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I V UN IDADE de abertura das estradas, construção das barracas dos seringueiros e das
dependências do barracão.
Para melhor compreender como era organizado e como funcionava
o seringal, vamos adiante analisar alguns de seus elementos principais,
tendo como ponto de referência, por um lado, o seringalista, o barracão
e os seus componentes, e, por outro, o seringueiro e a colocação.
BARRACÕESE BARRACAS: Por enquanto queremos apenas ressaltar que a unidade produtiva
a que chamamos de "seringal" não se resume somente a uma extensa
o seringalcomounidadeprodutiva. área de terras, com muitas estradas de seringa, seringueiros e patrão. O
A divisãosocial seringal era um todo complexo e sua estrutura refletia, sob certos aspec-
tos, as exigências do meio e a necessidade da produção de borracha para'
e técnicado trabalho o mercado mundial. Por isso se faz necessário estudar o seu funciona-
mento interno e suas relações externas.
Antes de entrarmos no estudo espec{fico da organização e funcio-
namento do seringal, gostarramos de ressaltar uma questão fundamen-
1. Noções Iniciais tal, que você deverá relacionar com o que trata a Primeira Unidade. Re-
ferimo-nos ao novo tipo de propriedade estabeíecida com o advento do
Nas Unidades anteriores você estudou que a formação do seringal seringal.
está estreitamente vinculada ao arregimentamento da força de trabalho Como você sabe, o silvrcola que habitava essa região não conhecia
e ao financiamento, à emigração nordestina e ao aviamento. Agora você a propriedade particular da terra e a noção de lucro que lhe era estra.
estudará o seringal em sua estrutura e funcionamento, a divisão social e nha.
técnica do trabalho, enfim, o poder do patrão simbolizado na imponên- Pois bem, chegados os primeiros contingentes populacionais e a
cia do barracão e a submissão do seringueiro que, morando em toscas conseqüente implantação dos seringais, estabeleceu-se a propriedade
barracas, vivia para se escravizar, no dizer de Euclides da Cunha. particular da terra, sendo o seringalista (o patrão) o seu proprietário ex-
Para abrir um seringal não era preciso muita coisa. Conseguido o clusivo e1bsoluto, mesmo que fosse apenas de fato, já que não havia,
fornecimento de mercadorias junto a uma casa aviadora de Belém ou na região, presença jur{dico-administrativa nem da Bolrvia nem do
fvianaus, o futuro proprietário - o patrão seringalista - recrutava algu- BrasiI.
mas dezenas de trabalhadores no Nordeste, ou mesmo em Manaus e Be- E certo que não foi implantado nenhum sistema de medidas métri-
lém, e subia com eles os rios Purus ou Juruá à procura de um lugar apro- cas para estabelecer áreas definidas. A extensão da propriedade depen-
priado para a fixação da sede de seu seringal. Dava-se preferência aos lu- dia da extensão das estradas de seringas. Portanto, a propriedade de tal
gares altos, que não fossem atingidos facilmente pelas águas em tempo seringalista constitu ra-se de toda aquela área de terra alcançada pelas es-
de cheias e em cujas proximidades existisse grande quantidade de árvo- tradas de seringas que o mesmo mandava abrir. Assim sendo, o patrão
res-seringueiras. Os lugares próximos aos igarapés e lagos eram bastante tornava-se o dono único e exclusivo daquela área e de tudo que existia
procurados. sobre ela, de maneira que, se alguém pretendesse agir dentro dela, seja
Feita a sondagem e verificadas as qualidades do lugar, tratavam de de qual forma fosse: caçar, pescar, cortar madeiras, etc., teria que ter a
erigir, de imediato, um pequeno casebre com recursos da própria selva permissão do seu dono, o seringalista.
-- palha, madeira de pau roliço, paxiúba, etc. .- para a acomodação pro- Inicialmente, a terra em si não constitu{a fonte de riqueza para o
visória do patrão, dos "seus homens" e das mercadorias, as quais varia- seringalista. O que lhe interessava era a borracha para o comércio e a
vam do perfume francês ao jabá, do quinino ao rifle 44. conseqüente aquisição de lucros. Mas, para tal, fazia-se necessário esta-
Acomodado o pessoal ~ as mercadorias, dava-se in{cio ao trabalho belecer o seu dom ínio sobre toda aquela região, já que outros elementos
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da flora - além da seringueira - e da fauna também eram importantes é o armazém. Ao lado, ligado por um trapiche de paxiúba, o escritQ-
para a manutenção do seringal. rio L.,)' Em seguida, estão a casa do ... guarda-livros, a escola, o curral e,
Outro aspecto, não menos importante a ressaltar, refere-se ao sig- por último, a residência do proprietário, um bonito chalé de madeira de
nificado mercantil-capitalista atribu(do à borracha. Identificada pelo lei, cercado de varandas."
abor(gene sempre como objeto de uso, no momento da formação do se- I'Por trás, beirando o aceiro da mata, sem preocupação de arruma-
ringal, a goma elástica passou a ser mercadoria de apreciável valor co- mento, o engenho, a casa-de-farinha, a barraca do mateiro e algumas
mercial-industrial, razão pela qual se deu a ocupação. outras de trabalhadores do campo. Mais adiante, já do outro lado do
Agora já estamos em condições de examinar um por um os elemen- igarapé, o barracão de hospedagem e o paiol de inflamáveis prudente-
tos componentes do seringal: o barracão, a colocação, as estradas de se- mente isolado por uma cerca de arame farpado."
ringa e a barraca do seringueiro, próximo da qual se localizava o peque- Sede do seringal, o barracão situava-se sempre às margens dos rios
no tapiri, onde se efetuava o processo de coagulação do látex. Examina- porque essa foi, desde os primeiros tempos da ocupação, a melhor via
remos também as categorias profissionais integrantes do seringal, procu- de acesso dispon ível na região. Esse condicionamento de ordem natural,
rando posicioná-Ias quanto à divisão social e técnica do trabalho. Fe- além do condicionamento sócio-histórico, fizeram com que os desbra-
chando a Unidade, estudaremos mais detidamente aquelas que se consti- vadores dos seringais acreanos, tanto no Juruá como no Purus, Iaco e
tu(am na própria razão de ser do seringal enquanto unidade produtiva Aguiry, montassem seus negócios nas margens e não em zonas centrais,
voltada para o mercado externo: o patrão-seringalista e o trabalhador uma vez que a localização ribeirinha Ihes facilitava o recebimento de
extrator-manufatureiro (o seringueiroL mercadorias diversas e o embarque da borracha ou outros produtos.
