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CURSO DE DIREITO
Campo Grande – MS
2008
DEVAYR SURIANO DOS SANTOS JÚNIOR
Campo Grande – MS
Novembro - 2008
TERMO DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Esp. Fernando Lopes Nogueira
_________________________________________
Professor convidado: Djalma Silveira da Silva
________________________________________
Professora convidada: Marília Rosa Lopes
Em primeiro lugar e acima de tudo, agradeço a Deus, por ter orquestrado com que
minha vida viesse a seguir o caminho do Direito, até então por mim inesperado.
Aos meus pais, Selma e Devayr, por terem depositado sua confiança em minha
formação e feito todo o possível para que ela se concretizasse.
Ao Professor Fernando Lopes Nogueira, que aceitou proceder à minha orientação com
os trabalhos já iniciados e confiou na minha capacidade de levá-los adiante.
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 7
1 A TUTELA PENAL DOS BENS JURÍDICOS........................................... 9
1.1 A PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO INSUFICIENTE DE BENS JURÍDICOS .............. 16
2 CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA ...................................... 22
2.1 O BEM JURÍDICO TUTELADO............................................................................... 27
2.2 A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO COMO REQUISITO PARA
INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL E O SEU PAGAMENTO COMO CAUSA DE
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE .................................................................................. 31
3 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO PAGAMENTO COMO CAUSA
DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS À
FACE DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO INSUFICIENTE DE BENS
JURÍDICOS .................................................................................................. 39
CONCLUSÃO ............................................................................................... 46
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 50
7
INTRODUÇÃO
Dentre tais teorias, tem-se a teoria do bem jurídico, sendo esta de fundamental
importância para a concepção do delito no atual sistema jurídico brasileiro, merecendo, por tal
razão, ser analisada sempre que se pretender discutir acerca da legitimidade para a existência
de quaisquer normas de cunho penal.
No caso dos crimes contra a ordem tributária, haja vista as suas peculiaridades
intrínsecas, aduz-se por necessário proceder a um debate a respeito da observância dos
princípios constitucionais penais, pelo legislador ordinário, quando de sua tipificação, bem
como analisar as questões próprias que dela decorrem, mormente a singular previsão
normativa de extinção de sua punibilidade em decorrência do pagamento do débito fiscal, a
qual também necessita de respaldo constitucional para sua validade, o que se propõe analisar.
Tendo a teoria do bem jurídico como sendo o ponto de partida da presente análise, o
primeiro capítulo trata da tutela penal dos bens jurídicos, abordando-se as correntes
doutrinárias que lhes conceituam, tratando-se de suas funções, bem como dos reflexos de sua
aplicação no momento de se constatar a legitimidade da intervenção de normas penais, dado o
seu caráter subsidiário.
8
Dentre os princípios gerais que regem o Direito Penal brasileiro, tem-se, como é
cediço, o princípio da intervenção mínima, o qual consagra a tipificação penal como ultima
ratio do ordenamento jurídico. Nesse sentido, Cezar Roberto Bitencourt2 preleciona:
1
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito penal
brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 40.
2
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, parte geral, volume 1. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 17.
3
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado..., ob. cit., p. 18.
10
cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não
possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a
liberdade dos cidadãos”.4
Aufere-se, pois, que a proteção de bens jurídicos é a função precípua do Direito Penal,
servindo como limitação ao próprio poder do legislador na criminalização de determinadas
condutas, que não se pode desvincular dessa concepção. Assim, só haverá legitimidade na
atuação penal do Estado acaso esta atuação tenha, em sua essência, o fito de manter
determinado bem jurídico protegido de lesões e/ou ameaças.
Conforme asseverado por M. Polaino Navarrete, citado por Luiz Regis Prado, “sem a
presença de um bem jurídico de proteção prevista no preceito punitivo, o próprio Direito
Penal, além de resultar materialmente injusto e ético-socialmente intolerável, careceria de
sentido como tal ordem de direito”.6
Por tal razão, para que o Direito Penal sirva legitimamente como meio para
concretização da Justiça (a qual é um dos valores supremos do Estado brasileiro, conforme
4
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e trad. André Luís Callegari,
Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pp. 16-17.
5
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 13-14.
6
POLAINO NAVARRETE, M. apud PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, p. 21.
11
Nesse passo, para o presente estudo, imperioso se faz conceituar o que vem a ser “bem
jurídico” e suas respectivas funções no ordenamento jurídico, especialmente em matéria
penal. Porém, em que pese o consenso da importância do bem jurídico na concepção do
delito, sua conceituação não nutre de igual pacifismo, vez que é questão bastante
controvertida.
Para Luiz Regis Prado, “a noção de bem jurídico implica a realização de um juízo
positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o
desenvolvimento do ser humano”.9 Desse modo, a distinção entre “bem” e “bem jurídico” está
na relevância social que emana do respectivo objeto valorado.
Jorge de Figueiredo Dias, por sua vez, após destacar a inexistência de um “conceito
fechado”, define o bem jurídico como “a expressão de um interesse, da pessoa ou da
7
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., p. 31.
