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SAMIZDAT

www.revistasamizdat.com

19
agosto
2009
ano II

ficina
SAMIZDAT 19
agosto de 2009

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho

Revisão Geral Neste ano de 2009, comemora-se o bicentenário de nasci-


Volmar Camargo Junior mento de Edgar Allan Poe, e também 160 anos de sua morte.
Joaquim Bispo Em vida, Poe foi uma figura controversa, de poucos ami-
gos e de inúmeros adversários; após sua morte, tornou-se um
dos mais importantes autores de língua inglesa e tem seu
Assessoria de Imprensa lugar garantido na galeria dos mestres da Literatura.
Mariana Valle Inaugurou o gênero policial e foi um dos primeiros a
se aventurar na nova ficção científica. Trouxe o bizarro, o
Autores terrível, o fantástico para as páginas de seus livros e para os
Barbara Duffles versos de seus poemas.
Carlos Alberto Barros
Nesta edição, os autores da SAMIZDAT prestam sua home-
nagem a este gênio literário, que, através de suas narrativas
Eder Ferreira maravilhosas, mergulhou nas profundezas dos tenebrosos
Giselle Natsu Sato medos humanos.
Guilherme Rodrigues Também passamos a contar com a participação do es-
Henry Alfred Bugalho critor Eder Ferreira, mais um a embarcar nesta nossa longa
Joaquim Bispo jornada.
José Espírito Santo
Henry Alfred Bugalho
Jú Blasina
Léo Borges
Marcia Szajnbok
Mariana Valle
Maristela Scheuer Deves
Volmar Camargo Junior

Autores Convidados
José Guilherme Vereza
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
Textos de: a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Augusto dos Anjos Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
Edgar Allan Poe free ou sob licença Creative Commons.
Machado de Assis
Os textos publicados são de domínio público, com consenso
ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-
Imagem da capa: mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de
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misteraitch/2302386855/sizes/o/
As idéias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
autores.
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Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

COMUNICADO
SAMIZDAT Especial de Mistério e Suspense 8

ENTREVISTA
Isidro Iturat 10

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


A Igreja do Diabo 16
Machado de Assis

Poesia 24
Augusto dos Anjos

CONTOS
O Retrato do Juiz 28
Joaquim Bispo
O Lobo Vermelho (segunda parte) 32
Volmar Camargo Junior

Contrata-se um Ghostwriter 36
Henry Alfred Bugalho
Rabiscos de um quase normal 42
Jú Blasina

As engrenagens da felicidade 44
Léo Borges
Ciúme 48
Marcia Szajnbok
A Caligrafia 52
Barbara Duffles
O Admirador - Final: O Enterro 54
Maristela Deves
A menina e as doze badaladas 56
Giselle Sato

Autor Convidado
O Escritor 60
José Guilherme Vereza

TRADUÇÃO
Annabel Lee 64
Edgar Allan Poe
A Máscara da Morte Vermelha 66
Edgar Allan Poe

TEORIA LITERÁRIA
O Bicentenário de Edgar Allan Poe 72
Henry Alfred Bugalho
Publicação Independente ontem e hoje 80
Henry Alfred Bugalho

CRÔNICA
A Morte sem Vida 84
Guilherme Rodrigues

Pouco Racistas 86
Joaquim Bispo

A mais bela das artes 88


Eder Ferreira

A Idade da Velhice? 90
Henry Alfred Bugalho

POESIA
Poesia Visual 92
Carlos Alberto Barros
Mais eu 94
José Espírito Santo
Na rua 95
Mariana Valle
Laboratório Poético: Desespero e Pássaros
Carniceiros 96
Volmar Camargo Junior
Blavinos 98
Ju Blasina
Poesias 99
Ju Blasina

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 101


Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6
6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Comunicado

SAMIZDAT Especial
Mistério e Suspense
http://www.flickr.com/photos/ericmorse/454379200/sizes/l/

8 SAMIZDAT agosto de 2009


8
Estamos preparan- 5 - Por se tratar duma
do a quinta edição do obra de divulgação, não
­SAMIZDAT Especial, serão pagos direitos
contemplando o gênero autorais. A publicação e
Mistério e Suspense. a distribuição do E-Zine
não acarretará, tampouco,
1 - Todos os colabora- em custos para os autores
dores fixos do E-Zine po- participantes.
dem participar e sugerir
autores colaboradores; 6 - O SAMIZDAT Espe-
cial - Mistério e Suspen-
2 - Também serão se será publicado durante
aceitos textos enviados o mês de setembro no
voluntariamente por blog, e na edição em
autores externos, para as .PDF em 1 de outubro.
seguintes seções do E- Por isto, solicita-se aos
Zine: autores interessados que
entrem em contato até o
a - Resenha de Livros; final de agosto, através do
e-mail
b - Teoria Literária ou
de Mistério e Suspense;

c - Autor convidado revistasamizdat@hotmail.com


(prosa ou poesia);

d - Traduções;
Indicando, no assunto
e - Crônicas; do e-mail, SAMIZDAT
Especial 5, e em qual se-
3 - Serão seleciona- ção o texto se enquadra
dos, ao todo, entre 3 e (ver item 2).
5 textos para cada uma
das seções acima, mas a
edição do E-Zine possui o
direito de selecionar mais
ou menos obras.
Abraços a todos,
4 - Não há limites
de palavras, mas como Equipe da SAMIZDAT
se trata duma publica-
ção voltada para o meio www.revistasamizdat.com
digital, solicita-se que
não sejam enviados tex-
tos mais extensos do que
umas 2500 palavras.

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Entrevista

ISIDRO ITURAT
Para mais informações sobre Isi-
dro Iturat e sobre o indriso, leia:

http://www.revistasamizdat.
com/2008/10/voc-conhece-o-
indriso.html

foto: Arquivo pessoal


O indriso pode ter va- autor tem total liberdade
riantes, como duplos e criativa.
triplos? O senhor aceita Sobre as composições for-
esta possibilidade de madas com mais de um
criação? indriso, posso dizer que eu
Isidro Iturat: O único mesmo venho ensaiando
limite no indriso está na isso desde que comecei
associação dos dois terce- a escrevê-los. Até agora,
tos e das duas estrofes de testei associações que vão
verso único duplicados, de 2 até 5 poemas, com
pois é isso o que o define. diferentes graus de ligação
Em relação a outras parti- semântica e formal. Cito
cularidades textuais (medi- alguns exemplos próprios:
da nos versos, rima, te- I. [Cada vez de Eco menos
mática, estilo, associações queda.], II. [Narciso del
de vários indrisos, etc.) o lago se enamora:], Zwan-

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gsneurose (La obsesión), logicamente, gosto de ver sim um determinado grau
Algunos descendientes de e agradeço. de insuficiência. Acho que
Caín, Los sentidos corpo- isso acontece simplesmen-
rales. te porque um objeto como
De onde surgiu o desejo a poesia é uma plasmação
de criar a forma poética artística de tudo aquilo
Apesar da liberdade, dos indrisos? que o ser humano é e
concorda que é extre- II: Na verdade, não hou- capta do mundo. Por isso,
mamente difícil compor ve desejo consciente. O tentar percebê-la só atra-
um indriso com conteú- indriso é uma imagem vés da função intelectual
do e forma em perfeita que a minha cabeça criou é impossível, porque o ser
harmonia? de forma espontânea. Às humano não percebe as
II: Realmente, não é fácil vezes, faço o exercício de coisas apenas através dela.
compor qualquer poema visualizar a estrutura dos Até onde sei, os especialis-
com conteúdo e forma em poemas mentalmente. O tas no funcionamento da
perfeita harmonia, mas indriso surgiu em um mo- nossa mente identificam,
esse não é pelo menos um mento em que meditava pelo menos, outras três
dos papéis do poeta? sobre o soneto e em um funções que permitem ob-
determinado instante, vi ter interpretações eficazes
as estrofes da figura clás- sobre a nossa realidade,
Atualmente como o sica se condensando desde que seriam a intuição, a
senhor vê o crescimento o padrão 4-4-3-3 para o emoção e a sensorialida-
do indriso entre os poe- 3-3-1-1. de. Eu penso, intuo, sinto e
tas jovens? percebo que quando, além
II: Primeiro, está aconte- do intelecto usamos estas
cendo entre eles um jogo Tenho feito algumas outras funções, ou inclu-
de rejeições e atrações. leituras teóricas a res- sive todas elas ao mesmo
Porém, este jogo é vital peito de poesia. Na tempo (a própria poesia
porque se o indriso vai maior parte delas, pelo estimula fortemente este
oferecer alguma coisa de menos das contemporâ- processo de integração),
interessante para a litera- neas, é dito que a poesia podemos chegar sim a ter
tura, não pode ser sim- não está na forma, nem aquela firme e inequívoca
plesmente aceito de mãos há “conteúdos” mais ou percepção de que no texto,
abertas. O indriso tem que menos poéticos, mas que que está diante do nosso
ser criticado, tão testado se trata de uma tênue e nariz, há poesia.
quanto seja possível e, se complexa relação entre
depois disso representa as duas coisas. Para você,
algo valioso para os ou- que pratica-a tanto na Por causa da aparente
tros, aí sim, realmente será teoria quanto na prática, facilidade - todo mundo
pertinente a sua consoli- é possível afirmar objeti- crê ser capaz de escrever
dação. Acho que os poe- vamente sobre um texto: poemas -, há uma total
tas jovens estão ajudando “aqui há poesia”? descrença, do mercado
especialmente nesse pro- II: Existem inumeráveis es- editorial e dos leitores,
cesso de “temperado na tudos que tentaram definir em relação à poesia e
frágua”, porque natural- a poeticidade de um texto aos poetas. Como você
mente questionam mais. desde um ponto de vista percebe esta situação e
Mas tenho que dizer que, objetivo e científico, mas o que há para ser feito
pelo menos por enquanto, perante cada tese aparece para modificá-la?
esse jogo está resultando sempre uma antítese que, II: Eu não acho que essa
no crescimento do núme- se não mostra a inviabili- descrença exista porque
ro de autores, coisa que, dade da primeira, mostra um grande número de au-

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tores não consegue atingir melhorassem, apenas seria de desintegração mental
altos padrões artísticos. O necessário que cada uma e espiritual tão intenso,
fato de existir uma maio- destas figuras quisesse em época nem cultura
ria assim e um pequeno fazer a sua parte. alguma.
número de indivíduos que II: Pelo menos por agora,
realmente se destacam sinto que a principal cau-
acontece em qualquer ati- Desde sua origem, a
poesia possui um forte sa disso é o fato de que o
vidade. Em minha opinião, nosso medo está tomando
os motivos da rejeição apelo pedagógico: basta
nos lembrarmos dos po- a forma de mentira de
social à poesia são bem uma maneira especial-
maiores e até mais com- emas de Homero, Hesí-
odo, Dante, Shakespeare mente intensa em relação
plexos do que isso. Posso às coisas essenciais: o ali-
enumerar alguns elemen- e Heine, por exemplo.
Qual é a função da poe- mento apresenta-se como
tos que tenho percebido e veneno, a narcose como
os considero nucleares: a sia no século XXI, na sua
opinião? Este propósito lucidez, a escravidão como
poesia apela a fatos como liberdade, a ignorância
a expressão do mundo educacional ainda está
presente, ou ainda pos- como conhecimento, as
interior das pessoas; pode relações egoístas como
incentivar o que se chama sui razão de ser?
modelos de amor, Deus é
“processo de individua- II: Como já mencionei apresentado como diabo,
ção” (pelo qual a pessoa anteriormente, para mim os diabos como Deuses... E
passa de ser “massa” a ser a função mais importan- muitos de nós não quere-
“indivíduo diferenciado”); te da poesia consiste em mos nem ver quando, pelo
e é intrinsecamente sub- que ela expresse com a menos uma vez na vida, as
versiva pelo simples fato sua linguagem particu- coisas aparecem na nossa
de dizer as coisas de outro lar tudo aquilo que o ser frente como realmente
jeito, além de funcionar à humano é. Isso inclui, é são.
margem da mentalidade claro, a função de edu-
mercantil. Tais motivos já car, que é uma neces- Não sei se encarar hoje
são suficientes para que sidade insubstituível. esta situação já é ou será
a poesia não seja muito Falando especificamente uma função importante
aceita por uma sociedade do século XXI, penso da poesia, mas acho que
cuja maioria é educada que pode influir muito não estaria nada mal que
segundo padrões opostos. sobre as funções da po- assim fosse.
As figuras com maior esia o fato de que - isto
responsabilidade direta é uma opinião muito O que representa a In-
na hora de mudar todo pessoal – provavelmente ternet para o seu ofício
isso seriam os governan- em toda a história da literário? Em que ponto
tes que gerem a educação humanidade o ser hu- ela presta um favor aos
e as artes, as editoras, mano nunca esteve tão novos escritores? Em que
os professores e, logica- perdido, ferido e narco- ponto ela os atrapalha?
mente, os poetas. Hoje, o tizado em relação ao seu
caminho vital. A manei- II: Bom, através da Internet
conhecimento necessário tenho acesso a leituras às
para fazer um grupo ou ra mais simples de com-
provar isto é olhar uma quais seria quase impossí-
sociedade prósperos (ou vel acessar desde um país
para afundá-los) já existe. enciclopédia ilustrada
de arte. Qualquer pes- com uma língua diferente
Isso inclui uma tradição da minha; atualmente, o
literária de milhares de soa (que queira ver) vai
perceber imediatamente que eu escrevo depende
anos que permitiria fa- por inteiro da rede para
zer as melhores obras da que os artistas nunca
expressaram um grau ser divulgado; e o com-
história. Para que as coisas putador é o único instru-

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mento que me comunica sua própria obra, você mas infelizmente hoje não
com outros autores e lei- identifica quais são seus acontece isso com nin-
tores. Veja quanta liberda- temas recorrentes? guém. Sei que este fato
de e quanta dependência Na verdade, não sei se a pode provir de um gosto
ao mesmo tempo!... minha obra poderia ser pessoal restringido demais,
Para citar mais alguns reconhecida simplesmente ou de uma simples falta
“favores”, lembrarei que por isso, porque realmente de pesquisa, não sei. Mas
ela permite aquela inde- os que aparecem nela são é o que acontece atual-
pendência em relação às dos mais comuns na lite- mente comigo.
editoras tradicionais e aos ratura. Em primeiro lugar,
júris, quem em muitos direi que eu gosto de visu- Além do indriso, a que
casos até agora publica- alizar o conjunto da mi- projetos você têm se
ram e premiaram o que nha obra como uma roda dedicado, no campo da
eles queriam que o leitor em movimento. O eixo poesia?
considerasse literatura de dela seria a noção de Eros
prestígio. Também permi- no seu sentido integral de II: Antes do indriso pas-
te divulgação massiva e “instinto de vida”. A partir sei pelo que poderíamos
instantânea, além de uma deste eixo, se projetariam definir como duas etapas
fácil atualização das infor- uma série de rádios en- poéticas. Na primeira,
mações. tre os quais considero de produzi uma série de
maior significação, e por poemas em verso livre de
isso mais recorrentes: a tom predominantemente
Quanto ao que pode definição dos diferentes niilista, depois veio uma
atrapalhar, penso em arquétipos do homem e segunda, na qual já come-
assuntos como a volatili- da mulher; a relação entre cei a experimentar com
dade dos dados (eles são eles nos aspectos erótico, a métrica regular e com
apenas pulsos elétricos), sentimental e espiritual; as os poemas amorosos. Mas
a pressa do leitor, que reflexões sobre o caminho joguei fora quase tudo. A
perante a enorme oferta vital humano e as relações poesia que eu quero mos-
acessível em segundos de tudo isso com a divini- trar começa com o indriso
tende a não ficar muito dade. e é o único projeto com
tempo em um mesmo o qual trabalho hoje, não
lugar, ou o que as pes- porque me sinta obrigado,
soas podem fazer com Quais são os poetas con- mas, simplesmente, porque
as informações, pois o sagrados que você lê? E é o que pede a minha voz
conjunto daquilo que quais são os novos poe- poética.
você coloca na Internet tas que você lê?
é de fácil acesso a sim- II: Os poetas consagrados
patizantes ou não, pes- Como é a receptividade
que me marcaram mais e da literatura brasileira
soas próximas e alheias, que leio recorrentemente
individuais ou ligadas a na Espanha?
são dois: o nicaraguense
órgãos públicos e pri- Rubén Darío, do século II: Na Espanha a literatura
vados, sendo também XX e o espanhol do século brasileira é praticamen-
extremamente manipu- XVII don Luis de Góngora. te desconhecida. É muito
lável. difícil encontrar livros
Quanto aos poetas novos, brasileiros nas prateleiras
II: Geralmente, os poetas também procuro acom-
possuem temas recor- das livrarias espanholas.
panhar as últimas for- Esse fato é verdadeira-
rentes, que perpassam a nadas de autores com a
totalidade de suas obras e mente lamentável, porque
esperança de que algum considero que a literatura
pelos quais eles podem ser deles consiga atrair minha
reconhecidos. Ao analisar brasileira tem uma grande
fidelidade como leitor,

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riqueza e singularidade. prazer com a vibração II: Basicamente, vejo a rela-
Na Europa a presença do daqueles versos na boca ção entre a minha poesia
Brasil é bem mais mais e no ouvido) eu recitava e o meu ensaio como a
forte na França. incessantemente o Soneto que poderia existir entre
Vale a pena mencionar de fidelidade. uma irmã mais velha com
alguns nomes evidentes o irmão menor. Cada um
que podem ser encontra- deles tem o seu próprio
Tem acontecido alguns tamanho (a poesia é bem
dos: Vinicius de Moraes, episódios bem desagra-
Jorge Amado, Machado de maior), mas trata-se de
dáveis nos aeroportos, uma relação amorosa na
Assis... envolvendo brasileiros qual um incentiva o ou-
que viajam para a Espa- tro. Por exemplo, a minha
Quando você teve con- nha. A que você atribui poesia não apresentaria
tato com a nossa litera- esse mal-estar? a mesma diversidade de
tura? II: Não tenho nenhum matizes se não fosse pelo
II: A partir de 2004, quan- conhecimento especializa- estudo, a meditação e o
do já estava preparando do em relação às questões trabalho de ordenação
a minha viagem para o políticas e minha opinião mental que exige o ensaio;
Brasil, que se concretizou não deve ter mais valor do no entanto, ele permite
em 2005. Juntamente com que a de qualquer outro tratar de assuntos literá-
o estudo da língua portu- cidadão comum. Pelo que rios além do verso que
guesa, comecei a procurar vi até agora, duvido que me interessam. Também
nomes de autores brasilei- a opinião pública (seja acontece que a afetividade
ros consagrados e a tentar brasileira ou espanho- e recursos que a poesia
ler alguns deles. As pri- la) chegue a conhecer o mobiliza, permite que o
meiras obras da literatura verdadeiro motivo destas ensaio fique mais rico em
brasileira que li, foram os ações nos aeroportos da detalhes expressivos, ritmo
contos de Machado de As- Espanha. Se os funcioná- e emocionalidade.
sis e uma pequena anto- rios envolvidos, por exem-
logia de poetas que achei plo, não forem claros e
na biblioteca da Casa do corretos na aplicação das
Brasil, em Madri. normas, isso significa que
existem outros motivos
além dos que aparecem
Entre os brasileiros, que na mídia, motivos que só
poetas você aprecia? conhecem as autoridades
II: Bom, em relação à que dão as ordens. Por
poesia brasileira estou isso, seja como cidadão es-
apenas começando a ler. panhol ou como cidadão
Até agora captaram mais brasileiro, só me resta ver
Coordenação da entrevista:
a minha atenção os grata- essa situação com muito
mente inevitáveis Carlos pesar. Volmar Camargo Junior
Drummond de Andrade,
Castro Alves e Vinicius de Seu site mostra que, Perguntas feitas por:
Morais. além de poesias, você
Com Vinicius tenho um também tem alguns ar- Carlos Barros
vínculo afetivo mais forte tigos e ensaios escritos. Giselle Sato
porque foi meu “mestre de Dentro dessas experiên-
Henry Alfred Bugalho
português”. Na Espanha, cias, o que te traz maior
para fixar a prosódia (e retorno: a prosa ou a Volmar Camargo Junior
porque sentia um enorme poesia?

14 SAMIZDAT agosto de 2009


14
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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Autor em Língua Portuguesa

Machado de Assis

A Igreja do Diabo

Ilustração Gustave Doré


Publicado originalmen- lhado com o papel avulso ter as outras religiões, e
te em Gazeta de Notícias que exercia desde séculos, destruí-las de uma vez.
1883 sem organização, sem
— Vá, pois, uma igreja,
regras, sem cânones, sem
I De uma idéia mirífica concluiu ele. Escritura
ritual, sem nada. Vivia,
contra Escritura, breviário
por assim dizer, dos re-
Conta um velho ma- contra breviário. Terei a
manescentes divinos, dos
nuscrito beneditino que o minha missa, com vinho
descuidos e obséquios
Diabo, em certo dia, teve e pão à farta, as minhas
humanos. Nada fixo, nada
a idéia de fundar uma prédicas, bulas, novenas
regular. Por que não teria
igreja. Embora os seus e todo o demais aparelho
ele a sua igreja? Uma
lucros fossem contínuos eclesiástico. O meu credo
igreja do Diabo era o
e grandes, sentia-se humi- será o núcleo universal
meio eficaz de comba-

16 SAMIZDAT agosto de 2009


16
dos espíritos, a minha com os olhos no Senhor. vitória final e completa. E
igreja uma tenda de então vim dizer-vos isto,
— Que me queres tu?
Abraão. E depois, enquan- com lealdade, para que
perguntou este.
to as outras religiões se me não acuseis de dissi-
combatem e se dividem, — Não venho pelo vos- mulação... Boa idéia, não
a minha igreja será úni- so servo Fausto, respon- vos parece?
ca; não acharei diante de deu o Diabo rindo, mas
— Vieste dizê-la, não
mim, nem Maomé, nem por todos os Faustos do
legitimá-la, advertiu o
Lutero. Há muitos modos século e dos séculos.
Senhor.
de afirmar; há só um de
— Explica-te.
negar tudo. — Tendes razão, acudiu
— Senhor, a explicação o Diabo; mas o amor-
Dizendo isto, o Diabo
é fácil; mas permiti que próprio gosta de ouvir
sacudiu a cabeça e esten-
vos diga: recolhei primei- o aplauso dos mestres.
deu os braços, com um
ro esse bom velho; dai- Verdade é que neste caso
gesto magnífico e varonil.
lhe o melhor lugar, man- seria o aplauso de um
Em seguida, lembrou-se
dai que as mais afinadas mestre vencido, e uma tal
de ir ter com Deus para
cítaras e alaúdes o rece- exigência... Senhor, desço
comunicar-lhe a idéia,
bam com os mais divinos à terra; vou lançar a mi-
e desafiá-lo; levantou os
coros... nha pedra fundamental.
olhos, acesos de ódio,
ásperos de vingança, e — Sabes o que ele fez? — Vai.
disse consigo: — Vamos, é perguntou o Senhor, com
— Quereis que venha
tempo. E rápido, batendo os olhos cheios de doçu-
anunciar-vos o remate da
as asas, com tal estrondo ra.
obra?
que abalou todas as pro-
víncias do abismo, arran- — Não, mas provavel-
— Não é preciso; bas-
cou da sombra para o mente é dos últimos que
ta que me digas desde já
infinito azul. virão ter convosco. Não
por que motivo, cansado
tarda muito que o céu
há tanto da tua desorga-
fique semelhante a uma
nização, só agora pensas-
II Entre Deus e o Diabo casa vazia, por causa do
te em fundar uma igreja?
preço, que é alto. Vou
Deus recolhia um edificar uma hospedaria O Diabo sorriu com
ancião, quando o Diabo barata; em duas palavras, certo ar de escárnio e
chegou ao céu. Os sera- vou fundar uma igreja. triunfo. Tinha alguma
fins que engrinaldavam Estou cansado da minha idéia cruel no espírito,
o recém-chegado, detive- desorganização, do meu algum reparo picante no
ram-no logo, e o Diabo reinado casual e adven- alforje da memória, qual-
deixou-se estar à entrada tício. É tempo de obter a quer coisa que, nesse bre-