Desta maneira, o barracão era, além de sede administrativa e co-
mercial do seringal, também a morada do seringalista e sua família, ex-
2. O Barracão: poder, vigilância, circulação da riqueza no seringal ceç-ão, é claro, para os casos de seringalistas abastados que, no auge dos
bons preços na comercialização da borracha, preferiam residir em Ma-
O aumentativo representa símbolo de autoridade, de respeito e naus ou Belém, deixando um gerente como substituto. Tal fenômeno
obediência aos que nele vivem. Antes, ele foi uma simples habitação - a ausência do seringalista na propriedade - pode ser observado, tam-
(como já nos referimos anteriormente) feita com os próprios recursos bém, no período de declrnio ocorrido em conseqüência da competição
da selva, para a comodidade imediata. da produção gum(fera na 1\1alásia.
Do sucesso da produção dependia a ampliação do barracão. Muitos Mas o barracão funcionava também como núcleo gerador, estimu-
patrões constru (ram verdadeiros cha/ets, esti 10 su (ço, ornamentados lador e executor de todo um complexo de valores (ideologia), indispen-
com mobrl ia austrfaca, alguns de dois andares, cobertos de telha fran- sáveis para a reprodução do sistema. Lá eram celebradas festas de cará-
cesa, com varanda, etc. ter profano-religioso em fins de ano, festas juninas, assim como cerimô-
Os seringais menos prósperos conservavam o estilo primitivo, cons- nias de batizado e casamento. Essas últimas aconteceram freqüentemen-
tru (am seus barracões com paxiúba, cobrindo-os com palha ou cavaco. te depois de 1920, quando passaram a ser constantes as desobrigas de
Outros, no lugar da paxiúba, usavam tábuas. sacerdotes nos seringais.
O barracão, cujo sinônimo margem contrastava com o centro, a co- De simples casarões toscos, feitos de madeira roliça e cobertos de
locação do seringueiro, não designava apenas a casa do patrão, mas o palha, alguns barracões progrediram de tal maneira que, à primeira vista,
conjunto de todas as dependências que ativavam o funcionamento do pareciam pequenos núcleos urbanos. Outros levaram anos e não conse-
seringal na margem. JOSE POTYGUARA, em Terra Calda, nos descreve guiram ter esse aspecto, pois a capacidade de produção e habilidade no
um barracão, estilo clássico do início deste século: comércio extrativista eram fatores decisivos no desenvolvimento dessas
"Num campo apertado entre a mata e o rio, a sede do seringal é sedes.
apenas um embrião de povoado, um arremedo de rua paralela ao barran- O patrão precisava ser de confiança para que as Casas Aviadoras
co. Perto do porto, o primeiro casarão de madeira, coberto de zinco,. não Ihes deixassepl faltar nada. Além do Novo Andirá, outros Seringais
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3. Colocações, estradas e barracas: onde o seringueiro
produzia e "se escravizava"
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4. O dom ínio do capital: aliam-se capital financeiro privado e Estado Quando o seringueiro não tem família - e este era o caso mais freqüEm-
te - sua barraca possuía somente um-compartimento: era toda fechada,
Imponentes e alheias à vida do homem nos seringais, as casas avia- deixando um vao em seu interior, ou se fazia, em um de seus cantos,
doras monopolizavam a produção diretamente de seus escritórios em um quarto para dormir e guardar os pertences, deixando em aberto o
Manaus e Belém. A maioria dessas casas aviadiras representaram, até o restante, assoalhado ou não. Ocorria, em casos raríssimos, de a barraca
início da Segunda Grande Guerra Mundial, interesses principalmente do não ter assoalho, ou seja, o assoalho era o próprio chão.
capital europeu: ingleSes, alemães, holandeses, franceses e portugueses. Pouqu íssimas e miseráveis coisas ocupavam o interior da barraca.
Essas casas monopolizadoras da manufatura da borracha predomi- Os objetos mais freqüentes são: um cântaro (pote de barro para colocar
naram até à época da edosão da Segunda Grande Guerra Mundial água de beber), um fogão de lenha, uma rede, uma espingarda ou rifle,
(1939-45). Dali em diante dois órgãos passaram a geri-Ia: a Rubber Re- latas para guarda de comestíveis, etc. Banco e mesa faziam-se de toras
serve Development Company e o Banco de Crédito da Amazônia. En- curtas de "pau roliço" tiradas da mata.
cerrou-se, desta forma, a ação direta das casas aviadoras nos seringais e Próximo à barraca encontrava-se o tapiri (o defumador), local on- .
o monopól io passou a ser exclusivo desses órgãos. Agora, pelo novo de se defumava a borracha, geralmente todo fechado de palha e com
sistema operacional, os seringalistas passaram a receber financiamento uma pequena porta na frente.
bancário, dinheiro vivo, para tocar direto os seus empreendimentos. Re- O tapiri é uma pequena cabana geralmente fechada de palha, com
cebiam financiamento equivalente a 60% da produção pagando juros a uma única e pequena porta na frente, localizada nas proximidades da
7% ao ano. Como nos referimos anteriormente, as Casas Aviadoras fi- barraca. Ali encontra-se um defumador que, atirando espessos rolos de
nanciavam com mercadorias 100% da produção, pelo sistema de avia- fumaça, propicia a reação química do látex para o estado sólido.
mento, laços não totalmente desfeitos porque os seringalistas continua- A construção do tapiri e do defumador não exige material ou téc-
ram comprando de seus antigos patrões. Os aviadores procuraram ainda,
através das Associações Comerciais, dissuadir o governo brasileiro de tal
medida. Foi em vão o esforço.
