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VIEIRA, Alberto (2004),

Açúcares, meles e aguardente no


quotidiano Madeirense

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (2004), Açúcares, meles e aguardente no quotidiano Madeirense, Funchal, CEHA-
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AÇÚCARES, MELES E AGUARDENTE NO QUOTIDIANO MADEIRENSE

ALBERTO VIEIRA
CEHA(MADEIRA-FUNCHAL)
Avieira@avieira.net

A rota do açúcar, na transmigração do Mediterrâneo para o Atlântico, tem na Madeira a


principal escala. Foi na ilha que a planta se adaptou ao novo ecossistema e deu mostras
da elevada qualidade e rendibilidade. Foi aqui que se definiram os primeiros contornos
desta realidade, que teve plena afirmação nas Antilhas e Brasil. A cana-de-açúcar
iniciou a diáspora atlântica na Madeira e a definitiva conquista da mesa europeia. A
maior disponibilidade de açúcar a preços mais competitivos veio permitir a sua rápida
afirmação na dieta alimentar. Todavia, esta afirmação foi lenta, pois, tal como afirma
Fernand Braudel 1 “não podemos dizer…que a mesa esteja pronta em todo o mundo”.
Na Cristandade Ocidental o açúcar demorou em tornar-se o manjar de todos. Por
muito tempo foi uma raridade, sendo usado, quase sempre como um medicamento. De
Galeno a Hipócrates o açúcar tornou-se num elemento inquestionável na farmacopeia
ocidental, perdendo, é certo, no século dezasseis com o aparecimento das especiarias
orientais. A aplicação farmacológica do açúcar está documentada nas receitas e
despesas dos hospitais das misericórdias e esmolas da coroa em açúcar aos hospitais -
Todos os Santos em Lisboa (1506), Misericórdias do Funchal (1512) e Ponta Delgada
(1515) – e conventos – Guadalupe (1485), Évora (1497), Beja (1500), Aveiro (1502),
Coimbra (1510), Vila do Conde (1519). A tradição da dádiva do açúcar e doces,
peculiar no mundo árabe, conquistou a coroa portuguesa, que cumulou os próximos
com parte significativa do açúcar arrecadado na ilha 2 .
A tradição manteve-se de modo que Proudhon é levado a afirmar que "o açúcar
é toda a farmácia do pobre". Na verdade o açúcar era um suplemento capaz de suprir a
insuficiência calórica. E se tivermos em conta que o principal problema de sociedade do
antigo regime é a desnutrição das populações, resultante da pobreza calórica de dieta
alimentar, teremos a explicação para tais efeitos benéficos do consumo. A alimentação
era pouco variada e, quase só, assente no consumo de pão. A ingestão diária de calorias
era inferior a 2000, quando hoje os padrões médios oscilam entre 3000 a 4000. A isto
ligam-se as crises de subsistência que agravam a realidade.
A ideia do açúcar apenas como medicamento desapareceu rapidamente no
Ocidente. Assim em 1572 Ortelius(Theatrum Orbis Terrarum)3 testemunha que o
produto que havia sido considerado como remédio era então alimento. Por outro lado
Gregos e romanos já o haviam considerado com um condimento alimentar, definindo-o
como sal da Índia, de acordo com a expressão de Dioscorides. A Madeira, a partir de
finais do século XV, com elevada produção e disponibilidade do produto para o
mercado europeu, contribuiu para esta mudança.
Certamente que a mudança mais significativa ocorreu na ilha. A curiosidade, a

1 . Civilização Material, Economia e Capitalismo.Séculos XV-XVIII-As Estruturas do Quotidiano, Lisboa, 1992, p.193.
2. PEREIRA, Fernando Jasmins. O açúcar Madeirense de 1500 a 1537. Produção e preços. Lisboa: Instituto Superior de Ciências
sociais e Politica Ultramarina, [1970?]. Sep. de Estudos políticos e Sociais, Vol. VII, nº' 1, 2 e 3, 1969. BRAGA, Paulo Drumond, "O
açúcar da ilha da Madeira e o mosteiro de Guadalupe", in Islenha, 9, 1991, 43-49. SALGADO, Anastacia, M. e Abílio José, O Açúcar da
Madeira e algumas instituições de assistência na Península e Norte de Africa, durante a 1ª metade do século XV, Lisboa, 1986.
3 . Cf. M Toussaint-Samat, History of Food, Cambridge, 1993, pp.547-605