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ve instante da eternidade, sejam roupas ou botas, ce enjoado; e sabes tu o
o fazia crer superior ao ou moedas, ou quaisquer que ele fez?
próprio Deus. Mas reco- dessas matérias neces-
— Já vos disse que não.
lheu o riso, e disse: sárias à vida... Mas não
quero parecer que me — Depois de uma vida
— Só agora concluí
detenho em coisas miú- honesta, teve uma morte
uma observação, começa-
das; não falo, por exem- sublime. Colhido em um
da desde alguns séculos,
plo, da placidez com que naufrágio, ia salvar-se
e é que as virtudes, filhas
este juiz de irmandade, numa tábua; mas viu um
do céu, são em grande
nas procissões, carrega casal de noivos, na flor
número comparáveis
piedosamente ao peito o da vida, que se debatiam
a rainhas, cujo man-
vosso amor e uma co- já com a morte; deu-lhes
to de veludo rematasse
menda... Vou a negócios a tábua de salvação e
em franjas de algodão.
mais altos... mergulhou na eternidade.
Ora, eu proponho-me a
Nenhum público: a água
puxá-las por essa fran- Nisto os serafins agi-
e o céu por cima. Onde
ja, e trazê-las todas para taram as asas pesadas de
achas aí a franja de algo-
minha igreja; atrás delas fastio e sono. Miguel e
dão?
virão as de seda pura... Gabriel fitaram no Se-
nhor um olhar de súpli- — Senhor, eu sou, como
— Velho retórico! mur-
ca. Deus interrompeu o sabeis, o espírito que
murou o Senhor.
Diabo. nega.
— Olhai bem. Muitos
— Tu és vulgar, que é — Negas esta morte?
corpos que ajoelham aos
o pior que pode aconte-
vossos pés, nos templos — Nego tudo. A misan-
cer a um espírito da tua
do mundo, trazem as tropia pode tomar aspec-
espécie, replicou-lhe o
anquinhas da sala e da to de caridade; deixar a
Senhor. Tudo o que dizes
rua, os rostos tingem-se vida aos outros, para um
ou digas está dito e re-
do mesmo pó, os lenços misantropo, é realmente
dito pelos moralistas do
cheiram aos mesmos aborrecê-los...
mundo. É assunto gasto;
cheiros, as pupilas cen-
e se não tens força, nem — Retórico e sutil! ex-
telham de curiosidade
originalidade para re- clamou o Senhor. Vai; vai,
e devoção entre o livro
novar um assunto gasto, funda a tua igreja; chama
santo e o bigode do pe-
melhor é que te cales e todas as virtudes, recolhe
cado. Vede o ardor — a
te retires. Olha; todas as todas as franjas, convoca
indiferença, ao menos —
minhas legiões mostram todos os homens... Mas,
com que esse cavalheiro
no rosto os sinais vivos vai! vai!
põe em letras públicas
do tédio que lhes dás.
os benefícios que libe- Debalde o Diabo ten-
Esse mesmo ancião pare-
ralmente espalha — ou tou proferir alguma coisa

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mais. Deus impusera-lhe contos soníferos, terror rou não ser mais do que
silêncio; os serafins, a um das crianças, mas o Dia- a mãe da economia, com
sinal divino, encheram o bo verdadeiro e único, o a diferença que a mãe
céu com as harmonias de próprio gênio da natu- era robusta, e a filha uma
seus cânticos. O Diabo reza, a que se deu aquele esgalgada. A ira tinha a
sentiu, de repente, que nome para arredá-lo do melhor defesa na exis-
se achava no ar; dobrou coração dos homens. Ve- tência de Homero; sem
as asas, e, como um raio, de-me gentil a airoso. Sou o furor de Aquiles, não
caiu na terra. o vosso verdadeiro pai. haveria a Ilíada: “Musa,
Vamos lá: tomai daque- canta a cólera de Aqui-
le nome, inventado para les, filho de Peleu”... O
III A boa nova aos meu desdouro, fazei dele mesmo disse da gula, que
homens um troféu e um lábaro, produziu as melhores pá-
e eu vos darei tudo, tudo, ginas de Rabelais, e mui-
Uma vez na terra, o tudo, tudo, tudo, tudo... tos bons versos do Hisso-
Diabo não perdeu um pe; virtude tão superior,
minuto. Deu-se pressa Era assim que falava, a
que ninguém se lembra
em enfiar a cogula be- princípio, para excitar o
das batalhas de Luculo,
neditina, como hábito entusiasmo, espertar os
mas das suas ceias; foi a
de boa fama, e entrou a indiferentes, congregar,
gula que realmente o fez
espalhar uma doutrina em suma, as multidões ao
imortal. Mas, ainda pon-
nova e extraordinária, pé de si. E elas vieram; e
do de lado essas razões
com uma voz que re- logo que vieram, o Diabo
de ordem literária ou
boava nas entranhas do passou a definir a doutri-
histórica, para só mostrar
século. Ele prometia aos na. A doutrina era a que
o valor intrínseco daque-
seus discípulos e fiéis as podia ser na boca de um
la virtude, quem negaria
delícias da terra, todas as espírito de negação. Isso
que era muito melhor
glórias, os deleites mais quanto à substância, por-
sentir na boca e no ven-
íntimos. Confessava que que, acerca da forma, era
tre os bons manjares, em
era o Diabo; mas con- umas vezes sutil, outras
grande cópia, do que os
fessava-o para retificar cínica e deslavada.
maus bocados, ou a saliva
a noção que os homens Clamava ele que as vir- do jejum? Pela sua parte
tinham dele e desmentir tudes aceitas deviam ser o Diabo prometia subs-
as histórias que a seu res- substituídas por outras, tituir a vinha do Senhor,
peito contavam as velhas que eram as naturais e expressão metafórica,
beatas. legítimas. A soberba, a pela vinha do Diabo, lo-
— Sim, sou o Diabo, luxúria, a preguiça foram cução direta e verdadeira,
repetia ele; não o Diabo reabilitadas, e assim tam- pois não faltaria nunca
das noites sulfúreas, dos bém a avareza, que decla- aos seus com o fruto das

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mais belas cepas do mun- monumento de lógica. A um direito tão legítimo, o
do. Quanto à inveja, pre- venalidade, disse o Diabo, que era exercer ao mes-
gou friamente que era a era o exercício de um mo tempo a venalidade e
virtude principal, origem direito superior a todos a hipocrisia, isto é, mere-
de prosperidades infini- os direitos. Se tu podes cer duplicadamente.
tas; virtude preciosa, que vender a tua casa, o teu
E descia, e subia, exa-
chegava a suprir todas boi, o teu sapato, o teu
minava tudo, retificava
as outras, e ao próprio chapéu, coisas que são
tudo. Está claro que com-
talento. tuas por uma razão jurí-
bateu o perdão das injú-
dica e legal, mas que, em
As turbas corriam rias e outras máximas de
todo caso, estão fora de
atrás dele entusiasmadas. brandura e cordialidade.
ti, como é que não podes
O Diabo incutia-lhes, a Não proibiu formalmente
vender a tua opinião, o
grandes golpes de eloqü- a calúnia gratuita, mas
teu voto, a tua palavra,
ência, toda a nova ordem induziu a exercê-la me-
a tua fé, coisas que são
de coisas, trocando a no- diante retribuição, ou
mais do que tuas, porque
ção delas, fazendo amar pecuniária, ou de outra
são a tua própria consci-
as perversas e detestar as espécie; nos casos, po-
ência, isto é, tu mesmo?
sãs. rém, em que ela fosse
Negá-lo é cair no obscuro
uma expansão imperiosa
Nada mais curioso, e no contraditório. Pois
da força imaginativa, e
por exemplo, do que a não há mulheres que
nada mais, proibia rece-
definição que ele dava da vendem os cabelos? não
ber nenhum salário, pois
fraude. Chamava-lhe o pode um homem vender
equivalia a fazer pagar
braço esquerdo do ho- uma parte do seu san-
a transpiração. Todas as
mem; o braço direito era gue para transfundi-lo a
formas de respeito foram
a força; e concluía: mui- outro homem anêmico?
condenadas por ele, como
tos homens são canhotos, e o sangue e os cabelos,
elementos possíveis de
eis tudo. Ora, ele não partes físicas, terão um
um certo decoro social
exigia que todos fossem privilégio que se nega ao
e pessoal; salva, todavia,
canhotos; não era exclu- caráter, à porção moral
a única exceção do in-
sivista. Que uns fossem do homem? Demonstran-
teresse. Mas essa mesma
canhotos, outros destros; do assim o princípio, o
exceção foi logo elimi-
aceitava a todos, menos Diabo não se demorou
nada, pela consideração
os que não fossem nada. em expor as vantagens de
de que o interesse, con-
A demonstração, porém, ordem temporal ou pe-
vertendo o respeito em
mais rigorosa e profunda, cuniária; depois, mostrou
simples adulação, era este
foi a da venalidade. Um ainda que, à vista do pre-
o sentimento aplicado e
casuísta do tempo chegou conceito social, conviria
não aquele.
a confessar que era um dissimular o exercício de

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Para rematar a obra, apólogo: — Cem pesso- todas, nem integralmente,
entendeu o Diabo que lhe as tomam ações de um mas algumas, por partes,
cumpria cortar por toda banco, para as operações e, como digo, às ocultas.
a solidariedade humana. comuns; mas cada acio- Certos glutões recolhiam-
Com efeito, o amor do nista não cuida realmente se a comer frugalmen-
próximo era um obstácu- senão nos seus dividen- te três ou quatro vezes
lo grave à nova institui- dos: é o que acontece aos por ano, justamente em
ção. Ele mostrou que essa adúlteros. Este apólogo dias de preceito católi-
regra era uma simples foi incluído no livro da co; muitos avaros davam
invenção de parasitas e sabedoria. esmolas, à noite, ou nas
negociantes insolváveis; ruas mal povoadas; vários
não se devia dar ao pró- dilapidadores do erário
ximo senão indiferença; IV Franjas e franjas restituíam-lhe pequenas
em alguns casos, ódio ou quantias; os fraudulentos
desprezo. Chegou mesmo A previsão do Diabo falavam, uma ou outra
à demonstração de que verificou-se. Todas as vir- vez, com o coração nas
a noção de próximo era tudes cuja capa de veludo mãos, mas com o mesmo
errada, e citava esta frase acabava em franja de al- rosto dissimulado, para
de um padre de Nápoles, godão, uma vez puxadas fazer crer que estavam
aquele fino e letrado Ga- pela franja, deitavam a embaçando os outros.
liani, que escrevia a uma capa às urtigas e vinham
A descoberta assom-
das marquesas do antigo alistar-se na igreja nova.
brou o Diabo. Meteu-se
regime: “Leve a breca o Atrás foram chegando as
a conhecer mais direta-
próximo! Não há próxi- outras, e o tempo aben-
mente o mal, e viu que
mo!” A única hipótese em çoou a instituição. A
lavrava muito. Alguns
que ele permitia amar ao igreja fundara-se; a dou-
casos eram até incompre-
próximo era quando se trina propagava-se; não
ensíveis, como o de um
tratasse de amar as da- havia uma região do glo-
droguista do Levante, que
mas alheias, porque essa bo que não a conhecesse,
envenenara longamen-
espécie de amor tinha a uma língua que não a
te uma geração inteira,
particularidade de não traduzisse, uma raça que
e[1] com o produto das
ser outra coisa mais do não a amasse. O Diabo
drogas socorria os filhos
que o amor do indivíduo alçou brados de triunfo.
das vítimas. No Cairo
a si mesmo. E como al-
Um dia, porém, lon- achou um perfeito ladrão
guns discípulos achassem
gos anos depois notou de camelos, que tapava a
que uma tal explicação,
o Diabo que muitos dos cara para ir às mesquitas.
por metafísica, escapava à
seus fiéis, às escondidas, O Diabo deu com ele à
compreensão das turbas,
praticavam as antigas vir- entrada de uma, lançou-
o Diabo recorreu a um
tudes. Não as praticavam lhe em rosto o procedi-

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mento; ele negou, dizen- Mas não havia duvidar; o
do que ia ali roubar o caso era verdadeiro.
camelo de um drogman;
Não se deteve um
roubou-o, com efeito,
instante. O pasmo não
à vista do Diabo e foi
lhe deu tempo de refle-
dá-lo de presente a um
tir, comparar e concluir
muezim, que rezou por
do espetáculo presente
ele a Alá. O manuscrito
alguma coisa análoga ao
beneditino cita muitas
passado. Voou de novo ao
outras descobertas extra-
céu, trêmulo de raiva, an-
ordinárias, entre elas esta,
sioso de conhecer a causa
que desorientou comple-
secreta de tão singular
tamente o Diabo. Um dos
fenômeno. Deus ouviu-o
seus melhores apóstolos Joaquim Maria Machado de
com infinita complacên-
era um calabrês, varão de Assis nasceu pobre e epilético.
cia; não o interrompeu,
cinqüenta anos, insigne Era filho de Francisco José Ma-
não o repreendeu, não
falsificador de documen- chado de Assis e de Leopoldina
triunfou, sequer, daquela Machado de Assis, neto de escra-
tos, que possuía uma bela
agonia satânica. Pôs os vos alforriados. Foi criado no
casa na campanha roma-
olhos nele, e disse: morro do Livramento, no Rio de
na, telas, estátuas, biblio-
Janeiro. Ajudava a família como
teca, etc. Era a fraude em — Que queres tu, meu podia, não tendo freqüentado
pessoa; chegava a meter- pobre Diabo? As capas de regularmente a escola.
se na cama para não algodão têm agora fran- Sua instrução veio por conta
confessar que estava são. jas de seda, como as de própria, devido ao interesse
Pois esse homem, não veludo tiveram franjas de que tinha em todos os tipos de
só não furtava ao jogo, algodão. Que queres tu? leitura. Graças a seu talento e a
como ainda dava gratifi- É a eterna contradição uma enorme força de vontade,
cações aos criados. Ten- humana. superou todas essas dificuldades
e tornou-se em um dos maiores
do angariado a amizade
escritores brasileiros de todos os
de um cônego, ia todas
tempos.
as semanas confessar-se FIM de A igreja do Diabo
Entre os seis e os 14 anos, Ma-
com ele, numa capela so-
chado perdeu sua única irmã, a
litária; e, conquanto não mãe e o pai. Aos 16 anos em-
lhe desvendasse nenhuma pregou-se como aprendiz numa
fonte: http://www2.uol.
das suas ações secretas, tipografia e publicou os primei-
com.br/machadodeassis/
benzia-se duas vezes, ao ros versos no jornal “A Marmo-
machado.html ta”. Em 1860, foi convidado por
ajoelhar-se, e ao levantar-
se. O Diabo mal pôde Quintino Bocaiúva para colabo-
rar no “Diário do Rio de Janei-
crer tamanha aleivosia.
ro”. Datam dessa década quase

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Em 1873, o escritor foi nomeado critor. Depois disso, raramente
primeiro oficial da secretaria de ele saía de casa e sua saúde foi
Estado do Ministério da Agricul- piorando por causa da epilepsia.
tura, Comércio e Obras públicas. Os problemas nervosos e uma

http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
A sua carreira burocrática teve gagueira contribuíram ainda
uma ascensão muito rápida, uma mais para o seu isolamento. São
vez que, em 1892, já era diretor dessa época seus últimos ro-
geral do Ministério da Viação. mances “Esaú e Jacó” (1904) e
O emprego público garantiu a “Memorial de Aires” (1908), que
estabilidade financeira, uma vez fecham o ciclo realista iniciado
que viver de literatura naquela com “Brás Cubas”
época era quase impossível, mes- Machado de Assis morreu em
mo para os bons escritores. sua casa situada na rua Cosme
Na década de 1880, a obra Velho. Foi decretado luto oficial
de Machado de Assis sofreu no Rio de Janeiro e seu enterro,
todas as suas comédias teatrais e uma verdadeira revolução, em acompanhado por uma multidão,
o livro de poemas “Crisálidas”. termos de estilo e de conteúdo, atesta a fama alcançada pelo
Em 12 de novembro de 1869 inaugurando o Realismo na autor.
casou-se com Carolina Augusta literatura brasileira. Os roman- O fato de ter escrito em por-
Xavier de Novais. Esse casamen- ces “Memórias póstumas de tuguês, uma língua de poucos
to ocorreu contra a vontade da Brás Cubas” (1881); “Quincas leitores, tornou difícil o reconhe-
família da moça, uma vez que Borba” (1891); “Dom Casmur- cimento internacional do autor.
Machado tinha mais problemas ro” (1899) e os contos “Papéis A partir do final do século 20,
do que fama. Essa união durou avulsos” (1882); “Histórias sem porém, suas obras têm sido tra-
cerca de 35 anos e casal não data” (1884), “Várias histórias” duzidas para o inglês, o francês,
teve filhos. Carolina contribuiu (1896) e “Páginas recolhidas” o espanhol e o alemão, desper-
para o amadurecimento intelec- (1899), entre outros, revelam tando interesse mundial. De
tual de Machado, revelando-lhe o autor em sua plenitude. O fato, trata-se de um dos grandes
os clássicos portugueses e vários espírito crítico, a grande ironia, nomes do Realismo, que pode se
autores de língua inglesa. o pessimismo e uma profunda colocar lado a lado ao francês
reflexão sobre a sociedade bra- Flaubert ou ao russo Dostoie-
Na década de 1870, Machado
sileira são as suas marcas mais vski, apenas para citar dois dos
publicou os poemas “Falenas” e
características. maiores autores do mesmo perío-
“Americanas”; além dos “Con-
tos Fluminenses” e “Histórias Em 1897, Machado fundou a do na literatura universal.
da meia-noite”. O público e a Academia Brasileira de Letras,
crítica consagraram seus méritos da qual foi o primeiro presiden-
Fonte: http://educacao.uol.com.
de escritor. Publicou os roman- te, pelo que a instituição também
br/biografias/ult1789u180.jhtm
ces: “Ressurreição” (1872); “A conhecida como casa de Macha-
Mão e a Luva” (1874); “He- do de Assis. Ocupou a Cadeira
lena” (1876); “Iaiá Garcia” N.º 23, de cujo patrono, José de
(1878). Essas obras ainda estão Alencar, foi amigo e admirador.
ligadas à literatura romântica e Em 1904, a morte de sua mulher
formam a chamada primeira fase foi um duro golpe para o es-
de Machado de Assis.

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Autor em Língua Portuguesa

A poesia de
Augusto dos Anjos

O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.


Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."


- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, á noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

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O DEUS-VERME

Fator universal do transformismo.


Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo


Em sua diária ocupação funérea,

http://www.flickr.com/photos/eob/55453207/sizes/o/
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,


Janta hidrôpicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,


E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

ASA DE CORVO

Asa de corvos carniceiros, asa


De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre ás vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,


É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto á brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

E com essa asa que eu faço este soneto


E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

E ainda com essa asa extraordinária


Que a Morte - a costureira funerária
- Cose para o homem a última camisa!

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VOZES DE UM TÚMULO

Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho


Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim, VERSOS ÍNTIMOS
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Por que para este cemitério vim?!
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Foi tua companheira inseparável!
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
No ardor do sonho que o fronema exalta
Mora, entre feras, sente inevitável
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Necessidade de também ser fera.
Hoje, porém, que se desmoronou

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!


A pirâmide real do meu orgulho,
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
Hoje que arenas sou matéria e entulho
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Tenho consciência de que nada sou!

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,


Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

fonte: http://www.biblio.com.br/conteudo/AugustodosAnjos/augustodosanjosobras.htm

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Augusto dos Anjos nasceu Essa filosofia, fora do contex-
no engenho Pau d'Arco, no to europeu em que nascera,
município de Sapé, estado para Augusto dos Anjos seria
da Paraíba. Foi educado nas a demonstração da realidade
primeiras letras pelo pai e que via ao seu redor, com a
estudou no Liceu Paraibano, crise de um modo de produ-
onde viria a ser professor em ção pré-materialista, proprie-
1908. Precoce poeta brasi- tários falindo e ex-escravos
leiro, compôs os primeiros na miséria. O mundo seria
versos aos 7 anos de idade. representado por ele, então,
Em 1903, ingressou no curso como repleto dessa tragédia,
de Direito na Faculdade de cada ser vivenciando-a no
Direito do Recife, bachare- nascimento e na morte.
lando-se em 1907. Em 1910 Dedicou-se ao magistério,
casa-se com Ester Fialho. Seu transferindo-se para o Rio de
contato com a leitura, influen-Janeiro, onde foi professor
ciaria muito na construção de em vários estabelecimentos
sua dialética poética e visão de ensino. Faleceu em 12 de
de mundo. novembro de 1914, às 4 horas
Com a obra de Herbert Spen- da madrugada, aos 30 anos,
cer, teria aprendido a inca- em Leopoldina, Minas Gerais,
pacidade de se conhecer a onde era diretor de um grupo
essência das coisas e compre- escolar. A causa de sua morte
endido a evolução da natureza foi a pneumonia.
e da humanidade. De Ernst Durante sua vida, publicou
Haeckel, teria absorvido o vários poemas em periódi-
conceito da monera como cos, o primeiro, Saudade, em
princípio da vida, e de que a 1900. Em 1912, publicou seu
morte e a vida são um puro livro único de poemas, Eu.
http://pergrunditz.files.wordpress.com/2008/06/death_of_marat_by_david.jpg

fato químico. Arthur Scho- Após sua morte, seu amigo


penhauer o teria inspirado a Órris Soares organizaria uma
perceber que o aniquilamento edição chamada Eu e Outras
da vontade própria seria a Poesias, incluindo poemas
única saída para o ser huma- até então não publicados pelo
no. E da Bíblia Sagrada ao autor.
qual, também, não contestava
sua essência espiritualística,
fonte: http://pt.wikipedia.org/
usando-a para contrapor, de
forma poeticamente agressiva, wiki/Augusto_dos_Anjos
os pensamentos remanescen-
tes, em principal os ideais
iluministas/materialistas que,
endeusando-se, se emergiam
na sua época.

