mágica.
Os celtas também tinham uma tradição de cabeças enfeitiçadas, e o templo de Abydos, dedicado a
Osíris, guardava uma cabeça decapitada que, segundo se acreditava, tinha o poder de fazer profecias.
Em um outro mito relacionado, a cabeça de outro deus morto-e-ressurrecto, Orfeu, foi arrastada pelo
mar até Lesbos, onde começou a predizer o futuro. (E será apenas coincidência que um dos filmes mais
enigmáticos e surreais de Jean Cocteau tenha sido Orpheé?)
Leonardo retratou um "Jesus" decapitado em seu Sudário de Turim. Em um primeiro momento
pensamos que não passava de um artifício visual para transmitir a idéia de que, na opinião do herético
Leonardo, devoto de João, aquele que fora decapitado era (moral e espiritualmente) "superior" àquele
que fora crucificado. Com certeza a linha demarcatória entre a cabeça e o corpo do "homem do sudário"
é proposital, mas Leonardo poderia estar sugerindo alguma outra coisa. Talvez fosse uma referência à
idéia de que Jesus possuía a cabeça de João, e que de algum modo a tinha absorvido, tornando-se, nas
palavras de Morton Smith, "Jesus-João". Lembremos que, no cartaz do século XIX do Salon de la Rose
+ Croix, Leonardo é retratado como o Guardião do Graal.
Vimos que, na obra de Leonardo, o dedo em riste simboliza o Batista: João está fazendo esse gesto na
última pintura do mestre, e em sua escultura de João em Florença. Isso não é tão incomum, pois outros
artistas o retrataram dessa forma, mas nas obras de Leonardo tal gesto só é usado, mesmo em outras
figuras, além de João, quando se trata claramente de um modo de marcar a figura do Batista.A figura
em A adoração dos reis magos que está de pé ao lado das raízes da alfarrobeira (que tradicionalmente
simboliza João) aponta seu dedo indicador na direção da Virgem e da criança; Isabel, mãe de João, faz
esse gesto bem na frente do rosto da Virgem no afresco A Virgem e o menino com Santa Ana, e o
discípulo que de modo tão rude encara Jesus na Última Ceia perfura o ar com seu indicador, sem deixar
a menor dúvida do que estava querendo dizer. E embora possa estar dizendo, com efeito, "Os
seguidores de João não se esquecem", esse motivo repetido também pode ser uma referência a uma
relíquia real - o dedo de João, que se acreditava ser uma das mais preciosas relíquias dos templários.
(No quadro La Peste d'Azoth, de Nicolas Poussin, uma estátua gigante de um homem perdeu a mão e
sua cabeça foi decapitada. Mas o dedo indicador da mão cortada é mostrado especificamente fazendo o
gesto de "João".)
Durante esta investigação ouvimos um suposto templário afirmar: "aquele que possui a cabeça de João
Batista governa o mundo". A princípio consideramos tal afirmação uma grande tolice ou no máximo
uma espécie de metáfora. Não se deve esquecer, contudo, que determinados objetos, ao mesmo tempo
míticos e reais, sempre exerceram um tremendo poder sobre os corações e as mentes dos homens - entre
eles a "Cruz Verdadeira", o Santo Sudário, o Graal e, é claro, a Arca da Aliança. Todos esses
legendários objetos estão imbuídos de uma mística curiosa, como se eles próprios fossem portas onde
os mundos humano e divino se encontram, objetos sólidos e reais que existem em duas realidades ao
mesmo tempo. Mas se artefatos como o Graal têm poder mágico, como acreditam alguns, imagine então
quanto poder não terão os restos corporais de alguém que, supostamente, incorporava a energia
sobrenatural e possuía conhecimentos ocultos.
Vimos que os restos de Madalena são de suprema importância para os da tradição secreta, e pode ser
que também se atribua a eles algum poder mágico verdadeiro. De qualquer forma, a ossada de Maria
parece ser objeto de grande veneração e, assim como a cabeça de João, não resta dúvida de que
funcionavam como um totem por trás do qual os hereges se reuniam. Aceitando-se ou não o conceito do
poder mágico, estar diante da cabeça de João e da ossada de Madalena provocaria um forte impacto nas
pessoas ligadas à tradição secreta: seria um momento de intensa carga emocional, inclusive pela idéia
de que ali, juntos, estariam os restos mortais de dois seres humanos que foram tratados com impiedosa e
calculada injustiça por vários séculos, e em nome dos quais padeceram "hereges" sem conta.