1
disponibilidade do produto e subprodutos, contribuíram para que se ensaiassem novas
formas de uso, tornando a mesa mais doce. Daí a rica tradição da doçaria conventual na
ilha que depois se espalhou a todo o reino 4 .
O ilhéu não se limitou apenas a produzir o açúcar e a exportá-lo para os
principais mercados europeus, pois sentiu curiosidade em provar esta raridade e
rapidamente se afirmou como um potencial consumidor. A prova disso está no facto de
que o lavrador despendia o açúcar da safra.
A Madeira, como área produtora estava naturalmente envolvida com o seu
consumo de. Os desperdícios da laboração escumas, rescumas, melaço - tinham os habi-
tuais consumidores. O acto de chupar o suco da cana, que muitos de nós terão gravado
na memória, é antigo. Já Giulio Landi 5 , cerca de 1530, refere ser usual entre os
madeirenses que comiam "em jejum canas maduras e frescas e dizem que rejuvenescem
para dar sensualidade ao corpo, para refrescar o fígado, para saciar a sede, e para
branquear os dentes". A isto acresce uma receita das mulheres grávidas, consistente em
"sopas de pão torrado deitado na última cozedura do suco das canas, cobrindo depois
com gemas de ovo", considerado como meio para "recuperar as forças perdidas", para
além de confortar o estômago e intestinos e dar boa disposição ao ventre.
Sem dúvida que o maior consumo do açúcar não foi nos fármacos mas sim nos
manjares nobres, na forma de doce - alfenim, alféola- conservas e casca de fruta. Em
ambos os casos a Madeira ficou célebre. A doçaria conventual fez as delícias dos
manjares reais, dos ingleses, franceses e flamengos. Ficou célebre a embaixada de
Simão Gonçalves da Câmara ao papa Leão X em 1508 6 . Vasco da Gama levou-o para
oferecer ao Samorim de Moçambique. E pela mesma via da rota da Índia deverá ter
chegado ao Japão onde ainda hoje persiste, sob a designação de "alfeito". Hans Sloane 7 ,
em 1687, insiste no elogio aos doces e compotas que comeu no convento de Santa
Clara, rematando que nunca vira "coisas tão boas". Emanuel Ribeiro, em "O doce
nunca amargou” (1928), esclarece-nos sobre a riqueza da doçaria conventual.
O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar
foi a necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus, em substituição
do oriental, cada vez mais de difícil acesso. Foi a conjuntura que impôs a nova cultura
no espaço atlântico e ditou as regras do mercado. O consumo interno de açúcar é uma
exigência tardia, gerada por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado
do produto. No último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de
conservas e casca como resultado da solicitação dos veleiros que demandavam o
Funchal. Acresce ainda que a vulgarização do açúcar no quotidiano madeirense derivou
da conjuntura que o mercado viveu em finais do século XV. O aparecimento de novos
mercados produtores, como a Madeira, fez baixar o preço, o que provocou uma
generalização do seu consumo.
A importância do açúcar na economia madeirense repercutiu-se a vários níveis no
mercado, chegando até a assumir a situação de medida de troca e de pagamento dos
mais diversos serviços. Para isso contribuiu, não só, a afirmação no quotidiano, mas
também, a falta crónica de moeda na ilha 8 .

O CONSUMO DO AÇUCAR

4 . Sobre a doçaria conventual veja-se: Alguns doces do Real Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde: 1 Centenário do Asilo de Nossa Senhora da
Encarnação [S.l : s.n.], 1967 ( Vila do Conde: Gráf. Santa Clara), João Pedro Ferro, Arqueologia dos Hábitos Alimentares, Lisboa, 1996;
5. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros. 1455-1700, Funchal, 1981, p.86
6 . Stegagno-Picchio, Luciana, O Sacro Colégio de Alfenim, in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Lisboa,
1990, pp.181-190.
7. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros. 1455-1700, Funchal, 1981,162
8. Alberto Vieira, O Comércio Inter-Insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, pp.54-59