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Contos

Joaquim Bispo

O Retrato do Juiz

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O pintor contemplava o do escuro e damas vistosas
retrato do juiz no cavalete em “toilettes” requintadas
e os seus olhos teimavam nasciam nas suas telas. Os
em fitar o olhar incisivo do olhares eram sempre inteli-
retratado, muito firme, muito gentes, a pose sempre nobre
intenso. Parecia vigiar-lhe e elegante.
cada movimento. Era per- Ultimamente, a clientela já
turbador. O cliente já devia não abundava mas Júlio, de
ter ido buscar o quadro há sessenta e três anos escor-
duas semanas, mas não havia reitos, gostava do que fazia e
maneira de aparecer. Júlio tencionava continuar a traba-
começava a ficar impaciente. lhar indefinidamente.
Não que o dinheiro lhe fizes-
se muita falta, mas o olhar O último cliente fora este
do retrato inquietava-o. Cada juiz. Tinha querido pagar a
vez que o observava, parecia totalidade do trabalho, mas
encontrar-lhe novos aspectos Júlio aceitara apenas meta-
fisionómicos. Como se tives- de; o resto seria pago contra
se vida. Era, sem dúvida, das a entrega da obra. Era um
suas obras mais conseguidas. cliente fácil. Chegava sempre
pontualmente às nove da ma-
Desde novo que, nas suas nhã, no seu fato preto impe-
mãos, as telas se povoavam cável, e mantinha-se firme
de figuras, umas cândi- na pose escolhida, durante
das, outras austeras, umas as duas horas da sessão. Era
históricas, outras, que po- de poucas falas, mesmo no
díamos esperar encontrar pequeno intervalo que faziam
na rua, representadas com a meio.
uma naturalidade notável.
Manobrava os pincéis com O rosto, que era a parte
destreza, como se já tives- mais delicada e a que dava
se muitos anos de prática. mais trabalho, foi nascendo,
Quase sempre fazia as mistu- mancha a mancha nas car-
ras das cores na paleta mas, nações da face, pincelada a
em obras de maior arreba- pincelada nos fartos cabelos
tamento, aplicava as cores grisalhos e nas sobrancelhas
puras directamente na tela, rectas e espessas. Ao fim de
em empastamentos de força duas semanas, os olhos vivos
cromática avassaladora. e inquisidores do juiz acen-
deram-se na tela como se
Com o tempo, percebeu fossem reais. Pouco depois,
que o retrato próprio era Júlio disse ao cliente que só
das imagens que as pessoas faltava rematar os fundos e
mais prezavam e passou a que podia ir buscar o retrato
especializar-se nesse género, daí a uns dias.
adoptando Columbano como
referência. Ao seu “atelier” da Tinham-se passado três
rua de S. Paulo, em Lisboa, semanas e o juiz não apare-
acudiam militares, magistra- cia.
dos, catedráticos, políticos. O retrato estava muito
Cavalheiros graves em fun- realista. Júlio olhava-o e não

http://www.flickr.com/photos/itsallaboutmich/1989146178/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 29
conseguia evitar uma inquie- voltar. especial ao tio Jerónimo, pelo
tação difusa. Começava a Em casa pensou que, se esforço que fez de ir todas as
tornar-se uma obsessão. calhar, estava na altura de manhãs a Lisboa e assumir
Não ficara, do juiz, com parar de pintar. Foi falar tão bem aquela personagem.
mais que o nome e a mora- com um amigo, vizinho do Sem a sua ajuda, talvez não
da, rabiscados num papel. “atelier”, que há tempos se tivéssemos conseguido o que
Pensou em telefonar-lhe, mas propusera comprar-lho para há tanto tempo pretendía-
das Informações disseram-lhe alargar a sua loja de aprestos mos: a expansão do nosso
que aquela morada não tinha marítimos. Fizeram negócio, armazém de vendas e do
telefone fixo. Resolveu pro- depois de o amigo aceitar nosso negócio. Obrigado tio!
curar o cliente, pessoalmente. ficar também com o recheio. E faço questão, é claro, que
Apanhou o comboio para fique com o quadro. Bem o
Júlio recolheu-se à sua merece! De qualquer modo,
Carcavelos e, lá chegado, foi pequena casa de Montemor,
perguntando até encontrar a estamos todos de parabéns.
sobranceira ao vale de Lou- Por isso, peço que me acom-
casa do juiz. O que descobriu res, disposto a desanuviar
não podia ser mais pertur- panhem num brinde.
o espírito, mas não o tem
bador. conseguido. Passa as tardes Armando levantou um
Realmente, ali era a casa na varanda, de olhar perdido copo e pronunciou a fórmula
do juiz, mas ele não estava. no horizonte. Não consegue habitual:
Nem ele nem ninguém. Per- tirar da cabeça o olhar mau – A família é a nossa for-
guntando à vizinhança, soube do juiz. Nem consegue enten- taleza. À família!
que a casa estava abandona- der que intuito teve ele, ao Todos se levantaram, de
da desde que o juiz morrera, voltar do outro mundo e lhe copo na mão, respondendo
havia quinze anos. encomendar o retrato. em coro:
Júlio deixou-se cair num Por um desses dias, na – À família!
banco de jardim e ali ficou, sua casa de Azeitão, Arman-
sem tomar conta das horas, do Magalhães levantava-se O brinde terminou com
mergulhado num assombro da mesa e improvisava um uma longa salva de palmas,
de que não sabia como sair. pequeno discurso para uma que comunicou, ao espírito
Se havia coisa com que não dúzia de familiares reunidos de cada um, o enternecimen-
sabia lidar era com o sobre- à volta do almoço dominical: to de quem se sabe partici-
natural. pante no bom sucesso de um
– Meus queridos, é com projecto comum.
Desde então que Júlio não agrado e enorme orgulho que
pinta. No primeiro mês após celebro convosco a próxima
a traumática revelação, só expansão da nossa pequena [Conto publicado pela pri-
voltou ao “atelier” uma única empresa. Foi um negócio meira vez em 2007, na edição
vez. Tornar a encarar aquele bem sucedido de que todos resultante dum concurso de
olhar foi aterrador. Podia saíram a ganhar, como gosto contos promovido pelo site
jurar que o juiz o olhava de que sejam todos os nossos Ora, vejamos... em que obteve
cenho mais carregado, num negócios. Ganhámos nós e um 3º lugar ex-aequo, entre 67
misto de tensão e recrimi- ganhou o Sr. Júlio, que agora candidatos]
nação. Voltou a face da tela pode gozar uma bem mere-
para a parede, mas Júlio cida reforma. Era um grande
continuou a pressentir a artista. Vejam como ele cap-
intensidade do olhar através tou o olhar austero do tio –
dela. Sentiu medo. Saiu rapi- apontava Armando o quadro
damente, ofegante, sem saber na parede. – Aliás, quero fa-
o que fazer, sem vontade de zer um agradecimento muito

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30
Ele tinha diante de si
a mais difícil das missões:
cumprir a vontade de Deus ficina
www.oficinaeditora.com

Henry Alfred Bugalho


http://www.lostseed.com/extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-crucified.jpg

O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 31
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gr nl
át
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is d
Contos

O Lobo Vermelho
(segunda parte)
Guinen Plumbeano
Volmar Camargo Junior

32 SAMIZDAT agosto de 2009


32
Seguindo a estrada na marionete da Imperatriz. máquina sozinha seguisse
direção sul, depois de uma Para seus admiradores, era pelo caminho que conhecia.
sequência de sobes-e-desces um herói lendário, capaz de Saquei o bloco e a caneta do
ainda dentro do subúrbio, proezas bélicas acima da bolso do casaco. Para reto-
atravessamos os portões do capacidade humana, dono de mar o fio de raciocínio, que
primeiro nível de suas mura- uma coleção inigualável de perdera assim que saí do
lhas. Diferente do centro da façanhas e o mais importan- quarto do hotel, tentei lem-
cidade, o bairro que circun- te dos humanos depois dos brar da primeira façanha que
dava a estrada parecia ainda primeiros filhos de Adanno. tinha ouvido a respeito do
não ter amanhecido, e foi Para aqueles que perma- General.
um custo perceber alguma necem céticos, e que têm Meu pai era aficionado
coisa além dos muros altíssi- algum interesse nos fatos por objetos históricos, um
mos. Era como se a avenida como eles realmente acon- pesquisador entusiasta, pro-
percorresse o fundo de um teceram – como eu – Petro fundamente avesso à acade-
canal, e o bairro ficasse para Velasturvo fora um militar mia e, hoje posso admitir,
além de suas margens. Não competente, um homem à Igreja. Em uma sala cons-
fosse pelas pequenas portas dotado de grande inteligência truída em nossa casa, espe-
de metal, ao longo de um e poucos escrúpulos. E eu cialmente para isso, meu pai
passeio estreito, eu diria que sei que posso escrever isso guardava sua coleção. Não
por ali só passavam carros. assim, sem nenhum medo de era como o museu da Uni-
Assim, antes de chegar à represálias, porque estas não
http://3.bp.blogspot.com/_6kMCHVxuvI8/SlQMNWDzzgI/AAAAAAAAAWA/buSjb6bPst4/s1600-h/3297883617_e2ea1a8a80_b.jpg

versidade do Farol Púrpura,


zona rural, tudo o que vi da são as minhas palavras, mas mas sem dúvida, era um dos
parte mais pobre de Avvena as dele. maiores acervos particulares
foi uma rua espremida entre Eu precisava de um foco da Capital. Eu, bem como
dois altos muros de alvena- para minha entrevista. A os poucos amigos que tive
ria. Seria lógico que eu tives- história dele era realmente na infância, tínhamos uma
se perguntado algo a Platin, muito intensa, e havia dema- simpatia enorme pelos artefa-
o motorista, mas preferi ficar siados fatos para tão pouco tos de guerra, os uniformes
quieto. Concentrei-me na tempo. Fiquei grato por ter dos soldados do império, e,
história de meu personagem um motorista guiando – ain- principalmente, as armas.
principal. E, sim, a ideia que da que eu soubesse conduzir Havia, dentre todas aquelas
eu fazia dele era a de uma um veículo daqueles, jamais peças às quais não podíamos
entidade mitológica, e isso me arriscaria a fazê-lo dentro fazer nada além de olhar,
certamente não era culpa de uma neblina tão den- uma espada; um sabre para
minha. sa. Além do mais, não me ser mais exato. No pedes-
Para o bem ou para o mal, distraí com a rica paisagem tal onde ele ficava, havia a
o Lobo Vermelho era tido rural de Avvena, pelo fato de reprodução de um quadro
como uma figura folclóri- parecer que o carro estava da época, que retratava um
ca. Para seus detratores e a todo envolto em lençóis oficial do Exército à frente
grande maioria dos ativistas brancos e molhados. Em um de uma quantidade incontá-
contrários à Confederação momento, tive a nítida im- vel de soldados em marcha,
das Províncias, ele era um pressão de que Platin estava e esse oficial empunhava,
monstro, um demônio, ou na apenas mantendo o carro em apontando para o alto, aquele
melhor das hipóteses, uma movimento, deixando que a mesmíssimo sabre. Meu pai

www.revistasamizdat.com 33
contava que aquela não era perna mecânica, e a maior pedido de desculpas, a esposa
uma peça original, mas era parte delas era, no mínimo, do professor de luta fez para
uma cópia fiel da Guardiã fantasiosa. A minha preferida o menino um casaco da pele
do Mar, e que seu dono, o era esta: do lobo, que nunca mais pôde
homem que a empunha- Numa tarde de inverno, ser alvo, manchado de sangue
va, era o Lobo Vermelho, o Petro e seus colegas pratica- para sempre.
maior herói da guerra contra vam luta no pátio da escola, Eu ri sozinho no banco de
os invasores delfins. Então, quando foram surpreendidos trás do carro. Como aquelas
meu pai contava todo tipo de por um lobo selvagem. Eles historietas eram marcantes
histórias sobre ele, e que eu e ainda não o haviam percebido para as crianças! Era bem
meus amigos costumávamos porque era um lobo branco, provável que, se eu pergun-
reproduzir em nossas brin- e se esgueirou na neve até tasse para qualquer um dos
cadeiras, amarrando toalhas chegar perto o suficiente para meus amigos de infância, eles
e lençóis às costas como atacar de surpresa. Os outros teriam lembrado desta, “O
capas, e cada um com uma meninos fugiram apavorados, menino e o lobo branco”, tal-
“Guardiã do Mar” feita das mas Petro não teve a mesma vez com as mesmas palavras.
pernas de uma cadeira velha. sorte: o lobo saltou em sua Percebendo que eu ria – devo
Fazíamos um sorteio, todas as direção e, para impedir que até ter falado sozinho, em
tardes, para decidir quem se- fugisse, abocanhou sua perna voz alta – Platin olhou-me
ria o Lobo Vermelho, depois, e o derrubou. O menino teve pelo espelho, devolvendo-me
quem seria Unmonu, seu o sangue frio de fingir-se de o sorriso.
companheiro de aventuras, morto. Quando o predador — Já conhece o General,
e, por fim, quem seriam os soltou sua perna para conferir Senhor Plumbeano? Digo, já
adversários: príncipes delfins, se a presa estava realmente o viu alguma vez?
lordes adormecidos, bruxos abatida, Petro reagiu. Com
linces, guerreiros bárbaros. E — Pode me chamar apenas
presteza, enfiou as duas mãos
eu recordo de sempre gostar Guinen, Platin. Só vi o Gene-
no focinho do animal, segu-
mais de interpretar os vilões, ral em fotografias. Por que a
rando suas mandíbulas fecha-
enquanto meus amigos se es- pergunta?
das e avançou com os dentes
tapeavam para disputar que contra o pescoço peludo do — Porque a última vez que
heróis seriam. Ao final da lobo. A fúria de Petro era tão ele foi visto em público, ele
brincadeira era sempre eu, grande que o couro do preda- estava bem diferente — res-
ou melhor, o inimigo do Mar dor rasgou-se como um trapo pondeu, enfático.
de Luna, quem tinha a pior velho, e músculos e veias iam- — Diferente como? — quis
sorte, mas não antes de ter se rompendo à medida que saber.
deixado muitos soldados caí- o menino mordia. Só depois
dos, ter derrubado o “Bovineu — Não precisa se preo-
disso é que o professor de luta
Invencível” e decepado uma cupar. Você já vai ver. Che-
veio em seu auxílio, mas aí, o
das pernas do Lobo Vermelho gamos. Seja bem-vindo à
lobo, que era branco, já estava
– e eu nunca tinha certeza se Mansão do General.
morto, todo tingido de verme-
era a direita ou a esquerda. lho. A perna do menino Petro
Havia dezenas de versões teve de ser amputada. Todos, a
explicando a razão de o partir daquele dia, passaram a
General Velasturvo usar uma temê-lo e respeitá-lo. Como um

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O lugar onde
a boa Literatura ficina
é fabricada
www.oficinaeditora.com

http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão ­cultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

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Contos

Contrata-se
um Ghostwriter
Henry Alfred Bugalho

http://paranormal.about.com/library/graphics/ghost_on_stairs_lg.jpg

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Eleonor Schneider, dian- bem-geral da humanidade A viúva se encantou
te da máquina de escrever, e da posteridade. com os adjetivos a ela
se preparou para redigir o Por isto, na manhã se- atribuídos:
livro da sua vida. guinte, Eleonor anunciou — Quando podemos
Ler “São Bernardo” a en- no jornal: começar, meu filho?
cantou, a narrativa simples “Contrata-se um Ghos- Três vezes por sema-
de Paulo Honório; refletiu twriter, para livro autobio- na, Pietro vinha à casa de
que também deveria ten- gráfico.” Eleonor, geralmente após a
tar. Mas ela não era ne- hora do jantar. Tomavam
nhum Graciliano Ramos Logo começaram os
telefonemas e as visitas. chá na sala de estar. Ele-
e, assim que a página em onor contava sua vida a
branco foi ajeitada, o peso Candidatos com currícu-
los, constando as editoras Pietro, mostrando-lhe fotos
das palavras oprimiu Eleo- esmaecidas, por vezes, al-
nor. Não sabia o que dizer, com as quais trabalharam,
catálogo de clientes sa- gumas relíquias de família;
nem como. este tomava notas de tudo,
tisfeitos, trechos de suas
— Por que você não obras. Eleonor os avaliava num caderninho velho
contrata um Ghostwriter? como se selecionasse um com folhas amareladas.
— sugeriu Marieta, amiga quarto marido: não basta- Riam juntos dos momen-
de infância de Leonor. va ter ótimas qualificações, tos pitorescos; choravam
— O que é isto? tinha de ser simpático, juntos dos trágicos.

— Algo comum nos não podia ser feio (ser — Estou tão feliz com
Estados Unidos, amiga. “Es- bonito não era imperioso, minha escolha, Marieta! —
critor fantasma”, em por- mas feio, nem pensar!), e Eleonor no telefone — O
tuguês: você paga alguém com horários extrema- rapazinho é atencioso e
para colocar suas idéias mente maleáveis, já que as dedicado. Amanhã, trará
no papel e, no final, quem melhores idéias de Eleonor as primeiras páginas do
recebe os créditos é você. ocorriam de madrugada, que escreveu.
Mais fácil, impossível. ou seja, disponibilidade Mas Pietro della Fonta-
para receber telefonemas na não cumpriu o prome-
Proposta tentadora. De às três ou quatro da ma-
fato, resolveria muitos pro- tido. Ao invés dum ma-
nhã. nuscrito, trouxe apenas o
blemas estruturais de sua
narrativa, o primeiro deles: E tal pessoa só poderia velho caderno de notas.
como colocar num livro ser Pietro della Fontana, — Mas você prometeu,
setenta anos de história vinte e tantos anos, olhar Pietro!
pessoal, três casamentos, profundo, sorriso sincero
e, de acordo com ele, pelo — Desculpe-me, Eleonor,
uma viuvez, um filho mor- eu deveria ter-lhe explica-
to em acidente de carro, menos dois livros publi-
cados na Itália. Apesar do do o meu método de tra-
uma filha doutora na Suí- balho antes de começar-
ça, Eleonor sobrevivendo a português com sotaque,
um conhecimento grama- mos. Você só terá acesso
um acidente de avião (com ao texto quando eu houver
mais cinco outras pessoas). tical impecável; não trouxe
currículo, mas apenas um terminado. Então, revisa-
Todas aqueles coisas, gran- remos juntos e faremos as
des ou triviais, que indiví- pedaço de guardanapo,
no qual, diante da própria modificações.
duos comuns consideram
imprescindíveis de serem Eleonor, escreveu um pará- — Mas você prometeu!
escritas num livro, para o grafo, descrevendo-a. — Foi um deslize que

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não se repetirá. — sou eu, você me cha- Eleonor tremia, havia
A confiança de Eleonor mou. Eu vim. perdido o sono, tinha
nele foi abalada. No entan- Os pêlos da viúva se ar- medo de descer e con-
to, agora que os trabalhos repiaram, conhecia a voz, firmar se Pietro havia
já haviam começado, iriam mas, tomada pelo pânico, realmente partido. Ficou
até o fim. não raciocinava. Permane- sentada na beira da cama,
ceu em silêncio. abraçando-se, aguardando
o sol nascer.
Uma idéia brilhante — Sou eu, Pietro... — a
despertou Eleonor, sobre voz insistiu.
como iniciar o próximo Poderia ser uma em- — História esquisita esta
capítulo. Sentada na cama, boscada, uma armadilha. que você me contou, ami-
discou o número de Pietro; O bandido poderia tê-la ga — Marieta apoiava a
ninguém atendeu. espiado e investigado a cabeça no punho cerrado,
todos com quem ela man- pensativa.
— Atenda, Pietro! É im-
portante — ela sussurrava. tinha contato. Mas a voz — Vou cancelar o con-
Secretária eletrônica. era mesmo de Pietro. Len- trato com ele. Não quero
tamente, ela abriu o closet. mais saber de ele escre-
— Pietro, aqui é Eleonor, vendo minha história.
ligue para mim o mais Os olhos profundos do
rapaz a fitavam, à distân- Quem deu a ele direito de
rápid... — não concluiu; vir até minha casa, entrar
tinha certeza de haver cia dum palmo:
sem ser convidado? Não
ouvido passos na escada. — O que você está fa- quero mais saber.
Desligou o telefone, vestiu zendo dentro do armário,
o penhoar e abriu uma Eleonor? — ele riu. — E se ele for perigoso,
fresta na porta. Mesmo Eleonor? Ele pode querer
— O que é que você se vingar de você. Talvez
estando tudo escuro, uma está fazendo aqui em casa,
sombra se lançava de bai- seja melhor você descobrir
a esta hora da madrugada? mais coisas sobre ele. Eu
xo para cima, na escada, — a raiva da senhora era
por causa do fraco abajur gostaria de conhecê-lo.
muito inferior ao medo —
na sala. Eleonor teve medo. Saia daqui agora! Saia, saia, — Por favor, não me
E se fosse um assaltante? saia! peça isto.
Um estuprador (há quase — Confie em mim, Eleo-
uma década que ela não — Calma, Eleonor, eu
trouxe alguns rascunhos nor. Você sabe como é mi-
sabia o que era ter um nha intuição. Uma olhada
homem dentro dela)? E se para você dar uma olha-
da. Achei que não deveria neste rapaz e já vou saber
fosse um psicopata assassi- se ele é de boa índole.
no em série? deixá-la esperando.
— Não vou repetir, ra- Eleonor aquiesceu. Ligou
Eleonor apagou a luz para Pietro e marcou um
e correu para dentro do paz. Se você não for em-
bora agora, serei obrigada jantar, na casa dela, naque-
closet. Arfava. Coração na la mesma noite.
boca. O invasor mexeu a chamar a polícia.
na maçaneta, a porta do Pietro trajou uma de- — Ele já deve estar para
quarto se abriu, um vulto cepcionada expressão. chegar — Eleonor apertava
entrou e caminhou direta- Com um maço de papéis as mãos, enquanto Marieta
mente para o closet. En- sob o braço, deu a volta e dispunha a mesa para três.
costou a cabeça na porta. desapareceu escada abai- A hora combinada che-
— Eleonor, — murmurou xo. gou e Pietro, sempre ina-

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creditavelmente pontual, estiver dia, eu mesmo pos- pela chuva oblíqua. Foi até
não apareceu. so consertar o carro. a penteadeira e apanhou
— Algo deve ter acon- — Você não pode ficar o porta-retrato, no qual
tecido — Marieta racio- aqui, Pietro. Sinto muito. a foto de Teobaldo, seu
nalizava — É apenas um finado esposo, sorria. Um
— Por que não, Eleonor? tímido reconforto, fugidia
atraso. Nós nos tornamos tão ínti- segurança; vê-se no espe-
— Ele descobriu tudo. mos nestas últimas sema- lho, olheiras proeminentes,
Percebeu que se tratava nas — havia algo macabro cabelos despenteados, e,
duma arapuca — o olhar neste “tão íntimos”. atrás de si, quase invisível,
de Eleonor saltava de jane- Ele avançou e afastou quase uma névoa, a silhue-
la em janela, temendo que Eleonor com o braço. Reti- ta de Pietro. Num grito,
alguém as estivesse obser- rou o casaco e o dependu- quase um soluço, Eleonor
vando. rou no cabide. se virou. Nada, apenas sua
Ficou tarde, e lá fora — Posso dormir no sofá imaginação; delírios causa-
começava a chover. mesmo — retirou as botas, dos pela falta de sono.
— Ele não vem, amiga. Eleonor estática, maçaneta Pietro já havia partido
E já está na minha hora. da porta aberta numa das quando Eleonor deixou
Cuide-se e, qualquer coisa, mãos, sacola com borda- o quarto; na mesinha de
saiba que pode contar co- dos na outra. centro, um bilhete.
migo — Marieta abraçou — Feche a porta, Eleonor, Obrigado pelo teto.
Eleonor e partiu. está vindo um vento gela- Vemo-nos em breve.
Dez minutos depois, do de fora. Aliviada, Eleonor tratou
alguém bateu à porta. É Ela obedeceu. de ligar para Marieta, mas
Marieta, esqueceu-se da quem atendeu não foi ela;
sua sacola de bordados, Mesmo se trancando no
quarto, Eleonor não estava a voz era de alguém mais
Eleonor pensou. nova:
sossegada. A recordação
Com a sacola em mãos, da outra noite a inquie- — Eu gostaria de falar
Eleonor atendeu a porta: tava, jurava estar ouvindo com Marieta. Aqui é a
— Aqui está... — disse, Pietro andando lá embai- Eleonor.
sorridente, mas logo os xo, emitindo grunhidos — Ai, Eleonor, mamãe
dentes se esconderam, à como se fosse um bicho, faleceu ontem à noite.
porta estava Pietro. subindo a escada, respi-
rando perto da fechadura, — Meu Deus, Renata, o
— Desculpe-me o atraso, que aconteceu?
Eleonor — ele estava todo e descendo a escada nova-
encharcado — Meu carro mente. Ela se cobriu com o — Ainda não sabemos...
enguiçou. Tive de cami- lençol, era como se Pietro Eu a encontrei na cama.
nhar até aqui. estivesse dentro do quarto, Gostaria de dizer que teve
prestes a puxar o lençol e uma morte tranquila, mas
Sem convidá-lo a entrar, sussurrar: o rosto dela... Era como se
Eleonor sugeriu: estivesse com medo. Di-
— Você me chamou... Eu
— Quer que eu ligue vim. zem que pode ter sido um
para um mecânico? ataque do coração. A fune-
Outra noite insone. Ele- rária acabou de levá-la.
— Não precisa. Só preci- onor se levantou e olhou
so dum lugar para passar pela janela: as árvores Eleonor chorava. Se
à noite. Amanhã, quando castigadas pelo vento e soubesse que nunca mais