8
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos..., ob. cit., p. 15.
9
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., p. 82.
12
Já para Hans Welzel, bem jurídico é “um bem vital ou individual que, devido ao seu
significado social, é juridicamente protegido”,11 sendo que sua proteção penal, como forma de
garantia da paz social, decorre da insuficiência de outros meios jurídicos para esse fim,
conforme já anotado anteriormente.
Ninguém pode ser penalizado porque usa barba ou a deixa de usar, porque
corta ou não o cabelo, pois com isto não lesa qualquer bem jurídico e o
direito não pode aspirar legitimamente a formar cidadãos com barba ou sem
barba, com cabelo curto ou longo, que se desnude ou que não se desnude,
mas apenas a cidadãos que não afetem bens jurídicos alheios.13
Desta feita, ainda que uma conduta possa ser considerada antiética em determinada
comunidade, tal fato não basta para sua valoração como ilícito penal, pois há de haver,
sempre, a afetação de um bem jurídico.
Nesse diapasão, Claus Roxin elenca certas situações que não podem servir de pretexto
para a criação de normas jurídico-penais, tais como as unicamente motivadas por ideologia, os
simples atentados contra a moral que não diminuam a liberdade ou a segurança de alguém, a
consciente autolesão, as regulações de tabu etc., em razão destas não configurarem, a priori,
lesão a bens jurídicos.14
10
DIAS, Jorge de Figueiredo. apud FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes contra a ordem tributária:
comentários aos arts. 1º a 3º, 11, 12, 15 e 16 da Lei n. 8.137, de 27.12.1990, e 34 da Lei n. 9.249, de 26.12.1995.
2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 21.
11
WELZEL, Hans. apud TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos..., ob. cit., p. 16.
12
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal, volume 1: parte geral.
7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 90.
13
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual..., ob. cit., p. 90.
14
ROXIN, Claus. A proteção de bens..., ob. cit., pp. 20-25.
13
Nesse sentido, Luiz Regis Prado afirma que “o recurso à privação de liberdade deve
ser, como já enfatizado, a ultima ratio, quando absolutamente indispensável, tendo sempre em
vista a importância primária da liberdade pessoal – o campo do ilícito penal deve ficar
reduzido às margens da estrita necessidade”.17
Para Luiz Luisi, a ausência de definição do conteúdo dos bens jurídicos redundaria no
não-exercício de sua função limitadora da criminalização, fato este, porém, que estaria sendo
superado pelo “processo de constitucionalização dos bens jurídicos penais” dos últimos
decênios. Leciona o autor18:
15
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual..., ob. cit., p. 399.
16
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual..., ob. cit., p. 401.
17
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., pp. 100-101.
18
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p.
172.
14
É nas constituições que o Direito Penal deve encontrar os bens que lhe cabe
proteger com suas sanções. E o penalista assim deve orientar-se, uma vez
que nas constituições já estão feitas as valorações criadoras dos bens
jurídicos, cabendo ao penalista, em função da relevância social desses bens,
tê-los obrigatoriamente presentes, inclusive a eles se limitando, no processo
de formação da tipologia criminal.
Quanto à vinculação entre a lei penal e a Constituição, Jorge de Figueiredo Dias anota
que “os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizações dos
valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres
fundamentais”20 (destaque constante do original), não havendo que se falar, portanto, em
existência de um “rol taxativo” de bens jurídicos constitucionalmente prestigiados, já que há
sempre margem para interpretação das diretrizes consagradas no Texto Magno, conquanto
19
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., pp. 90-91.
20
DIAS, Jorge de Figueiredo. apud FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da
proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 53.
15
A função teleológica, por sua vez, consiste na utilização do bem jurídico como critério
de interpretação da lei penal, delimitando o sentido e o alcance da norma, vez que o próprio
bem jurídico, como pressuposto da lesão ou ameaça, representa seu núcleo.23
Acerca de citadas funções do bem jurídico, Luiz Regis Prado assim sintetiza: “Em
suma, a função limitadora opera uma restrição na tarefa própria do legislador, a teleológica-
sistemática busca reduzir a seus devidos limites a matéria de proibição e a individualizadora
21
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual..., ob. cit., p. 402.
22
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., p. 60.
23
FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes..., ob. cit., p. 23.
24
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., p. 61.
25
FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes..., ob. cit., p. 23.
16
Destarte, tem-se que a teoria do bem jurídico redunda na efetiva limitação do poder
legiferante quando da criminalização de condutas, representando verdadeira garantia de não-
intervenção excessiva do Estado na liberdade individual das pessoas, o que os doutrinadores
classificam como garantismo negativo.
Do que já foi aduzido no presente trabalho, denota-se que a teoria do bem jurídico em
matéria penal redunda, em resumo, numa limitação à atividade legislativa quando da
tipificação de condutas que devam ser sancionadas de modo mais gravoso, isto é, com a
imposição de uma pena privativa da liberdade, já que esta só será justificada acaso a conduta
criminalizada venha a lesionar ou pôr em risco um bem jurídico constitucionalmente
consagrado e socialmente valorado no âmbito da respectiva ordem jurídica.