A terceira razão para o apelo duradouro da tradição secreta é a certeza moral que ela própria gera em si
mesma: os "hereges" acreditam estar certos e que a Igreja estabelecida está errada. Mas não estão
apenas mantendo viva uma outra religião em uma cultura "estrangeira". Mantêm viva o que acreditam
ser a chama sagrada das origens e propósitos verdadeiros do "cristianismo". Entretanto, esse senso de
retidão, quando estão diante do que para eles é a "heresia" da Igreja cristã, só serve para explicar por
que a tradição teve tanta influência no passado. Em nossa época, na qual há uma tolerância religiosa
muito maior, por que essa tradição deveria manter-se secreta?
Começamos esta investigação examinando o atual Monastério de Sion e suas atividades correntes.
Qualquer que seja realmente o propósito dessa organização, Pierre Plantard de Saint-Clair indicou que
ela tem um programa definido, cuja intenção é operar determinadas mudanças concretas no mundo
todo, embora sua natureza precisa seja apenas objeto de especulação.
Qualquer que seja o grande plano do Monastério, parece estar relacionado com a heresia que revelamos.
Na verdade, ocultas nos Dossiês secretos encontram-se certas declarações inequívocas com respeito ao
Monastério ter sido responsável, ao longo da história, por liderar a tradição secreta. Essas declarações,
que aludem direta ou indiretamente ao Monastério, incluem:" [Eles são] os patrocinadores de todas as
heresias...", "[estão] por trás de todas as heresias, passando pelos cátaros e templários até a
maçonaria..." , "agitadores secretos contra a Igreja...". Em outro documento do Monastério, Le cercle
d'Ulysse (O círculo de Ulisses), publicado em 1977, sob autoria de Jean Delaude, lêem-se as agourentas
palavras:

Qual é o plano do Monastério de Sion? Não sei, mas ele representa um poder capaz de se sobrepor
ao Vaticano nos dias que virão.

E, como já vimos anteriormente, a obra inspirada no Monastério, Rennes-le-Château: capitale secrete de


l'histoire de France, ao discutir as conexões do Monastério com a "Igreja de João", refere-se a
acontecimentos que irão "virar a cristandade de cabeça para baixo".
No início desta investigação consideramos a possibilidade de que o Monastério sofria de uma espécie
de ilusão coletiva de grandeza, e, como muitos outros, achávamos difícil acreditar na existência de um
segredo zelosamente guardado que teria o poder de ameaçar uma grande e bem estabelecida
organização como é a Igreja de Roma. Agora, após todas as nossas pesquisas, chegamos à conclusão de
que a agenda do Monastério - qualquer que seja ela - deve no mínimo ser levada a sério.
De fato, a idéia de um corpo organizado que jurou derrubar a Igreja não é nova. Por exemplo, no século
XVIII, quando começam a aparecer sociedades secretas que afirmavam ser descendentes dos
templários, a paranóia instalou-se tanto na Igreja como em muitos estados europeus. A França em
particular passou por momentos difíceis sob a sombra da vingança de Jacques de Molay - estariam os
templários voltando, literalmente, para se vingar? Houve até mesmo boatos de que os cavaleiros
estavam por trás da Revolução Francesa.
Entretanto, existem problemas nesse enredo da vingança dos templários. Nenhuma organização
inteligente alimentaria a chama do ódio ao longo dos séculos apenas para matar um futuro monarca da
França e um papa que nada tiveram a ver com a supressão dos templários ocorrida séculos antes. Essa
idéia afirma que a supressão dos templários é a razão de seu ódio à Igreja - mas e se eles a odiassem
desde o início? (E de acordo com o Levitikon os templários eram contra a Igreja de Roma desde seu
princípio, e pelo modo como foram suprimidos.)
