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CALVINO DE A a Z
HERMINSTEN COSTA
Ele viveu cinqüenta e quatro anos, dez meses, e dezessete dias, dedicou metade de sua
vida ao sagrado ministério. Ele tinha estatura mediana; a aparência sombria e pálida; os
olhos eram brilhantes até mesmo na morte, expressando a agudez da sua compreensão.
Theodore Beza
Calvino, falando das diversas calúnias que levantavam contra ele, partindo, inclusive, de
falsos irmãos, diz:
Só porque afirmo e mantenho que o mundo é dirigido e governado pela secreta
providência de Deus, uma multidão de homens presunçosos se ergue contra mim
alegando que apresento como sendo o autor do pecado. [...] Outros tudo fazem
para destruir o eterno propósito divino da predestinação, pela qual Deus
distingue entre réprobos e os eleitos.
O que nos chama a atenção na aproximação bíblica de Calvino é, primeiramente, o seu
amplo e em geral preciso conhecimento dos clássicos da exegese bíblica, os quais cita
com abundância, especialmente Crisóstomo, Agostinho e Bernardo de Claraval. Outro
aspecto é o domínio de algumas das principais obras dos teólogos protestantes
contemporâneos, tais como Melanchton a quem considerava um homem de
incomparável conhecimento nos mais elevados ramos da literatura, profunda piedade e
outros dons e que por isso merece ser recordado por todas épocas. Bucer e bullinger.
Contudo o mais fascinante é o fato de que ele mesmo se valendo dos clássicos o que,
aliás, nunca escondeu, conseguiu seguir um caminho por vezes diferente, buscando na
própria Escritura o sentido específico do texto: a Escritura interpretando-se a si mesma.
Escapar de um clichê histórico-teológico é especialmente difícil. Para que possamos ter
uma visão mais clara da perspectiva de Calvino a respeito das Escrituras, precisamos
refletir um pouco sobre a sua forma de aproximação da Bíblia; assim, poderemos
entender a sua visão hermenêutica e exegética. Comecemos do início.
A FORMAÇÃO DE CALVINO
A CONERSÃO DE CALVINO
Podemos dizer, no sentido mais pleno da palavra, que Calvino era um genuíno
humanista, estando profundamente interessado pelo ser humano. Ainda que de
passagem, examinemos alguns pontos que ilustram a nossa tese.
A primeira obra escrita por Calvino foi publicada com seu próprios recursos: a edição
comentada do livro de Sêneca, De clementia, em 4 de abril de 1532 – “o principal
monumento dos conhecimentos humanísticos do jovem Calvino”, diz McNeill; “sólido
trabalho de um humanista muito jovem e já brilhante”, comenta Boisset; um “erudito de
primeira linha” acrescenta Parker. Nesse trabalho – do qual uma cópia foi enviada a
Erasmo -, o então jovem autor de 23 anos já revelava seu gosto literário, erudição,
amplo conhecimento da literatura grega e romana, uma perspectiva sóbria e um estilo
próprio de análise – lapidado dentro de uma análise filológica e literária da melhor
qualidade – que se tornaria uma de suas marcas nos comentários bíblicos que redigiria.
No trabalho pioneiro, Calvino parece desafiar o soberano, quando define o tirano como
aquele que “governa contra a vontade de seu povo”, revelando, ainda que
embrionariamente, a sua ousadia, que tão bem caracterizará sua vida como pregador,
escritor e administrador. Essa perspectiva humanista será o fator determinante na sua
aproximação pedagógica.
O humanismo de Calvino é visível em sua formação, escritos e atitudes. Ele apoiou o
humanista Guillaume Budé, que era chamado de prodígio da França e que, ao lado de
Erasmo e Juan Luis Vives, compunha o considerado triunvirato do humanismo europeu.
Budé, como historiador, filósofo e helenista, contribuiu para o reavivamento do
interesse pela língua e literatura grega e colaborou na introdução do humanismo na
França.
Calvino também dedicou o seu Comentário da primeira epístola aos tessalonicenses,
publicado em Genebra, em 17 de fevereiro de 1550, ao seu mestre de gramática e
retórica, o conhecido humanista Maturinus Corderius, que foi fundamental na formação
do estilo de Calvino, e a quem este chamou de “homem de eminente piedade e
erudição”, reconhecendo a sua dívida para com ele. Posteriormente, Corderius,
convertido ao protestantismo, recebeu o convite de Calvino para lecionar na Academia
de Genebra e o aceitou, tornando-se durante algum tempo diretor daquela instituição e
permanecendo ali até a sua morte, em 1564, quatro meses depois da morte de Calvino.
Corderius, além de brilhante e laborioso professor, era conhecido por sua erudição,
piedade e integridade.
Calvino dedicou o seu comentário de II Coríntios, de 1 de agosto de 1546, a outro
humanista de influência luterana que lhe ministrara aula de grego – e também a Beza =
Melchior Wolmar, o qual, como já fizemos menção, possivelmente pode ter despertado
em seus alunos o interesse pela reforma. Calvino diz que Wolmar era “o mais
distinguido dos mestres” de grego.
O humanismo de Calvino, no entanto, não deve ser confundido com o humanismo
secular, que colocava o homem com centro de todas as coisas. Calvino rejeitava esse
tipo de humanismo. Na sua obra magna, a instituição da religião cristã, ele expressa a
sua concepção humanista, que consiste em reconhecer a grandeza do homem como
criatura de Deus, a quem deve adorar e glorificar. Em outro lugar, Calvino escreve: “[e
notório que jamais chega o homem ao puro conhecimento de si mesmo até que haja
antes contemplado a face Deus e da visão dEle desça a examinar-se a sim próprio”.