No entanto, impende ressaltar que, ao contrário do que possa vir a transparecer num
primeiro momento, referida limitação ao Poder Legislativo em matéria penal não está restrita
a uma limitação negativa, ou seja, numa mera determinação no sentido do que o legislador
não está legitimado a criminalizar, mas também se reveste de caráter positivo, de modo que o
princípio da proteção de bens jurídicos se estabelece, em determinadas situações, como uma
imposição à atividade legislativa no dever de criminalizar certas condutas.
26
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., p. 61.
27
FELDENS, Luciano. A constituição penal..., ob. cit.
28
BARATTA, Alessandro. apud STRECK, Lenio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente
(untermassverbot) e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-
individualista-clássico. Disponível em: http://www.leniostreck.com.br. Acesso em: 12 de setembro de 2008.
17
Em outras palavras, toda atividade legislativa deve estar sempre pautada no princípio
da proporcionalidade, examinada sob os critérios da adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito, de modo a não se estabelecer como uma restrição
excessiva à liberdade individual, tampouco redundando numa insuficiente tutela de bens
jurídicos carecedores de sua proteção.
29
ALEXY, Robert. apud SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações constitucionais e direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 149.
30
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre
proibição de excesso e de insuficiência. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 12 de
setembro de 2008.
31
SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações constituicionais..., ob. cit., p. 148.
32
FELDENS, Luciano. A constituição penal..., ob. cit., p. 159.
18
33
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade..., ob. cit.
34
SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações constitucionais..., ob. cit., pp. 150-151.
35
STRECK, Lenio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente..., ob. cit.
19
A resposta imediata a aludidos questionamentos tende a ser negativa por natureza, vez
que não se concebe a existência de um Estado de Direito que deixe de introduzir em seu
ordenamento jurídico medidas de cunho penal a resguardarem a dignidade da pessoa humana,
cânone das Constituições republicanas, cujo respeito há de dirigir toda a atuação estatal.
36
STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos
fundamentais ou qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes?.
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11493. Acesso em: 16 de setembro de 2008.
37
Bundesverfassungsgericht 88, 203, 1993. apud STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção..., ob. cit.
Destaques constantes do original.
20
Não há, pois, qualquer blindagem que “proteja” a norma penal do controle
de constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as
modernas técnicas ligadas à hermenêutica, como a interpretação conforme, a
nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao legislador, etc). Ou isto, ou
teríamos que considerar intocável, por exemplo, um dispositivo legal que
viesse a descriminalizar a corrupção, a lavagem de dinheiro, os crimes
fiscais (de certo modo isto já ocorre, desde a Lei 9.249, confirmada agora
pela Lei 10.684), os crimes sexuais (estupro e atentado violento ao pudor)
em face do casamento (sic) da vítima com terceira pessoa (art. 107, VIII, do
Código Penal), tudo em nome do princípio da legalidade, como se a vigência
de um texto jurídico implicasse, automaticamente, a sua validade.
38
FELDENS, Luciano. A constituição penal..., ob. cit., p. 109
39
STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de
proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais.
Disponível em: http://www.leniostreck.com.br. Acesso em: 12 de setembro de 2008.
21
A união estável, que se equipara a casamento por força do art. 226, § 3º, da
Constituição Federal, é uma relação de convivência e afetividade em que
homem e mulher adulta, de forma livre e consciente, mantém com o intuito
de constituírem família. Não se pode equiparar a situação dos autos a uma
união estável, nem muito menos, a partir dela, reconhecer, na hipótese, um
casamento, para fins de incidência do art. 107, VII, do Código Penal.
De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal mais
benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade,
caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do
Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico.
Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para
uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo
(que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já
consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção
insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de
proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode
abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito
fundamental. [...]
40
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 418.376. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco
Aurélio. Relator para o acórdão Ministro Joaquim Barbosa. Julgado em: 09/02/2006. Publicado em: 23/03/2007.
Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 22 de outubro de 2008.
22
Nas palavras de Heleno Fragoso, citado por Cláudio Costa, “antes do aparecimento da
Lei n. 4.729, de 14 de julho de 1965, as únicas fraudes fiscais penalmente sancionadas em
nosso direito eram o contrabando e o descaminho, previstos no Artigo 334 do Cód. Penal
vigente”.42
Igor Tenório, por sua vez, traz registro ainda mais longínquo, anotando que o Código
Criminal do Império do Brasil (Lei de 16 de dezembro de 1830) já continha a figura típica do
contrabando como crime de interesse fiscal,43 especificamente em seu artigo 177, cujo qual
possuía a seguinte redação:
41
COSTA, Cláudio. Crimes de sonegação fiscal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 19.