2
O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia disponível para
distribuir às conserveiras que fabricavam a casca e conserva. A partir daqui eram
necessários mais trinta dias de árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para a
exportação. Da existência ou não de açúcar, da qualidade, dependia a disponibilidade
para o fabrico dos derivados, que activavam o comércio com as praças do Norte da
Europa, donde nos províamos de cereais e manufacturas 9 .
O açúcar e derivados dele que se produziam na Madeira tinham um consumo
variado. Assim a maior e melhor qualidade era canalizada para a exportação aos
principais mercados estrangeiros. Do açúcar laborado há que distinguir aquele que
pertence aos proprietários de canaviais e engenho e o que é da coroa, por arrecadação do
almoxarifado dos quartos ou da Alfândega, resultante dos direitos que oneravam a
produção (quarto/quinto/oitavo) e saída na Alfândega (dízima). Enquanto a cobrança era
feita directamente nas alfândegas do Funchal e Santa Cruz, o primeiro poderia ser
recolhido pela estrutura institucional criada para o efeito - o almoxarifado dos quartos
(1485-1522) - ou o cargo da anterior. Ainda poderia suceder a arrecadação por
contratadores, maioritariamente estrangeiros, que oscilava entre as 18.507 e 31.876
arrobas entre 1497 e 1506 10 .
O açúcar arrecadado pela coroa, tal como nos elucida F. J. Pereira 11 , era gasto
em despesas ordinárias, na carregação directa e vendas aos mercadores e/ou sociedades
comerciais. Na primeira despesa estavam incluídos, a redízima dos capitães, os gastos
pessoais do monarca, da Casa Real, as esmolas, para além das despesas com os soldos
dos funcionários, do transporte e embalagem do açúcar. A despesa variou entre as 1.070
e 2.114 arrobas, sendo a média anual no período de 1501 a 1537 de 1622 arrobas. No
caso das esmolas é de realçar as que se faziam às Misericórdias - Funchal (1512), Ponta
Delgada em S. Miguel (1515), Todos os Santos em Lisboa (1506 -, Conventos - Santa
Maria de Guadalupe (1485), Jesus de Aveiro (1502) e Conceição de Évora. A par disso
também se regista a utilização temporária dos lucros arrecadados pela Coroa no custea-
mento dos socorros às praças africanas ou no provimento das armadas 12 . A
contrapartida estará na política de ofertas estabelecida por D. Manuel I, que em muito
contribuiu para o enriquecimento do património artístico da Madeira 13 .
As dádivas da coroa às instituições hospitalares e conventos mantiveram-se
mesmo em momentos de dificuldade do século XVII. Sabemos que a Misericórdia do
Funchal recebia em 1647 14 como esmola 12 arrobas de açúcar, enquanto a de Santa
Cruz recebeu em 1682 15 apenas 2 arrobas de açúcar. O Mosteiro de Jesus em Aveiro,
que recebia 10 arrobas de açúcar por ano, reclamava em 1648 16 pelas esmolas desde
1643, como isso não aconteceu nomeou em 1652 17 um procurador para proceder à
cobrança. Sabemos ainda que em1686 18 o Mosteiro de Belém em Castela tinha direito a
50 arrobas de açúcar de esmolas, sendo procurador o Provedor da Fazenda.

9
. A correspondência de Diogo Fernandes Branco (ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº. 19) é muito elucidativa sobre a
ambiência fabril e comercial que serve de fundo a esta realidade. Confronte-se as cartas de 14 de Julho de 1649, 20 de Junho de
1550 publicadas em Alberto Vieira, O Público e o Privado na História da Madeira Vol. I. Correspondência Particular do
Mercador Diogo Fernandes Branco (1649-1652), Funchal, CEHA, 1996.
10 Confronte-se F. Jasmins Pereira, O Açúcar Madeirense, de 1500 a 1537. Produção e Preços, Lisboa, 1969, 55-69.
11 . Ibidem, 69-93.
12 No período que decorre de 1508 a 1514 foram gastas 1.000 arrobas com as despesas de socorro a Safim. Confronte-se nome
citado, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI, p. 23; Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, vol. II, Lisboa, 1978, pp. 29-
71, 281-322.
13 .Ofereceu uma cruz processional para a Igreja da Sé (1528), uma pia baptismal à Ribeira Brava, uma escultura em madeira e
colunas em mármore para a matriz de Machico.
14. ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 136vº-137vº, 13 de Fevereiro de 1647; ibidem, nº.965ª, fls. 340-340vº, 20 de Janeiro de 1662.
15 .ANTT, PJRFF, nº.966, fls.231-232vº, 3 de Março de 1682.
16 . ANTT, PJRFF, nº.980, fls.283-283vº, 1 de Fevereiro de 1648.
17 . ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 469-472, 16 de Novembro de 1652
18 . ANTT, PJRFF, nº.966, fls. 450-451vº, 7 de Janeiro.