Em síntese, a exploração creditícia emanada das Casas Aviadoras
para os seringalistas e destes para os seringueiros e, ainda, juntando-se a
esse contexto, o permanente contato do homem com a natureza no sen-
tido de vencê-Ia e transformá-Ia; a hostilidade eminente nas relações so-
ciais decorrentes da situação antagônica em que se encontravam os ho-
mens ligados ao extrativismo: patrões-seringalistas e produtores diretos
(seringueiros); o endividamento compulsório a que ambos eram subme-
tidos, a ausência de dinheiro nas transações comerciais, oisôlamento
humano que tornava a vida sem perspectiva; e, por fim, océi-ceamento
das liberdades do homem preso à produção, eram, em linhas gerais, as §..
matrizes sustentadoras do sistema de aviamento no extrativismo.
Uma estrada de seringa pode ter 130, 150 e até 200 seringueiras.
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Cortada uma estrada, ela terá que passar, no mínimo, dois dias em des- (,)
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rio, lago ou igarapé, tem sua armação feita de madeira de "pau roliço", -~ r..
C()berta de palha e assoalhada com paxiúba. As vezes, as paredes tam-
b~m são feitas com paxiúba, sem janelas e somente com uma porta. o tapiri.
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nica avançada: palhas, pau roliço, fibras, barro, encontrados nas proxi-
midades da casa do seringueiro. obedecia a um critério preestabelecido nem era única e válida para to- .
dos os seringais ou todas as épocas. Feitas essas ressalvas, poderemos,
entâo, prosseguir, examinando, no interior de cada grupo, a posição de
5. Varadouros: "veias abertas" do seringal cada um dentro da unidade produtiva.
No primeiro grupo vamos examinar as funções do gerente, do guar.
da-livros, do caixeiro, do noteiro e dos fiscais.
Estreitos e tortuosos, lamacentos na época das chuvas, os varadou- O gerente é a segunda pessoa na hierarquia do seringal. Substitui o
ros são pequenas estradas, abertas a machado e terçado. Ligam o barra-
cão às colocações, as colocações entre si, um seringal a outro e os serin- patrão quando ausente, mantendo a mesma postura autoritária do serin-
gais às sedes municipais. galista, na maioria das vezes. Nos casos em que o seringalista preferia
morar nas cidades de Belém ou Manaus, o gerente tornava-se o responsá-
A distância de uma colocação para outra varia de um, dois, três e vel único e permanente do seringal.
até mais quilômetros. E o varadouro vai passando de colocação a colo- Em seguida vem o guarda-livros. Este era o responsável por toda a
cação. E através do varadouro que caminham os comboios deixando as escrituração do barracão. Cabia-lhe registrar todas as mercadorias chega-
mercadorias para os seringueiros e trazendo as pélas de borracha para o das da casa aviadora e despachadas aos trabalhadores do seringal. Na au-
barracão. Nos casos em que não seja possível a comunicação entre uma sência do gerente era ele quem o substitu ía. As vezes, quando o barra-
e outra colocação, o comboio precisa voltar para pegar o varadouro cão não tinha gerente, o guarda-livros desempenhava esse papel. A res-
principal. Esse trecho que liga o varadouro principal à colocação chama- ponsabilidade desse elemento era de grande relevância, já que lhe com-
se manga.
petia fazer as anotações falsas ou verdadeiras da conta corrente; era ele
quem dizia se um seringueiro devia ou tinha saldo, se podia tirar mais
6. A cada um segundo a lógica do sistema: a divisão social mercadorias ou não. Entretanto, suas decisões dependiam da liberação
e técnica do trabalho no seringal do gerente ou do patrão.
Aos caixeiros sobrava-Ihes, ainda, alguns poderes de decisão no
barracão. Eram eles que abasteciam os centros, pesavam as borrachas,
Além dos donos dos meios de produção (patrões seringalistas) e
cuidavam dos armazéns de víveres e dos depósitos de borracha. O grupo
dos extratores gum íferos (seringueiros), molas-mestras do sistema (veja de caixeiros constituía o "policiamento" do seringal. Com autorização
o próximo tópico), o seringal necessitava ainda de outros trabalhadores
para que o sistema se reproduzisse. para até mesmo torturar infratores, alguns desses homens aproveitavam
a legação de poderes que Ihes eram atribuídos para humilhar e perseguir
Desta maneira, e para facilitar a compreensão, podemos dividir os
seringueiros, cortando-Ihes o fornecimento de mercadorias, destruindo
que trabalhavam nos diversos setores do seringa! em quatro grupos: algumas plantações feitas por eles, proibindo o contato dos seringueiros
1.0 - os que, desde o gerente, guarda-livros, caixeiros, fiscais e noteiros, com os regatões, etc.
representavam a autoridade, a fiscalização, o controle e a repressão; O caixeiro era o homem de confiança do patrão e o segurança do
2.0 - os que eram encarregados de fazer chegar às colocações tudo seringal. Geralmente preferiam homens fortes e autoritários. Não era
aquilo de que os seringueiros precisavam, isto é, os comboieiros; 3.0 - necessário ter conhecimentos especiais. Bastava-Ihes saber escrever e fa-
aqueles que, desde o mateiro, o toqueiro (ou piqueiro) e o roceiro, ti- zer simples operações matemâticas, já que a contabilidade era atividade
nham a função de descobridores da seringueira e preparo da área onde do guarda-livros.