42
FRAGOSO, Heleno. apud COSTA, Cláudio. Crimes..., ob. cit., p. 19.
43
TENÓRIO, Igor. Direito penal tributário. São Paulo: Bushatsky, 1973, p. 45.
23
Conforme leciona Cláudio Costa, citada equiparação foi recebida com duras críticas,
especialmente em razão das condutas acima descritas não possuírem características mínimas
para serem equiparadas ao crime de apropriação indébita, dado que as hipóteses típicas
descritas nas letras “a” e “c” não têm, em sua estrutura, o ânimo definitivo de posse, e a
conduta delituosa descrita na letra “b” trata-se claramente de uso de documento falso com o
fito de suprimir imposto.44
44
COSTA, Cláudio. Crimes..., ob. cit., pp. 20-21.
45
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária e contra a
previdência social. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 53.
24
Destarte, tal constatação demonstra a nova tendência do Estado brasileiro, iniciada por
referidos diplomas legais, durante a ditadura militar (1964-1985), em criminalizar condutas
fraudulentas lesivas ao erário.
Aludida Lei n. 4.729/65, por seu turno, também recebeu severas críticas de juristas e
doutrinadores brasileiros. Manoel Pedro Pimentel, citado por Cláudio Costa, alerta que, a
rigor, “todas as figuras contempladas nesta lei descrevem condutas típicas já previstas em
dispositivos do Código Penal vigente”.47
Cabe, por oportuno, transcrever o disposto no artigo 1º da Lei n. 4.729/65 (já com a
alteração dada pela Lei n. 5.569/69):
46
TENÓRIO, Igor. Direito penal..., ob. cit., p. 51.
47
PIMENTEL, Manoel Pedro. apud COSTA, Cláudio. Crimes..., p. 21.
48
PIMENTEL, Manoel Pedro. apud ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal..., ob. cit., p. 54.
25
Tem-se, portanto, que o único diferencial entre as normas penais instituídas pela Lei n.
4.729/65 e as então já existentes seria o elemento subjetivo do tipo, qual seja, o dolo
específico de se fraudar o Fisco. Entretanto, analisando-se as penas cominadas a esses delitos,
Em que pesem tais constatações, Ives Gandra da Silva Martins, citado por Cláudio
Costa50, assevera que,
49
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal..., ob. cit., p. 55.
50
MARTINS, Ives Gandra da Silva. apud COSTA, Cláudio. Crimes..., ob. cit., p. 26.
26
Referida lei possui quatro capítulos, sendo o primeiro acerca dos “crimes contra a
ordem tributária”, que traz também duas seções tratando dos “crimes praticados por
particulares” e “dos crimes praticados por funcionários públicos”. O segundo capítulo trata
dos “crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo”, e o terceiro capítulo se
refere às “multas” aplicadas em decorrência de condenação pela prática dos delitos.
Denota-se, portanto, que dentre as “disposições gerais” dessa lei, a qual definiu os
crimes contra a ordem tributária, já havia inserida a previsão legal de extinção da punibilidade
quando o agente promovesse o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive
acessórios, antes do recebimento da denúncia (artigo 14), disposição esta que restou revogada
pela Lei n. 8.383/91, e então fora reintroduzida no ordenamento pela Lei n. 9.249/95, com
modificações posteriores. Essa questão, no entanto, será melhor estudada em momento
posterior do presente trabalho.
A respeito dessa nova legislação penal tributária, Edmar Oliveira Andrade Filho
analisa que as figuras delituosas nela descritas possuem grande semelhança com aquelas
dispostas no artigo 1º da Lei n. 4.729/65, havendo uma diferença fundamental, contudo, na
graduação da pena, dado que a lei anterior prevê somente a pena de detenção, enquanto a Lei
n. 8.137/90 prevê penas de reclusão e de detenção, e com tempo de cumprimento
substancialmente maior para algumas condutas.52
51
CORRÊA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária: comentários à Lei n. 8.137, de 27-12-1990. São
Paulo: Saraiva, 1994, pp. 23-24.
52
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal..., ob. cit., pp. 55-56.
27
Além disso, não obstante a Lei n. 8.137/90 não revogar expressamente a Lei n.
4.729/65, Edmar Oliveira Andrade Filho53, observando que ambas as leis prevêem condutas
típicas semelhantes ou idênticas, conforme já anotado, fato este a indicar um conflito aparente
de normas, aduz que
Nesse passo, impende anotar a ressalva feita por Roberto dos Santos Ferreira, o qual
esclarece que “a Lei 4.729/65 foi parcialmente revogada, permanecendo em vigor o artigo que
deu nova redação aos parágrafos do artigo 334 do CP, concernentes ao contrabando e ao
descaminho”.54 De resto, aufere-se que os dispositivos que versam acerca dos crimes contra a
ordem tributária restam revogados pela Lei n. 8.137/90.
53
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal..., ob. cit., p. 59.
54
FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes..., ob. cit., p. 53.
28
55
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., p. 107.
