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História da Filosofia

Quinto volume
Nicola A bbagnano

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME V
TRADUÇÃO DE:
NUNO VALADAS
ANTÓNIO RAMOS ROSA
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970

TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO


Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à
EDITORIAL PRESENÇA,
LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa

QUARTA PARTE

A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

RENASCIMENTO E HUMANISMO
§ 332. RENASCIMENTO E HUMANISMO: O PROBLEMA
HISTORIOGRáFICO
Escritores, historiadores, moralistas e políticos, todos estão de
acordo em
que se teria verificado na Itália, a partir da segunda metade do
século XIV,
uma mudança radical na atitude dos homens perante o mundo e a
vida.
Convencidos como estão do início de uma época nova, constituindo
uma
ruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si
mesmos o
significado dessa mudança. Esse significado, atribuem-no então à
renascença
de um espírito que já fora próprio do homem na época clássica e se
perdera durante a Idade Média: um espírito de liberdade,
pelo qual o homem reivindica a sua autonomia de ser racional e se
reconhece
como intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se
resolvido a
fazer de

ambas o seu reino. Uma tal renascença é, no ponto de vista desses


escritores, um regresso à antiguidade, uma reaquisição de
capacidades e poderes que os antigos (isto é, os Gregos e os
Latinos) tinham possuído e exercitado. Este regresso porém, não
consiste numa mera repetição do antigo mas numa retomada e
consequente continuação daquilo que pelo mundo antigo fora
realizado. Tais princípios são expressos, de uma forma ou de outra,
por inúmeras figuras do Renascimento italiano; pode mesmo dizer-
se que a cada nova descoberta de matéria documental nos
apercebemos melhor até que ponto eles foram partilhados pelos
escritores e vultos notáveis da época.
Estes testemunhos aparecem-nos confirmados por imponentes
fenómenos
culturais: o nascimento de uma nova arte, magnífica pela variedade
e pelo
valor das suas manifestações, de uma nova concepção do mundo, de
uma ciência
que nos séculos seguintes e mesmo até ao momento presente
deveria dar
notáveis frutos e de uma nova maneira de compreender a história, a
política
e, em geral, as relações dos homens uns com os outros. Assim, tais
testemunhos foram durante muito tempo tomados à letra, servindo
de base ao estabelecimento dos períodos históricos da civilização
ocidental.
A historiografia filosófica não se limitou porém, nem poderia fazê-
lo a
aceitar o contraste que os próprios humanistas quiseram
estabelecer entre a
sua época e a Idade Média. Se é verdade que uma parte dos
historiógrafos
aceitou esse contraste como fio condutor para a interpreta-
10

ção das doutrinas e figuras que se apresentam em primeiro plano no


século XV,
não é menos certo que uma outra parte se deu pelo contrário ao
trabalho de
salientar a continuidade que, apesar de tudo, subsiste entre aquele
século e
os que o precederam. Tem-se já hoje como certo que não é possível,
do ponto
de vista da exactidão histórica, basear a interpretação do
humanismo e do
Renascimento na existência de uma antítese entre o "homem
medieval" e o
"Homem do Renascimento". Não é possível considerar o
Renascimento meramente
como a afirmação da imanência em contraste com a transcendência.
medieval ou da irreligiosidade, do paganismo, do individualismo, do
sensualismo e do cepticismo em contraposição à
religiosidade, ao universalismo, ao espiritualismo e ao dogmatismo
da Idade
Média. Não faltam e até abundam no Renascimento motivos
francamente
religiosos, afirmações enérgicas de transcendência e
certas retomadas de elementos cristãos e dogmáticos; muitas
vezes esses
motivos e elementos aparecem entrelaçados com elementos e
motivos opostos,
formando sistemas complexos cujo centro de gravidade e sentido
completo são
difíceis de determinar. Difícil é pois a compreensão das polémicas
que agitam
a vida cultural do Renascimento: a que, em nome da eloquência e da
antiga
sabedoria clássica, os humanistas travaram contra a ciência e a
cultura,
oposta, que os partidários da ciência travaram contra a eloquência;
a que
lançou platónicos contra aristotélico e a que se desenrolou no
próprio seio
do aristotelismo entre alexandristas e
11

averroístas. É evidente que nenhuma destas posições polémicas


representa por
si só o Renascimento, e por conseguinte não se pode ver neste
apenas a
revolta da sabedoria e da eloquência, nem a da ciência contra a
eloquência, nem as reivindicações do platonismo contra o
aristotelismo
medieval, nem a desforra do aristotelismo científico sobre a
transcendência
platonizante. A primeira exigência a fazer é a de que o
Renascimento seja
entendido na sua totalidade pois só assim se poderá conhecer o
terreno comum no qual nascem e se radicam as várias e opostas
teses
polémicas.

§ 333. O HUMANISMO
A primeira destas polémicas, travada entre a sabedoria clássica e a
ciência,
é às vezes apresentada como a antítese entre humanismo e
renascimento. Uma
vez que a irrupção do Renascimento é marcada pelo aparecimento
das novas
ciências naturais, a polémica contra a ciência, iniciada por Petrarca,
tem
sido interpretada como constituindo a defesa da transcendência
religiosa e da
sabedoria revelada contra a liberdade de investigação científica.
Acontece
porém que a defesa da sabedoria clássica, inspirada na convicção
(que é uma
herança deixada pela Patrística) da existência de um perfeito
acordo da mesma
com a verdade revelada do cristianismo é muito mais antiga do que
o
Renascimento e nunca chegou a ser totalmente abandonada pela
Escolástica; o
humanismo seria assim a
12
força que combate e retarda o advento do verdadeiro espírito
renascentista,
o qual, como reivindicação da liberdade de investigação, seria par
sua

vez a continuação do aristotelismo e do averroísmo medievais.


Humanismo e
Renascimento constituiriam assim, na sua antítese, claras atitudes
do
espírito medieval, o que, se nos permite a compreensão da
continuidade
histórica que deve existir entre a

Idade Média e a Moderna, afasta toda e qualquer possibilidade de


entendermos
a originalidade e o
valor do Renascimento, ao estabelecer os pressupostos do
pensamento moderno.
A interpretação histórica do Renascimento, se, por um lado, vem
esbater a contraposição polémica do mesmo à Idade Média, vem por
outro, fazer luz sobre aqueles aspectos que caracterizam
suficientemente a sua configuração doutrinal. E do entre os
aspectos mais importantes, sob este ponto de vista, podemos
enunciar os seguintes: 1) - a descoberta da historicidade do mundo
humano; 2) - a descoberta do valor do homem e da sua natureza
mundana (natural e histórica); 3) - a tolerância religiosa.
1) - O humanismo renascentista não consiste apenas no amor e no
estudo da
sabedoria clássica e na demonstração da sua concordância
fundamental com a
verdade cristã mas sim e antes de mais na vontade de reconstruir
uma tal
sabedoria na sua forma autêntica, procurando compreendê-la na sua

realidade histórica efectiva. É com o humanismo que surge pela


primeira vez a
exigência do reconhecimento da dimensão histórica dos
acontecimen-
13

tos. A Idade Média tinha ignorado por completo tal dimensão. É


certo que já
então se conhecia o se utilizava a cultura clássica; esta era porém
assimilada à época e tornada contemporânea. Factos, figuras e
doutrinas não
possuíam para os escritores da Idade Média uma fisionomia bem
definida,
individualizada e irrepetível: o seu mérito residia apenas na validade
que
lhes pudesse ser

reconhecida relativamente ao universo de raciocínios no qual se


moviam os
ditos escritores. Sob este ponto de vista eram inúteis a geografia e
a
cronologia como instrumentos de averiguação histórica. Todas essas
figuras e doutrinas se moviam numa esfera intemporal que não era
outra senão a delineada pelos interesses fundamentais da época,
apresentando-se por isso como contemporâneas dessa mesma
esfera.
Com o seu interesse pelo antigo, pelo antigo autêntico e não por
aquele que
vinha sendo transmitido através de uma tradição deformante -
o humanismo renascentista concebe pela primeira vez a realidade
da
perspectiva histórica, isto é, da separação e da contraposição do
objecto
histórico, relativamente ao presentehistoriográfico. Andam em
polémica no
Renascimento, platónicos e aristotélicos; porém, o seu interesse
comum reside
na descoberta do verdadeiro Platão ou do verdadeiro Aristóteles,
quer dizer,
da doutrina autêntica dos troncos do seu pensamento, não
deformada nem

disfarçada pelos "bárbaros" medievais. A exigência filosófica não é


um mero
aspecto formal ou acidental do humanismo, mas sim um seu
elemento
14

essencial. A necessidade de descobrir os depoimentos e de os


reconstituir na
sua forma autêntica, estudando e cotejando os manuscritos, é
acompanhada pela
necessidade de neles buscar o seu conteúdo autêntico em matéria
de poesia e
de verdade filosófica ou religiosa. Sem investigação filológica não

propriamente humanismo pois apenas existe uma

posição genérica de defesa da cultura clássica, a


qual pode ser encontrada em toda e qualquer época e por
conseguinte não é característica de nenhuma em particular.
A defesa da eloquência clássica é a defesa da linguagem autêntica
do
classicismo contra a deformação sofrida durante a Idade Média e
simultaneamente uma tentativa de reconstituição da sua

forma original. A descoberta de falsificações documentais e de


falsas
autores, e a tentativa de integração de escritores e filósofos no
seu próprio
mundo, na sua própria distância cronológica, são os aspectos
fundamentais do
carácter historicista do humanismo. Não restam dúvidas de que o
humanismo, no
tocante a resultados, só parcial e imperfeitamente levou a cabo
esta sua
tarefa de restauração histórica; trata-se aliás de tarefa que nunca

se esgota e se apresenta sempre em primeiro lugar aos


historiógrafos. Todavia
foi o humanismo quem se apercebeu do valor desta tarefa,
iniciando-a e
deixando-a em herança à cultura moderna. O iluminismo de
setecentos constitui
seguidamente um
passo decisivo nesse caminho, do qual nasceu por sua vez a
investigação
historiográfica moderna.

15

Nunca será demasiada a importância que se der a este aspecto do


Renascimento.
A perspectiva historiográfica torna possível distinguir o passado do
presente
e por conseguinte torna também possíveis o reconhecimento da
natureza
diferente e própria do passado e a pesquisa das características e
condições
determinantes de uma tal individualidade e irrepetibilidade. Por
último, dá-nos ainda a consciência da originalidade do passado em
confronto connosco e a da nossa originalidade ao passado.
A descoberta da perspectiva histórica está para o tempo, como a
descoberta da
perspectiva visual, conseguida pela pintura do Renascimento, está
para o
espaço: consiste na possibilidade de nos apercebermos da distância
que vai de
um objecto a outro
e de qualquer deles ao observador. É por conseguinte a
possibilidade de os entendermos na sua real localização, na sua
diferença relativamente aos demais e na sua individualidade
autêntica.
O significado da personalidade humana, com centro original e
autónomo de
organização dos vários aspectos da vida, é condicionado pela
perspectiva,
nesta acepção. A importância que o mundo moderno atribui à
personalidade
humana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vez
pelo humanismo renascentista.
2 -Quando se diz que o humanismo renascentista descobriu ou
redescobriu "o
valor do homem", quer com isso dizer-se que reconheceu o valor do
homem como
ser terrestre ou mundano, inserido no mundo da natureza e da
história, capaz
de nele forjar o próprio destino. O homem a quem se
16
reconhece um tal valor é um ser racional e finito, cuja integração na
natureza e na sociedade não constitui condenação nem exílio mas
antes um
instrumento de liberdade o que por essa razão pode obter no meio
da natureza,
e entre os homens a sua formação e a sua felicidade. Este
reconhecimento não
é, indubitavelmente, mais do que a

expressão filosófica ou conceitual (alcançada com


atraso, como frequentemente acontece) de capacidades e poderes
que o homem se
arrogava havia já alguns séculos e que já exercera e continuava
exercendo nas
cidades que constituíram o berço do humanismo. A experiência
humana em que
este se apoia dera já frutos no campo da economia, da política o da
arte, o
que explica a conexão geográfica do humanismo com as grandes
cidades e

particularmente com aquelas em que (como Florença) o exercício


das novas actividades político-económicas fora e continuava a ser
mais livre e amadurecido. Vimos no volume anterior desta História,
como já no domínio da própria Escolástica, a partir do século XI, o
homem reivindica uma autonomia cada vez maior da razão, isto é, da
sua iniciativa inteligente, face às instituições típicas do mundo
medieval (a igreja, o império o feudalismo) que tinham tendência
para apresentar como dimanados do Céu todos os bens de que ele
podia dispor. No humanismo renascentista, porém, esta autonomia
aparece-nos afirmada e reconhecida de modo mais radical, como
capacidade do homem para planear a sua própria existência
individual ligada à história e à natureza.
17

É claro que, se entender como naturalismo a tese segundo a qual


para além
da história e da natureza nada existe, não se poderá na verdade
dizer que o
humanismo e o Renascimento tenham conhecido o naturalismo;
porém, se se
entender como naturalismo a tese segundo a qual o homem está
radicado na
natureza e na sociedade e só desses dois elementos poderá obter
os meios
necessários à sua própria, realização, um tal naturalismo foi
característico
de todos os escritores da época, os quais, se bem que exaltem a
"alma" do
homem como sujeito relativamente aos próprios poderes da
liberdade, não
esquecem por isso o corpo nem aquilo que ao corpo pertence. A
aversão ao
ascetismo medieval, o reconhecimento do valor do prazer e a
apreciação do
epicurismo sob um novo prisma são as manifestações mais evidentes
deste
naturalismo humanista. Ligado a ele aparece-nos também o
reconhecimento da
existência de um vínculo que liga o homem à comunidade humana;
este é um tema
especialmente escolhido pelos humanistas florentinos os quais
participaram
activamente na, vida política da sua cidade. Segundo este ponto de
vista,
exalta-se a vida activa em contraposição à especulativa e a filosofia
moral
em contraposição à física e à metafísica. A Política de Aristóteles é
estudada com renovado interesse e o seu autor elogiado por ter
reconhecido o
valor do dinheiro como coisa indispensável à vida e à conservação do
indivíduo e da sociedade. Reconhecia-se assim à poesia, à história, à
eloquência e à filosofia um valor essencial; atendendo ao que o
homem é e
verdadeira

18

mente deve ser; retomava o seu inteiro valor aquele conceito de


paideia ou
humanitas que já no tempo de Cícero e de Varrão exprimia o ideal
da formação
humana como tal, ideal este que só se

poderá identificar por intermédio daquelas artes próprias do


homem e que o distinguem de todos os outros animais (Aulo Gellio,
Noct. att., XIII, 17).
3)-Finalmente, fazem também parte do humanismo renascentista a
concepção
civil da religião e o conceito da tolerância religiosa. A função civil
da
religião encontra-se na fundamentação da correlação entre cidade
celeste e
cidade terrena: a cidade terrena deverá, na medida do possível,
realizar a

harmonia e a felicidade que são características da cidade celeste. A


harmonia
e a felicidade pressupõem, por sua vez, a paz religiosa. O ideal da
paz
religiosa é a for-ma tomada pela exigência da tolerância religiosa,
no
humanismo e no Renascimento. Os humanistas estão convencidos da
identidade
essencial entre filosofia e religião e da unidade de todas as
religiões, não
obstante a diversidade dos respectivos cultos. Como é óbvio, este
ideal tem
de ser entendido como privando a intolerância de toda e qualquer
base pois na
verdade a crença na possibilidade de uma "paz" no sentido em que,
por
exemplo, Pico della Mirandola emprega este termo, significa a
renúncia aos
contrastes insuperáveis e

à luta entre religião e filosofia por um lado e entre as várias


religiões e
as várias filosofias por outro, bem como o fim do ódio teológico.

Cada época vive de uma tradição e de uma herança cultural das


quais fazem
parte os valores
19

fundamentais que inspiram as suas atitudes. Esta tradição, porém,


especialmente nas épocas de transição e renovação, nunca consiste
em herança
passiva ou automaticamente transmitida mas sim na escolha de uma
herança. Os
humanistas rejeitaram a herança medieval e escolheram a do mundo
clássico
como sendo aquela que achavam constituída pelos valores
fundamentais que lhes
eram mais caros. O que lhes interessava era fazer reviver a
mencionada
herança como instrumento de educação, ou seja, de formação
humana e social. A
primazia que concederam às chamadas letras humanas, isto é, à
poesia, à
retórica, à história, à moral e à política, fundava-se na convicção,
igualmente herdada dos antigos, de que estas disciplinas são as
únicas que
educam o homem como tal, levando-o a tomar consciência das suas
reais
aptidões. Esta convicção poderá talvez, nos nossos dias, considerar-
se
demasiado estreita mas o que não pode é ser

encarada como preconceito de literatos. As letras humanas não


constituíam para os humanistas campo próprio para exercícios
brilhantes mas inúteis, nem ornamento fabuloso destinado à
ostentação nos círculos da alta sociedade.
Constituíam sim o único instrumento que conheciam, apto a formar
homens
,livres, dignos e empenhados em construir um mundo justo e feliz.
Não há
dúvida que o humanismo (como todos os outros períodos da história
do
Ocidente) conheceu também o prazer do exercício literário, a
elegância da
investigação meramente erudita e

a tentação de esconder, sob os méritos formais da linguagem, das


artes ou da
literatura, a carência
20

de um sério e profícuo interesse humano. É igualmente indubitável


que estes
sintomas de deterioração prevaleceram ou se tomaram mais
evidentes no século
XVII, quando a decadência política e

civil da Itália tomou quase impossível o exercício daquelas


actividades que
os humanistas dos séculos anteriores tinham exaltado no mundo
antigo.
Entretanto, porém, o humanismo renascentista italiano dera já os
seus frutos da Itália e mesmo nesta, o novo espírito de iniciativa e
liberdade que o Renascimento tinha suscitado dava igualmente seus
frutos no campo da ciência.
§ 334. O RENASCIMENTO
Os estudos filológicos mais recentes (Hüdebrand, Walser, Burdach)
estabeleceram para além de toda e qualquer dúvida a origem
religiosa do termo
e do conceito de renascimento. Renascença é uma
segunda nascença, a nascença do homem novo ou espiritual de que
falam o
Evangelho segundo S. João e as Epístolas de S. Paulo (§§ 130-31).
Termo e
conceito mantêm-se durante toda a Idade Média com o significado
de regresso
do homem a
Deus e à vida que lhe fugiu após a queda de Adão.
O Renascimento é uma renascença do homem neste mesmo sentido
de renovação;
esta renovação porém não consiste já numa transcendência dos
limites da
natureza humana, numa existência de pura e exclusiva ligação com
Deus, mas
sim numa verdadeira renovação do homem na sua capacidade e nas
suas
21

relações com os outros homens, com o mundo e com Deus. Uma


renascença em
Deus, entendida como

uma nova e mais genuína acepção das relações do homem com Deus,
longo de ser
excluída desta renovação, é até considerada como a sua condição
primordial,
embora não fique assim esgotado o sentido da renascença, pois esta
reporta-se
ao mundo do homem na sua totalidade: à sua actividade prática, à
sua arte, à
sua poesia e à sua vida em sociedade. A renascença do homem não é
o
nascimento para uma vida diferente e super-humana, mas sim o
nascimento para
uma vida verdadeiramente humana porque baseada naquilo que o
homem tem de
mais seu: as artes, a instrução e a investigação, que fazem dele um
ser
diferente de todos os outros que existem na natureza e o tomam na
verdade
semelhante a Deus, restituindo-o assim à condição de que decaíra.
O
significado religioso de renascença identifica-se com o mundano: o
fim último
da renascença é o próprio homem. O seu instrumento essencial é o
retorno aos
antigos que é também entendido como um regresso ao princípio, ou
seja, como um retorno ao que dá vida e força a
todas as coisas e de que depende a conservação e o
aperfeiçoamento de todos
os seres. O regresso ao princípio ora um conceito neoplatónico e por
isso não
admira que tenha sido sobretudo teorizado pelos Platónicos do
Renascimento
(Ficino, Pico). Foi todavia expressamente defendido também por
certos
filósofos naturalistas (Bruno, Campanella) e

por Maquiavel; este último afirma que o regresso às origens


constitui o único
modo possível de reno-
22

vação das comunidades que só assim fugirão à decadência e à ruína


pois,
segundo ele, todas as origens têm em si uma corta bondade pela
qual as coisas retomarão a sua vitalidade e a sua primitiva força.
No neoplatonismo antigo o regresso ao princípio ora um conceito
declaradamente religioso. O princípio é Deus e o regresso a Deus é
o
cumprimento do verdadeiro destino do homem e consiste na
reprodução em
sentido inverso do processo da criação pelo qual os seres se
desprenderam de
Deus, num voltar a subir a ladeira, numa tendência para a
identificação com
Deus. Este significado religioso não é estranho aos escritores do
Renascimento; os Neoplatónicos, sobretudo, repetem-no e fazem-no
seu. Porém o
regresso às origens assume também no Renascimento um
significado histórico e
humano, segundo o qual o "princípio" a que se deve regressar não é
Deus e sim
a origem terrena do homem e do mundo humano. É sem dúvida neste
sentido que
Maquiavel falava do "regresso às origens" como modo de renovação
das
comunidades humanas. Aliás o próprio Pico, della Mirandola admite
(em De ente
et uno), ao lado do regresso ao princípio absoluto, isto é, a si
mesmo,
consistindo nisto a sua felicidade terrena. Ora este regresso do
homem ao seu

princípio é, substancialmente, regresso àquilo que o homem foi, ou


seja ao
seu longínquo, mas mais autêntico, passado, às origens da sua
história. Como
é óbvio, as origens da história humana estão para além do mundo
clássico,
para o qual olham sobretudo os escritores do Renascimento os
quais, porém,
sustentam que foi no mundo clássico que o exercício
23

daquelas faculdades que desde a origem asseguraram ao homem um


lugar
privilegiado no mundo, encontrou a sua expressão amadurecida e
perfeita. Por
esta razão o Renascimento pôde acrescentar ao conceito da
verdade como filia
temporis o da continuidade da história através da qual o homem
melhora e
amplia as suas faculdades e que por isso permite aos modernos
verem mais
longe que os

antigos, tal como acontece ao anão empoleirado nos ombros do


gigante.
Por meio do regresso à antiguidade clássica, que é ao mesmo tempo
regresso do homem a si próprio, vai tendo lentamente lugar a
conquista da personalidade humana. Esta conquista é condicionada
pela consciência da própria originalidade relativamente aos outros,
ao mundo e a Deus. A descoberta da historicidade e a investigação
filológica, fornecem ao homem o sentido da sua própria
originalidade quanto aos outros, quanto àqueles mesmos exemplares
da humanidade que tinham vivido no passado. O regresso da arte à
natureza e a redução desta à objectividade (de onde nasceu a
ciência), realçam a originalidade do homem face à própria natureza
de que faz parte e contribuem deste modo para a formação do
sentido e do conceito da personalidade humana.
Finalmente, a confirmação da transcendência divina pela qual o
Renascimento
se liga nova e directamente à especulação cristã da Idade Média,
acentuando a
separação entre o homem e Deus, vem acentuar ainda mais o
carácter original
do homem e a irredutibilidade da sua situação à de qualquer outro
ser, quer
seja supe-
24

rior, quer inferior. Resulta daqui a função mediadora. e central que


é
atribuída ao homem como "cópula do mundo> (Ficino, Pico, Bovilo,
Pomponazzi),
como nó da criação, no qual encontram a

sua unidade e o seu equilíbrio os vários aspectos da mesma. Daqui


resultam
também a afirmação da liberdade humana e as discussões em torno
das relações
desta com a ordem providencial do mundo. Resultam ainda as
análises da
fortuna ou do acaso, aos quais se não pretende sacrificar o poder
decisivo da
vontade que se afirma dominadora de ambos. Resulta finalmente o,
reconhecimento da origem humana dos estados, fruto da habilidade
e da
perspicácia dos políticos.

§ 335. RENASCIMENTO: AS ORIGENS DA CIÊNCIA


EXPERIMENTAL
Com o reconhecimento do carácter essencial e determinante das
relações entre
o homem e a natureza, o humanismo estabeleceu a premissa
fundamental da
investigação experimental moderna. Tem-se insistido muito, nestes
últimos
tempos, na
importância da contribuição dada pelos Escolásticos de Trezentos à
formação
da ciência moderna, através da crítica de teorias aristotélicas
fundamentais,
como a do movimento dos astros e projécteis (§325). Confrontando
esta
contribuição com a hostilidade que os humanistas manifestam
contra o físico
Aristóteles e, em geral, contra as especulações físicas e
metafísicas dos
Escolásticos, somos

25

levados a concluir, que o desenvolvimento da ciência moderna está


mais ligado ao aristotelismo tradicional do que ao humanismo
renascentista.
Vimos já, porém, como a aversão ao físico Aristóteles e a
preferência dada ao
Aristóteles moralista constituía para os humanistas um motivo
polémico que
tinha por objectivo acentuar a importância que pretendiam atribuir
àqueles
ramos da ciência do espírito, considerados indispensáveis à direcção
da vida
activa do homem. Este motivo polémico não implicava a aversão à
natureza ou à
sua investigação e observação directas que já a arte do
Renascimento tão
estreitamente ligada ao movimento humanístico considerava como
seu
fundamento, guia e ideal. Acontece que a investigação científica, tal
como se
revelou nas invenções de Leonardo e

na obra de Galileu ora uma investigação baseada na observação e na


experiência. E a observação

e a experiência não são coisas que possam limitar-se a ser


anunciadas e
programadas têm que se empreender e levar efectivamente a cabo.
Não podem
porém empreender-se nem levar-se a cabo se não se apoiarem num
interesse
vital, interesse este que só pode ser constituído pela convicção de
que o
homem se encontra firmemente implantado no
mundo da natureza e de que as suas faculdades cognoscitivas mais
eficazes e
adequadas, são precisamente aquelas que derivam das suas relações
com a
natureza. Quando Galileu punha, ao lado dos raciocínios
matemáticos, a
"experiência, sensata" como a única fonte restante do
conhecimento, estava
claramente a indicar a mudança de direcção que

26

existe na base do empenhamento experimental da ciência moderna.


Já antes
dele, Bernardino Telésio, embora sem se empenhar em trabalhos de
investigação, afirmara em De rerum natura juxta propria principia
que os
princípios próprios do mundo natural e os únicos capazes de o
explicar, são
os princípios sensíveis, enunciando a equação entre "o que a própria
natureza
revela" e "o que os sentidos dão a perceber". O recurso à
experiência
sensível, interrogando-a e obrigando-a a falar é o único caminho
que, segundo
esta opinião, conduz à explicação da natureza pela natureza, ou
seja, aquele
que não lança mão de princípios estranhos à própria natureza. Esta
autonomia
do mundo natural, que é pressuposto de toda e qualquer
investigação
experimental, é um aspecto da atitude humanística, ao

procurar entender cada coisa nos seus elementos constitutivos e no


seu valor intrínseco. Assirn, e de uma forma geral pode dizer-se
que o Renascimento criou as condições necessárias ao
desenvolvimento de uma investigação experimental da natureza,
estabelecendo designadamente:
1) - Que o homem não é um hóspede provisório da natureza mas sim
ele próprio um ser natural, cuja pátria é a natureza;
2) -- Que, o homem como ser natural, possui tanto o -interesse
como a
capacidade de conhecer a natureza;

3) - Que a natureza só pode ser interrogada e


compreendida por meio dos instrumentos que ela própria fornece ao
homem.
27

Trata-se aqui, obviamente, de condições gerais mas não


determinantes e
que portanto não poJem considerar-se a origem de todos os
caracteres de
que a ciência moderna se apresenta composta nos seus
primórdios. Estes
caracteres determinam por sua vez outros factores, estes porém,
ainda e
sobretudo pertencentes ao humanismo renascentista.
O primeiro consiste precisamente no já citado "regresso ao antigo"
que é a tendência peculiar do humanismo. O regresso ao antigo
produziu a revivescência de doutrinas e textos desprezados
durante séculos, como por exemplo as doutrinas heliocêntricas dos
Pitagóricos, as obras de Arquimedes, dos geógrafos, dos
astrónomos e dos médicos da antiguidade. Os velhos textos
forneceram com frequência a inspiração ou o motivo para novas
descobertas, como aconteceu sobretudo com Arquimedes, no qual
amiúde se inspirou Galileu.
Por outro lado, o aristotelismo renascentista, ao mesmo tempo que
dava origem
a uma nova e mais livre leitura de Aristóteles, ia elaborando
eficazmente, em
polémica com as concepções teológico-r-liracu-listas, o conceito de
uma
ordem natural imutável e necessária, baseada na série causal dos
eventos.
Este conceito passou a constituir o esquema geral da investigação
científica. A magia, posta em evidência pelo Renascimento, uma vez
aceite e
difundida, contribui para determinar o carácter activo e operativo
da ciência
moderna, o qual consiste no domínio e na sujeição das forças
naturais com o
fim de as colocar ao serviço do homem. Por último, a ciência
derivava ainda
do platonismo e

28

do pitagorismo antigos o seu outro pressuposto fundamental, sobre


o qual insistem igualmente Leonardo, Copérnico e Galileu: a natureza
apresenta-se escrita em caracteres matemáticos e a sua linguagem
própria é a da matemática.
A todos estes factores que, com importância diversa e de modos
diferentes,
condicionam os primórdios da ciência experimental na Europa, o
Renascimento
está, directa ou indirectamente, ligado neste ou naquele dos seus
aspectos
essenciais. Entre estes factores podem e devem certamente
incluir-se as
críticas que os Escolásticos de Trezentos (Occam, Buridan, Alberto
da
Saxónia, Nicolau Oresmo) tinham formulado contra alguns dos
pontos
fundamentais da física aristotélica. Essas críticas provêm (é
preciso não o
esquecer) da orientação empírica que Occam fizera prevalecer na
última
Escolástica, quando, pela reconhecida impossibilidade de
interpretar e
defender as verdades teológicas, a filosofia ficara disponível para
outros
fins e interesses. O valor de tais críticas deriva portanto, não do
facto de
se situarem adentro do aristotelismo tradicional mas antes do de
serem anti-
aristotélicas e de constituírem a primeira manifestação daquela
revolta do
aristotelismo que, na segunda metade do mesmo século e no século
seguinte deu
origem ao humanismo. Constituem portanto, não a união do
aristotelismo com a
ciência, mas, antes pelo contrário, a primeira ruptura da frente
aristotélica
tradicional. Ao aristotelismo de Trezentos (como a boa parte do
renascentismo) faltava todavia aquele reco-

29

nhecimento da naturalidade do homem e dos seus meios de


conhecimento, o qual é condição indispensável de todo e qualquer
estudo experimental da natureza.
Sob este aspecto o aristotelismo não podia fornecer à ciência
qualquer
impulso ou razão de vida. Só a revolução humanística pôde realizar
a

mudança radical de perspectiva da qual nasceu a investigação


científica e a nova concepção do mundo.
Esta concepção, para a qual contribuíram igualmente platónicos
como Cusano e
Ficino, filósofos naturalistas como Telésio e Bruno e cientistas
como
Copérnico e Galileu, é (,não o esqueçamos) precisamente a antítese
da cone-opção aristotélica.
O mundo não é um conjunto finito e concluído, mas antes um todo
infinito e aberto em todas as direcções. A sua ordem não é final
mas sim causal; não consiste na perfeição do todo e das partes e
sim na concatenação necessária dos eventos.
O homem não é o principal ser visado pela teleologia do universo e
cujo destino estaria pois confiado a essa teleologia, mas sim um ser
natural entre os outros, que tem a mais a faculdade de planear e
realizar o próprio destino. O conhecimento humano do mundo não é
um sistema fixo e concluído mas sim o resultado de tentativas
sempre renovadas e que devem ser continuamente submetidas a
verificação.
O instrumento desse conhecimento não é uma razão supermundana
e infalível mas um conjunto de poderes naturais falíveis e
corrigíveis. São estes os traços gerais da concepção que ainda
permanece na base da nossa ciência e da nossa civilização.
30

§ 336. RENASCIMENTO: DANTE

O primeiro anúncio da renascença aparece com


Dante Alighieri. Toda a sua cultura é medieval e escolástica. O seu
pensamento filosófico oscila entre S. Tomá s e Sigieri de Brabante-
ao qual,
apesar da condenação eclesiástica, exaltou no Paraíso-e o seu
espírito
alimenta-se dos textos e das discussões que imperavam nas escolas.
A sua obra
poética, porém, vive um clima novo e anuncia os aspectos
fundamentais do
Renascimento. Já a poesia autobiográfica da Vida Nova não é mais
do que a

análise e expressão poética da renovação sofrida pelo poeta, sob o


impulso
espiritualizante do amor. Precisamente por causa desta renovação
nasce o
poeta para a sua arte e torna-se capaz de escrever poesia segundo
o "doce
estilo novo", por conseguinte não através duma fria elaboração
doutrinal, mas
por inspiração do amor que o leva a falar como lhe dita o seu íntimo.
(Purg.,
24, 49 e segs.). Na Comédia, porém, a ideia de renovação alarga-se
e
aprofunda-se, abrangendo a própria pessoa do poeta e
o seu destino individual, a renovação de tudo que o rodeia, bem
como da
religião e da arte, da igreja e do estado. Aparentemente, a Comédia
é a visão
profética da viagem de Dante através dos três reinos
transmundanos, viagem
pela qual o poeta, após ter conhecido os abismos da culpa e do
pecado se
afasta penosamente do mal, subindo a montanha do Purgatório até
atingir no
cume desta o Paraíso ,terrestre e consequentemente o
esquecimento do pecado e
a renovação total da sua alma, simboli-
31

zados pela acção purificadora das águas do Lete e

do Eunoé. Toma-se assim digno de iniciar a última parte da viagem


pelas
esferas celestes, até ao limiar do mistério divino. Mas o fim da ~
dantesca
não é o de descrever a preparação da alma de Dante para a vida
extra-terrena
mas sim o de promover a

renovação do mundo ao qual pertence o homem, Dante. O próprio


Dante afirma
na carta em que dedicou o Paraíso a Cangrande della Scala, que a
finalidade
do poema é a de "apartar os que vivem nesta vida do estado de
miséria,
conduzindo-os a
um estado de felicidade" (Ep., XHI, 15). A viagem transmundana de
Dante é a de um homem vivo que deve regressar para junto dos
vivos e aí revelar a sua visão. É precisamente da revelação da sua
visão e por conseguinte da participação na mesma de todos os
homens de boa vontade, os quais poderão, servindo-se do magistério
artístico do poeta, refazer com ele a viagem e com ele se renovar,
que Dante espera a renascença do mundo seu contemporâneo.
Esta renascença por ele esperada, é um regresso às origens. "0
supremo desejo
de todas as coisas", escreve em Convívio (IV, 12, 14), "e o primeiro
que da
natureza resulta, é o de regressar à sua origem". A igreja deverá
renovar-se,
regressando à sua primitiva austeridade, segundo a admoestação

e o exemplo dos seus dois grandes reformadores, S. Domingos e S.


Francisco. O
estado deverá regressar à paz, à liberdade e à justiça que eram o
seu apanágio na ora de Augusto, renovando-se assim no regresso à
concepção imperial de Roma.
32

Mas precisamente porque a intenção de Dante visa o outro mundo


para depois
regressar a este e promover a sua renascença, a obra do poeta é
rica de uma
realidade humana, na qual os símbolos e as alegorias acham a carne,
eo
sangue que lhes dão vida. A natureza da arte de Dante é
determinada pelo
propósito de renovação, da qual o poeta a
considera instrumento. Precisamente porque essa
renovação deve tirar os homens da sua miséria e conduzi-los à
renascença num
mundo renovado, é que os homens figuram no poema dantesco não
como símbolos
ou esquemas conceituais (ainda que às vezes ali apareçam com esta
função) mas
antes com a sua realidade humana, os seus ~os, as suas paixões e a
sua
aspiração ao divino. É impossível separar no poema de Dante o
conteúdo
doutrinal as alegorias e os símbolos, da forma poética, na qual
aqueles
encontram a própria realidade artística. A distinção entre forma e
conteúdo impossibilita o entendimento da arte de Dante a qual
possui a mesma unidade da personalidade histórica do seu autor. As
doutrinas, alegorias e símbolos fazem parte integrante da
concepção dantesca de renascença, como dela fazem igualmente
parte integrante os homens que deverão vivê-la e fazê-la sua.
Dante não se teria preocupado em revestir de carne e ossos os seus
símbolos
se não o tivesse MOVido uni interesse fundamental, como é o de
fazer
participar os homens e o seu mundo, da renascença por ele próprio
sofrida, na
sua viagem transmundana. Quanto maior for a corpulência humana e
passional
das sombras que pululam nos fossos
33

;infernais, padecem os tormentos purificadores ou

sorriem envoltas na luz do paraíso, tanto mais evidente )resultará o


apelo à renovação e à exigência de renascença para as quais
propende o espírito de Dante. No ocaso da Idade Média, Dante vem
afirmar, com todo o poder da sua arte, a exigência daquela
renovação que deveria ser a palavra de ordem da renascença.
§ 337. RENASCIMENTO: PETRARCA
Se Dante se encontra ainda doutrinalmente ligado à Idade Média,
Francisco
Petrarca (20 de Julho de
1304-18 de Julho de 1374) já se liberta mesmo doutrinalmente
daquele mundo e
dá início pleno ao
humanismo. A polémica que conduziu contra o
averroísmo em De sui ipsius et nzultorum ignorantia (1337-38),
assinala
precisamente essa libertação. Tal polémica é conduzida em nome da
velha
sabedoria romano-cristão, representada por Cícero e Santo
Agostinho, que
Petrarca considera fundamentalmente de acordo entre si. A difusão
do
averroísmo, com o crescente interesse que suscitava pela
investigação
naturalista, parece a Petrarca desviar perigosamente os homens
daquelas artes
liberais que são as únicas a poder dar a sabedoria necessária para
se
alcançar a paz espiritual nesta vida e a

eterna beatitude na outra. Quase todos o& conhecimentos que os


ditos
investigadores naturalistas acabam por atingir, vêm a revelar-se
falsos à luz
da experiência; "mas ainda que fossem verdadeiros", acrescenta
Petrarca, "de
nada serviriam para

34

a vida beata". A sabedoria clássica e cristã, contraposta por


Petrarca à
ciência averroísta, é a baseada na meditação interior pela qual se
esclarece
a si própria e se forma a personalidade do homem como indivíduo. O
processo
autobiográfico de Santo Agostinho, continuamente debruçado
sobre si próprio e
para quem não existe problema que não seja o

seu próprio e não existe doutrina que não responda a uma sua
própria
exigência pessoal (§ 156), é o que se apresenta mais próximo do seu
espírito
e a ele pensa recorrer continuamente. Este processo é o adoptado
por si na
obra (composta entro
1347 e 1353) De contemptu mundi à qual chamou também Secretum
e que em alguns
manuscritos se apresenta com o título "0 conflito secreto das suas
preocupações" (De secreto conflictu curarum sua-

rum). É um diálogo entre Petrarca e Agostinho, durante o qual o


primeiro
reporta continuamente ao exemplo e aos ensinamentos do segundo
tolas

as suas exigências de ordem espiritual. Esta obra porém, contém


além disso a
confissão do conflito interior do poeta, da sua íntima debilidade.
Confessa-
se ele vítima daquela acédia (ou acídia) que era a moléstia medieval
dos
conventos e consistia rum doloroso tédio da w;da. A clareza que
traz às suas
contradições íntimas é sintoma que atingiu o sentido da pers-
onalidade o qual
emerge precisamente dessa clareza. Numa carta famosa (Ep. famil.,
IV, 1), ao
descrever a sua ascensão ao Monte Ventoso, Petrarca narra como,
ao chegar ao
cume, em vez de se deter na contemplação da majestade do
espectáculo que se
lhe oferecia, abriu as Confissões
35

de Santo Agostinho que frequentemente o acompanhavam nas suas


peregrinações e
leu "Os homens contemplam as altas montanhas, as enormes ondas
do mar, o
largo curso dos rios, o vasto círculo do oceano e os caminhos das
estrelas-
mas esquecem-se de si próprios e a si próprios se encaram sem
admiração". Põe
então a advertência de Santo Agostinho Noli foras ire em relação
com o Scito
te ipsum de Sócrates e reconhece que toda a sabedoria antiga
tende à
concentração do homem em

si próprio, distraindo-o do mundo exterior. A sua


vontade, todavia, continua dividida entre a admiração perante, a
natureza e a
advertência da sabedoria, no seu espírito lutam o chamamento do
mundo e o
apelo à concentração interior, luta esta que é característica da sua
personalidade. É esta mesma

luta que o leva, por um lado, a afastar-se do mundo, buscando a


solidão em
Valchiusa, e por outro a
procurar honras e glória, juntamente com a coroa-
ção em Campidoglio. No seu espírito combatem o
homem medieval, acorrentado pelo desejo exacerbado da eterna
salvação, o qual
exige a maior concentração interior, e o homem moderno,
enamorado de Laura,
amando a natureza e desejando a glória
e a opulência. Está porém consciente da contradiÇão existente
entre as duas exigências e é precisamente nessa consciência que
reside a novidade da sua personalidade.
Procurou ele libertar-se dessa contradição através da meditação
moral em De
reniediis utriusque fortunae. Mas mesmo aí, a contradição aparece
reconhecida
como a lei da vida. "Tudo acontece", diz-
36

* nos, ",por força da contradição. Aquilo a que se (lá o nome de


mudança é na verdade luta". E a maior e mais áspera luta, é a que se
trava no próprio homem. "Que cada um se interrogue e responda a
si próprio para assim se dar conta até que ponto a sua vontade é
intimamente contrariada por diversas e contrárias paixões e
impelida, ora para cá, ora para lá, por estímulos vários e opostos.
Jamais se consume ou se apresenta homogénea, mas sim
interiormente discorde e dilacerada". Donde o pessimismo que
domina as meditações de Petrarca e o leva a afirmar acerca da vida:
"A cegueira e o olvido marcam o seu início, o cansaço a sua
continuação, a dor o seu termo e o erro todas as coisas".

Este pessimismo, porém, não impediu Petrarca de esperar e


anunciar a
renascença de uma era de paz. Na canção ao Espírito gentil (quer
tenha ou
não sido dedicada a Cola di Rienzo), manifesta a
esperança de que Roma seja novamente chamada "à sua antiga
viagem" e
reencontre o seu antigo esplendor "<.A minha Roma voltará a ser
bela"). E
noutro passo, não falta a espectativa de uni
retorno à época áurea do mundo, ou seja à era
da paz e da justiça:
De almas belas e amigas da virtude Se vai enchendo o mundo; nele
veremos depois Tudo áureo e cheio de obras antigas.
A época áurea consiste pois num regresso das "obras antigas", quer
dizer, do
costume e das artes
37

antigas. E Petrarca contribui para a renascença do antigo com a sua


obra de
poeta e de historiador: África, o poema latino do qual esperava a
máxima
glória, é uma exaltação da virtude romana que jamais se considerou
separada
da justiça e da benevolência; De viris illustribus é uma tentativa de
reconstrução das grandes figuras históricas da antiguidade, para
nelas
patentear a sua profunda e

essencià humanitas e idêntico fim têm os Reruin memorandarum


cujo significado o próprio Petrarca esclarece, ao dizer: "Estudarei
os exércitos romanos, perlustrarei o fórum e, quer nas legiões
armadas, quer no tumulto do fórum encontrarei espíritos pensativos
e dados à contemplação".
§ 338. HUMANISTAS ITALIANOS: SALUTATI, BRUNI,
RAIMONDI, FILELFO
Na esteira de Petrarca seguem os humanistas italianos. Coluccio
Salutati
(1331-1406) que foi durante 30 anos escrivão da senhoria de
Florença,
apresenta certos traços de semelhança com Petrarca. Coluccio
considera
estéreis, perante a morte, as consolações aduzidas pelos filósofos.
A morte é
um mal, diz nas Epistolae, embora não seja um mal moral e sim
natural, não
uma culpa e sim uma pena. É um mal para quem morro e um má para
os parentes e
amigos; e é o pior dos males pois consiste na perda do ser. Mesmo
que a alma
sobreviva, o homem, sendo unidade de corpo e alma é

38

anulado pela morte que é assim para ele o mal pior. Por conseguinte,
o facto
de o homem nada poder fazer perante a morte, aumenta e agrava a

sua dor em vez de a diminuir. Em face da morte não há pois outra


consolação
além da fé: só Deus pode conceder ao homem a graça de o fazer
suportar a
ideia- Aqui, portanto, se por um lado a
morte é despojada de todos os aspectos consoladores e benéficos
de que era
revestida pela sabedoria antiga e cristã, por outro recorre-se à
pura graça
de Deus para obter a designação no inevitável. É uma atitude de
intima
contradição, já muito remota da medieval. Igualmente remota da
concepção
medieval é a exaltação que Coluccio faz da vida activa
relativamente à
contemplativa. Quem se perdesse na contemplação de Deus a ponto
de já não se
comover com a infelicidade do próximo, de não se afligir com a
morte dos
parentes e de não vibrar com a ruína da pátria, não seria um

homem mas antes um tronco ou uma pedra. Por isso, a verdadeira


sabedoria não
consiste no puro entendimento mas, é antes e sobretudo prudência,
ou seja
razão mentora da vida. E num seu tratado, intitulado De nobilitate
legum et
medicinae, Coluccio afirma que de boa vontade, contanto que lhe
deixem a
ciência das coisas humanas, abandonará todas as outras verdades
aos, que
exaltam a

especulação pura. Põe também as leis, que dizem precisamente


respeito aos
homens e às suas relações mútuas, acima da medicina e das ciências
naturais
em geral, as quais só se ocupam de coisas materiais. Finalmente, é
também
característica de

39

Coluccio a afirmação da liberdade humana que julga conciliável. com


a ordem infalível do mundo criado por Deus (De fato, fortinta et
castí.
Discípulo de Salutati foi Leonardo Bruni, nascido por volta de 1374
e
falecido em 1444. Estudou grego com Emanuel Crisolora, o qual,
tendo chegado
a Florença em 1397, deu aos estudos humanísticos, a possibilidade
de se porem
em contacto directo com o mundo grego na sua língua original. Bruni
traduziu
do gre.-
p para o latim numerosos
diálogos platónicos e ainda a Ética Nicoinachea, a Económica e a
Política, de
Aristóteles. Escreveu uma Vita Ciceronis e uma Vida de Dante,
considerando
xealizado nestas duas figuras o ideal do homem douto e sábio que,
longe de
permanecer alheio à vida política, nela participa activamente. Na
Vita
Arístotelis, e em Dialogi ad Petrum Histrum onde se discute o valor
comparativo de antigos e
modernos bem como em Isagogicon moralis disciplinae, a sua
preocupação
constante é a de demonstrar como as doutrinas morais das mais
importantes
escolas filosóficas da antiguidade (platonismo, aristotelismo,
epicurismo,
estoicismo) concordam fundamentalmente entre si. E é justamente
às doutrinas
morais que Bruni dá o máximo relevo, uma vez que as disciplinas
meramente
especulativas lhe parecem menos úteis para a vida. " A filosofia
moral", diz
no Isagogicon "é, por assim dizer, inteiramente nossa. Por isso
aqueles que a
descuram, dedicando-se antes à física, parecem de certo modo
ocupar-se de
assuntos estranhos, desprezando os pró-
40

prios". Estas palavras de um admirador entusiástico e conhecedor


directo dos
Gregos que tão frequentemente afirmavam a superioridade da vida
especulativa,
são significativas quanto à tendência dos humanistas para a
exaltação da vida
activa o da participação do homem nos negócios públicos com vista
ao bem
comum. Também é característica a convicção de Bruni, segundo a
qual os
filósofos antigos nada ensinaram que fosse diferente da verdade
cristã. "Mas
se quisesse referir tudo quanto h nos filósofos de concordante com
as nossas
verdades, creio que suscitaria a admiração de muitos... Ensina Paulo
algo
mais do que Platão?" A sabedoria antiga, quer cristã, quer pagã,
aparecia aos

olhos de Leonardo Bruni como um todo harmónico; por conseguinte o


regresso à sabedoria clássica justificava-se como uma renascença
daquela vida moral que os filósofos antigos haviam conhecido e o
cristianismo fizera sua, espalhando-a depois pelo inundo.
Os humanistas empenham-se cada vez mais decididamente em
considerar e
apreciar os aspectos propriamente humanos da vida, ou seja, o que
diz
respeito ao homem na sua essência terrestre e activa, ao homem
que, antes de
atingir a felicidade transmundana, procura conseguir na terra a que
for
humanamente possível. Esta compreensão humana do homem, este
reconhecimento
sem condenação da sua tendência para a felicidade terrena, antes
lhe
admitindo a legitimidade e o valor, determina

uma nova valorização do prazer e por conseguinte


41

uma nova apreciação do epicurismo, doutrina para a qual o prazer


ora o
objectivo da vida. Tom-se agora uma concepção correcta do
epicurismo e

sabe-se que para Epicuro o prazer não andava separado da virtude


mas era,
pelo contrário, por ela condicionado. Por esse motivo Epicuro é
exaltado como
aquele que enunciou uma verdade fundamental da sabedoria prática
do homem. A
exaltação de Epicuro encontra-se numa carta de Cosmo Raimondi
(cremonês,
falecido em 1435) para Ambrósio Tignosi. "Epicuro", diz Raimondi,
"considerou
o prazer como o supremo bem porque perscrutou profundamente as
forças da
natureza e
compreendeu que nascemos e somos formados a partir da natureza,
de tal modo
que não há nada mais congruente do que possuir íntegros e sãos
todos os
membros do corpo, conservando-os nesse estado, isentos de todo e
qualquer mal
espiritual ou corporal". A própria virtude se apresenta subordinada
ao
prazer, na medida em que não é procurada senão porque permite
viver
prazenteiramente, evitando os

prazeres que não convém buscar e buscando os que convêm.


Idêntica defesa do
prazer é frequentemente encontrada nas cartas de Francisco
Filelfo (1398-
1481), o qual insiste na identidade entre a virtude e o prazer e
declara que
lhe parece "não apenas tolo, mas completamente louco e fátuo
aquele que
pretende negar o gozo do prazer mais alto, da felicidade e da
beatitude, ao
homem virtuoso". Este aspecto do humanismo atinge porém a sua
expressão máxima com Lourenço Valla.
42

§ 339. LOURENÇO VALLA

Nascido em Roma em 1407, Lourenço Valla vagueou por várias


cidades italianas
e viveu durante
muito tempo na corto de Nápoles-, veio a falecer em Roma em 1457.
A sua obra
mais famosa é o
De voluptate, um diálogo em três partes, no qual se defende a tese
de que o
prazer é o único bem
para o homem e se apresenta uma concepção optimista da natureza,
que
contrasta não só com o

estoicismo ao qual aparece polemicamente oposta, mas até mesmo


com o
ascetismo cristão. O prazer é, segundo Valla, o único fim de toda a
actividade humana. As leis que governam as cidades foram
elaboradas com um
propósito de utilidade, a qual gera o prazer, e todos os governos
visam o
mesmo

fim. As artes liberais, como por exemplo, as que têm por objectivo
satisfazer as exigências necessárias à vida, a medicina, a
jurisprudência, a
poesia e a oratória, têm todas como fim o prazer, ou pelo menos a
utilidade,
que é o que conduz ao prazer (11, 39). A virtude não é senão a
escolha dos
prazeres: procederá bem aquele que preferir a maior à menor
vantagem e a
menor à maior desvantageM (11, 40). Até mesmo o cristão só age
pelo prazer
que todavia para ele é, não o terreno e sim o coles- -. Porém e
diversamente
dos restantes glorificadores do prazer, Lourenço Valla não
considera este
como idêntico à virtude. Não é verdade que só o

justo seja feL-z, pois, pelo contrário, a vida nos


43

mostra frequentemente que assim não é. Na realidade ao cristão


apresenta-se a
seguinte alternativa: ou se inchna para o prazer terreno e renuncia
ao

eterno ou se inclina para este e renuncia àquele (111, 9). Mas quem
espera os
bens eternos não deve gemer, nem sofrer ou acusar Deus porque
lhe faltam os
terrenos. A renúncia do cristão deve ser confiante e jovial, para ser
verdadeiramente sincera e total

(111, 11).
Para Lourenço Valla é a aceitação desta condição que é própria do
homem no mundo, consistindo na consciência da alternativa que esta
condição apresenta.
"Compreendo", diz-nos, "de que te lamentas: de não teres nascido
imortal,
como se a natureza estivesse em dívida para contigo. Se ela não
pode dar-te
mais, e é certo que nem mesmo os
pais podem dar tudo a seus filhos, não lhe estás reconhecido pelo
que
recebeste? Preferirias, certamente, não estar exposto ao risco
quotidiano de
feridas, mordeduras, venenos e contágios. Mas quem assim fosse,
seria imortal
e igual à natureza e a
Deus, ora isto não devemos pedi-lo nem é possível à natureza
concedê-lo".
Glorificador da língua latina, na qual via o sinal da persistente
soberania
espiritual da Roma antiga após a ruína da sua soberania política
(Elegantiarum linguae latinae libri, 1444), Valla provou com

argumentos filológicos num opúsculo famoso, intitulado De falso


credita et
emenlita ConstantÚri donatione declamatio (1440), ser falsa a
doação de
Constantino, ficando deste modo demonstrada a nuli-

44

dade jurídica da pretensão do papado à supremacia política


universal.
Paralelamente, combateu em De

professione religiosorum (1442) a pretensão da Igreja à


exclusividade da
garantia das autênticas relações do homem com Deus nas suas
ordens
religiosas. ValI, a não reconhece qualquer privilégio à vida monacal.
A vida
de Cristo não é custodiada apenas por aqueles que pertencem às
ordens
religiosas mas

sim por todos quantos, dentro ou fora da sociedade dos clérigos,


dedicam a
Deus as suas vidas. A verdadeira religiosidade depende unicamente
da atitude
do indivíduo, que livremente entra em ligação com Deus e não da
adesão a uma
obrigação formal de carácter colectivo. Afirma-se aqui a liberdade
da vida
religiosa contra a sua regulamentação medieval. E na verdade a
exigência de
liberdade, da liberdade do indivíduo como tal, está na base de toda
a posição
de Valla, que a faz valer em nome da própria religião e contra as
ordens
religiosas e também em nome da investigação filosófica, contra o
espírito de
reverência pela tradição escolástica. As suas obras De libero
arbítrio e
Dialecticae disputationes (1439) são dirigidas precisamente contra
o
predomínio de aristotelismo, que considera como a negação ou
limitação da
liberdade de investigação. No prefácio desta última obra e após ter
afirmado
que depois de Pitágoras, mais ninguém teve o nome de sábio mas
apenas o de
filósofo e que sempre os filósofos tiveram a liberdade de dizer
ousadamente o
que pensavam, acrescenta: "Tanto menos suportáveis são os
peripatéticos
modernos que negam aos

45

sequazes de toda e qualquer ~Ia a liberdade de discordarem de


Aristóteles,
como se este fosse sophos e não filósofo e como se ninguém o
houvesse
discutido antes". E depois de haver aludido à variedade de opiniões
das
escolas filosóficas que se seguiram a Aristóteles e à linguagem
bárbara de
Avicena e Averróis, apoda de "homens supersticiosos, insensatos e
indignos de
si mesmos, porque se privam culposamente da faculdade de
procurar a

verdade", aqueles aristotélicos que induzem os próprios discípulos a


jurar
que não mais discuidarão Aristóteles. A mesma afirmação de
liberdade se
encontra em De libero arbítrio. Aqui porém, trata-se antes de uma
lição pela
qual Deus condena ou salva os homens, ultrapassando assim os
limites
consentidos à investigação humana. Nem os homens, nem os anjos
conhecem o
motivo pelo qual a vontade divina torna certos homens
empedernidos no mal e
tem piedade de alguns outros. Valla nega todavia que se trate de
uma
contradição entre a liberdade humana e a presciência divina: assim
como o
conhecimento de um acontecimento presente não determina esse
evento, assim
também o conhecimento futuro não determina necessariamente que
o mesmo

sobrevenha. A presciência divina não é causa dos acontecimentos


futuros, os quais permanecem por isso contingentes. A solução de
Valla para este problema é a escolástica mas o problema em si é
livremente colocado e expresso mediante um mito: Apolo
representa a presciência e Júpiter a omnipotência.
46

§ 340. HUMANISTAS ITALIANOS: FAZIO, MANETTI,


ALBERTI, PALMIERI, SACCHI,
NIZOLIO

Entre os temas preferidos pelos humanistas italianos, dois há que


sobressaem
relativamente a todos os outros: a dignidade do homem e o elogio
da vida
activa. O primeiro aparece-nos tratado num

escrito de Bartolomeu Fazio (nascido em Espézia e falecido em


1457)
intitulado De excellentia et prestantia hominis, insignificante do
ponto de
vista especulativo, e também num escrito análogo de Giannozzo
Manetti (1396-
1459) intitulado De dignitate et excellentia hominis. Nesta obra,
parte-se da
afirmação do carácter divino do homem para se atingir a
formulação da sua
tarefa, expressa na

fórmula agere et intelligere. Agir e compreender significam para


Giannozzo
Manetti "saber e poder governar e dirigir o mundo, o qual foi feito
para o
homem". O reconhecimento da dignidade humana é ao mesmo tempo
reconhecimento da missão de domínio que o homem deve
desempenhar no mundo, consistindo num regnum hominis no sentido
baconiano.
Contrastando com o optimismo ingénuo destas exaltações,
apresenta-se-nos o tom realista e pessimista que domina as obras
de Leão Battista Alberti (1404-1472), nas quais a exigência de
afirmar no mundo o poderio do homem anda ligada ao
reconhecimento das dificuldades e perigos da sua efectivação.
Opondo-se à atribuição de culpas à sorte, por parte dos homens,
Alberti diz-
nos na introdução
47

do seu tratado Da família que não se pode atribuir à sorte a função


de
conservar a virtude, os costumes ou as leis dos homens nem a culpa
das
vicissitudes humanas. "A sorte não pode, nem, ao contrário do que
julgam
alguns idiotas, é assim tão fácil, vencer quem não quer ser vencido.
A sorte
só subjuga quem a ela se submetem. Desta conclusão, porém, apenas
surge para
o homem a obrigação de agir de modo mais enérgico. "Por
conseguinte, parece-
me poder-se acreditar que o homem nasceu, certamente não para
apodrecer
jazendo, mas para viver agindo". Advertência semelhante se

encontra na obra Da vida civil de Mateus Palmieri (1406-75), onde


se afirma a
superioridade da vida consumida ao serviço do bem público sobre a
vida
solitária e devotada somente à meditação. Este tema é igualmente
tratado em
De óptimo cive de Bartolomeu Sacchi (chamado o Platina, nascido
em 1421 e
falecido em Roma em 1481), para quem o homem que se refugia na
solidão é um
egoísta que se esquiva ao cumprimento da obrigação de trabalhar
pelo bem dos
seus semelhantes,
A polémica contra a Escolástica, que já fora defendida
energicamente por
Lourenço Valla, é retomada por Mário Nizolio, nascido em Bersello,
perto de
Módena em 1498 (ou 88) e falecido em
1576. A sua obra principal intitula-se Antibarbarus philosophicus
sive de
veris principiis et vera ratione philosophandi contra
pseudophilosophos
(1553), a

qual é dirigida contra os aristotélicos que falsearam ou entenderam


mal
Aristóteles e contra o próprio Aristóteles, que juntamente com
algumas
verdades,

48

ensinou enorme quantidade de erros. As verdades contêm-se nos


livros de ética
e política, na retórica e nos tratados sobre os animais; os erros,
sobretudo
na lógica e na metafísica. É portanto necessário ler Aristóteles com
espírito
crítico e saber distinguir nele o verdadeiro do falso. E Nizolio
enumera
então as condições essenciais a todo e qualquer progresso rios
estudos
filosóficos: um bom conhecimento das línguas latina e grega, o
conhecimento
das regras gramaticais e da retórica, a leitura assídua dos autores
gregos e
latinos, a liberdade de apreciação e a

clareza de expressão (Antibarb., 1, 1). Para combater Aristóteles,


Nizolio,
adopta o ponto de vista de Ockham. A realidade é sempre
individual. O
universal não é mais do que o acto de compreensão (comprehensio)
do intelecto
pelo qual se abarcam todas as coisas particulares que pertencem ao
mesmo

,género (111, 7). A realidade universal de que falam D


os Escolásticos é destituída de sentido. O universal não passa de um
nome
puro que designa um conjunto de coisas particulares. As ciências
mais
elevadas são a filosofia e a retórica. Constituem ambas um todo ú
nico, tal
como a alma e o corpo, correspondendo a filosofia à alma e a
retórica ao
corpo; ,nenhuma delas pode passar sem a outra e apenas se
distinguem pelas respectivas tarefas pois-. enquanto a filosofia tem
como objectivos o conhecimento da verdade e a rectidão das
acções, a retórica tem como fins a rectidão do pensamento e da
fala, no tocante às coisas naturais e civis (111, 3). A filosofia divide-
se por sua vez em física e política; da primeira faz parte a t"ogia e
da segunda, a ética.
49

A doutrina de Nizolio constitui o último ataque à Escolástica levado


a cabo
com as próprias armas

da Escolástica. O ockhamismo é por ela utilizado para defender a


sabedoria
humanística e a liberdade de investigação, da persistente
reverência pela
tradição aristotélica

§ 341. BOVELO
Em França, o iniciador dos estudos humanísticos mediante o
regresso ao
aristotelismo original foi Jaime Faber (Jacques Lefèvre, 1455-
1537). O
discípulo de Faber, Carlos Bovi,.Uus (Charles Bouillé,
1470 ou 75-1553, aproximadamente) é uma das personalidades mais
notáveis da
filosofia humanista, cujos temas apreende e expõe com grande
liberdade
especulativa. A sua obra mais significativa é De sapiente, no qual
reconhece
ao homem aquela posição central de árbitro e síntese de todo o
mundo natural
que igualmente lhe reconheciam Cusano (§§349 e segs.), Ficino
(§§354 e
scgs.), Pico (§§357 e segs.) e Pomponazzi "§§362 e segs.). "Ao
homem",
escreve, "nada é próprio nem peculiar mas são-lhe comuns todas as
coisas
próprias dos outros seres. Tudo o que é próprio deste ou daquele
ser ou é
mesmo próprio dos seres individualmente considerados, pertence
também ao homem.
O homem transfere para si a natureza de todas as coisas, reflecte
tudo e
imita a natureza inteira. Ao atingir e absorver tudo quanto está na
natureza,
torna-se ele próprio tudo isso. Por conseguinte ele não é este ou
aquele ser
particular nem lhe pertence
50

esta ou aquela essência, mas é simultaneamente todas as coisas".