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veria a melhor amiga, não dele. ele havia dado a ela esta-
teria lhe dado apenas um Eleonor leu o que estava va fora de área, a polícia
abraço; ela lhe beijaria a escrito: nem acreditava no que ela
face e agradeceria todos dizia.
estes anos de companhei- Capítulo 47 Deixou a delegacia com
rismo. a sensação de impunidade,
Devia fazer uma última Marieta não percebeu de que não conseguiria
visita a ela, a sós. Foi até o que alguém a havia seguido. justiçar a morte da amiga.
necrotério. No semblante, Por razões muito impor- Na saída, porém, se depa-
aquelas mesmas feições tantes, queria-a morta; ela rou com o escrivão, cuja
descritas pela filha como poderia ser um entrave na mulher conhecia a obra de
sendo medo. O que Marie- missão dele; poderia pôr della Fontana.
ta tinha a temer? Ou era tudo a perder.
Suplicou-lhe ajuda, en-
apenas um ataque cardía- tregou-lhe seu endereço e
co mesmo? Desesperada, com a lhe pediu que solicitasse à
Com o pretexto de certeza de que a morte de esposa que mandasse para
apanhar as roupas para Marieta não havia sido na- ela algumas informações
o velório, Eleonor obteve tural, Eleonor correu para sobre Pietro.
permissão de Renata para a delegacia mais perto. Marieta foi velada e
entrar na casa da morta. Os policiais riram da sepultada. De luto, olhos
Logo que abriu a por- hipótese dela, leram o inchados de tanto chorar,
ta, encontrou pegadas de pedaço de papel, especula- Eleonor, ao chegar em casa,
lama, que desapareciam ram que poderia ser uma apanhou a correspondên-
após poucos passos. Po- coincidência mórbida, cia. Havia um gordo en-
rém, ao contrário do mas, sob insistente pedido velope. Nele, um maço de
esperado, havia pegadas de Eleonor, aceitaram fazer documentos sobre Pietro
de quatro pés, dois possi- uma busca da ficha crimi- della Fontana. Fotos, facsí-
velmente de Marieta, dois, nal de Pietro della Fonta- miles de manuscritos, bio-
bem maiores, dum ho- na. Nada, mas um escrivão grafia, bibliografia. Tudo,
mem. Alguém havia esta- ouviu o nome e comentou: desde a foto até a caligra-
do com Marieta, naquela — Pietro della Fontana? fia, o Pietro, escrito italia-
mesma noite chuvosa. As Este cara deve estar usan- no, morto em 1926, mestre
pegadas pequenas desapa- do um nome falso! do gênero fantástico e de
reciam antes; as grandes, terror, se assemelhava ao
— Por quê? — o outro
seguiam até perto do sofá. Pietro, ghostwriter.
policial perguntou.
Eleonor as acompanhou, Eleonor se trancou no
então, avistou, sob uma — Este é o nome dum
quarto, e leu linha por
poltrona, apenas a ponti- famoso escritor italiano.
linha o material que tinha
nha duma folha de papel. Minha esposa está fazendo
em mãos. Descobriu que
uma dissertação de mes-
Ela se abaixou e a pu- Pietro havia se mudado
trado sobre a obra dele.
xou para fora. Era uma da Itália para esta cidade,
Morreu há uns oitenta
folha velha de papel, e a casa na qual faleceu
anos, acho.
amarelecida, escrita com ficava a poucas quadras da
letra pequena e apressada, A constatação foi dura casa de Eleonor. Seu Pie-
exatamente igual às folhas para Eleonor. Ela não tinha tro, o ghoswriter, era um
do caderno de Pietro, exa- o nome verdadeiro do rapaz muito esperto, estava
tamente como a caligrafia criminoso, o telefone que tentando assustá-la, que-

40 SAMIZDAT agosto de 2009


40
rendo se passar por um um manuscrito, letra pe-
escritor morto, mas com quena e apressada, autoria
qual intenção? Com qual de Pietro della Fontana.
Um detetive...
propósito? O investigador, que coin- Uma loira gostosa...
Ela adormeceu sobre os cidentemente havia sido
papéis, exausta pelas noi- o mesmo a quem Eleonor Um assassinato...
tes insones e pela vigília havia recorrido, um mês
ao corpo da amiga. Mas atrás, resolveu dedicar
despertou, calafrios na alguma atenção ao caso.
E o pau comendo entre
espinha e ouvindo alguém Descobriu que Eleonor
respirando, bem pertinho havia comprado este ma-
as máfias italiana e
de seu ouvido. nuscrito num antiquário chinesa.
­
— Você me chamou, do centro, pela bagatela de
Eleonor.... Eu vim. cem reais. Provavelmente,
não conhecia o autor, mas
Instintivamente, relem- deve ter se impressionado
brando seus tempos de
meninice, quando ela e a
pela antiguidade do docu-
mento e, talvez, pelo valor
O Covil
irmã rezavam juntas um histórico.
Pai-Nosso, quando tinham
medo de que o Saci viesse, A escrita de Pietro era dos
poderosa e, possivelmente
durante os verões no sítio,
Eleonor começou a rezar. impressionada pela narra-
tiva de terror, deve ter tido
Inocentes
— Ainda falta um úl- alucinações; acreditado
timo capítulo, Eleonor. ter visto o autor, ter falado www.covildosinocentes.blogspot.com
Depois, vou embora. com ele, ter pedido a ele
Sim, o último capítulo que escrevesse sua auto-
era sobre ela. biografia. A obra adquirida
Os vizinhos reclamavam por ela era desconhecida
dum tremendo mal-cheiro. dos pesquisadores, mui-
Ligaram para as autori- tos reputaram-na como
dades e descobriram que apócrifa, mas foi incluída,
vinha da casa de Eleonor. posteriormente, no corpus
O corpo se decompunha do autor como obra póstu-
há mais de um mês. Exce- ma. O que o investigador
tuando a filha doutora, que jamais compreendeu, nem
não dava a mínima impor- queimou os neurônios
tância para a mãe, ela não tentando compreender, foi
tinha parentes vivos, mais a coincidência de nomes
nenhum amigo próximo, entre os personagens do
ninguém havia dado falta livro com as pessoas da
por ela. Foi encontrada vida real — Eleonor, Ma-
na cama, rosto contorcido, rieta, o próprio Pietro —,
como quem sofreu muito. mas, às vezes, a arte imita do
Ataque do coração, disse- a vida, noutras, a vida imi- w
ta a arte, concluiu. gr nl
ram.
át
oa
is d
Sobre a mesa de jantar,

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Contos

Rabiscos de
um quase normal
Ju Blasina

42 SAMIZDAT agosto de 2009


42
Hoje não acordei. Não – ops, este fui eu esbar- te”- tão gentil da parte
acordei, pois só acorda rando num prato, sempre deles! - confesso que pre-
quem dorme. Permaneci desajeitado! Aquele lugar feriria algo como “garbo-
em meu estado de se- remetia-me a uma sin- so” ou “genial”, mas...
miconsciência, instável, fonia da infância... E de O restante do dia
mutável, ora letárgico repente, sem perceber pulou “de dois em dois”.
- quem dera lisérgico - entrei no ritmo fazendo Nunca aconteceu com
com picos de excitação. um “rounc” com minhas você? Ah, comigo é algo
Num limiar que vai do entranhas adestradas. frequente, mal pisco e o
desespero latente ao va- Sentei-me para o ban- dia acabou! Não fiz mui-
zio hiperativo. quete, onde mastiguei tas coisas, mas é preciso
Fui ao banheiro e coisas enganosas: caras levar em consideração o
quando lá cheguei me bonitas e gostos estra- quão difícil é agir quan-
deparei com um sujeito nhos. Não, não comi do você ocupa o corpo
que não conheço. Nunca gente! Já não o faço des- de outrem. Às vezes os
o vi mais magro. Sujeito de... Que falta faz um membros simplesmente
estranho, espiava-me atra- calendário! Ah, sim: desde não obedecem. E com a
vés de uma janela imitan- que notei o quanto os noite o dono sempre vem
do meus gestos e caretas. dedos mindinhos fazem reclamando o patrimônio
Era bem feio o coitado, falta. Acabei a refeição - – mais uma luta árdua:
mas quando sorri, ele os guardanapos estavam Fui, voltei. Mundo per-
sorriu de volta, respon- ótimos! Adoro quando to, mundo longe. Perto e
deu ao meu aceno, logo são coloridos, me deixam longe, perto e longe – um
simpatizei! Prometi voltar alegre por dentro. grito mais alto, um pouco
mais vezes, apesar de já Não sei que lugar é de violência e... Pronto!
não lembrar o que tinha este ou o que me trouxe “Esta casa ainda é minha!
me levado àquele lugar... pra cá, mas sei que aqui Enfie sua ordem de des-
Fazer amigos, talvez? Bem sou muito importante! pejo no rabo – de outro
possível! Despedi-me do Todos comem e dormem – porque o este agora me
distinto cidadão da janela ao meu redor. Muitos até pertence! Haha”
e segui o meu rumo, an- se vestem iguais a mim e Exausto, mas satisfeito,
dando com a segurança imitam o meu caminhar mastigo algumas coisas
de quem sabe aonde quer – sempre fui um criador desprovidas de forma ou
http://www.flickr.com/photos/cavale/3634078028/sizes/o/

chegar – eu sempre fui de tendências e adoro sabor e me deito. Fecho


um bom ator! tender a mim mesmo. Só os olhos, recebo as go-
Até que um cheiro não recordo o título que tas milagrosas que me
muitíssimo agradável ostento - serei eu algum abastecem de vida e finjo
cruzou o meu caminho e tipo de rei? Uma divinda- novamente dormir – até
como um gancho içou- de, talvez? Realmente não ronco! – afinal: eu sem-
me pelas narinas à co- lembro... Muitos prefe- pre fui um bom ator.
zinha. Lá haviam ainda rem me adjetivar, ressal-
mais cheiros e vapores. tando minhas qualidades
Sons de “tss”, “blub”, “crash” ao chamar-me de “pacien-

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Contos

As engrenagens
da felicidade Léo Borges

44 SAMIZDAT agosto de 2009


44
O cardiologista de
Heitor disse que ele pre-
cisava correr pelo menos
duas vezes na semana
para baixar suas taxas
de triglicerídeos e, assim,
ter uma vida mais lon-
ga. Deveria ficar longe
das gorduras saturadas,
das novas e ameaçado-
ras gorduras trans, dos
condimentos, das frituras,
massas, doces e alimentos
industrializados. Heitor
sabia que aquele era um
bom médico e suas pala-
vras passavam segurança
quando afirmavam que “a
longevidade é reservada a
quem pratica esportes e
se alimenta bem”. Segun-
do o doutor, “as engrena-
gens da felicidade estão
montadas sobre a boa
saúde”.
Tendo seu norte nas
palavras de um profissio-
nal da medicina, que pre-
coniza como as pessoas
devem se comportar para
terem uma vida feliz,
Heitor viu que era hora
de dar um basta no se-
dentarismo. Então, nem a
ameaça de chuva daquela
noite dissuadiu sua von-
tade de iniciar um exer-
cício leve no calçadão
da praia. Calçou o tênis,
entrou no carro e foi
para a praia correr, criar
o hábito que, segundo o
cardiologista, mantê-lo-
ia vivo por mais tempo.
Procurava contar com
a ajuda do estimulante
aparelhinho MP3 que,
nesta ocasião, apresentava

http://www.flickr.com/photos/sheilatostes/626560532/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 45
o Lulu Santos dizendo, desfrutar por mais tempo e as misteriosas taxas gli-
colado ao seu tímpano, do conforto que o di- cêmicas daquela mulher
que via um novo começo nheiro, quando existisse, e, com algum constrangi-
de era. Assim como acre- proporcionaria. mento, concluiu que ela
ditava no médico, Heitor poderia ter uma licença
também nunca descon- A garoa se confirmou para ficar de fora do rol
fiou que o Lulu pudesse e os primeiros pingos dos que consomem uma
estar mentindo, apesar de surgiram no pára-brisa. alimentação balanceada,
saber que artistas, muitas Mas, Heitor estava de- dita ideal.
vezes, se enganam, ou, até terminado a iniciar sua
de propósito, enganam jornada atlética sob qual- O calçadão da praia
os outros, quase sempre quer clima. No sinal do estava deserto. Um vento
com a melhor das inten- último cruzamento para frio procurava inibir a
ções, como a de agora, a praia uma pedinte veio intenção atlética do ex-
em que o cantor tinha a intimidar seus felizes sedentário Heitor. Corpos
missão de vivificar um pensamentos batendo inertes refugiados em
preguiçoso. com os nós dos dedos seus apartamentos apre-
no vidro lateral. “Um ciavam as televisões apa-
Um atraente outdoor trocado pelo amor do rentemente sintonizadas
na avenida principal era bom Deus...”. As gotas em um mesmo canal. Um
imperativo na promoção deixavam turva a imagem aposento destoante no
do carro sofisticado: “Seja da mulher, como se ela cenário concentrava um
feliz hoje!”. Hoje, obvia- estivesse desmanchando grupo de amigos festejan-
mente, já estava tarde juntamente com a chuva. do algo. No poste adja-
para ser, mas Heitor vi- Era uma mendiga com cente, um cartaz atraiu a
nha juntando uma grana um pano roto amarrado atenção de Heitor. Mos-
fazia algum tempo para à cabeça que, não obstan- trava a foto de um garoto
comprar aquela máquina te não livrá-la de ter os de seus vinte anos, sorriso
de design arrojado. Faria cabelos molhados, ainda estático e olhar pacífico.
parte da tal engrenagem lhe conferia uma apa- Fazia um sinal positivo
da felicidade ter um car- rência melancólica. Ela com a mão. Letras negras
ro como o do anúncio? não tinha um headpho- e grandes apareciam so-
Heitor sabia que sim. A ne onde pudesse ouvir bre a foto revelando seu
mensagem era clara: não o Lulu prevendo um nome: “Marcelo Zanet-
devemos deixar aquisi- futuro com gente fina ti”. Abaixo, um pequeno
ções que nos farão felizes elegante e sincera e não texto dizia: “O homicídio
para amanhã, principal- parecia estar disposta a não pode ser banaliza-
mente se você for um dar uma corridinha para do! Amanhã poderá ser
sedentário, pois pode entrar em forma. “Estou seu filho. Confiamos na
acabar morrendo com sem comer desde ontem”. Justiça”. Triste era perce-
uma veia entupida e vai Também teria ela de se ber que mesmo com uma
perder a oportunidade alimentar com saladas alimentação adequada,
de dirigir um belo veí- e sucos diet conforme Marcelo não garantiu sua
culo. Bom, Heitor estava determinava o senso sau- longevidade.
ali, fazendo a parte dele, dável? Sim, com certeza,
fazendo as coisas que lhe pensou Heitor. Entretanto, Aquele rapaz engros-
mandavam para criar sua logo após abaixar o vidro sava as estatísticas de
poupança de dias, sema- e dar algumas moedas, assassinatos na cidade e
nas, anos, e, assim, poder ele ponderou sobre a vida a família agora parecia
querer incomodar os

46 SAMIZDAT agosto de 2009


46
atletas da orla, longevos feliz de todo jeito. Esse Heitor iniciou uma
ou não, com o assunto. E era o ditado de Soraia, corrida nervosa, como
o objetivo estava sendo uma vizinha com quem se quisesse fugir dos
alcançado. Pelo menos Heitor chegou a trocar fantasmas de todas aque-
com Heitor, que para olhares mais demorados las tragédias e fixar os
não ficar impressionado, numa determinada épo- pensamentos apenas nas
desviou novamente os ca de sua vida, mas que, mensagens de alegria que
olhos para os prédios e por causa da timidez de a vizinha deixara. Quanto
casas ao redor. Notou que ambos, nunca chegou mais o rapaz corria, mais
o carro de seus sonhos, o a namorar. Ela morreu o som alto do apartamen-
mesmo do outdoor, pas- atropelada numa noite to festivo perdia a briga
sava agora pela televisão de garoa como aquela, com o do seu MP3, que
de um porteiro do edifí- num acidente em que agora passava a tocar um
cio de bela fachada. E a um carro invadiu a cal- rock americano pesado,
festa solitária continuava çada e o motorista não impossível de se entender
rolando no apartamento, parou para socorrê-la. a letra.
com animadas pessoas Certamente quem o di-
emitindo o ruído carac- rigia não o fazia dentro Pode ser que a luta
terístico de ambientes daquele possante de 16 por mais tempo no mun-
felizes. Desta vez com o válvulas da propaganda. do, a alimentação saudá-
Tim Maia pedindo um Pessoas daquela estirpe vel, o prazer instantâneo
motivo para ir embora. costumam ser solidárias, e a busca pelo conforto
Marcelo não precisou de têm classe, entendem o imediato é que movam a
nenhum, foi embora sem sofrimento alheio, pensou humanidade e se mostre
motivo mesmo. Heitor. Sendo o condutor como o combustível para
de um carro como aquele a longevidade. Talvez seja
Heitor mexeu no uma pessoa feliz, por que este o motivo da vida:
relógio para acertar o não iria ajudar alguém tentar conquistar algo
cronômetro. Respirou a quem causou tamanha que nos mostre as reais
fundo e tentou criar boas dor? Não fazia nenhum engrenagens da felicida-
vibrações na mente para sentido. Mesmo assim, de. Porém, naquela noite
a corrida fluir numa boa. apesar da indelével feli- chuvosa, parecida com
No calçadão não havia cidade de Soraia ter sido a da morte de Soraia, o
ninguém além dele e de ceifada de modo brutal, olhar congelado e sem
um cachorro revirando essa mulher viveu o sufi- vida de Marcelo estava
o lixo junto ao poste do ciente para acreditar no incomodando bastante
cartaz que se descolava que pregava, no sorriso Heitor.
com a chuva. Para vi- que cedia às pessoas e na
ver muito você tem que crença em um mundo
priorizar o lado bom da sem injustiças.
vida, tem que buscar ser

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Contos

Ciúme Marcia Szajnbok

http://www.flickr.com/photos/sukisousale/3075075643/sizes/o/

48 SAMIZDAT agosto de 2009


48
à memória de Edgar Allan havia tentado lhes explicar do uma espécie de ape-
Poe várias vezes o que sucedia go à figura alucinada. Já
nas madrugadas, mas não não temia. Pelo contrário,
acreditavam. Ofereceram- esperava-a. Sim, ela. Ago-
lhe chás de vários sabores, ra, depois de todos esses
A noite estava muito tintura de maracujá, melis- anos de convivência, tinha
fria. A chuva era forte e os sa. Até mesmo uma colhe- certeza que se tratava de
trovões estremeciam todos rada de conhaque no copo um espectro de mulher.
os vidros. O vento enchia de leite quente, o tio havia Seu toque era suave, emba-
o ar de sons que pareciam tentado para prevenir o lava-o em cafunés e sus-
vir de outro mundo. Na mau sono. Nada havia fun- surros, envolvia-o no calor
cama, encolhido, o peque- cionado. da transparência azulada
no puxava as cobertas para onde, aqui e ali, o jovem
cima da cabeça e apertava Chamaram um padre. antevia uma forma arre-
os olhos. Não queria ouvir, Os santinhos enfileirados dondada, um seio talvez,
não queria ver nada, tre- no criado-mudo haviam ou um pedaço de anca
mia. Tremia de frio e de de velar seu sono, trazer feminina.
medo. tranquilidade às noites in-
fantis. Foi nessa época que Garoto ainda imberbe,
Há tempos era assim. aprendeu o pai-nosso e, magro demais para seus
No momento exato em durante algumas semanas, um metro e noventa e oito
que a luz se apagava, e o rezava baixinho, horas a de altura, a pele excessi-
corpinho cansado das es- fio, no escuro. Inútil pro- vamente branca e cheia
tripulias diurnas perscru- vidência. Por fim, tiraram de espinhas, não agrada-
tava o leito à busca do ni- do quarto as imagens, pois va muito às meninas da
cho ideal para acalentar-se aqueles olhos imóveis, ar- escola. Também não tinha
em sono, o horror come- regalados no gesso, tinham muito em comum com
çava. Eram arrepios, sensa- se transformado em mais os outros garotos. Jogava
ções de que vaga mão lhe uma fonte de pavor para mal bola, quase não tinha
percorria o cabelo, o rosto. o menino. Uma das cozi- músculos, vexava-se diante
Por vezes, sentia um beijo. nheiras da casa, uma negra das brincadeiras malicio-
Abria os olhos, já tendo sexagenária de carnes sas. Todos riam dele, de
como vã a esperança de lá fartas, se propôs a passar sua aparência incomum,
encontrar a tia e, de fato, as noites com ele. Suas de sua timidez que o fazia
não via ninguém. Noutras rezas eram outras, ditas corar ou gaguejar sempre
noites, já no umbral do numa língua estranha que que era alvo dos olhares.
adormecer, sobressaltava-se o garoto não compreen- Cada vez mais distante dos
com a impressão de que dia. Encheu o quarto de colegas e das moças de
lhe sussurravam o nome ervas, jogou no ar umas carne e osso ia, por outro
ao ouvido, um chamado águas perfumadas mistu- lado, mais e mais se apro-
longínquo e saudoso, que radas aos cantos vindos da ximando da fantasmagóri-
sempre o deixava com África. Em vão. ca acompanhante noturna.
os cabelos em pé. Havia Muitas vezes assustava-se
ainda as formas. Não era Assim, iam-se os dias. quando algum professor
possível descrevê-las de Noites mal-dormidas, pe- o chamava em voz mais
outro modo, eram assim, sadelos, assombrações. Se- alta – “preste atenção na
apenas formas esgazea- manas de angústia, meses aula, está sonhando?” Sim,
das, quase transparentes, de terror. Passados alguns sonhava. Devaneava horas
brancas ou um pouco anos, o menino já púbere a fio, imaginando possíveis
azuladas, que atravessavam deixou de reclamar e de contornos para seu rosto,
o quarto quase junto ao gritar. Os tios sossegaram: a cor dos seus cabelos, seu
teto, ou pairavam sobre a acabou-se, nada além de nome... Quem seria ela,
cama como que esperando temores de criança. Ledo afinal?
o melhor momento para engano. A diferença estava
lhe invadir os sonhos. O apenas na reação provoca- Houve a fase da pes-
garoto despertava, então, da pelas noites espectrais. quisa. Passou dias inteiros
num grito de pavor que Na infância, inseguro e nas bibliotecas públicas,
acordava toda a casa. Os frágil, o menino se de- mergulhado em livros e
tios vinham, algumas vezes sesperara. Agora, jovem jornais antigos que tra-
com paciência para acal- introspectivo, tímido e um ziam a história da cidade.
má-lo, outras nem tanto. Já tanto solitário, tinha cria- Esperava encontrar alguma