56
PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 401
57
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., ob. cit., p. 85
29
É hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, uma vez que o
sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também a realização
de objetivos de justiça distributiva, tendo em conta as necessidades de
financiamento das actividades sociais do Estado.
Coadunando com tais observações, Claus Roxin, ao dissertar acerca da tutela penal de
“bens jurídicos universais” (ou metaindividuais), esclarece que “o mesmo dever de pagar
impostos, detestado com freqüência pelos cidadãos, não busca o enriquecimento do Estado,
mas o benefício do particular que está sujeito às contribuições do Estado que estão
financiadas precisamente através dos gravames”.59 Infere-se, pois, a especial importância que
decorre da manutenção do Sistema Tributário Nacional para a conformação da sociedade
organizada, de modo que até mesmo se defende a existência de um “dever fundamental de
pagar tributos”,60 o qual atinge a todos os cidadãos no âmbito da comunidade em questão.
Nesse passo, diz-se não haver diferença entre ilícito fiscal e ilícito penal do ponto vista
ontológico em razão de ambos configuram-se como espécies do gênero infração, a qual se
58
RODRIGUES, Anabela Miranda. apud FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes..., ob. cit., p. 25.
59
ROXIN, Claus. A proteção de bens..., ob. cit., p. 19.
60
FISCHER, Douglas. Delinqüência econômica e estado social e democrático de direito: uma teoria à luz da
constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006, pp. 129-135.
61
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 434-436.
30
caracteriza como violação de uma norma jurídica, sendo que a distinção entre os ilícitos é a
natureza e a gravidade das respectivas sanções (preceito secundário) pelo descumprimento de
cada norma (preceito primário).62
Outra não é a lição de Luciano Amaro64, segundo o qual “os crimes tributários em
regra têm sua tônica no ardil ou artifício empregado pelo agente com vistas à obtenção do
resultado (que é o não-recolhimento do tributo). Documentos falsos, omissão de registros,
informações incorretas permeiam tais figuras delituosas”, concluindo, alfim, que “o que não
se pode eleger como ilícito criminal é o mero não-pagamento de tributo”, asseverando, ainda,
como fundamento para tanto, a vedação constitucional de prisão por dívida.
Desta feita, conclui-se que, conforme aduzido por Douglas Fischer65, “o constituinte
conferiu ao sistema tributário papel fundamental e outorgou expressa relevância à obrigação
individual e solitária ao cumprimento do dever de pagar tributos”, pois o processo de
arrecadação de receitas é indispensável para possibilitar a atuação do Estado no atendimento
das necessidades dos cidadãos e até mesmo para realização de uma eficaz proteção de bens
jurídicos outros, mormente quando se observa que toda intervenção estatal demanda gastos
públicos.
A instituição dos crimes contra a ordem tributária, portanto, “tem por escopo proteger
a política socioeconômica do Estado, como receita estatal, para obtenção dos recursos
necessários à realização de suas atividades” e visa a coibir a “diminuição das possibilidades
de o Estado levar a cabo uma política financeira e fiscal justa”, tendo por bem jurídico
62
FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes..., ob. cit., pp. 35-36.
63
FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes..., ob. cit., pp. 37-38.
64
AMARO, Luciano. Direito tributário..., ob. cit., p. 462.
65
FISCHER, Douglas. Delinqüência econômica..., ob. cit., p. 128.
31
tutelado, nesse caso, a Fazenda Pública, a qual não se limita, porém, numa perspectiva
patrimonial, mas engloba também o próprio interesse do Estado em auferir receitas que lhe
possibilitem a concretização dos seus desígnios constitucionais (verbi gratia, os direitos
sociais, conforme já aduzido), mediante a escorreita distribuição dos valores arrecadados.66
A Lei n. 8.137/90 instituiu, como condutas típicas contra a ordem tributária, aquelas
elencadas em seus artigos 1º e 2º e respectivos incisos. Da leitura de aludidos dispositivos, no
caso do artigo 1º, observa-se que é previsto a execução de um determinado ato-meio (omitir
informação, por exemplo, conforme descrito no inciso I) para a consecução de um resultado
específico (a supressão ou a redução do tributo, ou contribuição social e qualquer acessório,
consoante disposto no caput do artigo). Daí concluir-se tratar de crime material, cuja
ocorrência do resultado é necessária para a consumação do delito.67 Cumpre excetuar, porém,
a hipótese prevista no parágrafo único daquele artigo, pois esta se consuma com o mero
descumprimento da ordem legal da autoridade.68
Em relação ao artigo 2º da Lei n. 8.137/90, não obstante o seu caput remeter ao artigo
1º quando estabelece que as condutas nele descritas constituem crimes “da mesma natureza”,
seus incisos tratam, na verdade, de hipóteses de crime de mera conduta, vez que referida
“mesma natureza” está adstrita no que toca à espécie de crime contra a ordem tributária, tão-
somente.69
66
PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico, ob. cit., p. 408.
67
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal..., ob. cit., p. 109.