Nossa pesquisa demonstrou que os templários não apenas acreditavam estar de posse do conhecimento
secreto sobre o cristianismo, como também se consideravam seus verdadeiros guardiães. E é preciso
lembrar que os templários e o Monastério de Sion sempre estiveram inextricavelmente entrelaçados; é
muito provável que os programas ou planos de um também fossem os do outro. E no Monastério de
Sion encontramos uma organização na qual se unem as duas correntes heréticas - a da Madalena e a do
Batista.
Pode ser que o Monastério e os templários estejam planejando apresentar a uma cristandade perplexa
algum tipo de prova de suas antigas crenças, um fundamento tangível para sua tradição joanina e de
veneração às deusas.
Mesmo levando em conta sua evidente obsessão com a busca de relíquias, é difícil imaginar o que
poderia ser essa prova concreta, ou como algum objeto poderia representar uma ameaça para a Igreja.
Entretanto, como já vimos no caso do suposto Santo Sudário, relíquias religiosas de fato têm uma
extraordinária e poderosa influência sobre corações e mentes. Na verdade, qualquer coisa supostamente
ligada aos personagens centrais do drama cristão ganha uma ressonância singularmente mágica mesmo
as " anti-relíquias " , aquelas ossadas encontradas em Jerusalém, imediatamente tornaram-se foco de
intenso debate e de uma generalizada indagação entre os cristãos. É instrutivo imaginar como teria
crescido o interesse público se as ossadas tivessem sido mais assertivamente vinculadas a Jesus e sua
família. Isso com certeza teria provocado uma histeria coletiva entre os cristãos, que teriam se sentido
traídos, desolados e espiritualmente desestabilizados.
As pessoas adoram uma busca - procurar por algo que seja esquivo, mas que esteja quase ao alcance das
mãos. Buscar um Santo Graal ou uma Arca da Aliança sempre fugidios parece ser algo programado
dentro de nós, como o entusiasmo revelado por Graham Hancock em The Sign and the Seal. Contudo,
bem no fundo sabemos que esses objetos, embora possam realmente existir em algum lugar - o que é
uma idéia empolgante -, são apenas símbolos, foco ou incorporação de alguns segredos antigos. Embora
o Monastério de Sion e seus aliados possam estar prestes a revelar alguma justificativa concreta para
suas crenças, a história por si só, como esperamos ter demonstrado, dá pistas sobre a força dessa
justificativa.
Claro que tais planos são do maior interesse, mas já não são mais necessários para que se entenda a
suposta ameaça à Igreja - e, por conseqüência, às raízes de toda a cultura ocidental.Tanta coisa baseia-se
nos pressupostos sobre a história cristã, e tanta e intensa emoção pessoal é investida em conceitos como
o de um Jesus Cristo que era o Filho de Deus e da Virgem Maria, o humilde carpinteiro que morreu por
nossos pecados e depois ressuscitou. Sua vida de humildade, tolerância e sofrimento tornaram-se a
imagem da perfeição humana e modelo espiritual para milhões de pessoas. Jesus Cristo, sentado à
direita do Pai, olha pelos pobres e oprimidos e dá-lhes conforto - pois ele não disse "Vinde a mim os
que sofrem, e eu os consolarei"?
De fato, embora seja bastante provável que Jesus tenha dito tais palavras, simplesmente não é verdade
que fossem originalmente suas. Pois, como vimos, essas, e provavelmente muitas outras do mesmo tipo,
eram palavras atribuídas à Chreste Isis: Bondosa Ísis, a suprema deusa mãe dos egípcios. Para Jesus,
assim como para qualquer outro sacerdote de Ísis, essas palavras deviam ser bem conhecidas.

Como vimos, muitos cristãos contemporâneos estão inacreditavelmente desinformados sobre os


desenvolvimentos alcançados nos estudos da Bíblia. Para muitos, idéias como a de Jesus ser um mago
egípcio, ou a rivalidade entre Jesus e João Batista, parecem pouco menos do que blasfêmia - ainda que
não sejam invencionices de escritores de ficção ou de inimigos de sua religião, mas conclusões de
respeitados estudiosos, alguns deles cristãos. E foi há cerca de um século que os elementos pagãos da
história de Jesus foram reconhecidos pela primeira vez.