3
No século imediato o grosso das exportações de açúcar na ilha tem origem no
Brasil: em 1620, do açúcar exportado, temos 23.560 arrobas do Brasil e 1.992 da
Madeira, enquanto em 1650 surgem só 83 caixas do Brasil e 111 arrobas da Madeira.
Para o período de 1650 a 1691 conseguimos identificar 53 navios provenientes da Baía,
Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Pará e Maranhão, que conduziram ao Funchal
mais de dez mil caixas de açúcar. O açúcar do Brasil assumiu um lugar importante na
economia madeirense, não apenas por apoiar as indústrias de conserva e casca, mas,
fundamentalmente pelo activo movimento de reexportação.

CONSERVAS E DOÇARIA

Parte significativa do açúcar produzido na ilha, e mais tarde importado do Brasil, era
usado no fabrico de conservas e de doçaria. São vários os testamentos denunciadores da
mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Em meados do século quinze
Cadamosto 19 refere a feitura de "muitos doces brancos perfeitíssimos", enquanto em
1567 Pompeo Arditi 20 dá conta da "conserva de açúcar" que se fazia no Funchal "de
óptima qualidade e muita abundância". E esta tradição perpetuou-se na ilha para além
do fulgor da produção açucareira local, pois segundo Hans Sloane 21 em 1687 o
madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces,
indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos depois John Ovington 22 refere a indústria
da conserva de citrinos que se exportava para França. Foram as compotas que mais
despertaram a atenção, pois nunca havia visto “coisas tão boas”. A cidra existia em
abundância na Ponta de Sol, Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos
Socorridos).
A indústria de derivados de açúcar era muito instável, dependendo das
possibilidades de oferta de açúcar brasileiro e da procura do produto acabado pelos
mercadores europeus. A correspondência de Diogo Fernandes Branco e W. Bolton
testemunham de forma evidente a realidade. Diz o último em 7 de Agosto de 1697:
"Pensou-se fazer uma grande quantidade de conserva de citrinos mas muitos
fabricantes desistiram por não saberem se os barcos os viriam buscar" 23 .
As indústrias da casquinha, conservas de fruta e confeitos mantiveram-se
durante muito tempo como uma actividade da economia familiar, não acompanhando a
queda da produção de açúcar madeirense, pois à falta dele alimentou-se do importado
do Brasil. No decurso do século XVII a casquinha concorreu com o vinho nas
exportações e em 1698, situava-se em segundo lugar a seguir ao vinho 24 . Entretanto a
elevada valorização do vinho conduziu para segundo plano e à quase extinção. Em 1779
o Governador refere que a manufactura da casquinha, a principal de todas, estava quase
extinta 25 . A crise, que começara na década de setenta, motivou a atenção das
autoridades que recomendavam os Governadores o estado da situação no sentido de
reavivar as exportações. Neste contexto surgiu em 1782 uma proposta de Francisco
Xavier Veríssimo e José Rodrigues Pereira, comerciantes do Funchal, pedindo o
exclusivo do fabrico da casquinha 26 .

19 . António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p. 37.


20 . Ibidem, p. 130.
21 . Ibidem, p. 158.
22 . Ibidem, p. 198.
23
. António Aragão, Ob. cit., p.341
24 . J Cabral do Nascimento. Documentos para a História das Capitanias da Madeira, Lisboa, 1930.
25 . AHU, Madeira e Porto Santo, nº.518.
26 . Ibidem, nº.615-616