68
PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico, ob. cit., p. 424.
69
PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico, ob. cit., pp. 436-437.
32
Impende anotar, por outro lado, que os crimes contra a ordem tributária são
classificados como de ação penal pública incondicionada, conforme expressamente estipulado
no artigo 15 da Lei n. 8.137/90. Destarte, tem-se que as ações que versem sobre crimes
previstos nessa lei são de promoção privativa do Ministério Público (nos termos do artigo
129, inciso I, da Constituição Federal), o qual, ainda, “não necessita de autorização ou
manifestação de vontade de quem quer que seja para iniciá-la”.72 Nesse mesmo sentido, tem-
se o enunciado da Súmula n. 609 do Supremo Tribunal Federal: “é pública incondicionada a
ação penal por crime de sonegação fiscal”.
70
FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes..., ob. cit., p. 75.
71
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal..., ob. cit., p. 125.
72
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado..., ob. cit., p. 851.
33
Para os adeptos da teoria da dependência das instâncias, “há uma relação de sujeição
entre as instâncias penal e administrativa, de modo que o início daquela depende do desfecho
desta”.73 Defendem, em resumo, que o Direito Penal não se pode desvincular do Direito
Tributário, dado que só existirá ilícito penal se houver inobservância dos deveres tributários.
Ademais, a ameaça de início da ação penal, sem prévio exaurimento da via administrativa,
constituiria “uma forma ilegítima de coação do contribuinte ao pagamento da exação”.74
73
MONTEIRO, Rodrigo Oliva. Dos crimes contra a ordem tributária: definição do tributo e formação do tipo.
Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo, n. 64, jan.-fev. 2007, p. 159.
74
MONTEIRO, Rodrigo Oliva. Dos crimes..., ob. cit., p. 161.
75
MONTEIRO, Rodrigo Oliva. Dos crimes..., ob. cit., pp. 163-165.
34
fiscal. De acordo com esta teoria, não se pode impor uma sanção penal pela prática de crime
contra a ordem tributária enquanto a Administração não afirmar em definitivo a exigibilidade
da obrigação tributária, sendo admissível, porém, o início da persecução criminal para
apuração da prática de aludido delito.76
Para o presente trabalho, admite-se como mais acertada a teoria da relativa autonomia
das instâncias, já que, não obstante o Ministério Público ser órgão dotado de independência
funcional e caber-lhe promover, privativamente, a ação penal pública (a qual, no caso de
crimes tributários, é incondicionada), não se pode descurar do fato que só haverá prova da
materialidade delitiva acaso existir a constituição do crédito tributário, circunstância esta que
não obsta, entretanto, a devida apuração acerca do cometimento das ações típicas previstas na
lei, ainda que pendente o resultado (supressão ou redução do tributo).
[...] De assentar-se, pois, que nos delitos cogitados, a ação penal pública é
incondicionada: o que significa dizer que - titular privativo de sua
promoção (CF, art. 129, I) - pode o Ministério Público propô-la,
independentemente de qualquer iniciativa condicionante da administração
tributária - a qual, pelo contrário, está vinculada ao atendimento da
requisição de documentos e informações que, para instruir eventual
denúncia, por aquele lhe sejam endereçadas (LC 75, art. 8º, II; L. 8.625, art.
26, I, b).
Problema de todo diverso - não mais apenas de Processo, mas também de
Direito Penal - é saber se, antes de resolvida, nas vias administrativas, a
impugnação do contribuinte acerca da existência e do montante do crédito
tributário, há justa causa para a denúncia por crimes tributários. (...)
Não se trata - é imperativo notar - de subordinar a denúncia à prévia certeza
de todos os elementos de fato necessários à sua procedência: seria
imperdoável retrocesso relativamente à autonomia do direito da ação, pilar
de todo o Direito Processual moderno.
Cuida-se, sim, de hipótese extraordinária - posto que única -, em que,
quando não a tipicidade, a punibilidade da conduta do agente - malgrado
típica - está subordinada à decisão de autoridade diversa do juiz da ação
penal. (...)
O trabalho doutrinário em que se embasa o parecer da PGR argúi de
contraditória a conclusão de constituir o lançamento definitivo do tributo
76
MONTEIRO, Rodrigo Oliva. Dos crimes..., ob. cit., pp. 169-170.
77
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 81.611. Tribunal Pleno. Relator Ministro Sepúlveda Pertence.
Julgado em: 10/12/2003. Publicado em: 13/05/2005. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 22 de
outubro de 2008. Destaques constantes do original.
35
Ainda nesse mesmo sentido foi a posição do Supremo Tribunal Federal quando do
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.571, promovida pelo Procurador-
Geral da República contra a norma prevista no artigo 83, caput, da Lei n. 9.430/96, o qual
dispõe o seguinte:
Art. 83 A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a
ordem tributária definidos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de
dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida
decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito
tributário correspondente.
78
Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.571. Tribunal Pleno. Relator Ministro
Gilmar Mendes. Julgado em: 10/12/2003. Publicado em: 30/04/2004. Disponível em: http://www.stf.jus.br.