Quando começamos a estudar o assunto, ficamos impressionados com a quantidade de questões que os
pesquisadores levantaram sobre a tradicional história cristã, apresentando argumentos detalhados e
meticulosamente arrazoados em favor de uma versão praticamente irreconhecível de Jesus e seu
movimento. Ficamos particularmente espantados ao descobrir que já havia inúmeras evidências
sugerindo que Jesus não era judeu e que, na verdade, era de religião egípcia. No entanto, é tão forte
nossa suposição cultural de que Jesus era judeu, que mesmo aqueles que recolheram tais evidências não
foram capazes de dar o passo lógico final e concluir que o peso desse material realmente revela que
Jesus não era de religião judaica, mas sim egípcia.
Muitos estudiosos contribuíram fortemente para a criação de uma imagem nova e radicalmente
diferente de Jesus e seu movimento. Desmond Stewart argumentou de modo soberbo em seu livro The
Foreigner que Jesus fora influenciado pelas escolas de mistério egípcias; novamente, porém, Stewart vê
a conexão egípcia apenas como uma modificação do judaísmo essencial de Jesus. E o professor Burton
L. Mack, embora argumente que Jesus não era de religião judaica, também rejeita o material das escolas
de mistério presente nos Evangelhos com base em que este fora acrescentado posteriormente uma
suposição que não encontra qualquer apoio nas pesquisas realizadas.
Mesmo o professor Karl W Luckert diz:

Esse nascimento angustiado [do cristianismo]... foi contudo verdadeiro trabalho de parto da mãe do
cristianismo, a antiga religião egípcia que expirava. Nossa velha mãe egípcia morreu nos séculos
durante os quais seu vigoroso rebento surgiu e começou a prosperar no mundo mediterrâneo. Suas dores
de parto foram sua agonia da morte.
Ao longo de sua vida de quase dois mil anos, essa filha cristã nascida da Mãe Egito tem permanecido
relativamente bem informada sobre sua antiga tradição paterna... [mas] até hoje nada se falou sobre a
identidade de sua falecida mãe religiosa...

Mesmo tendo defendido de modo magnífico o argumento em favor das raízes egípcias do cristianismo,
Luckert ainda se desvia da questão. Para ele a influência do Egito foi indireta, um eco distante das
próprias origens do judaísmo no Egito. Se Jesus, porém, ensinava material das escolas de mistério
egípcias, com certeza faz mais sentido que ele o tivesse aprendido em primeira mão, necessitando
apenas cruzar a fronteira, em vez de pinçá-lo nas fragmentadas e imprecisas alusões do Antigo
Testamento.
De todas essas autoridades, somente uma efetivamente dá o último e ousado passo lógico. Morton
Smith, em sua obra Jesus the Magician, declara inequivocamente que as próprias crenças e ações de
Jesus eram de fonte egípcia - e, significativamente, ele baseou sua assertiva no material extraído de
certos textos de magia do Egito.
A obra de Morton Smith, embora completamente ignorada por muitos comentadores da Bíblia, foi
acolhida com cautelosa aprovação por alguns. Contudo, a visão acadêmica não forma, conforme
averiguamos durante nossa investigação, de modo algum um quadro completo. Ao longo dos séculos,
muitos grupos compartilharam uma crença secreta no passado egípcio de Jesus e de outros personagens
do drama do primeiro século, e esses "hereges" também nos forneceram muitas outras percepções sobre
as origens do cristianismo. É interessante que essas idéias estejam agora sendo corroboradas pelos
estudos modernos do Novo Testamento.
Se o cristianismo foi realmente um produto da religião egípcia, e não a missão pessoal do Filho de
Deus, ou mesmo um desenvolvimento radical de uma forma de judaísmo, então as implicações para
nossa cultura são tão básicas e de alcance tão amplo que aqui só podem ser esboçadas.
Por exemplo, ao voltar as costas para suas raízes egípcias a Igreja perdeu a noção fundamental da
igualdade arquetípica entre os sexos, pois Ísis sempre foi contrabalançada por seu consorte Osíris, e
vice-versa. Em princípio, esse conceito no mínimo encorajava a que se tratasse homens e mulheres com
o igual e devido respeito, pois Osíris representava todos os homens e Ísis, todas as mulheres. Mesmo
em nossa era secular ainda sofremos as conseqüências dessa negação do ideal egípcio: pois embora o
sexismo não seja um fenômeno exclusivo do Ocidente, suas manifestações diretas em nossa cultura
devem muito aos ensinamentos da Igreja sobre o lugar da mulher.