Por causa
desta sua posição singular o homem encontra-se no cume de toda a
realidade.
Tom esta quatro graus, segundo Bovilo: o ser, a vida, o sentir e o
entender. O mais baixo destes graus, o ser, pertence a todas as
coisas: às pedras, às plantas, aos animais e ao homem. Porém, só
pelo entender é que o ser atinge a consciência de si próprio e assim
conclui o termina o ciclo do seu desenvolvimento. "Definimos a razão
como a força pela qual a mão natureza volta a si própria e pela qual
se completa o ciclo de toda a natureza, sendo esta restituída a si
própria" (De sap., 5).
Até aqui parece que nos encontramos em presença do habitual
ideário
neoplatónico, segundo o

qual a obra do homem é o acabamento racional e místico do mundo.


Na verdade,
porém, as afirmações de Borvilo têm outro valor e tendem a definir
a tarefa
do homem e a alternativa do seu destino. O homem pode com efeito
escolher
livremente entre passar por todos aqueles graus, alcançando na
inteligência o
completamento do ser, ou parar num deles. Se sucumbir ao vício da
inércia e à
moleza medieval, degradar-se-á até ao ponto de não ser mais que
existência
nua, sem forma e por conseguinte sem consciência, se, pelo
contrário, se
elevar até ao grau mais alto, elevará consigo o próprio mundo no seu
total
acabamento (De sap., 1-2). Só por esta segunda via o homem se
tomará num
microcosmo, num minor mundus, levando consigo, na sua verdade o
no seu valor
autêntico, o macrocosmo, o maior mundus. Da decisão do homem,

51

dependerão, ao mesmo tempo, a realização completa e final do


próprio homem e
do mundo. o homem deve formar-se como tal, com virtude(, e arte,
e, ao
formar-se homem, dará ao mesmo tempo ao mundo a sua forma final
porque lhe
confere a perfeição última: a inteligência de si mesmo. "Esta", diz
Bovilo
(De sap., 24) "é a

realização consumada (consumatio) do homem e


consiste na passagem de homem substancial a
homem racional, de homem natural a homem adquirido, de homem
simples a homem
composto, perfeito e sábio". A natureza humana multiplica-se com
esta
passagem e de mónada transforma-se em

díade, de homo em homohomo. O verdadeiro homem é aquele que se


desdobrou no
sábio, ou seja, na consciência que adquiriu de si próprio e
do mundo. Mas a díade traz consigo a tríade. Entre o homem como
puro ser natural e o homem que se forma por si com arte, devem
existir um nexo e uma concordância que são paz e amor, a ligar os
dois termos. A mónada e a díade combinam-se entre si, formando o
tríade homohomoh~ que é a última perfeição do homem (De sap.,
22).
Mas o homem como tal, nada tem de comum com os outros seres da
natureza;
coloca-se numa esfera à parte para onde tudo converge por obra
sua, esfera
essa situada no polo oposto àquele em
que se encontram as outras coisas do mundo.
O homem é o centro de todas as coisas, o espelho no qual estas se
reflectem, não na sua realidade material e sim na sua realidade
verdadeira e ideal.
"Seja qual for o lugar em que colocares todos os
52

seres do mundo, no lugar oposto deverás colocar o homem para que


possa ser o
espelho de tudo". Alude-se aqui claramente pela primeira vez à

subjectividade que é a função do homem como tal e por conseguinte


à
polarização pela qual o mundo acaba por se estruturar entre
objectividade e
subjectividade, entre natureza e homem. Reconhece-se ainda à
subjectividade
humana um poder de iniciativa, que é essencial ao próprio mundo,
uma
vez que o transfigura e o conduz a uma ordem e a unia unidade que
ele por si
só não poderia atingir. "Todas as coisas eram plenamente actuais e
cada Lima
delas permanecia constante no seu grau, no seu lugar e na sua
ordem. Jamais o
homem poderia ter nascido das diversas actualidades, das
diferentes espécies,
da diversidade entre as coisas e luzes do mundo, que por si sós não
poderiam
nem dever:'am misturar-se, confundir-se nem harmonizar-sc.
Portanto, foi
precisamente no exterior das diferenças e propriedades de todas
as coisas, no
polo oposto àquele em que todas se encontram, no nó vital do mundo,
no centro
de tudo, que o homem se formou, como uma criatura. pública,
preenchendo tudo
quanto ficara vazio na natureza com forças, sombras, espécies e
razões". (De
sap., 26). Não poderia ter-se exprimido melhor, na linguagem
neoplatonizante
e escolástica, a originalidade do homem como sujeito, faca à
objectividade da
natureza. Há um mito que exprime, segundo Bovilo, esta
autoformação do homem
que se duplica no tocante à sua naturalidade e se torna sábio: é o
mito de
Prometeu. Assim como Prometeu penetrou na morada divina para

13

ali roubar o fogo e dá-lo aos homens, também o sábio que abandona
o mundo sensível e penetra no espaço celestial, leva ao homem o
lume da sabedoria, deste modo o fortalecendo e reanimando. Com
efeito, o homem, por virtude deste lume "conquista-se a si próprio,
possui-se e permanece seu, ao passo que o ignorante se conserva
devedor à natureza, oprimido pelo homem essencial e sem
pertencer jamais a si próprio". (De sap., 8). Prometeu simboliza
portanto o homem que por si se forma e se possui. Bovilo exprimiu
com grande energia e profundidade o resultado para o qual tende
toda a especulação humanista.
§ 342. humANISTAS FRANCESES, ESPANHóIS E ALEMÃES
A Jaime Lefèvre junta-se em França Podro Ramus (de Ia Ramée,
1515-1572),
autor de numerosas obras nas quais aparecem novamente expostas
a física, a
metafísica e a lógica aristotélicas. Nas suas Dialecticae
institutiones
(1543), procura formular uma lógica ou uma dialéctica diferente da
aristotélica e mais conforme ao funcionamento natural do
pensamento. D3fine a
dialéctica como doetrina disserendi, ou seja, ciência que ensina a
arte de
discutir, a qual deve acompanhar, no seu método e nas suas divisões,
o
comportamento natural do homem quando discute consigo próprio e
com os outros acerca de um qualquer objecto. Este comportamento
natural é o seguinte:
primeiramente
54

medita em silêncio para encontrar o argumento que resolverá


determinada
questão; depois exprime a ideia assim formulada e elaborada
racionalmente, de
tal modo que se preste a responder a toda e qualquer objecção que
lhe seja
dirigida. De acordo com este processo natural de pensar, a
dialéctica na sua
primeira parte será o guia e a

base para a solução das questões; na segunda parte será o guia para
a expressão desta solução de maneira a poder responder às
possíveis perguntas. Por outras palavras, os momentos da dialéctica
serão dois: a elaboração mental de um problema e a sua expressão
verbal apta a enfrentar a discussão.
Ramus constrói sobre estas bases uma exposição minuciosa e
pedante que
conheceu grande êxito nas escolas lógicas da época mas que tem
hoje reduzido
interesse. O que há nele de importante é apenas a exigência de que
parte: a
recondução da forma lógica do discurso à sua forma natural e o
consequente
amoldar da dialéctica ao método próprio de qualquer homem que
pense e
raciocine. Nisto se revela o espírito humanístico da sua dialéctica
que
assina-Ia também, embora a seu

modo, um regresso à natureza e ao homem.


Exigência semelhante se encontra no espanhol Luís Vives, nascido
em Valência em 1492 e falecido em 1540, o qual foi amigo de Tomás
Moro (§ 367) e autor, entre outras, de uma obra enciclopédica
intitulada De disciplinis (1531).
Víves parte também da crítica à lógica aristotélica e opõe-se
sobretudo à
reverência incondicional que esta lógica desperta ainda nas várias
escolas,
reverência esta, na qual

55

Vives vê a causa da decadência das ciências. É necessário, segundo


Vives,
regressar, não à doutrina de Aristóteles, agora já inadequada, mas
ao exemplo de Aristóteles; os verdadeiros discípulos de Aristóteles
não são os que juram pela sua palavra, mas sim os que interrogam a
natureza como ele próprio fez.
Só através da investigação experimental se, pode chegar ao
conhecimento da
natureza; são inúteis as subtilezas aristotélicas. Nos três livros da
obra De
anima et vita (1539), Vives enuncia uma exigência empírica: é
preciso
investigar, não o que é a alma em si, mas sim as propriedades da
alma e

o modo pelo qual estas operam. Popérri, Vives só parcialmente se


conserva
fiel a este princípio, que deveria assinalar a passagem da psicologia
metafísica dos antigos à psicologia empírica, pelo que os seus
resultados são
escassamente significativos. É todavia fácil reconhecer em toda a
sua obra-
que frequentemente cai no formalismo lógico - a
exigência fundamental do humanismo, que é a de um renascimento
da ciência mediante o regresso -não já à letra das doutrinas antigas
mas ao espírito (quer dizer, aos modos e métodos) em que foram
formuladas.
Na Alemanha, quem primeiro enunciou esta exigência foi Rudolfo
Agrícola
(1442-85), autor de uma
obra intitulada De inventione dialectica, na qual assume
relativamente à
dialéctica a mesma posição de Lourenço Valla. Agrícola combate a
reverência
inconsiderada por Aristóteles e afirma a necessidade de joeirar
livremente as
suas doutrinas. Considera ele como indispensáveis o estudo e o
conhecimento
56

dos escritores antigos para se poderem reconduzir as ciências à sua


forma
legítima e o fim do seu livro é o de fornecer, deduzindo-os
precisamente
desses escritores, os meios pelos quais se pode chegar ao
conhecimento das
coisas e à expressão do seu carácter essencial. Agrícola resolve em
sentido
nominalista. o problema dos universais. Certas coisas apresentam
propriedades
idênticas e essas propriedades comuns constituem precisamente o
universal. O
universal não é portanto outra coisa senão a semelhança que as
coisas
apresentam nas

suas propriedades essenciais. Porém a importância de Agrícola


reside, mais do
que nestas doutrinas e na análise por si feita das formas retóricas
do
discurso, em ter sido o primeiro que na Alemanha contribuiu para
aquele
regresso ao classicismo que constitui a mensagem do humanismo..

§ 343. MONTAIGNE
O regresso do homem a si mesmo, que constitui a essência do
movimento de renovação renascentista, encontra a sua expressão
culminante na obra de Montaigne.
Miguel de Montaigne nasceu em 23 de Fevereiro de 1533 no castelo
de Montaigne
no Périgord, em França. Educado pelo pai com um método que
excluía todo e
qualquer constrangimento ou severidade, aprendeu o latim como
língua materna
através de um perceptor que não sabia francês. Estudou direito e
tornou-se
conselheiro no parla-
57
mento de Bordéus (1557). o seu primeiro trabalho literário foi a
tradução de
uma obra do teólogo cataIão Raimundo Sabunde (falecido em
Toulouse em
1436) intitulada Liber creaturarwn ou Theologia naturalis, livro de
apologética que procurava demonstrar a verdade da fé católica mais
pelo
estudo das criaturas e do homem, do que com o apoio dos textos
sagrados e dos
doutores da igreja. Em 1571 retirou-se para o seu castelo com o fim
de se
dedicar aos seus estudos. Os primeiros frutos do seu trabalho
(Ensaios, 1, 2-
20, 32-38, 40-48) são simples compilações de factos e sentenças,
obtidas a
partir de diversos escritores antigos e modernos e nas quais não
surge ainda
a personalidade do autor. Seguidamente, porém, essa mesma
personalidade
começa a ser o verdadeiro objecto central da meditação de
Montaigne, a qual
assume o carácter de "pintura do eu" (1, 26, 31; H, 7, 10, 17, 37).
Naquele
mesmo ano, deixou a França e viajou pela Suíça, Alemanha e Itália
onde, em
Roma, passou o inverno de 1580-81. Tendo sido nomeado prefeito
de Bordéus,
regressou à pátria, mas as preocupações do cargo não o impediram
de se
dedicar ao estudo e à meditação. Em 1582 publicou uma segunda
edição dos
Ensaios enriquecida com algumas adendas, publicou outra em 1588,
contendo
numerosas adendas aos primeiros dois livros e ainda um terceiro
livro. Neste
último, a pintura do eu constituia a parte predominante. Montaigne
trabalhava
numa nova edição da sua obra, com ulteriores aperfeiçoamentos
quando em 13 de
Setembro de 1592 faleceu no seu castelo. O título da obra de
Montaigne indica
58

claramente o carácter da mesma. Ensaios quer dizer experiências (e


não
tentativas); Montaigne pretende descobrir as experiências humanas
expressas nas obras de autores antigos e modernos e pô-las à
prova, relacionando-as com as suas próprias experiências.
O olhar continuamente virado para si próprio, a
meditação interior não já religiosa mas laica e filosófica e incidindo
portanto não apenas sobre o próprio eu espiritual, mas também
sobre todos os
assuntos e coisas humanas e símultâneamente o diálogo permanente
com os
outros e o contínuo confronto entre as experiências próprias e as
alheias,
constituem os traços essenciais da obra de Montaigne. É verdade
que esta não
é uma filosofia no sentido de conter um complexo sistemático de
doutrinas; é
porém um verdadeiro e autêntico filosofar no sentido moderno da
palavra,
podendo afirmar-se que Descartes e Pascal são os seus mais
directos
descendentes. Face a esta posição, perdem valor as caracterizações
sobre as
quais habitualmente se insiste com o fim de determinar a situação
histórica
do seu pensamento. Na realidade, ele passou de uma orientação
estóica a uma
orientação céptica para acabar por encontrar o seu equilíbrio numa
posição socrática; só esta última constitui a substância da sua
pessoa e do
seu pensamento. O estoicismo e o epicurismo são, para ele, não já
doutrinas
às quaiis deva permanecer ligado, mas sim experiências através das
quais
atinge o equilíbrio que lhe é próprio. A partir da experiência do
estoicismo,
chega ao reconhecimento do estado de dependência em que o
homem se encontra
relativamente às
59

coisas; a partir da experiência do cepticismo, atinge o meio de se


libertar,
tanto quanto possível, desta dependência e de reconduzir as coisas
ao seu
justo valor. Assim, por exemplo, põe em evidência a preocupação
que liga o
homem ao futuro. "Não estamos nunca junto de nós mas sempre
para além de nós
mesmos. O temor, o desejo e a esperança lançam-nos para o futuro
e tiram-nos
o sentimento e a consideração do que é, levando-nos, a
interessarmo-nos; pelo
que será, quer dizer, quando já não existirmos" (1, 3, p. 14). Agarra-
se de
novo à ideia estóica segundo a qual os homens são atormentados
pelas opiniões
que têm das coisas e não pelas coisas em si, para promover um alívio
da
"Miserável. condição humana", reconhecendo aos homens a
faculdade de
desprezar aquelas opiniões ou de as aproveitar no sentido do bem
(1, 14, p.
63). Por outro lado, aproveita para o mesmo fim a experiência
céptica, a qual
deve curar os homens da presunção, que é a sua enfermidade
natural original,
e conduzi-los a uma aceitação lúcida e serena da sua condição. É
este o
espírito que anima o mais longo e difundido capitulo dos Ensaios (1,
12), a
Apologia de Raimundo Sabunde. Montaigno faz da condição humana
uma diagnose
amarga e impiedosa que será depois apropriada por Pascal. "Que
pode imaginar-
se de maIs ridículo do que esta criatura miserável e mesquinha que
nem sequer
é senhora de si própria, e se encontra exposta às ofensas
provenientes de
todas as coisas, dizendo-se dona e senhora do universo, quando nem
ao menos
possui a faculdade de conhecer a minima parte deste, quanto mais
60

de dirigi-la?" O homem deve curar-se da presunção de que a


natureza parece tê-lo dotado com o fim de o consolar da sua
miserável condição (Ib., p. 227).
Montaigne em-prega expressões e frases que reaparecerão depois
em Pascal: "Um
antigo a quem se reprovava o fazer profissão de filosofia, sem que
todavia
lhe ligasse grande importância, respondeu que isso é que era
realmente
filosofar" (Ib., p. 262).
O mesmo dizia Pascal: "Brincar com a filosofia é filosofar
realmente"
(Pensées, 4). Por outro lado, este cepticismo leva Montaigne a
avaliar
adequadamente tudo quanto está verdadeiramente na posse do
homem, a começar
pelo conhecimento sensível. "A ciência começa e resolve-se nos
sentidos. Não
seríamos mais do que pedras se não soubéssemos o que são o som, o
cheiro, a
luz, o sabor, a medida, o peso, a moleza, a dureza, a aspereza, a cor,
a
lisura, a largueza e a profundidade. São estas as

raízes e os princípios de todo o edifício da nossa ciência" (Essais, 1,


12,
p. 379). "0 privilégio dos sentidos é o de constituírem o extremo
limite da
nossa experiência; nada há para além deles que nos possa servir
para os
descobrirmos e nenhum sentido pode descobrir outro". (Ib., p. 380).
Ao
conhecimento sensível falta porém um critério seguro para se
poderem
distinguir as aparências falsas das verdadeiras. Não temos maneira
de
controlar as percepções sensíveis, mediante o confronto com as
coisas que as
determinam em nós; por conseguinte não podemos verificar a sua
verdade, assim como quem não conhece
Sócrates, não poderá dizer se o seu retrato se lhe assemelha. "Não
comunicamos

61

com o ser porque toda a natureza humana se encontra sempre entre


o nascimento e a morte e não alcança de si própria mais que
uma aparência obscura e sombria e uma débil e incerta opinião. E se
por
acaso o nosso pensamento se obstinar em agarrar o seu ser, isso
será o mesmo
que pretender agarrar água na mão fechada: quanto mais se
apertar e comprimir aquilo que por sua natureza se escapa por
todos os lados, mais será perdido por aquele que queria apertar e
agarram (Ib., p. 399).
Estoicismo e cepticismo foram as experiências de que Montaigne se
serviu para
aclarar a condição humana. Mas o estudo do homem determina-se
melhor nele, como estudo daquele homem-indivíduo que ele próprio
é. Os seus últimos Ensaios assumem sempre um carácter
autobiográfico pelo qual o filosofar se toma num contínuo
experimentar-se a si próprio, numa contínua explicação do eu a si
próprio. Já na introdução da obra Montaigne dissera:
"Sou eu próprio o assunto do meu livro"; no terceiro livro acaba por
definir
claramente o seu filosofar como uma incessante experiência de si
próprio. "Se
a minha alma pudesse criar raízes, eu não me experimentaria;
resolver-me-ia
(je ne m "essaierois pas, je me resoudrois). FJa porém está sempre
em
aprendizagem e em prova" (111, 2, p. 29). Montaigne possui um
sentido sempre
atento da condição problemática da existência; para ele, a
existência é um
problema sempre aberto e uma

experiência contínua que não poderá nunca encerrar-se


definitivamente e deve por conseguinte explicar-se
incessantemente a
si própria. Não importa
62

para obter esta explicação o considerar-se uma vida humilde e sem


brilho. "A
filosofia moral pode ter por objecto com igual êxito, tanto uma vida
popular
e privada como uma outra de mais rica substância, uma vez que cada
homem traz
em si, inteira, a

forma da condição humana". Por esse motivo, não pretende


comunicar com os outros por meio de qualquer sinal especial e
estranho mas unicamente através do seu ser universal, "como
Miguel de Montaigne e não como gramático, poeta ou jurisconsulto"
(Ib.). E declara contentar-se consigo próprio, não com a consciência
de um anjo ou de um cavalo mas sim com a consciência de um
homem.
"Quando falo, estou a investigar, a ignorar e a
reportar-me decididamente às opiniões comuns o
,legítimas. Não ensino absolutamente nada; apenas conto". (Ib., p.
30). Este
filosofar autobiográfico que, ao dirigir-se à humanidade do próprio
ou,
compreende e abarca igualmente a singularidade do indivíduo e a
universalidade máxima da condição humana, é o fruto mais maduro
do humanismo e assinala o início da filosofia moderna. Descartes, no
Discurso do método, procederá da mesma forma para chegar ao
princípio fundamental do saber científico: fará a história dos seus
estudos, das suas dúvidas, da sua investigação.
Desta atitude nasce aquela aceitação serena da condição humana,
igualmente
afastada da exaltação e do desânimo, que é característica de
Montaigne. Ã
afirmação de Séneca (Quaest. nat., proem): "Coisa vil e abjecta é o
homem se
não se elevar acima da humanidade", responde ele: "Aqui está uma
divisa
63

espiritual e um propósito tão inútil quanto, absurdo-, é


simultaneamente
impossível e monstruoso fechar um punho que seja maior do que a
mão ou dar um
passo maior do que o permitido pela perna. Nem o homem pode
elevar-se acima de si próprio e da humanidade, pois não pode ver
senão com os seus olhos, nem
aquilo que se escapa à sua apreensão".
O homem não pode nem deve procurar ser senão homem. Montaigne
acrescenta, na
verdade, que poderá consegui-lo com a ajuda divina; é porém
evidente que os
efeitos da graça sobrenatural estão fora das possibilidades e
limites
humanos. O homem deve aceitar-se tal como é. Esta aceitação é o
tema de um
dos Ensaios mais notáveis, o que trata do arrependimento (111, 2),
do qual se
extraíram os passos ora citados. Aí, Montaigne, embora dando valor
positivo
àquele arrependimento moral que consiste em empenharmo-nos
sèriamente na reforma de nós próprios, exclui e
condena o arrependimento que consiste numa reprovação da
condição humana por
parte do homem. "Posso desejar, diz-nos, "ser
diferente; posso condenar e desgostar-me da minha forma universal
e suplicar
a Deus a minha reforma radical e o perdão da minha natural
fraqueza. A isto
não posso porém chamar arrependimento, tal como
não posso chamar arrependimento ao desgosto por não ser anjo ou
Catão. As
minhas acções regulam-se e conformam-se por aquilo que sou e pela
minha
condição. Melhor, não posso fazer. O arrependimento não respeita
propriamente
às coisas que escapam ao nosso poder como não respeita também à
aspiração. Imagino inúmeras
naturezas màs ilus-
64

MONTAIGNE

tres e moderadas do que a minha; com isso porém, não melhoro as


minhas
faculdades, tal como o meu braço o o meu espirito não se tomam
vigorosos só
porque concebo outros que o são". (Ib., p. 40). Fantasiar uma
condição melhor
e mais elevada do que aquela em que o homem se encontra
efectivamente e
cultivar a aspiração àquela e o desprezo por esta, é atitude inútil e
perniciosa. Por outro lado, a morte é elemento constitutivo da
condição
humana: "Não morres por estares doente; morres porque estás
vivo" (HI, 13).
"A morte mistura-se e confunde-se por toda a parte com a nossa
vida", não
tanto por consumir o nosso organismo como

porque a sua necessidade inelutável se impõe ao


nosso espírito. E "quem receia sofrer, sofre já por aquilo que
receia"
(Ib.). Por isso, quem ensinasse os homens a morrer, ensiná-los-ia a
viver;
este ensinamento porém, exclui o modo da morte. Logo que o homem
sabe que a sua condição é perdível, dispõe-se a perdê-la sem
desgosto. A ideia da morte torna a vida mais estimável. "Eu gozo-a
duas vezes mais do que os outros", diz Montaigne (HI, 13) "porque a
medida do gozo depende em maior ou menor grau do empenho que
nisso pomos... À medida que a posse da vida se vai tornando mais
breve, necessário é que eu a torne mais profunda e plena". A ideia
da morte suscita pois o desejo de viver, de viver mais profunda e
plenamente.
O humanismo atinge assim em Montaigne o seu equilíbrio. O homem
já não se
exalta e antes se acoita tal como é. Se a primeira consciência da
sua
subjectividade individual e histórica, levou o homem,

65
no Renascimento, à exaltação da sua situação privilegiada, o
aprofundamento
desta consciência, no

seu contínuo experimentar-se e pôr-se à prova, conduziu-o ao


reconhecimento dos seus limites e à lúcida aceitação de si próprio.
Montaigne representa precisamente esta segunda fase do
humanismo renascentista e é justamente através desta segundo
fase que o humanismo se transforma na filosofia moderna, abrindo
caminho a Descartes e a Pascal.
§ 344. CHARRON, SANCHEZ, LIPSIO
Directamente ligado a Montaigne, está Pie= Charron que foi seu
amigo e nele
encontrou a inspiração fundamental do seu pensamento. Nascido em
Paris em
1541, estudou direito e fez-se advogado; porém, sob o impulso de
uma vocação
vinda mais tarde mudou para a teologia e fez-se padre. Viveu
durante muito
tempo em Bordéus e aí conheceu Montaigne, ao qual se ligou por
amizade. Foi
cónego em Condom e faleceu em Paris em 1603. Escreveu dois
livros. O
primeiro, intitulado Três verdades contra todos os ateus, idólatras,
judeus,
maometanos, heréticos e cismáticos (1593), constitui uma apologia
da igreja
católica. As três verdades são as seguintes: há um Deus e uma só
religião
verdadeira: a religião cristã é a única verdadeira; só a igreja
católica é
verdadeira. O outro livro, intitulado Da sabedoria está em
nítida
contradição com o primeiro: com efeito, consiste na apologia de
uma
sabedoria profana e baseada no conheci-
66

mento do homem. A contradição residia na própria natureza de


Charron e era
por ele procurada e teorizada. "É preciso", diz-nos (De la sagesse,
11, 2, 13), "que saibamos
disfinguirmo-nos e separarmo-nos a nós próprios dos nossos cargos
públicos;
cada um de nós desempenha dois papéis e faz duas personagens,
uma alheia e
aparente e a outra própria e essencial. É necessário saber
distinguir a pele
da camisa: o homem hábil poderá desempenhar bem o seu cargo mas
não deixará
por isso de julgar devidamente a estupidez, o vício e a astúcia que
aí se
aninham... É necessário servirmo-nos e valermo-nos do mundo tal
como se nos
depara, considerando-o porém como coisa estranha a nós próprios e
sabendo
gozar-nos de nós próprios à parte, através da comunicação com um
bom
confidente ou pelo menos connosco próprios". Aceitar e teorizar
uma
contradição deste tipo, significa já assumir uma

posição céptica fundamental; ora esta é precisa- ,mente a posição


de
Charron. Nesta posição, porém, tal como no cepticismo de
Montaigne, está
implícita a convicção de que a vida humana é uma experiência
contínua que o
homem faz consigo próprio e com os outros. E na verdade, diz-nos
Charron
(Ib., 1, 1, 1): "A verdadeira ciência e o verdadeiro estudo do homem
consistem no próprio homem". Em primeiro lugar, está consciente
dos limites
do homem e é precisamente por causa destes limites que não
considera que a
alma do homem seja absolutamente incorpórea. Tudo quanto é finito
é, como
tal, determinado por limites espaciais e por essa razão não se
apresenta
destituído de corporei-
67

dado. A alma, uma vez criada, é corpórea, embora

a sua corporeidade seja invisível e incorruptível (Ib., 1, 8, 4). Em


virtude
dos seus limites, o homem não pode alcançar a verdade. Se bom que
o homem
exista para procurar a verdade, o possuí-la só a Deus pertence.
Mesmo que
alguma verdade chegue às mãos do homem, terá sido por mero
acaso; ele não
saberá segurá-la nem distingui-la da mentira (Ib., 1, 15, 11). Por
esse
motivo o homem está destinado a viver em permanente dúvida,
sendo a
filosofia céptica a única verdadeira (Ib., 11, 2, 5).

Por conseguinte o princípio da sabedoria consiste no


reconhecimento destes Emites, resultando daí "a universal e plena
liberdade do espírito". É preciso que nos libertemos de todos os
pressupostos
dogmáticos e nos tomemos independentes de lodo e qualquer
preconceito. Nisto
consiste a verdadeira sabedoria (preud'homie), uma sabedoria livro
e franca, forte e
generosa, risonha e jovial, igual, uniforme e constante", uma
sabedoria "cujo
principal incentivo reside na lei da natureza, que é como quem diz na
equidade e na razão universais que **briffiam e resplandecem em
cada um de
nós". Quem age segundo a razão natural, age ao mesmo
tempo segundo Deus, de onde irradia a razão, e segundo o próprio
que age, do
qual a razão constitui o elemento mais rico e mais nobre. (Ib., 11,
3, 4). Esta sabedoria natural é independente da ,religião. É
necessário que o
homem seja honesto, não por causa do paraíso ou do inferno, mas
por
obediência à ordem que lhe vem da razão. A religião deve aprovar,
autorizar e
rematar o comando
68

da razão. A religião é posterior à sabedoria (Ib., II,


5, 29).

De natureza diferente é o cepticismo do Francisco Sanchos 1,


nascido por
volta de 1552 em Braga, Portugal, mas formado em França, tendo
sido professor
de medicina em MontípeU, ier e Toulouse, onde faleceu em 1632. É
autor de uma
obra intitulada Quod ?úhiI seitur, terminada em 1576 mas só
publicada em
1581. Propõe-se Sanches, adoptar a dúvida como processo de
pesquisa de
um método verdadeiro e de um saber objectivo mas acaba por
concluir que o
homem não possui nem um nem
outro. ]Parte da crítica ao procedimento si-logístico da doutrina
escolástica
que pretenderia tirar conclusões necessárias com base em
princípios universais e obrigar à
concordância sobre coisas de que não se tem um conhecimento
directo. Quem não
percebe porém, por si próprio, determinada coisa, não poderá ser
forçado a
percebê-la por nenhuma demonstração. A verdadeira ciência, se
existisse,
seria livre e própria de uma mente livre: seria a "consciência
perfeita do
objecto". Mas esta ciência não foi dada aos homens. Nem as coisas
se dei=
agarrar, nem os homens têm meio de as agarrar,

1 N. T. -Não estão certas as datas citadas por Abbagnano. Este


filósofo e médico de formação francesa e italiana, nasceu em 1550
e foi baptizado em Braga em 25-7-1551, na igreja paroquial de S.
João do Souto. Faleceu em 1622. n duvidosa a sua nacionalidade
real.
69

nem poderiam alguma vez agarrá-las completamente. A conclusão é-


nos indicada
pelo próprio título da obra: nil scitur. Porém esta conclusão não
pode ser
tirada nem mantida dogmaticamente; o homem deve atingi-Ia e
tomar
consciência dela, através de uma pesquisa incessante, indagando por
todos os lados os limites do conhecimento e dando-se conta da
debilidade intrínseca deste último.
O cepticismo não constitui portanto para Sanches uma renúncia à
investigação mas antes um estíríiulo à pesquisa e à **crítica
metódica de todo o saber.
Em Charron e Sanches, o regresso ao cepticismo aparece-nos como
meio de
renovação do homem e
da sua ciência. Para o mesmo fim se dirige o
regresso ao estoicismo sustentado por Justo Lípsio, nascido em
Over-Issche,
perto de Bruxelas, em
1547 e falecido em 1606. Pretendeu Lípsio fazer ressurgir o
estoicismo
antigo, sobretudo o romano, após tê-lo descoberto nas suas fontes
originais,
especialmente em Séneca. As suas obras principais são Manoductio
ad
philosophiam stoicam, Physiologia stoícorum e De constantia. O
tema central
da sua reelaboração é constituído pela doutrina da providência. Da
providência divina depende a

ordem das coisas, segundo Lípsio; e desta ordem depende a


fatalidade
imutável de todas as coisas do mundo, ou seja, o destino. Este,
portanto,
não é senão a acção necessária da ordem cósmica dependente da
providência
divina (De const., I,
17-19). Ora é precisamente nesta doutrina que Lípsio considera
existir a
força de renovação do estoicismo. Com efeito, é da aceitação do
destino

70

cósmico que deriva a virtude fundamental do homem, ou seja, a


perseverança
que não se deixa demover por qualquer vicis&itude exterior e que
apesar de
todas as lutas e dificuldades, dá ao homem o equilíbrio e a paz
interior
(Ib., 1, 20). Quem tiver conseguido atingir a sabedoria estóica,
saberá que
em todos os casos as coisas acontecem como devem acontecer e por
conseguinte só resta ao homem aceitá-las como são.
NOTA BIBLIOGRáFICA
§ 332. Em H. BARO'N, Renaissance in Italien encontra-se uma
resenha dos estudos sobre o renascimento (Archiv. für
Kulturgeschichte, 1927 e 1931). Cfr. também o axtigo respectivo
de F. Chabod na Enc. Ital. e todas as obras a seguir indicadas, em
especial as de Garin. ] É fundamental a obra de JACOB
BURCKHARDT, A civilização do Renascimento na Itália, trad.
Valbusa, Florença, 1876. São notáveis os trabalhos de G. DILTHEY,
aparecidos sob o título A anãUse do homem e a intuição da
natureza, entre 1891 e 1900 (trad. ital.
Sanna, Veneza, 1926), bem como os de G. VOICT, Die
Wiederbelebung des
klassischen Altertums, Berlim, 3.1 ediç., 1893. A concepção
idealista-que
consiste principalmente no desenvolvimento das teses de
Burckh<%rdt-é exposta
na obra de G. GENTILE, Giordano Bruno e o pensamento da
Renascença, Florença,
1920 (novamente publicado sob o título O pensamento italiano da
Renascença,
Florença, 1940). Elementos fundamentais, contidos em E.
CASSIRER, O indivíduo
e o cosmos na filosofia do Renascimento, trad. ital. Federíci,
Florença, 1935
e
em M. BARON, The crisís of the Early Italian Renaissance, 2 vols.,
Princeton,
1955. A mais equilibrada e
71

autorizada interpretação do Renascimento, baseada numa


documentação vastíssima,
é a de E. GARIN a quã1 se contém principalmente em O humanismo
italiano,
Bari, 1952; Idade Média e Renascimento, Bari,
1954; A educação na Europa (1400-1600), Bari, 1957; A cultura
filosófica do
Renascimento italiano, Florença, 1961. Considera-se implicita a
referência a

e~ obras, a propósito de todos os autores italianos mencionados no


presente capítúlo.
§ 333. Sobre a intevpretação que insiste na continuidade entre o
humanismo renascentista e a Idade Média, efr. G. TOFFANIN,
História do humanismo, Roma, 1933, 1939 2 e os autores
mencionados no § 335.
§ 334. A origem religiosa, do conceito de renascimento foi
sustentada pela
primeira vez por R. HILDEBRAND, Zur sogenannten Renaissance,
em "Zeitschrift
für den deutschen Unterricht", Leipzig, 1892, vol. VI, p. 377 e
segs. (e
depois em Beitrãge zum

deutschen Unterricht, Leipzig, 1897, p. 279 e segs.). Aquela origem


fica definitivamente demonstrada após os estudos fundamentais de
K. BURDACH, Reforma, renascimento, humanismo, trad. ital.
Cantimori, Florença, 1935. Para toda e qualquer investigação no
mesmo sentido deverão oonsultar-se as referências contidas nesta
obra. Importante é taxnbém WALSER, Studien sur
Weltanschauung der Renaissance, BasiWela, 1920.
§ 335. A conexão entre as origens da ciência e o aristotelismo
medieval foi
pela primeira vez salientada por P. Duimm, Études sur Léonard de
Vinci.
1906-13 e seguidamente desenvolvida por numerosos autores, entre
os quais efr. espeoiahnente M. CLAGETT, The Science of
Mechanics in the MiddIe Ages, 1959 e John Randall Jr., The
Schoot of Padua and the Emergence, of Modern Science, 1961.
§ 336. Sobre o significado de Dante relativamente ao
Renascimento: BURDACH, ob cit., passim.
72

Sobre as características medievais do pensamento de Dante: B.


NARDI, Dante e a cultura medieval, Bar!, 1942. No mundo de Dante,
Roma, 1944.
; 337. Sobre a posição de Petrarca no Renascimento: DILTHEY, ob.
cit., vol.
I, p. 25 e segs.; Burdach, ob cit., passim; Oassirer, ob. cit., passim.
§ 338. Sobre os filõsofos do século italiano de Quatrocentos, ver a
antologia de E. GARIN, Filósofos italianos de Quatrocentos,
Florença, 1942, que contém igualmente informações biográficas e
bibliográficas, além das outras obras de GARIN já mencionadas. De
Col~o Salutati, De nobilitate legum et medicinae editado -em 154.2
em Florença (edição e tradução ftaliana de E. GARIN, Florença,
1948); a obra intitu~ De tyranne (por VON MARTIN, Leipzig, 1913
a por P. ERCOM, Leipzig, 1914); e o Epistolário (por NOVATI, Roma,
1891-1905).
Os Diálogos de LEONARDO BRUNI foram editados por Mmer,
Livorno, 1889 e o Isagogicon Por BARON, do qual é fundamentã1 a
monografia intitulada Leonardo Bruni, aretino, Deipzig, 1928.
A carta d-, CosmF, RAIMONDI, na mencionada antologia de Garim
Dos tratados morais e das epistolas de Ffi~ há edições
quatrocentistas e quinhentistas.
§ 339. As obras de Valla foram publicadas em Basileia, em 1540 e
1543. Sobre
Vaffia: Gentile, A filosofia italiana, desde o fim da escolástica até
ao
início do Renascimento, p. 266-288; Saitta, Filosofia italiana o
humanismo,
Florença, 1928, p. 69-78.

§ 340. A obra de B. FAZIO aparece editada em S-andeo, Epitomae


de regibus
Siciliae et Apuliae, Hanover, 1611. A obra de GIANNOZO
MANETTI foi publicada
em Basileia em 1532. As obras de Alberti fomm pubIteadas. por
BONUCCI em
Plorença, 1843-49, em 5 vols.; uma outra edição foi publicada por
MANCINI,
Florença, 1890. Sobre Alberti: Gentíle, Giordano Bruno, p. 149-152.
O Da vida
civil de Palmieri foi
73

publicado em 1529 e o De optimo cive de Platina teve algumas


edições
quatrocentistas.

As obras de NIZOLIO foram publicadas em Parma em 1553 e


reeditadas por LEIBNiz em Franefort, nes anos de 1671 e 1674.
§ 341. A obra De sapiente de BOVILO foi novamente editada por
KLIBANSKI, em apêndice à edição original alemã da ob. cit.
de CASSIRER. As obras de BOVILO tinham sido publicadas em
Paris, em 1512.
Sobre este autor: CASSIRER, ob. cit., p. 142 e segs.
§ 312. As obras de PEDRO RAMUS conheceram numerosas edições
nos anos de
quinhentos e seiscentos. Sobre este autor: Waddingtou, De P. Rami
vita,
seriptis philosophia, Paris, 1849 (edàção, francesa, Paris, 1855); W.
J. Ong,
Ramus Method and Decay of Dialogue, Cambridge, Mass., 1958; R.
Hooykaas, Humanisme, science et reforme-Pierre de la Ramée,
Leiden, 1958.
A obra De disciplinis de L. Vives conheceu inúmeras edições a partir
da de Brügge, 1531. S<>bre este autor: Rivari, A sabedoria
psicológica e pedagógica de L. V., Bolonha, 1922.
As obras de Agricola foram publicadas em Colónia em 1539 e
conheceram seguidamente numerosas edições. Sobre o humanismo
alemão: Burdach, Deutsche Renaissance, Berlim, 1916.
§ 343. A melhor edição dos Ensaios de Montaigne é a que vem
publicada na
colecção das Universi,dades de França, a cargo de J. PLATTARD,
Paris,
1931-32 (mencionada no texto), a qual reproduz a
edição elaborada por Montaigne em 1588, acrescida das adendas e
correcções manuscritas do próprio Montaigne. Dilthey, ob. cit., vol.
1, p. 47 e segs.;
Strowski, Montaigne, Paris, 1906; Weigand, Montaig?ie, Mónaco,
1911.
§ 344. A obra Trois vérités de Charrou fed pela primeira vez
publicada em
Bordéus, em 1593 e o De

74

Ia sagesse na mesma cidade em 1601; Obra, 2 vols., Paris, 1635.

De Sanches: Quod nihil seitur, Lyon, 1581, Francfort, 1618;


Tractatus philosophici, RGterdão, 1649. MENÉNDEZ Y PELAY0,
Ensayos de critica philosophica, vol. II, Madrid, 1892, 195-366;
Giarratano, O pensamento de P. S., Nápoles, 1903.
De Justo Lípsio: Obra, Wesel, 1675. Dilthey, A análise do homem,
cit., p. 245 e segs.; Del Prai na "Revista de História da Filosofia,",
1946.
75

li

RENASCIMENTO E POLÍTICA
§ 345. MAQUIAVEL
O humanismo renascentista encontra-se estreitamente ligado a uma
exigência de
renovação política. Pretende-se renovar o homem, não apenas na
sua individualidade mas também na sua vida em sociedade; por esse
motivo,
empreende-se uma análise da comunidade política, c~ o fim de lhe
descobrir o
fundamento e de -reportar a este as formas históricas daquela. O
regresso às
origens, que até mesmo neste campo constitui a palavra de ordem
da renovação,
é por um lado entendido como o regresso de uma comunidade
histórica
determinada, povo ou nação, às suas origens históricas, às quais
poderá ir
buscar nova força e novo vigor, e por outro, como regresso à base
estável e
universal de toda e qualquer comunidade,

77

ou seja, como reajustamento s reorganização da comunidade sobre


a sua base natural. Historicismo e jusnaturalismo são os dois
aspectos em que se concretiza a vontade política renovadora do
Renascimento. O primeiro destes aspectos remonta, como já se viu
(§ 334), ao neoplatonismo na medida em que este tenha perdido o
seu carácter teológico.
O segundo aspecto encontra a sua raiz no estoicismo antigo e na
doutrina do direito natural que dominara a antiguidade e a idade
Média; até mesmo este tende a perder as suas implicações
teológicas. Para os Estóicos como para os escritores medievais, a
ordem natural da comunidade humana identificava-se, por um lado
com a razão e por outro com Deus; é sobre a primeira destas
identidades que insistem os escritores do Renascimento.
O direito natural, base de toda e qualquer comunidade humana é
ditado pela própria razão.
Nicolau Maquiavel (1469-1527) aparece-nos como
o iniciador da orientação historicista. Toda a sua
vida foi dedicada à tentativa de criação de uma
comunidade italiana. Maquiavel via e reconhecia como única via para
essa
criação, um regresso às origens da história italiana. A investigação
historiográfica dirigida ao reconhecimento destas origens aparece
nele
estreitamente ligada ao labor positivo de reconstrução da unidade
política do
povo italiano, de tal modo que a sua personalidade se

defino precisamente pela unidade entre a tarefa política e a


-Investigação
historiográfica. O Príncipe (1513) e os Discursos sobre a primeira
década de
Tito Lívio contêm a revelação daquela unidade
78

entre o juízo político e o juízo histórico que constitui a


característica fundamental de Maquiavel e faz dele o primeiro
escritor político da idade moderna.
O primeiro capítulo da terceira parte dos Discursos é dedicado à
explicação
daquele regresso aos princípios que constitui a palavra renovadora
do
Renascimento em tudo quanto diz respeito ao

homem e à sua vida em sociedade. Segundo Maquiavel, a única


maneira pela qual
as comunidades podem renovar-se e fugir assim à decadência e à
ruína,
consiste em regressar aos seus princípios, pois todos os princípios
contêm
alguma bondade na qual aquelas poderão retomar a sua
vitalidade e a sua força primitivas. Nos estados, o
regresso aos princípios faz-se, ou por acidente extrínseco ou por
prudência
intrínseca. Assim aconteceu em Roma onde os reveses deram causa
a que os homens "se reconhecessem"
nas ordens da sua convivência e onde instituições adequadas como a
dos
tribunos da plebe e a dos censores, ou até mesmo indivíduos de
excepcional
virtude, desempenharam a tarefa de chamar novamente os cidadãos
às suas
virtudes primitivas. Mas até as próprias comunidades religiosas se
salvam
apenas pelo regresso aos princípios. A religião cristã ter-se-ia
extinguido
completamente se não tivesse regressado à sua origem por
intermédio de S. Francisco e de S. Doraingos, que com a pobreza e
o exemplo da vida de Cristo lhe restituíram a sua força primitiva.
Mas o regresso aos princípios pressupõe duas condições: em
primeiro lugar que
os princípios a
79

que se deve regressar, as origens históricas da comunidade, sejam


claramente
reconhecidos e entendidos com rectidão; em segundo lugar, que
sejam
reconhecidas na sua verdade efectiva as posiições de facto, a
partir das quáis
ou através das quàis o
regresso deve ter lugar. A objectividade histórica e o realismo
político são
pois as condições fundamentais do regresso aos princípios. Estas
duas
condições constituem na verdade as características, da obra de
Maquiavel, o qual, por um lado, se volta para a história, procurando
encará-la na sua objectividade, no seu fundamento permanente, que
é a substância imutável da natureza humana, e por outro, observa a
realidade política que o rodeia e ,a vida social na sua verdade
efectiva, renunciando a toda e qualquer atitude de êxtase perante
repúblicas e principados "cuja existência real jamais foi vista ou
reconhecida".
Relativamente ao primeiro ponto, isto é, quanto à forma original a
que a
comunidade deve regressar,,Maquiavel acaba por reconhecê-la na
república
livre, tal como existiu nos primeiros tempos da nação romana. Por
mais
abstracto que seja o imaginar uni tipo ideal de estado, Maquiavel
não pode
deixar de determinar, através da sua investigação histórica--- a
forma
original da comunidade política ,italiana, à qual esta deve regressar.
Porém,
esta forma, baseada na liberdade e nos bons costumes é uma
metalongínqua e
difícil de atingir. Incumbe ao político, segundo Maquiavel, uma
tarefa
imediata, a única realizável nas circunstâncias históricas do tempo:
fazer
surgir um príncipe unificador

80

MAQUIAVEL
e reorganizador da nação italiana. Deriva daí o esboço da figura do
príncipe.
Se uma comunidade não tem outra maneira de se libertar da
desordem e da
servidão política, senão a de se organizar em principado, a
realização deste
principado, torna-se uma tarefa que encontra a sua regra e a sua
justificação
em si própria. Pesa sobre esta tarefa o risco de se perder, caindo
na
tirania. Pode muito bem acontecer que aquele que a assumir "se
deixe enganar
por um falso bem" ou "se deixe ir voluntária ou ignorantemente"
pela via
aparentemente fácil mas funesta da tirania. Renunciará nesse caso
à glória, à
certeza, à serenidade e à satisfação interior e irá ao encontro da
infância,
do vitupério, do perigo e da inquietação. A aceitação daquela tarefa
implica
pois uma alternativa e uma escolha: ou seguir a via que conduz a uma
vida
segura e à glória após a morte, ou seguir aquela que conduz a uma
vida de
permanente angústia e à infâmia depois de morto (Disc., 1, 9). É
porém
impossível que a segunda alternativa seja escolhida por aquele que,
por sorte ou por virtude, de particular que era se torna príncipe de
uma república, se conhecer verdadeiramente a história e tirar
partido dos seus ensinamentos (Ib., 1, 10).
Mas uma vez aceite o reconhecida, como própria a tarefa política, é
impossível a paragem a meio caminho. Tem ela as suas exigências
derivadas da natureza humana. Não se pode contar corri a boa
vontade dos homens. O homem não é
por natureza nem bom nem mau, mas pode ser efectivamente
81

uma e outra coisa. O político, se quiser ser bem sucedido nos seus
planos,
deverá sempre contar com o pior o que quer dizer que deverá partir
do
princípio de que todos os homens são maus e de que aproveitarão a
primeira
ocasião para lhe manifestar a sua malignidade (Ib., 1, 3). O político
não
pode pois fazer "profissão de bondade"; deve aprender "a poder
não ser bom, e
a usar ou não de bondade, conforme for preciso." (0 Princ.,
15). Se puder, não deve afastar-se do bem; deve p~ saber usar do
mal quando
necessário (Ib.,
19). Há certamente meios extremamente cruéis, contrários a todo o
viver, não
só cristão como humano e de tal maneira que todo e qualquer homem
deve evitá-los. Nesse caso "torna-se necessário -preferir viver
como particular do que
como roi com tamanha ruína dos homens". Todavia, se não se quiser
ou não se puder enveredar por esta renúncia, é necessário entrar
resolutamente no caminho do mal, evitando o meio termo que para
nada serve (Disc., 1, 26).
Maquiavel põe assim duramente o político em face das cruéis e
tristes exigências da sua tarefa. Aflora-lhe certamente ao espírito
a dúvida sobre se o
combater o mal com o mal, a fraude com a fraude, a violência com a
violência
e a traição com a traição tornará possível a recondução da
comunidade à
verdadeira ordem da sua forma política. Responde porém a

essa dúvida, observando que por vezes se mantiveram no poder


aqueles que,
depois de o terem obtido por meio de crueldade e perversidade, não
continuaram. por essas vias e converteram-nas posto-
82

riormente na maior utilidade possível para os seus

súbditos. Esses "podem, com Deus ou com os homens, trazer algum


remédio ao seu país". Quanto aos outros, é impossível a sua
manutenção (0 Princ., 8).
Por outras palavras, o limite da actividade política reside na própria
natureza dessa actividade. A tarefa política não tem necessidade
de deduzir
do exterior a própria moralidade nem a norma que a justifique ou
lhe
imponha os seus limites. Ela justifica-se por si, pela exigência que
lhe é
intrínseca de reconduzir os homens a uma forma de convivência
ordenada
e livre e encontra os seus limites na possibilidade de êxito dos
meios
empregados. Certos meios, extremos e repugnantes, são impolíticos
por se voltarem contra quem os emprega e tornarem impossível a
manutenção do estado. O domínio da acção política estende-se a
tudo quanto oferece garantias de êxito as quais consistem na
estabilidade e na ordem da comunidade política. Maquiavel foi o
primeiro a perscrutar e a considerar aquele domínio por meio dum
critério puramente intrínseco pelo qual se entrevê o princípio duma
normatividade inerente às tarefas humanas como tais e não
sobreposta a estas a partir do exterior, com um carácter de
critério e limite estranhos.
A tarefa do político, na medida em que implica escolha, risco e
responsabilidade, pressupõe a liberdade do homem e o
problematismo da
história. Maquiavel toma em consideração a hipótese de as coisas do
mundo
serem governadas pela sorte ou

83

por Deus de maneira que os homens não possam nem corrigi-las nem
remediá-las;
porém, embora a hipótese o tente, pela extrema mobilidade dos
acontecimentos
contemporâneos, acaba por rejeitá-la porque nesse caso a liberdade
seria nula
o a única atitude possível seria o "deixar-se comandar pela sorte".
Sustenta
como mais provável que a sorte seja o árbitro de metade das acções
humanas,
deixando aos homens o comando da outra metade ou pouco menos. A
sorte é como
um rio que, quando se encoleriza, transborda e arrasta tudo, de tal
modo que
o homem não consegue de maneira nenhuma detê-lo ou impedir a sua
marcha mas
cujo ímpeto porém, não se torna daninho ou se toma menos
prejudicial se o
homem providenciar a tempo pela construção de defesas e diques
que impeçam e
disciplinem as cheias. A sorte mostra o seu poder onde não depara
com a
resistência da "virtude ordenada" e dirige os seus ímpetos para
onde não
houver diques nem defesas a contê-la (0 Prínc., 25).
O homem só poderá dirigir a sorte se se conformar historicamente,
reportando-se ao passado; ligando o passado ao futuro, evitará as
transformações bruscas
e inconcludentes e conseguirá dirigir a sorte de modo a não ter
motivo para
mostrar o seu poder a cada volta do sol (Disc., 11, 30). Existe
tensão entre
a sorte e a liberdade. A acção do homem insere-se nos
acontecimentos e é
portanto condicionada por eles. Mas quanto mais se apresentar
historicamente
fundamentada, tanto melhor conseguirá dominá-los, uma vez que a
metade que
no decurso dos
84

mesmos cabe à liberdade humana pode ser a metade decisiva se a


previsão tiver
sido feita com perspicácia. A acção humana - parece dizer
Maquiavel
* não pode eliminar todos os riscos mas pode e

deve eliminar as reviravoltas inconcludentes e transformar o risco


numa
possibilidade de êxito.