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tragédia, um assassinato, trazia efeitos que se faziam ram as palpitações, sentia
um drama familiar. Tal- visíveis no jovem. Pouco a todos os músculos do
vez uma linda jovem que, pouco, deixava para trás os corpo relaxados, o tumul-
diante de um amor proi- traços de menino mal pú- to que lhe preenchera a
bido, houvesse posto fim bere, ganhava ares de ho- mente sossegava. Dormiu
à vida bem ali, onde hoje mem feito. Ganhara barba, serenamente naquela noite
era o seu quarto. Pesqui- os braços e o tórax se e acordou refeito.
sou, leu, investigou, mas tornavam repentinamente
não havia tal personagem. fortes, todo ele adquirira A calmaria, entretanto,
Onde foi construída a um aspecto másculo. A não durou muito. No-
casa dos tios, em tempos tia estranhava. O tio, com vas crises semelhantes
idos não havia nada, ape- uma piscadela cúmplice, se repetiram. Em geral,
nas um terreno vazio. A sugeria – “arrumou aí uma acometiam-no quando
frustração dessa fantasia, namorada, hein?” O moço estava na escola, sobretudo
entretanto, não diminuiu disfarçava e nada respon- nos ensaios para o baile.
sua curiosidade nem seu dia. Na escola também a Sempre que tomava a mão
apego, antes até os fomen- mudança se fizera notar. Já da parceira de valsa, a dor
tou. não zombavam, e a possí- recomeçava. Um dos cole-
vel paixão secreta do ra- gas percebeu sua expres-
O jantar era servido paz era assunto das rodi- são constrita e, cruelmente,
sempre por volta das nhas femininas. Divertido disparou – “ah, bem sabia
oito e meia. Um pouco com o mistério, ele apenas que no fundo, no fundo,
de conversa, notícias do sorria, maroto, deixando seu problema era medo
dia, novidades da escola, que a dúvida crescesse. de mulher!” Pronto, já se
amenidades feitas para tornara novamente alvo
facilitar a digestão. Ansio- Os problemas começa- da zombaria. Tentava se
so, o rapazinho checava ram à época do baile de controlar, disfarçar, mas
repetidamente o relógio à formatura. Era preciso es- ficava cada vez mais difí-
espera da permissão tácita colher uma das mocinhas cil. À medida que a festa
para se retirar. Subia ao da classe para ser seu par. se aproximava, as crises
quarto cada vez mais cedo. Há dois anos, teria sobra- vinham mais frequentes e
Decerto iria estudar, pen- do. Hoje, era alvo de dis- mais intensas. Preocupa-
savam os tios, equivocados. puta, e logo lhe definiram dos, os tios chamaram um
Expectante da noturna como parceira de valsa a médico. Depois de muito
visita, punha-se logo entre mais bonita da sala. Go- examinar e conversar, o
os lençóis, vedava todas as zava intimamente da sua veredicto: o rapaz não
luzes e esperava. vitória quando sentiu pela tinha nada. Provavelmente
primeira vez a dor. Como estava apenas ansioso pela
Fiel e constante, ela um aperto no alto da festa, emocionado por ter
sempre vinha. O garoto cabeça, teve a sensação de que se apresentar em pú-
fechava os olhos e imagi- que o crânio estava pres- blico dançando com uma
nava-se a conversar com tes a ser esmagado. Sem jovem tão cobiçada. Coisas
ela, a contar-lhe sua vida, poder se controlar, soltou da idade. Talvez fosse bom
seus segredos. Compre- um grito. Todos se vira- fazer uns exercícios, prati-
ensiva, ela respondia com ram para ele, e foi nova- car alguma luta marcial...
seu toque imaterial, com mente tomado pelo antigo
carinhos sutis que mal rubor, afastando-se logo Mas ele bem conhecia
roçavam a pele. Por vezes, daquela cena pública. No o remédio para seu mal:
emocionado, sentia um caminho para casa, tinha ir para casa, fechar-se no
fio de lágrima escorrer- sensações desagradáveis, quarto, apagar as luzes.
lhe. Ela, então, muito doce, arrepios, náuseas. Uma Era mágico. Assim que se
secava seu rosto com um espécie de febre e torpor deitava, ela vinha, a fantas-
beijo delicado. E assim, lhe borravam a visão e um magórica namorada. Na
noite após noite, cada vez ruído áspero parecia vir verdade, nas últimas se-
mais o jovem abria seu de dentro da cabeça para manas algo havia mudado
íntimo à mulher fantasma os ouvidos. Suando frio nessas visitas. Transforma-
que lhe acompanhava as e tremendo, correu logo da em amante espectral,
noites desde a mais tenra para o quarto. Bastou que seus carinhos já não se
infância. se jogasse sobre a cama limitavam aos toques sutis
para que todo o mal estar e aos beijos delicados. Nos
Essa companhia, agora, desaparecesse. Logo cessa- últimos tempos, sentia que

50 SAMIZDAT agosto de 2009


50
O lugar onde
todo seu corpo era envol- corpo cravado de pedaços a boa Literatura
vido por aquele ectoplas- de vidro, o rosto disforme,
ma azulado, e que uma
sensualidade insuspeita o
o vestido todo manchado
de sangue, os olhos esbu-
é fabricada
invadia. Os beijos vinham galhados em expressão de
agora misturados a mor- pavor.
didas, e por vezes parecia
que a língua lhe seria Um vento gelado corta-
arrancada da boca, tal a va agora o salão, batendo
ferocidade da carícia. To- portas, derrubando mesas
mado por aquele transbor- e cadeiras. Aos gritos, os
damento erótico, todo seu convidados procuravam
corpo se crispava, sacudi- as saídas. Em meio ao
do até ao gozo e, ao invés turbilhão, o rapaz sentiu-
de sussurros, o que lhe se subitamente jogado
vinham ao ouvido eram ao chão. Teve certeza da
gemidos de uma mulher presença inesperada: era
enlouquecida de luxúria. ela que, em público, em
Algo nela voltara a lhe dar meio ao caos que havia
medo. Mas, muito diferen- provocado, o queria. Quis
te dos tempos de menino, resistir, em vão tentou se
o medo atual também levantar. Com mais força
exercia alguma sedução. e desejo do que nunca,
Quanto mais a tinha, mais ela o possuiu, ali mesmo,
a temia; mas, quanto mais no chão, diante do olhar

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
temor, mais a queria. aparvalhado dos que ainda
não tinham conseguido
Assim terminava-se o deixar o local. Ninguém
ano letivo. Finalmente, a podia ver, mas ouviam-
chegou o dia do baile. lhe os gemidos cada vez
Vestindo pela primeira vez mais altos, e a voz rouca
um smoking, toda a fa- que, mesclada ao assobio
mília presente, lá estava o do vento, parecia repetir: –
rapaz, muito compenetra- “meu, meu, só meu...”
do de seu papel ao lado da
jovenzinha com quem ia Toda a cena não durou
dançar a valsa. Já se ou- mais que alguns minutos.
viam os primeiros acordes De súbito, tudo se aquie-
e os pares já se dispu- tou. No lugar da ventania,
nham no centro do salão, vinha agora uma brisa
quando aconteceu. leve que atravessava a sala
deixando em seu rastro
No mesmo instante, to- um vago perfume de rosas.
das as luzes começaram a O socorro médico foi
piscar. Os lustres imensos chamado, mas já era tarde
balançavam, estilhaçando demais para a pobre moça
pouco a pouco os cristais que jazia em meio à poça
de que eram feitos. As de seu próprio sangue.
janelas, os espelhos, os co- E, para aumentar ainda
pos, tudo o que era vítreo mais a perplexidade geral,
naquele ambiente, se par- notaram que num canto
tia e os cacos enlouque- do salão estava largado
cidos voavam para todo um smoking, como se
lado. Todos gritavam, as alguém tivesse se despido
moças corriam. Em meio e esquecido ali as roupas.
àquela histeria, nem todos Os tios o reconheceram
puderam notar que uma como sendo a vestimenta

ficina
única jovem fora atingi- do sobrinho.
da pelos estilhaços. Sua
parceira de valsa estava Ele, no entanto, nunca
caída, no meio do salão, o mais foi visto.

www.oficinaeditora.org

51
Contos

http://www.flickr.com/photos/aphrodite/99779066/sizes/o/

Barbara Duffles

A caligrafia
52 SAMIZDAT agosto de 2009
52
Aconteceu num inverno separou de mim, saiu de re-
Henry Alfred Bugalho
qualquer da primeira déca- pente como havia chegado A
GUI
Nova York
da de 2000. Veio de repen- e desapareceu na penum-
te no meio da penumbra, bra. Na mesma hora abri o
jogou-me contra a parede e envelope amassado, era uma
perfurou minha alma com carta velha, mas estranha- para Mãos-de-VAca
seus olhos distantes. Olhos mente datava de 2032. Era
de passado, de quem já foi e de despedida, e dizia “Meus
O Guia do Viajante Inteligente
não estava mais ali. Parecia filhos, não me vejo mais
que o conhecia, mas forcei neste mundo. Perdoem-me”. www.maosdevaca.com

a memória e não encontrei A caligrafia suicida era


nada parecido com ele. Ti- conhecida, as letras, apesar
rou uma carta amassada do de tremidas, eram familia-
bolso, esfregou-a na minha res. Fiquei completamente
cara. Sua expressão era de sem ar. Afinal, eu conhecia
dor e pavor, ele tinha medo muito bem a pessoa que
de mim, e ao mesmo tempo escreveu a carta... Era eu
uma raiva contida prestes a mesma.
explodir.
Alguns anos depois do
“Quem é você?”, pergun- dia em que ele me perfurou
tei, mas ele disse que não com seus olhos de passa-
tinha muito tempo. “As- do, tenho-o novamente em
sim que eu sair, você lê”. A meus braços. É um bebê,
carta pressionada contra recostado em meu colo,
meu corpo, as lágrimas dele olhando-me com olhos
começando a rolar. “Quem familiares. Entendi que
é você?”, eu perguntava, ten- não eram olhos de passa-
tando encontrar a resposta do, eram olhos de futuro,
naqueles olhos familiares, de quem seria e ainda não
malditos olhos, de onde estava lá. Mas, ainda assim,
vem? Ele me abraçou forte, na penumbra, ele me salvou
aconchegou-se em meu colo de mim mesma.
como se sempre o tivesse
feito, e esse ato me pareceu ****
corriqueiro como acordar
Textos publicados no blog
todos os dias e escovar os
Não Clique
dentes.

Num rompante ele se

www.revistasamizdat.com 53
Contos

Maristela Scheuer Deves

O Admirador
Final: O Enterro

54 SAMIZDAT agosto
julho de
de2009
2009
54
Chegou ao cemitério Ele sorriu novamente. a se afastar em direção à
às 17 h em ponto, e es- “Demorou a descobrir, saída do cemitério. Que-
tranhou que não houves- heim? Mas, também, ria ir embora, e só. E foi
se ninguém lá para o seu quem sou eu para você seu erro.
enterro. Mesmo assim, reparar em mim – seja
Mal sentiu quando
caminhou entre os túmu- como homem ou como
algo pesado caiu com
los – que mais pareciam suspeito? Simplesmente o
força sobre sua cabeça,
um labirinto – tentando novo porteiro, aquele que
enquanto ouvia-o dizer:
decidir o que fazer. Que lhe abria a porta do pré-
“Você acha que eu seria
local teria ele escolhido dio, entregava a corres-
tolo de marcar com você
para sua cova, perguntou- pondência, às vezes aju-
no horário exato? Alte-
se, relanceando um olhar dava com as compras...
rei a hora no jornal que
ao redor e ainda estra- Achei que as coisas iam
deixei sob a sua porta, os
nhando a ausência de pa- mudar com as flores, mas
outros só chegam para
rentes e amigos. “Apare- você continuou a sair
o enterro daqui a uma
ça”, chamou em voz alta, com aquele seu namora-
meia hora...” Depois, não
“eu sei que você está aí”. dinho sem sal! E eu tendo
ouviu nem sentiu mais
de avisar-lhe toda vez que
Com um sorriso ma- nada. Se não estivesse de-
ele chegava, tendo de ser
quiavélico e um olhar sacordada e sedada den-
educado com ele...”
zombeteiro, ele final- tro do caixão que desceu
mente surgiu no corre- Ela tentou falar, repli- à sepultura às 18 h., veria
dor entre as sepulturas, car sobre o absurdo disso o quanto era querida: en-
alguns metros adiante. tudo, mas ele ergueu a quanto o padre rezava e
“Bem-vinda, que bom que mão, interrompendo-a. dizia palavras de consolo,
você veio ao nosso en- “Eu jurei que você se- amigos, parentes, colegas
contro”, saudou, num ar- ria minha, e que, se não de trabalho, namorado,
remedo de cumprimento. fosse, não seria de mais ex-namorado, vizinhos e
http://www.flickr.com/photos/mathieustruck/85768734/sizes/o/

Sem responder, ela ficou ninguém.” Desnorteada, até mesmo o porteiro do


a olhá-lo, observando sentindo-se impotente prédio choravam a sua
cada detalhe. Assim, sem perante a loucura do que morte.
o uniforme, até que ele ele dizia, sentiu toda a
não era feio, forçou-se a raiva e a coragem an-
admitir, apesar da cres- terior abandonando-a.
cente aversão. “Então, era Enquanto lágrimas come-
você mesmo”, disse sim- çavam a vir-lhe aos olhos,
plesmente, sem nenhuma deu as costas ao seu tétri-
emoção. co admirador e começou

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Contos

Giselle Sato

A menina e
as doze badaladas
56 SAMIZDAT agosto de 2009
56
Doze badaladas amavam muito, tanto que
não tinham tempo para
Foram doze badaladas, o mais nada além de si.
som repercutiu através dos
Restavam os jardins
salões imensos e vazios.
com muitas flores e balan-
Quem ousaria enfrentar o
ços, empregadas e babás.
medo e espiar, ainda que
Correndo pelas alamedas
pela fresta da fechadura,
ela sonhava que era uma
a quem pertenciam os
fada e pintava as mais lin-
passos cadenciados. Um...
das cores. Cantava e baila-
dois...três...
va e assim eram os dias de
Uma lufada de vento sol. Dias de luz.
forte, arrancou as cortinas
Algumas vezes a doçu-
diáfanas e a lua penetrou
ra perdia o encanto. Pren-
toda senhora de si o apo-
dendo laços negros nas
sento sombrio. Iluminando
pontas das longas tranças,
e evidenciando os cantos
ela transformava-se na
escuros. A última espe-
bruxa má e desejava afo-
rança era o círculo de
gar todos no grande lago.
luz, no chão do quarto de
Todos sem exceção, mes-
brinquedos. Ainda podiam
mo os que deveria obede-
tentar... Mas quem iria se
cer e respeitar. Nestes dias
arriscar? Espreitando na
em que o céu tingia as nu-
escuridão eles aguarda-
vens em chumbo de puro
vam.
rancor... Ela partia-se em
O que antes era motivo mil pedaços e não sabia
de alegria, agora só trazia o que era ou o que fazia.
pânico e horror. Bonecas Destruía o que atravessas-
rotas e caolhas pareciam se seu caminho, maltrata-
acompanhar seus movi- va os bichos e as pessoas
mentos, bailarinas tortas tinham verdadeiro pavor.
pendiam pelas prateleiras,
Quando tudo se acal-
caixas de lembranças em
mava ela repetia baixinho:
papel desbotado. Caixas
Não estou sozinha. Foi
de brinquedos, papéis e
ela quem fez estas coisas
giz de cera espalhados
ruins. Somos duas irmãs
pelo chão.
em almas costuradas a
Houve uma vez uma ferro e brasa. Talvez seja
menina que só queria ser um castigo... Talvez... Mas
feliz. Ela cresceu em uma não estou sozinha. Ela está
casa linda, com pais que se comigo.

http://www.flickr.com/photos/dogwelder/55051390/sizes/l/

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Como a canção de ni- dos olhos da família feliz, final veio arrebatada de
nar jamais entoada. Ela ou viu medo e ódio. O cutelo um contentamento indes-
elas adormeciam. Almas firme destruiu cada peda- critível. Abriu os braços e
siamesas tão diversas, brin- cinho daquelas vidas. foi recebida pela Mãe.
cavam por trás do espelho
A lua negra ofertou o
do salão de chá.
fio condutor.
-- A décima terceira hora
Esgueirando sob tapetes
--- Formando um ponto
vivia o tormento, oculto
único nas trevas.
sob camadas de espessa lã
e tramas bem amarradas. Urros animalescos, sons
Surgiu uma centelha
Prisioneiros e cúmplices guturais, gritos agudos e
criada pelo medo
aguardando o momento graves. Ópera dos desal-
propício da salvação, eles mados, incompreendidos e Partiu-se em duas fagu-
se apegaram. Agora eram fracassados. Música. lhas ínfimas.
três. O cheiro acre crescia Tênues e pálidas... Mas
Algumas vezes deitada e os animais rondavam a vívidas!
em frente à lareira, ouvia fazenda. Todas as portas e
A Morte soprou e
histórias de um tempo em janelas foram abertas. Era
deu vida ao que seria sua
que não havia nada. o convite final! Que vies-
criação derradeira. Partiu
sem e compartilhassem o
O vazio e o inexplicá- gloriosa do seu feito, mais
banquete...
vel caminharam juntos e uma vez havia triunfado.
criaram vida. Foi assim A menina percorreu Os seres divinos sempre
que ela iniciou seu apren- cada cômodo e fingiu não apostavam e perdiam.
dizado com o mestre dos perceber os poucos sobre-
Ninguém conhecia
sonhos. Ele repetia cada viventes. O ar gelado da
mais o homem...
lição, dia após dia... Incan- noite envolveu o ambiente.
sável em sua doutrina. E Eles chegaram aos poucos, Tão temida e odiada...
todo ensinamento tem um vinham deslizando pelo Para ela não havia segredo,
custo muito alto. Talvez caminho da escuridão, ain- perdão, compaixão ou mi-
insuportável ou além dos da temiam o casulo, mas sericórdia. Apenas justiça.
limites. sabiam que precisavam
obedecer. O pequeno milagre
Certo dia os pais per- acontecia e todos os seres
ceberam, que não tinham Finalmente a menina observavam em silêncio.
uma criança que se con- deixou-se levar pelo des-
tino, sentiu quando par- Das duas forças abriu-
tentava com doces e afa-
tes de seu corpo foram se um vórtice e de lá sur-
gos. Era uma aberração
arrancadas e engolidas giram sete mistérios.
que precisavam destruir
o quanto antes, temiam o às pressas. Precisava ser Eles iriam engolir o
dedo acusador e os risos devorada e destruída, era mundo, tomar o fel da
de escárnio. A menina parte do todo e ela agora taça e trazer a ruína à
encarou os pais: dentro compreendia. A agonia humanidade torpe.

58 SAMIZDAT agosto de 2009


58
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Autor Convidado

José Guilherme Vereza

O escritor
Afrânio resolveu escrever sentou à mesa do jantar. Inócuos momentos em

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um livro. Achava que estava Muito bem, vamos lá. que...
na hora. Só não decidiu fazer Toca o telefone.
isso antes, porque era per- Era uma vez.
seguido pela mais absoluta Ok. Era uma vez o quê? - Alô.
das certezas de que nenhum - Afrânio, sou eu.
Era uma vez... era uma vez
editor iria dar importância
o quê, onde, quando, como e - Oi, que voz é essa?
ao seu texto, nenhum livrei-
por quê? - Uma notícia chata: tio
ro iria colocar seu livro na
vitrine, a noite de autógrafos Afrânio franziu as sobran- Miguel morreu.
seria um fiasco, nenhum lei- celhas diante daquele mons- - O quê?
tor iria comprar seus escri- truoso papel em branco.
tos. E todos os críticos iriam - O tio Miguel mesmo.
Tentou mais uma vez e não Enfarte fulminante, agora
condená-lo a um vexame saiu nada.
público e notório. de manhã, fazendo a barba.
Não era uma vez. Quando tia Magali chegou só
Mas dessa vez estava firme. deu tempo de tirar o sabão
Procurou outro caminho.
Ouviu dizer que para um do rosto.
escritor bastava um cotoco Mordidas de lábios, ar de
quem tinha caído nas arma- - Peraí. Deixa eu me refa-
de lápis e um papel de pão. zer.
O assunto viria no decorrer dilhas da inspiração.
do pensar e as histórias, as Gabriel Garcia Márquez - Tudo bem, depois você
personagens, as situações também deve ter lá seus dias me liga.
brotariam por si só. Bastava absolutamente inócuos. - Não, não, a gente tem que
apenas um leve empurrãozi- Inócuos. Bela palavra. enfrentar. Mas eu não vou a
nho do tal cotoco. enterros.
Que tal começar assim?
Foi assim mesmo que se - Nem eu. Dá riso nervoso

60 SAMIZDAT agosto de 2009


60
ver tanta gente chorando... DOLÊNCIAS PELA SÚBITA - Pouquinho.
- E a Candinha, já sabe? PERDA DE AMADO CÔN- - Então tira o estimado.
JUGE E ESTIMADO TIO. UM Bota querido.
- Iam avisar. Não sei se avi- AFETUOSO ABRAÇO DE
saram. Ela está no Tibet. DOR E CONSTERNAÇÃO. - Agora tá redondinho.
- Sabe de uma coisa, não QUERIDA TIA MAGALI RE-
- O senhor não acha que CEBA MEUS PÊSAMES PER-
vou ao enterro não. Tio Mi- está meio rococó?
guel era um chato, tia Ma- DA QUERIDO TIO.
gali também e a Candinha Afrânio gelou. Ficou sem - Seu Afrânio, querida e
sempre me irritou com essa graça. querido na mesma frase?
mania de meditação. - A senhora acha, é...? - É. Na mesma frase, por
- Acho que não vou tam- - Tá meio rebuscado. Não quê?
bém não. dá pra ser mais direto? Afrânio começou a perder
- Passo um telegrama e - Acho que sim, vamos estribeiras.
tudo bem. lá: QUERIDA TIA MAGALI, - Nada não, seu Afrânio, eu
- Vou fazer a mesma coisa. RECEBA MINHAS CONDO- só acho que não fica bonito.
Tchau. LÊNCIAS PERDA ESTIMADO
TIO. - Tem certeza?
Mal desligou o telefone, - Bem, seu Afrânio, é a
Afrânio teclou o número do Afrânio ouviu uma risadi-
nha do outro lado da linha. minha opinião sincera, mas
telegrama fonado. Atendeu a tia é sua, o defunto é seu, o
uma voz de gralha. Não gostou. telegrama é seu.
- Telegrama fonado, bom - Escuta aqui: a senhora, - Tem razão. Tira querido
dia. por acaso, está rindo de quê? tio e bota tio Miguel.
- Bom dia, eu queria passar - Nada, nada não senhor... - Muito bem. QUERIDA
um telegrama. - Mais risinhos. TIA MAGALI. RECEBA MEUS
- Seu nome e número do - A senhora está rindo do PÊSAMES PERDA TIO MI-
seu telefone. meu telegrama? GUEL. Ok?
- Afrânio Rosa Batista, - Desculpe seu Afrânio, - OK... ok... OK nada! Você
2254-0969. condolências é muito antigo. acabou fazendo a mensagem
- Nome e endereço do des- para mim.
- A senhora acha, é...?
tinatário. - Desculpe, Seu Afrânio...
- Desculpe seu Afrânio, o mas seu texto não estava
- Magali Batista Santana. senhor escreve como quiser...
Rua Carlos Pedrosa, 223, se bom.
não me engano. - Não, não, sua opinião é - Quer dizer que temos
importante. A senhora deve uma crítica literária fazendo
- Se o senhor se engana, o estar acostumada com mui-
telegrama não chega. bico de telefonista? Ora, vê
tos telegramas de falecimen- se se enxerga, minha filha...
- Claro, um momento... to. É melhor dizer pêsames
estou conferindo no meu mesmo. - Minha filha não senhor!
caderninho... cá está. O Meu nome é Kátia, telefonis-
- O senhor é quem manda. ta com muito orgulho.
número correto é 476. Passei Então ficamos assim: QUE-
raspando. RIDA TIA MAGALI RECEBA - Então, Kátia, enfia esse
- Texto do telegrama. MEUS PÊSAMOS PERDA telegrama...