Além disso, ao negar seu passado egípcio, a Igreja também rejeitou, com freqüência de forma
especialmente virulenta, todo o conceito do sexo como sacramento. Ao colocar um celibatário Filho de
Deus à frente de um patriarcado misógino, ela perverteu a mensagem "cristã" original. Pois os deuses
que o próprio Jesus venerava eram parceiros sexuais, e essa sexualidade era objeto de celebração e
emulação entre seus adoradores - ainda mais significativo, os egípcios não eram tidos como um povo
particularmente licencioso, mas eram sim notáveis por sua espiritualidade. As conseqüências para nossa
cultura da atitude da Igreja em relação ao sexo e ao amor sexual para nossa cultura foram terríveis: tal
repressão tem sido responsável não apenas pelo tormento individual e por uma desnecessária busca de
salvação da própria alma, como também por crimes sem conta contra mulheres e crianças, muitos dos
quais as autoridades preferiram ignorar.
Existem outras colheitas amargas desse grande erro, de uma Igreja cristã que negou suas verdadeiras
raízes.Por séculos a Igreja perpetrou atrocidades contra os judeus, com base na crença de que o
cristianismo e o judaísmo eram rivais. A Igreja considerava os judeus blasfemos por negarem o
messiado de Jesus, mas se Jesus não era judeu, então há ainda menos razões para os horrores cometidos
contra milhões de judeus inocentes. (A outra acusação principal utilizada para justificar os ataques aos
judeus - a de que eles mataram Jesus - já há muito foi reconhecida como uma falácia, simplesmente
porque foram os romanos que o executaram.)
Há ainda um outro grupo que atraiu a hostilidade da Igreja ao longo dos anos. Em seu fervor de
estabelecer-se como a única religião, o cristianismo pôs-se em permanente estado de guerra contra os
pagãos. Templos foram destruídos e pessoas torturadas e mortas, da Islândia à América do Sul, da
Irlanda ao Egito, em nome de Jesus Cristo. Contudo, se estivermos certos, se o pr6prio Jesus era pagão,
então esse fervor cristão não apenas negou a humanidade comum, mas também os princípios de seu
próprio fundador. Essa questão ainda é relevante, pois os pagãos contemporâneos continuam a ser
atormentados pelos cristãos em nossa sociedade atual.
Toda a nossa cultura é inquestionavelmente judaico-cristã, mas, e se estivermos certos e ela devesse ser,
de fato, egípcio-cristã? Claro que isso pode ser apenas uma hipótese, mas talvez fosse mais interessante
basear nosso ideal religioso na magia e nos mistérios das pirâmides do que no irado Jeová. Com
certeza, a religião que tem como trindade o Pai, a Mãe e o Filho exerceria uma poderosa atração e um
profundo sentimento de conforto.
Seguimos o curso contínuo da crença "herética" da Europa, a corrente secreta do mistério da deusa, da
alquimia sexual e dos segredos que envolvem João Batista. Os hereges, assim acreditamos, guardam as
chaves da verdade sobre a histórica Igreja de Roma. Apresentamos suas razões nestas páginas, passo a
passo, à medida que nós mesmos fazíamos as descobertas e víamos o quadro geral surgindo do caos de
informações - e, na verdade, de desinformações.
Acreditamos que, no geral, os hereges têm reivindicações que merecem ser ouvidas. Com certeza, as
figuras históricas de João Batista e Maria Madalena sofreram uma grave injustiça, e o momento de
acertar as contas já passou há muito tempo. Se o mundo ocidental ainda tem esperança de adentrar o
novo milênio livre da repressão e da culpa, então precisamos respeitar o Princípio Feminino e procurar
compreender o amplo conceito da alquimia sexual.
Contudo, se apenas uma única lição puder ser absorvida de toda a jornada que empreendemos nesta
investigação e das descobertas que realizamos, não é a de que os hereges estão certos e a Igreja errada.