Tudo isto envolve a radical problematicidade da história. Esta, tira


ou dá ao homem a oportunidade de proceder virtuosamente, umas
vezes, suscitando ou destruindo a seu bel-prazer as vontades
humanas o outras, delineando um plano que os homens podem
favorecer mas não impedir ou urdindo uma trama que aqueles podem
tecer mas não quebrar (Disc., 11, 29). Porém, os homens "farão bem
em não desistir nunca". Não conhecem, na verdade, o fim para que
tende a história e uma vez que esta envereda sempre por atalhos e
caminhos desconhecidos, haverá sempre motivos para ter
esperança, e, esperando, não devem os homens desistir, sejam quais
forem a sua sorte e a sua aflição (Ib., 11, 29). O ensinamento que
daí se tira consiste, num chamamento à decisão e ao querer, à
inserção activa na história e ao comprometimento com a mesma.
Maquiavel rejeita todos os princípios e doutrinas que se resolvam.
num "deixar-se andar", num abandonar-se passivamente ao curso
dos acontecimentos. O homem que se compromete com a história
tem uma tarefa precisa e jamais deverá desesperar: o resultado da
sua acção transcende-o e pode conduzi-lo, por atalhos e caminhos
distantes, à vitória da tarefa que lhe é cara.
85

§ 346. GUICCIARDINI, BOTERO

As Memórias políticas e civis de Francisco Guicciardini (1482-1540)


contêm os
~os de uma sabedoria mundana que vai buscar as suas
raízes à actividade política e tem como objectivo iluminá-la e guiá-
la.
Guicciardini considera inútil e disparatada a preocupação com
problemas
relativos à realidade sobrenatural ou invisível: "Os, filósofos e
teólogos
que descrevem as coisas sobronaturais ou que se não vêem, dizem
mil
disparates pois os homens ignoram efectivamente tais coisas e uma

tal indagação serviu e serve mais para cultivar o


engenho do que para encontrar a verdade". (Mem.,
125). Rejeita por motivos análogos, a astrologia: pensar em
conhecer o futuro é um sonho e os astrólogos não adivinham mais do
que qualquer outro homem que faça conjecturas ao acaso (Ib., 207).
O verdadeiro interesse de Guicciardini incide sobre o homem e em
especial
sobre o homem nas suas relações sociais, na sua actividade política.
O homem
é julgado, não pela tarefa que cumpre mas sim pelo modo como a
cumpre. Ela
não escolhe na
verdade, a classe social em que nasce nem as ocupações ou a sorte
que lhe caberão. Escolhe porém a sua conduta na sua classe
ou nas suas ocupações, ou ainda em face da sua sorte. E é por esta
conduta
que será julgado (Ib., 216). Mas no, que se refere à sua conduta o
homem não
pode fazer mais do que confiar na reflexão e na experiência. "Saboi
que quem
governa ao acaso acabará por se encontrar nas mãos do acaso; o que
se deve
fazer é pensar,
86

analisar e observar bem todas as coisas etiam mínima; mesmo


vivendo assim é com grande custo que se governam as coisas; pensai
agora no que acontecerá a quem se deixa levar pelo curso das
águas" (Ib., 187). O "deixar-se levar pelo curso das águas" equivale
ao "deixar-se comandar pela sorte" de Maquiavel.
Tal como Maquiavel, Guicciardini pretendo o empenho activo do
homem na realidade política e um realismo atento e laborioso que
corrija, mesmo quando
não o pode desviar completamente, o curso da sorte. Por essa razão

especial valor positivo à fé. "Ter fé não é senão crer com firmeza
de opinião
e uma quase certeza nas coisas que não são razoáveis; ou, se forem
razoáveis,
crer nelas com mais resolução do que a
simplesmente baseada nas razões". A fé produz a obstinação e esta
pode, num
mundo submetido a mil acasos e acidentes, encontrar finalmente o
caminho do êxito. É justamente por isso que se
diz: "quem tem fé consegue executar grandes coisas" Ub., 1).
Porém, nem a fé
nem a perspicácia bastam para garantir o êxito, embora possam
comandar muita
coisa. A sorte desempenha um grande papel nas coisas humanas,
sorte essa que
é puro acontecimento casual e independente de qualquer ordem ou
lei
providencial, se existe, é impenetrável ao

homem. "Não se deve dizer: Deus ajudou aquele porque era bom;
àquele
correram-lhe as coisas mal porque era mau; pois o que
frequentemente se
observa é o contrário. Nem por isso de=os dizer que a justiça de
Deus não
existe, uma vez que os seus conselhos são tão profundos que são,
mere-
87

cidamente ditos abyssus multa" (Ib., 92). É porém evidente que a


"máquina
mundana", a ordem natural das coisas, encoraja os homens à
actividade. Por
exemplo, se é verdade que os homens não pensam na morte, embora
saibam que
têm de morrer, tal não acontece porque a morte é coisa remota
* é, pelo contrário, bem próxima e sempre iminente -mas antes
porque a ideia da morte tornaria o mundo cheio de pusilanimidade e
torpor" (Ib., 160).

No que respeita à natureza humana, Guicciardini apresenta-se


substancialmente de acordo com Maquiavel. Os homens são, é
verdade, naturalmente propensos ao bem; mas, uma vez que a sua
natureza é frágil e as ocasiões que os convidam ao mal são infinitas,
afastam-se facilmente e por interesse próprio, da sua natural
propensão (Ib., 225). A consequência disto é que os homens maus
são em maior número do que os bons e por conseguinte é boa regra
do político o não se fiar senão naqueles que verdadeiramente
conhece, mantendo, frente aos outros, os olhos bem abertos,
embora sem o mostrar, para não parecer desconfiado (Ib., 201).
O governo deve portanto basear-se mais na severidade do que na
brandura; a combinaÇão e o
doseamento de ambas é a arte mais elevada e mais difícil do homem
político
(Ib., 41). O político deve parecer mas também ser, pois a aparência,
com o
decorrer do tempo, acaba por se desmascarar: "Fazei tudo para
parecerdes
bons, o que tem imensa utilidade; porém, como as falsas opiniões
duram.
pouco, dificilmente conseguireis parecer bons por muito

88

tempo, se efectivamente o não fordes" (Ib., 44). É assim a própria


necessidade de êxito que exige e justifica uma substância moral
intrínseca da acção política.
O ensinamento político de Guicciardini, não se
afasta, quanto a realismo, do de Maquiavel; distingue-se deste
porém, pela
ausência daquele fundamento histórico que nutria a actividade e o
pensamento
políticos de Maquiavel. Este considera o
juízo político fundamentalmente ligado ao histórico. Guicciardini
distingue
o juízo político do histórico, ligando-o ao seu interesse particular,
ao
êxito da sua obra pessoal. "Há três coisas", diz-nos, "que gostaria
de ver
antes de morrer mas creio que por mais que vivesse, não chegaria a
ver
qualquer delas: uma república bem ordenada na nossa

cidade, a Itália liberta de todos os bárbaros e o mundo liberto da


tirania
criminosa dos padres" (Ib., 236). Esta aspiração permanece porém
puramente
retórica pois a sua particular condição impele-o a servir
precisamente a
causa que odeia: "0 acolhimento que tive junto de alguns pontífices,
fez com
que amasse particularmente a sua
grandeza; e se não fosse este respeito, teria amado Martinho
Lutero como a
mim mesmo, não para libertar-me das indoutas leis da religião
cristã, no
modo por que esta é vulgarmente entendida e interpretada, mas
para ver esta
caterva de criminosos, reduzida às dimensões devidas, quer dizer,
ou sem
vícios ou sem autoridade" (Ib., 28). A personalidade de Guicciardini
apresenta pois uma cisão que, pelo

89

contrário, se não verifica na de Maquiavel: Guicciardini distingue a


sua
condição particular da tarefa política que julga ser a melhor, ou
seja, do
juízo histórico. Maquiavel unira ambas as coisas e nisso reside a sua
grandeza.

Os ensinamentos políticos de Maquiavel foram recolhidos em fins


do século XVI
por João Botero (nascido por alturas de 1533 e falecido em 27 de
Junho de
1617), autor dos dez livros de que se
compõe a obra Da razão de estado (1589). A própria noção de razão
de estado é
uma herança do maquiavalismo. "Razão de estado é o conjunto dos
meios idóneos
para fundar, conservar e ampliar um domínio". Com isto reconhece à
arte
política uma autonomia, uma lógica e uma normatividade intrínsecas
que a
colocam numa esfera à parte, era precisamente isto o que
fundamentalmente
resultava da obra de Maquiavel. Mas o que caracteriza e constitui
novidade em
Botero, em confronto com Maquiavel, é a inclusão entre as
exigências da razão
de estado, das exigências próprias da moral. Afirma assim que "é
necessária
no príncipe a excelência da virtude" pois o fundamento do estado é
a
obediência dos súbditos e esta é cativada precisamente pela
virtude do
príncipe. As virtudes podem conseguir a reputação e o amor; entre
as que
produzem o amor, a principal é a justiça, e entre as que obtêm a
reputação,
a principal é a prudência. A justiça deve ser garantida pelo príncipe,
quer
nas relações entre ele e os súbditos, quer nas relações destes
entre si. A
prudência exige que o príncipe se deixe

90

guiar unicamente pelo interesse, nas suas decisões. "Por esse


motivo não deve
fiar-se na amizade, nem no parentesco, nem nas alianças, nem em
qualquer
outro vínculo relativamente ao qual aquele com

quem tratar, não ti-ver fundamento de interesse" (Da razão de


estado, ed. de
1589, 60). Preocupado como está, mais com a conservação do
Estado do que com
a sua fundação e ampliação, Botero prefere as vias cautelosas da
prudência,
condena as
grandes ambições e os grandes projectos e desconfia da astúcia
demasiado
subtil. A diferença entre prudência e astúcia reside inteiramente
na escolha
dos meios: a prudência segue mais o honesto do que o útil e a
astúcia só tem
em conta o interesse. Porém, a subtileza da astúcia é um obstáculo
para a
execução, tal como um relógio que, quanto mais complexo, mais
facilmente se
estragará, assim os projectos e empresas baseadas numa subtileza
demasiado
minuciosa, fracassam a maior parte das vezes (Ib., 70). No tocante
à
religião, Botero, vivendo no ambiente da contra-reforma, considera-
a como um
dos fundamentos do estado e aconselha o príncipe a rodear-se de
um "conselho
de consciência", constituído por doutores em teologia e em direito
canónico,
"pois de outro modo carregará a sua

consciência e fará coisas que terá mais tarde de desfazer, se não


quiser
danar a sua alma e as dos

seus sucessores". Estamos portanto perante um maquiavelismo


temente a Deus, no qual se estabelecem como meios de governo,
preceitos de moral, de religião e regras de procedimento astucioso.
91

§ 347. T. MORO, G. BODIN

Das duas correntes nas quais se concretiza o esforço de renovação


política do
renascimento, a outra é a que se inclina para o jusnaturalismo. As
origens
desta corrente residem numa preocupação universal e filosófica que
se
distingue da preocupação particular e histórica que prevalece na
corrente historicista. Não se trata aqui de renovar e

reconstituir um determinado estado, por meio do regresso às suas


origens
históricas, mas sim de renovar ou reconstituir o estado em geral
pelo regresso ao sou fundamento universal e eterno. A investigação
sobre a natureza
do estado torna-se aqui mais vasta e desenvolve-se a partir duma
base
filosófico-jurídica. Procura-se a substância, princípio último que dá
força e
valor a todo e qualquer estado e projectam-se transformações e
reformas que
possam reconduzi-lo à sua forma ideal. Pode-se por conseguinte
reconhecer
como primeira manifestação de jusnaturalismo precisa-mente
aquele desejo de
uma forma ideal de estado que se encontra na Utopia de Tomás
Moro. A forma
ideal do estado consiste na verdade, na sua estrutura racional; e a
natureza
fundamental de todas as comunidades políticas é descoberta pela
razão. O
verdadeiro e

propriamente dito naturalismo, o de Gentile e Grócio, desenvolver-


se-á
precisamente a partir deste pressuposto: a identidade existente
entre o
direito natural e as exigências de uma estrutura puramente racional
da
comunidade.

92

Tomás Moro nasceu em Londres em 1480. Estadista e literato,


opôs-se ao acto
do parlamento que declarava nulo o matrimónio de Henrique VIII e

Catarina e designava como sucessor o filho do segundo matrimónio


do rei com
Ana Bolena. Por esse motivo foi condenado à morte e decapitado =
1535. As suas opiniões políticas e filosóficas encontram-se
expressas na
Utopia, publicada em 1516, a qual é uma espécie de novela filosófica
em que
as opiniões de Moro aparecem enunciadas por um

filósofo de nome Rafael, que conta o que lhe teria sido dado
observar numa
ilha ignota chamada precisamente Utopia, durante uma das viagens
de Américo
Vespúcio. O ponto de partida de Moro é a
crítica das condições sociais na Inglaterra do seu tempo. A
aristocracia
proprietária de terras empenhava-se então em substituir o cultivo
de cereais
pela criação de carneiros de cuja lã retirava maior
rendimento. Os camponeses eram expulsos de casas e quintas e não
tinham
outra saída senão a mendicidade (para a qual a rainha Isabel
veio a
instituir penas severas) e a rapinagem. A análise desta situação
levou Moro
a almejar uma reforma radical da ordem social. Na ilha da
Utopia a
propriedade privada encontra-se abolida. A terra é cultivada
segundo um
sistema de turnos pelos habitantes que estão todos adestrados na
agricultura e se substituem nos campos uns aos outros, de dois em
dois anos. O ouro e a prata não têm qualquer valor e são utilizados
nos mais humildes utensílios.
Todos têm além disso o seu ofício próprio e há uma categoria de
magistrados
denominados sifograntes que
93

velam por que ninguém permaneça ocioso e por que todos exerçam
com diligência
a sua arte. Os cidadãos da ilha trabalham apenas seis horas e
dedicam o resto
do tempo às letras ou aos divertimentos. A cultura daquele povo é
inteiramente dirigida para a utilidade comum à qual os utopes
subordinam
todos os interesses particulares. Preocupam-se pouco com a lógica
mas
cultivam as ciências positivas e

a filosofia; completam os conhecimentos racionais com os princípios


da
religião pois reconhecem que a razão humana não pode, por si só,
conduzir o
homem à verdadeira felicidade. Os princípios que reconhecem como
próprios da religião são: a imortalidade da alma, destinada por Deus
à felicidade; o prémio e o castigo após a morte, consoante o
comportamento nesta vida.
Embora tais princípios derivem da religião, os utopes. afirmam ser
possível
crer nos mesmos com base em razões e fundamentos humanos.
Reconhecem pois que
o único guia natural do homem é o prazer e que é sobre este guia
que se
baseia o sentimento da solidariedade humana. Na verdade, o homem
não seria
levado a ajudar os outros homens e a evitar-lhes o sofrimento se
não pensasse
que o prazer é um bem para os outros; mas aquilo que é um bem
paira os outros
é igualmente um bem para ele próprio e
na realidade o prazer é o fim que a natureza atribuiu ao homem.
Porém a
característica fundamental da Utopia é a -tolerância religiosa.
Todos
reconhecem a existência de um Deus criador do Universo e autor da
sua ordem
providencial. Cada um, porém, o concebe e venera a seu modo. A fé
cristã

94

coexiste com as outras e só é condenada e rejeitada a intolerância


de quem
condena ou ameaça os adeptos de uma outra confissão religiosa. A
cada um
é lícito procurar convencer os outros sem violência ou injúria e a
ninguém é
permitido violar a liberdade religiosa de ou-trem. Os utopes crêem
que o
culto variado e diverso agrada a Deus e por esse motivo consentem
que cada um
creia naquilo que lhe aprouver. Apenas está proibida a doutrina que
nega a
imortalidade da alma e a providência divina; p"m, aqueles que a
professam não
são punidos mas somente impedidos de difundirem as suas opiniões.
A república
dos utopes. é por conseguinte um estado conforme à razão e no qual
os
próprios princípios da religião são aqueles que a razão está apta a
defender
e a fazer valer, não havendo ali lugar para a intolerância.

Se Tomás Moro idealizara no estado utope a estrutura de uma


comunidade de acordo com a razão, João Bodin, pelo contrário,
coloca-se expressamente no plano da realidade política e analisa os
princípios jurídicos dum estado racional. Bodin nasceu em

Anvers em 1530 (ou 1529), foi jurista e advogado em ]Paris e teve


muita
influência na corte do rei Henrique III. Faleceu em 1596 (ou
1597). Nos
Six livres de Ia république (1576) propõe-se esclarecer a definição
de estado
que enuncia no começo da sua obra: "A república é o governo
íntegro de
muitas famílias e do que lhos é comum, com poder soberano". ]
Porém a
validade própria do estado reside na última determinação, ou
seja,
na soberania, que é concebida por Bodin como não tendo
95

fimitos, excepto os que derivam das leis de Deus ou

da natureza. O poder absoluto e soberano do estado não consiste


num arbítrio
incondicional, pois tem a sua norma nas leis divina e natural, norma
essa que
deriva do seu fim intrínseco, a justiça. Não há poder soberano onde
não
houver independência do poder estatal relativamente a todas as leis
e
capacidade para as fazer e desfazer. A soberania não é um atributo
puramente
negativo, consistindo

em ser dispensado e liberto das leis e costumes da república. Tal


dispensa
pode existir, como no caso de Pompeio, o Grande, em Roma, sem que
haja
soberania. Consiste, pelo contrário, no poder positivo de ditar leis
aos
súbditos e de abolir as leis inúteis, substituindo-as por outras, o
que não
pode ser feito por quem está sujeito às leis ou por quem recebe de
outrem os
poderes de que se acha investido (Rep., 1, 9.a ed., 1576, 131-132). O
limite
intrínseco do poder soberano, as leis natural, e divina, permitem o
estabelecimento da regra seguindo a qual o príncipe soberano é
obrigado a
cumprir os contratos que celebra, seja com os próprios súbditos,
,seja com
o estrangeiro. É ele quem garante aos súbditos o cumprimento das
convenções e
obrigações mútuas, sendo obrigado a ,respeitar a justiça .em, todos
os seus
actos. Um príncipe não pode ser ,perjuro (Ib., 148). De acordo com
estes
princípios, ,Bodin -afirma, por um lado, a indivisibilidade do -poder
soberano, pela qual este não pode pertencer simultaneamente a um,
a poucos ou
a todos (aceita a antiga classificação das formas de governo em

monarquia, aristocracia e democracia), mas por outro,


96

TOMAS MORO

afirma energicamente os limites da soberania que não pode


prescindir das leis
divina e natural. "A diferença mais importante entre o rei e o tirano
reside
no facto de o rei se conformar com as leis da natureza, ao passo
que o tirano
as atropela; enquanto um cultiva a piedade, a justiça e a fé, o outro
não
conhece Deus, nem fé , nem lei". (Ib.,
11, 4, 246). Partidário da monarquia francesa, Bodin afirma ser o
governo
monárquico o melhor de todos, contanto que seja temperado pelos
governos
aristocrático o popular. Com efeito, é própria do governo
aristocrático a
justiça distributiva ou geométrica, que distribui os bens segundo os
méritos
de cada um e é própria do governo popular a justiça comutativa ou
aritmética
que tende para a igualdade. A justiça perfeita é a harmónica que é
composta
por ambas; tal justiça é própria das monarquias reais (Ib., VI, 6,
727 e
segs.). A república bem ordenada é semelhante ao homem, no qual o
intelecto
representa a unidade indivisível a que estão subordinadas a vida
racional, a
vida irascível e a vida sensual. A república aristocrática ou popular
sem rei
é como um homem a quem a actividade intelectual falta ou
escasseia. Poderá ela viver, como vive o homem que não cuida da
contemplação das coisas divinas e intelectuais, não possuirá porém
aquela unidade nem aquela harmonia intrínsecas que só um príncipe
lhe pode dar, o qual, tal como o intelecto dos homens, unifica e
harmoniza as partes do todo (Ib., 756-57).
Como Tomás Moro, Bodin afirma como próprio de uma comunidade
racionalmente
organizada
97

O princípio da tolerância religiosa. Dedicou à defesa deste principio


o
Colloquium heptaplomeres (escrito por alturas de 1593), que
consiste num
diálogo em

que aparecem a falar sete pessoas, representando sete confissões


religiosas
diferentes (e daí o título): um católico, um luterano, um calvinista,
um
hebreu, um maometano, um pagão e um partidário da religião
natural. Supõe-se
o diálogo como tendo lugar em Veneza, a qual, ainda antes de a
Holanda se ter
tornado a sede da liberdade religiosa, era conhecida como o estado
mais
liberal, como o provava o episódio de Sarpi. O personagem mais
significativo
do diálogo é Toralba, adepto da religião natural. A tese de
Torailba
consiste em que, dada a oposição existente entre as religiões
positivas, a

paz religiosa só será possível por meio dum regresso ao fundamento


puramente
natural (ou seja, racional) das várias religiões, o qual constitui a
substância comum a todas. Este regresso não exclui porém
* persistência das religiões positivas, uma vez que
* religião natural, francamente racional e filosófica não está apta a
conseguir da plebe ou do vulgo o assentimento que só as cerimónias
o ritos
poderão obter. Uma vez reconduzidas à substância comum que lhes;
é
reconhecida pela razão filosófica, as religiões positivas perdem os
motivos
de oposição e

reconhecem-se solidárias, tornando possível a paz religiosa no seio


do género
humano. Na verdade, esta paz que ora o ideal dos platónicos do
Renascimento,
de Cusano em diante, é também o ideal de Bodin que escreve a sua
obra no
decurso do período das guerras religiosas em França. Porém a
98

preocupação de Bodin é principalmente política. O que lhe interessa


estabelecer é o princípio da tolerância religiosa como fundamento
da ordem civil na melhor das repúblicas.
§ 348. O JUSNATURALISMO
As doutrinas de Tomás Moro e de João Bodin contêm já o
pressuposto
jusnaturalismo: o regresso da organização política à sua substância
racional. Este pressuposto é porém explicado e posto em evidência
pelos
autênticos fundadores dos jusnaturalismo moderno, através da
consideração do
estado de guerra. A guerra suspende com efeito a

validade das leis positivas e dos acordos entre os estados


singulares; não pode todavia suspender a eficácia das normas
baseadas na própria natureza humana e por conseguinte inerentes à
comunidade humana em qualquer momento e mesmo nas relações de
guerra. A consideração do estado de guerra permito isolar no
conjunto das normas jurídicas, aquelas que não dependem nem da
vontade nem das convenções humanas e são antes ditadas pela
própria razão do homem. Assim se explica como foi precisamente da
análise do estado de guerra que se induziram as regras básicas e a
natureza do direito natural.
Alberico Gentile nasceu no Castelo de S. Genesio em 1552,
doutorou-se na
Universidade de Perúgia e foi professor de direito em Oxford;
faleceu em
1611. Na sua obra De jure belli (1588) chega a
formular o conceito de direito natural, partindo do
99

problema de saber se a guerra será ou não conforme àquele direito.


A sua resposta é negativa. Todos os homens são membros
de um grande e

único corpo que é o mundo e estão por isso ligados entre si por um
amor
recíproco. É nesta sua

unidade original que se radica o direito natural que é um instinto


imutável
baseado na natureza.
O homem não é pois por natureza inimigo dos outros homens nem há
aí lugar para a guerra. Esta nasce quando os homens se recusam a
seguir a natureza.
Guerra justa é todavia a guerra defensiva, uma
vez que o direito de defesa é uma regra ~na que, embora não
escrita, nasceu
com os homens. Pelo contrário, não são justas as guerras ofensivas
nem as de
religião, estas últimas porque a religião é de tal natureza que
ninguém pode
ser obrigado a professá-la por meio de violência, devendo por
conseguinte ser
reconhecida como livre (De jure belli,
1, 9). Mas a guerra, apenas possível no âmbito duma comunidade
humana, não
suspende as normas fundamentais de direito próprias de toda e
qualquer
comunidade e portanto naturais. O respeito pelos prisioneiros, pelas
mulheres, pelas crianças e pelas cidades e o não servir-se de armas
traiçoeiras, fazem parte destas normas que não são próprias deste
ou daquele povo mas de toda a humanidade.
O princípio da soberania popular foi pela primeira vez afirmado por
João
Altilsio (Althlis), nascido em 1557 numa aldeia do condado de
Wittegenstein-Berleburg e que foi professor na Universidade de
Herborn, tendo falecido em 12 de Agosto de 1638.
Na sua Politica methodice digesta retoma
100

a doutrina de Bodin segundo a qual a validade do estado consiste na


soberania
que também reconhece como única, indivisível e intransmissível.
Porém, segundo Altúsio, esta
soberania reside no povo. Toda e qualquer comunidade humana
(consociatio) se
constitui através dum contrato, expresso ou tácito, que faz dela um
corpus
symbioticum, um

organismo vivo. Este contrato baseia-se num sentimento natural e


encontra-se regulado por leis (leges consociationis) que
são em parte leges comunicationtis, quer dizer, respeitantes às
relações
recíprocas entre os membros, e noutra parte, leges directionis et
gubernationis, respeitantes às relações entre os

vários membros da comunidade e o governo. O estado é definido


como "uma comunidade pública universal pela qual várias
cidades e províncias se obrigam a possuir, constituir, exercer e
defender a
soberania (jus regni) mediante a mútua comunicação de obras e
coisas e com
forças e despesas comuns" (Pol., 9, 1; ed. de 1617. 114). A soberania
ou jus
majestatis pertence por conseguinte à comunidade popular e é
inalienável. O
príncipe é apenas um magistrado cujo poder deriva do contrato.
Junto do
príncipe ou "supremo magistrado", encontram-se os éforos a quem
compete
exercer relativamente àquele os direitos do povo. Se o povo faltar
ao contrato, o príncipe considerar-se-á liberto das suas obrigações;
porém, se for
o príncipe a violá-lo, o povo poderá proceder à escolha dum novo
príncipe ou duma nova constituição (Ib., 20, 19-21). Estas bases da
doutrina de Altúsio constituem o procedente histórico da doutrina
de Rousseau (§ 496).
101

Altúsio permanece todavia firme no tocante à negação da liberdade


religiosa, Com o seu calvinismo intransigente, afirma que o estado
deve ser também o promotor da religião e que deve portanto
expulsar do seu seio tanto ateus como descrentes.
Músio é o primeiro representante da filosofia jurídica da Refonna.
O mais
destacado representante dessa filosofia é Hugo Grócio (Groot,
Grotius),
nascido em DeM, na Holanda, em 10 de Abril de
1583. Jurista e homem político, tomou parte nas lutas religiosas no
seu país
e foi encarcerado após a

derrota do partido dos Armínios (designação derivada do nome do


teólogo
Amiínio) cuja defesa tomara (1619). Tendo conseguido fugir dois
anos
depois por obra da astúcia da mulher, viveu em
Paris e faleceu em 1645 em Rostock. Numa série de obras
teológicas (a principal das quais é De veritate religionis christianae,
1627), visou à superação das diferenças entre confissões religiosas
por meio do reconhecimento do significado genuíno do cristianismo.
O seu propósito é, tal como o de Boffin, a pa7 religiosa, a qual se
pode conseguir pela redução da religião aos seus princípios naturais:
a existência de um só Deus, espírito puro, a providência e a criação.
A sua obra fundamental é De juri bellí ac pacis (1625), composta
por uma introdução e três livros.
O ponto de partida desta grande obra é a identidade do natural
com o
racional, identidade esta, baseada no pressuposto de que a razão é
a
verdadeira natureza do homem. Tanto aquela identidade como este
pressuposto
são teses directamente deri-
102

vadas da doutrina estóica que alimentara durante tantos séculos


todas as
especulações sobre a essência do direito e da comunidade humana.
Porém,
aquilo em que consiste a originalidade da obra de Grócio e pode ser
considerado como característico da fase moderna do jusnaturismo,
éa
libertação do conceito de razão de toda e qualquer implicação
teológica, lIbertação esta
expressa por Grócio com a

famosa afirmação (que provocou enorme escândalo) de que as


normas da razão
natural seriam válidas ainda que Deus não existisse. A partir daqui,
a
obra de Grócio procura formular a teoria do direito e da política em
geral
como uma pura ciência racional dedutiva, semelhante às
matemáticas e
constituída apenas por princípios evidentes e demonstrações
necessárias.

Este é o único ponto de vista pelo qual a -teoria do direito poderá,


segundo
Grócio, ascender a uma
autêntica universalidade, abstraindo de todos os sistemas
particulares de
direito positivo. "Assim como os matemáticos", diz, <trabalham com
símbolos
abstractos dos corpos, assim eu declaro querer tratar o direito,
prescindindo de todo e qualquer facto particular" (De jure b. ac p.,
proleg.). A mãe do direito natural é a própria natureza humana que
conduziria
os homens a procurarem a mútua associação, mesmo que não
precisassem uns dos
outros. Por isso, o direito que se baseia na natureza humana teria
lugar
ainda que se admitisse aquilo que se não

pode admitir sem pecar, ou seja, que Deus não existe ou que não se
preocupa
com as coisas huma-
103

nas" (Ib., § 11). Na medida em que provém por legítima dedução dos
próprios princípios da natureza, o direito natural distingue-se do
direito das gentes (jus gentium), o qual provém, não da natureza
mas do consenso de todos os povos ou de alguns deles, tendo como
objectivo a utilidade de todas as nações.
Precisamente pela sua origem, o direito natural é próprio do homem,
que é o
único ser racional, mesmo quando se refere a acções (como a
criação dos
filhos) comuns a todos os animais (Ib., 1, 1, 11). É definido por
Grócio como
"o comando da recta razão que aponta a fealdade moral ou a
necessidade moral
inerente a uma acção qualquer, mediante o acordo ou o desacordo
desta com a própria natureza racional". As
acções sobre as quais incide o comando são por si obrigatórias ou
ilícitas e
consideram-se portanto necessariamente prescritas ou

proibidas por Deus. Neste ponto, o direito natural diferencia-se não


só do
direito humano mas também do direito voluntário divino que não
prescreve nem
proíbe as acções que por si e por sua própria natureza sejam
obrigatórias ou
ilícitas, mas antes as torna ilícitas ao proibi-las e obrigatórias ao
prescrevê-las. O direito natural é portanto de tal maneira imutável
que nem
mesmo por Deus pode ser
mudado. "Assim, como Deus não pode fazer com que dois e dois não
sejam
quatro, também não pode fazer com que aquilo que pela sua razão
intrínseca é
um mal, não o seja" (Ib., 1, 1, 10). Por conseguinte a verdadeira
prova do
direito natu-
104

ral é aquela que se obtém a priori, mostrando o

acordo ou o desacordo necessário de uma acção com a natureza


racional e
social. A prova a posteriori, baseada naquilo que na opinião de todos
os
povos ou na dos mais civilizados de entre eles, se crê legítimo,
consiste
numa mera probabilidade e funda-se na presunção de que um efeito
universal exige uma causa universal (Ib., 1, 1, 12).
Do direito natural se distingue o direito voluntário que não tem
origem na
natureza mas sim na vontade e pode ser humano ou divino (Ib., 1, 1,
13-15). Porém, só o direito natural fornece o critério da justiça ou
da
injustiça: "Entende-se por injusto aquilo que repugna
necessariamente, à
natureza racional e social> (Ib., 1, 2, 1).

A guerra não é, segundo Gróoio, contrária ao direito natural. O fim


da guerra
é a conservação da vida dos membros do todo social ou a aquisição
do que é
necessário à vida e este fim resulta da própria natureza. Nem
mesmo o uso da
força é contrário à natureza, a qual dou a todos os animais a força
suficiente para se
ajudarem ou se matarem reciprocamente. Grócio distingue três
espécies de
guerras: pública, privada e mista. A pública, é a
que é feita por quem tem o poder de governar; a privada, a que é
feita por
quem está privado do ,poder jurisdicional; a mista, aquela em que
uma parte é
pública e a outra privada (Ib., 1, 3, 1). Da consideração do direito de
guerra, Grócio leva a

sua análise a incidir sobre a natureza do poder político. O supremo


poder
político (sunima potestas

105

civilis) é aquele cuja acção não está sujeita. ao direito de outrem de


modo a poder ser anulado pelo arbítrio doutra. vontade humana.
Grócio opõe-se à tese de Alffisio, segundo a qual o poder supremo
reside apenas no povo, sendo lícito a este coagir e castigar os reis
que fazem mau uso do seu poder.
Aceita som reservas a tese contratualista segundo a
qual toda e qualquer comunidade humana se baseia num pacto
original, mas não
deixa também de admitir que esse pacto tenha precisamente
transferido a
soberania, do povo para o príncipe. "Assim como

há vários modos de vida, uns melhores, outros piores, podendo cada


um
escolher aquele que lhe agrada, também o povo pode escolher a
forma de
governo que deseja, **reguilando-se o direito, não pela excelência
desta ou
daquela forma (no que variam as opiniões) mas sim pela vontade do
povo. Podm,
com efeito, existir certas causas pelas quais o povo renuncie
completamente
ao direito de mandar, confiando-o a outrem: por exemplo, porque
determinada
lei o colocou em perigo de vida e não encontra quem o defenda, ou
porque está
oprimido pela miséria e não pode obter doutro modo aquilo de que
necessita
para se manteu (Ib., 1, 3, 8). É portanto possível que a soberania
seja
integralmente transferida do povo para o príncipe. É todavia
igualmente
possível que essa transferência se processe em determinadas
condições e que o
príncipe prometa aos súbditos e a Deus cumprir co~, regras que não
cumpriria
sem tal promessa e que por conseguinte não pertencem ao direito
natural o
divino

106

nem ao direito das gentes, a cujo cumprimento todos os reis são


obrigados
mesmo sem promessa. Esta limitação não implica o reconhecimento
da
soberania do poder popular por parte do príncipe e é perfeitamente
conciliável com o seu poder supremo (Ib., 1, 3, 16). GrÓcio não
admite a
existência do direito de depor o príncipe, por parte do povo, mas
aceita que
este princípio possa sofrer excepções em caso de extrema
necessidade ou em
determinadas circunstâncias, enumerando em seguida os casos em
que se
verificam estas circunstâncias ou

aquela necessidade. Podem elas resultar duma cláusula do contrato


através da qual a soberania é deferida ao príncipe ou das condIções
deste deferimento, sempre que o próprio príncipe viole tais
cláusulas ou condições (Ib., 1, 4, 8-14).
Ao direito natural está, no pensamento de Grócio, ligada a religião
natural a qual o é, precisamente por se basear na razão. "A
verdadeira religião", escreve (Ib., 11, 20, 45), "comum a todas as
épocas, baseia-se essencialmente sobre quatro enunciados.
O primeiro consiste em que Deus existe e é uno.
O segundo, em que Deus não é nenhuma das coisas que se vêem e
lhes é muito
superior. O terceiro, em que Deus se ocupa das coisas humanas,
julgando-as
com perfeita equidade. O quarto, em
que o próprio Deus é o artífice de todas as coisas exteriores".
Estes
princípios são tão racionalmente sólidos. e apresentam-se tão
reforçados pela
tradição, que não podem ser anulados pela dúvida, donde a sua não
aceitação
deve constituir culpa puní-
107

vel. Não podem porém ser punidos aqueles que não aceitem noções
não
igualmente evidentes, como, por exemplo, que é impossível a
existência de
mais de um único Deus, que Deus não é nem o céu, nem a terra, nem
o sol, nem
o ar, nem nada daquilo que vemos, ou que o mundo não existe ab
aeterno pois a
própria matéria que o constitui foi criada por Deus. Estas noções
tomaram-se
obscuras em

muitos povos sem que estes se possam considerar culpados de tal


obscurecimento. No que se refere à religião cristã, é um facto que
acrescenta
à religião original muitas coisas em que se não pode acreditar com
base em
argumentos naturais mas
unicamente através do fundamento histórico da ressurreição e dos
milagres.
Crer no cristianismo, só é possível com o auxílio misterioso de Deus
e por
conseguinte, pretender impô-lo pela força das armas é contrário à
razão (Ib.,
11, 20, 48-49). Não é igualmente possível atribuir culpa aos cristãos
por
aquelas opiniões que se baseiam na ambiguidade da lei de Cristo;
será mais
justo punir, pelo contrário, aqueles que se mostram ímpios ou
irreverentes
para com os seus deuses. (Ib., 11, 20, 50-51).

A obra de Grócio não representa apenas uma tentativa grandiosa de


fundamentar racionalmente o mundo da política e do direito. É além
disso o primeiro acto de fé na razão humana, a primeira
manifestação do empenho, característico da especulação moderna,
em reconduzir à razão, nela os baseando, todos os aspectos
essenciais do homem e do seu mundo.
108
NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 345. Das obras de Maquiavel, v. a edição de MAZZONI C


CASELLA, Florença, 1929. - P. VILLARI, N. M. e o seu tempo, 3.1
ed., Milão, 1912; DE SANCTIS, História da Literatura Italiana,
VOI. II, BARI, 1912, 67-112; MEINECEP, Die Idee der Staatraison
in der neuren Geschichte, Munique Berlim, 1924. ALDERIGIO
apresentou um Maquiavel moralizador: Maquiavel, Turim, 1930.-G.
SASSO, N. M., história do seu pensamento polítwo, Nápoles, 1958.
§ 346. As Memórias políticas e civis de GUICCIARDINI, em Obras
inéditas, ed.
de CANESTRINI, Florença,
1857; Escritos raros e autobiográficos, ed. de Palmarocchi, BARI,
1936.

BOTERO, Da razão de estado e Das causas da grandeza da eidade,


Veneza, 1589, Desta última obra há uma edição de M. De Bernardi,
Turim, 1930.
§ 347. TOMÁS MORO, De optimo reipublicae statu deque nova
insulae Utopia, edição Lupton, Oxford, 1895.-E. DERMENGHEM, Th.
Morus et les utopistes de Ia Renaissance, Paris, 1927.
J. BODIN, Six livres de Ia république, Paris, 1576; Colloquium
heptaplomeres de abditi.& rerum sublium arcani&, edição Noack,
1857.-BAUDRILLART, J. B. et son temps, Paris 1853; DILTHEY,
Análise do homem, já citada, passim.
§ 348. Há uma reprodução moderna da edição de 1612 do De jure
belli de C.
PHILLIPSON, Oxford,
1933.-Solmi, De Francisci, Del Vecchio, Giannini, Alberico Gentile,
em
"Publicações do Instituto Italiano de direito internacional", Roma,
1933.
ALT0SIO, Política methodice digesta et aexemplis sacris et
profanis Mustrata,
Herbon, 1603; Groningen,
1610.---OTTO VON GIERKE, J. Althusius und die En-
109

twick1ung der naturrechtlichen Staatsth-eorien, Breslau, 1880;


trad. ital. de
A. Giolitti, Turim, 1943.

DE GRócio: Opera omnia theologica, An-isterdão,


1679 e Basileia, 1732. De jure belli ac pacis, Paris,
1625, 1632, 1646; Anisterdão, 1553. Há a reprodução fotográfica
da edição de 1646, da Fundação Carnegie.-Dilthey, ob. cit., vol. II,
pgs. 39 e segs.,-HAMILTON VEERLAND, H. G. the Father of the
Modern Seience of International Law, Nova Iorque, 1917;
SCHLCTER, Die Theologie des H. G., Gottingen, 1909;
CORSANO, Hugo Grócio, Bari, 1948.
lio

HI

RENASCIMENTO E PLATONISMO
§ 349. NICOLAU DE CUSA: A DOUTA IGNORÂNCIA
O platonismo e o aristotelismo, que tinham sido as duas correntes
básicas da
Escolástica, reaparecem igualmente no Renascimento, mas agora já
reconduzidas
às suas fontes originais e aceites, na sua autenticidade histórica,
como
meios de renovação do homem e do seu mundo. As disputas em
torno da
superioridade de uma ou de outra orientação, pressupõem a
exigência comum de
restituir ambas ao seu sentido histórico original, libertando-as das
deformações e incrustações sofridas por obra da Escolástica. O
antagonismo
entre Platónicos e

Aristotélicos é, no Renascimento o antagonismo de dois interesses


culturais
diferentes. Platónicos são aqueles que põem em primeiro plano a
exigência
111

da renascença religiosa e que vêm por conseguinte, no regresso ao


platonismo, considerado como síntese de todo o pensamento
religioso da
antiguidade, a condição desta renascença. Aristotélicos são aqueles
que
tendem sobretudo para a renascença da actividade especulativa e
especialmente
da filosofia natural; vêem estes no regresso à autêntica ciência de
Aristóteles, a condição
da renascença de uma livre e rigorosa investigação naturalista.
Neste sentido,
o renovador do platonismo é Nicolau de Cusa, a

mais completa personalidade filosófica de Quatrocentos.


Nicolau Chrypffs ou Krebs nasceu em Cusa, perto de Trier, na
Alemanha, em
1401. Recebeu a primeira instrução em Deventer, ministrada pelos
"irmãos da
vida comum" que cultivavam o ideal da chamada devotio moderna e
se inspiravam
principalmente na mística alemã (§§ 327-29). Estudou em
Heidelberg, e
seguidamente, de 1418 a 1423, em Pádua, onde se ligou por amizade
a Paulo
Toscanelli, mais tarde médico e astrónomo de fama. Destinava-se
ao estudo do
direito mas, tendo perdido o seu primeiro processo, voltou-se para
a teologia
e fez-se padre em 1430. Em 1432 foi pelo cardeal-legado Julião
Cesarini, seu
antigo mestre em Pádua, chamado a participar no Concílio de
Basileia, após o
Concílio, que devia entre outras coisas decidir da união entre as
igrejas
latina e grega, foi enviado à Grécia, de onde regressou a Itália na
companhia
dos pensadores e teólogos gregos mais -importantes da época. Pôde
assim
adquirir grande familiaridade com a língua e com os clássicos gregos

112

e sobretudo conhecer directamente aquelas obras de Platão das


quais extraiu a
inspiração fundamental. Nomeado cardeal e bispo de Bressanone,
entrou em
conflito com Sigismundo, duque do Tiroi, por ordem do qual
permaneceu
encarcerado vários

anos. Morreu longe da sua diocese, em Todá, na úmbria, em 11 de


Agosto de
1464. Na sua viagem de regresso da Crécia, tivera a inspiração da
sua
doutrina fundamental, a da douta ignorância (De docta ign., 111, 12)
a qual
vem exposta nas suas
duas principais obras: De docta ignorantia e De conjecturis (1440).
Seguiram-se depois muitas outras: De querendo Deum e De
filiatione Dei (1445),
De dato patris luminum (1446), De genesi (1447), Apologia doctae
ignorantiae
(1449), De idiota (1450), De novissimis diebus (1453), De visiona
Dei
(1453), Complementum theologicam (1454), De bery11o (1458), De
possest (1460), De non aliud (1462), De venatione sapientiae (1463),
De apice theoriae, De ludo globi (1464) e Compendium (1464).
Nicolau de Cusa escreveu além disso, várias obras de geometria,
matemática e teologia.
O ponto de partida de Nicolau de Cusa consíste nu-ma determinação
precisa da natureza do conhecimento, o qual, é por
ele modelado segundo o conhecimento matemático. A possibilidade
do
conhecimento reside na proporção entre o conhecido e o
desconhecido. Só em
relação ao já conhecido é que pode avaliar o ainda desconhecido,
isso só será
porém possível se o ainda desconhecido possuir uma certa
proporcionalidade
(quer dizer, homogeneidade ou conveniência) relativa-
113

mente ao já conhecido. O conhecimento é tanto mais fácil quanto


mais próximo
estão das que se
conhecem, as coisas que se procuram; por exemplo, em matemática,
as
proposições mais directamente derivadas dos primeiros princípios,
já por si
bem conhecidos, são as mais fáceis e evidentes, ao passo que as que
se
afastam desses mesmos princípios são menos evidentes e mais
difíceis. Daqui
resulta que quando procuramos algo de desconhecido e sem qualquer
relação com
os conhecimentos que possuímos, o mesmo escapa a toda e qualquer
possibilidade de conhecimento e só nos resta proclamar a esse
respeito a
nossa ignorância. Este reconhecimento, da ignorância, este saber
que não se
sabe e que Nicolau de Cusa filia na antiga sabedoria de Pitágoras,
de
Sócrates e de Aristóteles e também na sabedoria bíblica de
Salomão (Ecles,
1,
8), é a douta ignorância. A atitude da douta ignorância é a única
possível
perante o ser como tal, ou seja, perante Deus. Deus é na verdade o
grau
máximo do ser e da perfeição em geral; é "aquilo cuja grandeza não
pode ser
ultrapassada". Deus, como já o dissera Duns Escoto (§ 306), é o
infinito e
entre o infinito e o finito não existe relação. O homem pode
aproximar-se
indefinidamente da verdade por graus sucessivos de conhecimento,
mas
uma vez que estes graus serão sempre finitos e a
verdade é o ser em grau infinito, esta última escapará
necessariamente ao esforço feito para a sua
compreensão. Entre o conhecimento humano e a verdade existe a
mesma relação
que entre os polí-
114

gonos, inscritos ou circunscritos e a circunferência: multiplicando


indefinidamente os lados desses polígonos, estes aproximar-se-ão
indefinidamente da circunferência com a qual porém jamais se
identificarão. A
verdade no seu carácter absoluto e necessário permanecerá sempre
para além do
conhecimento, que é a possibilidade pura de estabelecer relações
definidas
(Da d. ign. 1, 3). E, tal como o

máximo absoluto, assim também o mínimo absoluto escapa ao


conhecimento. Este
move-se no âmbito do que é susceptível de mais ou de menos ao
passo que o
mínimo absoluto escapa ao mais e ao menos por ser aquilo de que
não pode
haver menor. O máximo absoluto e o mínimo absoluto coincidem por
pertencerem
ambos ao domínio da necessidade e da actualidade plenas, ao passo
que
* domínio do mais e do menos, no qual se move
* conhecimento humano em todos os seus graus é
* da possibilidade e da potencialidade (Ib., 1, 4).

Nestas teses fundamentais de Nicolau de Cusa convergem as duas


últimas
manifestações da filosofia medieval: o occamismo e o misticismo
alemão.
O occamismo declarara já impossível ao homem o acesso à realidade
divina e o
misticismo alemão tinha procurado este acesso fora do
conhecimento, na fé,
recorrendo à teologia negativa do falso Dionísio, o Areopagita.
Também este
último traço, como

veremos, se encontra em Nicolau de Cusa. Este não parte, porém,


como Occam,
do empirismo; o seu
pressuposto é metafísico e inspirado no platonismo original. Esse
pressuposto
é a incomensurabilidade (a não-proporcionalidade) da relação
existente entre
115

* ser como tal e o conhecimento humano, ou seja, * transcendência


absoluta do ser que permanece um valor ou uma norma ideal, não
podendo jamais ser atingido nem possuído pelo homem.

§ 350. NICOLAU DE CUSA: O MUNDO DA CONJECTURA


Porém, após ter ensinado a Nicolau de Cusa a transcendência do ser
relativamente ao inundo, Platão ensina-lhe também o regresso ao
mundo. A
diferente natureza do mundo e do homem com respeito ao ser, não
implica a
condenação total do mundo e do homem, a negação de todo o seu
valor. Ao fazer
reviver também este segundo aspecto do platonismo, Nicolau de
Cusa aproximou-se do espirito do filósofo antigo, tanto quanto se
afastou do platonismo
medieval. Após ter desligado Deus, como máximo absoluto, do
mundo, volta a
encontrá-lo no conhecimento humano, justamente por causa deste
desligamento. O
saber que não se
conhece Deus é o princípio do seu conhecimento e, em geral, a douta
ignorância, o saber que não se sabe, constitui o princípio e o
fundamento de
todo o conhecimento humano. Para designar este último, Nicolau de
Cusa adopta
o termo conjectura que traduz a eikasia platónica (Rep., 511 e; §
52),
definindo-a como "a asserção positiva que participa, por meio de
diferente
natureza, da verdade como W" (De conjecturis, 1, 13). A conjectura
é um modo
de conhecer (por diferente natureza), ou seja, um conhecimento
que remete
fundamentalmente
116

para aquilo que é distinto de si mesmo, para a

verdade como tal mas que precisamente por essa razão está em
relação com a própria verdade, dela participando. Aqui, a
diferente natureza do conhecimento relativamente à verdade serve
para
fundamentar o valor do conhecimento que, precisamente pela sua
diferente
natureza se põe em contacto com a verdade. Contanto que
reconheça os seus
limites e neles se baseie, o conhecimento humano será pois, válido;
deixará
de o ser quando não for ignorância douta, ou seja, quando esquecer
a sua
natureza diferente da verdade que é a sua única participação
possível na
mesma verdade.

Correlativamente, o mundo, considerado na sua


natureza diferente de Deus, implica necessariamente uma relação
com Deus e até
mesmo a sua identidade com ele. O mundo, é, segundo Nicolau de
Cusa, um Deus
contraído. As palavras contraído e contracção (Icontractio), são
extraídas de
Duns Escoto (§ 305) que as adoptara para designar a determinação
ea
concretização no indivíduo, da substância comum. Nicolau de Cusa
emprega-as
com um significado semelhante. O universo é o
máximo, a unidade, e a infinidade tal como Deus, mas é um máximo,
uma unidade
e uma infinidade que se contrai, isto é, que se determina e se
individualiza
numa multiplicidade de coisas singulares. Deus, que é a essência
absoluta do
mundo, está no mundo, considerado na sua unidade, mas não rias
coisas; o
universo que é a essência contraída das coisas, está nestas de modo
contraído, quer dizer. multiplicado e diferenciado pela sua multi-
117

plicidade e pela sua diferença. Resulta daqui que Deus é a essência


(quidditas) do sol e da lua (como de todas as outras coisas) não está
no sol
nem na

lua; porém, o universo que é a essência contraída, é sol no sol e lua


na lua;
a sua identidade realiza-se na diversidade e a sua unidade na
pluralidade; é
neste sentido que é contraído. (De d. ign.,
11, 4). Mas esta relação entre Deus e o mundo, que a própria
transcendência de Deus relativamente ao mundo pressupõe,
significa que tudo quanto se pode encontrar no mundo existe, na sua
necessidade e na sua verdade, em Deus. Neste sentido, Deus é a
complicação (complicatio) de todas as coisas. Deus é, com efeito,
identidade, igualdade, simplicidade; estas três coisas são porém, a
complicatio da diversidade, da desigualdade, da divisão. Por outro
lado, é também a explicatio, ou seja, o desdobramento da
identidade na diversidade, da igualdade na desigualdade, da
simplicidade na divisibilidade. Pela sua explicação, Deus está em
todas as coisas, embora permaneça absolutamente para além delas,
pela sua unidade multiplicável.
A especulação ulterior de Nicolau de Cusa incidiu, ora sobre um, ora
sobre
outro aspecto desta relação entre Deus e o mundo. Em De
conjecturais, De idiota e De visione Dei acentua a inatingibilidade
da
transcendência divina, afirmando que a única fórmula capaz de a
exprimir é a da
coincidência dos contrários: coincidência do máximo e do mínimo, da
compilação e da explicação, do todo e do nada, do criar e do criado.
Esta
coin-
118
cidência não pode porém ser apreendida nem compreendida pelo
homem e por isso, Deus permanece para além do todo e qualquer
conceito humano, como infinito absoluto, relativamente ao qual são
nulos os
passos de quem caminha na sua direcção. Todavia, em De noit aliud
(1462)
reconhece essa expressão non aflud como a que melhor exprime a
transcendência
divina. Significa ela, na verdade, que Deus não está nesta ou naquela
coisa e
que, portanto, não pode ser conhecido nem determinado mediante
coisa alguma
que dele seja distinta. Mas a fórmula exprime também a ideia de
que Deus
determina tudo quanto é distinto de si, abrindo assim caminho à
compreensão
da essência do mundo. Põe ela em evidência, por conseguinte, não só
o
carácter distinto do mundo relativamente a Deus mas também a
conexão do mundo
com Deus; é sobre esta conexão que insistem as outras obras de
Nicolau de
Cusa. Em De possest descobre tal conexão no conceito de
possibilidade
(posse). Tudo quanto é, pode ser o que é. Isto é válido mesmo

para a realidade absoluta, isto é, para Deus: também essa pode ser.
Porém,
nessa, o poder ser não precede o ser actual; o poder ser, a
realidade
absoluta e a relação entre um e outro, são na realidade absoluta
igualmente
eternos. Em De venatione sapientiae Nicolau de Cusa distingue o
poder fazer (posse facere), o
poder transformar-se (posse fieri) e o poder ser feito (posse
factum). O
poder transformar-se precede o poder ser feito, mas o

poder fazer precede o poder transformar-se; por essa razão o


poder fazer é o
principio e o termo
119

da possibilidade de tudo quanto se transforma ou é criado. É tudo o


que pode ser e por conseguinte não pode ser nem maior nem menor,
é o máximo e o mínimo absolutos e não pode ser outra coisa. Por
esse motivo é a causa eficiente, a causa formal ou exemplar e a
causa final de tudo, o princípio e o termo de todas as coisas criadas
(De ven. sap.
39). O conceito da possibilidade serve aqui a Nicolau de Cusa para
justificar
e também para garantir a transcendência de Deus como posse
facere em
face do criado e a sua imanência nele como fundamento do posse
fieri e do
posse factum. Em De apice theoriae o mesmo conceito de
possibilidade é
reconhecido como o caminho mais directo e imediato para um
conhecimento de
Deus nos limites da douta ignorância. Sapientia clamat in plateis,
dissera
Nicolau de Cusa em De idiota (1, fi. 75 v. ): a verdade revela-,se nas
expressões mais simples e

vulgares, empregadas por todos. Até mesmo a


criança ou o jovem sabem o que significa a possibilidade, quando
falam em poder correr, poder falar ou poder comer. Não há noção
mais fácil nem mais certa do que a do posse, sem a qual não há
realidade, nem bem; é ela pois que abre caminho à compreensão da
misteriosa essência da realidade absoluta.
Assim, partindo da douta ignorância, ou seja, dos limites que
geralmente se
aceitam e se reconhecem no saber humano, Nicolau de Cusa
conseguiu de certo
modo restabelecer sobre esses mesmos limites uma relação entre
Deus, de um
lado, e o
120

mundo e o homem, do outro, relação esta que lhe permite uma nova
avaliação do homem.
§ 351. NICOLAU DE CUSA: A DOUTRINA DO HOMEM
A doutrina da douta ignorância implica a ideia de que o homem não
pode
aventurar-se ao conhecimento de Deus sem ter em conta os seus
limites.
Implica todavia também a ideia de que nesses mesmos limites pode
ele obter um conhecimento de Deus cuja. validade é garantida
pela íntima relação que subsiste entre o homem e Deus. A velha
doutrina da
semelhança entre a mente divina e a mente humana é reafirmada
por Nicolau de
Cusa no

sentido de que o homem pode descobrir nos limites da sua


subjectividade a
verdadeira face de Deus. E com efeito, a verdadeira face de Deus
não se
determina quantitativa nem qualitativamente, nem

segundo o -tempo, nem segundo o espaço; é a forma absoluta, a face


de todas
as faces. Assemelha-se àqueles retratos que parecem fitar o
observador,
qualquer que seja a posição em que este se encontre. Quem olhar
Deus com
amor, verá o seu rosto olhá-lo amorosamente. Quem o olhar com ira,
verá
também irado o seu rosto. E quem o olhar com alegria, vê-lo,-á
irradiando
alegria. A objectividade humana empresta a sua própria cor

ao semelhante divino, tal como uma lente colorida empresta a sua


cor aos
objectos observados. Mas é precisamente nesta multiplicidade de
rostos
divinos,

121

nesta multiplicação dos semblantes de Deus consoante a atitude


subjectiva de quem o procura, que se encontra a revelação de
Deus na sua verdade, Deus não pode revelar-se senão através da
subjectividade
do homem e esta subjectividade não é uni

impedimento à procura de Deus e sim condição dessa procura (De


vis. Dei, 6).
A subjectividade humana é aqui reconhecida por Nicolau de Cusa em
todo o seu
valor; para se aproximar de Deus, o homem não deve negá-la nem
aboli-Ia,
mas antes reforçá-la e desenvolvê-la. É ela uma força
assimiladora que se
transforma em sensibilidade diante das coisas sensíveis e em razão
diante das
coisas racionais (De id., 111, 7). É unia semente divina que com a
sua
força reúne em si (Complicans) os modelos de todas as coisas e foi
lançada à
terra para que possa dar os seus frutos e produzir por si,
conceptualmente, a
totalidade das coisas (Ib., III,
5). A subjectividade humana é actividade, capacidade de iniciativa e
de
desenvolvimento e possibilidade de realizar sempre novas aquisições
no
domínio do saber. "A natureza intelectual do homem", diz Nicolau
de Cusa
(Excitationes, V), "é capaz de Deus porque é potencialmente
infinita: pode,
na

verdade, compreender sempre cada vez mais". E ela é também o


princípio de
toda e qualquer avaliação e até mesmo a própria condição do valor.
Não quer
isto dizer que seja o intelecto a criar o valor; todavia, sem o
intelecto
não haveria maneira de o apreciar e por conseguinte todas as coisas
criadas
careceriam de valor. Se Deus quis que à sua obra fosse atribuído
um valor,
teve que criar
122

o intelecto humano que é o único a poder estimá-lo (De ludo globi,


11). Por
isso o homem não tem necessidade de romper os limites da sua
subjectividade
para se elevar até Deus. À pergunta de como será possível alcançar
Deus, de
como poderá o homem, atingir Deus, que é todo no todo, em si,
recebe aquele
do próprio Deus a resposta: Sê teu e

serei teu. Aqui reside a verdadeira liberdade do homem. O homem


pode, se quiser, pertencer-se a si próprio e só se for de si próprio é
que Deus será seu.
Por essa razão, Deus, embora não o necessitando, espera que o
homem escolha
ser de si próprio (De vis. Dei, 7). Assim a última consequência da
douta
ignorância, ou seja, do reconhecimento da transcendência absoluta
de Deus, é
o apelo divino ao
homem para que escolha livremente ser ele próprio, reconhecendo-
se na
própria finitude, aceitando-a e realizando-a. Somente se não se
negar a si
próprio e livremente aceitar ser o que é, se colocará o homem numa
relação autêntica com Deus e Deus será seu, tal como ele é de si
próprio. Os limites que a douta ignorância reconhece ao homem,
constituem assim, não a negação mas antes o fundamento do valor
do homem.
A criatura é um "Deus ocasionado" ou um "Deus criado", que não
pode tender
para outra coisa senão para ser aquilo que é e só desse modo
consegue de
alguma maneira reproduzir a infinidade de Deus (De d. ign., 11, 2).
O
valor que a criatura tem em si, dentro da sua finitude, é
claramente
patenteado pela encarnação do Verbo, o qual, ao

assumir a natureza humana, que recolhe e unifica


123

em si todas as coisas, nobilitou e elevou, conjuntamente com o


homem, todo o
mundo natural Ub.,
111, 2). O mistério da encarnação é assim para Nicolau de Cusa,
expressão do
vínculo que une a natureza finita do homem, justamente na medida
em

que é finita, à natureza infinita de Deus, ou seja, a demonstração


do valor
da subjectividade humana baseada precisamente naqueles limites
de que a

douta ignorância constitui o reconhecimento e a aceitação.