se daria o trabalho da extração do látex; e 4.0 - os que exerciam ativi- Aqui e ali os barracões possu íam "fiscais" que vez ou outra percor-
dades ligadas à produção de subsistência ou à execução de tarefas varia- riam as colocações verificando se o seringueiro estava usando método
das, como os caçadores, pescadores e trabalhadores do campo. Antes de correto no corte da seringueira. Uma série de normas deviam ser cum-
descrevermos e analisarmos brevemente em que consistia o trabalho pridas, como, por exemplo, o corte na árvore não podia ser desferido de
desses homens, é bom lembrarmos que esta divisão do trabalho não maneira profunda. Mas a fiscalização não se esgotava ar. Investigava-se
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se o seringueiro se ocupava de outra atividade que não o extrativismo dores de campo que se dedicam às criações (galinhas, porcos, gado,
ou se tinha pélas de borracha suficientes para sanar as d (vidas. Nos casos etc.). Limpam o campo, fazem cerca, etc. Esses últimos - os trabalha-
mais sérios esses homens traziam o seringueiro à presença do patrão pa- dores de campo - surgiram tempos depois da formação dos primeiros
ra ser penalizado ou interrogado. A presença desses indiv(duos não se seringais.
generalizava em todas as sedes. S6 as mais importantes os possu(am. De modo geral, todos eles gozavam de privilégios em relação ao se-
Jã os noteiros eram aqueles que, quase sempre chefiando os com- ringueiro. Só o fato de estarem habitando na margem jã indicava melhor
boios, anotavam as merCadorias descarregadas nas colocações, bem co- status. Notrcias dos núcleos urbanos, das grandes cidades e até mesmo
mo registravam as pélas de borracha que seriam levadas para o barracão. noticiãrio internacional chegavam até eles, apesar do atraso de meses.
Do segundo grupo, destacamos o comboieiro, aquele que, cuidan- Morar na margem era bom, particularmente para caixeiros, guarda-
do do comboio (alguns muares), transportava mercadorias (arma, ali- -livros e fiscais, pois significava estar pr6ximo do poder e dele esperar
mentação, medicamentos, etc,), semanal ou mensalmente, para o centro recompensas pelos "bons serviços" prestados.
do seringal, levando para o barracão a borracha produzida. Quando
analfabeto - e essa era a regra - o comboieiro era acompanhado por
um noteiro, cuja função já foi descrita. De qualquer modo, o comboiei- 7. Sua vontade era lei: o poder do seringalista
ro constitu(a-se num elo importante na cadeia do aviamento, pois cabia
a ele tornar viável o escoamento da produção. ... "O respeito que impõe, a di-
Vejamos agora o terceiro grupo, constitu(do pelos mateiros, to- reção que precisa dar aos negó-
queiros ou piqueiros e roceiros. cios do seringal exige-lhe ação
O trabalho desses três, cada um com função especffica, estava inti- pronta, enérgica, e explica a
mamente relacionado com a abertura e preparo das estradas de seringa aspereza. Tem que ser dinâmi-
para a produção. Encontrada a primeira seringueira pelo mateiro, o to- co, rude, talvez tirânico. Qual-
queiro faz uma pequena limpeza ao seu redor e senta-se em seu tronco, quer fraqueza, qualquer inde-
advindo-Ihe dar sua denominação - toqueiro. O mateiro vai em busca cisão pode levar a um desastre.
de outra seringueira. Encontrando-a, dá um tiro para o alto. Ouvido o O senhorio que exerce precisa
ser mantido sem hesitações.
tiro e marcado o rumo, o toqueiro começa a abrir uma picada (apenas
uma noção do caminho, aparando os galhos de árvores), pois a tarefa de Lança mão de recursos bárba-
melhorar o caminho até transformã-Io em estrada cabia ao roceiro. A ros, muitas vezes, para poder
conter o desenfreio natural no
operação se repete. E lã vão os dois abrindo a estrada de seringa, de for-
ambien te duro, é verdade..."
ma que a última seringueira da estrada esteja próxima da primeira, pos-
sibilitando, portanto, que o ponto de chegada seja o ponto de partida. (Arthur Cesar F. Reis,op. cit.,
Desta maneira, observamos o inter-relacionamento destas três ativida- p. 114,)
des: o mateiro procura a seringueira, o piqueiro faz o pique, ligando
uma seringueira a outra e o roceiro limpa o pique até que este fique em
condições de se caminhar. Após a execução desse trabalho, a estrada O seringalista representa a figura central do seringal.E geralmente
está pronta. trata-se de um "aventureiro" que, tendo conseguidodas casasaviadoras
Por fim, o quarto grupo é aquele formado por trabalhadores que se de Belém ou Manausum fornecimento de mercadorias, recrutou algu-
dedicavam a atividades relacionadas ao abastecimento suplementar do mas dezenas de homens - migrantesnordestinos - e veio se estabelecer
seringal, assim como a tarefas ligadas à preservação do patrimônio do se- às margens de algum rio das bacias do Juruá ou do Purus.
ringalista. São eles os caçadores e pescadores, encarregados de suprir o Homens de pouca cultura - a maioria mal sabia ler, escrever ou fa-
barracão com alimentação proveniente da própria selva. São os trabalha- zer algumas operações contábeis - muitos deles já haviam estado aqui
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como exploradores, quando abriram caminho ao povoamento. Suas ori- tados" aqueles que não obedecessem a essa norma.
gens não remontam a nenhuma tradição de riqueza. São nordestinos Homens arregimentados não só no Ceará, mas em todo o Nordeste
que perderam todas as perspectivas de vida abastada em sua terra natal. os seringueiros suportavam toda sorte de violências: subordinação po~
A forma bem particular de organização do trabalho no seringal dívida, isolamento social, além de outras sanções emanadas do barracão
tornou esses homens autoritários, arrogantes e insaciáveis em suas pre- e, ainda por cima, a brusca mudança climática a que eram submetidos.
tensões. Desejosos de .enriquecer rápido e facilmente, à custa da explo- O clima quente e úmido, acrescido de doenças endêmicas e infecciosas,
ração do trabalho forçado e ininterrupto dos extratores do látex (os se- comuns à região, completavam o quadro de sacrifício por que passaram
ringueiros), assumiram uma postura de "ser supremo" do seringal. Con- esses trabalhadores.