É de que há a necessidade, não de mais segredos zelosamente guardados e guerras santas, mas de
tolerância e abertura para novas idéias, livres de preconceitos. Sem limites para a imaginação, para o
intelecto, ou para o espírito, talvez possamos empunhar e levar adiante a tocha que foi acesa por
luminares como Giordano Bruno, Henrique Cornélio Agripa e Leonardo da Vinci. E talvez até mesmo
cheguemos a apreender totalmente este antigo adágio herético: Não sabeis que sois deuses?

APÊNDICE

Maçônicos Ocultistas da Europa Continental


Rastrear a difusão da maçonaria desde as Ilhas Britânicas até a Europa Continental, e seu
desenvolvimento na Europa, é um processo complicado, que é dificultado tanto pelo desejo da "corrente
principal" da maçonaria contemporânea de dissociar-se de suas origens esotéricas como pela má
vontade dos historiadores de levar o assunto a sério.
A primeira loja maçônica oficialmente reconhecida na França estabeleceu-se na década de 1720, sob o
controle da Grande Loja da Inglaterra. Entretanto, nessa época já havia lojas na França, cujas origens
remontavam aos partidários (predominantemente) escoceses de Charles I, que fugiu para a França por
volta de 1650. A história da maçonaria na França, portanto, seguiu duas correntes distintas: a que
descendia das lojas inglesas (que formaram sua própria Grande Loja em Paris, em 1735) e a que
descendia das lojas escocesas, com períodos de mútua hostilidade alternados com tentativas de
reconciliação. A fundação da Grande Loja da França, em 1735, representou uma ruptura com a Grande
Loja inglesa; a razão do atrito foram precisamente as objeções de Londres a que "suas" lojas tivessem
boas relações com as lojas escocesas.
A maçonaria escocesa parece ter estado mais próxima do caráter original da maçonaria como uma
sociedade secreta ocultista, embora na Inglaterra ela tenha se transformado em uma associação de ajuda
mútua e para o progresso, ou, na melhor das hipóteses, em uma sociedade filosófica. Com certeza, a
maçonaria escocesa sempre teve um caráter marcadamente ocultista.
A criação da Estrita Observância Templária, pelo barão von Hund, no final dos anos 1740, representou
um novo desenvolvimento dentro da maçonaria escocesa. Von Hund afirmava que sua autoridade
derivava dos partidários do Stuart exilado em Paris, um círculo centrado em Charles Edward Stuart
(1720-1788), o "Jovem Pretendente" . Se é verdade, e uma pesquisa recente tende a apoiar tais
afirmações, seu sistema teria derivado dos mesmos círculos do já existente sistema escocês.

Embora von Hund tenha sido iniciado em Paris e começado a promover seu novo sistema na França, a
Estrita Observância Templária teve seu maior sucesso inicial na terra natal do barão, a Alemanha, onde
era originalmente conhecida como Irmandade de São João Batista. (O título "Estrita Observância
Templária" só foi adotado em 1764; o sistema anterior era chamado simplesmente de "Maçonaria
Purificada".) Von Hund criou a primeira loja na Alemanha, "A Loja dos Três Pilares", em Kittlitz, em
24 de junho (dia de João Batista) de 1751. As lojas alemãs tinham estreitas ligações com as sociedades
rosa-cruzes, particularmente com a Ordem da Dourada e Rosa Cruz (ver Capítulo Seis).
Na França, uma entidade rival da Grande Loja, a Grande Oriente, foi criada em 1773. O ponto principal
do desacordo entre os dois sistemas era o envolvimento das mulheres na maçonaria - a Grande Oriente
incluía lojas constituídas só por mulheres. Entretanto, a Grande Oriente mergulhou em grande
desordem por causa do que se considerou como uma tentativa da Estrita Observância Templária de
assumir o controle. A resistência devia-se, em parte, ao nacionalismo, pois se tratava de um sistema
alemão, estrangeiro. Em conseqüência, um novo sistema "escocês", o Antigo e Aceito Ritual Escocês
(que mais tarde tornar-se-ia muito popular nos EUA), foi criado, em 1804. (para confundir as coisas
ainda mais, há hoje uma Grande Loja Nacional da França, separada da Grande Loja da França, que,
embora represente uma minoria de lojas, é aliada da Grande Loja inglesa.)