4
Tal como se deduz de um documento de 1469 27 o fabrico de conservas era
indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava
"molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em
tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que
dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam...". A
actividade estava vedada ao estrangeiros e mestres de açúcar, uma vez que apenas aos
“vizinhos e naturaes da ilha” era permitido fazer conservas, alfenim e confeitos 28 . A
fama alcançada pela arte da confeitaria está testemunhada na embaixada enviada por
Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. Segundo Gaspar Frutuoso 29 compunha-se de
"muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio todo feito de assucar, e
os cardiais todos feitos de alfenim, dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e
feitos de estatura de hum homem".
No fabrico das conservas e doces variados merecem atenção as freiras do
Convento de Santa Clara, da Encarnação e Mercês30 . Aliás em 1687 31 Hans Sloane
referia-se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa
Clara, e ao referir que "nunca vi coisas täo boas". Segundo Emanuel Ribeiro os
conventos femininos foram os “sacrários da doçaria”. 32
Em terra onde os canaviais adquiriram desusada importância na economia
agrícola era natural a dominância da doçaria na culinária regional. Na memória de todos
persistem as receitas conventuais, pois que as demais se perderam. Nos conventos de
Santa Clara, Mercês e da Encarnação a doçaria é uma arte que ocupa de forma dedicada
as freiras33. Os doces faziam-se em momentos festivos para consumo interno ou para
retribuir os benfeitores. Das suas mãos saíram os bolos de mel, talhadas, batatada,
coscorões, arroz-doce e queijadas. Cada doce tinha a sua época: a batatada pelo Natal,
os coscorões no Entrudo, as talhadas na Páscoa e no dia de Nossa Senhora da
Encarnação.
De entre todos o bolo de mel persiste e afirma-se como o rei da doçaria
madeirense. Em muitas das receitas junta-se quase sempre uma porção de vinho
Madeira. Um das receitas mais conhecidas é a das freiras do Convento da Encarnação 34 .
É também com vinho Madeira que o mesmo deve ser servido. Aliás, o Vinho Madeira é
uma das melhores iguarias para acompanhar a doçaria regional ou doutras paragens.
Um breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da
Encarnação 35 , das Mercês 36 , Misericórdia do Funchal 37 , e Recolhimento do Bom
Jesus 38 , constata-se as assíduas despesas com a compra de açúcar da ilha ou do Brasil
para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para além das esmolas que recebia
em açúcar ou marmelada consumia açúcar que comprava. Do primeiro tanto se poderia
dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na compra de 3

27 . AHM, vol. XV (1972), n1 18, pp. 47-49.


28 . Ibidem, vol. XVI, 1973, pp.198-199, 241.
29 . Ob. cit., pp. 248-249. Confronte-se Luciana Stagagno Picchio, "O Sacro Colégio de Alfenim. Considerações sobre a civilização
do Açúcar na ilha da Madeira e noutras ilhas", in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990, pp.
181-190.
30 . Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou..., 1928, pp. 17, 34, 59.
31 António Aragão, Ibidem, p. 158.
32 . O Doce nunca amargou… doçaria Portuguesa. História. Decoração. Receituário, Coimbra, 1928, p.34, 59.
33. Cabral do Nascimento, As Freiras e os Doces do Convento da Incarnação, in Arquivo Historico da Madeira, vol. V, Funchal,
1937; Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação do Funchal, Funchal, 1995, pp.138-142; Cousas & Lousas das
Cozinhas Madeirenses, Funchal, 1988.
34 .Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação, in Das Artes e da História da Madeira, 1948-1949, p.51.
35 ARM, Convento da Encarnação, n1 14 a 16. Cf. Eduarda Sousa, O Convento da Encarnação do Funchal. Subsídios para a sua
História 1660-1777, Funchal, CEHA, 1995.
36 . Otília Rodrigues Fontoura, OSC, As Clarissas na Madeira. Uma presença de 500 Anos, Funchal, CEHA, 2000, pp.345-347.
37 . ARM, Misericórdia do Funchal, nº 342 a 345, 492-509.
38 .ARM, Recolhimento Bom Jesus, nº.18, 20