sideravam-se os árbitros para o estabelecimento do erro ou da verdade. O seringueiro, pela própria natureza de seu trabalho, tornou-se fi-
Castigando com surra, amarrando no "tronco" ou mandando ma- gura singular na história do trabalhador nacional. Não há nada que o as-
tar os infratores de seus interesses, em certos casos desempenhavam até semelhe a outros trabalhadores produtivos. Não tinha vínculo emprega-
o papel de "juiz de paz" daquela região (do seringal), fazendo casamen- tício do ponto-de-vista legal, mas estava subordinado a um patrão; ocu-
tos, registrando nascimentos, mortes, sentenciando pena e dando o per- pava enormes faixas de terras (as colocações), porém delas não podia
dão. Eram a cruz e a espada a um só tempo na luta contra a conta-cor- fazer uso, isto é, fazer pequenos cultivos agrícolas de subsistência, por-
rente da casa aviadora. que as normas do barracão o proibiam. A ordem vigente era produzir
A um p'atrão seringalista, na época gloriosa da borracha, não se po- mais e mais borracha. A jornada de trabalho, então, não se resumia a
dia contrariar, por mais absurdas que fossem suas deliberações. Muitos simples oito horas por dia. Era muito mais. Geralmente o seringueiro
adquiriram patentes de coronel, major, capitão e, a exemplo dos coro- punha-se de pé às duas horas da manhã, preparava o café, tomava-o, em-
néis do Nordeste, tornaram-se classe poderosa. Os "coronéis de barran- punhava os instrumentos de trabalho (faca ou machadinha) poronga, fa-
co", como eram denominados os seringalistas, mandaram e desmanda- cão e rifle) e ganhava a mata para cortar madeiras. Por volta das onze,
ram, participando mu itos deles na pol ítica e administração do Acre-Ter- terminando o "corte", comia um pouco de farofa, no mato mesmo, e
ritório. Esse era mais um aspecto do poder que detinham. Um outro era de posse de um balde ou saco encauchado (impermeável) iniciava a "co-
a imagem de nobre que procuravam ostentar. O patrão "nobre", vez ou lha" do látex. As quatro da tarde chegava à barraca e dirigindo-se à de-
outra, viajava a Belém, Manaus e até ao exterior, promovendo ou parti- fumaceira iniciava o processo de defumação das "pélas" ou "bolotas"
cipando de banquetes ou diversões proibitivas. Mas eles podiam desfru- de' borracha. Esse trabalho todo terminava por volta das vinte horas. Aí,
tar de tudo isso: possuíam crédito nas praças aviadoras e braços para o então, é que ele podia fazer higiene corporal e comer alguma coisa. Es-
trabalho nos seringais. tava preparado para o dia seguinte. Deitava-se às onze para levantar-se
às duas.
Outros preferiam o turno da noite. Entravam para o corte às 18
8. Cortar seringa, empenhar a vida: o seringueiro horas, só conseguindo ficar livres às onze horas do dia. Dormiam das
e o sistema de aviamento 13 às 17, para às 18 continuarem a rotina. Assim era por toda a safra, já
que a dívida contraída no barracão precisava ser paga. Se adoecessem, o
Nem assalariado, nem escravo, o seringueiro era o suporte de uma jeito era sarar à custa de quinino ou beberagens do mato. Do contrário,
super-exploração começada nas casas aviadoras e prolongada na materia- morriam ali mesmo - sozinhos. E foram muitos os que pereceram aco-
lização do seu trabalho, isso porque o sistema organizador da produção metidos de impaludismo, beribéri, tifo, pneumonia, picadas de cobras,
extrativista assim determinava. Manietado por dívida, o seringueiro tam- etc. Nas barracas habitadas por mais de uma pessoa, o quadro também
bém não era trabalhador livre. Seria, se pudesse abandonar um local em não era menos desagradável, pois ocorria que todos ficavam doentes ao
que estava trabalhando por outro, o que se tornava impossível tendo em mesmo tempo, sem que um pudesse ajudar o outro. Assim mesmo, no
vista que os seringalistas organizados em Associações não permitiam fim do mês, o comboio encostava para deixar mercadoria e levar borra-
saídas enquanto as dívidas não estivessem de todo sanadas. Eram "mul- cha. Deixar mercadoria... se tivesse borracha.
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Claro que as endemias s6 eram mais comuns naquelas levas recém- Ano Preço do quilograma
-chegadas, nos "brabos" chamados. Depois, se aclimatados, cessavam as
doenças. Os sobreviventes, mesmo gozando de relativa saúde, não ti- 1825 220 réis
nham boas perspectivas de vida, pois iam enfrentar d(vidas acumuladas 1893/4 5 $ 240
anos ap6s anos. Uma conta infinita. O preço do quilograma de borracha 1894/5 5 $ 720
não compensava os preços dos produtos importados, acima de 100% de 1897/8 10 $ 298
seu valor real. E não havia alternativa em procurar mais barato. Primei- 1910 17 $ 800
ro, porque não ocorria moeda: o seringueiro comprava e pagava em es-
pécie; segundo, porque a borracha produzida pertencia ao seringalista A produção amazônicade borracha
que havia fornecido mercadorias. Aliás, nesse fornecimento podiam ser atingiu o seu cl(max em 1911, quan-
inclu(das até mulheres. Para os seringueiros que tinham saldo, o patrão do chegou a 44.296 toneladas.
trazia companheiras, mas cobravam. Digamos, eram debitadas na conta
do seringueiro todas as despesas de hotel e passagens feitas de Manaus A estabilidade dos preços permitiu não s6 a obtenção de lucros por
ou Belém até o destino da criatura que vinha nessas condições. Não era parte dos donos de capitais que investiam nos seringais, mas também o
uma venda da pessoa humana propriamente dita, mas uma violência a fortalecimento dos seringalistas e a conseqüente permanência dos serin-
mais cometida pelo sistema de aviamento. A mulher não era comum nos gueiros frente à produção.