- Texto? Ah, sim, a mensa- ESTIMADO TIO. - Além de escrever mal, é


gem... - Sei não, sei não... tá meio grosso. Só para encerrar, o
falso. telegrama não está autoriza-
Meu Deus, o branco de do, certo?
novo. - Já que o senhor tocou no
assunto, sabe que eu acho a - Certo, cancela tudo. O
- Vamos lá: QUERIDA TIA que está autorizado, Kátia, já
MAGALI RECEBA DE SEU DI- mesma coisa?
disse e repito: é esse tele-
LETO SOBRINHO AFRÂNIO - Tá falso, é? grama enfiado no seu... você
AS MAIS SINCERAS CON-

www.revistasamizdat.com 61
sabe aonde, minha filha. se comover. consegue falar.
Afrânio desligou o telefone. - Miguinho, Miguinho! Por - Querida Tia Magali, re-
Decidiu encarar o velório. que você fez isso comigo? ceba do seu dileto sobrinho
**** Por que foi jogar peteca na Afrânio e da sua não menos
praia ontem à noite? Eu sabia dileta sobrinha Lavínia as
Pegou o primeiro táxi. que ia te fazer mal de ma- mais sinceras condolências
- Bom dia, o senhor pode- nhã... pela súbita perda do amado
ria me levar às capelas do Ao descobrir Afrânio cônjuge e estimado tio. Dá
Cemitério São João Batista, encostado na parede mais me cá um afetuoso abraço de
por obséquio? distante do caixão, Tia Ma- dor e consternação.
- O motorista deu uma gali se joga nos seus braços. Tia Magali olha nos olhos
risadinha. Aperta-lhe tórax, peito e pes- de Afrânio. Tenta se contro-
coço. Como uma sucuri. lar, esquece a viuvez. E cai na
- O senhor está rindo do
- Alfredo, que bom que gargalhada.
quê?
você veio... vem cá ver o ros- - Tá rindo de quê, Tia
- Por obséquio, é? Não é
to sereno do Miguinho. Magali?
melhor por Botafogo?
- Afrânio, tia Magali, Afrâ- - Desculpe, mas esse seu
E Afrânio mais não disse.
nio... discurso foi muito rococó.
Só pensou: outra Kátia na
minha vida. - Afraninho, claro, Afrani- E tome de ataque de riso.
nho de Marieta. Tia Magali e a amiga que
****
- Antonieta, Tia Magali. a amparava, olham às gar-
A capela estava vazia. galhadas para a cara do
Ninguém. Nem a viúva. Entre - Vem cá, meu sobrinho Afrânio. Circunspecto, con-
flores mal cheirosas, sob um querido, vamos nos despedir tido, sobrancelhas franzidas.
manto de filó, Tio Miguel era juntos do seu tio Miguel. Outras pessoas começam a
apenas um nariz cor de cera - Tia Magali, deixa o tio chegar. Os amigos da peteca,
com algodão em cada nari- Miguel dormindo seu sono os coronéis reformados, as
na. Afrânio ficou à distância, eterno, tranqüilo. Prefiro ficar balzacas bronzeadas do Posto
observando como os homens aqui mesmo. Seis. A tia retoma os prantos.
depois que viram defuntos Afrânio sai de fininho.
perdem a dignidade. São ape- Tia Magali em prantos.
****
nas narizes apontando para o - Afraninho, você sempre
teto, alheios a seus arredores. carinhoso... Na saída do cemitério. É
Logo Tio Miguel. Tão extro- abordado por um florista.
- Tia Magali, em meu nome
vertido e mandão. Metido e em nome da minha irmã... - Parente ou amigo?
a dar ordens em casa, na
cozinha, nas filas de cinema, - Luzia... - Tio.
nas reuniões familiares, nas - Não, Tia Magali. Lavínia. - Então, o melhor é uma
casernas, onde passou mais La-ví-nia. coroa de cravos.
da metade da sua vida. Agora - Pensando bem, é distinto.
- Lavininha, claro. Deve
estava ali sem ninguém para
estar tão crescida. - Sim, claro, uma bem fron-
mandar ou chatear. Só espe-
rando a hora de uma outra - 42 anos, Tia Magali. dosa, para ficar num cava-
pessoa, alheia a sua vontade, lete ao lado do morto. Todo
Tia Magali vira-se para o
mandar fechar o caixão e mundo olha para a coroa
centro das desatenções da
sair carregado a uma gaveta antes de olhar o falecido.
capela e recomeça a gritaria.
qualquer. Aliás, muita gente evita olhar
- Miguinho, Miguinho, meu o falecido. É um macete. O
De repente, um ruído companheiro, meu compa- parente finge que está olhan-
assustador. Irrompe à capela nheiro que se foi. Meu Deus, do o defunto, mas é atraído
Tia Magali. Toda de preto, o que será de mim? pela beleza da coroa.
amparada por uma amiga,
proferindo urros de desespe- Afrânio espera passar o - Bem pensado.
ro, gritando bem alto como transe. Tão logo a tia se re-
- Então, só falta os dizeres.
se o marido gelado pudesse cupera, volta à carga e, enfim,

62 SAMIZDAT agosto de 2009


62
- Dizeres? senhor mesmo. E enfia essa - Só que não entendo nada.
- A mensagem. coroa ...ó! Afrânio olhou fixo para o
- Eu sei que dizeres e men- E partiu raivoso em dire- horizonte. Não mais falou.
sagem são a mesma coisa, ção a um táxi. Em momentos Não mais ouviu. Ao parar na
não precisa explicar. Esse é de cólera, Afrânio também só Francisco Otaviano, pagou o
que é o problema. sabia mandar alguém enfiar taxista e disse:
alguma coisa no... lá mesmo. - Muito agradecido.
Afrânio suou frio de novo. Não variava nunca.
- Uma frase curta e direta, O taxista recolheu o di-
**** nheiro e comentou:
meu amigo.
No táxi de volta. Afrânio - Taí, bonito dizer “muito
- Um momento. Estou pen- contou até dez. Entrou num
sando. Não faz pressão, por agradecido”. Outro dia uma
clima de paz interior. velha me disse a mesma
favor.
- Boa tarde, por favor leve- coisa.
Enxugou a testa e mandou: me à Francisco Otaviano. Dessa vez, Afrânio desistiu
- Anote aí: VAI COM DEUS, Sugiro irmos pela praia. É de xingar o motorista.
TIO MIGUEL. mais gratificante ver o azul
do céu tocando o azul do ****
- O florista prendeu o riso.
mar, que por sua vez, beija Ao chegar em casa, desis-
Não conseguiu.
delicadamente as alvas areias tiu de muito mais. Olhou o
- Está rindo do quê? com suas espumas peroladas. cotoco de lápis ainda sobre
- Desculpe, amigo, parece - Não entendi nada. É pra o papel em branco. Lembrou
que o senhor... pegá a Atrântica, né moço? da Kátia, da Tia Magali, do
florista, do taxista da ida,
Mais risos incontidos. - Isso mesmo. Toca esse do taxista da volta. Rasgou
- ... parece que o senhor táxi e vê se não abre a boca. o papel em mil pedacinhos
estava querendo se livrar do Tive uma manhã repleta de e jogou pela janela. Só não
tio. arrufos. mandou ele mesmo enfiar o
Afrânio se enfureceu. - O quê? cotoco em si próprio. Não
O taxista começou a rir. era coisa de sua preferência.
- Além de florista chato é
palpiteiro... - Está rindo de que?
- Desculpe, mas a mensa- - Nada não senhor. É que o
gem pode ser mal interpreta- senhor fala bonito...
da. Parece deboche.
- Você acha mesmo...?
- Então, vai com Deus o

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Tradução

Annabel Lee
Edgar Allan Poe

It was many and many a year ago, The angels, not half so happy in heaven,
In a kingdom by the sea, Went envying her and me-
That a maiden there lived whom you may know Yes!- that was the reason (as all men know, In this
By the name of Annabel Lee; kingdom by the sea)
And this maiden she lived with no other thought That the wind came out of the cloud by night,
Than to love and be loved by me. Chilling and killing my Annabel Lee.

I was a child and she was a child, But our love it was stronger by far than the love
In this kingdom by the sea; Of those who were older than we-
But we loved with a love that was more than love- Of many far wiser than we-
I and my Annabel Lee; And neither the angels in heaven above,
With a love that the winged seraphs of heaven Nor the demons down under the sea,
Coveted her and me. Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee.
And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea, For the moon never beams without bringing me dreams
A wind blew out of a cloud, chilling Of the beautiful Annabel Lee;
My beautiful Annabel Lee; And the stars never rise but I feel the bright eyes
So that her highborn kinsman came Of the beautiful Annabel Lee;
And bore her away from me, And so, all the night-tide, I lie down by the side
To shut her up in a sepulchre Of my darling, my darling, my life and my bride,
In this kingdom by the sea. In the sepulchre there by the sea,
In her tomb by the sounding sea.

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64
Annabel Lee
Edgar Allan Poe
tradução: Fernando Pessoa

Foi há muitos e muitos anos já, E os anjos, menos felizes no céu,


Num reino de ao pé do mar. Ainda a nos invejar...
Como sabeis todos, vivia lá Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Aquela que eu soube amar; Neste reino ao pé do mar)
E vivia sem outro pensamento Que o vento saiu da nuvem de noite
Que amar-me e eu a adorar. Gelando e matando a que eu soube amar.

Eu era criança e ela era criança, Mas o nosso amor era mais que o amor
Neste reino ao pé do mar; De muitos mais velhos a amar,
Mas o nosso amor era mais que amor – De muitos de mais meditar,
O meu e o dela a amar; E nem os anjos do céu lá em cima,
Um amor que os anjos do céu vieram Nem demônios debaixo do mar
a ambos nós invejar. Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar, Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Um vento saiu duma nuvem, gelando Da linda que eu soube amar;
A linda que eu soube amar; E as estrelas nos ares só me lembram olhares
E o seu parente fidalgo veio Da linda que eu soube amar;
De longe a me a tirar, E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado
Para a fechar num sepulcro Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
Neste reino ao pé do mar. No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

Fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/pessoaepoe.htm

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Tradução

A Máscara da
Morte Vermelha
Edgar Allan Poe
tradução: Henry Alfred Bugalho

66 SAMIZDAT agosto de 2009


66
A “Morte Vermelha” há Após entrarem, os corte- falar das salas nas quais
muito devastara o país. sãos trouxeram fornalhas ela ocorria. Eram sete —
Nenhuma pestilência ja- e maciços martelos e uma suíte imperial. Em
mais fora tão fatal, ou tão soldaram as travas. Eles muitos palácios, contudo,
hedionda. Sangue era o decidiram por não deixar tais suítes compõem um
seu avatar e seu selo — o nenhum meio de ingresso panorama longo e reti-
rubor e o horror do san- ou egresso pelos impulsos líneo, quando as portas
gue. Havia dores agudas súbitos de desespero ou articuladas deslizam até
e tontura súbita, e então de frenesi daqueles desde às paredes em ambos
sangramento profuso o interior. A abadia esta- os lados, de modo que a
pelos poros, com decesso. va vastamente abastecida. visão de toda sua exten-
As manchas escarlates Com tais precauções, os são é escassamente im-
sobre o corpo e especial- cortesãos poderiam desa- pedida. Aqui o caso era
mente sobre o rosto da fiar o contágio. O mundo muito diferente; como se
vítima eram a execração exterior deveria tomar poderia esperar do amor
da peste que lhe vetavam conta de si. No entremeio, do duque pelo bizarro. Os
a ajuda e a simpatia de era tolice se lamentar apartamentos eram tão
seus próximos. E toda ou ponderar. O príncipe irregularmente dispostos
a infecção, progresso e havia providenciado toda que a visão abarcava nada
término da doença eram a sorte de prazeres. Havia mais do que um por vez.
incidentes de meia hora. bufões, havia improvisato- Havia uma aguda curva a
ri, havia bailarinas, havia cada vinte ou trinta jar-
Mas o Príncipe Pros-
músicos, havia o Belo, das, e a cada curva um
pero era alegre, destemi-
havia vinho. Lá dentro, efeito diferente. À direita
do e sagaz. Quando seus
havia tudo isto e seguran- e à esquerda, no meio de
domínios estavam despo-
ça. Fora, havia a “Morte cada corredor, uma alta e
pulados pela metade, ele
Vermelha”. estreita janela gótica vis-
convocou à sua presença
lumbrava sobre um corre-
um milhar de amigos sau- Foi em torno do final
dor cerrado que perseguia
dáveis e joviais dentre os do quinto ou sexto mês
as angulosidades da suíte.
cavaleiros e damas de sua de reclusão que, enquan-
Estas janelas eram vitrais
corte, e com estes se reco- to a pestilência assolava
cujas cores variavam
http://www.flickr.com/photos/misteraitch/2302386855/sizes/o/

lheu à profunda reclusão enfurecidamente afora, o


de acordo com o matiz
de uma de suas abadias Príncipe Prospero entreti-
prevalecente da câmara
fortificadas. Ela era de nha seu milhar de amigos
para a qual se abria. A da
uma extensa e magnífica num baile de máscara da
extremidade oriental era,
estrutura, a criação do mais incomum magnifi-
por exemplo, em azul — e
gosto excêntrico, porém cência.
de azul vívido eram suas
augusto, do príncipe. Uma
Era uma cena volup- janelas. A segunda câma-
muralha forte e altiva a
tuosa aquela mascarada. ra era púrpura em seus
circundava. Esta muralha
Mas, primeiro, deixe-me ornamentos e tapeçarias,
tinha portões de ferro.

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e aqui as vidraças eram e assim cintilantemente o som; e assim os baila-
púrpuras. A terceira era iluminava a sala. E assim rinos obrigatoriamente
totalmente verde, e assim se produzia uma multi- cessavam suas evoluções;
eram seus caixilhos. A dão de reluzentes e fan- e havia um breve descon-
quarta era mobiliada e tásticas aparições. Mas na certo coletivo na alegre
iluminada em laranja — sala ocidental, ou negra, o companhia; e, enquanto
a quinta em branco — a efeito da tocha que luzia os sinos do relógio ainda
sexta em violeta. O séti- sobre as janelas negras soavam, observava-se que
mo apartamento estava através dos vitrais cor de os mais instáveis empali-
intimamente revestido sangue era fantasmagóri- deciam, e os mais velhos
com tapeçarias de veludo co ao extremo, e produzia e sedados passavam as
negro que eram suspen- uma visão tão selvagem mãos pelas sobrancelhas
sas desde o teto, descendo sobre o temperamento como se em confusa reve-
pelas paredes e tombando daqueles que nela entra- rência ou meditação. Mas
em pesadas dobras sobre vam, que eram poucos os quando os ecos cessavam
um tapete do mesmo ma- da companhia corajosos totalmente, uma risada
terial e matiz. Mas, nesta o suficiente para porem o leve de súbito traspassava
câmara apenas, a cor das pé dentro do recinto. a assembleia; os músi-
janelas falhava em corres- cos olhavam uns para os
Era neste apartamento
ponder à sua decoração. outros e sorriam como se
que também havia, con-
As vidraças eram escar- para seu próprio nervo-
tra a parede ocidental,
lates — uma profunda sismo e tolice, e faziam
um gigantesco relógio
cor de sangue. Agora em sussurrantes votos, cada
de ébano. Seu pêndulo
nenhum dos sete apar- um para o outro, que a
balançava de um lado
tamentos havia qualquer próxima badalada do
a outro com um surdo,
lâmpada ou candelabro, relógio não produziria
pesado, monótono retum-
em meio à profusão de neles semelhante emoção;
bo; e quando o ponteiro
ornamentos dourados que e, então, após o lapso de
dos minutos percorria
jaziam dispersos para lá sessenta minutos (que
o circuito, e estava para
e para cá, ou dependu- abarca três mil e seiscen-
soar a hora, provinha dos
rados no teto. Não havia tos segundos do Tempo
pulmões acobreados do
luz alguma emanando de que voa), vinha ainda
relógio um som que era
lâmpada ou vela desde o outra badalada do reló-
nítido, sonoro, profundo e
interior da suíte de câma- gio, e então era o mesmo
excessivamente musical,
ras. Mas, nos corredores desconcerto, tremulação e
mas de uma nota e ênfase
que deixavam a suíte, ali meditação como antes.
tão peculiares que, a cada
havia, oposto a cada jane-
lapso de hora, os músi- Mas, a despeito de
la, um pesado tripé, sus-
cos da orquestra eram estas coisas, era uma fes-
tentando um braseiro de
constrangidos a pararem tividade alegre e magnifi-
fogo, que projetava seus
momentaneamente sua in- cente. Os gostos do duque
raios através dos vitrais
terpretação, para ouvirem eram peculiares. Ele tinha

68 SAMIZDAT agosto de 2009


68
um olho apurado para E estes — os sonhos — se negritude das tapeçarias
cores e efeitos. Ele des- debatiam, assumindo os escuras aterroriza; e para
prezava a decoração de matizes das salas, e cau- aquele cujo pé cai sobre o
mera moda. Seus planos sando a selvagem música carpete negro, surge desde
eram ousados e fogosos, e da orquestra se asseme- o próximo relógio de
suas concepções reluziam lhar ao eco de seus pas- ébano um abafado tilintar
com lume bárbaro. Havia sos. E, subitamente, vêm mais solenemente enfáti-
alguns que o tomariam badaladas no relógio de co do que qualquer outro
por louco. Seus seguidores ébano que fica no salão que alcança os ouvidos
sentiam que ele não o era. de veludo. E, então, por daqueles que se engajam
Era necessário ouvir, ver e um momento, tudo está em divertimentos mais
tocá-lo para se certificar em suspensão, e tudo está remotos dos outros apar-
de que ele não era. em silêncio com exceção tamentos.
da voz do relógio. Os
Ele havia dirigido, em Mas estes outros
sonhos estão rigidamen-
grande parte, os orna- apartamentos estavam
te congelados em seus
mentos móveis das sete densamente populados, e
lugares. Mas os ecos das
câmaras para a ocasião neles batia fervorosamen-
badaladas se extinguem
desta grande festa; e foi te o coração da vida. E
— eles haviam durado
seu próprio gosto indica- a festividade prosseguiu
apenas um instante — e
dor que havia dado perso- freneticamente, até que,
uma gargalhada leve,
nalidade aos mascarados. em certo momento, come-
meio subjugada, flana
Tenha certeza de que eles çou a soar meia-noite no
atrás deles enquanto eles
eram grotescos. Havia relógio. E então a música
partem. E agora novamen-
muito resplendor, brilho, cessou, como eu havia
te a música se eleva, e os
licenciosidade e fanta- dito; e as evoluções dos
sonhos vivem, debatem-se
sia — muito do costu- dançarinos se silenciaram;
de um lado para o outro
maz desde em “Hernani”. e havia uma desconfortá-
ainda mais alegremente
Havia figuras arabescas vel interrupção em todas
do que antes, assumindo
com membros e posi- as coisas como antes. Mas
os tons dos muitos vitrais
ções inapropriadas. Havia agora doze badaladas
através dos quais são
delirantes extravagâncias soavam no sino do reló-
refletidos os feixes dos
tais quais na moda de gio; e assim isto ocorreu,
tripés. Mas para a câmara
um louco. Havia muito talvez mais pensamentos
que jaz mais para o oci-
do belo, muito de afronta, se embrenharam, com
dente das sete, agora não
muito do bizarro, algo de o passar do tempo, nas
há nenhum dos mascara-
terrível, e nem um pou- meditações dos pensati-
dos que se aventure; pois
co daquilo que poderia vos dentre aqueles que
a noite está acabando;
excitar repulsa. Para cá e festejavam. E assim tam-
e há fluxos de uma luz
para lá, nas sete câmaras, bém ocorreu, talvez, que
enrubescida através das
esgueirava-se, na verdade, antes de o último eco
janelas cor de sangue; e a
uma multidão de sonhos. da última badalada ter

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imergido completamente sobre os quais nenhu- dançarinos), ele pare-
no silêncio, havia muitos ma zombaria pode ser ceu ter convulsões, num
indivíduos na multidão feita. Na verdade, toda a primeiro momento com
que encontraram prazer companhia parecia agora um forte tremor tanto de
em se tornar cientes da sentir profundamente que terror quanto de repulsa;
presença de uma figura na fantasia e no compor- mas, em seguida, sua testa
mascarada que não havia tamento do estranho não enrubesceu de raiva.
capturado a atenção de existia sabedoria nem
— Quem ousa? — ele
ninguém anteriormente. E propriedade. A figura era
roucamente indagou os
o rumor desta nova pre- alta e esquelética, e enco-
cortesãos que estavam
sença havia se espalhado, berta da cabeça aos pés
próximos dele — quem
aos sussurros, ao redor, com as vestes da cova. A
ousa nos insultar com
a certa altura, ergueu-se máscara que escondia as
esta pilhéria blasfemató-
de toda a companhia um feições era feita de modo
ria? Agarrem-no e o des-
buchicho, ou murmúrio, a se assemelhar à aparên-
mascarem — para que sai-
expressão de desaprova- cia de um cadáver enrije-
bamos a quem devemos
ção e surpresa — então, cido, que mesmo o escru-
enforcar ao nascer do sol,
finalmente, de terror, hor- tínio mais detalhado teria
desde os parapeitos!
ror e repulsa. dificuldade em detectar
a farsa. E tudo isto ainda Era na câmara oriental,
Numa assembleia de
poderia ter sido supor- ou a azul, na qual estava
fantasias tais quais retra-
tado, até aprovado, pelos o Príncipe Prospero quan-
tei, poderia bem se supor
insanos festeiros. Mas o do ele pronunciou estas
que nenhuma aparência
mímico havia ido longe palavras. Elas retumbaram
ordinária teria excitado
demais ao assumir o tipo alto e claramente através
tal sensação. Na verda-
da Morte Vermelha. Suas das sete salas —pois o
de, a licença da masca-
vestes manchadas de san- príncipe era um homem
rada da noite era quase
gue — e sua ampla fronte, destemido e robusto, e a
ilimitada; mas a figura
com todas as feições do música havia sido suspen-
em questão extrapolava
rosto — estavam espargi- sa com um movimento de
todos os limites, e havia
das com o horror escar- sua mão.
ultrapassado as fronteiras
late.
até mesmo do indefinido Era na sala azul que
decoro do príncide. Há Quando os olhos do estava o príncipe, com
acordes nos corações dos Príncipe Prospero pousa- um grupo de pálidos
mais descuidados que ram sobre esta imagem cortesãos a seu lado. A
não podem ser tocados espectral (que com um princípio, enquanto ele
sem emoção. Mesmo com movimento lento e so- falava, houve um ligeiro
aquele completamente lene, como se para mais movimento apressado
perdido, para quem vida completamente manter deste grupo em direção
e morte são igualmente seu papel, vagava de um ao intruso, que, naquele
zombarias, há assuntos lado a outro entre os momento também estava