Como a bíblia é o registro inerrante da palavra de Deus, podemos dizer que, sem as
Escrituras, jamais teremos um conhecimento verdadeiro de nós mesmos, do mundo e do
próprio Deus.
Calvino tinha uma visão ampla da cultura, entendendo que Deus é Senhor de todas as
coisas; por isso, toda verdade é verdade de Deus. Essa perspectiva aparava-se no
conceito da graça comum ou graça geral de Deus sobre todos os homens. Ele diz:
Visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro,
não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além disso, visto
que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua
glória, tudo quanto pode ser corretamente usado dessa forma?
Por exemplo, em passagem magistral, analisando Gênesis 4.20, destaca o fato de que
mesmo na amaldiçoada descendência de Caim há espaço para a graça de Deus, que
concede ao homem dons para a invenção das artes e de outras coisas úteis para a vida
presente. “Verdadeiramente é maravilhoso que esta raça que tinha caído profundamente
de sua integridade superaria o resto da posteridade de Adão com raros dons”.Entende
que Moisés registrou isso para realçar a graça de Deus que não se tornou vã sobre esses
homens, visto que “havia entre os filhos de Adão homens trabalhadores e habilidosos,
que exerceram sua diligência na invenção e no cultivo da arte”. Por isso, as “artes
liberais e ciências chegaram até nós pelos pagãos. Realmente, somos compelidos a
reconhecer que recebemos deles a astronomia e outras partes da filosofia, a medicina e a
ordem do governo civil”.
Hooykaas resume o humanismo de Calvino: “ele era um humanista talentoso e realista
demais para aceitar que a Queda tivesse levado o homem a uma total depravação no
campo científico”.
Fiel ao seu princípio de que “as escolas teológicas [são] berçários de pastores” Calvino
criou uma academia em Genebra, em 1559 – contando com 600 alunos e aumentando já
no primeiro ano para 900 -, em que lhe coube a educação dos protestantes da língua
francesa, reunindo, em sua maioria, alunos estrangeiros vindos da França, Holanda,
Inglaterra, Alemanha, Itália e de outras cidades da Suíça. Além disso, Genebra se tornou
um grande centro missionário, uma verdadeira escola de missões, porque os foragidos
que lá se instalaram puderam, posteriormente, levar para os seus paises e cidades o
Evangelho ali aprendido. A academia tornou-se grandemente respeitada em toda a
Europa; o grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e considerado em
universidades de países protestantes, como, por exemplo, na Holanda.
O historiador católico Marc Venard comenta que a academia “será daí em diante um
viveiro de pastores para toda a Europa reformada”. A academia contribuiu em grandes
proporções para fazer de Genebra “um dos faróis do Ocidente”, admite Daniel-Rops. A
formação dada em Genebra era intelectual e espiritual; os alunos participavam dos
cultos das quartas-feiras, bem como de todos os três cultos prestados a Deus no
domingo. Um escritor referiu-se a Genebra deste modo: “Deus fez de Genebra Sua
Belém, isto é, Sua casa do pão”.
Calvino insistiu junto aos Conselhos para melhorar as próprias condições do ensino,
bem como os recursos das escolas. Visto que o Estado estava empobrecido, apelou para
doações e legados. Sem dúvida, entre os reformadores, Calvino foi quem mais
amplamente compreendeu a abrangência das implicações do Evangelho, nas diversas
facetas da vida humana, entendendo que:
O evangelho não é uma doutrina da fala, mas de vida. Não se pode assimilá-lo
por meio da razão e da memória, única e exclusivamente, pois só se chega a
compreendê-lo totalmente quando Ele possui toda a alma e penetra no mais
profundo do coração.
Por isso, ele exerceu poderosa influência sobre a Europa e os Estados Unidos. Schaff
chega a dizer que Calvino “de certo modo, pode ser considerado o pai da Nova
Inglaterra e da República americana”.
John Knox, ex-aluno de Genebra, “delineou um sistema nacional de educação que
prometia conduzir a Escócia ao bem-estar espiritual e material”, tendo a Bíblia como
tema principal de estudo e a gratuidade patrocinada pela igreja. Em acordo com suas
idéias, em 1646 o parlamento escocês aprovou a criação de uma escola para cada região,
conforme indicação do presbitério, votando-se verba para salário dos professores.
Houve uma cooperação entre a igreja e o Estado, estando a supervisão das escolas e
professores entregue à igreja. Esse sistema, tão bem sucedido na Escócia, só viria sofrer
alterações significativas no século XIX.
Em epítome, podemos dizer que o humanismo de Calvino era um humanismo
cristocêntrico, caracterizando-se pela compreensão de que o homem encontra a sua
verdadeira essência no conhecimento de Deus. Conhecer a Deus significa ter uma
perspectiva clara de si mesmo; a recíproca também é verdadeira: não há conhecimento
genuíno de Deus sem um conhecimento correto de si mesmo.
A dignidade e a beleza do homem estão em ele ter sido criado à imagem e semelhança
de Deus, podendo, portanto, relacionar-se com seu criador. No homem, a “sua imagem e
glória peculiarmente brilham”. O conhecimento de Deus deve conduzir-nos ao temor e a
reverencia, tendo a Deus como guia e mestre, buscando nele todo o bem.
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