Acesso em: 22 de outubro de 2008.
36
sua atuação na esfera penal, havendo por necessário, entretanto, a constituição do crédito
tributário para a configuração da justa causa para promoção da ação penal.
Isto posto, passa-se agora à análise de uma outra questão que envolve o reflexo
da constituição do crédito tributário no âmbito penal: a extinção da punibilidade mediante o
respectivo pagamento.
A Lei n. 8.137/90 já trazia, em seu artigo 14, referida previsão legal de extinção da
punibilidade, a qual ocorreria quando o agente promovesse o pagamento do tributo, inclusive
acessórios, antes do recebimento da denúncia. Esse comando normativo, no entanto, restou
posteriormente revogado quando da edição da Lei n. 8.383/91.
No que concerne à aludida norma, Douglas Fischer79 anota que a mesma foi aplicada,
em todos os níveis de jurisdição, sem qualquer ressalva ou análise detida de sua
constitucionalidade, e que houve, ainda, interpretação extensiva desse preceito às hipóteses de
parcelamento do débito, pois não haveria distinção normativa quanto à forma do pagamento,
bastando, inclusive, a quitação somente da primeira parcela para ensejar a extinção da
punibilidade de eventual crime contra a ordem tributária.
79
FISCHER, Douglas. Delinqüência econômica..., ob. cit., pp. 187-189.
37
Por outro lado, denota-se que referido dispositivo deixou de fazer qualquer menção
quanto ao tempo em que deveria ocorrer o pagamento do débito para ocorrência da extinção
da punibilidade, diferentemente do disposto na norma anterior, a qual previa, expressamente,
que o pagamento deveria ocorrer “antes do recebimento da denúncia”. Em decorrência disso,
firmou-se o entendimento jurisprudencial de que não haveria mais qualquer limite temporal
para a incidência do benefício da extinção da punibilidade em razão do pagamento do débito,
podendo ele ocorrer a qualquer tempo.81 Para ilustrar aludida situação, transcreve-se a ementa
do seguinte acórdão82:
Por tais razões, tem-se que a pretensão da punibilidade do Estado, no tocante aos
crimes tributários, haverá de ser suspensa em face do parcelamento do débito perante a
Administração Tributária, o qual pode ocorrer a qualquer tempo. Em relação à extinção da
punibilidade, esta ocorrerá quando houver o pagamento integral do débito tributário, não
havendo, igualmente, qualquer limite temporal para tanto.
tal, quer dizer, do ponto de vista técnico-jurídico, nesses casos, permanece ileso o caráter de
ilícito penal, eliminando-se somente a aplicação efetiva da pena”.83
[...] o garantismo penal na sua dimensão negativa acaba não raras vezes
privilegiando a elite econômica ou as classes mais influentes da sociedade,
deixando de criminalizar (ou mesmo descriminalizando) delitos de cunho
econômico e tributário, que por vezes prejudicam a sociedade como um todo
e se revestem de alto potencial ofensivo, mas quem em regra, não cometidos
pelos integrantes dos grupos marginalizados, bastando aqui o registro da
tendencial descriminalização, entre nós, dos delitos contra a ordem
tributária, de constitucionalidade questionável se formos analisar a questão à
luz da teoria dos deveres de proteção do Estado.
83
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 83.
84
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização, ob. cit., p. 85.
85
FISCHER, Douglas. Delinqüência econômica..., ob. cit., p. 202.
86
SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade..., ob. cit.
41
díspar a estes em relação aos demais delitos ditos patrimoniais, cometidos sem violência ou
grave ameaça.
Isto porque aludida previsão legal, a qual estipula a extinção da punibilidade dos
crimes tributários mediante o pagamento, não encontra qualquer disposição similar quando
comparada a outras normas penais incidentes sobre demais delitos de cunho patrimonial. De
fato, tem-se apenas a regra geral do arrependimento posterior, ditada pelo artigo 16 do Código
Penal, in verbis: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o
dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do
agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.
87
FELDENS, Luciano. A constituição penal..., ob. cit., p. 110.
42
No caso do trato conferido aos crimes contra a ordem tributária, denota-se que a
benesse legal da extinção da punibilidade decorrente do pagamento do tributo sonegado é
deveras mais branda que aquela prevista no artigo 16 do Código Penal, sendo esta aplicável
aos demais delitos praticados sem violência ou grave ameaça. Entretanto, observa-se que, ao
assim proceder, o legislador ordinário conferiu uma verdadeira inversão de valores no tocante
à proteção de bens jurídicos, vez que os crimes tributários possuem maior relevância social
que a criminalidade patrimonial comum, conforme aduz Douglas Fischer88:
89
STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição..., ob. cit. Destaques constantes do original.
90
GOMES, Luiz Flávio. Crimes tributários e previdenciários: para STJ, o parcelamento do débito extingue a
punibilidade do sonegador. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3067. Acesso em: 29 de
outubro de 2008.