§ 352. NICOLAU DE CUSA: A NOVA COSMOLOGIA
O princípio da douta ignorância leva Nicolau de Cusa a uma nova
concepção do
mundo físico, a qual, por um lado se vai ligar às pesquisas dos
últimos
escolásticos, especialmente de Occam, e
por outro preludia directamente a nova ciência de Kepler, Copérnico
e
galileu. Em primeiro lugar, o reconhecimento dos limites próprios da
realidade e do valor do mundo conduz Nicolau de Cusa a negar que
uma parte
deste-a celeste-seja possuidora de uma absoluta perfeição e seja
portanto
ingénita e incorruptível. A doutrina de Aristóteles, que a filosofia
medieval
tinha feito sua, segundo a

qual existe uma separação entre a substância celeste ou etérea,


dotada de
movimento circular perfeito, e a substância elementar dos corpos
sublunares
sujeitos ao nascimento e à morte, doutrina essa já posta em dúvida
por Occam,
acaba por ser definitivamente aniquilada por Nicolau de Cusa. Não
124

reconhece ele, na verdade, a nenhuma parte do mundo o privilégio


da
perfeição absoluta: todas as

partes do mundo têm o mesmo valor e todas se aproximam mais ou


menos da
perfeição, mas
nenhuma a alcança pois esta pertence única-mente a Deuis.
O mundo não tem centro nem circunferência como o supusera
Aristóteles. Se os
tivesse e se por conseguinte tivesse dentro de si o seu princípio e o
seu termo, haveria fora do mundo outro espaço e outra realidade,
ambos
destituídos de qualquer verdade. Só Deus é centro e circunferência
do mundo;
é porém um centro e uma circunferência não corpóreos e antes
ideais,
significando apenas que todo o mundo nele se reúne (complicans) e
que ele
está em todo o mundo (explicans). Da construção do mundo pode
dizer-se
unicamente que <tem o centro em toda a parte e a circunferência
em nenhum
lugar, uma vez que circunferência e
centro são Deus que está em toda a parte e em
nenhum lugar (De d. ign. 11, 12). Por isso, o mundo, não pode dizer-se
infinito (infinito é apenas Deus), tão-pouco pode conceber-se finito,
uma
vez que é destituído de limites espaciais entre os quais se

encerre (Ib., 11, 11).


A terra não se encontra pois no centro do mundo e por essa razão
não pode
deixar de ter movimento. Não é esférica, embora tenda para a
esfericidade, uma vez que a esfericidade Perfeita não pode ser
atingida pelas
coisas criadas, assim como se não pode atingir o máximo absoluto:
relativamente a cada coisa de forma esférica, há sempre
125

outra cuja forma esférica é mais perfeita. O movimento que a


anima é
circular, embora não seja, pela mesma razão perfeitamente
circular. Mas isto
não implica que ela seja a mais vil e baixa de todas as coisas
criadas. É
uma nobre estrela, com luz, calor e influência diferentes da das
outras
estrelas. A geração e a corrupção que nela se verificam, verificam-
se
provavelmente também nos outros

astros e, possivelmente, também esses astros são habitados por


seres
inteligentes, de uma espécie diferente da nossa. O sol não é
diferente da
terra. Se nos fosse permitido penetrar nele, veríamos, sob a

sua luz, uma terra central, rodeada de uma zona aquosa,


seguidamente, de uma atmosfera mais pura do que a nossa e por
fim, de uma zona ígnea superficial; estas quatro esferas sucessivas
comportar-se-iam como os quatro elementos terrestres. Por outro
lado, se um homem se encontrasse no espaço exterior à terra, vê-
la-ia resplandecer como o sol. E se a lua não nos aparece tão
luminosa como o sol, é pelo facto de estarmos demasiado perto
dela, quase na sua zona aquosa (Ib., 11, 12).
Os movimentos que se verificam na terra como em qualquer outra
parte do
mundo, têm por fim salvaguardar e garantir a ordem e a unidade do
todo. De
acordo com esse fim, os corpos pesados tendem para a terra, os
corpos leves
para o alto, a terra para a terra, a água para a água, o ar para o ar,
o fogo
para o fogo, o movimento do todo, tanto quanto possível, para o
movimento
circular, e todas as formas para a forma esférica, como se
126
vê nas partes constituintes dos animais e das árvores e ainda no céu
(Ib.,
11, 12). Foi esta talvez a

primeira formulação do princípio da gravidade. A concepção do


mundo aparecia
completamente renovada pela obra de Nicolau de Cusa. Retoma ele
também a teoria do impetus que
os filósofos da escola occamista (§ 325) tinham formulado para
explicar o
movimento dos céus e dos projécteis, negando o princípio
ari,stotélico,
segundo o qual o

motor deve acompanhar o móvel na sua trajectória e reconhecendo


assim a existência da lei da inércia que constitui uma das bases da
mecânica moderna.
Todo e qualquer corpo, como a bola lançada pelo jogador, prossegue
indefinidamente no

seu movimento até que o poso ou outros obstáculos o façam


afrouxar ou parar (De ludo globi, 1). A mecânica de Leonardo da
Vinci foi buscar a Nicolau de Cusa a sua inspiração.
§ 353. O PLATONISMO ITALIANO
Enquanto Nicolau de Cusa elaborava a sua filosofia que, ao renovar o
platonismo, renovava igualmente a concepção do homem e do seu
mundo, travava-se em Itália a polémica sobre o platonismo e seu
valor relativamente ao
aristotelismo. Esta polémica fora iniciada por Jorge Gemisto
Pletone, nascido em Constantinópla por alturas de 1355 e falecido
em 1464. Tendo vindo a
Itália para participar no Concílio de Florença, que devia decidir a
união das
igrejas grega e latina, foi dos que fomentaram
127

aqui o conhecimento da língua grega e portanto o estudo directo das


obras
clássicas. Pletone ora partidário de uma unificação total das
crenças
religiosas com base no platonismo. Via em Platão aquele em cujo
nome a
humanidade poderia encontrar a

sua unidade religiosa e por conseguinte a paz; neste espírito


escreveu o
Confronto das filosofias de Platão e Aristóteles (por volta de 1440)
que deu
origem a uma longa e acesa polémica durante a qual foram
alternadamente.
exaltadas as figuras dos dois filósofos. A esperança da unificação
das
religiões não era um sonho exclusivo de Pletone. O próprio Nicolau
de Cusa,
alguns anos depois, manifestava em De pace fidei (1454) a mesma
esperança e
suplicava a Deus que permitisse aos homens o venerá-lo numa única
religião,
ainda que tivesse de subsistir a diversidade de cerimónias e ritos.
Nicolau
de Cusa baseava especulativamente a sua esperança na doutrina que

expusemos (§ 351), da diversidade dos rostos divinos. Pletone,
baseia-a numa
rovivescência do platonismo no qual via porém, não já a doutrina
original de
Platão e sim a dos Neoplatónicos. e Neopitagóricos da filosofia
helenística
(§§ 117 e segs.) mesclada de elementos orientais aos quais o próprio
Pletone
se refere expressamente. Com efeito, há entre as suas obras um
comentário aos
chamados Oráculos caldaicos, por ele atribuídos a Zoroastro, mas
que na
realidade são uma misturada de teses pertencentes ao
neoplatonismo siríaco (§
125). A obra de Pleitone é importante apenas pelo facto de exprimir
a
convicção, pró pria do Renascimento, de que a renovação do homem
e da sua
vida religiosa

128

e social só se poderá atingir mediante um regresso às doutrinas


filosófIcas
dos antigos.

As ideias religiosas de Gemâsto foram combatidas por Gennadio,


teólogo da
igreja oriental, também participante no concílio de Florença, por
Teodoro
Gaza e por Jorge de Trebizonda que escreveu

contra ele uma obra intitulada Confronto das filosofias de


Aristóteles e
Platão (sobre estes v. § 360). Em defesa de Pletone interveio
Basílio
Bessarion (nascido em Trebizonda em 1403 e falecido em Ravena
em 1472) com um
escrito intitulado Contra um caluniador de Platão. A preocupação
inicial de
Bessarion é a de não condenar Aristóteles para defender Platão,
demonstrando,
pelo contrário, na

medida do possível, a sua concordância fundamental. A


superioridade de
Platão relativamente a Aristóteles reside, segundo Bessarion, no
facto de
Platão, mais do que Aristóteles, se ter aproximado da verdade
revelada pelo cristianismo, embora sem a alcançar plenamente.
Bessarion pretendo porém, expressamente, reconduzir as
doutrinas, quer de Platão, quer de Aristóteles, ao seu genuíno
significado; é este igualmente o objectivo das suas inúmeras
traduções: da Metafísica de Aristóteles, dos Memoráveis de
Xenofonte, dos fragmentos de Teofrasto.
O interesse que estas discussões provocaram pela filosofia de
Platão
exprimiu-se pela fundação em

Florença da Academia platónica. Ficou esta a dever-se à iniciativa


de
Marcílio. Ficino e Cosme de ,Médicis, e reuniu um círculo de pessoas
que viam
num regresso às doutrinas autênticas do platonismo antigo a
possibilidade de
renovação do homem e
129

da vida religiosa e social. Os sequazes da Academia, especialmente


Marcílio
Ficino e Cristóvão Landino, viam no Platonismo a síntese de todo o
pensamento
religioso da antiguidade e portanto também do cristianismo que, por
esse,
motivo, seria a religião mais elevada e verdadeira possível. A
doutrina de
Platão ora na verdade considerada por Ficino (Prohemium ad Merc.
p.
1836) como a última e mais perfeita manifestação daquela teologia
de que
Mercúrio Trismegisto fora o iniciador e que fôra depois continuada
e
desenvolvida por Orfeu e Pitágoras. A concordância entre esta
teologia e o
cristianismo explicava-se através do reconhecimento de uma fonte
comum das
doutrinas de Platão e Moisés, fonte essa contida nos ensinamentos
de Mercúrio Trismegisto que teriam constituído o núcleo de toda a
teologia
posterior. O regresso ao platonismo não significava pois para os
sequazes da
Academia platónica um regresso ao paganismo mas antes uma
renovação do
cristianismo, pela sua recondução à fonte original que teria sido
precisamente o platonismo. A este regresso ao antigo está ligada
outra faceta
da Academia platónica, o anticuriailismo. Contra as pretensões de
supremacia
política do papado, a Academia platónica defendia o regresso às
ideias
imperiais de Roma pelo que o De monarchia de Dante ora
frequentemente objecto
de comentários e discussões. Entre os membros da Academia e além
dos inúmeros
letrados e crudátos da época que se congregavam em redor de
Lourenço, o
Magnífico, e de Ficino, destaca-se Cristóvão Landino que viveu
entre 1424 e
1498. Nas Disputationes
130

camaldulenses e no De nobilitate atimae, diálogos em que falam os


membros ilustres da Academia, encontram-se expostas e
defendidas as doutrinas de Ficino. Porém a figura que constituiu o
elemento animador da Academia, foi o próprio Marcílio Ficino.
§ 354. FICINO: A ALMA, CóPULA DO MUNDO
Marcílio Ficino nasceu em Figline, no Valdarno em 19 de Outubro de
1433 o fez
os seus estudos em Florenç a e Pisa. Tendo entrado em contacto
com Cosmo de
Médicis, deste recebeu encorajamonto e auxílio, bem como o
encargo de
traduzir Platão. Na villa Careggi oferta de Cosme, Ficino entregou-
se durante
muitos anos ao estudo e difusão do platonismo, reunindo à sua volta
aquele
círculo de amigos e discípulos que constituía a Academia platónica.
Tendo
adoecido gravemente em 1474, em vão buscou alívio, como ele
próprio conta (Ep., I, fis. 644), na
filosofia e nos escritores profanos; só se curou depois de ter feito
uma
promessa a Maria. Resolveu então pôr a sua actividade filosófica ao
serviç o
da religião e formulou por isso claramente o princípio directivo da
sua
especulaçãoa unidade intrínseca da filosofia e da religião. Nos
últimos anos
da sua vida assistiu às contendas que afligiram Florença e à
tentativa de
Savonarola a que foi hostil. Faleceu em 3 de Outubro de 1499 e foi
sepultado
em S. Maria del Fiore. Ficino, quando jovem, escrevera um tratado
intitulado
De voluptate
131

(1457). A primeira obra escrita após a crise foi De christiana


religione, em
1474, que escreveu primeiro em italiano e depois em latim. Em 1482
saíu a TheoJogia platonica; em 1489 o De vita; em 1492 saíram os
12 livros das Epístolas que na realidade consistem numa colecção de
ensaios e opúsculos. Importantes são os comentários a Platão,
especialmente o que incide sobre o Banquete. Ficino traduziu para
latim os diálogos de Platão, as Enéadas de Plotino e inúmeras outras
obras de escritores gregos (Atenágoras, Jâmblico, Proelo, Porfirio,
Psofios, Xenócrates, Sinésio, Spêusipo, Pitágoras e Hermias).
O objectivo declarado da especulação de Ficino é o de renovar e
promover a
união entre religião e filosofia. Esta união existiu na antiguidade em
todos aqueles povos entre os quais religião e filosofia tiveram amplo
desenvolvimento. A sua separação provocou a decadência tanto da
religião que
se tornou superstição ignorante como da filosofia que se tornou
iniquidade e
astúcia. A renovação conjunta da religião e da filosofia só se pode
atingir
através do restabelecimento da sua correlação e para tanto é
necessário
recorrer ao platonismo no
qual é mais estreito o nexo existente, entre religião e filosofia e
que por
conseguinte permite a revivescência de tal nexo na sua fecundidade
(De
christ. rel., proém., II, Theol. plat., proém.; In Plotin., proém.). O
próprio título da principal obra de Ficino exprime-lhe a intenção: a
Theologia platónica tem por objectivo renovar a especulação cristã,
ligando-a
ao platonismo. Porém, uma especulação assim entendida deve
necessàriamente
ter no homem o
132

seu centro. A teologia medieval tem por objecto únicamente Deus


mas a
teologia tal como Ficino a entende, tem realmente por objecto o
homem,, uma vez que o único fim de uma especulação religiosa ou de
uma religião filosófica é a renovação do homem. O significado que
para Ficino contém a redenção confirma esta posição central do
homem. A redenção é uma reformatio, uma reforma ou uma
renovação, pela qual no homem e através do homem, toda a natureza
criada aparece restituída à sua forma e reconduzida a Deus. Ficíno
observa que a reforma das coisas disformes é para a divindade uma
tarefa não menos importante do que a sua formação inicial. Pela
redenção, Deus "declarou e fez com que nada existisse de disforme
nem de desprezível no mundo, uma vez que uniu as coisas terrenas
ao rei do céu, adequando-as assim, de certo modo, às coisas
celestes" (De christ. rel., 18). É pois no homem que reside o centro
e o núcleo de todo o ser.
*
Pode dizer-se que toda a especulação de Ficino incide sobre esta
posição
central do homem no

mundo. Toda a realidade se diferencia em cinco graus: o corpo, a


qualidade, a
alma, o anjo e
Deus. A alma encontra-se no meio e é por isso a terceira essência
ou essência
média: quer ascendendo do corpo para Deus, quer descendo de Deus
até ao corpo, encontra-se
sempre no terceiro grau. Por conseguinte é o núcleo vivo da
realidade. Deus e
o corpo são muitíssimo diferentes um do outro e constituem os dois
extremos
do ser. O anjo não
**hga ~s dois extremos pois está completamente
133

voltado para Deus, descurando os corpos. A qualidade também os


não liga pois
se inclina paira o

corpo, descurando as coisas superiores. A alma prendo-se às coisas


superiores sem deixar as inferiores; é imóvel como aquelas e móvel
como estas; concorda com umas e deseja-as a ambas. Move-se em
direcção a um extremo sem abandonar o outro e por conseguinte é a
verdadeira cópula do mundo (Theol. plat, 111, 2). Introduz-se entre
as coisas mortais sem ser mortal, pois introduz-se íntegra e não
repartida e portanto retira-se íntegra e não dispersa. Enquanto
rege os corpos adere ao divino e por isso não é companheira e sim
senhora dos corpos. É simultaneamente todas as coisas porque traz
em si a imagem das coisas divinas das quais depende, e os motivos
ou modelos das coisas inferi que de certo modo produz. É
considerada por Ficino como o centro da natureza, a intermediária
de todas as coisas, a cadeia do mundo, a face do todo, o núoleo e
cópula do mundo (Ib., 111, 2).
Em virtude desta sua natureza, a alma é necessária à economia e à
ordem do
mundo e por isso deve ser indestrutível. Ficino retoma todos os
argumentos
aduzidos por Platão e pelos Neoplatônicos em apoio de tal,
indestrutibilidade; porém o principal argumento e o que mais
intrinsecamente
se prende com a natureza por ele atribuída à alma é o que se baseia
na
participação que esta tem no infinito, A alma é capaz de medir e
dividir o
tempo, e

ainda de remontar indefinidamente no curso deste em direcção ao


passado ou de
o estender infinitamente em direcção ao futuro. É ela que descobre
134

e define a infinidade do tempo assim como é também a verdadeira


medida de
tal infinidade. Mas a medida deve ser proporcional àquilo que mede:
a própria
alma deve ser portanto infinita, como

medida do infinito (Ib., VIII, 16). E esta infinidade revela-se com


efeito nas
suas próprias aspirações. A posse de corta coisa, a obtenção de um
certo
prazer, bastam para satisfazer todos os restantes seres animais.
Só o homem
jamais está contente com o
que possui (Ib., XIV, 7). Ao lado desta característica da infinidade,
que
distingue o homem das outras criaturas, há uma outra, igualmente
distintiva
do homem e que é a liberdade. Ficino admite a existência de uma
tríplice
ordem divina do mundo: a providência, que é a ordem que governa os
espíritos, o destino que é a ordem que governa os seres

animados e a natureza, que governa os corpos. O homem é porém


livre porque, embora participando destas três ordens, não é
determinado por nenhuma delas.
A sua natureza média permte-lhe participar duma ou doutra,
segundo a sua
livre escolha, mas sem ficar submetido ao seu determinismo.
Participa nestas
três ordens de modo activo e não passivo: participando na
providência, a
exemplo do governo divino, governa-se a si próprio e governa a casa,
o estado
e os **am,*mais; participando no destino com a imaginação e a
sensibilidade
(que o ligam aos
outros animais) governa o próprio destino; e participando na
natureza,
adquire o **d~io dos corpos. Por isso está liberto da necessidade e
segue,
livremente ora esta, ora aquela lei, servindo-se delas

135

como instrumento mas sem lhes sofrer os efeitos (lb., XIII). A sua
verdadeira
escolha é portanto a

escolha da liberdade. Retomando a fórmula de Nicolau de Cusa,


Ficino afirma
que o homem, ao decidir-se pela acção, opta mais por pertencer a si
próprio,
do que por servir este ou aquele e por isso o acto verdadeiramente
livre é
aquele que escolhe a

Liberdade (lb., IX, 4). Também para Ficino, tal como para Nicolau
de Cusa, o homem não deve procurar ser senão ele próprio.
§ 355. FICINO: A DOUTRINA DO AMOR
Ao carácter medianeiro da alma está ligado o
amor que é justamente a actividade pela qual a
alma desempenha a sua função medianeira. Ficino parte duma
descrição mítica
das origens do amor na qual se revela já a sua ideia dominante. Os
três
mundos criados por Deus, o da mente angélica, o da alma e o das
coisas
sensíveis, provêm todos do caos. Em primeiro lugar, Deus cria a
substância ou essência da mente angélica a qual, nos primeiros
momentos, é obscura e informe. Porém, uma vez que nasceu de
Deus, volta a Deus pelo desejo. Movida pelo desejo e iluminada pelo
raio divino, determina-se e forma-se, e nela se determinam e
formam as ideias modelos da criação. Este processa que vai do caos
à determinação consumada das ideias arquétipos da criação é o
processo do amor.
136

MARSILIO FICINO
o primeiro regresso da mente a Deus é o nascimento do amor; a
infusão do raio
divino é a nutrição do amor, a inflamação da mente é o incremento
do amor, o
aproximar-se a mente de Deus é o arrebatamento do amor; a
formação da mente
é a perfeição do amor. Assim pois, foi a criação guiada pelo amor,
do caos
até ao cosmos; e a característica do cosmos como tal é a beleza.
Por via da
beleza, o amor conduziu a mente primeiramente disforme até à
formação acabada (In Conv. Plat. de am. comm., 1, 3). Porém o que
faz do amor a actividade medianeira do universo é a natureza
recíproca das relações que estabelece entre Deus e o mundo. Não é
apenas o mundo que tende para Deus e se forma nesta sua
tendência, mas é o próprio Deus que ama o mundo. O homem não
poderia amar Deus se este mesmo o não amasse. Deus volta-se para
o mundo num acto livre de amor, toma-o a seu cuidado e torna-o vivo
e activo. O amor explica a liberdade de acção tanto divina como
humana, uma vez que é livre e nasce espontaneamente da livre
vontade (lb., V, 8).
Deus forma e governa livremente o mundo e livremente o homem se
eleva até Deus.
O amor é o vínculo do mundo e é ele que abole a indignidade da
natureza
corpórea, a qual é resgatada pela solicitude de Deus (Theol. plat.,
XVI, 7). "São três", afirma
Ficino, "os benefícios do amor: reconduzindo-nos à integridade, de
divididos
que estávamos, reconduz-nos ao céu; coloca cada um
no seu lugar e faz com que, nesta distribuição, todos ~ satisfeitos,
extingue
todos os aborreci-
137

mentos e acende na alma uma alegria continuamente nova, tornando-


a feliz, com um doce o brando prazer" . (In Conv., IV, 6). Deste
modo o amor é, não só a condição da ascensão do homem para Deus,
mas também o próprio acto da criação, ou seja, da descida de Deus
até à criatura.
As duas doutrinas fundamentais de Ficino, a da alma medianeira e a
do amor,
constituem as facetas originais do platonismo do Renascimento.
Repete ele
incontestavelmente o esquema neoplatónico, servindo-se porém
deste para
acentuar a função central do homem. O centro da especulação
original é o
próprio Deus, unidade absoluta, da qual tudo deriva e à qual tudo
regressa. O
centro da especulação platónica de Ficino, como de Nicolau de Cusa,
é o homem
na sua função medianeira e
por conseguinte no amor como justificação e acto
desta função. O homem é situado pelo platonismo de Nicolau de
Cusa e de
Ficino numa posição particularmente sua que faz dele um elemento
indispensável
da ordem e da unidade dinâmica do ser. Contínua este a ter a sua
origem e a
sua perfeição em
Deus, encontrando porém a sua verdadeira unidade vivente e
autojustificante no homem e no amor que o liga a Deus e que Deus
lhe retribui. A noção dos limites do homem e da transcendência do
ser relativamente a esses limites é parte essencial do platonismo
histórico original. Mas mesmo estes limites constituem, para
Nicolau de Cusa e Ficino, a originalidade da natureza humana e o
fundamento do seu valor e da sua liberdade.
138

§ 356. LEÃO HEBREU

A teoria ficiniana do amor foi retomada por Leão Hebreu, nascido


em Lisboa
entre 1460 e 1463 e falecido entre 1520 e 1535, provavelmente em
Ferrara. Deixou escritos os Diálogos de **anwr, editados pela
primeira vez em
Roma em 1535 e que tiveram logo inúmeras traduções e vastíssima
difusão. A
doutrina ali exposta é substancialmente a
de Marcílio Ficino. Descreve-se ali o amor como o duplo processo
que vai de
Deus às criaturas e do homem para Deus e que faz do homem o
centro
do universo, o ser sem o qual o mundo inferior estaria
completamente separado
de Deus. Atribui-se ao amor a circularidade do processo cósmico
que deriva de
Deus e a Deus regressa. O intelecto humano, ao unir-se ao corpo,
transporta a
luz divina do mundo superior para o inferior e faz assim participar
de Deus
tudo quanto foi criado. O amor
de Deus é o desejo de que o mundo, que lhe é inferior em perfeição,
atinja o
grau máximo de perfeição e beleza, o amor do homem, através do
qual o próprio
mundo ama Deus, tem como fim último a plena e absoluta união com
Deus. Esta
metafísica. do amor, que já se encontrava em Nicolau de Cusa e em
Ficino,
constitui um traço comum
do platonismo do renascimento. Prestava-se ela, com
efeito, não só a justificar a posição central do homem no mundo
mas também e
sobretudo, a exprimir o carácter religioso daquele platonismo que
via na
filosofia platónica a mais perfeita sín-
139

tese religiosa da antiguidade, reconhecendo nela a


única via para a renovação religiosa do homem.

§ 357. PICO DE MIRÃNDOLA: A PAZ REGENERADORA


O interesse religioso domina também a complexa figura de Pico.
João Pico, conde de Mirândola, nasceu em Mirândola em 24 de
Fevereiro de 1463. Após haver estudado em Bolonha e Ferrara, foi
a Pádua entre 1480 e 1482, onde entrou em contacto com o
averroísmo ensinado na Universidade local. Pico não tinha a
prevenção dos humanistas contra os "bárbaros" filósofos medievais.
Numa carta de
1485 para Ermolao Bárbaro (§ 340), condena a

atitude dos que sacrificam a aparência à substância e se deixam


derrotar pelas especulações daqueles que pouco cuidam dos
ornamentos do discurso.
Precisamente pelo desejo de entrar em mais estreito contacto com
os filósofos
árabes e escolásticos, cuja doutrina predominava ainda na
Universidade de
Paris, dirigiu-se a esta cidade. Em 1485 voltou ali, com o fim de
anunciar
uma grande discussão entre eruditos convocados em Roma a
expensas suas, sobre
900 teses; algumas destas revelaram-se heréticas e foram
condenadas. Pico
defendeu-as na sua Apologia. Para fugir à condenação, dirigiu-se a
França e
em seguida fixou-se em Florença, onde manteve relações de
amizade com
Lourenço, o Magnífico, Ficino, Polinizado e com o próprio Savonarola
pelo qual
se deixou, nos últimos anos da sua

140

vida, converter à ideia da necessidade de uma reforma moral da


igreja. Morreu
em Florença em

17 de Novembro de 1494, ao que parece, envenenado pelo


secretário. Entre as
suas obras, além da Apologia e da carta para Bárbaro, cabe referir
as
seguintes: Heptalus**, comentário aos primeiros capítulos do
Génese, editado em
1489; De ente et uno (1492), tentativa de síntese entre
aristotelismo e
platonismo; e Oratio, de dignitate hominis. Após a
sua morte foram publicadas as Disputationes adversus astrologos,
obra que é uma crítica da astrologia, as Conclusiones que
desenvolvem as 900 teses que tinha preparado para a discussão em
Roma o Comentário a uma canção de amor de Gerolamo Benivieni.
De temperamento passional (viu-se implicado num clamoroso
escândalo por causa
do rapto de uma dama florentina), investigador incansável e
irrequieto, erudito excepcional, João Pico não alcançou na sua
especulação,
nem a profundidade de Nicolau de Cusa nem a clareza de Ficino. No
seu
pensamento convergem os mais diversos elementos, derivados do
platonismo e do
aristotelismo, da cabala e da magia, e ainda da escolástica medieval,
árabe,
hebraica e latina, sem chegarem a fundir-se numa unidade
especulativa
original. O que o liga principalmente ao platonismo é o interesse
religioso
que domina a sua actividade especulativa. No discurso De hominis
dignitate
que preparou como introdução à discussão sobre as 900 teses que
deveria ter
tido lugar em Roma e que tem sido justamente designado como o
manifesto do
Renascimento ita-
141

liano, expõe Pico admirâvelmente o e~ e o plano do seu filosofar,


plano este,
ao qual se mantém fiel em todo o resto da sua obra. O ponto de
partida do
discurso é a superioridade do homem sobre as restantes criaturas,
que era o
tema favorito dos humanistas bem como de Nicolau de Cusa e de
Ficino. Ao
homem, último produto da criação, não ficara disponível nenhum dos
bens já
distribuídos na totalidade às outras criaturas. Deus decretou então
que lhe
fosse comum tudo o que individualmente destinara aos outras. "Por
essa razão
acolheu o homem como obra de natureza indefinida e após tê-lo
colocado no
coração do mundo, falou-lhe deste modo: Não te dei, ó Adão, nem
lugar
determinado, nem aparência própria, nem qualquer prerrogativa
especial, para
que obtenhas e conserves o lugar, a aparência e as prerrogativas
que
desejares, de acordo com a tua opinião e

esse mesmo desejo. A natureza limitada dos outros está contida


nas leis por
mim prescritas. Determinarás a tua, livre de qualquer obstáculo e
segundo o teu arbítrio a cujo poder te confiei. Coloquei-te no
centro do
mundo para que daí pudesses avistar melhor tudo quanto há no
mundo. Não te
fiz nem celestial nem terreno, nem mortal nem imortal, para que,
sendo de ti
próprio o quase livre o soberano artífice, te moldasses e esculpisses
na
forma da tua preferência. Poderás degenerar nas coisas inferiores,
poderás,
segundo a tua vontade, regenerar-te nas coisas superiores que são
divinas"
(Or. de hom. dign., fis. 131 v. ). A indeterminação da natureza
humana ofer~
ao
142
homem a livre escolha do seu ser e coloca-o face à alternativa de
degenerar ao nível dos animais irracionais ou de se regenerar em
Deus. Mas este regenerar-se não é senão a renascença do homem,
ou seja, aquela renovação que o Renascimento, na sua totalidade,
tende a realizar. Qual é a via dessa renascença?
É precisamente aqui que se revela o aspecto religioso da filosofia
de Pico. A
renascença realizar-se-á através de vários graus de sabedoria,
culminando no
mais alto que é o constituído pela sabedoria teológica. "Mas já que
não
podemos **deançá-la", acrescenta Pico, "nós, que somos carne
e temos o gosto das coisas terrenas, aproximemo-nos dos antigos
padres, que
destas coisas, para eles tão familiares e tão próximas, nos poderão
dar
riquíssimo e seguro testemunho," (lb., fis. 132 v. ). Por conseguiinte,
a via
da renascença consiste uma vez mais no regresso aos antigos. E é
nos antigos
que Pico encontra o caminho da sabedoria purificante e libertadora.
A ciência
moral dominará o ímpeto das paixões, a filosofia natural conduzirá o
homem de
um grau a outro da natureza e a teologia aproximá-lo-á de Deus.
Mas a
regeneração não terá lugar senão na paz e pela paz, É este o fim
último do
homem e é um fim religioso. Aquela não poderão conduzir, nem a
dialéctica,
nem a ciência moral, nem a filosofia natural, as quais se limitarão a
indicar o caminho, Só a teologia indissolúvel e a amizade harmónica,
pela
qual todos os homens não só se harmonizam naquela única mente que
está acima
de todas as mentes, como, de modo inefável, se
143

fundem num só" (Ib., fls. 133 v.'). Estas paz e


amizade que para os Pictóricos constituíam o fim da filosofia,
cifram-se na
paz celeste que a mensagem cristã anunciou aos homens de boa
vontade, e
que cada um de nós deseja para si próprio, aos seus amigos e a toda
a sua
época. Esta paz regeneradora é também aquela que Pico quer
afirmar e
estabelecer filosoficamente, mostrando o acordo fundamental de
todas as
principais manifestações do pensamento, dos Pictóricos a Platão e
Aristóteles, dos Neoplatónicos aos Escolásticos e dos averroístas à
cabala e
à magia. Aquilo que impele Pico à tentativa de demonstrar o acordo
fundamental entre as mais diversas doutrinas filosóficas e
religiosas da
humanidade, não é uma necessidade de quietude ecléctica mas sim a
convicção
de que só por meio da paz filosófica poderá o homem regenerar-se
e renascer
para a sua verdadeira vida. Esta verdadeira vida que é a felicidade
e o sumo
bem é definida por Pico como o regresso ao princípio (De ente et
uno, VH,
proém.). Regresso ao principio pode significar para cada ser,
regresso ao seu
próprio princípio ou -regresso ao princípio absoluto que é Deus. Mas
o
regresso ao seu próprio princípio é na realidade um regresso a si
próprio e desse modo, o homem poderá obter apenas a beatitude
terrena e não a eterna.
Por conseguinte, só no regresso a Deus residem a vida eterna e a
paz
definitiva do homem. Se o platonismo e o aristotelismo do
Renascimento
representam respectivamente as exigências opostas da vida
religiosa e da
investigação científica, a conciliação, entre Platão e Aristóteles
representa
para Pico
144

a harmonia e a paz entre aquelas exigências. A teologia não nega a


filosofia natural, antes a completa assim como Platão completa
Aristóteles: o homem não pode renunciar nem a conhecer a
natureza nem a transcendê-la.

A aspiração à paz regeneradora sugere a Pico o único tema original


da sua
especulação teológica. Apresenta na verdade, para ilustrar a
tradicional
semelhança entre a criatura e Deus, um esboço que, segundo ele
próprio
afirma, jamais foi apresentado por outros. Vê a unidade das
criaturas
diferenciada em três formas: a primeira é a unidade pela qual
cada
coisa é una; a segunda é aquela pela qual uma criatura se une a
outra
e todas se unem para formarem o mundo; a terceira é aquela
pela
qual todo o universo forma, com o seu artífice, um todo uno, tal
como o
exército com o seu chefe. Esta tríplice unidade que está
presente em
todas as coisas, faz de cada coisa a imagem da trindade divina.
E portanto, aquilo que de semelhante a Deus há em cada criatura
singular,
aquilo que constitui o seu maior valor, é a unidade, a paz ou a
concórd,ia da sua constituição intrínseca, paz e concórdia que a
ligam às outras
criaturas e a Deus.
§ 358. PICO DE MIRÃNDOLA: CABALA, MAGIA E ASTROLOGIA
Todas as obras de Pico tendem a realizar o projecto de uma paz
filosófica. A esta
paz deveria conduzir a grande discussão de Roma e nela se
145

inspira fundamentalmente o discurso introdutório De hominis


dignitate. A
obra De ente et uno destina-se à demonstração do acordo
existente entre
Platão e Aristóteles. Por sua vez, o Heptalus destina-se à
demonstração do
acordo existente entro a

filosofia antiga e a narração bíblica da criação. E a


última obra de Pico, a que é dirigida contra os
astrólogos, destina-se também a ilustrar a concordância existente
entre as
doutrinas mágicas e astrológicas e o cristianismo.

A narração bíblica da criação é interpretada por Pico no Heptalus


em sentido
alegórico: vê nela a
descrição da formação dos três mundos admitidos pelos filósofos
antigos, ou
sejam, o mundo inteligível ou angélico, o mundo celestial e o mundo
sublunar,
aos quais se junta uni quarto que é o homem como microcosmo, no
qual converge
todo o resto da realidade. A obra De enle et uno descobre a
concordância entre
Platão e Aristóteles na determinação das categorias fundamentais
da realidade
que são o ser, o uno, o verdadeiro e o bem, categorias estas que
culminam e
se unificam em Deus. Nas duas obras, como nas outras, Pico recorre
continuamente a doutrinas orientais, mágicas e cabalísticas, na
convicção de
que a origem de todo o
saber humano seja uno e que esta unidade, reconstituindo-se, torne
o próprio saber capaz da regeneração do homem. A magia, a
cabala e a astrologia desempenham portanto um grande papel na
especulação de Pico.
A magia, para ele, não é más do que "a realização completa da
filosofia
natural" (Or. de hom.

146

dign., fis. 136 v ). Há também uma magia que opera, baseando-se


exclusivamente na obra e na autoridade dos demónios; é porém
coisa execranda
e monstruosa que nada tem a ver com a verdadeira magia, a qual se
destina a
fazer do homem o senhor das forças naturais. Esta, perscruta a
íntima
concórdia do universo a que os Gregos chamam simpatia e que,
consiste nas
mútuas relações das coisas naturais. Os sortilégios dos magos não
são mais
que as ilusões apropriadas, pelas quais se tornam visíveis os
milagres
ocultos nos penetrais do mundo e nos mistérios de Deus. E assim
como o
camponês casa os olmos com as videiras, assim também o mago casa
a terra

com o céu, ou seja, as forças inferiores com os dotes e faculdades


superiores
(Ib., fis. 137). O mago não transgride, portanto, a ordem natural
mas antes a
submete, pondo em acto e ajustando as energias que jazem
disseminadas e
dispersas na natureza

(Concl. mag., XI, XIII).


Se a magia serve para penetrar os mistérios da natureza, a cabala
serve para
penetrar os mistérios divinos. Pico considera-a, na verdade, como o
melhor
guia para a interpretação das sagradas escrituras, sob o véu dos
símbolos, no
seu genuíno significado. As doutrinas da cabala (ver § 244) parecem
pois a
Pico estar em perfeito acordo, não só com

a doutrina da igreja e com a filosofia cristã mas também com as de


Pitágoras
e Platão (Or. de hom. dign., fis. 138 vo). A convicção de que através
da
cabala as doutrinas básicas do cristianismo remontam a uma
tradição
antiquíssima, reforça a vontade

147

de Pico em renovar a religiosidade do seu tempo mediante um


regresso às suas fontes originais.
A sua atitude é porém diferente no que se refere à astrologia. Em
face do
determinismo astrológico que fora afirmado pela filosofia árabe da
Idade
Média e dominava ainda a filosofia natural do ocidente, Pico faz-se
paladino
da liberdade do homem. A astrologia pode ser entendida em dois
sentidos. Em
primeiro lugar é astrologia matemática ou especulativa, quer dizer,
astronomia, a qual se preocupa unicamente com a determinação das
leis
matemáticas do universo. Em segundo lugar é astrologia judiciária
ou
divinatriz, preitendendo fazer provir do curso e da natureza dos
astros os
acontecimentos da vida terrena. Contra esta última se dirige a obra
de Pico
Disputationes in astrologiam. Converte ela, na sua opinião, os
homens, de
livres a escravos e fá-los ainda desgraçados, ansiosos, inquietos o
infelizes em quase todos os seus actos (Ib., 1, proém.). É absurdo
supor que
o nascimento de um homem como Aristóteles seja devido à
influência dos
astros. Muitos outros nasceram ao mesmo tempo que ele e não
possuíram o seu
talento. Este, recebeu-o ele de Deus e não do céu; o corpo apto a
servi-lo,
recebeu-o dos pais o tão-pouco do céu. Escolheu a filosofia e essa
escolha
foi fruto da sua livre vontade; nada existe nele que se possa
atribuir à
influência dos astros (Ib., 111, 27). A acção dos céus, que Pico
considera,
tal como Aristóteles, de natureza imutável e incorruptível, deveria
ser
uniforme e constante e não explicaria por essa
razão, a variedade e a mutabilidade, dos acontecimentos.
148

terrenos (Ib., HI, 7). Pôs e acima de tudo, a astrologia inverte a


relação
hierárquica que é própria, da realidade, pois subordina o superior ao
inferior, visto que, se o céu é sem dúvida superior às coisas
terrenas, o
homem, como ~o e liame do universo inteiro é superior ao pró prio
céu.
Através da investigação cientifica, o homem encontra-se em
posição de
compreender as leis naturais servindo-se disso para dominar a
natureza. A
astrologia anularia esta liberdade e torná-lo-ia. escravo (Ib., IV, 8).
Pico
defendia, deste modo, contra uma das mais difundidas e arraigadas
crenças do seu tempo, a dignidade do homem como responsabilidade
em face do próprio destino.
§ 359. FRANCISCO PATRIZZI
O mesmo propósito de renovação religiosa, próprio do platonismo
renascentista, domina a obra de Francisco Patrizzi. Nascido em
Cherso, na
Dalmácia, em 1529, estudou em Veneza e em Pádua. De 1576 a 1593
ensinou
filosofia platónica, em Ferrara e seguidamente foi chamado para
idênticas
funções em Roma, onde faleceu= em 1597. As suas principais obras
são as
Discussiones peripateticae e a Philosophia nova. A primeira tem
como assunto a
aniquilação da filosofia aristotélica e a segunda, a
construção de uma filosofia platónica que possa servir de base à fé
cristã.
Patrizzi considera a filosofia aristoté lica como inimiga da religião,
uma
vez que nega a omnipotência divina e o governo divino do

149

mundo; afirma ainda que os Escolásticos não são verdadeiros


filósofos na
medida em que não fizeram senão reformar a filosofia aristotélica
sem
cuidarem de conhecer as coisas tal como são. A sua filosofia tem
por
objectivo a renovação e defesa da religião cristã através do
regresso às
doutrinas pré-aristotélicas e particularmente às crenças orientais,
pitagóricas e platónicas. Ao dedicar a sua obra ao papa Gregório
XIV,
convida-o a mandar ensinar a sua filosofia em todas as escolas
cristãs,
chegando a

crer que tal provocaria o regresso dos protestantes ao seio da


igreja. A
Philosophia nova está dividida em quatro partes: a panaugia ou
doutrina da
luz, a panarchia ou doutrina do primeiro princípio de todas as
coisas, a
panpsichia ou doutrina da alma e a pancosmia ou doutrina do mundo.
Patrizzi
afirma, com os Neoplatónicos, como primeiro princípio, o Uno. O
Uno é a causa
primeira, absoluta e incondicionada, e não pode ser qualificado
senão como o
bem. Do Uno se distingue a unidade, gerada a partir dele, e da
unidade os
outros graus do ser até aos menos perfeitos: a sabedoria, a vida, o
intelecto, a alma, a natureza, a qualidade, a

forma e o corpo. O conjunto destas nove ordens da realidade


constitui o
universo inteiro. O conhecimento humano é um acto de amor que
tende a
regressar à unidade original, suprimindo a separação entre os
elementos do
ser. É definido por Patrizzi como "a união com o objecto
cognoscível"
(Panarch., XV) e consiste no acto de amor pelo qual o homem tende
para o
objecto, procurando suprimir a distância que o separa deste último.
Mas
150

este identificar-se o intelecto cognoscitivo com o objecto, esta


coitio, só é
possível com base numa identidade de natureza entre sujeito e
objecto. Se o
sujeito é alma e vida, também o objecto é alma e vida; Patrizzi
defende a
animação universal das coisas, o panpsiquismo, como sendo o único
princípio
capaz de explicar a sua conexão no mundo, a simpatia que as liga até
formarem
o todo e as torna penetráveis ao intelecto humano (Panpsich., IV). A
força
natural que distribui vida e

movimento a todos os corpos é a luz; Patrizzi retoma assim a física


da luz que já fora defendida pelo platonismo medieval de Roberto
Grossetesa e de S. Boaventura.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 349. A primeira ed. das obras de NICOLAU DE CUSA é alemã e
intitula-se
Opuscula varia; não traz indicação do ano nem do local da impressão
mas foi
provàvelmente editada em Estrasburgo em 1488. Outras eds.: Paris,
Basileia,
1565. O De non aliud foi descoberto e editado por Ubinger, Die
Gotteslehre
des N. C., Münster, 1888, págs. 138 e segs, Do De dacta ignorantia
hâ uma
nova edição de P. Rotta, J3ar@, 1913. A Universidade Heidelberga
iniciou uma
nova edição critica, das obras de Nicolau de Cusa: De idiota, De
sapientia,
De mente, a cargo de L. Baur, Leipzig, 1940; De concordantia
catholica, a
cargo de
O. Kallen, Leipzig, 1940; etc.

Sobre Nicolau de Cusa: Vanstenbeerghe, Le cardinal N. de Cues,


Paris, 1930; CAssiRER, Indivíduo e cosmos na filos. do ren., cap. 1;
M. de GandUlac, La phil. de N. de C., Paris, 1941.
151

§ 352. Sobre a física de Nicolau de Cusa: DuHEm, Études sur


Léonard de Vinci, vol. II, Paris, 1909, pags. 97 e segs..
§ 353. Algumas obras de Pletone, entre as quais o Confronto,
encontram-se em
P. G. de Migne, 160.1 Sobre ele: MESZKOWSKi, Estudos
sobre o
platonismo do renascimento, em Itália, 1936, cap. U. O texto e
a
tradução latina de Ficino dos Oráculos caldaicos em apêndice a
este, úJtimo volume.
As obras de Bessarione em P. G., 161.,. Sobre ele: MOMER,
Kardinal
Bessarion aIs Theologe, Humanist und Staatsman, Paderborn, 1923.

Sobre a Academia platónica: DELLA TORRF, HiStória da Academia


platónica de Florença, Florença, 1902.
De C. Landino, as Disputationes foram publicadas em Florença por
volta de 1480, o De vera nobilitate é inédito e o De nobilitate
animae foi publicado por GENTILE e PA0L1 nos "Anais das
Universidades toscanas". Gentile, Estudos sobre o renascimento,
pgs. 87 e segs.
§ Trads. platónicas de Ficino. Florença, 1483-E-1; de PLOTINO,
1492; a
Thealogia platonica, Florença,
1482. Ediç. das obras completas: Basileia, 1561, 1567,
1576; Paris, 1641.

Sobre Ficino: Saitta, A filosofia de M. P., Messina, 1923; BARON,


Willensfreiheit und Astrologie bei F. und Pico d. M., Berlim, 1929; P.
O.
KRISTELLER, The Philosophy of M. P., Nova Iorque, 1943 (com
bibl.).

§ 356* Os Diálogos de, amor de Le Hebreu foram reeditados por


C. GEBHARDT, Heidelberga, 1929 e por CARAMELLA, Bari, 1929.
FONTANESI, O problema do amor na obra de Leão Hebreu,
Veneza, 1934.
§ 357. De Pico, foram as Conclusiones editadas em Roma em 1486
e em Colônia em 1619; a Apologia, em Roma em 1489; o Hoptalus em
Florença em 1490;
152

as outras obras, em Boilonha, em 1496. A Oratio de hominis


dignitate, o
Heptalus, o De ente et uno e o

Comentário à canção de G. BENIVIENI foram reeditados e


traduzidos por Garin,
Florença, 1942, assim como as Disputationes adversus astrologiam
dininatrirem, Florença 1946. Os trechos citados são tirados da
trad. de
Garin.

Sobre Pico: GARIN, Jodo Pico de Míràndola, Fiorença, 1937; G.


BARONE, J. Pico de Mirándota, Milão-Rorna, 1948-49.
§ 359. As Di&cussiones peripateticae de PATRIZZI: Veneza, 1571;
Basileja, 1581. A Nova philosaphia: Ferraxa, 1591; Veneza, 1593;
Londres, 1611.
T. GREGORY, em "Renasci~to", 1953, pgs. 89
e segs..
153

IV

RENASCIMENTO E ARISTOTELISMO
§ 360. O PRIMEIRO ARISTOTELISMO
Unidos, no campo da historicidade, pelo esforço de regressar às
doutrinas
autênticas de Platão e

Aristóteles, os Platónicos e Aristotélicos, do Renascimento


opunham-se uns
aos outros na defesa de interesses contrários: religião e
investigação
naturalista. Os Platónicos viam no platonismo a síntese do
pensamento religioso
da antiguidade e por conseguinte no regresso ao platonismo a
condição da
renascença religiosa Os Aristotélicos viam no aristotelismo o
modelo da
ciência naturalista e por conseguinte no regresso ao naturalismo a
renascença
da pesquisa da natureza. A polémica entre Platónicos e
Aristotélicos, é
portanto o choque de duas, exigências de evidente e igual
necessidade para
155
o homem; e as tentativas de concüiação (como p. ex. a de Pico)
tendem a
harmonizar estas exigências num conceito do mesmo homem mais
próximo da perfeição.
O regresso ao aristotelismo original foi iniciado em Itália por
aqueles
eruditos, gregos que tomaram parto no Concílio de Florença para a
reunião
das duas igrejas ou que se refugiaram naquele país após a queda de
Constantinopla nas mãos dos Turcos (1453). O primeiro foi Jorge
Scholario,
chamado Gennadio, ~o em Constantinopla e
falecido por volta de 1464. Adversário de Genuísto Pletone,
condenou e combateu
o seu escrito sobre as Leis. Num escrito Sobre as dúvidas de
Pletone
relativamente a Aristóteles defendeu Aristóteles contra Pletone,
aduzindo a
sua maior conciliabil-idade com a doutrina cristã. Baseava-se
evidentemente
na tradição escolástica que estudara o de que fora partidário;
traduzira
mesmo para o grego, obras de S. T~ e de Gilberto Porrotano (o De
sex
principiís). Parece ser-lhe também atribuível a tradução para o
grego
das Summulae logicales de Pedro Hispano, (§ 289) que foi mais
tarde
erradamente considerada obra original do filósofo bizantino Míguel
Psollos.

A polémica contra Pletone foi continuada por Jorge Trapezunzio,


nascido
provavelmente em

Creta, em 1396 e falecido em 1484- Chegou este a


Itália por volta de 1430 e escreveu em 1464 a Comparatio Platonis
et
Aristotelis à qual respondeu por volta de 1469 o caildeal Bessarion
(§ 353).
A actividade de Trapezunzio dirige-se principalmente

156

à explicação e comentário das obras aristotélicas, nomeadamente


da lógica, que expõe em De re didectica, não sem utilizar elementos
tirados da tradição escolástica.
Não têm mais interesse filosófico as obras de Teodoro Gaza,
nascido por volta
de 1400 em Tessalónica e falecido por volta de 1473. Tendo
chegado a Itália
em 1440, permaneceu durante alguns anos na escola de Vitorino da
Foltre e
ensinou primeiro em Ferrara e depois em Roma. Travou polémica
com Bessarion
sobre questões aristotélicas e
escreveu contra Pletone. Traduziu inúmeras obras de Aristóteles e
o tratado Sobre as plantas de Teofrasto.
Quem primeiro contrapôs o Aristóteles original ao Aristóteles da
escolástica
árabe e latina foi Ermelao Barbaro (1453-93) de Veneza, o qual
compendiou a
ética e a filosofia natural, e traduziu a Retórica de Aristóteles e o
Co~ntário de Gemisto. Professa o mais absoluto desprezo pelos
"filósofos
bárbaros"", incluindo entre estes, tanto Alberto e Tomás como
Averróis. Vê na
forma rude e inculta da sua linguagem a primeira e mais grave
traição ao
espírito original do classicismo que pretendeu encerrar os mais
altos pensamentos na forma literária mais nobre. Os filósofos
bárbaros; foram pelo
contrário, defendidos por Pico de Mirândola na famosa carta
dirigida a
ErmelaO na qual o repreendia e simultâneamente aconselhava
* buscar neles, para além da rude forma literáría,
* substância do seu pensamento, do qual Pico julgava extrair ainda
ensinamentos ~. Na ver-
157

dade, porém, a intolerância de Erinolao pela barbárie da forma era


intolerância pelas superstruturas que o pensamento medieval
acrescentara ao Aristóteles original.
§ 361. AVERROISTAS E ALEXANDRISTAS
Mais um passo no sentido de um regresso ao autêntico Aristóteles
foi o que
deram aqueles aristotélicos que, polemicando contra o aristotelismo
averroista, pretendem manter-se fiéis aos textos de Aristóteles e
dos seus
antigos comentadores, especialmente Alexandre de Afrodísia. O
campo
aristotélico apresentava-se a Marcílio Ficino dividido em dois
partidos:
Alexandristas e averroístas. "Os primeiros", afirmava Ficino (In
Plotin.,
proém.), "crêem que o nosso intelecto é mortal enquanto os outros
sustentam
que é único em todos os homens; tanto uns como os outros
destroem os
alicerces de toda e qualquer religião, principalmente porque negam a
acção da
providência divina sobre os homens, e tanto uns como os outros são
infiéis
ao seu próprio Aristóteles". O grande centro Averroísta era, ao
tempo, a
Universidade de Pádua (§ 312). O averroísmo dominou aquela
Universidade
desde a primeira metade do século XIV até meados do século
XVII-, foi em
Pádua que apareceu em 1472 a primeira edição em latim das obras
de Averróis a
que se seguíram posteriormente, no século XVI, numerosas outras.
Notam-se
todavia entre os partidários do chamado averroí srno,
158

diferenças importantíssimas de doutrina e sobretudo frequentes


atenuações das
teses que mais directamente se opõem à religião cristã. por
obra de Pedro Pomponazzi, nasce o alexandrismo que pretende
regressar, em
matéria de interpretação de Arístóteles, ao comentário antigo de
Alexandre, o
próprio averroísmo sofre por isso modificações tais que é
frequentemente
difícil classificar os pensadores aristotélicos nesta ou na outra
corrente,
Dum modo geral pode dizer-se que os Averroístas tendem para o
panteísmo, na
medida em que consideram o intelecto humano único e idêntico ao
divino, ao
passo que os Alexandristas afirmam a transcendência de Deus
relativamente ao
mundo. Uns e outros têm em comum os temas da sua especulação
que são a
imortalidade da alma e a relação entre a liberdade e a ordem
necessária do
mundo. Uns e outros têm sobretudo em mira a afi-rmação da ordem
necessária do
mundo e por conseguinte negam o milagre e, dum modo geral, a
intervenção
directa de Deus nos acontecimentos do mundo. O aristotelismo do
Renascimento
tende por isso a delinear uma concepção do mundo baseada numa
ordem imutável
e necessária e com tal assenta as bases de uma ciência da natureza
que tenha
por objecto precisamente essa ordem. Tanto Alexandristas como
Averroístas
recorrem além disso e com frequência à chamada "doutrina da dupla
verdade" ,
entendida no sentido já explicado (§ 283) de admissão da
existência de uma
posição entre as conclusões da filosofia e as crenças da religião,
oposição
essa que não julgam

159

possível conciliar. Este ponto de vista nada tem que ver com o de
Averróis.
ao afirmar que a religíão tinha por objecto as mesmas verdades que
a
filosofia mas revestia-as de uma forma que as tornava mais aptas a
servirem
de guia e salvação das multidões. É antes, pelo menos na aparência,
o
registo de um conflito entre filosofia e religião, entre razão e fé; o
uma vez
que se exclui a possibilidado de solução do conflito e se admite ora
a
verdade de um, ora a de outro, dos dois termos em contradição
pode designar-se esta posição poi "doutrina da dupla verdade". É
óbvio que nada sabemos da
sinceridade em que cada pensador reconhecia a "verdade" da
religião: as condenações, as retratações e os arrependimentos
tornam impossível qualquer investigação sobre este ponto que aliás
seria estranha a um estudo histórico da filosofia. Tudo o que nesta
matéria se pode fazer, consiste em precisar a posição explícita dos
filósofos e em expor as bases teóricas da mesma.
A figura de Nicoletto Vernia. (1420-99), que ensinou em Pádua
desde 1465 até morrer, pode ter-se como típica do averroísmo
paduano do século XV.
Conhecido pelo seu feitio desabusado e faceto, Vernia sustentou as
teses típicas do averroísmo, provocando a intervenção do bispo de
Pádua que em 1489 proibiu as discussões sobre a unidade do
intelecto sob pena de excomunhão.
Vemia pagou bem os seus erros. Enquanto que as suas obras se
perderam,
ficaram-nos dele alguns escritos menores, nos quais a sua
orientação
naturalista se torna evidente através da superioridade

160

que atribui à filosofia natural relativamente à metafísica e à


medicina em
face da jurisprudência; esta última está, segundo Vernia, ligada às
acções
particulares dos homens, ao passo que a medicina respeita à
natureza que é o reino do universal e do necessário.
Discípulo de Vernia foi Agostinho Nifo, nascido em Sessa, na
Campânia, em 1473, e falecido em 1546, o qual ensinou,
primeiro em Pádua e seguidamente em Pisa, Bolonha, Salerno e
Roma. Numa obra
intitulada De intellectu et daemotúbus afirma que não existem
outras
substâncias espirituais e imortais para além das inteligências
motoras dos
céus. Publicou em 1495-97 as obras de Averróis, por si anotadas, a
seguir
escreveu uma obra em que atacava o De imortalitate animae de
Pomponazzi, recorrendo frequentemente a argumentos tomistas. No
campo da moral, Nifo mostra-se partidário de uma espécie de
sabedoria mundana, alcançada pelos escritores antigos em que tem
como objectivo o prazer; e, a acreditarmos nos testemunhos (ou
intrigas) dos escritores seus contemporâneos, a sua conduta foi em
tudo conforme àquela orientação.
Um misto de platonismo e aristotelismo resulta das doutrinas de
Leonico Tomeo, nascido em Venexa em 1456 e falecido em Pádua,
onde ensinava, em 1531.
Afirma ele que a oposição entre Platão e Aristóteles reside mais na
linguagem
do que no
pensamento e que a diversidade das expressões se
deve ao facto de Aristóteles adoptar -mais do que
161

Platão -uma linguagem física. De acordo com este princípio, procura


encontrar na própria doutrina de Aristóteles o fundamento da
demonstração da
imortalidade da alma feita por Platão (De imortalitate animae,
1524). A
demonstração platónica baseia-se no princípio de que a alma se
move por si;
por conseguinte não pode ser destruída, nem por ela própria, pois o
movimento
não pode falhar-lhe, nem por outra coisa, dado que o seu movimento
não
depende de outra coisa. Ora, segundo Torneo, Aristóteles teria
negado que a
alma se movia por si mas umicamente no sentido do movimento
espacial que nem
o próprio Platão lhe atribuía. Do mesmo modo se pode conciliar a
doutrina
platónica da reminiscência com a aristotélica da alma como tabula
rasa que
recebe do exterior as sensações: na verdade, a expressão
aristotélica refere-se à alma que não recebeu ainda sensações ou
que não recordou ainda os
conhecimentos que já possui. Tomeo sustenta que existe uma alma
do mundo que
tudo anima e governa e constitui o
principio do conhecimento humano. Assim o reconhecem também os
peripatéticos, os quais admitem que o nosso espírito sobre
a influência do exterior e não tem sentido diverso a doutrina
averroísta da
unidade do intelecto.