Martines de Pasqually (1727-1779) fundou outra forma de maçonaria oculta, a Ordem dos Eleitos
Cohen, em 1761. Muito pouco se sabe sobre o passado de Pasqually, embora ele fosse provavelmente
espanhol Alguns pesquisadores acreditam que Pasqually tinha ligações com a Ordem Dominicana - a
antiga Inquisição - e que tinha acesso ao material mágico e herético existente nos arquivos da Ordem.
Ele obteve para a Grande Loja da França uma licença concedida a seu pai por Charles Edward Stuart, o
que o liga à maçonaria escocesa, que estava por trás de von Hund.
O secretário de Pasqually era Louis Claude de Saint-Martin, um influente e importante filósofo do
ocultismo, que ficou conhecido como o "Filósofo Desconhecido". Saint-Martin formou um novo
sistema da maçonaria escocesa, o Ritual Escocês Reformado, e este uniu-se com o ramo francês da
Estrita Observância Templária em 1778, na Convenção de Lyon, uma reunião dos maçons do ritual
escocês que também incluiu representantes da maçonaria suíça. A principal força motriz por trás do
encontro de Lyon foi Jean-Baptiste Willermoz (1730-1824), que também era membro dos Eleitos
Cohen. No encontro, a Estrita Observância Templária de von Hund e o Ritual Escocês Reformado de
Saint-Martin uniram-se sob o nome de Ritual Escocês Purificado. (A filosofia de Saint-Martin - o
martinismo - foi de grande influência no ressurgimento do ocultismo na França no final do século XIX,
especialmente nos grupos dos "rosa-cruzes" discutidos no Capítulo Sete.As ligações entre as ordens
martinistas e o Ritual Escocês Purificado permanecem estreitas até hoje.)
A Estrita Observância Templária foi abolida na Convenção de Wt1helmsbad, em 1782, embora o
sistema do Ritual Escocês Purificado (que era essencialmente a Estrita Observância sob outro nome,
com a adição de certas crenças martinistas) fosse reconhecido como legítimo.
A Estrita Observância Templária também sobreviveu através de sua influência sobre outra forma de
maçonaria "oculta", os Rituais Egípcios, que foram criados pelo conde Cagliostro (ver Capítulo
Sete).Após sua iniciação em uma loja da Estrita Observância (Esperance 369) em Londres, em 1777,
Cagliostro desenvolveu seu próprio sistema, que incorporava a alquimia e outras idéias que ele
aprendera dos grupos ocultistas alemães. Ele criou a "loja mãe" do Ritual Egípcio em Lyon, em 1782. O
traço distintivo de seu sistema, afora o uso do antigo simbolismo egípcio, era a igualdade concedida às
mulheres.
A data da fundação desse sistema também é significativa. Os céticos atribuem a fundação da maçonaria
do Ritual Egípcio à moda européia pelas coisas do Egito que se seguiu à campanha de Napoleão nesse
país (durante a qual a famosa Pedra da Roseta foi descoberta). Entretanto, isso se deu nos anos de 1798-
99, após a instituição do sistema maçônico.
O Ritual de Misraim foi criado em Veneza em 1788, sob licença dada por Cagliostro. Foi levado para a
França em 1810 por três irmãos da Provença Michael, Joseph e Marcus Bedarride.
Eles estabeleceram uma Grande Seção em Paris e negociaram a união com a Grande Oriente. Também
estabeleceram ligações com o Ritual Escocês Purificado, um reconhecimento à origem comum dos dois
sistemas na Estrita Observância Templária. Os quatro grandes graus do Ritual de Misra'im eram
chamados de Arcana Arcanorum.
Outro importante ritual egípcio era o de Mênfis, criado em Montauban, em 1838, por Jacques-Étienne
Marconis de Negre (1795-1865), um antigo membro do Ritual de Misra’im. Esse sistema também tinha
estreitos laços com o Ritual Escocês Purificado.
Em 1899,os rituais de Mênfis e Misra’im foram unidos por Gérard Encausse (Papus), que anteriormente
fundara e liderara a Ordem Martinista (ver Capítulo Sete).
Assim, o Ritual Escocês Purificado, os rituais egípcios e as ordens martinistas formam um grupo
interligado de sociedades, todas com origem na Estrita Observância Templária do barão von Hund - que
por sua vez deriva dos cavaleiros templários da Escócia - e nas lojas rosa-cruzes da Alemanha.

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