primeiros decênios da existência do seringal, por isso o seringalista a im- Daí para frente, a produção internacional começou a interfe-
portava, com a condição de s6 desposá-Ia quem tivesse condições de rir negativamente nas relações comerciais internas, sujeitando o merca-
custear suas despesas. A um trabalhador doente ou que estivesse com do externo e o extrativismo à grande crise de 1912. A borracha silvestre
débito elevado isso não era permitido. perde a cotação, os preços vão por terra e a principal economia regional
Graças a uma conjuntura internacional que manteve, durante algu- começa a agonizar. Os envolvidos na produção procuravam alternativas.
mas décadas, um n (vel favorável dos preços, e à imposição de um regime Os aviadores cortavam o fornecimento pelo meio e aumentavam os pre-
de trabalho que conservava o seringueiro em "cativeiro", isto é, atrelado ços dos v(veres. O seringalista, por sua vez, usava o mesmo método em
e subjugado ao barracão pelo saldo quase sempre negativo, o que signifi- relação ao seringueiro. Patrões que não se encontravam nas sedes envia-
cava garantir com razoável regularidade a força de trabalho indispensá- vam comunicados patéticos aos seus gerentes: "Confio em você. Não
vel, foi possível conseguir níveis elevados de produção e de lucros. afrouxe no balcão: mercadoria s6 para quem tem saldo ou está tirando
O Acre conseguiu ser, nas primeiras décadas deste século, o tercei- lenha." (José Potyguara, Terra Caída.)
ro maior contribuinte tributário da União, s6 ficando atrás dos Estados Diante dessa nova conjuntura econômica, as forças concentradas
de São Paulo e Minas Gerais. A produção crescera velozmente conforme no barracão vão se deteriorando gradativamente. As normas rígidas
o planejamento daqueles que comercializavam a borracha. A produção afrouxavam. O que era antes proibido, como plantar pequenas roças,
da goma elástica na Amazônia, principalmente no Acre, atingiu, no pe- agora era permitido. Uma agricultura incipiente surgia. Todos podiam
r(odo de 1895 a 1909, a casa das 443.200 toneladas, contra 374.510 do plantar. O barracão dispunha de pouca mercadoria, estocando o essen-
mesmo produto produzido na Africa, América Central e Malásia. A he- cial à sua subsistência enquanto instituição. O trânsito de um para outro
gemonia brasileira era indiscutível até ar. A concorrência internacional seringal passou a ser livre. Começava o grande êxodo, nunca antes cogi-
- elemento integrante do capitalismo monopolista - ainda não assusta- tado. Até 1941, sa(das e entradas em seringais tornaram-se rotina. O go-
ra as firmas aviadoras e os seringalistas. verno tentou reagir para salvar a economia extrativista, porém esbarrava
Os preços do quilograma de borracha, em decorrência da não satu- nas regras impostas pelo capital internacional. O Brasil não tinha para
ração de mercados, evolu íam satisfatoriamente. Por mais de 60 anos quem vender. Até os regatões, negociantes fluviais, figura outrora detes-
não se verificou estagnação. Observe a tabela: tada pelo barracão, passaram a exercer livre comércio. Compravam e
vendiam abertamente aos seringueiros. O que não se encontrava nas
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lojas dos barracões era certo descobrir no comércio do regatão. O pró- ~
Chegamos, por fim, aos dois últimos tipos de significação na paisa- No pr6prio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a
gem social do seringal. Referimo-nos ao "Brabo" e ao ''Seringueiro'~ O dever: deve a passagem de proa até o Pará (35$000), e o dinheiro que
primeiro é o nordestino novato nas operações de extração do látex. recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do
Chegado ao seringal, desconhece as técnicas de trabalho, os segredos da transporte, num "gaiola" qualquer de Belém ao barracão longfnquo a
mata. E ainda um estranho ao meio f(sico e ao meio s6cio-econômico. que se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se cerca de
Ensina-se-Ihe tudo. Necessariamente comete, nesses primeiros tempos, 800$000 para os seguintesutensfliosinvariáveis: um boiãode furo,
grandes imprudências, erra constantemente, reclama, ressente-se daque- uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um
le mundo de novidades com que se defronta. Em pouco, porém, se vai terçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos,
aclimando, perdendo as hesitações, afeiçoando-se às contingências lo- duas colheres, duas xlcaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéis
cais, aprendendo o que deve aprender para poder permanecer no serin- de linha e um agulheiro. Nada mais. Aftemos o nosso homem no "bar-
gal e realizar os seus sonhos de enriquecimento. Vencida essa fase de racão" senhoril, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrOo
experiência, de tomada de contacto, deixa então de ser um "brabo". lhe designará. Ainda é um "brabo", isto é, ainda nOoaprendeu o "corte
E atinge a condição ambicionada de "seringueiro". Já não mais se ate- da madeira" e já deve 1:135$000. Segue para o posto solitário encalça-
moriza com o ambiente, que desvenda, interpreta e procura dominar. do de um comboio levando-lhe a bagagem e vfveres, rigorosamente mar-
Sente-se, então, um vitorioso. Está, assim, assimilado e incorporado de cados, que lhe bastem três meses: 3 paneiros de farinha d'água, 1 saco
vez ao quadro permanente que movimenta e dá cor definitiva à paisa- de feijOo, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de charque, 21
gem humana do seringal. de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de
quinino. Tudo isso lhe custa cerca de 750$000. Ainda não deu um ta-
(Arthur César Ferreira Reis. O Seringale o Seringueiro. Ministério da lho de machadinha, ainda é o "brabo" canhestro, de quem chasqueia o
Agricultura - Serviço de Informação Agr(cola, Rio de Janeiro, 1953. "manso" experimentado, e já tem o compromissosério de 2:090$000.
p. 116.)