70 SAMIZDAT agosto de 2009


70
ao alcance, e agora, com então, contudo, que o mento negro e, agarrando
passo deliberado e im- Príncipe Prospero, en- o mímico, cuja alta figura
ponente, se aproximou louquecido com fúria e permaneceu ereta e imó-
ainda mais do falante. A vergonha por sua própria vel sob a sombra do reló-
despeito de certo fascí- covardice momentânea, gio de ébano, engasgou-se
nio inominável com que correu apressadamente em horror inefável ao
as aparências insanas do através das seis câma- descobrir as mortalhas fú-
mímico haviam inspirado ras, enquanto ninguém nebres e a máscara cada-
todo o grupo, não havia o seguiu por causa do vérica, que eles sustinham
ninguém que estendes- terror mortal que os com tão violenta rudeza,
se a mão para agarrá-lo; havia tomado a todos. Ele desabitadas por qualquer
então assim, desimpedi- ergueu alto uma adaga forma tangível.
do, ele ficou a uma jarda desembainhada e havia se
E agora foi constata-
da pessoa do príncipe; e aproximado, com rápida
da a presença da Morte
enquanto a vasta assem- impetuosidade, para três
Vermelha. Ela havia vindo
bleia, como se num único ou quatro pés da figura
como um ladrão na noite.
impulso, encolheu desde que recuava, quando o
E, um por um caíram, os
os centros das salas para último, tendo atingido a
festejadores nas paredes
as paredes, ele percorreu extremidade do aparta-
cor de sangue dos saguões
seu caminho ininterrupta- mento de veludo, virou-se
de sua festividade, e mor-
mente, mas com o mesmo subitamente e confrontou
reu cada qual na deses-
passo solene e calculado seu perseguidor. Ouviu-
peradora posição de sua
que o havia distinguido se um grito agudo — e a
queda. E a vida do relógio
desde o começo, através adaga caiu resplandecente
de ébano se foi com aque-
da câmara azul para a sobre o carpete negro,
la do último dos joviais.
púrpura — através da sobre o qual, instantane-
E as chamas dos tripés se
púrpura para a verde — amente em seguida, caiu
extinguiram. E as Trevas,
através da verde para a prostrado morto o Prínci-
a Decadência e a Morte
laranja — através desta pe Prospero. Então, con-
Vermelha mantiveram
também para a branca — vocando a coragem sel-
ilimitado domínio sobre
e até desta para a violeta, vagem do desespero, uma
tudo.
antes que um movimento horda dos festejadores, de
decidido houvesse sido uma vez só, precipitou-se Fonte: http://poestories.
feito para capturá-lo. Foi para dentro do aparta- com/stories.php

www.revistasamizdat.com 71
Teoria Literária

Henry Alfred Bugalho

O bicentenário de
Edgar Allan Poe
a vida e a criação de um mito literário

72 SAMIZDAT agosto de 2009


72
A vida do escritor se matricular na Academia Filadélfia e Baltimore.
Militar de West Point. Neste Casou-se, em segredo,
Há exatos duzentos anos, meio tempo, em 1829, ele com Virginia Clemm em
em 1809, nascia, na cidade se mudou para Baltimore 1835; ela tinha apenas 13
de Boston, Edgar Poe. Filho e foi acolhido na casa de anos, mas declarou ter 21.
de David Poe, Jr. e Elizabeth uma tia e da prima, Virgi-
Arnold Hopkins Poe, ambos Publicou o romance “A
nia Clemm, com quem se
atores, Edgar perdeu os pais Narrativa de Arthur Gor-
casaria alguns anos depois.
ainda muito criança; Da- don Pym” em 1838, que foi
Foi nesta época que publi-
vid Poe abandonou filhos e bem recebido pela crítica.
cou seu segundo livro de
esposa em 1810, enquanto Aquela que é provavelmen-
poemas.
que Elizabeth Poe morreu te sua obra em prosa mais
Em 1830, matriculou-se importante, “Contos do
de tuberculose em 1811.
em West Point, mas foi ex- Grotesco e do Arabesco”, foi
Apesar de nunca ter pulso de lá um ano depois, publicada em 1839, mas a
sido adotado formalmente, Também havia sido deser- recepção foi contraditória.
Edgar foi acolhido na casa dado pelo pai adotivo, por
de John Allan, um rico pressões da mais recente
comerciante de Richmond, esposa dele.
e passaria a ser conhecido
Foi para Nova York, onde
como Edgar Allan Poe.
lançou um terceiro livro de
Ele viajou com a família poemas, financiado com a
de John Allan à Inglaterra contribuição de seus co-
em 1815, onde morou por legas de West Point, mas
cinco anos. De volta aos logo retornou a Baltimore,
Estados Unidos, Edgar Allan para a casa da tia, por causa
Poe se inscreveu na Uni- de seu irmão, seriamente
versidade de Virginia em doente devido a problemas
1826. Envolvido em dívidas relacionados a alcoolismo.
de jogos e com pouco apoio
Ao morrer o irmão,
financeiro do pai adotivo,
Edgar Allan Poe tentou se
Edgar se viu obrigado a
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/9/9d/Edgar_Allan_Poe_2_cropped.jpg

dedicar exclusivamente à
abandonar a carreira uni-
carreira literária, tornando-
versitária e se alistou no
se o primeiro autor norte-
exército. Nesta época, já se
americano a viver apenas
interessava pela Literatura e,
da escrita. No entanto,
em 1827, lançou sua pri-
longe de representar fortu-
meira coletânea de poe-
na e sucesso, esta escolha
mas — “Tamerlane e outros
significou para Edgar uma acima: Virginia Clemm era prima
poemas” —, que teve reper-
vida repleta de dificuldades de Edgar Allan Poe e foi o seu
cussão praticamente nula. grande amor. Também foi uma das
e privações. Começou a se
Após servir por dois dedicar também ao gênero trágicas perdas na vida do autor.
anos, Edgar conseguiu a da prosa, publicando alguns
dispensa com o auxílio de contos em periódicos da
John Allan, caso prometesse

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Virginia, sua esposa,
apresentou os primeiros
sintomas de tuberculose em
1842, e nunca conseguiu
se recuperar totalmente. A
doença da esposa acentuou
os problemas de Edgar com
o álcool. Após ter traba-
lhado em vários jornais, ele
retornou a Nova York e se
tornou editor do “Broadway
Journal” e, posteriormente,
proprietário.
Seu poema mais famoso,
“O Corvo”, foi publicado em
1845. Apesar da enorme
repercussão, Edgar Allan
Poe recebeu apenas 9 dó-
lares pela publicação. Seu
jornal faliu um ano depois,
quando Poe se mudou para
um casebre no Bronx, onde
Virginia morreria.
Voltou a Richmond e co-
meçou um relacionamento
com uma paixão da juven-
tude, Sarah Royster.
Edgar Allan Poe mor-
reu em 1849, vagando pelas
ruas de Baltimore, delirante.
Apesar de seu falecimento
estar evidentemente relacio-
nado ao abuso de álcool, as
causas ainda são questiona-
das.

Topo à esquerda: gravura do poe-


ma “O Corvo”, um dos principais
sucessos de Poe.
À esquerda: poster com o manus-
crito de “O Corvo”, publicado em
1845.

http://www.census.nationalarchives.ie/exhibition/dublin/literary/full/M_Joyce.jpg

74 SAMIZDAT agosto de 2009


74
Influência de Poe gar Allan Poe não era uma em seu favor.
pessoa de fácil convivência,
A árdua e trágica vida adepto de polêmicas e que
de Poe, que cedo perdeu os Todavia, enquanto o
havia criado muitos desafe-
pais, viu o irmão e o amor debate era acalorado nos
tos no mundo literário.
de sua vida morrerem, teve EUA, na Europa, graças às
Estranhamente, o próprio traduções feitas por Char-
de superar a pobreza e a
Griswold foi incumbin- les Baudelaire, Edgar Allan
inclemente crítica de seus
do de editar e publicar o Poe já era acolhido como
contemporâneos, dificil-
espólio de Poe, alegando ter um autor engenhoso e de
mente poderia prenunciar
sido este o pedido do autor. grande qualidade. Baudelai-
a relevância futura de suas
Não há nenhum documento re encontrava na obra de
obras.
que comprove esta afirma- Poe muitas de suas pró-
Na verdade, imediata- ção, mas muitos teóricos prias características, como
mente após seu falecimento, argumentam que a carac- o misticismo, o fantástico,
as controvérsias ao redor de terização de Poe feita por
sua personalidade e obras já Griswold — de um homem Acima: o Reverendo Rufus W.
começaram; primeiro com Griswold foi um grande rival e
diabólico, sem amigos, bê-
o maior detrator de Edgar Allan
o obituário do reverendo bado, drogado, problemático Poe, por outro lado, foi também
Rufus W. Griswold, assina- em sua vida social e pessoal um dos principais responsáveis
do com o pseudônimo de — foi a principal responsá- pelo sucesso póstumo do escritor,
“Ludwig” vel pelo sucesso póstumo através de uma intensa campanha
do escritor. A aura demoní- difamatória.
“Edgar Allan Poe está
morto. Morreu em Baltimo- aca criada em torno de Poe
re anteontem. Este anúncio foi o fator de atração do o macabro e grotesco, e a
poderá sobressaltar muitos, público leitor norte-ameri- busca por respostas filosó-
mas poucos se lamentarão. cano, que se aproximava da ficas para questões estéticas
O poeta era bem conhecido obra de Poe com reverência e literárias. Foi através das
pessoalmente ou por repu- e temor. traduções de Baudelaire
tação, em todo o país. Ele Griswold também re- que a obra de Poe pôde ser
tinha leitores na Inglaterra e digiu a primeira biografia recebida e influenciar os
em vários países da Europa oficial de Edgar Allan Poe, autores simbolistas e surre-
Continental. Mas ele tinha quando da publicação das alistas.
poucos ou nenhum amigos. obras completas dele. Tal Na obra “Sobre a Mo-
Os pesares por sua morte biografia é repleta de inver- dernidade”, Baudelaire não
poderão ser induzidos prin- dades e adulterações, e foi poupa elogios a Poe, e não
cipalmente pela consideração repudiada por quem conhe- hesita em incluí-lo no rol
que a arte literária perdeu cia o autor, mesmo tendo dos grandes artistas da mo-
uma de suas mais brilhantes, servido de fundamento para dernidade: modernidade:
porém erráticas, estrelas (...)”. boa parte das biografias
“Lembram-se de um quadro
Apesar de vários críticos subsequentes.
(e um quadro, na verdade!)
e escritores se erguerem A história de Poe é um escrito pelo mais poderoso
contra as acusações de dos casos nos quais uma autor desta época e que se
Griswold, parecia ser um campanha difamatória, ao intitula “L’Homme des Foules”
consenso o fato de que Ed- invés de prejudicá-lo, atuou (“O ­Homem das Multidões”)?

www.revistasamizdat.com 75
Atrás das vidraças de um café, americanos mais influentes Edgar Allan Poe, que sofreu
um convalescente, contemplan- do século XX, renovou o para poder viver de sua
do com prazer a multidão, gênero conto ao ressuscitar pena, converteu-se numa
mistura-se mentalmente a todos questionamentos, técnicas, das mais ricas fontes de
os pensamentos que se agitam à ambientações, sutilezas inspiração para a literatura
sua volta. Resgatado há pouco já utilizadas ou levadas à vindoura. E o grande segre-
das sombras da morte, ele aspi- perfeição por Poe, como o do disto residiu, principal-
ra com deleite todos os indícios embuste, o raciocínio lógi- mente, na transformação de
e eflúvios da vida; como estava co, o macabro e fantástico, um atormentado indivíduo
prestes a tudo esquecer, lembra- o enigmático, a criptografia, real em um personagem
se e quer ardentemente lembrar- a antiguidade histórica e bizarro e assustador, que
se de tudo. Finalmente, preci- povos exóticos ou desapare- toma vida todas as vezes
pita-se no meio da multidão à cidos. que um leitor entra em
procura de um desconhecido contato com sua obra.
A controversa figura de
cuja fisionomia, apenas vislum-
brada, fascinou-o num relance.
A curiosidade transformou-se
numa paixão fatal, irresistível!”
No mundo lusófono, a
obra de Poe se refletiria e
influenciaria os trabalhos
de Machado de Assis, que
definitivamente buscou no
autor norte-americano sua
inspiração para a estrutura-
ção e para algumas temáti-
cas de seus contos. Por sua
vez, em Portugal, Fernando
Pessoa afirmava que Edgar
Allan Poe “era uma das
figuras literárias mais no-
táveis da América Inglesa”.
Ambos, Machado de Assis e
Pessoa, traduziram poemas
de Poe para o português.
Enfim, Jorge Luis Borges,
um dos autores hispano-
À direita: Charles Baudelaire foi
o primeiro tradutor das obras de
Poe e contribuiu para sua aclama-
ção entre os autores simbolistas e
surrealistas na França.

76 SAMIZDAT agosto de 2009


76
A obra de Poe

Em vida, Edgar Allan Poe


era conhecido como um
competente, porém cáustico,
crítico e ensaísta. Publicou
resenhas e críticas literárias
em inúmeros periódicos.
Participou de polêmicas e
debates com grandes au-
tores e ensaístas, atacava
ferozmente o “Transcen-
dentalismo” de Emerson e
Thoreau. Também viveu
para presenciar, alguns anos
antes de seu falecimento,
o arrebatador sucesso de
poemas como “O Corvo” e
“Annabel Lee”.
Mas, sem dúvida, a prin-
cipal contribuição de Poe
está na sua obra prosaica,
em seus contos e em seu
único romance “A Narrativa
de Arthur Gordon Pym”.
A obra de Poe tende a
gravitar ao redor de alguns
temas bastante específicos,
como:
– a Morte (“A Queda da
Casa de Usher”, “A Más-
cara da Morte Vermelha”,
“O Gato Preto”, “O Enterro
Prematuro”, “Os Fatos no
Caso do Sr. Valdemar”, “Uma
Revelação Mesmérica”, en-

Topo à direita: reimpressão de


1843 do “Os Assassinatos da Rua
Morgue”, considerada a obra que
inaugurou o gênero Policial.
À direita: primeira edição de
“A Narrativa de Arthur Gordon
Pym”, de 1838, o único romance
escrito por Poe.

www.revistasamizdat.com 77
tre outros; Poe foi considerado como estão sendo organizados
– investigações policiais cerebral demais, apesar de eventos, como palestras, re-
(“Os Assassinatos da Rua ainda ser tomado como citação de poemas e debates
Morgue”, “O Mistério de um autor do Romantismo. em sua homenagem, mas
Marie Rôget”, “O Coração Para ele, era muito mais principalmente em Rich-
Delator”, “Tu és o Homem”, importante a forma e a mond, Boston e Baltimore,
“A Carta Roubada”) sonoridade dos versos do cidades nas quais ele passou
que o conteúdo, no entanto, a maior parte da vida.
– eventos marítimos
isto nunca significou um Inclusive, em Baltimore,
bizarros ou fantásticos
desequilíbrio entre forma e para o dia 10 de outubro
(“A Narrativa de Arthur
mensagem na obra poética de 2009, está sendo prepa-
Gordon Pym”, “Mensagem
de Poe. rado um funeral em home-
numa Garrafa”, “Descida ao
Maelström”) Pessoalmente, acredito nagem a Poe, que contará
que no corpus literário de com atores representando
Poe existem algumas das os papéis de amigos e rivais
Além disto, há vários mais fundamentais obras- do autor.
outros textos satíricos, de primas da escrita, mas há Nas ligações abaixo, há
humor, enigmáticos (como uma qualidade díspar entre parte da programação das
“O Escaravelho de Ouro”) os textos. Quem se aventu- comemorações do bicen-
e profundamente meta- rar a ler a obra completa tenário de nascimento de
físicos. Edgar Allan Poe do autor se deparará com Edgar Allan Poe.
é considerado como um obras incomparáveis, mas
dos precursores da Ficção Poe Bicentennial - Balti-
também com outras de
Científica, por causa de more
difícil acesso, ou até desin-
contos como “O Embuste teressantes. http://www.poebicentennial.
do Balão”, “A Aventura sem com/index.html
Definitivamente, Edgar
par de um tal Hans Pfaall”. Poe Revealed 1809-2009 –
Allan Poe é leitura obri-
Poe é também considerado Richmond
gatória para qualquer um
como o primeiro autor de
interessado em Literatura. http://www.poe200th.com/
ficção policial, ao conceber
Uma obrigação repleta de index.php
o antológico personagem
prazeres, surpresas e assom-
Auguste Dupin. Tornou-se The New York Times –
bro.
um ícone da literatura de Edgar Allan Poe at 200
Terror e Gótica. A comemoração (Slideshow)
Paralelamente aos mes-
do bicentenário de http://www.nytimes.com/
nascimento de Poe slideshow/2009/01/16/
tres russos e franceses,
como Pushkin, Tchekov e books/eapoe-SLIDE-SHOW-
Durante todo o ano de
Maupassant, Edgar Allan 01-17-2009_index.html
2009, em várias cidades do
Poe instaurou as bases do
leste dos EUA, comemora-se
conto moderno, produzin-
o bicentenário de nascimen- Página oposta: edição do jornal
do alguns dos textos mais
to e o centésimo sexagési- The New York Times em comemo-
perfeitos e emblemáticos do ração ao centenário de nascimen-
mo aniversário de morte de
gênero. to de Edgar Allan Poe, em 15 de
Edgar Allan Poe. Por todo o
No campo da poesia, julho de 1909.
lugar que o escritor viveu,

78 SAMIZDAT agosto de 2009


78
Para saber mais: http://www.poemuseum.org/poes_life/
index.html
- BAUDELAIRE, Charles, Sobre a Mo- - Wikipédia – Edgar Allan Poe
dernidade. São Paulo: Editora Paz e Terra,
1996. http://en.wikipedia.org/wiki/Edgar_
Allan_Poe
- Baudelaire and the Arts, Transla-
tions: Baudelaire, translator of Edgar - Wikipédia – Poe’s obituary
Allan Poe http://en.wikisource.org/wiki/Death_of_
http://dl.lib.brown.edu/baudelaire/trans- Edgar_Allan_Poe
lations1.html - Wikipédia – Rufus Wilmot
- The Literature Network – Edgar Griswold
Allan Poe http://en.wikipedia.org/wiki/Rufus_Wil-
http://www.online-literature.com/poe/ mot_Griswold
- PEEPLES, Scott, The Afterlife of Edgar - The works of Edgar Allan Poe, in
Allan Poe. Boydell & Brewer, 2007. four volumes. Vol I, with Memoirs by R.
W. Griswold. New York: W. J. Widdleton,
http://books.google.com/books?id=NyEu Publisher, 1865.
mvZL1QMC&printsec=frontcover
http://books.google.com/books?id=Cy4C
- Poe Museum AAAAQAAJ&printsec=titlepage

www.revistasamizdat.com 79
Teoria Literária

Publicação independente

ontem e hoje
Henry Alfred Bugalho

80 SAMIZDAT agosto de 2009


80
(Este é o primeiro artigo de uma interior dos bens materiais ma atenção a autores não
série sobre publicação indepen- (os livros) estejam contidos publicados. E não podemos
dente na era digital) valores imateriais (o que nos esquecer dos grandes
está escrito, os ideais, as prêmios literários, que
teses, a concepção de mun- geralmente são concedidos
A legitimação do do do autor), no entanto, o aos melhores livros do ano,
mercado literário importante é que este bem ou a autores com algum
material seja vendido; o ob- tempo de estrada e que já
Todo mundo, ao começar jetivo principal do mercado possuem vasto currículo
a escrever seu primeiro li- editorial é vender livros, literário.
vro, tem em mente o esque- gerar lucro.
ma clássico de publicação: Isto nos leva a concluir
autor => editora => livraria Por isto, pouco importa que apenas após passar no
=> leitor. o valor literário duma obra, quesito vendável um livro
se ela não apresentar pers- pode ser considerado lite-
Quase ninguém ques- pectivas de lucro. rário.
tiona este modelo ao tentar
ingressar na carreira literá- Podemos dizer, então,
ria e, para muitos, um autor que ser publicado por uma
A publicação
que não seja publicado por editora é, de fato, uma legi-
independente
uma editora comercial — timação?
ou uma “editora de verdade” Sim, evidentemente: é a Apesar do domínio que
— não merece ser lido. legitimação de que alguém exerce, a existência do
O processo de concluir dentro duma editora consi- mercado editorial é algo
um livro, enviá-lo para ser derou seu livro vendável. relativamente recente, se
avaliado por uma editora, Nada mais do que isto. analisarmos a História da
ser aceito, assinar o contra- escrita e da publicação. As
to e chegar às livrarias é a primeiras evidências de
É óbvio que passar por escrita datam de 3500 antes
primeira legitimação dum
esta etapa inicial conduz a de Cristo, enquanto que a
autor, é o primeiro grande
outros patamares de legiti- forma do livro como códice
funil entre os escritores.
mação. A União Brasileira ocorreu por volta do século
Entre os pretendentes a
de Escritores – UBE só con- I a.C.
escritores e os poucos que
sidera, por exemplo, escri-
fazem parte do catálogo de Durante muito tempo,
tor aquele que possui pelo
uma editora, há um cruel a escrita e o acesso a per-
menos um livro publicado.
processo de triagem que gaminhos, manuscritos ou
Neste sentido, escritores ta-
nem de longe contempla o livros se restringia à clas-
lentosíssimos que publicam
valor artístico ou o mérito se sacerdotal e a alguns
na internet ou mesmo para
literário dum livro. monarcas. O processo de
si próprios não passam de
produção de um livro era
http://www.uh.edu/engines/printer.jpg

O que estes autores, e meros diletantes.


os leitores também, pa- lento e dispendioso, isto até
Também é muito im- ao advento da imprensa,
recem se esquecer é que
provável que publicações invenção de Johann Guten-
as editoras e livrarias são
de renome, como jornais ou berg, em 1450. Esta foi a
empresas como outras
revistas, dediquem algu- grande revolução na escri-
quaisquer. Concordo que no

www.revistasamizdat.com 81
ta e tornou o livro, se não Assim como predomi- O autor-editor no mundo
acessível ao público, pelo nou no século XX, a publi- digital
menos viável comercial- cação independente é tida
mente. como a via de acesso a uma A informatização se
editora comercial, ou ape- caracteriza como a maior
No entanto, apenas no
nas como publicação por inovação na publicação de
século XIX, auge da era
vaidade. livros desde Gutenberg.
industrial, a publicação de
Nunca antes foi tão fácil,
livros conseguiu reduzir No primeiro caso, o
barato e rápido produzir
drasticamente os custos de autor custeia a primeira
e distribuir informação.
produção e abrir as portas tiragem de seu livro, na ex-
A internet rompeu todas
para a cultura de massas. pectativa de chegar a alguns
as barreiras geográficas e
O controle da cultura leitores, mas, principalmen-
materiais do processo de
deixou as mãos do clero te, de atrair a atenção de
publicação.
e de patronos aristocratas editores. Este foi o percurso
realizado por quase todos Por um lado, tem sido
para pequenos editores ou
os grandes autores contem- possível armazenar todo o
grandes associações que im-
porâneos, os quais através tipo de obras, de todas as
pulsionaram a publicação
de pequenas tiragens ini- épocas, em todos os idio-
de livros rumo ao mercado
ciais provaram a qualidade mas. Obras raras existen-
de consumo.
e a viabilidade comercial de tes apenas em bibliotecas
Então, a figura do autor pessoais ou livros pouco
suas obras.
publicado por uma editora conhecidos podem ser en-
(como Victor Hugo) dividiu No segundo caso, temos
contrados sem dificuldades.
espaço, pela primeira vez, o escritor amador que en-
O critério mercadológico
com o autor independente, contra na publicação inde-
deixa de predominar, e o
ou seja, aquele que custeia pendente a possibilidade de
valor histórico ou literário
do próprio bolso a publi- suprir o desejo de ver seu
volta a ser mais importante.
cação de seu livro (como livro impresso e vendido
Sítios como os do Projeto
quase todas as obras de (ou distribuído gratuitamen-
Gutenberg (www. guten-
Friedrich Nietzsche), e com te) para amigos e parentes.
berg.org), do Internet Sacred
o autor-editor, aquele es- Não há grandes pretensões
Texts Archive (http://www.
critor que assume também comerciais ou literárias,
sacred-texts.com/), do Per-
o papel de editor de seus apenas a necessidade de ter
seus Digital Library (http://
próprios livros e periódicos em mãos o resultado de
www.perseus.tufts.edu/ho-
(como Balzac, Dickens e meses de trabalho.
pper/), do Domínio Público
Edgar Allan Poe). Todavia, ainda há um (http://www.dominiopubli-
Estes três modelos ainda terceiro caso, e que resga- co.gov.br/), entre vários ou-
vigoram hoje em dia, mas ta uma das propostas do tros, disponibilizam obras
as editoras comerciais século XIX, do autor-editor, de domínio público, muitas
acabaram se sobressaindo que encontra na publica- que não são reeditadas há
e obscurecendo os outros ção independente uma via décadas por causa da pouca
dois. alternativa para consolidar demanda.
sua carreira.
E como se caracteriza o Por outro lado, a inter-
autor independente hoje? net permitiu, primordial-

