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(Parte III)
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição. (Art. 1º, parágrafo único, Constituição Federal)”
Pois bem. Neste ponto, tendo em vista o que assentimos acima, para que o STF
não cometa tais equívocos de ordem pragmática e semântica, precisamos desconstituir – ou,
ao menos, mitigar –, da mens judicante dos eminentes ministros da egrégia Corte, a Teoria da
Mutação Constitucional. E no que consiste tal teoria? Segundo esta – tese da Profª Anna
Cândida da Cunha Ferraz, da USP – as constituições nacionais poderiam sofrer, ao longo dos
anos, alterações significativas em seu conteúdo semântico sem a necessidade de uma
modificação formal (reforma constitucional: seja por proposta de emenda constitucional ou de
revisão constitucional) do texto dos seus dispositivos constitutivos. Em outras palavras, de
tempos em tempos, o âmbito de significação das palavras contidas no texto constitucional
poderia ser alterado ao sabor dos intérpretes sem a necessidade de usar os meios
democráticos estabelecidos pelo Povo para o processo de alteração constitucional. Tal tese é –
assim como a teoria de Peter Häberle, “a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”,
analisada no artigo anterior – uma verdadeira aberração anárquica e um atentado violento ao
Estado Democrático de Direito. Por quê? Acho que fica claro: a teoria assente que é possível
alterar o sentido do texto constitucional por uma via muito simples e direta – que não exige
órgão e quorum qualificados, como no caso das propostas de emendas constitucionais – sem
que para isso o Povo, o dominus do Poder Constituinte, possa ser ouvido. Isso soa
antidemocrático e ilegítimo porque o Povo, pela Assembléia Nacional Constituinte,
estabeleceu os parâmetros principiológicos do processo de interpretação e integração das
normas constitucionais de tal modo que, sintática, semântica e pragmaticamente toda e
qualquer interpretação consecutada pela Suprema Corte não pode ir de encontro a essas
balizas valorativas.
Ademais, a propósito do que temos escrito nesta série de artigos – que têm como
pano de fundo, as questões emblemáticas de ordem moral que foram e estão sendo objeto de
julgamento no STF (células-tronco, aborto, união homossexual e etc.) – é de extrema
relevância a tomada em consideração, no texto constitucional, da Teoria do Silêncio Eloqüente.
Trata-se, também, de uma tese construída no âmbito da Suprema Corte Alemã (o princípio do
“beregtes schweigen”). Segundo esta, o silêncio da Constituição a respeito de certos temas
não é fruto do esquecimento ou do erro da Assembléia Nacional Constituinte, mas, ao contrário
disso, trata-se de um silêncio intencional, um silêncio eloqüente através do qual o dominus do
Poder Constituinte deixa claro: “sobre isso não temos o que falar ainda, porque precisamos
continuar refletindo melhor”. Então, por exemplo, quando a Constituição não consentiu de
modo claro e expresso no seu texto com a possibilidade de se considerar como entidade
familiar a união de pessoas do mesmo sexo, fê-lo de modo consciente e imperativo. É como se
o Povo dissesse: “Fi-lo porque qui-lo” (usando a famosa frase de Jânio Quadros, mesmo com o
erro da colocação pronominal). Assim, este silêncio é categórico e vinculante para qualquer
interpretação a ser consecutada pelo STF. Fazer de modo diferente não é democrático,
porque, no jogo da democracia, o silêncio do Povo quer dizer muita coisa para os poderes
constituídos da República.