Cognominado "o segundo Aristóteles" pelo seu


conhecimento da filosofia aristotélica, foi Alexandre Achillini, que
nasceu
em Bolonha em 1463 e ensinou medicina e filosofia, primeiro em
Pádua e depois
em Bolonha onde faleceu em 1512. A sua
162

obra principal é constituída pelos Quodlibeta de intelligentis; foi


todavia
igualmente autor de obras de anatomia e de medicina. A maneira de
proceder de
Achillini é um bom exemplo daquela "doutrina da dupla verdade"
cujo
significado específico se esclareceu através do confronto entre os
filósofos deste período. Achillini ilustra e defende com grande
vigor todas as teses típicas do averroísmo
latino, mas não deixa de lhes opor e com pouco menos energia, as
teses
tradicionais da escolástica. Talvez (ou com certeza) o seu coração
esteja
com as primeiras; afirma todavia que, ao transmitir a palavra do
"filósofo"
(ou seja, Aristóteles, na interpretação averroísta) não pretende
fazer suas
as conclusões. É este, muito provàvelmente, apenas um
subterfúgio, para ter a possibilidade de defender e
ilustrar sem perigo o averroísmo. Assim, enquanto por um lado
afirma que, segundo Aristóteles, Deus faz mover o mundo por
necessidade e que o mundo é eterno, por outro sustenta que Deus
faz mover * mundo por um acto livre e que o próprio, mundo * as
inteligências motoras dos céus foram criadas por Deus.
Reconhece que Averróis tinha razão ao
afirmar que, de acordo com a doutrina de Aristóteles, há um único
intelecto
possível em todos os homens; sustenta porém que Aristóteles não
tinha razão,
uma vez que o intelecto é a forma que confere a cada homem o seu
ser
individual. O intelecto activo é, pelo contrário, reconhecido por ele
como
sendo o próprio Deus; chama-lhe intellectus qui esi omnia facere e
considera-o como a ac~ade

163

divina que determina a intelecção e por conseguinte também a


felicidade, do homem.
Posição semelhante, encontra-se nas obras de Marco António
Zimaira (1460-
1523) que foi também professor em Pádua e que interpretava a
unidade do intelecto, afirmada pelo averroísmo, como
unidade dos princípios fundamentais do conhecimento.
§ 362. POMPONAZZI: A ORDEM NATURAL DO MUNDO
O fundador da escola dos AlexandrÍstas foi Pedro Pomponazzi
(cognominado
Pereto ou Peretto) o qual nasceu em Mântua em 16 de Setembro de
1462. Tendo obtido em 1487 o grau de doutor em
medicina em Pádua, ensinou depois filosofia naquela Universidade,
em
concorrência com Alexandre AchiIlini, segundo o costume então em
voga de
contrapor um professor a outro no ensino da mesma matéria.
Encerrada a
Universidade paduana após a batalha da Ghiaradadda (1509),
Pomponazzi foi
leccionar para Ferrara e dali para Bolonha onde escreveu todas as
suas obras
e se suicidou em 18 de Maio de 1524. A sua obra mais famosa, De
immortalitate
animae é de 1516. Acusado por muitos de impiedade, Pomponazzi
não sofreu
qualquer aborrecimento, principalmente por causa do apoio de
Pedro, Bembo e
dos magistrados bolonheses. Pôde até, em 1518, responder às
acusações
164
*/*
numa Apologia, do que lhe resultou ser alvo de novos ataques, entre
os quais
o de Nifo (De immortalitate animae libellus, 1518). A este replicou
Pomponazzi com o De Defensorium. As suas outras principais obras,
De
naturalium effectuum admirandorum causis sive de incantationibus
e De fato, libero arbitrio et praedestinatione foram publicadas já
depois da sua morte.
O objectivo essencial da especulação de Pomponazzi consiste no
reconhecimento
e justificação da ordem racional do mundo. Pomponazzi é levado a
negar ou a rejeitar todo e qualquer facto ou elemento que
contradiga o ideal
de um mundo necessàriamente ordenado com base em princípios
imutáveis. Vê em
Aristótoles o filósofo que xejeitou a
intervenção directa de Deus ou de outros poderes sobrenaturais
nas coisas do mundo e quiÍs entender o mundo como puro sistema
racional de factos.
Pomponazzi remete para o domínio da fé tudo quanto é miraculoso e
até a
própria crença nos
milagres, pretendendo assim desimpe£ür o caminho da investigação
racional de
toda e qualquer ingerência estranha e restituí-Ia à sua liberdade. A
doutrina
averroísta da dupla verdade é também o seu guáa: a igreja ensina a
verdade;
ele limita-se modestamente a declarar a opinião de Aristóteles. Na
realidade,
porém, a opinião de Arístóteles é para ele a procura racional que
não
pretende guiar-se senão por si própria, ao passo que a fé, ou seja a
reverência perante a autoridade, uma vez reconhocida como falha
de toda e
qualquer base racio-
165

nal ou moral, se esvazia de sentido e deixa de ser um obstáculo à


investigação. Estes tragos do filosofar de Pomponazzi são evidentes
sobretudo
na

obra De incaiuationibus. Aparentemente, esta obra encontra-se


pejada de
superstições medievais, tendo por objectivo a explicação de
encantamentos,
magias, bruxarias e efeitos miraculosos de plantas, pedras o outras
coisas. Nem
Pomponazzi nega a
realidade de tais factos excepcionais ou miracuilosos os quais
parecem comprovados pela experiência. Porém, o espírito novo da
obra revela-se na recondugão dos supostos factos miraculosos a
factos naturais e na sua explicação mediante causas que pertencem
à ordem necessária do mundo.
Pomponazzi começa por criticar a explicação popular tradicional
segundo a
qual tais factos seriam produzidos pelos espíritos ou pelos
demónios. Nem os
espíritos, nem os demónios, poderiam sequer ter conhecimento das
coisas
naturais pelas quais se

produzem aqueles efeitos miraculosos: não poderiam, com efeito,


conhecê-los,
nem - como Deus -
através da sua própria essência, nem - com os
homens -através das qualidades abstraídas das coisas. Não através
da sua
própria essência pois tal só poder-ia acontecer se esta fosse a
causa das
coisas, o que não sucede; não, também, através das qualidades
abstraídas das
coisas como acontece com os homens pois aqueles não possuem,
como

estes, órgãos de sentidos. É portanto inútil admitir a existência de


espíritos ou demónios para explicar encantamentos e bruxarias. Na
verdade,
encantamentos e bruxarias não são milagres no sentido
166

de serem absolutamente contrários à natureza e estranhos à ordem


do mundo;
dizem-se porém milagres apenas na medida em que são factos
insólitos e
raríssímos que não acontecem segundo o curso

ordinário da natureza e sim com longuíssimos intervalos (De íncant.,


12). A via através da qual estes aparentes milagres reentram na
ordem natural é o deternúnisrno astrológico.
Deus é a causa universal das coisas mas não pode agir
imediatamente sobre as
coisas do mundo sublunar. Todas as suas acções relativamente a
estas
últimas são apenas acções mediatas executadas por intermédio dos
corpos
celestes que são os órgãos ou insitrumentos necessários à acção
divina. A
ordem cósmica exige que o grau suiperior só possa agir sobre o
inferior
através do grau intermédio, o que implica que nenhum milagre seja
possível no
sentido de uma acção sobrenatural directa de Deus sobre as coisas
do mundo
subluna-r. Oráculos, encantanientos, ressurreições e outros efeitos
miraculosos que têm lugar no mundo por obra de magos ou

necromantes, são só efeitos naturais, devidos ao influxo dos corpos


celestes
(De incant, 10). Mas a
parte mais típica desta doutrina de Pomponazzi é a que inclui na
ordem
natural do inundo, regulado pelo determinismo astrológico, a própria
história
dos homens. Com deito, tudo o que acontece no
mundo sublunar está sujeito à geração e à corrupção, tem um
princípio, uma
progressão, através da qual atinge o acabamento e um termo. A
esta evolução
não se subtraem os estados, nem os povos,
167

nem as próprias instítuições religiosas. Todas as


religiões nascem, florescem e morrem. O nascimento de uma
religião é
caracterizado por oráculos, profecias e milagres cujo número
diminui
progressivamente à medida que se aproxima a época do seu termo.
O
cristianismo não se subtrai a esta lei. "Vemos", diz Pomponazzi (Ib.,
12)
"que as instituições religiosas e os seus milagres no principio são
mais
débeis, depois aumentam até atingir o cume

e em seguida vão enfraquecendo até desaparecerem por completo.


É por esse
motivo que também na
nossa fé estão a acabar os milagres, excepto os fingidos ou
simulados: o fim
parece estar próximo". Assim, nada, absolutamente, se subtrai à
ordem
necessária do mundo e à lei que o governa. É verdade que
Pomponazzi se mantém
fiel ao velho determinismo astrológico que fora introduzido na ffi
osofia
ocidental pela especulação árabe (§ 235) mas

esse determinismo é apenas o meio de que se serve


para alargar a todos os fenómenos, incluindo os aparentemente
miraculosos, a ordem necessária da natureza que é o fundamento da
investigação filosófica. Pomponazzi foi o primeiro a expor com
grande clareza e extrema energia o pressuposto de toda e qualquer
investigação naturalista: a afirmação de uma ordem regular que não
sofre exepções. Só a partir deste pressuposto é possivel. o estudo
do mundo natural. Mudará mais tarde a forma particular deste
pressuposto e será negado o determinismo astrológico; não mudará,
porém, o pressuposto em si.
168

§ 363. POMPONAZZI: A NATURALIDADE DA ALMA

O famoso tratado de Pomponazzi sobre a imortalidade da alma tem


fundamentalmente o mesmo fim: fazer regressar o homem à ordem
das coisas
naturais. A alma humana não pode de modo algum existir e obrar
sem o corpo. A
sua individualidade depende na verdade do corpo que, como queria
S. Tomás, a
multiplica e divide nos homens individualmente considerados: a sua
acção
depende outrossim do corpo pois não pode compreender senão os
objectos
corpórcos. As inteligências celestes não necessitam do corpo, nem
como
sujeito, nem como

objecto: o seu conhecimento não é adquirido pelo corpo, que não


têm, nem é
produzido pelos corpos pois das são motoras e não movidas. Pelo
contrário, a
alma sensitiva necessita do corpo como sujeito, uma vez que não
pode
desempenhar as suas funções senão por intermédio de um órgão
corpôreo e
nocessita dele também como objecto, uma vez que o seu
conhecimento é por ele
produzido. A alma intelectual humana possui uma natureza
intermêdia entre a
inteligência celeste e a alma sensitiva. Não necessita do corpo como
sujeito
porque não necessita de órgãos corpórcos como a alma sensitiva;
necessita porém do corpo como
objecto por não ser capaz de compreensão se não for movida pelos
corpos
exteriores. Este modo de funcionar do inteler-to humano não pode
transformar-se no funcionamento imaterial das intolàgências
celestes. A
experiência demonstra que o intelecto humano só pode

169

entender mediante imagens; ora uma vez que as imagens só pelo


corpo lhe podem
ser fornecidas, a própria vida do intelecto encontra-se ligada ao

corpo e sofre a mesma sorte deste (De imm. an., 91). S. Tomás
admitira a
possibilidade de um outro

funcionamento do intelecto, independentemente do corpo, ou seja,


das imagens
por este fornecidas, Pomponazzi observa que isso significaria
transformar a
natureza humana na divina e a alma humana também na divina,
segundo uma
daquelas transformações fabulosas narradas por Ovídio nas
Metamorfoses (Ib.,
9). É precisamente aqui que se
revela plenamente o carácter naturalista da psicologia de
Pomponazzi: a alma
é reconhecida na sua condição e no seu funcionamento naturais, que
se
apresentam E-ados ao corpo e à experiência sensível. Querer
subtraí-Ia a
estas condições naturais é ridículo; significa abandonar-se a uma
<dábula" e não já investigar cientificamente a natureza da alma.
Outro significado não tem igualmente a defesa da autonomia da
moral que
encerra a obra Sobre a imortalidade da alma. À objecção segundo a
qual o
negar a imortalidade da alma significaria anular a vida moral do
homem, pois
faltaria o prémio ou o castigo na outra vida o que poria em dúvida a
própria
justiça divina na medida em que o bem ficaria, sem prémio e o mal
sem
punição, responde Pomponazzi que a virtude e o vício têm o seu
premio ou o
seu castigo em si próprios. Tanto o prêmio como o castigo têm
duipla
natureza: uma

essencial e inseparável e a outra acidental e separá-


170

vel. O prêmio essencial da virtude é a própria virtude, que torna o


homem
feliz. A natureza humana a nada mais pode aspirar, além da virtude,
pois só
ela torna o homem seguro e tranquilo. Do mesmo modo, o castigo do
vicio é o
próprio vício, a mais desgraçada e infeliz de todas as coisas. Num
sentido
absoluto, pois, não há virtude que fique sem prémio nem vício que
permaneça
impune. Podem porém faltar neste mundo o prêmio e o castigo
acidentais, quer
dizer, aqueles bens ou aqueles males (como o dinheiro, os danos,
etc.) que
são separáveis da virtude e do vício como tais. Todavia, da falta
destes
elementos acidentais da vida moral não resulta qualquer
inconveniente e uma tal falta é até pelo contrário, preferível. A
bondade parecerá dim-inuir e tornar-se menos perfeita se for
premiada de modo acidental, ao passo que quem agir sem qualquei
esperanç a de prêmio, executa a mais virtuosa das acções.
De modo análogo, o castigo diminui a culpa e portanto é, na verdade,
mais
castigaido, aquele que parece não ser, de todo, punido. Pomponazzi
está
contudo ciente de que são poucos os homens capazes de agir em
virtude da pura
exigência moral e dá-se conta de que os fundadores das religiões se
viram
forçados a anunciar para a outra vida, prémios e castigos eternos,
com o fim
de desviar do mal a maior parte dos homens a qual é incapaz de agir
autèoriornamente. A prescrição de tais prêmios e castigos vem pois
ao
encontro duma exigência natural: a natureza humana,
completamente imersa na
matéria e participando pouco do intelecto é melhor determinada por
móbeis que apelem para o

171

seu lado material. A moiral humana natural é por conseguinte aquela


pela qual
o homem escolhe a virtude pela felicidade que lhe anda
inseparàv01mente
ligada. É todavia igualmente natural a perspicácia dos legisladores
que
prescrevem prêmios e

castigos eternos. Pomponazzi quer reconhecer e compreender o


homem na sua naturalidade, quer submetê -4o a uma lei que o ligue à
ordem necessária do todo.
§ 364. POMPONAZZI: LIBERDADE E NECESSIDADE
A relação existente entxe esta lei necessária e a
liberdade humana é estudada na terceira das obras fundamentais
de Pomponazzi,
intítuilada De fato, libero arbitrio et praedestinatione. Ali se
expõem
amplamente todas as dificuldades, dúvidas e contradições que
nascem do estudo
da relação que existe entre a presciência, a predeterminação e a
omnà,,potência divinas, por um lado, e a liberdade huimana, por
outro. A
presciência e a prodeterminação divinas não podem ser negadas sem
que se
prive a

religião completamente, do seu fundamento; a liberdade não pode


ser negada
sem que se contradiga directamente a experiência humana.
Pomponazzi examina
longaniente todas as soluções possíveis e
não chega a uma conclusão precisa; pelo contrário confessa-se
torturado por
este problema tal como
o fabuloso Prometeu era torturado pelo abutre que lhe devorava o
fígado para o punir por ter roubado o fogo divino (De facto, 111, 7).
172

O que se pode dizer é que a presciência divina não exclui em


absoluto a
liberdade humana. Há uma dupla relação entre o conhecimento
divino e a acção
humana. Em primeiro lugar, Deus prevê a

acção humana com base na sua causa que é a natureza humana, quer
dizer, ele
sabe que o homem pode atingir desta ou daquela maneira e que pode
executar ou
não determinaida acção e sabe-o em virtude do conhecimento que
tem da
natureza humana. Porém, esta presciência divina é ènicamente
previsão da
possibilidade de uma acção e não da sua efectiva execução; não
elimina
portanto a liberdade de acção. Em segundo lugar, Deus conhece a
acção futura, não na sua causa mas sim na sua efectiva realização,
isto é, sabe com certeza qual das muitas acções possíveis será na
verdade executada pelo homem.
Todavia, Deus conhece isto na medida em que conhece tudo o que
existe e
por conseguinte até mesmo o futuro; tão-pouco esta presciência
tolhe, pois, a
liberdade humana e explica-&e pelo facto de que Deus, na sua
eternidade,
compreende todos os tempos (Ib., 111, 12). Considerações
semelhantes valem
para a predestinação. Deus quer que todos os homens sejam felizes,
com
aquela beatítude que se alcança por meios naturais e mediante a
pura razão.
Predestina porém, alguns homens à beatitude eterna, a qual não é
alcmçada por
vias puramente naturais. Esses homens, se cooperarem com a graça
divina,
al=çarão aquela beatitude, mas, se a recusarem, ~erão a própria
alma. A
predestinação deixa pois subsistir a liber-
173

dade do homem para aceitar ou recusar a ajuda sobrenatural de


Deus (Ib., V, 7).
Onde, porém, a contradição nos surge irreme. diável é na relação
existente
entre a omnipotência divina e a liberdade do homem, Aqui,
Pomponazzi recusa-se a uma conclusão definitiva e limita-se a dizer
que, atendendo a
considerações puramente naturais e a quanto pode consentir a
razão humana, a
opinião menos contraditória é a dos Estóicos que afirmaram o
destino, isto é,
a necessidade absoluta da ordem cósmica estabelecida por Deus.
Contra esta
solução, mantém-se a dificuldade de ser Deus a causa não apenas do
bem mas
também do mal. Pode todavia responder-se que tanto o
bem como o mal concorrem para o acabamento do universo e que
neste, como num
organismo vivo, devem existir não só partes puras e nobres mas
também partes
impuras e vis. Se não existissem tantos males, não haveria os
correspondentes
bens o se o mal fosse impossível, o bem sê-lo-ia também (lb., 11, 6).
A
preferência de Pomponazzi por uma

solução tão radicalmente determinista como a estóica, revela-nos a


essência
do seu pensamento. O imiportante é salvar a todo o custo a ordem
racional do
mundo, ainda que esta ordem conduza à negação do livre arbítrio
do homem. O
interesse de Pomponazzi incide totalmente sobre a investigação
naturalista e
esta investigação só é possível desde que se
aceite a ordem necessária do mundo. Contra esta exigência ergue-
se a doutrina
da igreja e Pomponazzi declara expressamente que é preciso crer
na
igreja e por conseguinte negar o destino dos Estói-
174

cos (Ib., perorat.). Para elo, porém, a exigência religiosa e a


exigência
científica constituem sistemas distintos e que não se comipensam
mútuamente.
Reduzindo a exigência religiosa a um puro acto de respeito pela
autoridade da igreja, liberta a investigação científica de toda e
qualquer interferência, entendendo-a como pura indagação racional.
§ 365. OUTROS ARISTOTÉLICOS
Pomponazzi abre a série dos peripatéticos alexandrístas. Foi seu
discípulo
Simão Porta ou Porzio (1496-1554), autor de duas obras, intituladas
respectivamente De rerum naturalibus principii o De anima et
mente humana
(1552), o qual se manteve estrietamente fiel às doutrinas do
mestre. Pelo
contrário, no cardeal Gaspar Contarini, (1483-1542), patriarca de
Veneza,
também seu discípulo e autor de De immortalitate animae contra
setentiam Pomponatii doctoris sui, encontrou Pomponazzi um
adversario sobre a questão da imortalidade da alma.
Um lugar à parte é devido a André Cesalpino, nawido em Arezzo em
1519;
ensinou primeiro em
Pisa e mais tarde em Roma, onde foi médico de Clemente VII e
faleceu em 1603.
O interesse naturalista de Cesalpino toma-se evidente com a obra
De plantis
(Florença, 1583) na qual revelou um
"sisterna natural" do mundo vegetal, inàciando a
nova ciência botânica. Nas suas duas obras filosóficas, Quaestiones
peripateticae e Daemonum investigatio, propõe-se regressar ao
estudo das
obras aris-
175

totélicas, prescindindo de todos os intérpretes, com o objectivo de


fazer
surgir o verdadeiro e genuíno Aristó teles (Quaest. perip., pref).
Vai ainda
mais longe do que Pomponazzi na afirmação da independência da
investigação
filosófica relativamente ao ensinamento eclesiástico, Não nega que,
nalguns
pontos, as dou-trinas de Aristóteles sejam contrárias k verdade
revelada;
declara porém, que não lhe cabe evidenciar esta oposição pelo que a
deixa aos
teólogos competentes (Ib.). A doutrina. de Cesalpino é
essencialmente um
panteísmo em moldes averroístas. Deus é imanente no mundo, tal
como a alma é
imanente no corpo. É a alma do universo considerado na sua
totalidade mas não
a alma das partes singulares do universo. Assim como no organismo
vivo a alma
não se encontra em acção em todo o corpo e tem a sua sede no
coração, de onde
transmi,te a vida ao corpo inteiro, também a alma do universo tem a
sua sede
no céu e dali difunde a sua força vivificadora por todas as partes do
universo (lb., 1, q. 7). O órgão desta actividade vivificadora é o
espírito
vital que actua por intermédio do calor celeste, o qual se encontra
espalhado
por toda a parte, coordena todas as porções e garante a unidade do
universo
ffiaem. invest. 3). O universo é pois considerado como um corpo vivo
e
animado no qual todas as partes se encontram subordinadas ao
conjunto. As
inteligências celestes, admitidas por Aristóteles para explicar os
movimentos
dos céus, são aspectos da inteligência divina única. "Assim como",
diz-nos
(Quaest. per., 11, q. 6), "a alma sensível toma a designação de vista
nos
olhos o de
176

ouvido nos ouvidos, também a inteligência, na medida em que faz


mover a lua, é atribuída à lua, na medida em que faz mover
Saturno, é atribuída a

Saturno e assim por diante. Todas as inteligências se contêm numa


só, do
mesmo modo que as

partes se contêm no todo". São igualmente partes da inteligência


divina os
intelectos humanos individuais, os quais se diferenciam das
inteligências
motoras dos céus pelo facto da sua participação no intelecto divino
não ser eterna mas sim corruptível. Por mais que a individualidade
dos intelectos humanos dependa da matéria, não será por isso que
e~ intelectos perderão após a morte essa indivídualidade: o facto
de terem aderido a um corpo basta pam os distinguir uns dos outro;
e para os distinguir a todos da inteligência divina que jamais se
encontra unida a qualquer corpo ffiaem. invest., 3). Mas esta
afirmação da persistência da individualidade da alma humana (e
portanto da sua imorta-lidade) não impede a doutrina de Cesalpino
de ser uni autêntico panteísmo: Deus é a alma do mundo e
identifica-se com a força que lhe comunica movimento e vida.
Enquanto Cesalpino leccionava em Pisa o em Roma, Jaime Zabarella
(1533-89) ensinava em Pádua uma doutrina mais próxima do
alexandrismo. Tal como Cesalpino, Zabarefia declara limitar-se a
expor a doutrina de Aristóteles sem se preocupar com a relação
existente entre esta e o cristianismo (De prim.
rer. mat., HI, 2). Mas, ao contrário de Cesalpino, Zabarefia afasta-
se do
panteísmo ao afirmar a separação entre Deus e o mundo. A relação
exis-
177

tente entre Deus como primeiro motor e o céu que põe em


movimento não é
semelhante à que tem lugar no homem entre alma e corpo. Deus não
é * forma
enformadora (inform~ do céu assim como * alma é a forma
enforniadora do
corpo; é apenas * forma assistente (assistens) do céu. Com efeito,
ele não
dá o ser ao céu, que é eterno como ele próprio, mas apenas o
movimento (De
natura coeli, 1). Que Deus se limita a comunicar movimento ao céu é
o que se
conclui da circunstância de só se poder provar a existência de Deus
como
primeiro motor se se admitir a eternidade do movimento celeste.
Se se
abstrair desta eternidade, poderá admitir-se a existência de um
primeiro
motor imóvel e semelhante à alma dos animais mas não a de um
primeiro motor separado da matéria, indivisível, infatigável e
perpétuo. Um tal primeiro motoir só poderá ser demonstrado se se
partir do principio da eternidade do movimento celeste. ou se
admite portanto que o movimento celeste e por conseguinte *
mundo são eternos ou não é possível demonstrar * existência de um
primeiro motQr distinto (De invent. aeterni motoris, 2). Mas uma
vez admitida a existência de um primeiro motor, este é por sua
natureza distinto dos céus e por conseguinte é forma assistente.
Quanto à alma humana, esta é ao mesmo tempo forma enformadora
e forma assistente do corpo: como forma enformadora dá o ser ao
corpo e como forma assistente é princípio motor.
Neste último aspecto a alma é actividade intelectiva e portanto
independente
de todo e qualquer órgão corporal (De nwnte hum. 1, 13). O intelecto
é indi-
178

vidual, assim como a própria alma, da qual constitui a força. É falsa


a
doutrina de Averróis que o

julgava numèricamente idêntico em todos os indivíduos. Se assim


fosse, não
constituiria a forma essencial do homem, aquálo que o distingue de
todas as
outras coisas (Ib., 10). O intelecto humano é porém o intelecto
material. O
intelecto actirvo não pertence na realidade ao homem. Aquele (o
intelecto
activo) está para o intelecto material assim como a luz está para a
vista. Ao
unir-se aos objoctos, a luz torna-os visíveis e determina a visão em
acto. Do
mesmo modo, ao unir-se às imagens, o
intelecto activo é portanto o primeiro motor. Se este comunica ao
homem a
faculdade de entender é apenas porque só o homern possui o
intelecto
possível, ou seja, é capaz de receber a luz do intetecto divino (De
mente
agente, 12). Ãobjecção segundo a qual o intelecto possível, o único
que é próprio do homem, é mortal e
que por conseguinte a doutrina aristotélica parece excluir a
imortalidade,
responde Zabarella com a enumeração das opiniões dos Aristoté
licos a
respeito deste argumento, considerando como a mais verosímil
aquela segundo a

qual o intelecto possível é mortal, não pela sua


substância mas pela sua imperfeição e natureza corpórea (lb., 15).
Aliás a imortalidade oncontra-se firmemente estabelecida pela
igreja e pela teologia e Zabarella recusa-se a demonstrar a
existência de qualquer relação entre filosofia e teologia (De invent.
aet. nwt., 2).
Na esteira de Zabarella segue César Cremonini, nascido em 1550
em Forrara e
falecido em 1631 em
179

Pádua onde ocupara a cátedra daquele após a sua

morte. A separação entre Deus e o mundo é igualmente salientada


por
Cremonini, o qual afirma que o mundo não pode ter sido criado por
Deus. A
acção criadora seria uma acção extrinseca. que não pode ser
reconhecida em
Deus. Deus não pode, também, ser a causa eficiente do movimento
do mundo; ele
dá movimento apenas como objectivo, isto é, como objecto de
desejo: dá
movimento porque é amado e desejado. Mas precisamente por isto,
aquálo que
por elo é movido deve ~r em posição de o amar e desejar: deve
possuir uma
alma. A alma dos céus é portanto o princípio eficiente dos
movimentos. Deus e
as inteligências celestes só podem mover
os céus por intermédio desta alma enformadora que ama e deseja a
Deus e assim move directamente os céus e indirectamente as coisas
que lhes estão suibinetidas (De calore innato, dict. 2; dict.
9, p. 89). Tal como Zabarella, Cremoními opõe-se à doutrina
averroísta, da unidade do intelecto, e considera este como sendo a
diferença específica que distingue os homens entre si o
relativamente aos animais. A conexão entre alma e corpo é operada
pelo calor inato que tem a sua sede central no coração, de onde
irradáa para todas as partes do corpo. Este calor inato não é
corporal; é antes aquele calor dos temperamentos de que falava
Galeno, o qual é devido à mistura dos elementos que compõem o
corpo, mistura esta causada pelo movimento dos céus (Ib., dict. 9,
p. 89). A natureza da alma humana na sua singularidade depende
portanto dos astros.
180

O afistotelismo do Renascimento contribuiu fortemente, com o


regresso à
indagação cáentífica de Aristóteles, para a renascença da
investigação
naturalísta. Elaborou, além disso, a base necessária a tal
investigação, ou
seja, o conceito da ordem naluxal do mundo. Porém, o naturalismo,
tão
poderosamente encaminhado, não podia já permanecer sujeito ao
sistema do
aristotelismo; devia tender a subtrair-se-lhe, tomando outras vias.
A magia,
por um lado, o o naturalísmo de Telesio, por outro, apontavam essas
vias. O
ocaso do aristotelismo averroísta é marcado pela figura de Júlio
César
Vanini, nascido por alturas de 1585 no reino de Nápoles, e queimado
vivo como
herético em Tolosa, em 1619. Na sua principa] obra, intitu-lada De
admirandis
naturae reginae deaeque mortaflum arcards surgem novamente as
teses típicas
do aristotelismo renascentista e outras de Nicolau de Cusa: a
eternidade da
matéria, a homogencídade existente entre a substância celeste e a
sublunar, a
identidade de Deus com a força que governa o mundo e a força
natural dos
seres. Não apresonta qualquer originalidade e é como um resumo
com o qual se
encerra

um aspecto da investigação naturalista no Renascimento.


NOTA BIBL1OGRÁFICA
§ 360. As obras de GENNADIO em P. G., 160- A Comparatio de
TRAPEZUNZIO foi editada em veneza em 1523 e a De re
dia7_ectica em IAão em 1569 e posteriormente. O tratado De fato
de TEODORO GAZA foi editado pela TayJor de Toronto em 1925.
181

Os Comentários de ERMOLAO BARBARO foram objc-to dL vãri


edições em Veneza, Basiloia e Paris, a partir de 1544.
§ 361. De VERNIA, foram editadas em Voneza, em 1504, as
Quaestiones de pluralitate intellectuS contra falsam et ab omni
veritate remotam apinionem Averroys. Outros escritos foram
publicados por Ragnisco sob o título Documentos inéditos e raras
relativos à vida e obras de N. V., Pádua, 1891 e unia Quaestio sobre
a nobreza da medicina foi publícada por Garin em "A ~uta das
artes", Florença, 1947. B. NARDI, Ensaios sobre o aristotelismo
paduano do sécu.To XIV ao século XVI, Florença, 1958, caps. IV e
V; GARIN, A cultura filosófica do renascimento italiano, Florença,
1961, pgs. 293 e segs.
As obras de AGOSTINHo NiFO conheceram várias edições nos
séculos XV e XVI:
colecções completas, Veneza, 1599; Opuscola moralia et politica,
Paris, 1645.
GARIN, ob. cit., pgs. 299 e segs.
De L. ToMEO aS obras De immortalitate animae, Pãdua, 1524, e
Opera, Paris, 1530.
DE ACHILLINI: Opera Omnia, Veneza, 1508-45. B. NARDI, Sigieri
de Brabante no pensamento da renascença italiana, Roma, 1945, 11
parte.
Sobre M. A. ZIMARA, Nardi, ob. cit., cap. Xff.
§ 362. Sobre o suicídio de Pomponazzi: CIAN, Yovos documentos
sobre P. P., Veneza, 1887. Opera, Bastícia, 1567 (De incantationibus
e De fato); inúmeras edições anteriores das obras singulares.
Sobre ele: FIORENTINO, P. P. Estudos históricos sobre as escolas
bolonhesa e paduana do século XVI, Florença, 1868.
O comentário ao De anima de Arístóteles foi publicado por L.
FERRI em A psicologia de P. P., Roma, 1877; À. H. DouGLAS, The
Philo8. and Psychol. of P. P., Cambridge, 1910; B. NARDI, AS obras
de P. em Diário critIco da fil.
it.", 1950; As obras inéditas de P., ib.,
1950 e 1951.

182

§ 365. As obras de CESALPINO: Veneza, 1571 e


1593.

As obras de ZABARELLA conheceram inúmeras edições no séefflo


XVI, sendo a
última de Havenreuter e
de 1623. Sobre ele: R.AGNIS00j. Z., o filósofo, Veneza,
1886; do mesmo, Pomponazzi e Z., Veneza, 1887; GARIN.
O humanismo italiano, Florença, 1952, pgs. 191 e segs.; B. NARDI,
Ensaios sobre o aristotelismo paduano do século XIV ao século XVI,
Florença, 1958, passim.
As obras de CREMONINI foram editadas separadamente nos
séculos XVI e XVH. Sobre ele: MABILLEAU, Ptude historique sur
Ia phil. de Ia renaiss, en Italie, Paris, 1881.
A obra de VANINI Intitulada De admirandis naturae reginae, ete.
foi publicada em Paris, em 1616. Trad. ital. das obras, por PORzio,
Lecee, 1911.
Sobre todo o arístotelismo, italiano do século XVI: CI-TARBONEL,
La p~ée italiene du XVI.e siécle et le courant libertin, Paris, 1919;
J. RANDALL JR., The School of Padua and the Emergence of
Modern Seience, 1961.
183

RENASCIMENTO E REFORMA
366. O RETORNO ÀS ORIGENS CRISTÃS
O Renascimento, como retorno do homem às
9~ possibilMades origináfias é ~bém renovação da vida religiosa. O
homem
procura entrar de posse daquelas possibilidades que con,3hituíam a
força e a
va1idade do mundoanfigo: daí que procure reconhecê-las paralá dia
dispersão e
do enfraquecimento que elas têm sofrido ao longo dos séculos da
História e
de novo se firmar nelas para ~mar o caminho interrompido. Perante
a
decadência da vida religiosa, o homem retorna às fontes da
religiosidade:
quer redescobri-las na sua pureza, entendê~las no seu

significado genuíno, fazê-las reviver na sua fecundidade espiritual.


Viu-se
já como o p~i~ procurava reconhecer e fazer revíver a origffiária
sabe-
185

doria religiosa da humanidade, sabedoria que via sintetizada em


Platão, e na
qual, segundo considerava, confluíam igualmente a especulação
oriental e o
pensamento greco-romano. Mas a religião dos Platónicos do
Renascimento é uma
religião para. os

doutos, quer dizer, não é verdadeiramente uma


religião mas um filosofia teológica na qual o
cristianismo originário do Novo Testamento apenas entra como um
elemento
entre outros e nem =nio como o dominante. Marsílio Ficino e Pico de
Mirândola
partilham este ponto de vista com Cusano e até mesmo, com Bruno:
o retomo à
religiosidade originária é para eles um ~mo aos "teólogos" da
Antiguidade:
àqueles que elaboraram e exprimiram a vida religiosa em fecundas
fórmulas de
pensamento. O platonismo não podia por isso tornar-se numa
autêntica. reforma
da religiosidade: ele é um
momento da renovação filosófica renascentista -
A refôrma da vida religiosa do ocidente cristão podia ser o
resultado apenas
de um retomo às fontes do crÍstianismo enquanto tal: isto é, não
aos jogos
ou à teologia greco-ofiental mas à palavra mesma de Cristo, à
verdade
revelada da Bíblia. Aquele rena,_vimento espiritual, aquela reforma
total do
homem, que a pregação de Cristo havia onunciado e promovido só
podia
readquirir o seu sentido oríT,,nário e tomar-se ~ade mediante um
regresso à
palavra divina, a que vem expressa nos Evangelhos e nosi outros li~s
da
Bíblia. A palavra de Deus d~se não só aos deutos mas a todos os
homens como
tais e não pretende reformar a doutrina, mas sim a vida. Uma
renoivação
religiosa, segundo o

186

espírito do Renascimento, devia tender a fazer reviver


directamente a palavra
de Deus nas consciências dos homens, dibertando-a
dassuperstruturas
tradicionais, restabelecendo-ana sua forma genuína e na sua

potência salvadora.
Tal foi a tarefa da reforma religiosa, à.qual se
liga necessàriamiente, tal como no Humam, %no, um momento
filológwo:
restabelecer na sua pureza e genuidade o texto bíblico. Mas,
~samente como
no Humanismo,,o momento filológico é o instrumento de uma
exigência más - profunda, a de regressar ao significado verdadeiro
e originário da palavra divina paira a fazer valer oomtoda a eficácia
do seu poder de renovação. O momento füol¥co-humanístico da
Reforma é representado por Erasmo.
§ 367. ERASMO
Desidério Erasmo nasceu em Roterdão, em
1466. Foi educado num claustro agustinilano, onde pronunciou votos
e, em
1492, se ordenou de padre. Fez-se no entanto dispensar das
obrigações do seu
ofício e deixou até de usar o hábito. Espírito independente e cioso
da sua
independência, não quis aceitar nenhum encargo ou ensino e
rejeitou, no
período da sua máxima celebridade, a9 ofertas mais fisonjeiras.
Vagabundeou
por toda a Europa. Em
1506, na Uníversidade de Turim, tomou-se mestre e doutor de
teologia: mas a
~a que ele tomou a peito foi a de escritor e fálólogo. [Pode
oonsiderar-se o
fundador da patrologia pelas suas edições de

187

S. Jeirónimo, SLO Hilário, St.<> Ambrósio e SLO Agostinho. Além


disso,
elaborou um texto crítico do Novo Testamento, que traduziu do
grego para o
latim, Quando, desencadeada a Reforma, Lutero, que havia sido o
precursor
dela, se lhe dàrigiu, para obter o seu apoio, Erasmo recusou-se. Não
~a
ligar-se a nenhum partido e era totalmente alheio a todo o
movimento que
provocasse rebelião ou desordem. Por outro lado, não condenou a
Reforma nem
mesmo quando pronunciou contra a tese luterana sobre o livre-
arbítrio. No
choque entre o cristianismo da Igreja e o cristianismo luterano quis
permanecer neutral e recusou a oferta do cardinaliato que lhe foi
feita pelo
papa Paulo RI em

1535. A luta religiosa obrigava-o a sair dos seus refúgios:


deLo,vaina, rigidamente catóhica, foi obrigado a sair por haver sido
con-qiderado amigo da Reforma; de Basfieia, onde se Tefugiara,
abalou logo que a reforma se impôs. Estabeleceu-se então em
Friburgo, onde transcorreram os seus últimos anos; faleceu em 12
de Julho de 1536 em Basiácia, ondese detivera na esperança de
regressar à Pábria.
O primeiro escrito de Erasmo são os Adágios, uma rewlha de
sentenças gregas e l~; mas a sua prini obra significativa é a
Enchyridion militis christiani que contém já os práncípios ideais e
práticos da reforma protestante. A obra mais famosa é o Elogio da
loucura (Stultitix laus, 1509), a que são afins pelo conbeiúdo os
Colloquía familiaria, publicados em 1524. Ao mesmo ano pertence o
escrito contra Lutero Diatribe de libero arbitrio. Ao De servo
arbítrio de Lutero replÍcou ele com o Hyperaspistes.
188

São dmportantes também os prefácios ao Novo Testamento e os


escritos
pedagógicos, entre os quaàs o

* mais notável é o De ratione studii 1(1511), o pro,"uma do


humanismo alemão.

Brasmo, foi chamado por Dilthey "génio voltairiano" e, na realidade,


ele
serve-ge da sátira e do sarca~ para pôr a nu a decadência moral do
seu tempo
e especialmente da Igreja. Porém, a crítica de Erasmo não é
negativa e
destrutora, comoserá a de Voltaire, mas positiva e evocadora, evisa
a
reconduzir a vida humana à simplicidade e à pureza do cristianismo
primitivo.
Significativo a este propósito, é sobretudo o Elogio da loucura. A
loucura é
para Erasmo o impulso vital,, a beata inconsciêncÍa, a ilusão, a
~âncàa
contente de síi-numa, palavra. a mentira vital. Toda a vida humana,
seja a
individual, seja a social, funda-se em mentiras, em Anusões ou em
imposturas,
que velam a crua realdade e constituem o maior atractivo da própria
vk1a. E
Erasmo, pondo a ffl- -ar a Loucura e entricheirando-se por detrás
(de um ~to
d@v@udo, pode rasgar o véu daquelas mentiras e mostrar a
realidade que elas
ocultam. Os interesses vitais que o seu

sarcasmo defende pare= evidentes. Quando fala desses loucos, os


quais confiam
em ~, s pequenos sinais exteriores de devoção, em certo pala ~,o,
em cortas
oraçõezinhas inventadas por algum pio impostor para -seu
divertimento ou
interesse, julgam ter assegurado o gozo de uma inalterável
felicidade e um
bom lugar no paraíso"; ou de quem crê que "lhe basta deitar uma
pequena moeda
numa bandeja para que o mundo fique limpo de uni sem número
189

de rapinas como quando saiu da fonte baptismal" (EI., 40)-pronuncia


evidentemente uma condenação das indulgências e de toda a prática
de devoção
formal, no que é tão terminante como o será Lutero. E quando a
Lioucura
atribui a Cristo estas palavras: "Abertamente e sem parábolas
prometi em
outros tempos a herança do meu Pai não aos frades, não às rezas,
não à
abstinência, mas sim à observância da caridade. Não, não conheço
aquelas
pessoas que prezam demasiado as suas pretensas obras meritórias
e que querem
parecer mais santas do que eu próprio" (Ib., 54)-é evidente a
desvalorização das obras e a exaltação da fé que será o próprio
lema da reforma luterana. Em oposição às obras
meritórias, à religiosidadefo~, ística às regras nomástioas, exalta
Erasmo a
religiosidade verdadeira, que é fé e caridade segundo os
ensinamentos dos
Evangelhos. E este ensinamento é contraposto ao próprio papado:
"Os papas
dizem-se vigários de Jesus Cristo; mas se se conformassem à vida
de Deus, seu
mestre, se praticassem a sua pobreza e a sua doutrina, se
sofressem
pacientemente os seus padecimentos e a sua cruz e mostrassem o
seu desprezo
pelo mundo; se reflectissem sèriamente no bom nome do papa, isto
é, de pai, e no epíteto de Santíssimo com que são honrados: quem
seria então mais infeliz do que eles?" (Ib., 59). Todos os temas da
polémica protestante contra ia Igreja
se encontram já na obra de Erasmo. E se no Elogio da Loucura são
expressos
sob o véu da f~ satírica, na Enchyridion militis christiani são
retomados e
desenvolvidos positivamente. O escrito é piolêmicamente dirigido
contra a
cultura bico-
190

lógica que exercita as pessoas nas disputas doutoras mas


nãopromove, nem
reforça a fé religiosa. Era~ propõe-se formar o militante cristão,
não o
teólogo ou o literato. Toda a força da "filosofia de Crisi está na
transfiguração que ela é capaz de operar ws costumes e na vida do
homem. "0 Modo MLs eficaz de converter os Turcos, diz ele (Lett.
dedic. deIPEnch., ed.
Holborn, 5), obter-se-á se eles virem resplender em nós as palavras
eo
ensinamento de Cristo; se nos Jembirarmos de que nós não &wjamos
osseus
âmpérios, o ouro e os bens deles, senão que procuramos apenas a
sua salvação
e a glória de Cristo. Esta é a teologia verdadeira, genuína, eficaz,
que
jáuma vez sujeitou a Cristo a soberba dois filósofos e os ceptros
invictos
dos príncipes. Se agirmos assim e só assim, o próprio Cristo estará
em nós".
A perfeição cristã não está no género de vida mas

nos sentimentos, está na alma, não nos vestidos e nos alimentos


(Ib., 12). A
arma principal dio militante cristão é a deitura e ia interpretação
da
Bíblia. Erasmo aconselha escolher para guia aqueles iintérpretes
que mais se
afastam da letra dos livros sagrados. Cumpre ir além da letra para
alcançar o
espírito, já que sóno espírito reside a verdade.
Mias onde a exigência da reforma se apresenta decididamente,
onde o humanista
aristocrático e altivo se torna o porta-voz de uma tendência que
devia res 1~
numa rcb~ de povos, é na necessidade expressa cÍlaramente, por
Erasmo, de
lodos lerem e entenderem a seumodo a Bíblia. "Eu divirjo
violentamente, diiz
eile (Paraclesis in Nov Test, ed. Holborn,
191

142), daqueles que não quer= que as sagradas, escrituras sejam


lÍdas pelos indoutOs, traduzidas na fingua dopovo, como se Cristo
houvesse ensinado coisas tão obscuras que a custo poucos filósofos
as
pudessem entender, ou como se a defesa da reli~ cristã consistisse
em
serignorada. É talvez meilhor ocultar .o mi,stério do rei, mas Cristo
quer
que os mi~os sejam dàvulgados o mais poissível. Desejaria que todas
as
mulheres pudessem ler o Evangelho e as

cartas de S. Paulo." É precisamente deste re~o à leitura e ao


entendimento da
Sagrada Escritura que Erasmo espera a renovação- do homem,
aquela reforma ou
renascimento que é a restauração da autênitica natureza humana.
"FàcIlmente
entra na alma de todios o que é màximiamente conformo à natureza.
Mas a
filosofia de Cristo, que ele próprio chama de renascimento, que
outra coisa é
senão a
restauração de uma bem construída na-tumw?" (Ib.,
145). Esta conv~ oonstitui o móbdl e o fundamento da obra
filológica de
Erasmo destinada a restabelecer o texto do Novo T~mento e a
promover a difusão mediante nova tradução. O renascimento que só
a palavra de Cristo pode determinar é con.
traposth por Erasmo à sabedoria teológica que toma as pessoas
destras nas
disputas mas não lhes dá nem a fé nem a caridade. "Quem deseje
ser maIs
instruído na piedade do que na disputa, ocupe-se o mais que possa
das fontes
e daqueles escritores que directamente procedem das fontes"
(Ratio verae
theol., ed. Holbom, 305). POT isso Erasmo exerce a sua actividade
de filólogo
não isó no domínio do
192

ERASMO

Novo Testamento, mas também no dos Padres da Igreja, cuja


doutrina lhe parcoe
inspirar-se directa.mente nas flontes do cristianismo, enquanto que
repudia e
despreza a especulação ewoUstica, como sendo a que desvaneceu o
sentido orig~
do cristianismo, entregando-se a questões ociosas. A tais q~ões
ociosas como
às cerimónias, aos jejuns e
obras meritórias, opõe Erasmo os dois pontos basdilares do ensino
de Cristo:
a fé e a caridade. (Desfolheá todo o N~ Testamento, diz de (Ib.
239), não
encontrareig nenhum preceito que diga respeito às cerimáúias.
Onde se faz
menção dos alimentos e das ve~ Onde se referem os jejuns e
semelhantes
coisas?
O preceito de Cristo invoca, apenas a caridade. Das cerimónias
nascem os
dissídios, da caridade a paz."

Deste modo estabelece Erasmo os pressupostos teóricos da


Reforma e, o que
mais conta, esclarece o
conecUo fundamental desta: o de uma renovação radical da
consoiência cristã
mediante o retorno às fontes do cristiani&mo. Mas a -sim tarefa
devia deter-se aqui. Humanista habituado a mover-se no mundo dos
dotitos, partícipe do
ideal humanista de uma paz religiosa universal, na qual
encontrassem
concíliação e concórdia as diversas experiências religiosas do
género humano, ele não podia aperceber-se do alcance
revolucionário da sua doutrina; e
quando tal alcance se revelou na obra de Lutero, ele desconheceu-o
e fechou-se na sua neutralidade de estudioso. Erasmo formulara
filosóficamente os
princípios da reforma cristã, mas não podia reconhecer a sua
própria acção na
obra de Lutero, que daqueles
193

princípios se valia para agitar forças políticas e


sociais, todo um mundo, que parecia a Erasmo estranho e surdo à
vida da
cultura. Por isso, quando a 28 de Março de 1519 Lutero lhe enviou
uma carta
pedindo-lhe que se pronunciasse públicamente a favor da Reforma,
Erasmo, embora aprovando os princípios de que Lutero partia,
recusou-se a seguí-lo e a encorajá-lo na obra revolucionária que em
nome
de tais princípios Lutero iniciara. Na luta que o
movimento reformista desencadeou, Erasmo quispermanecer
neutral; e tal
permaneceu substancialmente, não obstante algumas oportunistas
concessões à
Igreja. Sobre um único ponto, todavia, atacou a
Reforma: o problema do livre-arbitrio. Retomando o ensinamento de
S. Paulo e
de Santo Agostinho, Lutero afirmara decididamente a dependência
da vontade
humana em relação a Deus. Esta afirmação que, como veremos,
deriva de uma
religiosidade resoluta e exasperada, não podia ser acolhida pelo
filósofo
humanista Erasmo. Na Diatribe de libero arbitrio (1524), Erasmo
enumera os
motivos que levam a admitir a liberdade, definida como ",a força da
vontade
humana pela qual o homem se pode dirigir às coisas que conduzem à
salvação
eterna ou se pode desviar dela. A liberdade humana é para Erasmo
liberdade de se salvar; e que o homem tem a capacidade de se
salvar é demonstrado pelo
próprio relevo que nas Sagradas Escrituras têm os conceitos de
mérito, de
juízo e de punição. Não teriam sentido ais punições, as ameaç as, as
promessas diviinas se o homem não fosse livre. Mesmo a
194

concessão da graça, resolvendo-se numa ajuda divina à vontade


humana, pressupõe a
liberdade; e assim a pressupõe a oração, que não teria sentido se
ela própria
não fosse manifestação de uma vontade de salvação. Erasmo
reconhece que se
repetem na Bíblia, esobretudo nas epístolas de S. Paulo, expressões
que parecem negar o
livre-arbítrio, mas nelas vê o sentimento próprio dia consciência
rellilgiosa que faz denvar todos os méritos humanos de Deus.
Quanto à
conciliação entre o livre-arbítrio e a omnipotência divina, afirma a
cooperação do homem, e de Deus "na obra indivisível da
regeneração": a

graça é causa principalis, a liberdade humana causa secundaria.


Assim como o
fogo tom uma força interna graças à qual arde e que pressupõe
Deus como
causa principalis que !a criou e a mantém, asgim a
salvação humana é obra do homem ajudado e sustentado pela acção
divina. Na realidade, esta solução eclética não salva
coisa alguma, porque, atribuindo a salvação humana à cooperação do
esforço do
homem com a graça divina, atribuí a um e a outra o mesmo valor
determinante e
não resolve o problema. A atitude de Erasmo é aquii ditada pela
prevadência
que a exigência filosófica humanista tem nele sobre a religiosa: ele
quer
salvar a dignidade e o valor do homem que são inconcebíveis sem a
liberdade e
por llsso recalcitra à tese extremista de Lutero que exprime
todavia a
essência mesma da vida religiosa: a dependência absoluta do homem
para com
Deus e o reconhecimento de que só a Deus ~nce a ciativa
deterinúnante da -
salvação-
195

§ 368. LUTERO
O retorno às fontes cústãs, como via de renovação da consciência
religiosa,
encontra o defensor mais resoluto em Martinho Lutero (10 de
Novembro de 1843
* 18 Fevereiro de 1546). A exigência, que Erasmo apresentara mas
quisera
restringir ao
mundo dos doutos, é assumida por Lutero como o instrumento de
uma revolução
que devia desligar a
Europa germânica da Igreja católica. Partindo dk=tamente do
Evangelho, Lutero
impugna o valor de toda a tradiição eclesiástica e chega à negação
da obra e
da função da Igreja. Na sua doutrina e nos
~, tados históricos que dela derivaram parece evidente o valor
revolucionário
daquele retorno aos
princípios que o Renascimento procurara realizar em todas as
manifestações da
vida. No domínio reLgioso este princípio levava a negar o valor da
tradição e
portanto da Igreja, que durante os séculos acumulara o património
das
verdades fundamentais do catolicismo. O retomo aos princípios
significava
aqui o retomo ao ensinamento fundamental de Cristo, à palavra do
Evangelho, e
por isso o repúdio de tudo o que a tradição eclesiástica acrescentar
a a esta
palavra. No seu escrito Contra Henrique VIII de Inglaterra (1522),
Lutero
contrapõe à tradição eclesiástica o Evangelho. Ele polenuiza contra
os

adversários, que à sua vontade de firmar-se na palavra de Cristo


respondem
com "glosas patrísticas, laboriosos e artificiais ritos depositários
dos
séculos". E acrescenta: "Eu grito: Evangelho! Evangelho! e cães
uniformemente
respondem: Tradição,
196

Tradição! O acordo é impo~ Eis aqui precisamente o centro


especulativo e práfioo da refôrma luterana; e por esse oentro ela
-se religa ao Renascimento que pretende renovar o homem e o seu
mundo me&ante,um reitorno, à sabedoria originária.
Deste Princípio dia Refôrma brotam todos os seus aspectos
doutrinais. É, na
verdade, graças à tentativa an~osamente repetida de alcariçar,
para lá dias
tincrustações seculares, o signikcado, origináriiio da mensagem
evangélica,
que se acendeno espíwito de Lutero a centelha daquela verdade que
devia ser o enunciado basiIar dia Reforma: a justificação por meio
da fé. O próprib Lutero cora que soda a escritura se erguia diante
de si como um muro, antes de entender o significado da frase de S.
Paulo: o justo viverá pela sua fé.
Por esta frase aprendeu que a justiça de Deus reside na fé, na
misericórdia
pela qual o próprio Deus nois j,usffica com a sua graça. De posse
desta
verdade fundarnental, pareceu a Lutero haver encontrado a chave
dia
iinterpretação genuína dos textos sagradois. A justiça divina
significou para
ele a justiça passiva com que Deus justifica o honiemrnediante a fé,
anàlogamente, a obra de Deus significa aquilo que Deus opera em
nós, a
sabedoria de Deus o atributo pelo qual nos faz sapientes, etc.. De
modo que
todo, o significado, da mensagem cristã foi condensado por Lutero
no abandono
total do homem à iniciativa divina, graÇas ao qual o homem nada tem
de
próprio a não ser o que recebe de Deus como dádiva gratuita. Assim
L~
reconheceu e determinou na sua nudez essenciail a atitude
religiosa. A fé é
para ele

197

a confiança pda qual o homem crê que os poeudos. lhe são rernidos
gratuitamente por Cristo; e é por isso a própria justificação por
parte de
Deus. O homem que tem fé é o homem cujos ~os flor= remidos, o
homern justificwdo, o homem, wdvo. A jushi~ pella fé imphca
arenúncia atoda a tentativa por parte do homem, o confiante
abandono a Deus, a certeza interior da salvação.
É evidente que, deste ponto de visita, o esforço, que dominara toda
a
filosofla escolástica, de justi,fkw pela razão a fé, devia parcoer
repugnante
e

absurdo. "Tal como acontece a Abraão, a fé vence, mata e sacrifica


a razão
que é a mais encam~ e pesitífera inimiga de Dous". A razão, de
facto,
sigrúfica a iniciativa por parte do homem, o esforço da pesquisa, a
confiança
nas possibáldades humanas; ao passo que a fé é a iniciativa
abandonada a
Deus, a rmúnoia a toda, a pesquisa, a confiança exdusiilva na graça
justificadora de Deus. A doutrúna de Oxam, que excluía pela
irracionalidade e
inveififica,bi,lidade da fé e a tinha absolutamente excluído do
âmbito da
indagação racional, é saudada por Lutero como amiga e alliada.
Occam, que Lu~
estudara no perlodo da sua formação académica, é, pode dizer-se, o
único
filósofo que ele salva da condenação. Todos os outros, desde
Arístóteles a

S. Tomás, chama-os de "sofistas" e ~seiia-os com os piores


atributos. O oocanusmo é assim um dos pressupostos da reforma
luterana: afirmando a irracionalidade da fé, permitiu ver nela a
atítude, oposta à atituíde activa da investigação: o confiante
abandono a Deus.
198

O pTimeiro cor;olário do regresso ao Evangelho é a nova dou~, dos


sacramentos. No De captivitate babylonica ecclesiae (1520), Lutero
reduz os
sacramentos a três só: o baptismo, a penitência e a euca~ poás só
estes foram
iinstítuidos por Cri~, como den~ o testernunho evang~ Mas ele
Pretende ~r-se
a ~ testemunho no que respeita ao PróPriO conceito dos sacramento
que mais do
que &~tos uns dos outros, são três símbolos de um único
saemmento. O
sacramento fundamental é * baptismo, j--@eIo qual ohomem morre
para a carne

* para o mundo e revive a justificação dMna. O baptismo nunca


perde a sua efi~ nem mesmo se o pecado é S~Ivamente cometido:
ele caincide com o niato da fé no homem, e a própria fé é a
rMOvaÇãO incessante do sacramentio baptismal, uma vez que
mercê dela o homem morre conCinuamente para a Carne e
continuan~ renasce paira o espírito. A penitência COrroboTa a
confiança, na salvação, seMO O rec ~1imMUO colectivo dia
justificação inteiráor. E a eucaristiia renova a particiPaÇão na vida
de Cristo mediante o banqueti,-
fraterno do pão e do vio . Assim os sacramentios perdem o cará~ de
uLmia
jurisdição ~rdoU,1 e tornam-se a expressão daquela ári~ta relação
entre o
homem e Deus, que se realiza na fé. A doutrina dos sacramentos
élimia toda a
função intermédia entre o homem e Deus, nega a possibilidade, da
mediação ~~
e coloca d~amente o
homem defronte de Deus em virtude de um acto Puramente
inteoior, o da fé, de
que os próprios ~amentos são a realiização e a garantia. A nega-
199

ção da tradição eclesiástica, operada mercê do retomo ao


Evangelho, toma-se
assim a negação da função sacerdotal e por isso da distinção entre
casta
sacerdotal e mundo liaico. Esta consequência é tratada no outro
escrito de
Lutero À nobreza cristã da, nação alemã (1520), que inioiou a
rebelião da
Alemanha contra a igreja de Roma.

A justificação pior meio da fé tira todo o valor às chamadas obras


meritórias. Sem a fé, estas obras não fazem senão redobrar os
pecados: as
boas obras não podem portanto ar ninguém. Todavia não devem poT
àsso ser
excluídas: elas são de facto o fruto, e ao mesmo tempo o sinal
seguro da
justificação diviina. A, fé verdadeira não é ociosa mas operosa; e se
as
obras não se seguem à fé, tal fé não será genuína. "Assim como as
árvores
existem antes dos frutos, diz Lutero no De libertate christiana
(1520), e
não, são os frutos que fazem as árvores boas ou másmas as árvores
que fazem
os frutos tais, assim o homem deve ser na sua pessoa pio ou mau,
anítes que
possa fazerobras. boas, ou más". Mas as obras levam o homem para
fora da sua
humanidade para aquela exterioridade em que o homem já não é
lívre, mas
servo. Lutero faz valer em toda a sua força a distinção paulista
entre o
espírito e a carne. O homem que tem fé nasceu para a vida do
espírito, é uma
nova criatura independente de todo o mundo que o circunda,
portanto
absolutamente livre. Mas na sua carne, isto é na sua natureza
sensível, o,
efistão é, pelo contrário, o mais submisso, o mais dócil dos homens.
O homem
exterior que vive no mundo deve adaptar-se à prática

200

LUTERO

do bem não para adquirir mérito, mas para contribuijr para o


aperfeiçoamento
da -vida social. O campo
cuja vida cada um deve contribuir com todas as suas possibilidades.
O
sapateiro, o artífice, o camponês têm, cada um deles, a própria
ittarefa oora
a qual prestam serviço aos outros e contribuem para uma obra de
que o corpo e
a alma beneficiam, de modo que o
ofício dois vários membros beneficia avida total do corpo. Aquise
revela
outro corolário dos mais notáveis da doutrina de Lutero: a vida
social, e a
W, efa que cada um nela desempenha é o único serviço divino, a
única obra, em
que o cristianismo dá testemunho da sua fé interior. Não são as
práticas
piedosas mas o exercíciio, do -dever civil que é a

obra boa, fruto e sinal da fé, garantia oerta da justificação dávina.