91
Supremo Tribunal Federal. Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.002. Relator Ministro
Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 25 de outubro de 2008.
44
República), bem como seus subprincípios concretizadores, como a igualdade (art. 5º, caput), a
cidadania (art. 1º., II e par. único) e a moralidade (art. 37, caput)”.
Não obstante tais argumentos, há, também, na doutrina pátria, corrente que defende a
constitucionalidade de aludida disposição normativa, citando-se, como exemplo, o magistério
de Hugo de Brito Machado, segundo o qual “a razão parece estar com os que preconizam a
extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, com os acréscimos legais”.92
Com a devida vênia, tal argumentação, à luz dos já esboçados princípios norteadores
do Direito Penal, não pode prosperar, vez que não faz distinção entre a conseqüência da
criminalização das condutas que atentem contra a ordem tributária e o fundamento (ou seja, a
razão) que ensejou o ato de criminalizá-las.
92
MACHADO, Hugo de Brito. Estudos de direito penal tributário. São Paulo: Atlas, 2002, p. 231.
93
MACHADO, Hugo de Brito. Estudos..., ob. cit., p. 231.
45
Denota-se, pois, que a tipificação dos crimes contra a ordem tributária não se resume a
uma “função meramente arrecadatória” do Estado, bem como que a extinção da punibilidade
mediante o pagamento não está em consonância com o “objetivo” da lei. Ao contrário,
referida benesse legislativa mostra-se como uma verdadeira causa de proteção insuficiente do
bem jurídico tutelado, passível de argüição de inconstitucionalidade, conforme já afirmado.
94
FISCHER, Douglas. Delinqüência econômica..., ob. cit., p. 208.
46
CONCLUSÃO
O Direito Penal é o ramo jurídico direcionado ao estudo das normas públicas que
tutelam condutas humanas mediante a sua tipificação e a imposição de penas. Nessa
qualidade, o Direito Penal possui princípios caracterizadores próprios, dentre os quais se
destaca o princípio da intervenção mínima (ou da subsidiariedade), que limita sua atuação à
proteção de bens jurídicos de extrema importância, e tão-somente quando outras formas de
intervenção estatal não forem suficientes a fazê-lo.
Nesse passo, sustenta-se que nem todo bem é um bem jurídico, da mesma forma que
nem todo bem jurídico carece de tutela penal. O conceito de bem jurídico, apesar de não se
fazer livre de dúvidas, está relacionado ao valor normativo que se dá a determinado objeto ou
situação, a cujo qual se busca conceder uma proteção jurídica.
Em relação aos crimes contra a ordem tributária, tem-se que sua origem deriva da
criminalização de condutas que atentassem contra o monopólio régio na época do
mercantilismo, inicialmente tipificadas como contrabando e descaminho, os quais constam no
ordenamento jurídico brasileiro desde o Império e continuam presentes no Código Penal até
os dias atuais.
No caso das espécies de delitos previstos no artigo 1º da Lei n. 8.137/90, os quais são
tidos como crimes materiais (ou de resultado), denota-se haver a necessidade da devida
constituição do crédito tributário para a formação do tipo, vez que, antes disso, não há que se
falar em supressão ou redução de tributo. Há, portanto, uma relativa vinculação entre a
instância administrativa e a instância judicial, haja vista competir privativamente à autoridade
administrativa a realização do lançamento tributário, conforme disposto no artigo 142 do
Código Tributário Nacional.
48
Aludida medida de descriminalização do fato nos delitos tributários, nos atuais termos
em que positivada, demonstra-se carente de razão jurídica lógica, dado que considera extinta a
punibilidade do réu caso ele proceda à própria devolução do produto do crime, ainda que a
destempo e de forma convenientemente parcelada.
Não há que se falar que o pagamento do tributo sonegado seria condizente com o
objetivo da lei penal, já que esta teria um suposto caráter arrecadatório. A norma penal,
conforme já aventado, só pode ser considerada legítima se instituída com um único objetivo: a
proteção de bens jurídicos. Destarte, dar conotação de constitucionalidade à previsão da
extinção da punibilidade dos crimes tributários mediante a afirmação de seu caráter utilitarista
é desarrazoado, vez que, reflexamente, está a dizer que a norma incriminadora é
inconstitucional, pois lhe nega sua condição de proteção do bem jurídico.
Por tais razões, ao se defender que a ordem tributária possui inegável relevância
social, sendo ela imprescindível para a realização dos objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil e, portanto, carecedora de proteção mediante a tutela penal, impende
concluir que a previsão normativa da extinção da punibilidade dos crimes tributários em razão
do pagamento do débito, nos termos em que hoje se encontra, está a desrespeitar a proibição
de proteção insuficiente de bens jurídicos, pois confere a um bem jurídico de maior
importância uma nítida infraproteção, em evidente desproporcionalidade, resultando na
inconstitucionalidade da medida por ser ineficaz à repressão da sonegação fiscal no Brasil.
50
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