(Euclides da Cunha. Ã Margemda Hist6ria. Porto, Portugal, Editora
LelloBrasileiraS.A., 1967.pp. 24-25.)
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86
LEITURA COMPLEMENTAR EXERcrCIO
DEMARCANDO AS FRONTEIRAS:
da Bula Intercoetera ao
Tratado de Ayacucho
1. Noções Iniciais
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2. A partilha do mundo: a Bula Intercoetera e o Tratado de Tordesilhas
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assinar um acordo (Tratado de Tordesi lhas) a 07 de junho de 1494, que
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r a oeste do Arquipélago de Cabo Verde.
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Este novo acordo: "... deixou que os portugueses pusessem um pé
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Como o Brasil ficou assim? Formação das fronteiras e tratados dos li-
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lhe interessava era terra; terra que, de certa forma, lhe proporcionasse
riqueza.
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Em 1844, a BoHviatentou franquear o rio Amazonasà navegação numerosa para concretizar tal projeto. Primeiro, porque grande parte da
internacional, contando com o apoio dos Estados Unidos, levando o Im- população boliviana fora dizimada na Guerra do Pac(fico. Segundo, por-
perador D. Pedro II a protestar veementemente. A BoHvia recuou, mas que não se podia deslocar os trabalhadores das minas, sem provocar pre-
em troca exigiu que fossem recomeçadas as conversações demarcatórias ju(zos a tal atividade - base de sua economia. Ademais, os (ndios boli-
propostas pelo Tratado de Santo IIdefonso. Essa insistência iria perdu- vianos, acostumados com o clima dos altiplanos, não se adaptariam fa-
rar até 1867, quando a assinatura de um acordo solucionaria, tempora- mente a esta região de clima tropical. Acrescente-se a esses obstáculos a
riamente, a questão. precariedade de recursos financeiros e técnicos próprios, além da especi-
Deste modo, cedendo às pressões da BoHviae dos Estados Unidos, ficidade de interesses dos investidores e dirigentes pol (ticos.
o Brasil assinava a 7 de dezembro de 1866 um tratado, segundo o qual a Certo é que, apesar de o Governo ter eliminado todo e qualquer
navegação do rio Amazonas estaria: imposto pessoal de quem fosse trabalhar no Acre, o contingente migra-
"... aberta, desde o dia 7 de setembro de 1867, aos navios mercan- tório boliviano para esta região foi insignificante.
tes de todas as nações, (,..) até à fronteira do BrasiL" Quanto ao processo de ocupação do lado brasileiro, desde há mui-
(Craveiro Costa. A Conquista do Deserto Ocidental. p. 16.) to, as bacias do Juruá e Purus não se constitu(am mais em mistério para
Deve-se ressaltar, no entanto, que a decisão do governo imperial rijos e destemidos trabalhadores nordestinos. Aos poucos, um contin-
brasileiro em abrir o rio Amazonas à navegação internacional não foi gente apreciável de trabalhadores empobrecidos, estimulados pela pro-
conseqüência única ou especial das pressões bolivianas. Deve-se levar em paganda enganadora do enriquecimento fácil, foi ocupando esta região,
~onsideração que, estando em guerra com o Paraguai, não interessava ao não lhe importando lIonde terminava o Brasil". Concomitantemente, o
governo brasileiro desconsiderar totalmente as pretensões bolivianas, Estado do Amazonas passou a jurisdicionar toda a região ocupada, sem
pois um IIcochilo diplomático" poderia levar a Boi(via a aliar-se ao ini- se preocupar com uma questão tão importante como a cessão de títulos
migo do Prata. definitivos em território boliviano, tudo isso, entretanto, sem nenhum
Mas, por que a Bol(via estava tão interessada em estabelecer os planejamento, pois o que interessava prioritariamente ao Estado do
seus limites nesta região, considerada em seus mapas como terras não- Amazonas era o aspecto tribu1ário. Veja o que diz Peregalli:
-descobertas? "Os trabalhadores brasilei ros ocuparam e colonizaram territórios
Desde a primeira metade do século XIX, a borracha era matéria- além das fronteiras estabelecidas nos acordos internacionais. Mas este
-prima ambicionada pelas indústrias da Europa e, posteriormente, dos processo não foi planejado pelo Estado, pelo contrário, o Estado se
Estados Unidos. As pesquisas vinham demonstrando sua viabilidade e aproveitou deste deslocamento de sobrevivência para incorporar novas
importância no mercado consumidor mundial. E aqui - na região entre regiões."
o Madeira e o Javari - encontrava-seo habitat natural das árvoresque Como resultado dos esforços no sentido de harmonizar todos estes
jorravam leite. Por isso, mesmo não dispondo de quantidade de braços interesses, foi assinado, a 27 de março de 1867, o Tratado de Aya-
suficientes e adequados para a ocupação econômica da região, intentou cucho.
a Boi(via, pelo menos, obter o reconhecimento da área como definitiva- Tal tratado estabelecia que: "Deste rio (Beni, na sua confluência
mente sua. com o Madeira), para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada
Por que a Boi(via não ocupou logo esta região, a exemplo do que da sua margem esquerda, na latitude 10020', até encontrar as nascentes
fez o Brasil? do Javari." Entretanto, o artigo 11.0 do tratado ressalvava que "se o Ja-
Desde o in(cio de sua colonização pelos espanhóis, a Bolrviavol- vari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a
tou-se primordialmente para a extração de minérios que, pela sua abun- fronteira, desde a mesma latitude, por uma reta a buscar a origem prin-
dância e concentração numa pequena extensão territorial, desestimulou cipal do Javari."
o adentramento de seus exploradores em direção ao coração da Sul- Por este acordo diplomâtico o Brasil anexava nada mais nada me-
-América. Ouando o governo boliviano se deparou com a necessidade nos do que 160.000 km2. Além do mais, neste, como em outros trata-
de ocupar o Acre, não contou com uma população suficientemente dos assinados entre os pa(ses vizinhos, prevalecia o prindpio do uti pos-
96 97
sidetis. Como nos tratados de 1750 e 1777, a acordância definitiva fica-
ria aguardando o resultado das pesquisas das comissões demarcatórias a
serem constituídas pelas duas nações.