Enquanto afasta os homens dias práticas do culto, Lutero procura
levá---los a
empenharem-se no exercioio do devor civiiI, vmdo neste apenas a
obra em que
exteriormente se manifesta e
se realiza a fé.
Frente à concepção luterana da fé como absoluto abandono do
homem a Deus, a
tentativa de Erasmo de salvar de algum modo a liberdade humana
fixando-se
numa posição de semipelagianismo, devia parecer impossí vel. Ao De
libero
arbitrio de Erasmo, Lutero replicou em 1525 com o De servo
arbitrio, cujo
título diz tudo. Seig-undo Lutero, não se pode adimâir ao mesmo
itiempo, a
liberdade divina e a humana. O livire-arbítrio não é mais que um
nome vão;
a presciência e a omâipotência divina excluem-no. Deus prevê,
propõe elevia a
ei com vontade
201

e~ e infalível -tudo o que sucede. A p~ônede e a predeternúnação


dÍvina
implicam que nada acontece que Deus não queiTa; e asso exclui que
no homera
ou em qualquer outra criatura haja livre-arbítrio. Cumpre portanto
concluir
que Deus opera igualmente nos homens o mal e o bem, assim com um
artífice se
serve por vezes de instrumentos maus ou deteriorados, e que ~to a
&-úvação,
como a danação do homem, é únicamente obra sua, Ã óbvia objecção
de que em
tal caso Deus é o autor do mail, Lutero responde retomando a
doutrina de
Occam. Deus não é obrigado a observar nenhuma regra ou norma:
ele não deve
querer uma coisa por ser justa, mas aquillo que ele quer por Isso
me= é justo
(De serv. arb., 152). Uma vez mais, a doutrina de Lutem encontra
um preitexto
na f~ia de Oecam: a ind,,derença da vontade ffivina que cria,
querendo, a
norma do bem e do mal é afirmada por Lutero como defesa da
predesbinação (que
havia sido, também ela, aliás, sustentada por Occam). Mas esta itão
absoluta
e apaixonada n~ da liberdade humana revela logo em Lutetro o seu
móbil
religioso. A doutrina da p~tànação não é nele uma doutrina
fidosófica; e as
velhas t~ de Oco,un têm nele uma ress~cia muito diferente, Lutero
pretende
defender e realuzar plenamente a atítuderelíigiosa da fé, o
abandono ~ do
homem a Deus. Tal atitude exclui que o homem possa reivkdw,ar
para si a
liberdade, o, mérito, a iniciativa. Tudo deve ser atribuído a Deus e
apenas a
Deus. "0 sumo grau da fé, &z Lutem (Ib., 42) consiste

202

em crer que Deus é demente mesmo se Galvia poucos, mesmo se


condena muitos;
em julgá-lo justo mesmo se por sua vontade nos torna
necessàriamente
culpados, mesmo quando pareça delatar-se com as dores e as
misériais, e antes
digno de ódio que de amom. E, na realidade, o que conta, na disputa
entre
Erasmo e Lutero em torno da liberdade humana, não é o valor das
razões
aduzidas em apoio de uma ou de outra ~, razões já gastas e velhais,
mas a
diversidade das afltudes que aquelas razões revelam. Não obstante
todo o seu ffiteresse pela renovação reFeiosa, Era~ permaneceu um
filósofo humanísta; em Lutero, pelo contrário, o r~mo ao Evang~
determinou uma aútude de roligiosidade absoluta e intransigente,
para a qual a única liberdade humana não podeser senão a sujeição a
Deus * a única iniciativa, como único mérito, a renúncia * toda a kú
ciativa e a todo o mérito.
Essa atitude constitui a originalidade da doutrina * dia obra de
Lutero.
Indubitàvelmente, todos os elementos de tal doutrina são medievais
e não
apresentam nenhurna ofiginalidade (excepto tailvez a dos
sacramentos), mas a
originalidade está em ter feito valer o retomo ao Evangelho como
instrumento
de uma palmgenesia religiosa e em ter fewto de tã retorno uma
força de
destruição e de renovação. A Reforma religasse ao Renascimento
precisamente
no

seu moítivo central, no seu esforço de se refazer nas


orágens; e, tal c~ o Rienasoimento, tende a levar o homem a
empenhar-se nas obras da vida, desviando-os das cerimônias e do
culto ex~.
203

§ 369. ZWINGLI

O retorno às fontes religiosas é concebido e


posto em prática do modo mais conforme ao ideal humanístico pelo
reformador
suíço Ulrich Zwinglii, nascido no 1.O de Janeiro de 1484 e falecido a
11 de
Outubro de 153 1. Zwingli faz sua a doutrina de Pico de Mirândola
(§ 357) de
uma sabedoria refligiosa, na qual confluem e se harmonizam os
textos das
Sagradas Escrituras e os dos filósofo pagãos. Por isso ede não
restringe a
revelação a um facto histó- ,rico determinado, nem mesmo ao
cristianismo. A
revelação é universal: tudo o que se dIsse de verdadeiTo, por quem
quer que
tenha sido dito, procede da própria boca de Deus, de contrário não
seria
verdadeiro. A Plaitão e a Séneca, não menos que a Maisés e a S.
Paulo, o
próprio Deus revelou, mediante a luz interior da consciência,
elemenitos
essenciais da verdade. Oretorno às fontes da religião deve
portanto
significar o retorno a todas as vozes divinas através das quais Deus
ise
mwlou e tem por fim renovar em nós mesmos a intimidade de
directa adesão a Deus.
Estas teses desenvolvidas no De vera et falsa religione
commentarius (1525),
conduzem Zwingli a enriquecer e generalizar o seu conceiito de
Dous, no
sentido elástico, aprópria natureza. No De prorejeita nenhuma dias
determinações filosóficas da &rvi,n,d:ade. Deus é o Ser, o suma
Bem, a U
,,ade no senflido elástico, a própria natureza. No De providentia
(1530),
ele identifica-o com a potência que rege o mundo, com o sujeito
único e a
única força

204

que rege as coisas. Neste sentido Deus identifica-se com a


providência, e Zwingli diz: "Se a providência não existisse, Deus não
existiria; excluída a Providência, Deus também é excluído". A
salvação de
todos os homens é determinada pela acção providencial de Deus.
Deus quis livremente todos os acontecimentos do mundo:
deterniinouítanto o pemdo de Adão como ia encarnação do Verbo; e
determina, em virtude de uma eleição gratuita, a salvação dos
homens. Esta última é devida a uma livre decisão de Deus, que a dá
ou a nega segundo o seu arbitrio, a coisa alguma estando obrigado,
mas determinando só com a sua vontade tudo o que é justo e
injusto.
E a eleição d&se ab aeterno, não se deve à fé, mas precede-a; os
eleitos &ão-
no ~s de crer. A fé não é más que o abandono total à vontade de
Deus,
abandono pelo qual o homem se torna independente de todas as
coisas
exteriores; e

este abandono pode encontrar-se em pagãos como Sócrates e


Séneca, que Zwingk não duvida hajam sido eleitos para a vida
oterna.
Para Zwingli, como para Lutero, a fé é a confiança inabalával na
graça justificadora de Deus, a certeza absoluta de se estar
totalmente nas mãos de Deus e não poder (agir diversamente do
modo por que se age: confiança e certeza que fizeram as grandes
almas reúgiosas e activas da Reforma e transformaram o que
parece à primeira vista,um princípio de encorajamento e denúncia, a
negação da lib"ade humana, num elemento de força e de exaltação.
Mas para a universalização da revelação e do próprio conceito de
Deus, a fé
purif-ica-se e interioriza-se ao
205

máxinio na doutrina de Zwingli. Zwingli rejeita, bastante mais do


que Lutero,
toda a expressão ou subsídlio exterior da vidia religiosa. A fé
basta-se a si
mesma: nada que venha do exterior pode aJudá-la ou apoiá-la. Ela
move tudo,
mas não é movida por coisa alguma, porque é a própria, ~ de Deus;
na
consoiência. As cerimónias, os sinibolos, os pietextos exteriores da
religiosidade são resoluhamente excluídos. O próprio sacramento da
Eucaristia, a que LuteTo atribuía valor real, interpretando-O no
sentido da consubstanciaçáo - (já defendido por Oceam no seu
tratado De corpore Christi et de sacramento altaris), isto é, com a
presença simultânca das duas substâneias, a do pão ou do minho e a
do corpo ou do sangue de Cristo, é por Zwiingli Teduzido a uma pura
cerimónia simbólica, na qual o corpo de Cristo já não está no seu
corpo real mas na comunidade dos fiéis que se torna verdadei-
,ramente o corpo de Cristo no acto de reevocar durante a
cerimónia, o sacrifício de Cristo. Foi precisamente esta
interpretação da eucaristia que determinou a polémiica entre
Zwinglii e LuteTo e tornou impossível o acordo entre os dois
inovadores.
Num outro ponto de vista, o antagonismo entre Lutero e Z~gli
resulta
evidente. Lutevo, negando o valor das práticas reEgilosas, tinha
levado, o
homem * empenhar-se na vida social e a considerar esta * único
domínio da
opera buona reveladora da graça. Mas -neste domínio ham@a
baprado o caminho a
todas as forças inovadoras, reconhecendo e afirmando o valor
absoluto do
poder político e negando-se a toda a eirativa de reforma social. A
doutrina
de

206

Lutem leva assim a um revigoramento do conservantísmo político-


social.
Zwingli, que nascera e vivia numa wciedade democrática, dá-se
conta do valor
de renovação que o reto -mo às fontes religiosas, representa paria
a
sociedade do seu tempo. A vida ~ deve, segundo Zwingli,
determinar
activamente e transformar, moffiante um retorno à sociediade
cristã
originária, a vida política e gocial. Ele condena Lutem que encoraja
os
príncipes a perse- ~ @nuwnanamen1tc a forro e f os inocentes
culpados apenas
de terem fé na verdade. Nega a obediência passiva à autoridade
política;
reconhece legítimo só,um governo que encaminhe para a vida cristã
e aprove a
deposição dos tiranos, pela concorde vontade do, povo. A
comunidade dos
cristãos deve tornar-se, no espírito da reforma de Zwingli, uma

=unidade política que retorna às formas da sociedade


cristãoriginária.
Zwinglí é consciente de que este retorno não é integralmente
possível e
reconhece, por e~pdo, que a comunhão de bens, que poderia
reallizar-se apenas entre santos, não é possível neste mundo, no
qual se pode todavia avizinhar esse estado de perfeição mediante a
beneficiência. Mas antes de tudo ele leva o princípio reformador ao
plano social e dele faz um instrumento de renovação e a base de
uma nova orga~ política.
§ 370. CALVINO
Se o retorno às fontes religiosas é para Lutem ~ncialmente o
regresso ao
Evangelho e para ZwIngli o regresso à revelação Originária
concedida

207

a pagãos e ia cristãos, para Calvino é, ao invés, o retorno à


religiosidade
do Velho Testamento. joi Calvino, (10 de Julho de 1509-27 de Maio
de
1564) nasceu em França, em Noyon, mas foi na Suíça, em Genebra,
que levou a
caibo a sua obra de reformador; e desta obra se originaram as
igrejas
reformadias que não se organizaram sob a influência do Estado, com
na
Alernanha, mas se desenvolveram livremente. Em 1553 Calvino
mandava condenar
à foguoira, pelo Conselho de Genebra, o espanhol Miguel Serveto,
que negava a
encarnação, pois via na figura histórica de Cristo uma simples
participação
na substânda eterna do, Pai (Restitutio christianismi, 1553). Mais
tarde,
foram efectuadas perseguições econdenações contra a chamada
corrente
libertina, que congregava os idefensores da imanência de Deus em
todio o
universo. AintoIcrância foi para Calvino uma arma de defesa dia
nascente
Igreja reformi enquanto vilveu, o poder político em Genebra foi
completamente subordinado às exigências esparituús da reforma
religiosa.
Num capítulo dia sua obria fundamental Instituiição da religião
cilsitã
(aparecida pela primeira vez

em latim em 1536 e por ele traduzida pwteriormente para francês


epublicada em
1541 ~a língua, a qual constitui o primeiro documento literário dia
prosa
francesa), Calvino propõe-se mostrar a unidade do Velho e do Novo
Testamento,
combatendo a tese de que o Velho Testamento tenha anunciado aos
Hebreus uma
feLcidade puramente terrena. Calvino insiste na impossibilidade de
entender a
douffina do Evangelho sem o Velho Testamento; e,
208

na lade, na sua interpretação da Bíblia são os conceitos do Velho


Testamento que prevalecem. Do Velho Testamento extrai o
conceito axial dia
sua concepção religiosa: Deus com absoluta soberania e potência,
perante o
qual o homem nada é. Na teoliogia de Calvíno, Deus é omnipotência e
impre~biLdade, mais do que amor. Da sua vontade depende o curso
das coisas e o
destino dos hori portanto também a sua salvação. " Conforme aquilo
que a EscriÍtura claramente demonstra, nós dizemos que o Senhor
há muito decidiu, no seu conselho eterno e imutável, que homens
havia de destinar à salvação e quais deixar na ruí-na. Aqueles que
ele chama à salvação, dàzemos nós que os recebe pala sua
misericórdia gratuita, sem ter em conta a digmdãde deles.
Pelo con4~, o dngresso na vida está vedado a todos aqueles que ele
quer v~ à
condenação; e isso ooorre devido a um seu juízo oculto e
incompreensível, embora
justo e equâniri (Inst-
7, 111, 62-63). A eleição diviina não se segue à

previsão divina, senão que a precede. Calvino considera


inconeffiáveis estas duas afirmações: a de que os fiéis iobtêm a sua
santidadepela eleição e a de que são eleitos por esta santidade. A
santidade
origina-se hfficamente da eleição: não pode portanto ser causa
dela. É
impossível atribuir ao homem um

mérito qualquer relativamente a Deus. O homem reconetifia-se com


Deus apenas através da m~ de Cristo e da participação nas suas
promessas. Mas a própria obra mediadora de Cristo é um decreito
~o de Deus, que faz parte da ordem providencial do mundo. "Nós
temos, diz Câvino (Ib., 6, 11, 275)
209

~ rogra breve mas geral e certíssim-m: aquele que por completo se


aniquilou e despojou, não digo da sua jusuiça que nada é, mas
daquela sombra de justiça que nos engana, está devotamente
preparado para receber os frutos da misericórdia de Deus. Porque,
quanto mais cada um repouse em si mesmo, tanto mais será,um
impedimento, à graça de Deus". Aliás, a graça de Deus não impele o
homem do Inesmo modo que nós atiramos uma pedra. É uma
faculdade natural, reconhece Calváno., querer ou não querer e tanto
faz querer o mal como não que= o bem, entregar-se ao pecado como
resistir à justiça.
O S~r serve-se da perversidade do homem como de um instrumento
da sua ira; enquanto refreia e ~era a vontade dos que destina à
súvação, dirige-a, forma-", condu-la segundo a regra da sua justiça,
e finalmente confirma-u e fortifica-a com a virtude do Espffito.
Deus quer que tudo o que ele faz emnós seja nosso, contanto que
entendamos que nada depende de nós (Ib., 2; 11, 188-190).
Esta doutrina da predestinação, precisamente no que possui de
extremo e de paradoxal, consÜW! a força da consciência Calvino
Quem conta, apenas com os mérisos humanos, permanece
necessàriamente em dúvidia quanto à ~cia de tás méritos, tão
imperfeitos e precários, e poT ísso quanto à própria salvação.
Mas quem crê apenas méá- ,tos de Cristo e se sente, em virtude
de tais
méàtos, predestinado, adquire uma força de convicção que não
recua perante
as dificuldades e o leva até ao fanaksmo. Como Lutero e Zwingli,
Calvino
abria ao
0~ o campo de ~ da vida social e levava-o a

210

empenhar-se num trabalho activo dentro da sociedade e a


&,ansformá-la em
conformidade com o seu ideal r~oso. O trabalho tomava-se assim
um

dever sagrado, e o êxito nos negócios uma prova evidente do favor


de Deus e,
segundo os conoeitos do Velho Tostamento, um sinal da sua
predilecção. Pela
ética caMnista se modelou o espírito da nascente burguesia
capitalista: o espírito activo, agressivo, desdenhoso de os
os sentimentos, continuamente dirigido para o êxiito. É
signàficativo que o
próprio Calvino tenha reabilitado a usura e haja declarado,
moralmente
lícito receber juros de emprésfiLmo. ~ quer que seja, a verdade é
que o
carácter religioso, atribuído ao êxito, nos ócios estabelece laços
estrekos
~re a actividade mercantil e a o~êne@a religiosa e reveste de um
carácter
sagrado a prosperidade económica. No plano própriamente
especulativo, a t~a
de Ciadvino põe o
homern perante um muro: a imprescrutabUidade dos desígnios
dívinos que faz com que o homem nada possa entender da justiça
divina e deva limitar-se a sDfr64a.
§ 371. TEÓLOGOS E MÍSTICOS DA REFORMA
O sistematizador teológioo da reforma luterana foi Rfipe
Meilanethon (16 de
Fe~o dL- 1497-19 de Abril de 1565). Pola sua -incansável activádade
de
defensor dos princípios luteranos, de professor, de autor de
manuais
didácticos (de diaJéctica, de física, de ética) foi chamado
Praeceptor
Germaniae. Ten-
211

tou reportar os princípios da Reforina à espe~ da Antiguidade c


CS~Imente de Platão e de Aristótelesque interpretou através de
Cícero. Defensor do nominalismo (nos conceitos universais vê
sómente Os nomes comuns das coisas)
identifica este ponto de ViSta com o de Platão, e de Aristóteles. E,
em
geral, faz wu o princípio humanistico do acordo substancial entre os
ensinamentos da antiguidade clássica e a revelação cristã . - A
primeira obra
imPortantC de M~thon são os Loci ~munes rerum theologicarwn
editados pela
primeira vez em
1521 e ree@aborados e enriquecidos nas subsequentes edições.
Estas
reclaborações mostram o desenvolvimento do pensamento de
Melanethon, que,
partindo da simples interp~ da doutrina de Lu~, proema em seguida
Vinculá4a à
~ção do pensa" mento antigo, atenuando-a em alguns pontos
essenciais,
especialmente na doubrina do livre-arbitrio. O princípio de que ede
parte é a
presença no homem de um lumen naturale que é o fundamonto
último de toda a
actividade teórica e prática. São manifestações deste lumen
naturale os
conhecimentos inatos, que Melanethon admite w~ os Estóicos e
Cícero. Tais
conhecimentos são as verdades supremas, os princípios por si
evidentes que
são a base da ciência e da conduta humana. São princípios inatos
práticos as
leis do decálogo, que Deus ~ou e sancionou com a sua autoridade,
quando eles
se obscureceram na consciência do homem. Sobre os princípios
naturais inatos
deve ser fundada a ordem social: eles de~ ser por~ o guia do
homem, que quer,
segundo o ensinamento de Lutero, reafizar no mundo

212

a obra de Deus. A obra de MeUnetIon é desfituída de


eiriginalàdade
especuktiva: o seu valor consi= em haver conduzido ao terreno
filosófico os princípios da reforma r ~,* sa que Lutero valer
apenas no domínio religioso, excluindo e condenando toda a
~boração, filosófica dos mesmos.
Sebastian Franck 1(1499-1542) enxerta as d~nas da mística alemã
no tronco do panteIsmo, humanista. He é o autor de uma história
unâ~ (Chronica) que foi impressa em Estrabuirgo (1531), de uma
Cosmographia 1(1534) e de 280 Paradoxa (1534-35). Como XMan~,
Franck con,&dera que há nos homens uma luz natural, fundamento
da capacidade de juízo, qlue dIes possuem. TW lume, que Platão,
Cícero, Senéoa e os outros filósofos pagãos denominam razão,
chamam-lhe os cri~ Verbo ou Filho de Deus, Chsto invisível. O Cri~
invisível é portanto a própria razão, mercê da quad o homem
consegue vencer o seu egoísmo carnal, renuncia a si mesmo e se fia
em Deus. A obra de libertação e de renascimento espiritual, aquela
justificação que Lutero atribuía à iniciativa divina e da qual o
homem era sujeito passlivo, torna-se em Franck a obra mesma da
razão humiana, em que actua e se identifica a acção justificadiora
de Deus. NissO reside precisamente a importância da doutrina de
Franck, a qual pela primeira vez leva a ~ma P&ig"a ao torrem
fdosófico, não já no sentido de retraçar os pressupostos doutrinais
(como fizera Melanethon), mas no sentido de traduzir numa afitude
filosófica equivalente a atiltude religiosa que, ela defendia.
Franck é fiel à doutrina da justificação de
213

Lutero; mas a justificação é para ele obra e iiniciativa humana, em


que
todavia se manifesta e actua a obra e iniciativa divina. Dai a sua
doutrina
sobre o livre-ar, bítrio (Padaroxa, 264-268). Em polémica com

Lutero, Franck defende a liberdade humana, visto que é mediante


ela que se
realiza a decisão justificadora de Deus. Daí, também, a
interpretação
puramente alegórim da Sagrada Eserãura, cujos factos -,ao por
Franck
considerados símbolos de verdade eternos. O sacrifício de Cristo é
apenas o símbolo de ,um processo que se repete continuamenle na
História: o processo - da libertação e da redenção do homem que,
através da razão, se mune a Deus.
Daí, enfim, o conceito de uma igreja invisível de que se faz parte,
não por
atributos externos, mas

pela perseverante justificação interior, e da qual são membros


também os pagãos, com Sócrates e Séneca, que viveram de acordo
com os ditames da razão.
A par desteradonalismo religioso, Franck apresenta uma vMo da
história
dominada pela acção proVidencial de Deus. Desta acção é o mal um
instrumento
e uma condição necessária, portanito impossível de eliminar.
Homens maus e
loucos sempre exisfixam e existirão sempre em maior número do
que os homens
justos e piedosos. E haverá sempre um papa no mundo, porque este
tem.
newssidade da fé cega e de servir -alguém; e oshornens, devido
àsua
debMidade, dificilmente conhecem outro modo de servir Deus que
não seja pelas
cerimónias externas, pelos cantos, procissões, etc. Elepróprio,
Franck, quer
ser e permanecer estranho às seiitas religiosas e tomar o seu lugar
entre
aqueles poucoshomens de

214

todos os ~s que têm servido livremente Deus na interwridade do


seu espírito.

Mais próximo do misticismo de Me~ Eckhart está Valentino Weigel


(1533-88),
autor de numerosas obras, entre as quais as mais notáveis
filosóficamente são: A verdadeira
resignação, Introdução à teologia alemã, A chave áurea, As origens
do mundo,
Pequeno livro, Sobre a vida e a maneira de conhecer todas as coisas,
Conhece-te a ti mesmo, O bem e o
mal no homem, A vida santa. - W6gal parte do conceito de Deus
próprio dos
mistkos: Deus é uma
unidade inefável superior a toda a essência criada e incomparável,
com ela.
Mas ao mesmo tempo Deus, é imanente no homem e constitui o
principio que conhece e opera nele. E, de facto, todo o
oc>nhectimento humano encontra o seu princípio, não no objecto,
mias no sujeito em que age Deus mesmo.
O homem possui itrês formas de conhecimento: a sensibilidade, que
item por objecto o mundo sensível, a razão de que dependem as
ciências e as artes, e a inteligência que visa ao que é invisível e
divino.
Mas estas três formas de conhecimento têm o seu principio, não no
objecto que
as produz, mas no sujedito cognoscente. No conhecimenito sensível,
de
facho, a

coisa externa solicita a percepção, mas não a produz, porque esta é


uma
actividade do sujeâo. E o mesmo
acontece com o conhecimento sobrenatural: daí que possamos, na
verdade,
entender a palavra divina consignada na Bíblia, mas a~ na medida em
que em
nós próprios actue a luz divina. Na realidade, Deus e a sua palavra
estão em
nós: ele é o
nosso olho e a luz que o ilumin . Por isso é knpos-
215

sível ent~ a Sagrada Escritura moffiante um corfi, ecimento


puriamente
natural: só a presença do p~ Santo em nós nos abre o
entendimento. Donde se segue que a justá, ~ do homem por parte
de Deus não vem do exterior, senão que ua na illb~d@adie !MCSIM
do homem. Weágel une a doutrinal~ana da justif~ à dioutrina de
Ec~ do Deus no homem. Ohomem, deve morrer para si mesmo e o
PTóprúo Deus deve fazer-se nede homem.
O renascimento que se alcança através da fé é a afirmaÇão da vida
divina no homem, afirmação pela qual a vontade humana é
suplarítada ántekwn~ pela vontade salvadora de Cri~.
O mais ~,Icaltivorepresentante daleosofia alemã luterana é Jakob
Bõhmie na~
em 1575. De familia humd&, não sqguiu estudos regulares e exerceu
o mester
de sapaíteiro. As lutas entre váxias seitas protestantes turbavam a
sua
c<xwiê íntensaniente ~osa e conduziram-no a uma m"tação
desordenada e
fantástica, da qual ffie ~ que poderia bwtar máraculosamente, um
princípio de
ela-reza e de oámLação. A sua primeiwa obria foi A aurora
nascente, ~posta em
1612. As autoridades Protestantes puseram-lhe a Proibição de
escrever; mas
sete anos depoils, retomou a sua achivídade e compôs numerosos
e"tos: os três
princípios da essência divina (1619), A tríplice vida dó homem (1619-
1620),
Psicologia verdadeira (1620), A encarnação de Cristo (1620), Sex
puncta
theosophica (1620), Sex puncta mystica (1620), Mysterium
pansophicum (1620),
De signatura rerum (1622), Theocospia (1622), Mysterium magnum
(1623), Cris-
216

tofia ou a via para Cristo (1622-24), 177 Questões teosóficas


(1623), Tábua dos três princípios (1624), Clavis (1624). Bõhme
morreu em Korütz a 17 de Novembrio de 1624.
Gomo iodos os místicos, Bõlime considera a
razão i~paz de chegar a um ver~o conhecimento de Deus. Um tal
conhecúmento
obtém-se aperiais através de uma visão @media$a que é possível ao
homem.
porque há nele uma Oentelha dia luz dilvina. Tal como Franck e
Weigel, Bõhme
~te uma origiriària iluminação divina, devida ao facto de que a alma
tem a
sua origem na es~ mesma de Deus. (Aurora, pref. 96). Tal como os
outros
místicos alemães, Bõhme coloca Deus acima de todas as as reais,
de sodas as
determinações finitas, chegarido, a di= que se pode designá-lo por
lima
sópalavra: um nada eterno(Mist. ~, ., 1, 2). Deus é o mysterium
magnum, o
eterno abismo do ser; este abismo item uma vontade; e esta
vontade anela
espelhar-se em si mesma. A -trindade divina determina-se assim: o
Pai é a
Vontade (W111) do abismo oterno; o Fiffio é o Sentimento (Gemüth)
e~ da v~e,
o prazer que ela experimenta em

contemplar-se; o Espírito, fmalmente, é a, Resultante (Ausgang) da


Vontade e do Sentimento na linguagem e na inspiração. Porém, não
se tratava tanto de &és pessoas como detrês aspeotos dia
dlivúndade no sou nascimento eterno, pois que a divindade é
veridadeiramente uma via única e um único bem. (lb., 7, 9-12).
Todavia, esta única, vida iinclui em si a opo,~ de dois princípios.
Se de facto fosse absolukv=te una, nera sequer poderia revelar-se
a
217

à mesma: a revelação supõe uma dualida&, kW uma o~,- A opo~ é


entre ais
trevas e a luz, entre o óffio e o arnor, ~ o coppo e a natureza, entre
o
coração e o sentim~ de Deus. "Se deve -haver a luz, tera de haver
ita~ o
fogo. O fogo gera a luz e a luz ~ cin si o fogo, ela compreende em si
mesma o
fogo, isto é a naftm-ez-a, e habita no fogo" (Ib., 40, 3). O amor
poder~se
apenas através do Mio, o Mio através do amor, e astrevas estão
estreitamente
figadas à luz. I)cus compreende Portanto em si a eterna natureza
em OPOS@ÇãO
ao eterno espírito, que é o ~0 daqueda e~ naitureza. E nesta eterna
natureza
ex@stern sete formas fundamentais ou qualidades, nas quais
encontram a sua
raiz todos os aspectos da realidade criada. A primeira forma
natural é o
Anelo, do qual nasce o e~ querer & Deus. A segunda é o Movimento
a que o
Anelo dá origeim, do qual nascem o espírito, a sensibdúdade e a
vida. A
terceira é a Angústia, que deriva das precedentes. Estas três
primeiras
formas nas quais se reflecte a acção do Padre, do Filho e do
EspírUo Santo,
são simbálicamente Indicadas por Bõhme com os nomes dos
elementos
deParacelso: sal, mercúrio e enxofre (Clavis, 9, 46). Da angústia
brota o
Fogo, que é o nasdmento da v@dia e a quarta forma natural: nela se
revela
autênticamente a trindade divina. Do fogo brota @a quiinta forma,
a Luz, que
é o amor. A sexta forma é o Som da palavra divina. A sétima é o
Corpo que
resulta da acção combinada de todas as formas precedentes e é
des;~, a como a
natureza

218

de Deus, o céu incriado, o salítre dàvâno (Aurora,


11, 1).
O mundo criado encoutra as suas raízes ne~ sete formas da
natureza divina.
Ele não foi criado do nada: Deus tirou-o de si, e ele não é senão a
revelo@o
e a explicação da essência divina (De tr. pri.nc. 7, 23). O que em
Deus é a
oposição dos dois princípios (ia natureza e o espírito), no mundo é a
oposição entre o bem e o mal. Umavez que o mundo deriva de ambos
os
princípios divinos, deve reflectir em si a oposição desses princípios.
Todas
as coisas do mundo estão portanto em luta entre si e esta luta é
inelutável
porque, sem ela seria ,possível a

vida e todias as fbrmais da realidade (Myst. magn.,


26, 37-38). O homem microcosmo é a imagem da divindade. A sua
alma compreende
três princípios: * alma do fogo, ia alma da luz e a alma do animal; * o
seu
corpo Compreende também três princípios: * corpo celeste, o corpo
sideral e o
corpo elementar (Ib., 15, 15; 11, 20-25). Através da fé, a imagem
divina do
homem restabelcoe-se e refaz-se tal como

era no princípio, iantes da queda de Adão. Bõhme interpreta a fé,


em
conformidade com a doutrina luterana, como justificação total do
homem, como
um -retomo do homem, através de Cristo, à luz e à vida de Deus. O
renascimento do homem é verdadeiramente o renascimento de Deus
no homem. Mas
para B5hrne este renascimento é fruto da liberdade. Whme nega ia
predestinação dávina, mas

nega-a, não já para fazer valer perante Deus os


méritos do homem, mas para mostrar que a acção divina é intrínseca
à vontade humana de salvação.
219

A queda do homem entra na ordem provadencW do mundo Porque


sem ela o amor e a graça de Deus não teriam podido wvelar-se.
Decerto que Deus não PrOdc~ Os homens nem tão-pouco a sua
Presciência ~ ou viola a üb~, e deles. Mas a queda, a salvação e
alternativa que se propõe à Qivre escolha do homem enitmo bem e o
mad, e~ radicadas na essência divána, @sto é, na duplicidade
dosprincípios de tal, essêncáa: a naitur<za e o espirito.
O fundamento ida salvação humana não é só um dos PVínciPi05
d'MaOs, mas sim toda a essência divina, que, compreendendo
também a Natureza, i~ é, as trevas e a possibilidade do~o,~possível
ao homem aimagem de Deus, a liberdade o a esccdha.
O ml~ismo de Bohme conclui assim, com uma tentativa de
@nterpretar a dependência absoluta do homem Para cOM Deus num
sentido que pode wlvax a liberdade humana. Mas esta t~tàva é1im@
ou atenua a distâncáa ~e o homem e Deus, faz do homem uma
Partícula da divindade e do problema da salvação humana -um
problema có~, no qual ~ envolvidos -também,todos os aspectos do
mundo, tanto o homem como a natureza, os anjos e os animais. O
pressuposto panteístico destrói o carác. ter original e específico do
destino humano.
§ 372. O RACIONALISMO RELIGIOSO
A necessidade de libe~ a originária doutrina cristã das
superstrutruras que a
tradição católica havia acumulado fez nascer na Alemanha o estudo
220
crítico dos textos bib @. De 1559 a 1573 Flacius (com outros)
publicou 13
volumes das chamadas Centárias de Magdeburgo, em que se
documentavam as
numerosas mudanças que através dos séculos tinham wfrido a
doutrina e o
cerimonial da Igreja. Simultâneamente, contra a tese da
unsuficiência das
Sagradas Escráuras para construá*cni por si só um

guia para a salvação, tese queimplicava a necessidade de uma


interpretação
autêntica delas por parte da Igreja e era defendida pelos
escritores
católicos (especialmente por Belarmino), tentaram os p~tantes mo~
a
suficiência e a intelígibilídade da Sagrada Escritura. Denominaram
eles
clavis aurea

o método de que Flacius @se serviu para tal fim, e


que ~súa pirincipalmente em explicar cada simples passo, mediante
o sentido total da Escritura.
Não obstante a arbitrariedade dos resultados, este método abriu o
caminho à
exegese histórica da Bíblia, cuja necessidade Erasmo hav@a sido o
pri>
zrwiro, a compreender. E um pa~ ulterior desta exegese é
representado pelo
socinianismo. O fundador do socinianisma foi Lelio Socini nascido
em Siena em
1525 e morto aos 37 anos, em 1562, em Zurique, depois de ter
vividb na
Alemanha, na Suíça e na Polónia. O sobrinho Fausto, Socirai,
também nascido
em Siena em 1539 e falecido em
1604, na Polóniia. (onde se estabelecera em 1579) prosseguiu e
levou a efeito
os estudos do tio, sendo o verdadeiro fundador do socinianismo.
Fausto Socini
defende, nas pisadas de Flacius, a veracidade e suficiência das
Sagradas
Escrituras, servindo-se, tam@bém ele, da clavis aurea para
demonstrar a
coerênedia

221

delas. Mas o espír@t" racionalista da sua ~se sagradia reflecte-se


nas suas
d,out,@mw, que chegam a negar os dogmas fundamentaís do
cristianismo. Já
Miguel Serveto (1511--53) nepra o dogma trinitário, admitindo um ú
nico Deus,
isto é, o Paá, e recusando-se a rcoonhecer que a trindade se funda
na Sagrada
Escritura. A mesma negação se encontra em Socino. Deus, que é
uma essênda
numèricamente una, deve ser também uma pessoa numèficamente
una: pessoas
diversas implicariam essências, isto é, substâncias diversas. O que
exclui
que Cristo seja Deus. Aliás, se fosse Deus, já não seria homem, pors
uma
única substância não pode ter em si duas formas. A pretensa
dirvindade de
Cristo contradiz ao mesmo tempo o testemunho do Evangelho e a

razão humana. O pecado original deixa de subsistir, "é uma fábulia


judaica
iiintroduzida na Igreja Pello Anti-Cristo," (Dial. de justif., Op. 1,
604 b).
A culpa requer a vontade, e não pode haver culpa no homem que
acaba de
nascer. Fausto Socini defende, além disso, a liberdade do homem e
@nterpreta
a doutrina luterana da justificação como uma espécie de Mmissão
jurídica que Deus faz do pecado em virtude da fé. Mas o homem não
pode
salvair-se ~o pela sua vontade, porquanto a escolha divina não
ocorre sem ia
livre acção da vontade humana. No racionaliismo religioso de Sooini
o
cristianismo tornou-se num puro iteismo filiosófico, no qual os
caracteres
h@stórieos: do cristianismo se desvanecem de todo.

Insiíste, ao invés no carácter moral e prático do cril,stiràni,smo,


entendido
como religião da Uberdade e

da caridade, G@acomo Aconcio que, nascido tialvez


222

em Trento (1520) viveu ~, s anos na Inglaterra, onde morreu em


1567. No seu
Strata gemata Satanae (1565), vê ele o único meio que o homem
tem de fugiT
aos ardis de Satanaz, considerando como supérf,luos à salvação,
todos os
pontos de doutrina que nãoinf1uene@ení a prática da virtude cristã.
Tudo o
que conduz eincita à fé, à esperança e à candade, é
verdadeiramente
essencial; tudo o que divide os

cristãos e os lança na luta e na tintolorância é considerado oomo


uma
tentativa dwabólica. - Num tra- ozinho @ntítulado De methodo
(1558), Aconcío
também prenunciou, conquanto de maneiÍra vaga e genérica, a
exigência da
renovação metodológica baconiana. "Uma vez que a utilidade dias
artes
oonsisoe, não no seu cionhecimento mas no seu uso, e quie é
necessário, se te
queres servir de uma arte, que i~, à mão os prewitos dela, como os
elementos
das letras a quem deseje escrever e ler, é evidente que no ensino
das artes
se deve evitar toda a verbosidade" (De meth., 15). Aconcio insiste
no fim
práãw das artes e no valor das experiêndas, ma retoma e ilustra
velhas e
gastas noções da lógica e da metafísica. escolástica.

§ 373. A CONTRA-REFORMA
Costurna-se dar o nome de Contra-Reforma à reacção da Igreja
católica,
reacção que se @nich com o Concilio de Trento (1545-63). Na
realidade, a
Contra-Mbrma é a reforma que a igreja, sob o
impulso das circunstâ"s lustóvicas, faz de si
223

mesmia; o tal reforma é mais unia vez um retorno aos princípios. A


Igreja, de facto, retorna decididamente aos prIncípios
fundamentaús que havmm presidiido à sua fonnação e reencontra
nesses principios o seu vigor e a sua força de expansão, que a
impelem, ta difundir o seu ensino em íodas as partes do mundo e a
reconstituiir asua potência uni~ que havia súdo, quebrada pela
Reforma.
GontTa a
Reforma, que queria voltar ao Evangelho, anulando de golpe os
resultados da
tradição ecliesiástica, a Igreja reafirma o valor de taltradição e
por~ das
doutrinas, das cerimónias e dos à que se

tinham acumulado e consolidado através dos tempos. Para -a Igreja,


o retorno
às origens não é o retomo à BíbUa, mas o retorno ao primieiro pier~
da sua
formação histórica, ou seja, o perWo pau~, no qual a palavra de
CÉisto
começou a tomar corpo e consistência na organização eclesiástica,
se
fixairam. as interpretações autê nticas dos pontos fundamentàs da
fé e
nasceram os ritos e as h~quias. E, enfim, o x~o aoproselítísmo e à
capacidade
difusora dos primeiros tempos, à prietensão a um

magistério universal do qual não deve excluir-se nenhum,povo da


terra. O
C"ncílio de Trento negou portanto que ia Sagrada Esffitura
bastasse por si só
à salvação do homem; negou o princípio dia livre @nterpretação e
reafirmou o
direito da Igreja (já sustentado e difundido pelos Padres nos
primeiros
séculos) de dar, ela só , ia interpretação autêntica dos textos
bíblicos.
~iirmou. assim o valor e a função me~ora da Igreja, a necessidade
da
hierarquâa, e portanto a validade dos sacramenOs e dos

224

ritos. Assim se restabelecia o vadíor das obras e a

Igreja desenvolvia e ref)orçava. a sua actividadie no mundo


mediante a
criação de ordens religiosas que tinham como escopo fundamental a
educação, a
~iciênoia e, em geral, a actividade filantrópica. A seiumodo e em
conformidade com a sua natureza, a Igreja fazia seu o princípio,
afirmado
pelo, Renaiscimento e pela Reforma, de que a rokgiosi;IIJ!ade deve
aplicar-senci, mundo e pôr-se, ao serviço dos homens.
A persionaúdade más @mportante, dia Contra-Reforma é o cardeal
Roberto
Beliarmino. Nascido em MentepuViano a 4 de Outubro de 1542, e
fa-L-cido a 17
de, Setembro de 1621, Beilarmino fo@ jesuíta, professor de
teologia no
Colégio romano, e consultor do Santo Ofício: como ital tomou parte
no
processo contra Brum em 1559 e no primeiro processo contra
Galileu em 1616. A
sua obra princ@paI são as Dísputationes de centroversiis
christianae fidei
adversus huius temporis, nas quais as deoisões do Concílio de
Trentosão
ilustradias e de&ndidas com grande clareza e enorgia. Belarmino
afirmou
também,a superioridade do Papa sobre a Igreja e sobre o concílio, e
bem assim
a sua idalibiUdiadt; e que o Papa, embora possuindo apenas o poder
espiritual, goza, pela superioridade própria deste poder, uma

abscêuta. supremaoia sobre todos os reis e príncip.,@s da


terra,podendo por issso coroá4os ou destroná-los segundo o seu
critério ~vel.
O ~mo da Igreja aos seus mais sóLdo@s princípios devia significar,
e
significou de facto, também um retorno ao tomismo. O Wmismo
representava
225

a mais bem sucedida sintese dia fé e da razão e realizava a


ipossibilidade
daquela jusWicação rwionad do d,ogma cristão que a Igreja sempre
pmmovera e
que havia sido negada, pela Reforma, a qual seguira o exemplo da
Escolástica
na sua última fase. O representante principal do wtorno ao tomismo
éo
espanhol Frawisco Suarez, que nasceu, em Granada em 1548, foi
professor em
várias universidades espanholas e morreu emljisboa em 1617. A sua
obra
principal, as Disputationes metaphysicae, é um manual ocimpleito e
sl~úco da
metafísica escolá~a em que se retomam todos os princípios
basilares do
tomismo, com algumas, conoessões ao nominalismo occamístico. A
concessão diz
respeito sobretudo ao reconheeim~ da individualidade do mal. "
Toda a
substância singular é singular por si mesma ou peda sua própria
reailidade"
(entitas) e não tem necessidade de outro princípio de individuação
além da
sua própria realidade ou dos princípios intrínsecos em que tal
realidade
~ste" (Met. disp., V, 61). ERte nheciiinento não leva no entanto
Suarez a
negar a ~ade do universal: ele admite a do~ de Escoto segundo a
qual o
indirviduo é uma especificação ou contradição de uma natureza
comum
constkuída de matéria e forma.-Quarito ao resto, a obra de Suarez
não se
afasta de S. Tomás e não apresenta por isso nenhum in;tOr@sse:. É
todavia
notável a doutrina política exposta por Suarez no De legibus (1612).
A~
fundamental d~ obra é a de que, enqu~ o poder siá~ deriva ime-

N
226
diatamente de Deus, o poder temporal, deriva apenas do pwo. De
facto, todos
os homens nascem, livres e o corpo político resulta da livre reunião
dos
indivíduos, os quais, explícita ou tàoitamente, reconhecern o dever
de se
ocuparem do bem comum. Daí que a soberania resida apenas no
povo, que é
superior ao rei, ao qual ele a confia e a quem pode retirá-la desde
que o red
a exerça de uma maneira impodifica, isto é, não no @niteresse
comum mas

tirânicamente, ou seja, no interesse próprio. Esta doutrina, que ;se


apoia um
pouco nas ~ias politicas da Idade Média e tamb6m. em S. Tomás
possui, um
iintuito evidente. A Reforma afirmara o absolutismo do poder
político dos
príncipes, ao passo que negava o poder e a funçãomesma da Igreja.
A Contra-Refórma, fazendo derivar o poder eclesàástico
directamente de Deus, pretende
subtraí-lo a toda a dúvidia ou bimitação para reafirmar o carácter
absoluto
dele. Mas ao mesmo tempo, atribuindo ao poder político dos estados
apenas o
fundamento cont,ingente e rautável da vontade popular, visa a
rebaixar o valor de tal poder em ~o ao siástico e a fazer ressaltar
assilim a supremacia absoluta deste. O reconhecimento, da origem
popular do poder político não é, portanto, em Suarez e nos o~
jesuítas (camo o espanhol Juan Maúana, 1536-1623, autor & um De
rege et regis institutione) mia tentativa. positiva de fundar
asobemn@a política do ~o, mas antes a tentadva negativa de
desvalorizar tal soberania em benefício total do poder eciesliásfico.
227

Sobre ~a grande controvérs@a entre reformistas e católicos, a dia


liberdade
humana, o ponto de visita dia Igreja é sustentado, pelo jesuíta
espanhol Luis
Molina (1535-1600) na obra Uberi arbitrii cum gratia e donis, divina
praesciencia, providentía, praedestinatione et reprobatione
concordia. Como o
título, diz, o escríto, propõe-se mostrar o acordo entre ia liberdade
humana
por um lado, a griaga, a

presciência, a providência e a predestinação por outro lado; e a


tentativa é
feka segundo o modelo das @soluções toraísticas. A graça não
elinÍna, segundo Moilina, a liberdade humana mas ~rma-a o garante-
a. Deus concedeu a
todos os homens a possibilidade de se salvarem; e quiis que a
salvação deles
dependesse da sua própria boa vontade. De modo que ia graça
divina. coopera
com o -Iivrk>arbítrio do homem, mas não o abole nem o suplanta.
Nem o
l,ivxe-iarbkrio abole a presciência, a qual, pelo que mlslye@ha às
acções
humanas, não as precede mus se lhes segue. A ciê4icia, de Deus é
necessiitante com respeito à ordem dias causas naturais e aos
acontedimentos
que ele próprio determina mediante um

acto livre da vontade. Mas há ainda uma ciência média, que concerne
às acções
humanas, pela qual Deus sabe infalivelmente que acção entre as
múltiplas
possibilidades o homem realizará efectivamente, embora deixando o
homem livre
para realizar a acção oposita. Trata-se, como se vê, de uma
~posição das
teses, tonústas. Mas a obra de Molina devia ricacender no próprio
seio da
igreja católica a

disputa sobre a liberdade, visto que foi a essa tese


228

que Jansénio (§ 420) buscar o ponto, de ~ida polémico para uma


defesa
resoluta da predest~ d@vinia e da servidão humana.

A atitude do homem da Contra-Reforma no mundo é ilustrada pelas


obras do
jesuíta espanhol Bal~ Graciano (6 de Janeiro de 1601-6 de
Dezembro de 1658),
autor de vários escifitos (0 herói, O político, D. Fernando o
católico, O
Discreto), o maiis famoso dos quais é o Oráculo manual e arte de
prudência,
publicado em 1647. As máximas de Graciano insipiram-se num
realismo, lúcido e cru que recorda o de
Maquiavel e aánd:a mais Guicoiardâni. Graciano, crê na
perfectibilidade do
homem, na sua progresisiva formação. "Não, se nasce perfeito, diz
ele: o
homem vai-se aperfeiçoando todos os dias na suiapessoa e na
prática dia vida
até chegar a ser um exemplo perfeito,, a personificação da virtude
e do
valor. Revela-se então na fineza do gosto, na segurança do esp~,-,
na

maturidade do juízo, e na força de viontade" (Or., 6). Mas esta


formação não
é um facto apenas espiritual e íntimo: é itambém capacidade de
triunfar na
vida, arte do êx@to. Graciano insiste igualmente nos dotes

essenciais da personalidade humana como o saber, a fkmeza, a


coragem e a
destreza prática que consiste em se desembaraçar nas
circunstânclas da vida prática e em prevale=
sobre os outros. Exàta o
homem deuma só peça que "julga tralção a d-issimu~, que se
giorifica mais da
sua tenacidade que da asituesa e se enoontra sempre onde se
encontra a verdade" (Ib., 29). Mas iao mesmo lempio,
229

ensina a arte de governar a vontade dos ~os ~ecendo a debilidade


ou a p~ dorninante de cada um: "A astú cia consiste em intuir os
idolos dos o~ para se insinuar: conhecer o impulso de cada um e
possuir a chave da vontade dos outros. Deve-se avançar ao pnmeffo
movimento, que nem sempre é o mais alto, e o maiis das vezes é o
mais baiixo: porquie são mais numerosos no mundo os desregrados
do que os que se sujeitam às regras (Ib., 26). Aqui é a "arte da
prudência" que avalia, os actos humanos pelo juízo, que os homens
fazom deles e dá uma dmp(>rtância es~ à aparêw@a, porque "as
coisas não se estimam por aqu@lo que são mas por o que parecem.
Wer e sabê-lo mostrar é valer duas vezes" (Ib., 130).
As obras de Graciano alcançaram grande sucesso na Europa nos
últimos decénáos
do século XVII: talve7 porque ofereciam aos espíritos da @poca um
quadro
imparcial dos meios paria se obter êxito e se inseria naquela
concepção
arisftw~ da autoridade que era partilhada por muitos. Matis tarde,
Schoperihaueir viu em Grac@ano um precursor do ,,,eu pessimismo
e traduziu o Oráculo em ale~. Na realidade, não se trata de
pessimismo, mas, de uma observação realista e crua da natureza
humana, uma reflexão que se impõe como premissa de toda a acção
entre os homens que queiram assegurar o sucesso de qualquer
empreend=ento. As máximas deste jesuíta são um outro sinal da
mundanização do espírito religioso que a Contra-Reforma wem em
comum com a Re~.
230

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 366. Sobre o Renascimento e a Reforma: BURDAci-i, Deut8che


Renaissance, Berlim, 1920; M., Riforma, rinascimento e umanesimo,
Florença, 1935; HAUSER e RENAUDET, Les débuts de Páge
moderne. La Renaissance et Ia Réforme, Paris, 1929; e bem assim,
as obras sobre o Rena-scimento cit~ na nota bibliográfica do cap. I,
e especialmente a de DILTHEY.
§ 367. Noticias e documentos sobre a vida de Erasmo em E.
MAJOR, Erasmus von
Rotterdam, Basileia, s. d.; as obras de Erasmo foram impressas em
Basíleia,
em 1540-41 e em Leida em 1703-06; as cartas ao cuidado de Allen,
Opus
epistolarum, em Oxford,
1906 e segs. O De libero arbitrio teve uma nova ed. ao cuidado de
Walker,
Leipzig, 1910; o Enchyridion militis christiani e os prefácios ao Novo
Testamento (In Novum Testamentum praefationes, Batio seu
methodus compendio, perveniendi ad veram theologiam) tiveram
edições criticas ao cuidado de H. Holborn, Mó~, 1933, com o título
Ausge-wãhlte Werke. -Elogio da Loucura e Diálogos, trad. ita@I.,
Bari, 1914.
Sobre Erasmo: HuyzINGA, Erasmus, LeIpzig, 1928; MEYER, Étude
critique sur les
relations d'Erasme et Rotterdam. Milão, 1935; A. RENAUDET,
Êtudes era-&-
miennes (1521-29), Paris, 1939; E. e Utalie, Genebra,
1955.

Sobre as relações entre Erasmo e Lutero: A. M=R, Êtude critique


sur les
relations d'Erasme et de Luther, Paris, 1909.

§ 368. Uma primeira ed. completa das obras de Lutero faí dada à
estampa em Wittenberg, 1539-58. A última é a ed. erítica em 60
vol. publicada em Weimar, de 1883 em diante.
O testemunho autobiográfico de Lutero é-nos dado em KROKER,
Luther8
Tischreden in der Matheig-
231

chen SammIung, n.o 590. -E. TROELSTSCH; Prote@stantisches


Christentum und Kirche in der Neuzeit, in "Die Kultur des
Gegenwart", I, IV, 1; ID., Di-
Bedeutung des Protestantismus für die Entstehung der modernen
Welt, ReÉlim, 1925; GRISAR, Luther, 3 vol., Friburgo, 1,912-1913;
BUONAIUTi, Lutero e Ia riforma in Germania, Bolonha, 1926. Veja
também a obra cit.%da de Dilthey, trad. itali., I p. 70 segs.
§ 369. As obras de Zwlngli no Corpus reformatorum, Berlim, 1904 e
segs., DILTHEY; L'analisi del Uomo, ete., trad. ital, I, p. 83 segs.;
285 segs.
§ 370. As obras de Calvino no Corpus Reformatorum,
Braunschve@g, 1863-84.
Institution de Ia religio chrétienne, ed. crítica ao cuidado de J.
Pannier
(na "Oollection des Universités de France"), Paris,
1936, 4 vol. (cit. no texto).-CAREW HUNT, Calvino, trad. ital. de A.
Prospero, Bari, 1939.-MAX WEBER, Die protestanti-sche Ethik und
der ~ des Kapitalismus, Tubinga, 1905; DiLTHEY, op. cit., 1, p. 291
segs.; A. OMODEO, G. Calvino e Ia rifornw in Ginebra, Bari, 1947.
§ 371. As obras de Medancithone tiveram a primeira ed. completa
em 5 vols. em Basileia em 1541. Foram republicadas em 28 vol. no
Corpus reformatorum, 1834 segs. Uma revalorização da obra de
Melanethone foi feita por DILTREY, em L'analisis del uomo, etc., I,
p. 207 segs.
De S. FRANCK: Chronica, Estraburgo, 1531; Cosmographia, Uinia,
1534; 280, Paradoxa, 2.1 ed., 1542. As obras de V. Weigel foram
publicadas isoladamente nos princípios do Século XVU-STOCKL,
Gesch. der Phil. des Mittelat, III, Mogúncia, 1866, p. 559 segs.
As obras de Bõhme foram editadas nos séculos XVII e XVIH por
várias vezes em
Amsterdão; nova ed. ao cuidado de Schiebler, Leipzig, 1831-47; 2.1
ed.,
232

1861 e segs.; Aurora, os três princípios da essência divina, A


tríplice vida
do homem, Quarenta questões sobre a alma, foram traduz~ em
francês por St.
Martin, Paris, 1800.-K. LEESE, Von J. Bõhme zu Schelling, Erfurt@
1927; E.
NOBILE, Jakob Bõhme e i? suo dualismo essencial, Roma, 1928.

§ 372. Sobre os Socini e Serveto: DILTHEY, L'analisi dell'uomo,


etc., I. p. 175 segs. As obras de Fausto Socini foram publicadas em
2 vol. em 1656 na "13ibliorteca Fratrum Poloniae".
G. Aconcio, De methodo e Opuscoli re7igiosi e filosofici, ao cuidado
de G. Radetti, Florença, 1944; Id., Stratagematum Satanae Libri
VIII ao cuidado de G. Radetti, Florença, 1946.
§ 373. Sobre a Contra-Reforma: E. GOTHEIN, Reformation und
Gegenreformation, Mónaco, 1924 (trad. ital.). -As Disputaciones de
Belarmino foram editadas em Ingolstadt, 3 vols., 1586, 1588, 1592;
nova ed., Mogúnci,a, 1848.-As Disputationes metaphysicae de
Suarez foram editadas em Salamanca em 1597 e em Mogúncia por
várias vezes no século VII: o De legibus em Coimbra, em 1612.
Edições completas das obras: Lião, 1632 segs.; Veneza, 1740-51;
Paris, 1856-61. -A obra de Luigi Molma sobre o livre-arbítrio foi
editada em Antuérpia em 1535.-B. SPAVENTA, La politica dei
gesuiti nel secolo XVI e nei XVII, Milão, 1911.
As obras de Graciano foram editadas em Antuérpia em 1669. O
Oráculo foi traduzido em todas as linguas, sendo o maior número de
traduções em italiano. Ver a trad. de G. Marone com introdução e
bibliografia, T-jaxwÀano, 1930.
233

vi

RENASCIMENTO E NATURALISMO
374. RENASCIMENTO E NATURALISMO: MAGIA, FILOSOFIA
NATURAL; CIÊNCIA
O renascer do homem, que é o anúncio o a esperança do
Renascimento, é o
renascer do homem no mundo. A -relação com o mundo é
reconhecida como parte
integrante, constitutiva do homem. A elareza que o homem alcança
no
Renascimento no que respeita à natureza própria é também ao
mesmo tempo
clareza no que Tespeita à solidariedade que o lága ao mundo: o
homem
compreende-se como parte do mundo, distingue-se dele por
reivindicax a
originalidade própria, mas ao mesmo tempo radica-se nele e
reconhece-o como o
seu próprio domínio. O tema do homem como natureza média, tema
comum aos
humanistas, platónicos, aristoté-
235

licos e magos, exprime precisamente a conscí~ com que o homem se


reconhece essencialmente inserido no mundo e a sua decisão de se
servir da sua posição privilegiada, semelhante à de Deus, para fazer
do próprio mundo o seu reino. Revela-se portanto indispensável uma
investigação que vise a realizar este domínio. O estudo do
mundonatural já não se apresenta no Renascimento como a fuga do
homem à interioridade própria ou como inútil distracção da
meditação sobre o destino da pessoa.
A investigação natural começa a aparecer como um instrumento
indispensável
para a realização dos fins humanos no mundo, já que só por ela o
homem pode
obter os meios de tal realização. A invesitigação natural é de facto
a parte
primeira e fundamental da filosofia do Renascimento. Podem
dist@nguir-se nela
três aspectos ou fases, que são a magia, a filosofia da natureza e a
ciência;
mas estes três aspectos, que caracterizam a investigação
especulativa ou
positiva da natureza no século XVI, são preparados pelo humanismo
e pelo aristotelismo do século XV. Pelo humanismo na medida em que
não só tornou.
possível a disponibilidade dos testes da ciência antiga mas também
insistiu
na naturalidade do homem e por isso no seu vital interesse em
conhecer o
mundo natural. Pelo aristotelismo, que pretendeu explicitamente
promover o
renascimento da investigação natural, como havia sido praticada por
Aristóteles, e que veio pôr a claro o fundamento que a tornou
possível: o
conceito da ordem necessária do mundo.