82 SAMIZDAT agosto de 2009


82
mente através dos blogs, o
nascimento e a divulgação
de novos escritores, que
encontraram na publicação
virtual um acesso imediato
a seus leitores, pulando o
longo e excludente percurso
que passa pelas editoras e
livrarias. O autor da era di-
gital fala diretamente para
seu público e é, deste modo,
igualmente autor e editor
de seus textos, já que está
sob seu poder determinar
qual conteúdo será apresen-
tado.
Além disto, a impres-
são digital tornou possível
a publicação de livros em
pequenas tiragens, o que
facilitou a vida do autor
independente na hora de
distribuir seus livros em
menor escala.
Contudo, mesmo com
o surgimento de alguns
autores de renome através
da publicação e divulgação
pela internet, o autor inde-
pendente ou não publica- Acima: Johannes Gutenberg,
do ainda é recebido com o inventor da prensa móvel,
em 1450. Sua invenção permi-
desconfiança em compara-
tiu a reprodução em grandes
ção àqueles publicados por tiragens de livros e revolucio-
editoras comerciais. nou a cultura global.
A falsa legitimação
de qualidade das editoras À direita: os blogs surgiram
ainda continua sendo a na década de 90 e se torna-
principal legitimação lite- ram um fenômeno, primeiro
entre os jovens, posterior-
rária, mas que talvez esteja
mente, em todos os níveis de
em vias de extinção. Mais comunicação de massa. Desde
do que nunca, a internet então, tem se instaurado uma
tem representado uma forte nova relação entre escritor e
ameaça à onipresente cultu- leitor, entre criação e recep-
ção.
ra de massas.

www.revistasamizdat.com 83
Crônica

A Morte Sem Vida


Guilherme Augusto Rodrigues

84 SAMIZDAT agosto de 2009


84
A morte sempre me é hora de mudar o modo que nada acrescentam?
fascinou. Ela tem o seu de pensar para melhorar a Reluta-se, despreza-se,
mistério e nunca o deixa- vida que leva. Para morrer desiste-se e desperdiça-
rá. Fascinou filósofos com bem, deve-se viver bem. se o que seriam muitas
os mais diversos pen- Não se pode acostumar oportunidades por falta
samentos, ateus ou não, com a vida, tem de ser de conhecimento e não
escritores e poetas. Repre- incomodado com o fato refletir sobre o momen-
senta o fim de um ciclo, de viver. Conformar-se to. Isso é falta de crítica.
por isso pensar nela me com a vida significa per- Vicia-se a negar, desprezar
faz refletir sobre a vida. der o gosto e o motivo e assim permanece-se o
Até chegar esse final de viver. Não há razão mesmo, vivendo no mes-
de ciclo o que se fará, faz de existir. Cada dia é um mo lugar, continuando a
ou fez com a vida? Se a novo capítulo que deve reclamar que tudo pode-
morte é o final, a vida é ser apreciado com calma, ria ser melhor.
o caminho e o único que, vigor, felicidade e visto Quando menos se es-
desculpem a “incoerência”, como se fosse a primeira pera, deixando tudo para
é ramificado em muitos vez. Viver não é normal. amanhã, a morte chega e
outros e deve-se escolher Quando se torna normal pouco viveu, pouco se fez
os melhores. acabam o viço e a magia. e já não há mais tempo.
Quantas pessoas pas- A beleza está na natu- O homem acha que a vida
sam por todas as etapas reza, no dia-a-dia, que ao é longa e nunca morrerá
da vida, mas, no entanto, primeiro olhar, parecem ou virá bem tarde. É mais
não souberam escrevê-las, simples. Ao se habituar um que passa em branco,
deixando-as em branco. É com a vida o homem per- sem conhecer o mundo
preciso surpreender, co- de sua capacidade de ver, e a si, sem aprender, sem
nhecer o mundo e absor- deixando muitos detalhes mudar.
ver o que ele oferece de da natureza, pois é nela O homem acomodou-
melhor. Tem de aprender que se encontram as res- se à sua confortável vida
e vencer os problemas e postas para as perguntas. medíocre e sem cabeça
defeitos, sempre em busca Tudo está interligado e é devora o que lhe é dado
de conhecimentos e apri- essencialmente necessá- aceitando tudo, seguin-
http://www.flickr.com/photos/lapstrake/3408781275/sizes/l/

moramentos. rio. É indispensável saber do o que lhe é imposto,


A vida é o fruto do observar. desvalorizando-se, criando
mundo. O ser humano faz O fato é que se vive por falsos valores e, com eles,
parte da natureza e cresce algum motivo sim! Não buscando incessantemente
por causa dela. Resta-lhe é um ato em vão. Senão satisfazer seus prazeres,
decidir se será um bom apenas se esperava o mo- tornando-a mero acaso.
fruto ou não. Não é algo mento da morte, mas nin- Desta forma, deixa-se de
que se pode trocar se não guém o aguarda. Quantas viver com arte.
gostar, quando se desgasta vezes perde-se tempo
ou enjoa. Ao se desgastar com coisas supérfluas

www.revistasamizdat.com 85
Crônica

Joaquim Bispo

Pouco racistas
86 SAMIZDAT agosto de 2009
86
A capacidade de miscigena- se relacionou com a filha do glomerado pró português que
ção dos Portugueses foi talvez chefe Arcoverde, bem como combateram nas duas batalhas
o grande trunfo para terem com outras indígenas de quem de Guararapes (1648,1649)
conseguido manter possessões teve 24 filhos, facto que lhe integravam muitos autóctones,
coloniais no séc. XVII, ataca- valeu o epíteto de Adão Per- de todos os estratos e matizes,
das por Holandeses, Ingleses nambucano.” alguns dos quais em posição
e Franceses. Ao contrário dos A miscigenação tinha a van- de liderança de blocos comba-
Holandeses, por exemplo, que tagem de assegurar imunidade tentes. Os quatro comandantes
eram de “má boca” e por isso genética aos descendentes das militares exaltados pela Histó-
tinham de mandar vir da Euro- índias, face a diversas enfermi- ria foram:
pa quase todos os mantimentos, dades e epidemias. “João Fernandes Vieira –
nos 24 anos que permaneceram Depois destes cruzamen- senhor de engenho de origem
em Pernambuco, os Portugue- tos de primeira geração, onde portuguesa;
ses adaptaram-se bem, quer entravam Brancos europeus co- André Vidal de Negreiros
climática, quer gastronómica, lonizadores, Índios autóctones – brasileiro de origem portu-
quer sexualmente. e, a partir de meados do séc. guesa (mazombo) – mobilizou
São famosos os casos de XVI, Negros africanos, chegados recursos e gentes do sertão
João Ramalho e António Ro- como escravos, muitos outros nordestino;
drigues que “foram os pioneiros de segunda e terceira se segui- Felipe Camarão – indígena
da miscigenação no planalto ram, criando uma enorme mul- brasileiro da tribo potiguar –
de Piratininga (S. Paulo). O tiplicidade racial. No séc. XVII, liderou as forças da sua tribo;
primeiro casou com Bartira, para tentar distinguir as várias Henrique Dias – brasilei-
filha do morubixaba Tibiriçá variedades que foram brotando ro filho de escravos africanos
e o segundo com uma filha do de todos aqueles cruzamentos, libertos – foi o ‘governador da
chefe Piquerobi. Estas ligações usavam-se – para os nascidos gente preta’ (negros, crioulos e
entre portugueses e índias no Brasil – as seguintes desig- mulatos), oriunda dos engenhos
encontram-se na origem de nações: assolados pelo conflito.”
alguns dos mais importantes O empenhamento coorde-
troncos paulistas.” Branco + Branca = Mazombo nado de todo este heterogé-
“Outro exemplo paradig- Branco + Índia = Mameluco neo conjunto foi decisivo na
mático é fornecido por Diogo Branco + Negra = Mulato derrota e subsequente expul-
Álvares, o Caramuru, que teve Branco + Mulata = Pardo são, como corpo estranho, das
uma larga prole da sua relação Negro + Negra = Crioulo forças holandesas e determinou
com a índia Paraguaçu – que, Negro + Mulata = Cabra aspectos importantes do viver
após o baptismo, se passou a Negro + Índia = Cafuso brasileiro futuro.
http://www.flickr.com/photos/barbaraporto/3641789835/sizes/o/

chamar Catarina Álvares – ten- Índio + Mameluca = Curiboca


do todas as suas filhas casado Nota: O post onde, pela pri-
com europeus de posição, Esta miscigenação em larga meira vez, publiquei o essencial
enquanto três dos seus filhos escala criou extensas e comple- desta informação é um dos mais
foram armados cavaleiros pelo xas redes familiares, com o seu visitados do meu blog, o que de-
1º governador-geral do Brasil. cortejo de costumes, crenças nuncia o grande interesse que a
As primeiras famílias baianas e língua, o que formava uma sociedade brasileira tem por este
resultam, tal como as paulistas, barreira dificilmente quebrável aspecto da sua identidade.
da miscigenação entre portu- pelo invasor, e terá sido um dos
gueses e índias.” principais factores que trava- Fontes principais: http://
“Na capitania de Pernam- ram as tentativas de instalação www.republica.pt/jornal2.htm
buco, o exemplo foi dado por de Holandeses e outros. http://pt.wikipedia.org/wiki/
Jerónimo de Albuquerque, que As forças militares do con- Batalha_dos_Guararapes

www.revistasamizdat.com 87
Crônica

Eder Ferreira

A mais bela das artes


Todas as artes são be- não só de entreter, como podia finalmente ser
las, disso não se pode ter também de informar, de registrada, para nunca

http://www.flickr.com/photos/yaniecks_passion/3598018194/sizes/l/
dúvidas. A dança, a pin- instruir, e de mudar a mais ser esquecida. Mas,
tura, a escultura, o cine- mente de seus especta- logo o Homem percebeu
ma, todas possuem algo dores, ou melhor, leitores. que poderia também in-
que as faz transcender as Essa arte é a literatura. ventar histórias, criando,
fronteiras da realidade e Desde que o Homem assim, os mitos, que até
aproximar o ser huma- inventou a escrita, criou- hoje emocionam e im-
no da perfeição. Mas, há se uma necessidade de pressionam a todos, com
uma que faz mais do que se registrar o que se via poderes mágicos, seres
isso. Uma arte que, além e sentia. E mais: a cultu- extraordinários e fatos
de servir como base para ra, que era apenas oral, insólitos.
outras, cumpre um papel passada de boca em boca, Com a evolução do

88 SAMIZDAT agosto de 2009


88
conhecimento humano tura desfrute de um rico
sobre o mundo, a arte da legado, e que, até hoje, é
escrita se fixou como a valorizada. Infelizmente,
mais sublime forma de a arte que mais contribui
emancipar o que se des- para a evolução de seus
cobria. Em muitas obras contempladores, tem sido
literárias o caráter de deixada de lado, prin-
entretenimento pratica- cipalmente em vista de
mente ficou de lado, dan- outras artes. A música
do lugar à transmissão deixou de ser clássica
de informações, sejam para ser popular, fazendo
científicas, filosóficas, com que sua qualidade
teológicas ou empíricas. decaia cada vez mais. O
Porém, a beleza e suavi- teatro e a dança torna-
dade da literatura sem- ram-se representações ar-
pre a acompanharam. A tísticas possíveis apenas,
poesia, por exemplo, pode na maioria das vezes, nas
ser considerada como a grandes cidades. A pintu-
representação máxima do ra e a escultura se super-
termo “Belas Artes”, quan- valorizaram e o cinema
do se fala em literatura. transformou-se em uma
Grandes nomes da poesia fábrica de dinheiro. E a
mundial, como John Mil- literatura, talvez a arte de
ton, Charles Baudelaire, mais fácil acesso, ficou
Camões, Fernando Pessoa, obsoleta, restrita apenas
e os brasileiros Olavo Bi- para alguns entusiastas
lac, Cruz e Souza, Carlos que veem na leitura mais
Drummond de Andra- que uma obrigação. A
de, entre muitos outros, beleza é relativa, cada um
elevaram a poesia em sua tem o direito de achar
plenitude. Outros gêneros belo o que quiser. Mas,
literários, também com o enquanto o mundo achar
caráter de entretenimen- que há mais beleza em
to, como o romance, o um CD ou DVD do que
conto, a crônica, o en- em um livro, o termo “Be-
saio, entre tantos outros, las Artes” deve ficar enga-
fizeram da história da vetado, até que alguém o
literatura uma das mais faça ressurgir.
respeitadas dentre todas
as artes.
Vista dessa forma,
pode parecer que a litera-

89
Crônica

A Idade da Velhice?
Henry Alfred Bugalho

90 SAMIZDAT agosto de 2009


90
Quando Caetano Veloso “sirs” por aí, vindo de crian- problema algum, os interes-
completou sessenta anos, deu ças americanas e, na última ses não mudam muito, há
uma entrevista dizendo que, vez que entrei para jogar uma certa homogeneização.
aos vinte anos, ele conside- xadrez online, uma garota
perguntou por minha idade Então, ainda sem ter
rava que alguém de sessen-
e, ao responder, ela disse: “ah, muita certeza da resposta, e
ta anos era velho, mas, que
eu ainda sou um bebê. Só com o comentário de Cae-
agora que tinha esta idade,
tenho dezoito anos”. tano Veloso diante de mim,
percebeu que ainda se consi-
indago-me: qual é a idade da
derava novo.
Isto porque nem che- velhice?
Um professor meu de guei à casa dos trinta anos,
e estou bem longe de me Chegará um dia no qual
faculdade, numa aula sobre
sentir velho. Se eu parar eu realmente poderei dizer
Heráclito, levantou a seguinte
para pensar, devo ainda ter “estou velho”, que ficarei
questão: onde está a criança
a mentalidade de doze anos: confortável com o título de
que um dia fomos? Ela dei-
jogo videogame, como choco- “senhor”, que não terei mais
xou de existir, ou ainda con-
late, hambúrguer, salgadinho, a cabeça de um meninote
tinua em nós? Ou o adulto
pizza o tempo todo, gosto de de 12 anos e que não saliva-
que somos já estava presente
acordar tarde e, às vezes, sin- rei toda a vez que passar na
na criança?
to que ainda vejo o mundo frente de um McDonald’s?
Acredito que ele defen- com o olhar de uma criança, Algum tempo atrás,
dia as mudanças, de que deslumbrado. atravessando a rua para ir
algo deixa de ser o que era
No entanto, lembro-me almoçar, vi uma senhora de
de maneira espontânea, que
com muita clareza de quan- andador, devia ter uns 80
tudo estava em constante
do minha mãe, já separada anos, sendo amparada por
mudança, como já havia pen-
de meu pai, saía nas noites uma enfermeira. Ela mal
sado o filósofo de Éfeso.
de sábado para ir dançar e conseguia andar, mas havia
Minha esposa é, por outro eu, um menino com cinco dado uma acelerada para
lado, da opinião que nós, ou seis anos de idade, achava atravessar a rua. A enfermei-
seres humanos, somos todos um absurdo que uma velha ra dizia à senhora: “Calma!
crianças. Nosso corpo cresce, pudesse querer se divertir. À Calma! Já vamos chegar lá”.
envelhece, somos moldados época, ela tinha pouco mais A senhora estava indo
por nossas experiências, da minha idade hoje. para o mesmo lugar que eu:
pelas responsabilidades, mas,
uma lanchonete. Ela entrou
http://farm4.static.flickr.com/3513/3261756946_d99d81edd9_b.jpg

no fundo, somos as mesmas Também me recordo


de como um ou dois anos “correndo”, compraram o
crianças de sempre. Recen-
faziam enorme diferença da sanduíche e a velhinha tacou
temente, um psicólogo na
hora de escolhermos nossos ketchup na batata-frita.
TV disse algo semelhante:
“a idade mental de todos os amigos, na juventude. Um Definitivamente, não
adultos é de 12 anos”. rapaz de 16 anos não andava envelhecemos. A nossa pele
com um de 13, já possuíam fica enrugada, ficamos mais
Tais exemplos me ocor- interesses completamente cansados, mais desgastados,
reram hoje após ter recebido diferentes, uns ainda brinca- talvez até mais desiludidos,
um e-mail de uma leitora vam enquanto os outros já mas a criança está e estará
que me chamava de “se- estavam namorando, bebendo sempre lá, esgueirando-se
nhor”. Não é a primeira vez ou fumando. Hoje, ter um através das areias do tempo,
que isto ocorre, nos últimos amigo cinco (ou até dez) rindo e pulando, pronta para
tempos. Tenho ouvido alguns anos mais velho não seria alguma traquinagem.

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Poesia

Poesia Visual Carlos Alberto Barros

92 SAMIZDAT agosto de 2009


92
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Poesia

Mais eu José Espírito Santo

A ingenuidade
e o conhecer das idades
são canções cantando-se,
são pedra lisa a rolar na enseada ao sabor da onda

Perto de longe do grito das águias,


dos gritos que nos faz a distância http://www.flickr.com/photos/pulihora/250872559/sizes/o/

Longe de perto desperto do sorriso cálido,


a ingenuidade e o conhecer das idades cumprimentam-se

Enquanto o movimento prende o tempo


e o escritor desfia, insano, palavras
Desfia como que traça linhas ao desafio no céu

Enquanto a vida corre, eu me tempero...

94 SAMIZDAT agosto de 2009


94
Na rua Mariana Valle

Quero te comer na rua,


com raiva,
na pressa.
Não dá tempo de ficar nua.
Vamos logo
ao que interessa.
http://www.flickr.com/photos/ginja_andy/3273643719/sizes/l/

Não quero romantismo,


quero desejo puro e simples,
quero a força do tesão.
Não preciso do teu cinismo,
preciso da tua paixão.
Anseio sentir tua carne
e tua veia pulsando em mim
meu mar te molha e esquenta
e eu fico louca te tendo assim.

www.revistasamizdat.com 95
Poesia

Laboratório Poético:

desespero e pássaros carniceiros


Volmar Camargo Junior

Esquecimento ii.
persegue-me insistente o eco
(revisitado)
que ecoa e ecoa e ecoa
nesse templo vazio e oco
i.
buscam-me mortas
ecoa em cada quadro dessa galeria
as coisas, mortas as horas,
a justeza por que caminho,
as letras, mortas
e a aspereza do alheio
o nunca, o nada, o pó
as mãos que não trazem calos
de uma rua velha, numa casa velha,
os impossíveis desapegos
num mundo invisível e velho
um panorama do que não possuo
ainda desperto ante o corredor
a perfídia do leito
áspero e poeirento
cada hora perdida
sinto a frialdade do seu hálito
cada fio de cabelo
em cada quadro dessa galeria
os princípios e os fins
ecoam o velho e o sono,
as cãibras, o suor
ecoam o verbo e o verso
o cheiro de noite e os sonhos
vencido, desisto da fuga
a tortura, a morte, a dor,
devora-me uma fome urgente que não tem nome
o rancor e a solidão
sou engolido pelo torpor do esquecimento
o que de mim não se enamora
sussurra uma voz com cheiro velho
“ouço estrelas”, sabe-me o destino todo
fujo

96 SAMIZDAT agosto de 2009


96
http://www.flickr.com/photos/cenz/4253841/sizes/o/
O Cadáver
abandonadas
sobras da caçada
às moscas, mais nada

(e se delas esqueceu-se Deus?

nem os vermes as reconhecem)

olhou-as, pois, o urubu


uma por uma, inútil
sentiu-se nu, e fugiu

www.revistasamizdat.com 97
Poesia

blavinos
Ju Blasina

Blavino Nº 12 – o P ó

Hoje
Nada mais

É que o futuro
Do ontem – Passado
Como é o hoje ao amanhã

Que espero encontrar presente Blavino Nº 6 – Im.permanência

Eu
Às minhas lembranças e
Esperanças o tempo
Juro em vão:
É só uma gaveta
Não sou à toa, ateu

Onde guardo-
Ou pagão. Só não sirvo
-me em
Pras coisas sérias – verdades
São tão etéreas quanto à própria existência

Paciência é fingir-se de morto enquanto o mundo explode

Algo em mim nunca dorme - sempre trago


Por dentro um vulcão latente,
In. Constante. Mente

Livre e por ora


Vestida de

Mim

98 SAMIZDAT agosto de 2009


98
poesias BANQUETE

Sobre a bandeja de prata


Eu sou o prato
Nua e crua
Ju Blasina
Eu sou tua
Refeição
Sinta o aroma
Satisfação
A pele branca
De marfim
Toque o veludo
O cetim
Aprecie
(meu) Fim Sacie
A fome
A sombra da vida Sirva-se
Essência insensata Dentes e talheres
Ou certeza inata? Sobre mim
Verdade ingrata. Rasgue a pele
Corte a carne
O caroço das coisas
Tenra
e a casca também
Beba o sangue
O miolo do mundo

http://leerlingen.hetassink.nl/nederlands/stromingen/20ste%20eeuw/kandin1.gif
Quente
O fundo, o além Saboreie
A cinza das horas O líquido acre-doce
Do mal ou do bem? Que escorre de mim
O pouco de tudo Beba-me,
Faz louco de mim Antes que o sangue esfrie
O amargo interno Coma-me
O etéreo eterno Antes que a carne morra
Devore-me
O (meu) fim
Antes que já não haja
Mais nada
Pra provar em mim
E ao final
Erga a taça
Lamba o prato
Não deixe migalhas
Daquilo que um dia fui
Mortas e esquecidas
Sobre a bandeja de prata

www.revistasamizdat.com 99
O lugar onde
a boa Literatura ficina
é fabricada
www.oficinaeditora.com

http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão ­cultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

100 SAMIZDAT agosto de 2009


100
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão
Volmar Camargo Junior
Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

www.revistasamizdat.com 101
Assessoria de imprensa

Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com

Colaboração

Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em História da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

Barbara Duffles
Jornalista, escritora e roteirista, é autora do livro
“Não Abra” e do blog “Não Clique”. Apesar das nega-
tivas, esta carioca quer, sim, ser lida - como todo es-
critor. Tem dias de conto, de crônica e de pílulas sem
sentido. Suas paixões: cinema e livros com cheiro de
novo - se bem que adora se perder nos sebos da vida.

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Carlos Barros
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com

Eder Ferreira
Nasceu em Siqueira Campos, no dia 27 de dezem-
bro de 1980. Formou-se no curso de Matemática,
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jaca-
rezinho (FAFIJA). Funcionário público municipal na
cidade de Siqueira Campos, trabalha junto ao Depar-
tamento de Cultura, coordenando projetos de incen-
tivo à leitura e à criação literária. Também exerce
a função de professor de informática e secretariado
administrativo no Centro Educacional Integrado
Plovas Informática (CEIPI). Trabalha ainda, de forma
autônoma, com livros personalizados para presentes.
Sua ligação com a literatura já é de longa data.

Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

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Guilherme Rodrigues
Estudante de Letras na Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre gran-
de paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas
a que se dedica cada vez mais.

José Espírito Santo


Informático com licenciatura e pós graduação na
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa,
trabalha há largos anos em formação e consultoria,
sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de
Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”.
A paixão pela escrita surgiu recentemente, tendo no
ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e
“Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a fa-
mília em Alverca, uma pequena cidade um pouco a
norte de Lisboa, Portugal.

Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

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Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever
de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde
sempre em São Paulo.

Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu a
ler. Escreve principalmente contos nos gêneros misté-
rio, suspense e terror, além de crônicas.

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Também nesta edição, textos de

Barbara Duffles José Espírito Santo

Carlos Alberto Barros Jú Blasina

Eder Ferreira Léo Borges

Giselle Natsu Sato Marcia Szajnbok

Guilherme Rodrigues Mariana Valle


http://www.flickr.com/photos/st-stev/155466775

Henry Alfred Bugalho Maristela Scheuer Deves

Joaquim Bispo Volmar Camargo Junior

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