5
arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças 39 . Ademais são conhecidas
outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce.
Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34
arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano 40 . Para o período
de 1694 a 1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de
açúcar e 14 canadas de mel.
Maior e mais assíduo foram o consumo de açúcar no Convento da Encarnação
no período de 1671 a 1693 41 . Aí, de acordo com o registo mensal dos gastos com as
compras de produtos para a dispensa do convento pode-se ficar com uma ideia da
sazonalidade do consumo da doçaria. No caso deste convento destacam-se a Quinta-
Feira de Endoenças e o Natal. Nesta última festividade distribuía-se a cada freira, para a
Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso parte significativa do açúcar de várias
qualidades, era usado para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total
despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos para um total
aproximado de seis dezenas de recolhidas. Ficou célebre o chamado bolo de mel das
freiras da Encarnação que se manteve até a actualidade com a mais importante herança
da época açucareira. 42
A presença do açúcar na culinária é uma constante, quer com as sobremesas,
quer como “condimento de comer”. No século XIX a doçaria teve divulgação através
das pastelarias. Um das mais famosas foi a Pastelaria Felisberta criada em 1837 na Rua
da Carreira. Também ficou célebre a doçaria da panificação Blandy na rua do Hospital
Velho. Uns anos mais tarde, Isabella de França 43 continuava deslumbrada com as
sobremesas doces da cozinha: “Contudo a especialidade da Madeira está na secção dos
doces. É imensa a sua variedade; fazem-nos de formas imaginosas e dão-lhes nomes
extraordinários. Chama-se ovos moles um género opulento de leite-creme. Ovos reais,
quando eles ficam, com a aletria, em fios, e servem para decorar outros doces. Vi um
leão britânico feito de pão-de-ló, tão grande como um gato, coroado de prata e com
muitas estrelas pelo corpo; a juba e a extremidade da cauda eram de ovos reais. No
outro lado da mesa estava a águia americana confeiçoada com os mesmos ingredientes.
A uns bolinhos precioso dão o nome de beijos de frade. Certa massa em forma de
sincelos denomina-se lágrimas. Mas de todos os nomes o mais estranho é o toucinho-
do-céu aplicado em geral a umas fatias, que também podem tomar o aspecto de perna
de porco ou até cordeiro. ” Nos anos vinte a cidade estava servida de onze confeitarias.
Hoje, o único testemunho que resta dessa importante industria do doce madeirense é o
bolo de mel. O alfenim manteve-o a tradição dos ex-votos das festas do Espírito Santo
na ilha Terceira, único local onde ainda persiste a tradição.
Na actualidade é a doçaria que mantém activa a cultura e os três engenhos em
funcionamento. No período do Carnaval e do Natal, popularizado como a festa, o
consumo de mel dispara, havendo anos em que a produção não dá para satisfazer as
necessidades do consumo caseiro e das pequenas unidades industriais.
Um dos factores de promoção da indústria ao nível das conservas foi a
importância assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a
navegação atlântica. Muitas embarcações que aí aportavam tinham como intuito se
fornecerem de conservas de citrinos, necessárias à dieta de bordo.
O consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real

39 . Ibidem, nº 498, fl. 131v1.


40 . Ibidem, nº 347.
41 . ARM, Convento da Encarnação, nº 14 a 16; confronte-se João Cabral do Nascimento, "As freiras e os doces do Convento da
Incarnação", in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. V (1937), pp. 68-75.
42 . Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação. In Das Artes e da História da Madeira, Funchal, 1948-
1949, p.51.
43 . Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal(1853-1854), Funchal, 1970, p.174

6
portuguesa. Foi D. Manuel quem divulgou as qualidades na Europa. Assim ficaram
como o principal presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco
da Gama, que também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha 44 . Os
confeiteiros, que fabricavam as conservas, eram pagos pela Fazenda Real. Sabemos que
em 1513 Diogo de Medina recebeu 8$000 réis pelo fabrico de 40 arrobas e conserva
para o rei. Já em 1521 Inês Mendes recebeu 92$000 réis por 60 arrobas com o mesmo
destino 45 . No período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de
açúcar em conservas e frutas secas 46 .
Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele
se fazia no fabrico de conservas, frutas seca e marmelada 47 . Nisso gastaram-se cerca de
quatrocentas arrobas de açúcar de vários tipos, sendo a maioria para consumo dos
proprietários do referido açúcar.
A partir de meados do século XVII torna-se difícil reconstituir o movimento
comercial de derivados do açúcar. A documentação é escassa e a informação mais
elucidativa encontra-se na correspondência comercial de três mercadores: Diogo
Fernandes Branco (1649-1652), William Bolton (1696-1715) e Duarte Sodré Pereira
(1710-1712).
Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio
com os portos nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o
curto período que dura a correspondência é evidente a importância assumida no
comércio 48 . Assim em 1649, não obstante o açúcar da produção local ser de mau
qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos navios do Brasil, a procura manteve-se
activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como Diogo Fernandes Branco, que
tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a encomenda. A
conjuntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. A situação
continuou de modo que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses.
No ano imediato inverteu-se a situação. A casca abundou e em Outubro ainda tardavam
em chegar os navios para a levar ao destino, o que era motivo para preocupação.