A magia renascentista é caracterizada por dois pressupostos: 1) a


universal
animação da natureza,

236

que se verifica ser movida por forças intrinsecamente semelhantes


às que
actuam no homem, coordenadas e harmonizadas por uma simpatia
universal; 2) a

possibilidade que assim se oferece ao homem de penetrar de golpe,


com meios
ambíguos ou vãolentos, nos mais ocultos recessos da natureza e de
lhes
conseguir dominar as forças com lisonjas e
encantamentos, isto é, com os mesmos meios com que se atrai a si
um ser
animado. Com estes dois pressupostos, a magia vai à procuxa de
fórmulas ou
processos miraculosos que sirvam de chave para os
mais impenetráveis mistérios naturais e ponham o
homem de golpe na posse de um poder ilimitado em relação à
natureza.
A filosofia natural, que já se havia manifestado nalguns dos
próprios
defensores da magia, mas se

afirmara pela primeira vez em Telésio, abandona este último


pressuposto. A
natureza é no entanto sempre considerada como uma totalidade
viva, mas
considera-se regida por princípios próprios; e a doscoberta destes
princípios
torna-se a tarefa da filosofia. Renuncia-se à quimérica pretensão
de penetrar
violentamente nos mistérios naturais, e até se negam tais mistérios;
as
forças naturais estão patentes e revelam-se na experiência, só é
necessário
reconhecê-las e secundá-las. A filosofia da natureza destrói as
pontes, seja
pela magia, seja pelo aristotelismo: pretende penetrar na natureza
por
intermédio da própria natureza, prescindindo de hipóteses e de
doutrinas
fictícias. E assim abre o caminho à verdadeira e própria
investigação
científica.

237

A ciência é o último o mais maduro resultado do naturalismo do


Renascimento.
A redução naturalística é conduzida ao seu ponto extremo: a
natureza nada tem
a ver com o homem, nem com a alma nem com a vida; é um conjunto
de coisas que
se movem mecânicamente; e as leis que regulam * mecanismosão as
da
matemática. A ciência reduz * natureza à pura objectividade
mensufrável,
separa-se do homem e torna-a estranha à sua constituição o aos
seus
interesses: e só assim a abre verdadeiramente e dela faz o regnum
hominis.

§ 375. RENASCIMENTO E NATURALISMO: A MAGIA


A primeira figura de mago é a de Johann Reuch,lin ou Capnion
(assim grecizou
ele o seu nome), que veio a dedicar-se à magia através da Cabala.
Nascido a
22 de Fevereiro de 1455 em Pforzheim, morto em Tubinga em 1522,
ReuchIm
viajou em Itália, onde conheceu Pico de Mirândola pelo qual foi
provàvelmente
dirigido para os estudos cabalísticos. Em seguida ensinou língua
hebraica e
grega em Tubinga. As suas obras principais são Capnion sive de
verbo mirifico
e De arte cabalistica. -0 homem está situado entre dois mundos, o
mundo
sensível e o suipra-sensível; o como participa com o corpo do mundo
sensível,
e com a alma do mundo supra-sensível, assim o seu conhecimento se
dirige ao
mesmo tempo a um e a outro. O conhecimento do mundo sensível
atinge-o ele
através dos sentidos, da fantasia, do juízo e da razão. o conheci-
238

mento do mundo supra-sensívei a~ elo ~ da mente (mens). A mente é


portanto
superior à razão; é o olho da alma para o mundo supra-sensí. vel;
mas Como o
Olho corpóreo vê o sol e as coisas iluminadas pelo sol só por meio
das luzes
do sol, assim a mente vê o divino só através da luz divina, que ela
encontra
imediatamente em si mesma (De arte cab., III, fol. 52). Esta
imediata
revelação de Deus à mente é a fé, a qual, portanto, é indispensável
para o
conhecimento do mundo sobrenatural e divino (De verbo mir., I, fol.
11 b). A
razão é inútil para tal fim e o procedimento silogístico, do qual se
serve, é
insidioso e contrário, e de modo nenhum uma ajuda, ao
conhecimento divino (De
arte cab., 1, fol. 24). Por isso Reuchlin vê na Cabala, entendida como
uma
imediata revelação divina, a única ciência possível da divindade e a
única
via para aceder a ela. "A Cabala, diz Reuchlin, é uma teologia
simbófica na
qual não só as letras e os nomes, mas as próprias coisas são sinais
das
coisa,,s" (lb., M, fol.
51 b). A arte cabalística é o meio para chegar ao conhecimento
desses
símbolos. Esta arte eleva o homem do mundo sensível ao supra-
sensível: e pela
subordinação em que o primeiro se encontra em relação ao segundo,
capacita-o
a operar efeitos miraculo que espantam o vulgo. O cabalísta é
também um
taumaturgo; e especialmente o nome de Jesus torna-o capaz de
realizar
milagres (De verbo mir., III, fol. 52). A condição necessária é
apenas uma
intensíssima fé, pois que não é o cabalista que opera poir si o
milagre, mas
sim Deus que o real=

239

através dele pela força desse nome miraculoso (Ib., I, foi. 22).

O carácter prático da magia é acentuado por Cornélio Agripa de


Nettesheim,
nado em Colónia em 1486, e falecido em Grenoble em 1535. Na sua
obra
fundamental De oculta philosophia, Agripa, tal como Pico de
Mirândola e
Reuchlin, conformemente à Cabala, admite três mundos: o mundo
dos elementos, o mundo celeste e o mundo inteligível. Estes três
mundos estão ligados entre si de tal modo que a virtude do mundo
superior flui até aos últimos graus do mundo inferior, dissipando a
pouco e pouco os seus raios, e pelo canto deles os seres inferiores
chegam através da via dos seres superiores até ao mundo supremo.
Tal como uma corda tensa que, tocada num ponto, logo vibra toda,
assim o universo, quando tocado num ponto dos seus extremos,
ressoa também no extremo oposto (De oec.
phil., 1, 1 e 37). A via deste influxo que liga o universo o garante a
acção
recíproca das suas partes é o

espírito através do qual a alma do mundo opera em


todas as partes do universo visível (Ib., 1, 14). Ora, o homem está
situado
no ponto central dos três mundos e recolhe em si, como um
inicrocosmo, tudo o
que está dísseminado nas coisas (lb., 1, 33). Esta situação permite-
lhe
conhecer a força espiritual que mantém coeso o mundo e servir-se
deJa para
operar acções miraculosas. Assim nasce a magia, que é a ciência
mais alta e
completa porque é a que submete ao homem todas as potências
omitas da
natureza (lb., 1, 1, 2). A ciência e a arte do mago incidem sobre
estes três
mundos: há aqui uma magia

240

natural, uma magia celeste e uma magia refigiomsa ou cerimonial. A


primeira
ensina a servir-se das coisas corpáreas para efectuar acções
miracul~; a
segunda vale-se das fórmulas da astronoinia e dos influxos dos
astros para
operar milagres; finalmente, a terceira, com o mesmo fim, estrema
as
substâncias celestes e os demónios. -Nos últimos anos da sua vida,
Agripa
acentuou o carácter místico da sua especulação; e no De vanitate et
incertitudine scientiarum (1527), condenou em bloco a ciência,
considerando-a uma verdadeira peste da alma e apontando a fé
como a única via de salvação.
Mas, na r"-idade, permaneceu fiel à magia, que havia exaltado
primoiro,
defendendo ainda a utilidade dela para a sabedoria; e voltou a
publicar, em
1533, isto é, dois anos antes de morrer, o De oculta philosophia.

Uma das mais famosas figuras de magos foi Teofrasto Paracelso. O


seu nome ora
Filipe Bombast de Hoenheim, que mudou para Filipe Aurélio
Teofrasto
Paracelso. Nasceu a 10 de Novembro de 1493 em Einsiodeln, na
Suíça, foi
médico e cirurgião, ou
antes reformador da medicina em sentido mágico. Morreu em
Salisburgo, a 24 de
Setembro de 1541. Teofrasto é um mago; mas algumas exigências
que ele apontou
fazem dele um precursor do método científico. O homem foi criado
para
conhecer as

acções miraculosas de Deus e para operar acções semelhantes: a


sua tarefa é
portanto a pesquisa. Mas a pesquisa deve aliar a experiência à
ciência para
chegar a um conhecimento verdadeiro e seguro. Teoria e prática
devem proceder
paralelamente e de acordo, pois que a teoria não é mais que prática
espe-
241

culativa e a prática não é senão a teoria apE cada (De nwrb. caduc.,
1, p.
616). Não se pode fazer fé num

experimento desprovido de carácter científico; mas


quem possui a ciência, além da prática, sabe também porque um
fenómeno se
deve verificar de um modo ou de outro e pode evitar as suas
consequências
(Labyr., 6). A investigação, entendida como unidade da teoria e da
experiência, será a palavra da nova ciência- Mas tal pesquisa tem
em

Teofrasto um carácter mágico. O princípio que deve guiá-la é a


correspondência entre o macrocosmo e microscosmo. Se queremos
conhecer o
homem, isto é, o microcosmo, devemos voltar-nos para o
macrocosmo, isto é,
para o mundo. A modicina que tem como escopo conhecer o homem,
para lhe
conservar a saúde e libertá-lo das doenças, deve fundar-se em
todas as
ciências que estudam a natuireza do universo. Esta é a reforma da
medicina
que Teofrasto tentou o que se, por um lado, lhe proporcionou o
ódio e as
perseguições dos colegas médicos, o capacitou, ao que se conta, a
operar
curas milagrosas. A medicina assenta em

quatro colunas, que são a teologia, a filosofia, a astronomia e a


alquimia.
Todas estas ciências possuem carktor mágico. A teologia serve ao
médico para
utilizar o influxo divino, do qual tudo depende; a astrologia serve-
lhe para
utilizar os influxos celestes, dos quais dependem as entermidades e
por
conseguinte as curas respectivas; a alquimàa serve-lhe para
conhecer a
quinta-essência das coisas e para a a@Plicar nos tratamentos. O
mago, com a
força da sua fé e da sua imaginação, exerce sobre o

242

espírito dos homens, ou sobre o espírito da natureza, um influxo


que suscita
potências desconhecidas e ocultas e chega assim a operar coisas
consideradas impossíveis (De
phil. occ., 11, p. 289). Pelo fiat divino nasceu em primeiro lugar a
matéria
originária (yliaster ou hyaster) constituída por três princípios
materiais
(três como a trindade divina): o enxofre, o sal e o mercúrio. Estes
princípios são as specie prinúgenie da matéria e poi eles são
constituídos os
quatro elementos do mundo
e em geral todos os corpos da natureza (Meteor., p. 72). A força
que move os
elementos é o espírito animador ou Archeus. Assim como todas as
coisas são
compostas por três elementos, assim as forças que os animam são
constituídas
pelos seus arcanos, isto é, pela actividade inconsciente e instintiva
do
Archeus (Ib., p. 79 segs.). A quinta-essência é o estrato corpóreo
de uma
coisa obtido mediante a análise artificial da coisa mesma e
separando o
elemento dominante dos outros elementos que estilo m@;&turados
a ela. A
quinta-essência não é um quinto elemento, como o nome diz, mas um
dos quatro
elementos e precisamente aquele que domina a

constituição da coisa e exprime a sua natureza


fundamental. Nela estão ocultos os arcanos, isto é, a força
operante de um
minera@ de uma pedra preeiosa ou de uma planta; e dela, portanto,
se
deve servir a medicina (que pela alquimia toma conhecimento dela)
para operar as curas (De myster. nat., 1, 4).
Em Itália, o tema da simpatia univem1 das coisas, que é o
fundamento da
magia, foi tratado

243

por Jerónilmo Fracastoro (1478-1533) que foi médico, astrónomo e


poeta. Na
sua obra De sympathia et antipathia, explica o universal influxo
recíproco
das coisas servindo-se da doutrina empedocleana da atracção entre
os
semelhantes e da repugnância entre os dissemelhantes. Mas para
explicar a
modalidade deste influxo, Fracastoro recorre à doutrina
atomística e aos
fluxos dos átomos. Ele firma-se no pri@ncípio aristotélico de que
nenhuma
acção pode ocorrer senão por contacto; assim, quando os
semelhantes não se
tocam e não se movem por natureza um para o outro, é necessário,
para
explicar a sua simpatia, que de um ao outro se verifique um fluxo de
corpúsculos,
que transmita a

acção (lb., 5).


Uma figura de médico mago que se assemelha à de Paracolso é
Jorónimo Cardano,
nascido em Pavia em 1501 e professor de medicina em Pádua e
Milão; morreu em
Roma em 1576. Na sua autobiografia De vita propria, apresenta-se
a si mesmo
como uma personalidade excepcional e demoníaca e relaciona os
casos da sua
vida com forças arcanas e prodigiosas. As suas obras mais notáveis
são o De subtilitate (1552), o
De varietate rerum (1556) e os Arcana aeternitatis (póstumo).
Trata-se de
escritos desconexos e ricos de digressões; uma espécie de
encielop6dia sem
nenhum plano unitário. Ele admite apenas três elementos: o ar, a
água e a
terra, e nega que o fogo seja um elemento. Os princípios da geração
são o
calor celeste e a humida,de terrestre; o seco e o frio são apenas
privações.
O calor celeste é o único princípio vital uni-
244

versaL Ele é a alma que dá vida a todas as coisas do mundo e a via


daquela
simpatia universal que liga todas as coisas naturais, desde os corpos
celestes até ao mais baixo grau do mundo corpóreo (De rer. variet.,
1, 1-2).
O homem é o grau mais alto das coisas terrestres. Ele não é uma
espécie de
animal, assim como os animais não são uma espécie de plantas. Foi
criado para
um triplo fim: conhecer Deus e as coisas divinas; servir de mediador
entre o
divino e o terreno; e, enfim, dominar as coisas terrestres e servir-
se delas
para sua utilidade (De subtil., X1, fol. 302). Para atingir estes fins,
foram-lhe dadas três faculdades: a mente para o conhecimento do
divino, a razão para conhecer as coisas mortais e a mão paira
utilizar as coisas corpóreas. A mente está acima das potências
sensíveis, é independente da matéria e portanto imortal (De rer.
variet., VIII, 40 segs.). A mente, todavia, não é individual mas única
em todos os homens:
Cardano aceita neste ponto o averroísmo Ub., VUI, 42).
Um mago que dava grande importância à observação da natureza foi
Giovan
Battista Della Porta, nascido em Nápoles em 1535, falecido ern
1615, autor de
comédias e cultor de óptica, a ponto de ter disputado a Galileu a
descoberta
do telescópio. Na sua obra principal Magia naturalis sive de
miraculis rerum
naturalium (1558), distingue da magia diabólica, que se vale das
acções dos
espíritos imundos, a magia natural, que é, ao invés, o ápice do saber
humano,
o coroamento da filosofia natural. Esta não ultrapassa os limites
das
245

causas naturais, e as opera~ que efectua parecem maravilhosas só


porque as suas causas permanecem ocultas (Mag. nat. 1, 1). A obra
é, W11 real-idade, uma recolha desordenada de factos e
transmutações miraculosas, que Porta se recusa a submeter a
exame com o pretexto de que "aqueles que não fazem fé nos
milagres da natureza tendem a destruir toda a filosofia" (Ib.,
pref.). O mesmo amor do maravilhoso leva Porta a fundar em
Nápoles uma "Academia dos segrodos" na qual se podia entrar sob a
condição de comunicar algum maravilhoso arcano, superior à
inteligência do vulgo. Lirni@ta-se, portanto, a reagrupar os
fenómenos e os casos miraculosos segundo tipos gerais como a
si,mpatia e a antipatia, as acções e as reacções dos quatro
elementos e as influências astrais, sem tentar dar uma explicação
deles: daí que Campanella (Del senso delle cose, IV, 1), embora
inspirando-se nele, lhe reprove o haver tratado a magia apenas do
ponto de vista histórico ou descritivo e queira encontrar (como
veremos, § 384) um fundamento dela na universal animação das
coisas.
Está ligado a Paracelso, Jean Baptiste Helmont, nascido em
Bruxelas em 1577 e
falecido em 1644. Helmont admite como elementos fundamentais
apenas a água e
o ar, excluindo o fogo e a terra: a água constitui as coisas
terrestres, o ar
é a matêria dos céus. A água é constituída de três espécies
primigénias que
são o sal, o enxofre e o mercúrio.
O espírito vital ou aura vital é a força animada que move, anima e
ordena os
elementos. Ele não age cegamente, mas em virtude de uma ideia ou
modelo,

246

em conforraidade com o qual plasma os gêrnw6 ou os desenvolve


para constituir
as coisas. Há pois uma causa externa (causa excitans) que dispõe a
matéria
para a geração e facilita a acção da aura vital.-A magia é, segundo
Helmont,
a arte de operar milagres mediante a aura vital. Todas as coisas
exercem
entre si uma simpatia natural que condiciona, a sua acção recíproca.
A
natureza inteira é mágica e age màgicamente. Não é de admirar que
o homem, que é a imagem de Deus, soja, também ele, dotado de
força mágica. Ma se se aceita a magia, Hehnont refuta a astrologia.
Os astros não exercem nenhuma influência sobre a formação, sobre
os costumes e os destinos dos homens: não determinam nem
predestinam (De vita longa, 15, 12). São antes os sinais dos
acontecinientos que se verificam no futuro, no mundo sublunar;
todavia, nenhuma predição certa se pode tirar deles, dado que não
influem sobre tais acontecimentos.
Concepções semelhantes às que acabamos de expor encontram-se
na Philosophia
mosalca do médico inglês Robert Fludd (1574-1637), que estudou
em Oxford, mas
viajou longamente em França,
1.ália e Alemanha. Como já indica o título da obra, a sua doutrina é
de
inspiração cabalística (fazia-se remontar a Cabala a Moisés). Fludd
interpreta a criação do nada como criação de uma matéria
originária, que é a
própria essência de Deus, de modo que eni Deus as coisas são ab
aeterno, não
na sua idealidade, mas na sua realidade indistinta e

indeterminada (complicada, no sentido de Cusano).


247

A potência e a sabedoria de Deus relacionam-se entre si como a luz


com as trovas. A sabedoria de Deus é Cristo, que é o princípio
operante de todas as coisas o a única causa eficiente do mundo. A
luta entre a luz e as trevas determina a simpatia e a antipatia de
todas os coisas naturais, porque ela se encontra em todas, e
também no homem, microcosmo que reproduz a natureza do
macrocosmo e está em reciprocidade de acção com ele. Tal como os
outros magos e cabalistas, Fludd admite três partes da alma
huniana, a mente, a alma e o espírito: a mente é a imagem da Palavra
divina; a alma é a imagem da mente; o espírito é a imagem da alma, e
o corpo a imagem do espírito (Phil. mos. 11, 1, 5).
§ 376. A FILOSOFIA NATURAL: TELÉSIO
A figura de Telésio marca uma viragem decisiva na filosofia do
Renascimento.
Pela primeira vez nasce, por obra dela, um naturalismo rigoroso,
igualmente
alheio às velhas concepções aristotêIJeas e às quiméricas
pretensões da
magia, uma concepção que não vê na natureza senão forças naturais
e pretende explicá-la com
os seus próprios princípios. Bernardino Telésio nasceu em Cosença
em 1509,
estudou em Pádua e em 1535 doutorou-se. Em 1565 publicava em
Nápoles os
primeiros dois livros da obra De rerum naturam juxta propila
248

principia; mas só em 1585, três anos antes de morrer, publicava a


obra
completa em 9 livros na qual também eram desenvolvidos e refeitos
os dois
primeiros livros. Faleceu, em Cosença em Outubro de
1588. Dedicara-se também a investigações parti. culares,
destinadas a
explicar fenómenos naturais, como o atestam certo número de
breves escritos,
alguns dos quais publicados após a sua morte (De terraemotibus, De
colorum
generatione, De mari, De cometis, De iride, Quod animal universum
ab unica
animae substantia gubernatur contra Galenum, De usu respirationis,
De
saporibus, De somnio, De fulmino, Quae et quomodo febres faciunt,
Solutiones Thylesii). -
Estes escritos menores são importantes porque demonstram que o
interesse
dominante de Telésio incidiu exclusivamente nos problemas
naturais. Ele
próprio é consciente de que a sua investigação deveria ser
conduzida muito
más para lá do ponto a que pôde chegar "a fim de que os homens
possam não só
saber tudo, mas também exercerem o seu poder sobre tudo" (De
rer. nat., 1,
17), e desculpa-se aduzindo não ter podido fazer mais, obrigado
como foi a
filosofar apenas nos últimos tempos da vida e em meio de muitos
impedimentos
(que, ao que sabemos, foram de natureza económica). Telésio
conseguiu contudo
estabelecer com grande evidência os princípios de um novo
naturalismo
empirista. A natureza é um

mundo em si, que se rege pelos seus princípios intrínsecos e exclui


toda a
força metafísica. Ela é completamente independente de tudo o que
o

249

homem pode -imaginar e desejar, subtrai-se a todo o arbítrio e


deve ser
reconhecida como aquilo que é. Telésio não teiri. outra pretensão
senão a de
reconhecer a nua objectividade da natureza; assegura que as
próprias coisas,
quando são rectamente observadas, manifestam a sua natureza e os
seus
caracteres (Ib., proem.). Esta autonomia da natureza é o
fundamento do seu
método, que se pode chamar o da redução naturalística, porque
tende a
encontrar por toda a parte o principio explicativo natural, excluindo
todos
os outros. É pr"amente deste método que resulta o seu omipirismo.
O homem paxa conhecer a natureza tem apenas de fazer falax, por
assim dizer, a própria natureza, fiando-se na revelação que ela lhe
faz de si na medida em que ele é parte dela. O homem pode
conhecer a natureza só na medida em que ele próprio é natureza.
Daqui deriva a preeminência que a sensibilidade possui como meio de
conl=imento: o homem como natureza é sensibilidade.
Portanto, "aquilo que a natureza revela" e "aquilo que os sentidos
testemunham" coincidem perfeitamente. A sensibilidade não é mais
do que a
autorevelação da natureza àquela parte de si que é o homem.
Perante esta
atitude fundamental de Telésio, os

resultados da sua filosofia passam para segundo plano. O hilozoismo


que
Telésio vaí buscar aos

primeiros físicos gregos é já um limite da sua posição. Ele impede-


lhe de
realizar até ao fundo aquela autonomia do mundo natural, que
apenas a ciência
de Galileu consegulirá estabelecer de
250

modo definitivo. Mas se a ciência galficica se afa~ por completo da


orientação animista que Telésio tem em comum com as doutrinas
mágicas do seu ten , parte todavia do mesmo pressuposto de
autonornk do mundo natural e, portanto, utiliza a grande afirmação
de Telésio.
§ 377. TELÉSIO: OS PRINCIPIOS GERAIS DA NATUREZA
Para determinar os princípios gerais da natureza, Teàésio parte de
uma
observação assaz simples: o sol é quente, luminoso, ténue e móvel; a
terra é
fria, obscura, densa e imóvel. O sol e a
terra são, portanto, as sedes de dois princípios agentes, o calor e o
frio: o
calor dilata, de facto, as coisas e torna-as mais leves e adaptadas
ao
movimento, o frio condensa-as, torna-as mais pesadas e, portanto,
imóvetis. O
calor e o frio são princípios incorpóroos; têm, portanto, necessidade
de uma
massa corpórea que possa sofrer a acção de iun ou do outro; esta
massa
corpórea, provida de inércia, é o terceiro principio natural. Todos
os
fenómenos do mundo são determinados pelas acções opostas do
calar e do frio
na massa corpórea. Mas a fim de que esta acção possa verificar-se
é necessário que os dois princípios agentes sejam providos de
sensibilidade. De
facto, se se combatem entre si, é necessário que pere@opoionem as
ilmpre~
próprias e as acções do outro, e precisamente que cada
251

um percepcione com prazer as impressões e as acções pelas quais é


beneficiado e mantido, e com dor as que possam prejudicá-lo ou
destruí-lo. Todas as coisas da natureza são, portanto, dotadas de
sensibilidade. Não é necessário, todavia, que todas sejam providas
dos órgãos de sentido que são próprios dos animais. Tais órgãos são
apenas vias e aberturas através das quais as acções das coisas
extern,as chegam mais fàcilmente à substância sentiente; e se são
necessárias aos animais, que são compostos de diversas partes, não
o são para os outros entes, que não estão revestidos de partes
protectoras (De rer. nat., 1, 6).
Dos dois princípios agentes, o calor é o verdadeiro princípio activo:
a
terra, na qual actua o

frio, é antes a matéria originária dos entes produzidos. Além do sol


e da
torra, não existem outros elementos originários; Telésio nega que o
sejam a
água e o ar (Ib., 1, 12). As duas naturezas agentes bastam, segundo
Telésio,
para explicar os movimentos dos corpos, a vida e a sensibilidade de
todos os
seres naturais. Seria necessária uma indagação quantitativa para
determinar a
quantidade de calor suficiente para produzir determinados efeitos.
Telésio
manifesta o desejo de que outros possam, empreendê-la para tomar
os homens
não só sapientes, mas também poderosos (Ib., 1, 17); e é
significativo que
tenha exprimido tal exigência, embora declarando que a não podia
satisfazer
ele próprio. Decerto que a sua física quantitativa e
animista tornava impossível satisfazê-la. Mas ela constituiria a base
da
ciência de Galilou.
252

Telésio entrelaça na exposição dos princípios da sua física a crítica


à
física arisítotélica. Esta cTítica investe todos os pontos da sua
exposição,
mesmo os funda-mentais. Aristóteles considerava Deus como o
motor imóvel do
céu. Telésio sustenta que a

acção de Deus não se pode limitar a explicar um facto determinado


ou um
determinado aspecto do universo. Deve ser, pelo contrário,
reconhecida como
absolutamente universal e presente em todos os aspzctos do
universo como
fundamento ou garantia daquela oTdem que assegura a conservação
de todas as coisas. Nenhuma raça humana, nenhuma esp6cie animal,
nenhum
ente natural poderia conservar-se por muito tempo sem a acção de
uma potência
superior, visto que os homens, animais e os ventos naturais se
destruiriam
màtuamente pela luta contínua a que se abandonariam sem remédio,
se não
fossem governados por um
único ente que provisse à sua salvação; por isso a
conservação deles supõe o governo de um ser
omnipotente e perfeito (Ib., IV, 25). Deus, portanto, não pode ser
invocado como causa directa e imediata de um qualquer evento
natural; é simplesmente o garante da ordem do universo. E, como
tal, a sua acção idontifica-se com a das forças autónomas da
natureza. Telésio, por um lado, mantém firmemente o princípio da
autonomia da natureza contra a doutrina aristotélica do primeiro
motor, na qual vê uma negação de tal princípio; por outro lado, como
fará Descartes, vê na acção divina a garantia da própria ordem
natural.
253

§ 378. TELÉSIO: O HOMEM COMO NATUREZA E COMO ALMA


IMORTAL

Telésio tentou a -redução naturalistica da vida intelectual e moral


do homem
e fez desta redução o fundamento e a justificaç@@o do valor de
uma e
de outra. Precisamente na medida em que o homem é parte ou
elemento da
natureza, a natureza reveIa-se ao homem e o conhecimento humano
é garantido
na sua validade. Precisamente na medida em que o homem é parte da
natureza, a
sua conduta moral reporta-se a um princípio autónomo e assim a
vida moral é
justificada no seu valor. Já se disse como todo o conhecimento se
reduz,
segundo Telésio, à sensibilidade. E, de facto, a alma humana não é
senão um
produto natural, como a de todos os outros animais; é o espírito
produzido
pelo gérmen. Veremos então que o homem também é provido,
segundo Telésio, de
uma alma imortal e infundida directamente por Deus; mas esta
alma, que é o
sujeito da vida religiosa, não tem nenhum papel na viida natural do
homem. A
parte predominante que pertence à sensibifidade é devida ao
facto de que, através dela, o homem se figa à natureza e por ela é,
ele
próprio, natureza. Na verdade, através da sensibilidade, a acção das
coisas
atinge o homem. Esta acção verifica-se por contacto; e, portanto, o
tacto tem
a prioridade sobre todos os

outros sentidos, po@s. que é o único modo por que se pode verificar
uma
modificação do mpírito, em consequência da acção das coisas
externas (De
254

rer. nat., VII, 8). Todavia, a sensação não se reduz nem à acção das
coisas
externas nem à modificação que ela produz no espírito: implica
também a
percepção (perceptio) que o espírito tem de uma e de outra. Que o
espírito seja modificado pelas coisas não é facto que determine a
sensação, se de -tal modificação não se tiver consciência. O
sensualismo de Telésio não é de modo algum um matenalismo. A
percepção é consciência, provocada decerto pela acção da coisa e
pela modificação que ela produz, mas não redutivel a tais faotores
materiais. (Ib., VII, 3).
À sensibilidade assim entendida se reduz a inteligência. Esta
integra e substitui a sensibilidade, que tem sempre um campo de
acção limitado. Uma vez que nem sempre todas as qualidades de
uma coisa são presentes à sensibilidade, e que, pelo contrário,
muitas ~es alguma delas p=anece, oculta ou desconhecida, o
perceber esta última, afirmando a sua presença, embora no
momento ela não se revele, é o acto específico da inteligência (lb.,
VII, 3).
Este acto é um acto de valoração ou de remeinoração e é por isso,
também ele,
sensibilidade, embora imperfe;ta e analógica. A inteligência não é,
segundo
Telésio, senão o substituto mais ou menos adequado da
sensiNlidade. Todos os
pnncípios da ciência não são mais do que generailizações de
percepções
sensíveis. Definindo o circulo o o triângulo, a geometria não faz
senão
atribuir-lhes, a eles e à sua espé cie, aquilo que o sentido percebe
como
próprio do círculo, do triângulo e da espécie a que p ~em. Outras

255

qualídades são, a3 invés, postuladas porque não são diversas das que
se
percepcionam nem lhes repugnam e são, pelo contrário, similares e
quase
idênticas a elas. Outros princípios, os axiomas, derivam, pois,
directamente
dos sentidos, os quais, por exemplo, nos testemunham que o todo é
maior do
que qualquer das partes e que duas coisas iguais a uma terceira são
iguais
entre si (Ib., VIII, 4). A validade das matemáticas é assim
inteiramente
fundada na experiência sensível. Telésio afirma, todavia, a
superioridade das
ciências que mais directamente se ligam à experiência. A
matemática procede
por meio de sinais e indícios, mas, por exemplo, a evaporação da
água pela
acção do calor não se faz notar por um sinal qualquer mas

pela própria natureza, isto é, pelo calor e pela água percebidos e


reconhecidos pelos sentidos (Ib., VIII, 5). Não porque as
matemáticas sejam
menos
certas; também elas extraem os seus princípios dos sentidos ou da
analogia com as coisas percebidas pelos sentidos Ub., VIII, 5).
Assim, a vida natural do homem é reconduzida por Telésio a
princípios
puramente -naturais. O bem supremo é a conservação do espírito no

mundo. Só na medida em que se podem realizar os movimentos


necessários à sua
conservação, o
homem experimenta prazer: o prazer é o sentido da conservação, a
dor o
sentido da destruição. Isto não implica que prazer e dor devam ser
assumidos
como móbiles da acção moral. Faz parte da ordem do mundo,
estabelecido e
garantido por Deus, que todo o ser tenda à sua conservação. A
conservação
256

própria é portanto o fim moral supremo para homem; e uma acção


que seja
necessária para ck deve ser também realizada, mesmo que seja m~
incómoda, e
deve ser considerada boa até que sirva a tal fim (Ib., IX, 4). A
valoração
das ac~ respeitantos ao fim da conservação é o fundamento da
virtude. A
medida que o homem impõe às paixões deriva precisamente da
exigência de evitar os excessos que possam debiEitá-lo e destruí-
lo: a virtude mesma não é portanto outra coisa do que a condição
necessária para a conservação do homem no mundo (Ib., IX, 4).
Virtude e vício não são, portanto, como queria Aristóteles, hábitos,
mas faculdades naturais que o exercício reforça apenas porque os
concentra o os torna mais puros (Ib., lX, 3 1).
Telésio realizou assim a redução naturalística de toda a vida
intelectual e
moral do homem. Viu-se como a pró pria divindade não é para
Telésio um factor
extranatural. Sê-lo-ia no caso em que interviesse na natureza
determinando um
facto qualquer que pudesse explicar,se únicamente em virtude da
sua
intervenção. Mas tal não acontece. Opondo-se a Apistóteles, exclui
até a
directa acção motora de Deus. Deus não faz só isso; Deus faz tudo.
Mas
precisamente porque faz tudo, a sua acção não é presente num
lugar mais do
que em outro e é apenas a condição suprema da acção uniforrne e

normal dos princípios naturais. Em Deus, Telésio vê apenas (como


fará
Descartes) o garante da ordem e da uniformidade da natureza. Há,
todavia, um
elemento que está na natureza mas não per-
257

tence à natureza: e é a vida religiosa da alma, a


aspiração do homem ao transcendente. O sujeito dela não pode ser
o espírito
produzido pelo gérmen, a alma que o homem tem em C(YMUM com
os outros animais e que nele se diferencia apenas por uma pureza
maior, e por
isso por uma maior eficiência operativa. O sujeito da vida religiosa é
uma
alma directamente criada e infundida por Deus. A existência dela
não é apenas
um dado religioso, mas pode ser reconhecida com razões puramente
humanas. O
homem, de facto, aspira a
conhecer não só as coisas que servem para a sua
conservação, mas também a substância e as operações dos entes
divinos e de
Deus. Aspira, além disso, a um bem que está para lá de todo o bem
presente e
crê numa vida futura mais feliz do que esta. Julga infelizes os
maus, mesmo
se dispõem em abundância dos bens do mundo e considera felizes
apenas os
homens bons. E, enfim, crê que no além será restabelecido aquele
equilíbrio
moral, que muitas vezes não se realiza no mundo, onde os melhores
talvez
sofram e os piores abundam de todos os bens Ub., V, 2). Esta alma
divina é
chamada por Telésio forma superaddita.- ela contribui
indubitàvelmente para
dar à alma humana aquela grande pureza e facilidade de movimento
que é a
sua característica em relação à alma dos animais (Ib., VII, 15). Mas
nenhuma função específica lhe atribui Telé sio na vida intelectual e
moral do homem.
No homem, ela não pode agir senão através do espírito pelo gérmen,
sem o qual
não poderia conhecer os movimentos das coisas percebidas e,
258

através deles, da própria natureza das coisas. E a

própria vida moral em nada depende dela: até um


leão não se subtrai ao perigo pela fuga mas vai voluntàriamen,te ao
encontro da morte, para não se mostrar tímido ou degenerar (Ib.,
V, 40). A forma "superaddita" dá no entanto ao homem a liberdade
que lhe é própria: a escolha entre o bem natural e o bem
sobrenatural; e, portanto, constitui a característica original do
homem perante todos os outros seres da natureza.
Aqui se vê que o reconhecimento da alma imortal como forma
"superaddita" não
é em Telésio uma concessão às crenças religiosas, mas o
reconhecimento da
originalidade da existência humana relativamente ao
resto da natureza: só ela torna, de facto o homem irredutível aos
outros
entes naturais, o subtrai ao determinismo e o dispensa da escolha
entre o
tempora@l e o eterno.

Este limite da redução naturalística não consti- tui uma ruptura no


naturalismo de Telésio. Na realidade, o seu sistema desenvolveu-se
de modo a não
requerer continuações ou integrações de ordem metafísica. As
continuações e
integrações que Telésio expressamente requereu e desejou,
lamentando-se de
não as ter fornecido ele próprio, são todas de ordem física. O
interesse de
Telésio é mais científico do que filosófico. O seu continuador
natural é
Galileu. Bruno e Campanella representam por isso um desvio do rumo
tomado por
Telésio, pois tentam o

enxerto do seu naturalismo no velho tronco da metaiísica


neoplatónica e
mágica.

259

§ 379. BRUNO: O AMOR DA VIDA

Giordano Bruno retorna de facto ao neoplatonismo e à magia.


Nasceu em 1548 em
Nola. Aos
15 anos entrou para o convento dominicano de Nápoles, onde, graças
às suas
excepcionais qualidades de memória e de engenho, foi considerado
um menino
prodígio. Mas aos 18 anos as primeiras dúvidas acerca da verdade
da religião
cristã levaram-no a chocar-se com o ambiente eclesiástico, e, alguns
anos
depois (1576), foi obrigado a refugiar-se em Genebra, depois em
Toulouse e em
Paris. Nesta cidade publicou, em 1582, a sua comédia Candelaio e o
seu
primeiro escrito filosófico De umbri sidearum, que dedicou ao rei
Henrique
111. AE obteve os primeiros êxitos, não como filósofo, mas como
mostre da
arte luliana 1 da memória, em que precisamente se inspira De
umbtis. De Paris
passou-se em
1583 para Inglaterra, onde ensinou em Oxford e travou relações
com a corte da
rainha Elisabeth. A este período pertencem os diálogos italianos e
também
alguns dos poemas latinos (o De immenso) que terminou em seguida.
Regressado
a Paris, foi obrigado a ir-se de lá depressa por causa da hostilidade
dos
ambientes aristotélicos, que àsperamente atacara. Foi então para a
Alemanha
(1586) e aí ensinou em Marburgo, Wittenberg e Francoforto do
Meno, onde
1 Relativa a Raimundo Lúlio, escritor e alquimista espanhol. (N. do
T.)
260

terminou os seus poemas latinos. Depois aceitou o convite do


patrício,
veneziano Giovanni Mocenigo, que desejava ser instruído por ele na
arte
mágica, e dirigiu,se para Veneza, julgando-se a salvo sob a
protecção da
República. Mas, denunciado por Mocenigo, foi preso a 23 de Maio de
1592 pela Inquisição de Veneza. Bruno submeiteu-se. Reconhecia a
legitimidade da religião como guia da conduta prática, sobretudo
daqueles que não podem ou não sabem elevar-se à filosofia. A
doutrina da dupla verdade, própria do averroísmo, que durante o
Renascimento, se apoiava no sentido aristocrático da verdade,
considerada património dos doutos, valeu-lhe como justificação
para si mesmo. Mas em 1593 Bruno foi transferido para a
Inquisição de Roma, onde permaneceu no cárcere sete anos. Aos
repetidos convites para se retractar, opôs sempre uma recusa,
afirmando não ter nada que retractar o a 17 de Fevereiro era
queimado vivo no Campo das Flores em Roma, sem se ter
reconciliado com o Crucifixo, do qual, nos derradeiros momentos,
desviou o olhar.
Os escritos de Bruno podem ser classificados do seguinte modo:
l.'-A cornédia Candelaio (1582);
2.'-Escritos lulianos: De compendiosa architectura et complemento
artis
Lullii (1582); De lampade combinatoria lulliana (1587); De progresso
et
lampada venatorum logicorum (1587); Artificium perorandi (1587);
Animadversiones circa lampadem

261

lullianam (1587); De specierum scrutinio (1588); Lampas triginta


statuarum (1590 ou 91).
3.-Escritos nmernotécnkos: De umbris idea- rum (1582); Ars
memoriae (1582);
Cantus circaeus (1582); Triginta sigillorum explicatio (1583);
Sigillus
sigillorum (1583); De imaginum compositione (1591).

4.'-Escritos didácticos que expõem as doutrinas de outros


pensadores:
Figuratio Aristotelici physici auditus (1586); Acrotismus
camoeracensis (1586); Dialogi duo de F. Mordentis prope divina
adinventione (1586); CLX articuli adversus huius temporis
mathematicos atque philosophos (1588).
5.'-Escritos mágicos: De magia et theses de magia; De magia
malhematica; De principás rerum, elementis et causis; Medicina
lulliana; De vinculis (comipostos todos eles entre 1589 e 1591).
6'.-Escritos de filosofia natural: La cena de le ceneri (1584); De la
causa,
principio et uno (1584); De Vinfinito, universo e mondi (1584);
Summa
terminorum methaphysicorum (1591); De minimo (1591); De monade
(1591); De iminenso et innumerabilis (1591).
7. -Escritos morais: Lo spacio delia bestia trionfante (1584);
Cabala del
Cavallo Pegaseo con l'aggiunta dell'Asino cillenico (1585), Degli
eroici
furori (1585).

8.'-Escritos de eIrcunstância: Oratio valedictoria, pronunciada em


Wittenberg em 1588; Oratio consolatoria, pronunciada em
Hehnstedt em 1589.
Já neste prospecto, que não compreende os títulos das obras que se
perderam
(entre as quais um tra-
262

tado intitulado Das sete artes liberais), se evidencia a


multiplicidade dos
interesses que agitaram a mente de Bruno. Mas é também evidente,
a quem ler estas obras, que todos os seus múltiplos interesses têm
uma nota fundamental comum: o amor da vida na sua potência
dionisíaca, na sua infinita expansão.
Este amor da vida toí rnou-lhe insuportável o convento, que ele
denominou num
soneto "prisão estreita e negra" (Opp. it., 1, 285) e fez-lhe nutrir
um ódio
inextinguível por todos os pedantes, gramáticos, académicos,
aristotélicos
que faziam da cultura um

puro exercício livresco o desviavam os olhos da natureza e da vida.


O próprio
amor da vida o levou a representar em Candelaio com realismo cru o
ambiente
napolitano onde transcorrera a sua juventude; e, assim, fustigou na
comédia
os pedantes, os crédulos e os intrujões, mas sem humorismo nem
desprendimento, antes com uma exasperada complacência pelo
espectáculo da
trivialidade e da raiséria, que apenas se explica pelo apego à
realidade
viva, qualquer que ela seja. Do amor da vida nasce, enfim, o seu
interesse
pela natureza, que não arrefeceu nele, como em Telésio, num pacato
naturalismo; pelo contrário, exaltou-se num ímpeto lírico e religioso
que
amiúde encontrou expressão na forma poética. Bruno viu e quis a
natureza bem
viva, plenamente animada, e o sustentar esta universal animação, o
projectar
a vida na infinidade do universo, constituiu o alvo mais alto do seu
filosofar. Daqui a sua predilecção pela magia que se funda
precisamente no
pressuposto do pampsiquismo universal e quer conquistar pela força
a natureza

263
como ise conquista um ser animado; daí a renúncia à paciente e
laboriosa
investigação naturalística que Telésio prospectara. Daí, ainda, a sua
predilecção pela mnemotéctúca ou arte luliana, que tem a pretensão
de tomar de assalto o saber e a ciência, de se assenhorear do saber
com artifícios ranemónicos e de fazer progredir a ciência com uma
técnica inventiva rápida o miraculosa que se adiante a passos largos
à metódica e lenta investigação científica.
O naturalismo de Bruno é, na r~ ade, uma religião da natureza:
ímipeto
lírico, raptus nrentis, contractio mentis, exaltação e furor
heróico. Por
isso se dá melhor com o simbolismo numérico dos N"itagóricos
do que
com a matemática cientifica, e melhor com as invenções miraculosas
e
charlatanescas de um Fabrício Mordente do que com as fórmulas
rigorosas de
Copérnico. A obra de Bruno marca uma paragem no desenvolvimento
do
naturalismo científico, mas exprime, na forma mais apaixonada e
potente,
aquele amor da natureza que foi, indubitávelmente, um dos aspectos
fundamentai,s do Renascimento.

Isto toma possível entender a posição de Bruno relativamente à


religião: uma
posição que é, substancialmente, a de Averróis, mas sem o respeito
que a de
Averróis implicava relativamente à religião. Como sistema de
crenças, esta
aparece de facto a Bruno como repugnante e absurda. Ele não
reconhece a sua
utilidade "para a instituição de povos rudes que devem ser
governados" (De
1'inf., in Opp. it., 1, 302), mas nega-lhe todo o valor. Ela é um
conjunto de
superstições direotamente contrárias à
264

GIORDANO BRUNO

razão e à natureza; Pois Pretende fazer crer que é vil o insensato o


que à
razão parece excelente, que a lei natural é uma ignominia, que a
natureza e a
divindade têm fins diferentes; que a justiça natuTal e a dMna são
contrárias;
que a filosofia e a magia são loucuras; que todo o acto heróico é
velhacaria
e que a ignorância é a mais bela ciência do mundo (Spaccio in Opp.
it., H,
207-208). Spaccio della bestia ttionfante, La cabala del Cavallo
Pegaseo,
L'asino cillenico são obras que se entretocem numa

feroz sátira anticristã que nem sequer poupa o


mistério da encarnação do Verbo. Nem o cristianismo reformado,
que Bruno
directamente conhecera em Genebra, em Inglaterra e na Alemanha,
se salva da
sua condenação, que lhe parece mesmo
pior do que o catolicismo, porque nega a liberdade e o valor das
obras boas e
introduz o cisma e a
discórdia entre os povos (Ib., 11, 89 e 95).
Mas além desta religiosidade, de que Bruno zomba considorando-a
como "santa
burrice" e que é directamente contrária à natureza e à razão, há
a outra religiosidade, a dos "te@@logos", isto é, os
doutos que em todos os tempos e quase em todas as nações têm
procurado uma
via para chegar a
Deus. Esta religiosidade é o próprio filosofar, tal como
Bruno o entende e pratica. Quanto ao seu conceito e ao seu
conteúdo, estão de
acordo, segundo Bruno, os filósofos orientais e cristãos. Bruno faz
sua a
ideia dominante no Renascimento, expressa na
forma mais rigorosa por Pico de Mirândola (§ 357), de uma
sabedoria
originária que, transmitida por Moisés, foi desenvolvida, acrescida e
aclarada por

265

filósofos, magos, teólogos do mundo oriental, do mundo clássico e


do mundo
cristão. Ele admite, contudo, a possibilidade de que aquela
sabedoria
originária. possa, em alguns pontos, ser revista, porquanto "nós
somos mais
velhos e temos idade mais avançada do que os nossos
predecessores" e através
do tempo o juizo amadurece, a não ser que se renuncie a viver nos
anos em que
se deve viver e se viva como mortos (Cena, in Opp. it., 1, 31-32).
Mas
considera que este desenvolvimento histórico da verdade é, na
realidade, um
renascimento e um regerminar da verdade antiga ("são, amputadas
raízes que
tornam a germinar, são coisas antigas que voltam, são verdades
ocultas que se
descobrem" (De
1'inf., em Opp. it., 1, 388); e vai inspirar-se de preferência, para lá
de
Aristóteles e de Platão, nos Pré-socráticos, aqueles em que pode
encontrar um

mais puro e imediato interesse pela natureza. E, na


realidade, a natureza, é o termo da religiosidade e
do filosofar de Bruno, o objecto do seu ímpeto lírico, do seu
"furor".
§ 380. BRUNO: A RELIGIÃO DA NATUREZA
Bruno, desde o princípio toma o mundo natural como objecto da sua
investigação e renuncia a

toda a especulação teológica. "Não, se requer do filósofo natural,


diz ele
(Della causa, 11, Opp it., 1,
175), que busque todas as causas e princípios, mas

só as físicas, e destas as principais e próprias".


266

utilizando o princípio neoplatónico da transcendência e


incognoscibilidade de
Deus, rejeita a divindade como tal para fora do campo da sua
investigação. A Deus não se pode ascender a partir dos seus
efeitos, como não se
pode conhecer Apeles pelas suas estátuas. Deus está "acima da
esfera da nossa
inteligência"; e é mais meritório chegar a ele pela revelação do que
tentar
coiihecê-lo. Por isso "consideramos princípio e causa aquilo de que
haja
indício ou seja a natureza mesma, ou reluza no âmbito ou sseio dela"
(Ib.,
177). Deus, enquanto é objecto de filosofia, não é a substância
transwndente de que fala a revelação mas é a própria natureza, no
seu principio imanente.
Neste sentido, isto é, apenas como natureza, ele é a causa e o
princípio do
mundo: causa, no sentido de determinar as :coisas que constituem o
mundo,
permanecendo distinto delas; princípio, no sentido de constituir o
próprio
ser das coisas naturais. Mas em qualquer caso não se distingue da
natureza:
"A natureza ou é Deus ou é a virtude divina que se manifesta nas
coisas
mesmas" (Summa term. met. in Opp. lat., IV, 101).

Como princípio do mundo, Deus é o intelecto


universal "que é a primeira e principal faculdade da alma do mundo,
a qual é
forma universal daquele". Ele é o artífice interno da natureza e é
causa não
só intrínseca, mas extrínseca dela, porquanto, embora opere na
matéria, não
se multiplica com o multiplicar-se das coisas produzidas. Deus não
só anima e
informa o inundo, como também o dirige e governa. Bruno pode
afirmar assim a
universal ani-
267

mação das coisas e retomar as antigas doutrinas que fazem da


natureza um
gigantesco animal. E uma

vez que a alma é forma, serve-se dos conceitos de matéria e forma


para
justificar o seu pampsiquismo. Tais conceitos são assumidos na
elaboração de
Avácebrão (§ 247): há uma única forma e uma única matéria; a única
forma é
Deus como alma do mundo, a matéria é o receptáculo das formas, o
substracto
informe, que o intelecto divino anima e Plasma. A matéria não é
aipenas
corpórea mas também incorpórea (como o dissera Avicebrão) e não
subsiste
separadamente da forma, como a
forma não subsiste separadamente dela. Mas esta conexão em
Bruno (que nisto
se opõe explicitamente a Aristóteles) torna-se unidade, ou antes
identidade. As formas particulares das coisas nascem
do seio da matéria que continuamente as suscka e destrói; de modo
que a
matéria é princípio activo, como já havia sido reconhecido por David
de
Dinant (§ 219), o qual o havia identificado como Deus. Por último,
matéria e forma resultam idênticas e constituem uma única
identidade, que é forma e matéria, alma e corpo, acto e potência.
Esta unidade é o universo. Bruno retoma esta conclusão de
Parinénides: o todo é uma substância única e imóvel, que, como tal,
já não é nem matéria nem forma, porque é tudo, é o supremo, é o
uno, é o universo (De Ia causa, III e V, in Opp. it., 1, 223, 247;Sign.
sigil., in Opp. lat., 11, 180).
Os conceitos de matéria e de forma não servem portanto senão
para justificar e fundar a identidade mesma, de que Bruno partiu,
da natureza com Deus.
268

Reconthecida tal identidade, pode ele utilizar a especulação


teológica de
Cusano transferindo para o

universo os caracteres que Cusano atribuíra a Deus. Para Cusano (§


350) o universo é decerto unidade e infinidade; mas unidade e
infinidade cotaraída, isto é, determiriando-se e individualizando-se
numa multiplicidade de coisas.
Esta diferença esbate-se e
anula-se em Bruno, que rejeitou desde o princípio Deus como
substância
transcendente para fora do campo da sua especulação e se limitou a
considerar
~, únicamente como natureza, isto é, como princípio imanente. Pode
então
recorrer à especulação de Cusano para determinar a natureza do
Uno
cronológico de Parménides; e, em primeiro lugar, tira a este uma das
suas
características que era, não obstante, fundamental, isto é, a
finitude, e
afirma, tal como Cusano, a infinidade. Nela distingue então a
coincidentia
oppositorum, que era a fórmula resõluüva de Cusano. No universo
coinci,dem o
máximo e o mínimo, o ponto indivisível e o corpo divisível, o centro e
a
circunferência; e dele se pode dizer que o centro está em toda a
parte e a
circunferência em parte alguma ou que a circunferência está em
toda a parte e o centro em nenhum lugar (De Ia causa, V, in Opp. it.,
1, 249-50). Todavia, o atributo fundamental do universo, o que
acende e exalta o ímpeto lírico de Bruno e constitui o tema
preferido da sua especulação, é a infinidade. A esta consagrou as
suas obras Cena delle cenerí, De 1'iiifitúto, utúverso e mondi e,
entre os poemas latinos, o De immenso, que Bruno considera o cume
e a conclusão da sua trilogia latina (Opp.
269

lat., 11, 196-97). A defesa de Bruno faz, na Cena, do sistema


copernicano, é,
toda ela, determinada pela possibilidade que este sistema oferece
de ent-nder
e afirmar a infinidade do mundo. Bruno é totalmente indiferente às
vantagens
científicas da hipótese copernicana e é bastante duvidoso que haja
entendido
verdadeiramente o projecto geométrico de Copérnico, do qual ele
faz na quinta
parte do diálogo uma exposição sobremaneira confusa. Os
argumentos em favor
do infinito que ele aduz em De 17nfinito não são novos: remontam a
Occam (§
320), a quem pertence aquele argumento fundamental, amplamente
desenvolvido
por Bruno: o de que à infinita potência da Causa deve corresponder
a
infinidade do efeito. À predilecção pelo infinito deve-se
* desprezo de Bruno por Aristóteles, que fôra decerto
* mais decidido e rigoroso adversário do infinito real. Paira
Aristóteles, a
infinidade significa essencialmente incompletude e, por
conseguinte, ausência de determinações precisas e de ordem: e
Bruno detém-se longa,mente a responder aos argumentos
aristotélicos. A negação de um centro do mundo tira todo o
fundamento à observação aristotélica de que no infinito não haveria
uma ordem espacial, isto é, um centro, um alto e um baixo
absolutos; como vira Occam e Cusano definitivamente estabelecera,
isso não vale como argumento contra a realidade do infinito, que é
caracterizado precisamente pela impossibilidade de determinações
espac;ais absolutas. Fm De immenso Bruno detém-so a analisar o
pressuposto de toda a doutrina aristotélica, isto é, a
impossibilidade de entender a perfeição do mundo senão como
finitude.
270

Perfeito, diz ele (De inunenso, in Opp. lat., 1, 1, 309), não é aquilo
que é
completo e fechado em proporções determinadas (certis numeris),
mas sim o que
compreendo inúmeros mundos e por isso todos os géneros e todas
as espécies,
todas as medidas, todas as ordens e todos os poderes. Em De
l'ffifinito (lb.,
298) distingui,ra uma dupla infinidade: a de Deus que é tudo em
tudo, mas não
em cada parte. Correspondentemente, distingue em De immenso um
dupla
perfeição, uma na essência, a outra em imagem A primeira é a de
Deus como
intelecto do mundo
* que pertence a primeira infinidade; a segunda é
* do imenso simulacro corl)óreo de Deus que é o mundo, ao qual
pertence a segunda infinidade (Opp. lat., 1, 1, 312). De modo que a
mais alta perfeição é a infinidade do intelecto, isto é, da alma e da
vida, a qual Bruno afirma que se estende para lá de todos os limites
definildos, em todos os
inumeráveis mundos. Aqui está, sem dúvida, o acento novo que
transforma a infinita grandeza espacial numa infinita potência de
vida e de inteligência: e aqui está o fundamento daquela religião do
infinito em que vêm a fundir-se para Bruno o amor da vida e o
interesse pela natureza.
§ 381. Bruno: A TEORIA DO MíNIMO E DA MóNADA
A esta consciência rigidamente monística, para a qual tudo se reduz
a um
Deus-Natureza, que tem em comum os atributos do ser de
Parrnénides e do
271

Deus de Cusano, apresenta-se todavia um pro~a c;rucial: como se


concilia a
unidade imutável do todo com a multiplicidade mutável das coisas?
Em De Ia
causa (Opp. it., 1, 251) Bruno distinguira o ser, que é o todo, dos
modos de
ser, que são as coisas: o

universo compreende todo o ser e todos os modos de ser, cada


coisa singular
tem todo o ser, mas não todos os mo-dos do ser. Tal distinção
propõe um
outro aspecto do problema: como são possíveis tantos modos de ser,
se o ser é uno e imutável? "Profunda magia, diz Bruno no mesmo
diálogo (Ib., 264), é saber tirar o contrário depois de ter
encontrado o ponto de união". O ponto de união é, indubitàvelmente,
o Deus-Natureza: mas que magia poderá tirar daqui a diversidade e
a oposição dos modos singulares?
À resolução do problema dedica Bruno dois poemas latinos, o De
triplice
minimo et mensura e o

De monade numero e figura. A relação reciproca entre estes dois


poemas, que
são apresentados como
a preparação do De immenso é esclarecida por Bruno no sentido de
que o
primeiro se vale do método matemático, o segundo do método (ut
licet) divino
(Opp. lat., 1, 1, 197). E, na realidade, o primeiro propõe o problema
da
conexão entre a unidade do todo e a multiplicidade das coisas, do
ponto de
vista humano: o segundo propõe o mesmo problema do ponto de
vista divino. O
primeiro pretende mostrar a via através da qual o homem mediante
a própria consideração das coisas
múltiplas pode alcançar a unidade; o segundo pretende mostrar o
processo mediante o qual da unidade &vina procede
272

a multiplicidade das coisas. Assim, os dois poemas se integram


reciiprocamente e proparam a exaltação lírica da infinidade do
todo, que é o tema do De immenso.
Há que notar, desde já, que a via matemática proposta por Bruno no
De mitúnw
não tem nada que ver com a matemática científica. O pressuposto
animístico e
mágico impede Bruno de apreciar no seu justo valor a análise
quantitativa, de
que o próprio Telésio, apesar de tudo, adverte a exigência. A
matemática de
que ele se serve é uma matemática qualitativa e fantástica, uma
matemática
mágica, que exclui a medida numérica e nega que se possa chegar a
uma precisa
determinação quantitativa dos fenómenos naturais. Trata-se antes
da busca do
núnimo, que é para Bruno a substância das coisas consideradas na
sua grandeza
qualitativa. "0 objecto e escopo da natureza e da arte, isto é, a
composição
e a resolução a que elas visam no agir e no contemplar, nascem do
mínimo,
consistem no mínimo e reduzern-se ao mínimo" (De min. 1, 22, in
Opp. Lat., 1,
111, 140). O mínimo é a matéria ou elemento de tudo: é ao mesmo
tempo a causa
eficiente, o
fim e a totalidade; é o ponto de uma ou duas dimensões, o átomo nos
corpos, a
mónada dos números. Não há uma única espécie de mínimo
qualitativamente
idêntica em todos os aspectos da natureza. Existem tantos géneros
de mínimo
quantos são tais aspectos: há uma superfície mínima, um
ângulo mínimo, um corpo mínimo, uma razão mínima, uma ciência
mínima e assim
por diante. E todos estes mínimos têm nomes diversos, podem
unirse e
273
separar-se, mas não se penetraim nem se misturam, tocam-se
apenas (Ib., 176).
Assim, o ponto é o mínimo da superfície, o átomo é o mínimo do
corpo, o sol o
mínimo do sistema planetário, a terra é o mínimo da oitava esfera
em que está
situada (Ib.,
173-174). O mínimo é, portanto, para Bruno, a cnidade última e real,
qualitativamente diferenciada, que permite entender em primeiro
lug a
constituição das coisas particulares, as quais tendem, cada uma, a
conservar
o próprio mínimo e assim conspi,ram para um mesmo fim; e em
segundo lugar,
permite o unificar-se das coisas particulares de modo a formarem
espécies e
géneros sempre cada vez mais vastos até ao último generahssimo e
comuníssimo
ser, que é o do universo (Ib., 271). O mínimo e, assim, o princípio
que
consiste em entender a unidade das coisas na sua inultiplicidade e a
multiplicidade na unidade; e responde, na forma fantástica e
aproximativa que
é própria de Bruno, ao problema crucial da sua especulação
cosmológica. Na
última parte do De minimo, dedicãda à construção e à medida das
figuras
geométricas, Bruno vale-se da matemática concreta do salerniano
Fabrício
Mordente, que ele conhecera durante a sua segunda estada em
Paris (1585-86) e
que era o inventor de um compasso e de uma regra de cálculo. Mas
nem a
invenção de Mordente nem as especulações de Bruno possuem, na
verdade, o
mínimo valor científico. O mínimo bruniano, caracterizado, como é,
pela
diferença qualitativa, não é susceptível de tratamento matemático
e não tem
significado senão como tentativa para resolver, do ponto de vista da
inves-
274

tigação humana, o problema da relação entre a unidade da natureza


ea
multiplicidade das coisas.