TRATADO DE AYACUCHO
." O aft. 11.0do tratado- o mesmoque contém a descripçlioda Em 1867, a Bol(via insiste, com decidida energia.
fronteira, (...) - abre com o seguinte preâmbulo: Acha-se o Brasil em guerra com a República do Paraguai. E o mo-
"Sua Magestade o Imperador do Brasil e a República da BaIl'o. mento é, pois, excepcionalmente oportuno para o governo do tirano
via concordam em reconhecer como base para a determinação Melgarejo "sugerir" a conveniencia de ajustar, com a "poss(vel brevi-
da fronteira entre os seus respectivos territórios o uti posside- dade", a questlio dos seus limites, ainda sujeita a controvérsias.
tis e, de conformidade com este princ(pio, declaram e defi- Em semelhante conjuntura, o Império compreende a gravidade da
nem a mesma fronteira do modo seguinte:" contingência, que pode até custar a agregaçlio do exército boliviano às
O princ(pio a que o tratado obedeceu foi, pois, o do respeito à hostes guerreiras de Solano Lopez.
posse. Ora, a posse dessa região era e sempre foi portugueza; passou a Haja, pois, o encontro de diplomatas, tão desejado pela Boi(via.
ser e sempre foi brasileira;posse mansa e paclfica; posse real e effectiva, A discusslio é rápida, como impõem as circunstâncias. E o resulta-
traduzida no estabelecimento de frades jesuftas; na exploração de ban- do concretiza-se no Tratado de Ayacucho, firmado em La Paz, aos 27
deiras paulistas no século passado; nas viagens e explorações de brasilei- de março de 1867.
ros neste século; na sua fix ação alli; na creação da indústria da borracha, Bom ou mau?
da navegação e do comércio... Computando as vantagens imediatas, o Brasil sa(a realmente lesa-
do. Porque, a nlio ser que demarcações rigorosas viessem a contraditar o
(SerzedelloCorrêa. "Ligeiro estudo sobre a ocupaçãoParavicinino Rio
que já fora estabelecido sobre as nascentes do rio Javari,ficariamper-
Acre: limites, navegaçãoe comércio com a Boi(via", in O Rio Acre. Rio
de Janeiro, CasaMont' Alverne, 1899.) tencendo à Bolfvia todos os muitos milhares de léguasquadradasque
hoje integram o Territóriodo Acre. Sem falarda circunstância,intima-
mente ligada aos entendimentos preliminares desse Tratado, de que
poucos meses antes - cedendo à dominadora influencia liberal de Tava-
res Bastos, à pressão demonfaca da campanha movida na América pelo
geógrafo /V/aurye à polftica das grandes iniciativas mercantis de Mauá.
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e os do próprio Javari, como Itecuaí, já navegado por vapores em mui-
tOSdias de viagem.
Nestas condições, penso que podeis apresentar ao ministro bolivia-
no o alvitre de ser descoberta a verdadeira origem do Javari, e, uma vez
LEITURA COMPLEMENTAR reconhecida, ali se colocar o último marco da fronteira com a Bolfvia.
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THAUMATURGO RECUSA O TRATADO DE AYACUCHO (CraveiroCosta. A Conquista do Deserto Ocidental: subst'dios para a
história do Território do Acre. São Paulo, Ed. Nacional, 1973.pp. 15-
Logo, nUo sendo conhecida até hoje a verdadeira origem principal 16.)
do Javari, sabendo-se, entretanto, positivamente, que ela se estende aci-
ma do último marco à margem esquerda desserio, aos 6059' 29", 51at.
S e 740 6' 26", 6710ng. O. G., tomando-se como nascente verdadeira a
lat. S. JO l' 17" 5 e long. O. G. 740 8' 27" 7, determinadas pela segun-
da comissão demarcadora com o Peru, a mim parece que o governo nUo
tem o dever de aceitar como nascente principal do Javari o referido
ponto. Antes, para cumprir a letra do tratado, e não sancionar oficial-
mente um erro geográfico no seu próprio território, deve mandar desco-
brir a nascente principal desse rio para af ser colocado o último marco
da fronteira com a Bolfvia."
... .. ... ... .. . ... .. . . .. " .. . . ... ... .. . . .. .. ....
"Aceitar o marco do Peru como o último da Bolfvia, devo infor-
mar-vos que o Amazonas irá perder a melhor zona de seu território, a
mais rica e a mais produtiva; porque, dirigindo-se a linha geodésica de
1(JJ 20' a 7' e 17",5 ela será muito inclinada para o norte, fazendo-nos
perder o alto rio Acre, quase todo o laco e o alto Purus, os principais
afluentes do JurutJ e talvez os do Juta( e do próprio Javan~'os rios que
nos dão a maior porção de borracha exportada e extraÚ:Japor brasilei-
ros. A área dessazona é maior de 5.870 léguas quadradas. Toda essazo-
na perderemos, alitJs, explorada e povoada por nacionais e onde já exis-
tem centenas de barracas, propriedades leg(timas e demarcadas e serin-
gais cujos donos se acham de posse há alguns anos, sem reclamaçUo da
Bolt'via, muitos com tl'tulo provisório, só esperando a demarcaçUopara
receberem os definitivos. Portanto, a serem executadas as instruçOes
que me destes, terá o A mazonas que perder 46% da produçUo da borra-
cha ou, anualmente, 2.610:960$600, no caso da linha de limites nUo
abranger os afluentes do rio Juruá; ou, se abranger, a perda será de 68%
e a renda desfalcada de 3.859:680$000 e maior ainda será o preju(zo e
desfalque na renda, se a mesma linha nUo salvar os afluentes do rio Juta(
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