ANO DESTINO CONSERVA AÇÚCAR


1649/Mai/23 frol de laranja
limão 99,5 arrobas
6 arrobas
1649/Jul/2 S. Malo casca
Hamburgo casca
20a. casca
1649/Jul/14 Rochela 300 a. casca
1649/Out/18 Rochela 114 a. casca seca
Rochela casca seca
1649/Dez/17 Amesterdão 22 a. conserva

92 a. conserva
1650/Jul/20 Rochela casca
1650/Nov./20 Holanda 34 a. casca
10 a. de limão
Rochela 37 a. casca
1651/Jul/3 Rochela 10 caixas casca

44 . Confronte-se Sousa Viterbo, Artes e Indústrias Portuguesas - A Indústria Sacarina, II0 Série, Coimbra, 1910, pp. 10-11.
45 . Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990,
pp. 120, 168
46 . Informações recolhidas nos documentos publicados por Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI
existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990.
47 F. J. Pereira, Livros de Contas da Madeira, Vol. II, Funchal, 1989, pp.79, 82, 101; vol. II (Funchal, 1990),
48
.ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19

7
Bordeus Casca
1652/Set/8 Rochela casca 60 caixas
Flandres casca
Amesterdão casca
1652/Set/24 Rochela 50 caixões casca

A correspondência de William Bolton 49 refere-nos, também, que a conserva de citrinos


estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para
o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa,
Holanda e França.

DATA BARCO CARGA DESTINO


1697/Jul./1 Francês açúcar Tenerife
1698/Set/2 Galeota conserva de citrinos Holanda
1699/Ab./14 3 caixas de citrinos Inglaterra
1699/Jul/6 brigue francês conserva de citrinos França
1699/Nov./13 Português conserva em calda e seca Roterdão
1700/Mai./1 Galeota 7 caixas de conserva de citrinos Londres
1700/Set./4 1 caixa de conserva de citrinos Londres
1707/Maio/24 1 caixa de conserva
1709/Out./2 Mary açúcar e conservas Amesterdão

Duarte Sodré Pereira 50 surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio. A
actividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do
açúcar do Brasil e à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente,
Amesterdão. A partir da correspondência comercial sabe-se que exportou a seguinte
quantidade de casca:

ESTINO CAIXÕES CAIXOTES ARROBAS OUTROS

Amesterdão 435
Hamburgo 1
Lisboa 1205 2 1
Faial 3 1
Londres 1

CONCLUSÃO

Não obstante a doçaria madeirense ser quase só conhecida pelo emblemático bolo de
mel, o certo é que perdura no imaginário das gentes um receituário variado que continua
a fazer as delícias da casa e convidados em momentos festivos, como o Natal, as visitas
do Espírito Santo e as romarias dos oragos da freguesia. O bolo de mel é apenas uma
das expressões mais perfeitas do requinte da doçaria madeirense 51 .

49
. António Aragão, ob. cit., pp.318-367
50
.Maria Júlia de Oliveira e Silva, Fidalgos-mercadores no século XVIII. Duarte Sodré Pereira, Lisboa, 1991.
51. Cf. Lucillia Boullosa Valle, O Paladar Madeirense, Funchal, SD., Zita Cardoso, Segredos da Cozinha Madeira e Porto Santo,
Funchal, 1994. Margarida R. Camacho, Cozinha Madeirense, Funchal, 1992, Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira, O Natal na Madeira.
Estudo folclórico, Funchal, 1956. André Simon e Elizabeth Craig, Madeira, Wine, Cakes and Sauce, Londres, 1933. Emanuel
Ribeiro, O Doce Nunca Amargou..., Lisboa, 1928; SIMON, André L., CRAIG, Elizabeth, Madeira Wine, Cakes and Sauce,
Londres, 1933, Ana Maria Ribeiro, O Fabrico dos Bolos de Mel na Calheta, Revista Xarabanda, 5(1994), 23-26.

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