Se o De minimo expõe a vida humana para chegar a entender a


relação entre o todo e as partes, o De monade expõe, ao invés, o
processo divino através do qual tal relação se constituiu.
O poema é inteiramente fundado neste significado simbédico dos
números e das figuras geométricas que havia sido o tema preferido
dos NeopitagóTicos, e tinha depois passado para os filosofemas da
magia renascentista. Elo tende a fazer derivar todo o mundo
natural da década, isto é, dos primeiros dez números, que, por seu
turno, provêm das m6nadas, ou seja, da unidade.
Conformemente ao pressuposto fundamental do neoplatonismo, o
Uno ou Mónada é
concebido como o princípio de tudo. Uno é o infinito, uma é a
primeira
essência, uno é o ~íp@o o a causa prima, uno é o mínimo indivisível
do qual
fluem as espécies naturais; uno é o sol do macrocosmo e uno é o
coração do
microcosmo. O uno é representado pelo círculo. Do uno brotam as
díades como
do fluxo do ponto brota a linha. E a díade constitui a estrutura de
outros
aspeotos fundamentais do universo. A bondade, ao difundir-se. cria
o bem, a
verdade, ao explicar-se, cria o verdadeiro, do modo que se
determina a díade
da essência e do ser composto. Matéria e forma consti,tuem uma
díade; díade é
a potência que pode ser activa ou passiva, o acto que pode ser
primo@ro ou
segundo. São duas as almas do homem, a intelectiva e a sensível: e,
em geral,
a díade constitui todas as oposições que se encontram no domínio
275

rnetafísico, físico e humano. A tríade, representada pelo triângulo,


constitui os três princípios da unidade, da verdade e da bondade, de
que
procede a outra tríade da essência, da vida e do intelecto, à qual se
seguem
inúmeras tríades no mundo físico e no mundo humano. A tétrada,
que era
sagrada para os Pitagóricos, constitui o bem, o intelecto, o amor e a
beleza:
as quatro formas do conhecimento que Platão distinguia na
República: o
inteligível, o pensável, o sensível e o umbroso; os quatro elementos
da
geometria, ponto, linha, superfície e profundidade, assim como os
quatro
elementos que Bruno encontra no céu, no mundo intelectual, no
mundo
espiritual e no mundo sublunar. Anàlogamente, Bruno mostra-nos a
presença e a acção da pêntada, da hêxada, da héptada, da óctada,
da enéada e, por fim, da década, estabelecendo correspondências
simbólicas entre estes números e os aspectos fundamentais do
mundo na sua estrutura metafísica, física e humana.
Trata-se de correspondências fantásticas, nas quais os elementos
do universo
metafísico ou físico são ordenados e numerados mais ou menos
arbitràriamente
para os tornar susceptíveis de entrar no sinal mágico de um ou de
outro
número. O que importa, porém, é o intento geral do poema: reduzir
o universo
à estrutura numérica para mostrar que a sua génese depende da
mónada, que é a
origem de todos os números. Bruno quis demonstrar, com a sua
matemática
simbólica, a derivação do mundo do uno: e quis mostrar em acto esta
derivação, fazendo ver o multiplicar-se do uno e o articular-se das
figuras

276

correspondentes, nos sucessivos graus da realidade


correspondente. O carácter
arbitrário e fantástico desta derivação é evidente, mas é também
evidente que
Bruno quis com ela responder ao problema que a sua filosofia da
natureza
suscitava: conciliar a unidade do universo com a multiplicidade dos
seus
modos de ser.
§ 382. BRUNO: O INFINITO E O HOMEM
O carácter fantástico destes desenvolvimentos da especulação de
Bruno, que
deviam e pretendiam ser técnicos e responder a um preciso
problema
especulativo, confirma a natureza de toda a especulação bruniana,
que tem as
suas raíws na necessidade de expansão dionisíaca, na vontade de
abrir ao
homem perspectivas mais amplas o projectar, para lá de todos os
horizontes
fechados, a vitalidade que o filósofo sente em si mesmo. Bruno não
elaborou
uma forma de filosofar séria e crítica, apesar de se ter dado conta
de tal
exigência: filosofar significa para ele lutar contra os limites

e as angústias que dilaceram o homem por toda a


,parte e, por consequência, possuir uma visão do mundo mediante a
qual o
próprio mundo já não seja um limite para o homem, mas o domínio da
sua livre
expansão. A gnoseologia de Bruno obedece à mesma exigência.
Tomando como
ponto de partida o neoplatonismo, Bruno integra-o e modifica-o
conforniemente
a essa divinização da natu-
277

reza que é o termo último do seu pensamento. É significativo que,


enumerando
no De umbtis idearum (Opp. lat. 11, 1, 48-49) os graus da ascese
mística
segundo Plotino, lhe acrescente dois por sua conta: a transformação
de si
mesmo na realidade e a transformação da realidade em si mesmo.
O último grau do homem é, por consequência, não a identificação
com Deus,
ruas com a res, isto é, com a realidade ou a natureza. No Sigillus
sigillorum
(Ib., 11, 11, 180), põe como grau mais alto, acima da sensibilidade, da
imaginação, da razão e do intelecto, a contractio mentis, pela qual
as
actividades humanas se concentram e se unificam, tornando-se
aptas a
compreender a unidade do todo. E esta é também a tarefa da mens,
último grau. de conhecimento, na Summa terminorum
metaphysicarum, (Ib., 1, IV, 32). Tudo isto sugere que, para Bruno,
o termo final do conhecimento humano é a união mais íntima possível
com a natureza da sua substancial unidade. E este é, de facto, o
significado do mito de Acteon, exposto em De gli eroici furori.
Acteon, que chegou a contemplar Diana nua e fo@ transformado em
veado,
passando de caçador a caça, é o símbolo da alma humana que,
andando em busca
da natureza e chegando finalmente a vê-la, se torna ela mesma
natureza. E, de
facto, a natureza é a unidade a que todas as coisas se reduzem na
sua
substância. Aquele que, como Acteon, vê "a fonte de todos os
números, de
todas as espéoies, de todas as razões, que é a móriada, verdadeira
essência
do ser de todos; e se não a vê na sua essência, em absoluta luz, vê-a

278
na sua gonitura que lhe é semelhante, que é a sua

àmagem: porque da mónada, que é divindade, provém essa mónada


que é a
natureza, o universo, o mundo, onde se contempla e espelha, como o
sol na lua, mediante a qual ilumina, encontrando-se aquele no
hemisfério das
substâncias intelectuais" (De glier. fur., in Opp. it., 11, 743). O
termo
mais alto da especulação filosófica não é, portanto, o êxtase místico
de
Plotino, a junção com Deus, mas a visão mágica da natureza na sua
unidade. O
que é expresso também por Bruno no mesmo diálogo, na

alegoria dos cegos, os quaits simbolizam a incapacidade humana de


alcançar a verdade e que readquirem a vista e se consideram
recompensados quando podem, finalmente, contemplar "a imagem do
sumo bem na terra" (Ib., 515).
Ora, este identificar-se do homem com a natureza, este fazer-se
natureza, é o
termo último não só da vida teorética, mas também da vida prática.
A
natureza, isto é, Deus, age com necessidade inelutável. Uma
intrínseca
necessidade regula a

acção de Deus-Natureza, o qual só pode querer em todos os casos o


óptimo e,
por consequência, não conhece a indecisão e a escolha (De 1'inf., in
Opp.
it., 1, 293, De imm., in Opp. lat., 1, 1, 246). Mas isto não quer dizer
que
Deus não actue livremente; significa antes que nele necessidade e
liberdade
se identificam e que, na verdade, ele não agiria livremente se
porventura
agisse diversamente do modo que exige a necessidade da natureza
(De imm.,
Ib., 243). Não se pode confrontar a liberdade perfeita de Deus com
a
imperfeita do homem nem

279

iazê-la consistir na escolha indiferente entre possibifidades


diversas e
contingentes. Isto acontece ao homem devido ao estado de
ignorância e de imperfeição em que se encontra, estado que lhe
impede de conhecer o melhor ou de perseverar nesse conhecimento.
Se a liberdade humana f~ perfeita, seria como a de Deus:
coincidiria com a necessidade da natureza (De imm., Ib., 246-47).
Um aprofundamento deste conceito é efectuado por Bruno no
Spaccio.
Perguntando-se como as preces de Jove podem influir nos decretos
do fado, que
é inexorável, responde que o próprio fado quer que se lhe peça
aquilo que ele
determinou fazer. "Também quer o fado que, conquanto saiba o
próprio Jove que
ele é imutável, e que não pode ser outro do que o que deve ser e
será, não
deixe de incorrer por tais meios o seu destino." (Opp. it., 1, 3 1). A
verdadeira liberdade humana identifica-se, portanto, com a
necessidade
natural (com o "fado") e consiste aperias no reconhecimento e na
aceitação do
próprio fado. A prece é muitas vezes um sinal de futuros efeitos
favoráveis e
como que a condição de tais efeitos, dado que o fado manifesta a
sua
necessidade na própria vontade dos homens e não fora dela Ub., 40-
41). A
verdadeira liberdade humana é, portanto, como a divina, idêntica à
necessidade. A liberdade que é contingência e escolha arbitrária
não é um
prêmio mas apenas uma consequência do estado de imperfeição em
que o homem se encontra relativamente a Deus.
A tónica da especulação de Bruno recai todavia naquilo que assimila
o homem a
Deus, não no
280

que o ffistingue de Deus. Bruno apprecia e exalta na condição


humana tudo o
que leva o homem a adequar-se à natureza de Deus. Na idade de
oiro, quando o
homem viviia no ócio, já não era virtuoso como os animais e talvez
fosse mais
estúpido do que muitos deles. A pobreza, a necessidade, as
dificuldades
aguçaram-lhe engenho, fizeram-no inventar as indústrias e
descobrir as artes;
e, ainda hoje, fazem nascer das profundidades do intelecto ,humano
novas e
maravilhosas invenções. E só assim o homem é verdadeiramente e se
mantém
"Deus da natureza" (Spaccio, III, in Opp. it., II,
152). Mas o que sobretudo exalta e diviniza o homem é o heróico
furor: o
ímpeto racional pelo qual o homem, que aprendeu o bem e o belo, se
desinteressa daquilo que antes o atraía e não tende senão a Deus. O
poder
intelectivo do homem não se satisfaz com uma coisa finita e tende à
fonte
mesma da sua substância, que é o infinito da ,natureza e de Deus.
Nisto
reside a mais alta dignidâde do homem que não é absorvido e
nulificado pelo infinito natural mas pode compreendê-lo, fazê-lo seu
e reconhecê-lo como o sinal mais certo da sua natureza divina.
§ 383. CAMPANELLA: VIDA E ESCRITOS
Se o naturalismo de Bruno é uma religião dionisíaca do infinito, o
naturalismo de Campanella é o fundamento de uma teologia política
ou

281

de uma política teológica. Tomás Campanella nasceu em Stil, o, na


Calábria, a 5 de Setembro de 1568. Entrou em 1582 para a
ordem dorninic^; mas a sua actividade de escritor atraiu sobre si
perseguições e condenações. Nos fins de 1591 foi aprisionado em
Nápoles
devido às opiniões contidas em
Philosophia sensibus demonstrata, que publicara meses antes. Era
nesta época um fervoroso sequaz de Telé sio; e ele próprio contou
em seguida (Syntagma de libris Propriis, 1) ter deposto uma elegia
no ataúde de Telésio, com quem nunca pudera falar. Após alguns
meses de encarceramento, foi libertado (1592) e deveria voltar
dentro de seis dias para a sua província, mas transgrediu a ordem e
d@rigiu-se para Roma e em seguida para Florença e Pâdua, onde se
inscreveu na Universidade, e foi de novo preso em 1593 por heresia.
Transportado para Roma e torturado, foi em 1595 solto e confinado
em S.
Sabina, onde continuou a sua actividade de escritor, que nem mesmo
no cárcere
interrompera. Depois de uma nova prisão e de um novo processo
(1597),
Camipanolla voltou em
1598 para sua terra. Aí urdiu a conjura que deveria conduzir à
realização do seu ideal político-re,liigi',oso: uma república
teocrática de que ele próprio seria o legislador e o chefe. Mas em
1599 a conjura foi descoberta.
Campanella foi conduzido a Nápoles para lhe ser instaurado um
processo; para fugir à condenação capital, fingiu-so louco e

sustentou a sua ficção mesmo sob a mais dolorosa das torturas


(1601); foi
assim condenado a prisão perpétua e irremissível (1602).
Permaneceu no cár-
282

cere cerca de vinte e sete anos. O seu espírito àndómi,to temperou-


se nesta terrível prova. Do fundo da sua cela, lancava apelos e
conselhos a todos os reis e príncipes da terra, vaticinando a
iminente renovação do mundo mediante o retomo a uma única
religião e a um único estado. Por convicção ou por oportunismo,
converteu-se à tese de que só a monarquia de Espanha poderia
realizar a unificação política do género humano e consagrou à
defesa desta tese a sua actividade de escritor. Nunca mais
abandonou esta actividade, nem mesmo na "hórrida fossa" de Castel
Sant'FAmo, nem na prisão mais branda de Castel dell'Ovo ou de
Castel Nuovo. Vàu repetidas vezes sequestrarem-lhe ou
destruírem-lhe os manuscritos e outras vezes perderem-nos por os
haver confiado, na esperança de que fossem publicados, a pessoas
que o visitavam na prisão. Mas reescreveu as obras perdidas,
conseguiu manter correspondênoia com vários letrados curopeus e
publicar na Alemanha algumas das suas obras.
Em 1626, é libertado pelo governo espanhol e transfeÈido para o
Santo Ofício
de Roma. Aí o papa Urbano VIII autoriza-o a dispor de todo o
palácio do Santo
Ofício como loco carceris (1628); e Campanella começa a orientar as
suas
esperanças de renovação política, já não para a Espanha, mas para
França. De
modo que, quando em 1633, é descoberta em Nápoles uma conjura
contra o vice-rei organizada por Tomás Pignatelli, discipulo de
Campanella, e este já não
se sente seguro em Roma, o embaixador francês favorece a fuga de
Campanella,
que se refugia em
283

Fiança (1634). Acolhido b(-,ne-vola-mente pelo rei Luís XIII e


provido de uma Pensão, Camipanella pôde passar tranquilamente Os
últifinos anos da sua vida, preparando a publicação das suas obras.
já havia algum tempo que as estrelas lhe t@~ anuinciado que o
eclipse do 1.o de Junho lhe seria funesto; quando adoeceu, não lhe
valeram os ritos mágicos em cuja eficácia sempre acreditara, e a 21
de Maio desse ano morria.
O interesse dominante de Campanella é um só, e é
te0lógicO@P0lítico. Pode-se,
todavia, dividir as suas obras em duas partes: uma, filosófico-
teológica, a
outra, pc>lítica. o próprio Canpanella deixou-nos no Syntagma d,
librds
proprus et recta ratiOne studendi (uma espécie de guia para o
estudo da
filosofia ditado em 1632 ao francês Gabriel Naudé) um índice das
suas obras que indica a Ocasião e a época aproximativa da
composição. Estudos recentes vieram ordenar e comipleta!r estas
indicações, permitindo que se siga um rumo no emaranhado dos
escritos de Camipanella, que foram, quase todos, refeitos várias
vezes pelo autor.
Escritos filosóficos: Philosophia sensibus demonstrata, composta
em 1589 e
publicada em 1591. Compendium de rerum natura, composto em 1591
e publicado
em 1617. Del senso delle cose e della magia, composto em 1604 e
depois
traduzido para latim e publicado nesta língua em Francoforte em
1620. Apologia pro Galileo, composta em 1616 e publicada em 1622.
Philosophia
realis, publicada em Francoforte em 1623, e compreendendo:
escritos de
física, entre os quais é notável sobretudo o Epilogo

284

magno, composto, na sua feitura definítiva, entre


1604 e 1609; os Afotismi politici, compostos antes de 1606; a Città
del sole, composta cerca de 1602, e em seguida revista e depois
traduzida em latim e as Quaestiones fisiológicas, morais e políticas
compostas antes de 1613.
Astrologicorum libri VII, compostos em 1613 e publicados em 1629.
Atheismus triumphatus, composto em 1605 e publicado em 1631. De
medicina, composta em 1609 e publica em 1635. De gentifismo non
retinendo, composto em 1609-10 e publicado em 1636. De
praedestinatione, composto em 1628 e publicado em 1636.
Philosophia rationalis, publicado em
1638, compreendendo a Poetica, a Rethorica e a Dialectica, escritos
várias
vezes refundidos. Metaphysica, um dos escritos fundamentais,
concluído depois de uma longa elaboração em 1623 e publicado em
1638. Quod remíniscentur, composto cerca de 1615. Theologia, obra
vastíssima em 30 livros começada a compor em 1613 e que
permaneceu inédita.
Escritos políticos: Discorsi sui Pãesi Bassi, compostos em 1594-95 e
publicados em 1617. Monarchia di Spagna, composta em 1600 e
publicada em
1620 em tradução alemã. Aforismi politici, já citados. Città del sole,

citada. Monarchia del Messia, composta em 1605 e publicada em
1633 na
tradução latina. Discorsi della libertà e della felice sugestione allo
stato
ecelesiastico, compostos em
1627 e publicados em 1633. Discorsi ai principi d'Italia, compostos
em 1607.
Antiveneti, compostos em 1606.

285

Campanella é também autor de Poesias (compostas na juventude e


nos primeiros
anos da permanência no cárcere) que não são poesia filosófica no
sentido de
serem (como as de Bruno) a expressão versificada da sua filosofia,
mas poesia
autêntica, isto é, expressão de uma sua atitude fundamental. Nelas
Campanella
atinge a consciência da sua tarefa, da sua missão no mundo.
Dirigindo-se a
Deus para que o liberte da prisão, (Poesie, ed. Gentile, p. 135), faz o
seguinte voto:

Se mi sciogli, io, far seuola ti prometto Di tutte nazioni A Dio


libertador,
verace e vivo, S'a cotando pensier non é disdetto E fine a cui mi
sproni: G11
Idoli abbater, far di culto privo Ogni Dio putativo E chi di Dio si
serve, ea
Dio non serve; Por di ragione il seggio e lo stendardo Contra il vizi-o
codardo; A libertà chiamar ranime serve, Umiliar le proterve. Né a
tetti
ch'avilisce Fulmine o belva, dir canzon. novelle, Por cui Sion
languisce; Ma tempio f-arõ il ciolo, altar de stelle.
1 Se me Ubertares, prometo-te / Fazer devotaz,, todas as nações /
A Deus
libertador, veraz e vivo, / So- a tão grande pensamento não recusas
/ O
f im a que me inicitas: / Os Idolos abater, privar do culto / Todo
o Deus
suposto / E que de Deus se serve, e Deus não serve; / Pôr
pela
razão o trono e o estan-
286

A realização da unidade religiosa do género humano apresenta-se a


Campanella
como o fim fundamental da sua vida e é a promessa que ele faz a
Deus como
voto para a sua libertação. Num soneto, esclarece a natureza
política deste
fim e V~, -0 estreitamente aos princípios fundamentais da sua
filosofia
(Poes., p. 18):

lo nacqui a debellar tre maLi estremi Tiranniffie, soctismi,


lpocrisia:
On'dor m'aoeorgo con quanta armonia Possanza, senno, amor
m'insegnó Temi.
Questi principi ssou ver! e supremi Della scoverta gran filosofia,
Rimedio
contra Ia trina bugia, ~to cui piangendo, mondo, fremi. Carestie,
guarre,
plesti, invidía. inganni, In~tizia, lussuria, accidia, sdegno, Tutti a que
tre gran mali soíttostanno, Che nel eleco amor proprio, figlio degno
D'Ignoranza, radice e fomento hanno. Dunque a divelIer Vignoranza
io vegno,

darbe / Contra o vício cobarde; / A liberdade chamar almas


escravas, / Humilhar a soberba. / Nem mesmo aos lares sobre que
cal / Fera um raio, direi canções novas, / Que a Sião enIanguesce; /
Mas do céu ~ um templo, e das estrelas altar.
1 Eu nasci para debelar três grandes males: Tiranias, sofismas,
hipocrisia: /
E agora vejo com
quanto harmonia / Força, senso, amor me ensinou Temi. / Estes
princípios são
veros e supremos / Da d~berta grã filosofia, / Remédio contra a
trina
287

Força, senso e amor são como veremos, Os três primados, isto é, os


princípios
metafísicos do ser: a sua descoberta equivale para Campanella à
destruição
das tiranias, dos sofismas e da hipocrisia e, por conseguinte, de
todos os
males que destes nascem no mundo. O poder de libertação e de
elevação
política da sua filosofia é assim clarainente afirmado. A filosofia,
para
Campanella, devia ser a alavanca para a realização de uma

reforma política que eliminasse os males do mundo e o restituísse à


justiça e à paz.
E foi esse, na realidade, o interesse dominante de toda a obra de
Campanella,
a qual se desenvolve gradualmente da física à matemática, da
motafísica à
teologia, para constituir a teologia à base da unidade religiosa do
género
humano e da sua unificação política.

§ 384. CAMPANELLA: FíSICA E MAGIA


O ponto de partida de Campanella é a física de Telésio., Mas--- emb
ora
confirmando os princípios .fundamentais desta física com uma
grande massa
mentira / Sobre a qual, chorando, mundo, tremes. / Carestias,
guerras,
pestes, inveja, enganos, / Injus- ,tiça, luxúria, preguiça, desdém, /
Todos
a estes três males subjazem, / Que no cego amor próprio, filho
digno / Da ignorância, ra:,,i e alimento têm. Por isso, eu venho
arrancar a ignorância.
288

CAMPANELLA
de observações particulares e desordenadas, Campanella não tarda
em afastar-se para procurar integrações mágicas e metafísicas que
são completamente
estranhas ao espírito do seu fundador. Assim o Del senso delle cose
e della
magia retoma os (princípios da física telesiana só com o objectivo
de
demonstrar aquela universal animação das coisas que é o
fundamento da teoria
e da prática da magia. E o Epilogo magno refaz toda a trama do De
rerum
natura de Telésio transformando-se numa espécie de cosmogonia
teológica, que
já não tem como escopo pôr a claro os princípios autónomos da
natureza, mas
sim o de roportar tais princípios a proposições teológicas. A
despeito do seu
juvenil entusiasmo por Telésio e da sua constante fidelidade à letra
da
física deste último, Campanella move-se numa esfera de interesses
que já não
têm relação com os que animavam a obra de Telésio. Telésio repele
toda a
força mágica, metafísica e teológica nas suas explicações
naturalísticas: o
seu objectivo é o de entender a natureza na ordem que lhe é
própria, e em
Deus só vê o garante desta ordem. Campanella vê na natureza a
estátua e a
imagem de Deus e nas forças que a agitam o campo de acção dos
encantamentos e
dos milagres dos magos. O seu interesse científico é nulo. Ele não
quer
compreender a natureza, mas tomá-la de assalto e subjugá-la. Crê
na
astrologia à qual dedica uma obra e da qual tira a confirmação do
seu
vaticínio do iminente retorno do mundo à unidade religiosa e política
(Ath.
triumph., 14, 27; Quod, remin., 1, 2, a. 3). E se defende a otwa de C
~,

289

(na Apologia pro Galileu) defende-a apenas do ponto de vista


teológico e visa a demonstrar que a doutrina de Galileu é mais
conforme à Sagrada Escritura do que a contrária.
Dos princípios do naturalismo telesiano, deduz Campanefia
imediatamente a
universal sensibilidade das coisas. Uma vez que todos os seres,
mesmo os
animais e os homens, são formados pelas duas natui"ezas
agentes, o calor
e o frio, e pela massa
corporea, e uma vez que os animais e os homens são dotados de
sensibilidade, faz-se mister que as próprias naturezas agentes o a
massa
corpôrea sejam sentientes. O efeito deve encontrar-se na

causa de que procede: se os animais sentem, isso é sinal de que


sentem os
elementos ou princípios por que são constituídos (Del senso, 1, 1).
Campanel,la sustenta, por conseguinte, que coisa alguma é privada
de
sensibilidade: nem a matéria, nem o céu e as estrelas, nem as
plantas, nem as
pedras e os metais e nem mesmo os outros elementos constitutivos
do mundo. A
sensibilidade que todos estes entes possuem é devida a um espírito
quente e

subtil que anima a massa corpórea e é ele mesmo corpérco (lb., 11,
4). Mas
como o homem, além da alma corpó rea, possui também uma alma
infundida por
Deus e pela qual efectua as operações mais excelentes, seja
embora servindo-se, como de um eficaz instrumento, do espírito
corpóreo (lb., H, 27; Epil.,
111, 14), assim o mundo tem, na sua totalidade, uma alma que é o
instrumento
directo de Deus e que dirige todas as operações (Ib., II,
32). A alma do mundo determina o con3enso que

290

as coisas naturais têm entre si, porque as dispõe todas para um


único fim e
assim as liga todas umas às outras não obstante a dissemelhança
delas. (Ib.,
RI, 14). Por isso Campanella não só não nega a causa final como lhe
reconhece a supremacia sobre as outras e considera a causa
finalcomo o
quente, o frio a matéria, o lugar-como simples meios para chegax ao
fim
(Epil., 111, 1, av. a). Deste consenso se vale a magia para efectuar as
suas
operações miraculosas. Ela é a sabedoria * um tempo prática e
especulativa
porque "aplica * que compreende em obras úteis ao género humano"
(Del senso,
IV, 1). Campanella distingue: uma magia divina, que opera em virtude
da graça
divina, como foi a de Moisés e de outros profetas inspirados por
Deus; uma
magia natural, que é a

das estrelas, da medicina e da física, e que adquire, através da


religião, a
confiança própria de quem espera o favor desta ciência, e uma
magia
diabólica, que opera pela acção do demónio e logra fazer coisas que
parecem
miraculosas a quem não as entende. A magia dirvina não exige muita
ciênda
porque se funda no amor e na fé em Deus. A magia natural, pelo
contrário, faz
uso de todas as ciências e artes, e Campanella assegura que para ela
raras
coisas lhe são impossíveis. Mas para ele é também magia o agir
sobre os
homens e as suas paixões; daí que sejam "segundos magos os
oradores e os poetas" (Ib., IV, 12); mas o maior mago é o legislador
porque "a
maior acção mágica do homem é dar leis aos hornens" (lb., IV, 19).
291

A máxima expressão da fidelidade de CampaneMa à física de


Telésio é a
supremacia do conhecimento sensível, supremacia que Campanella
afirmou
constantemente da primeira â última das suas
obras. "A sabedoria, diz ele (Ib., 11. 30), é o conhecimento corto de
todas
as coisas, internamente, sem dúvidas". Ora, o próprio nome de sabe
doria
deriva dos sabores do gosto, que é o único dos sentidos que não se
limita a
colher as qualidades extrínsecas da coisa, mas, tríturando-a e
assimilando-a,
lhe colhe a intrínseca natureza física. Sabedoria, por excelência, é,
portanto, a sabedoria fundada nos sentidos, sem os quais não se
podem
verificar, corrigir ou refutar os conhecimentos incertos. Assim, os
antipodas, negados por Santo Agostinho e por outros Antigos,
vieram a ser
atestados como seres reais por Cristóvão Colombo, mediante a
experiência
sensível. "0 sentido é certo e não requer prova, porque ele próprio é
prova;
mas a razão é conhedimento incerto, o por isso exige prova; e
quando se aduz
a prova e a causa, vai-se buscá-las a uma sensação certa" (Ib., H,
30). Tal
como Telésio, Campanella sustenta que mesmo o intelecto é
sensibilidade. "0
compreender em universal é senso amortecido e longínquo, e a
memória é senso
adormecido, e o discurso é senso estranho e em símile" (Ib., H, 30).
O
universal, que é o objecto do intelecto, é a semelhança que as coisas
particulares têm entre si; e, assim, é o conhecimento indistinto e
confuso
que se certifica e concretiza com o aguçar-se do conhecimento
sensível. (Ib., H, 22).
292

Porêm, esta redução de todo o conhecimento à sensibilidade levanta


o problema
que determina a

passagem da física à m~,sica. A sensiWidade é, de facto, sempre


conhocimento
das c~ exteriores; como pode a alma, se todo o conhecimento é
sensibilidado,
conhecer-se a si mesma? "0 que me surpreendia, diz Campanefia
(Ib., 11, 30),
(era) que a
alma se ignorasse a si mesma e ao que fazia". E, na
realídade, a alma não pode ignorar-se a si mesma: é nisiter,
portanto, que a sensibilidade externa se funde na sensibilidade que
a alma tem em relação a si mesma, tal é o problerna que Campanelia
defronta na Metafísica.
§ 385. CAMPANELLA: O CONCEITO DE SI
Campanella divide a sua Metafísica em três partes: a primeira,
dodlicada aos
princípios do sa@ber, a segunda aos princípios do ser, a ~ira aos
priric~ do
operar. Ele inicia o seu tratado, reproduzindo o movimento de
pensamento de
Sto. Agostinho no Contra Acadêmicos (§ 160): a própria dúvida
supõe uma
verdade que está para lá de quaisquer dúvidas. "Sapiente, diz elo
(Met.,
1, 2, a. 1), é aquele a quem as coisas sabem (sapiunt) tais como são, e
saber
é perceber a coisa tal como ela é". O céptico que sabe que não sabe
nada,
reconhece pelo menos essa verdade e assim pressupõe que existem
um sabor e uma
corteza fundados em princ~ universais que estão paira além de
qual-
293

quer dúvida. Tais principios, ou noções comuns, derivam uns do


interior da
alma, de uma faculdade inata, outros do exterior, por universal
consenso de
todos os entes ou de todos os homens. O mais seguro princípio da
primeira
espécie é aquele pelo qual somos e podemos, sabemos e queremos. O
mais seguro
princípio da segunda eq3écie é aquele pelo qual somos alguma coisa
e não
tudo, podemos, sabemos, queremos alguma coisa e não tudo ou de
todas as
maneiras. Por isso, quando tratamos das coisas particulares e
simples, e
passamos do conhecimento da nossa presença a nós mesmos ao
conhecimento
objectivo, começa a incerteza: a alma distrai-se do conhecimento
de si para
considerar os objectos que nunca se lhe manifestam total e
distintamente, mas
apenas parcial e confusamente. "Nós podemos, sabemos e queremos
coisas
diversas de nós, porque podemos, sabemos e queremos o que nós
próprios somos:
de modo que posso solevar um peso de 50 sestércios porque posso
solevar-me a
mim próprio, que o carrego, assim como sinto calor porque me sinto
afogueado
e gosto da luz porque gosto de ser iluminado pela luz" (Ib.,
1, 2, a. 5). Por outros termos, o conhecimento das coisas externas
pressupõe
o conhecimento que a alma tem de si mesma. Deve haver um
conhecimento inato
de si (notitia sui ipsius innata, Ib., VI, 8, a. 1), uma consciê ncia
originária, em que reside a possibilidade do conhecimento de todas
as outras
coisas. Dado que a sensação se efectiva através da assimilação do
sujeito
cognoscente à coisa conhecida e é, como tal, uma paixão da alma,
isto é,

294

uma mõdfficação que a alma sofre do exterior, esta modificação


permaneceria
estranha à alma se

a consciência dela não fosse essencial à alma e não constituísse o


seu ser.
"Nós dizemos, diz Campanella (Ib., VI, 8, a. 4), que a alma e todos
os outros
entes se conhecem originária e essencialmente a si mesmos; ao
passo que
conhecem secundária e acidentalmente todas as outras coisas na
medida em que se conhecem a
si mesmos transformados e assimilados às coisas pelas quais, são
transformados. O espírito sentiente não sente, portanto, o calor,
mas sente-se em primeiro lugar a
si mesmo: sente o calor através de si mesmo na medida em que é
transformado pelo calor, sente o corpo na medida em que o
substracto do calor é o seu objecto".
Esta doutrina reproduz e amplifica a de T~io. Telésilo excluíra, de
facto,
que a sensação se reduzisse. à acção das coisas ou à modificação
produzida no
espírito das coisas; e tinha-a, pelo contrário, identificado com a
percepção
que o espírito tem da acção das coisas e da modificação produzida
em si por
tal acção. "Resta, portanto, dizia ele, concluindo (De rer. nat., VH,
3), que
o sentido é a percepção das acções das coisas, dos impulsos do ar,
assim
como das próprias paixões, das próprias modificações e dos
próprios
movimentos; e sobretudo destes. O sentido, de facto, percebe
estas acções só na medida em que percebe ser influenciado,
modificado e comovido por elas".
Mas esta doutrina, que havia sido mantida por Telésio ao
nível de uma pura análise naturalística do conhe-
295

cimento, é elevada por Campanella ao plano metafisico. A


autoconsciência não
é própria apenas da alma mas de todos os entes naturais enquanto
dotados de
sensibilidade. "Há uma drupla sapiência nas coisas, diz Campanedla
na
Theologia (1, 11, a.
1): uma, inata, pela qual elas sabem ser e pela qual o ser lhes agrada
eo
não ser lhes desagrada, e esta sabedoria é essencia@ de modo que
não se pode
perder sem perder o ser. A outra, adquirida (illata), pela qual elas
sentem
as coisas externas porque -são por elas modificadas e a elas
tornadas
semelhantes. Assim, cada coisa se sente a si mesma por si, e, como
sói,
dizer-se, essenei alte, enquanto que sente as outras
acidentalmente, isto é,
na medida em que se toma semelhante às coisas pelas quais é
modificada, quer
no sentido de ser colrrompida, como acontece quando é afastada do
próprio
ser e sente dor, quer no sentido de ser aperfeiçoada, como quando
é
conservada e restituída à sua integridade através da sensação de
coisas afins
e favoráveis, e experimenta prazer". A primeira espécie de
sabedona, o
conhecimento inato, é pró. prio de todas as coisas: mas nas coisas e
nos
homens é diminuída ou impedida pelos conheci. mentos adquiridos.
Em Deus, que é privado de todo o conhecimento adquirido, conserva,
pelo contrário, toda a sua potência (Theol., ib.).
A Metafísica de Campanella foi publicada em Paxis, em 1638, mas só
foi
completaida, após uma longa elaboração, em 1623. Em 1637
Descartes publicara
o seu Discurso do Método. Tem-se estabelecido com frequência o
confronto
entre a notítia sui
296

de Campanella e o cogito de Doscartes. Na reakdade, os traços


salientes da tcwia de Campanella ind"m claramente o alcance e os
limites desta. Ela serve únicamente para fundar a possibilidade do
conhecimento sensível e é privada do significado idealístico que
intérpretes modernos têm pretendido ver nela.
É estranha a Campanefia. a problematicidade da realidade que
constitui o
traço fundamental da teoria de Descartes. A realidade e a
cognoscibilidade
das coisas eternas não são um problema para Cam~,a, como o serão
para
Descartes; a

realidade é pressuposta, de tal modo que a autocons~a é atribuída


não só ao
homem mas a todas as coisas naturais, como seu elemento
constitu~. Por isso,
não é pensamento (como o é para Dese ~,), mas senso, sensus sui.
Não
caracteriza a existência específica do homem como sujeito
pensante, que se
põe o problema de uma realidade divem de si, mas exprime a
constituição de
cada ente natural como tal, o qual não pode agir sensivelmente ou
sensivelmente sofrer a acção dos outros sem se sentir a si próprio.
Para
Descartes, a autoconsciência é o homem como tal, para Campanella
*
autoconsciência é tanto o homem como Deus, como * ser mais ínfimo
da
natureza. Além disso, a autoconsc~a perdeu em Canipanella o ca~ de
interiorídade espiritual que tivera em Sto. Agostinho, para o qual
ela ora o
princípio da investigação que a alma diTigo a si mesma. Pode dizer-
se que em
Sto. Agostinho a autoconsciência é o princípio de uma metafísica
espiritualista; em Campaneija é o princípio de uma metafísica
naturalística;
em Des-
297

cartes será o princípio de um idealismo problemático. Mas só na


forma que assume em Descartes, a autoconsciência podia tornar-se
o princípio da filosofia moderna como investigação directa do
homem, em que se manifesta o carácter específico da sua
existência no mundo.
§ 386. CAMPANELLA: A Metafísica
Dissemos que a autoconsciência é para Campanella o princípio de
uma m~sica
naturalistica. Nela, de facto, se fundam as determinações
essenciais da
realidade natural. Tais determinações são reveladas precisamente
pela
autoconsciência: nós somos conscientes de poder, de saber e de
amar

e d~mos admitir que a essência de todas as coisas é constituída


precisamente
por estes três priinados: o poder (potentia), o saber (sapíenlia) e o
amor (anwr) (Met., VI, proem.). Cada coisa é, na
medida em que pode, porquanto só é na medida em que pode ser. O
poder ser é, portanto, a condição do ser e da acção de todas as
coisas (Ib., VI, 5, a.
1.). O segundo primado, o saber (saber de si ou saber do outro)
constitui
igualmente a
essência de todas as coisas. De facto, não só os animais e as
plantas, mas
também as coisas inanimadas, como se viu, sentem; e nesta
sensibilidade se
funda o consenso universal das coisas, a harmonia que rege o mundo
(Ib., VI,
7, a. 1). Quanto ao terceiro primado, é claro que ele pertence a
298

todos os entes, porque todos amam o seu ser e o

desejam conservar (Ib., VI, 10, a. 1). Em cada um


destes o primado da relação do ser consigo mesmo precede a sua
relação com o outro: podemos exercer uma força sobre o outro ser
só na medida em que a exercemos sobre nós, como podemos
conhecer e amar o outro ser na medida em que nos conhecemos e
amamos a nós mesmos (Ib., H, 5, 1 a. 13).
Mas todas as coisas que conhecemos são finitas e limitamos e, como
talis,
compostas não só de ser

mas também de não-ser (Ib., IV, 3, a. 1). Assim como existem três
primados do
ser, assim existem três primados do não-ser: a impotência, a
incipiência e o
ódio. São estes três primados que constituem a essência das coisas
finitas,
que portanto não podem tudo o que é possível, não conhecem tudo o
que é
cognoscível e não amam apenas, mas odeiam também: e
precisamente por isso são
finitas (lb., VI, proem.). Mas a finidade das coisas compostas de ser
e não-ser pressupõem a infinidade de um ser que exclua o não-ser
e seja puro
ser. Aquilo que se restringe a uma essência limitada e determinada
e exclui
todos os outros seres dos seus limites, não é o ser primo, mas
antes
depende do ser primo. Primo é o ser que exclui toda a limitação, que
é
ilimitado e infinito e não conhece nem princípio nem fim. Tal ser é
Deus Ub., VI, 2, a. 1).
A Deus não se chega apenas através das considerações
demonstrativas deste
género. Ele é também imediatamente testemunhado por aquele
conhe-
299

cimento i-nato e oculto ~a el abdita) pelo qual cada ente sabe ser e
ama o
seu ser e o seu autor. Se Deus não é de per si conhecido pelo
conhecimento
adquirido, é todavia sempre conhecido e amado em virtude do
conhecimento
inato. O conhecimento adquirido só pode chegar a Deus através do
raciocínio,
partindo das coisas sensíveis, mas o conhecimento inato
testemunha-o
imediatamente e para lá de toda a dúvida (Theo., 1, 2, a. 1).
Testemunha-o
outrossim na sua essência, dado que, assim =o revela os três
primados das
coisas, também revela os três primados de Deus. Como qualquer
outro ente,
Deus é potência, sabedoria e
amor (Met., 11, a. 4). Mas nele a potência não impláca nenhuma
impotência, a
sabedoría nenhuma incipiência e o arnor nenhum desvio do bem. Os
três
primados são nele infinitos como infinito é o

ser pelo qual é constituído (Ib., VI, ptroem.). Nem em Deus nem
n&,,, criaturas eles permanecem separados e diversos nem tãopouco
se confundem ou se unificam. Can"neUa admite em relação a eles
aquela distinção formal de que falava Duns Escoto (§ 305) que não é
distinção de razão nem distinção real, exclui a pluralidade numérica
e garante a unidade do ser (Theol., 1, 3, a.
12).
Deus cria as coisas do nada o o nada passa a
constituir as coisas não por obra efectiva de Deus, mas em virtude
da
autor@zação de Deus. Criando o homem, Deus não lhe nega
positivamente o ser
da pedra ou do burro, mas permite ou consente que ele não seja
contemporâneamente pedra -burro e assim permite de certo modo
que o não
300

ser o constítua. Na sua sabedoria Deus serve-se do próprio não-ser


como do
ser porque sujeita a limitação própria das criaturas à sua ordenada
disposição no universo (Met., VI, 3, a. 2). Através dos três
primados, Deus
cria o mundo o também o sustém e governa. Deles, de facto,
derivam três
grandes influxos, que são a necessidade, o facto e a harmonia. A
necessidade
deriva da absoluta potênc@a de Deus, e devido a ela nenhuma coisa
pode ser ou
agir diversamente do modo como o prescreive a sua natureza. O
facto deriva da
absoluta sabedoria de Deus o por isso as coisas tendem, cada tuna,
ao seu
próprio fim e todas ao fim supremo (Met., IX, 1, Theol., 1, 17, a. 1).
O
oposto da necessidade é a contingência, o oposto do facto é o
acaso, o oposto da harmonia é a fortuna; e estes opostos derivam
não já do ser, mas do não-ser que compõe as coisas finitas (Met.,
IX, 1).
§ 387. CAMPANELLA: A POLITICA RELIGIOSA
A filosofia especulativa de Campanela, seja física, seja já
metafísica, não é
fim para si mesma.

Tem como escopo apenas constituir o fundamento teorético de uma


reforma
refigbsa que deveiria reuffir (todo o género humano numa única
comunidade. Campanella é, por temperan-wnto e vocação, um
profeta religioso, para o qual a filosofia vale como instrumento de
renovação da consciência relil&isa do homem. -Não se limba apenas
a sonhar
301

o àdcal desta renovação nem o restringe ao mundo dos doutos, como


se fizera
no Renascimento, mas Pretende PrOmovê-40 pràticamente e por
toda a parte,
reencontrando e indicando o órgão eficaz da sua,realização
imediata. Quando,
na Cidade do sol, delineou o ideal! Perfeito com que a sua mente
sonhava,
empenhou-se em traçar as vias que podiam, conduzir à realização
desse ideal e
não hesitou perante os compromissos inev@táveis. Recluso no
cárcere do
governo espanhol e condenado a prisão perpétua, apontou
precisamente a
monarquia de Espanha como o braço secular que devíia levar o
governo à
unificação religiosa. E então d@rigiu-se aos príncipes de Itália para
os
convidar a favorecer aquola monarquia (Discurso aos príncipes de
Itália,
1606-07): a sua exortação apoiama-se no princípio de que "é mister
ligar-se ao partido que seja melhor, ou que pelo menos o fado nos
apresenta" (ed.
Ancona, p. 46). Saído da prisão e definitivamente desiludido dias
esperanças que pusera em Espanha, dirigiu-se à França e esperou
então da monarquia francesa aquela realização da unidade religiosa
dos homens que era o primeiro dos seus pensamentos. Campanella
cons@derava possível que a sua reforma religiosa se tornasse
realidade e até estava seguro do próximo advento dela. Aceitava
de antemão os compromissos que aquela reallização teria custado no
tocante ao Weal descrito na Cidade do Sol, preciisamente porque se
considerava mais legislador e 1 feta do que filósofo.
Mas se, no;terreno político,isto é, no que res~ à escolha do braço
secular
que devia traduzir em rea-
302

lidade a reforma réligiosa, se dispôs a transigir, não parece que


tenha sido
fruto de transigência a aceitação e a defesa do catolicismo, a que
permaneceu
fiel desde o princípio até ao fim da sua actividade. Com efeito, viu
sempre
no catolicismo, que sempre defendeu, a religião autêntica, a religião
natural, a

única religiosidade conforme à razão e por @sso comum a todos os


povos e
universal. E, na realidade, neste ponto, a transigência não teria sido
possível, se o intento de Campanella fosse o de conduzir os homens
à religião
aiutênifica e assim os reunir numa uni,~ comunidade. Aceitaruma
forma de
religião imperfoita, ou mesmo parcialmente falaz, teria sido uma
traição
fatal à sua missão de profeta. Esta missão impunha-lhe, todavia,
defender e
preconizar uma reforma do catolicismo: uma reforma pela qual o
catolicismo
deveria ser reconduzido à sua natureza, assumindo-se a si mesmo
como norma da
sua própria renovação. E assim. Campanella se vale do c,onceito axial
do
Renascimento, o retorno aos princípios, para profetizar por um lado
o retorno
de todos os povos da terra, quaisquer que sejam as
suas crenças, ao catolic@smo e, por outro, o retorno
do próprio catolicismo à ;sua verdadeira natureza.
O fundamento deste duplo retorno é a religião natural. A prim&ra
formulação do conceito de religião natural está na Cidade
do Sol. Está aqui delineada a estrutura de um estado idealmente
perfeito,
governado por um príncipe sacerdote, chamado Sol ou Metafisico,
assistido
portrês príncipes colaterais, Pon, Sin e Mor, isto é Potessado,
Sapiência e
Amor,

303

que são os três primados da metafísica campanelliana. As


características
deste estado, no qual tudo é mmmosamente ordenado e predisposto
por homens de
ciência, são a comunhão dosbens e das mulheres (segundo o modelo
de Platão) e
a relligião na~. Os habitantes do estado ~ vivem exclusivamente
segundo a
razão, isto é , segundo os dita@nos da m&afísiica de Camp~: a sua
refi, gião
identifica-se com esita metafísica e dlistingue-se do crisfiariwno
peda
ausência& da @revelação, e, por conseguinte, da íntegração
sobrenaturaf1 que
o ensino da razão requer e ex@ge. "Aqui, adm-iras-te de que
adorem Deus em
Trindade, dizendo que é suma Potência, da qual procede a Suma
Sapiência, e de
ambas, o Sumo Amor. Mas não conhecem as pessoas distintas * não
as nomeiam
como nós, porque não conheceram * revelaÇão, mas sabem que em
Deus há
proowsão * relação de si para: si;_ e assim todas as coisas se
cccnpõem de
potênc@a, sapiênc@a e arax, eNuanto têm ser; de impotência,
incipiência e
desamor, enquanto dependem do não-wm (edição Bobbio, p. 106).
Que a pura
pesquisa filosófica conduzia ao

reconhecimento da Trindade, era pensan~o bastante anfigo, que se


encontra,
por exemplo, em
Abelardo (§ 209). Em CampancHa, este pensam~ leva a concluir que
o
crisfianismo "nada acrescenta à lei naturà além dos sacramentos" e
que por
isso "a verdadeira lei é a cristã e que, eliminados todos os abusos,
será
senhora do mundo" (Ib., p. 108). A esta conclusão se manteve fiel ao
longo de toda a série das obras posteriores. Defendendo nas
Questioni sull'ottima republica (ed. D'Ancona, p. 289)
304

os conceitos da Cidade do Sol, afirma que pretendeu nesta obra


apresentar uma
repáblica, não fundada por Deus trnas pda filosofia e pela razão
humana, para
demonstrar que a verdade do Evan- ~ é conforme à Natureza. A
~ião natural é
po~o fundada sobre a razão e descoberta pela ~fia. Mas é uma
refigião paria
os doutos, que não seria capaz de promoveir a unidade espíritual do
género
humano. É ~bém imperfeita, porque carece de @ntegração
sobrenatural e, por
conseguinte, do testemunhodas profecias, dos milagres, das graças
que dão
força difus@va e ~r @naba1áveI à religião revelada. A religião
natural
poderia bastar no CampaneU a filósofo, mas nunca poderia
satisLzer o Carn~
pr~a. E este, na rea& ,, não v@u na religião natural senão a norma
que
permite pÔr à prova o valor das re@ligiões históricas, escolher
entre elas a
verdadeira, justificá-la na sua verdade e reconduzi4a ao seu
verdadeiro
princípio, eliminando os abusos. Porisso Campanella afirma que a
re¥,ão
natural, que é a indita ou inata, é sempre verdadeira, enquanto que a
adquirfida ou adicionadia (addita) é imperfeita o pode por vezes ser
falsa
(Met., XVI, 3, a.1); mas considera ser impossível que a religião inata
possa
existir sem a adquirida ou adicionada. A religião inata é própria de
todos os

seres que, tendo a sua origem em Deus, tendem a retornar a ele, a


religião
adquirida é própria só dos homens e é por isso a única que implica
mérito c
valor moral (Met., XVI, 2. a. 1; Theol., VHI, Ia. 2). Como uma norma
não vale
senão em referência àquilo de que é norma, assim a reEgião indita
só vale em
305

relação com a religião addita, de que constitui o fundamento.


Camipanella
devia por isso mostrar que a

religião indita era o fundamento e a norma de todas as ,religiões


pos@Úvas
para promover o retomo do género humano, dividádo em seitas
relágiosas
diversas, à única religião verdadeira; mas ao mesmo tempo devia
reconhecer
esta religião verdadeixa como sendo uma
das próprias religiões positivas e, precisamente, aquela que melhor
se
adequasse à religião natural. Tal foi de facto, a tarefa de que se
incumbiu
no Atheismus triumphatus o no Quod reminiscentur.

Na primeira obra, quetraz o subtítulo Recognitio religionis


universalis,
pretende de facto demonstrar que a roligião universal é a racional
"infundlida em nós por Deus, comprovada pelos filósofos e pelas
nações,
reveladas pelos profetas e em seguida tornada pública
sobrenaturalmente por
Deus e ilustrada ,pelas graças, pelos verdadeiros milagres, pela
profecia e
pela santidade" (Pref.). Esta religião uni,versal funda-se na razão, à
qual
julgam conformar-se todos os povos da terra e à qual se conformam
também todos os seres inferiores da natureza, seja sob uma forma
expressiva seja de uma maneira implícita (Ath., 3, p. 23). Porque,
entre todas as religiões positivas, cumpre escolher a que não só não
repugna à natureza, comotambém lhe agrada e a aperfeiçoa (Ib., 10,
P. 105); e tal só a religião cristá.
"Toda a lei (listo é, toda a religião) é razão ou regra de razão;
portanto,
toda a lei é participe ou esplendor da primeira Razão, da Sapiência
de Deus,
que é o Salvador, uma vez que a Razão é a própria Sabedoria que
governa e
salva todos os entes segundo o
306

modo próprio de cada qluad" (Ib., 10, p. 107). Aquii, Campianella


retoma o
antigo conceiso, da patrístícia que identifica Cristo com a razão
unwersal, e
daí extrai o argumento para identificar a religião natural com o
cristianismo. As leis poisitivas são especificações, explicações e
aplicações
da mesma prima lei natural, A variedade destas não é irracional e
não afliena de Deus os povos (Ib., p. 109). Basta, portanto, queos
povos tomem consciência do único verdadeiro fundamento da sua
religião, qualquer que ela seja, para, que se convertam ao
cristianismo e ponham ~o à diiverWade das rekgiõ-os e dois estados
(lb., p. 1051).
É o Quod reminiscentur um, apelo a todos os povos da terra para
que se
decidam a tal retorno.
O título é tomado do Salmo 22: quod reminiscentur et convertentur
ad Dominum
universi fines terrae e

inspira-se no princípio fundamental de que todas as


coisas retornam ao seu principio. Campanella declara iminente o
retorno de
todos os povos da terra ao seu
princípio, isto é, à reIiigião autêntica, ao crisuiani-smo genuíno do
catolicismo. Por isso se dirige aos cristãos e aos não cristãos,
nofificando-lhes os signos astrológicos e as profeciais que indicam o
iminente retorno,
para os convidar a agix em confoTmidade. E em primeiro lugar
dirige-se ao
sumo Pontífice e a todos os -cristãos. "Eu peço-vos pelo reino dos
santos,
pela redenção de Cristo, pela esperança da glória futura, a fim de
que nos
recordemos da nossa origem; e assim faremos com que sodas as
nações se
convertam a Deus" (Quod rm., 1, 4. a. 1).

307

E úukca os Temédios prático-políticos, que devem provocar ou


favorecer este
retomo e eliminar, pela reforma dos costumes e práticas do
catolicismo, todas
as possibilidades de abuso e reconduzu-lo à sua verdadeira
natureza. É assim
partidário de uma

reforma moral do catolicismo, que, deixando inãterados os dogmas


ea
estrutura hierárquica da Igreja, a restitui à ordem e à s~,*cidade
do período
patríshico e, por consequência, à sua capacidade de proselitísmo e
de difusão
unáversal. Assim Campanella se inscr@a nos planos grandiosos da
@greja da
Chntra-Refornia e acabava -por justificar e defender arenovada
força de
expansão da própria Igreja. Mas com tudo isto enganar-nos-íamos
se
supuséssemos a posição de Carapanella caracteriza @, por um
conformisno ortodoxo. O plano profético de Campanella vk@a de^ a
coincidir com
o plano e as exigências da ágreja da Contra-Reforma mas o móbü e
a
justificação deste plano não eram nem podiam ser os da Igreja.
Campanella
aceàta o catolicismo porque, o,identifica com a religião natural:
aceita a
revek-4o porque, sem as pr~as, e os milagres da religião, eJe não
possui
força persuasiva nem capacidade de difusão universaL O último
fundamento da
posição de Campanella é filosófico e naturalistico, não religioso. Ele
é
profeta de uma rel@gião quetem as suas

raizes na natureza e na razão crítica; no entanto, se aceita o


catolicismo,
visa, para além dele, a um

fundamento natural, e racional, não tradi<áona,1 nem revelado, que


só a tr~ e a Tevedação podem justifikar a seus ~s.
308

NOTA BIBLIOGRMCA

§ 375. Obras de Reuchlin: Capnion sive de verbo mirifico, Basileéa,


1494;
CoMniJa, 1532; Lião, 1552; De arte cabalistica, Spiro, 1494;
Tubinga, 1514;
Hagenau, 1517. GEIGER J. R., Sein Leben, und 8cine Werke, Leipzig,
1871.
Obras de Agripa: De oculta phiZosophia, Colónia,
1510, 1531-33; De incertitudine et vanitate s~tiarum. Colónia, 1527,
1534;
Paris, 1529; obras completas, Lião,
1550, 1600.

Obras de Paraoelso: Opecra, Basileira, 1589-91; Estraburgo, 1616-


18; ~.,
1658; Leipzig, 1903.STRUNTz, T. P., Leipzig, 1903; STILLMANN,
T. P.,,
1922; 1. BETsKART, T. P., Zurdque, 1947, K. GOLDAMMER, P.,
Tubdnga, 1952.

Obras de Fraciasboro: De sympathia et antipathia rerum, Lião,


1545; Opera omnia, Veneza, 1555, 1574; Lião, 1591. LASSWITZ;
Gesch. der Atomistik, I, Mamburgo, 1890, p. 306 segs.; CASsiRER,
Gesch. des Erkenntnisproblems, 1, Berlim, 1906, p. 208 segs.;
PAULO Rossi, in "Riv. critica di storia della fil.", 1954.
Obras de Cardano: ed. -completa, Lião, 1663, 10 vol. A autobiografia
De vita propria foi traduzida paira italiano por Mantovani e foi dada
à estampa várias vezes.
Obra,9 de Della Porta: Magia naturalis, Nápoles,
1558; 2.1 -ed., 1589; De humana physiognomia, Vico Equense, 1586;
De
refractione, Nápoles, 1593.-FioRENTINo, Giovani Battista della
Porta, in
Studi e

ritratti della rinwcenza, Bari, 1911, p. 235 segs.


Obras de Helmont: ed. completa de Lião, 1667. Obras de Fludd:
Philosophia mosaica, Gudae, 1638; ed. completa, 1638.
§ 376. Sobre a vida da Telésio: BARTELLI, Note biografiche,
Cosença, 1906.
Ed., De rerum natura: Nápoles, 1586, 1587; Génebra, 1588; Colónia,
1646;
309

nova ed. ao cuidado de Spampanato, vol. 1, Modena,


1910, vol. II, GénGva, 1913; vol. 111, ~a, 1923.

§ 377. FioRENTINO, B. T., ossia studi storioi su Pi~ della natura


nel
rinascimento italiano; 2 vol,, Florença, 1872-74; GENTILE; B. T., in
Il
~stero italiano nel rinascimento, Florença, 1940, p. 175 segs.;
ABBAGNANO, Telésio, Milão, 1941, com bibliografia.
§ 379. Obras de Bruno: Opere italiane; ed. Wagner, 2 vol., Leipzig,
1829;
edição de Lagarde, Gottingen, vol. 1, 1888; vol. 11, 1889; ied. Gentil-
e,
vol. I, Dia@oghi metafisici, Bari, 1907; 2.a ed., 1925; vol. II,
Dialoghi
morali, Bari, 1908; 2.1 ed., 1927; vol. IIII, Candelaio, Bari, 1907-09;
2."
ed., 1923, Opere látine: ed. n;acional, parte@s 1 e II ao cuidado de
Fiorentino, 1880-86; partes
111 e IV ao cuidado -de Tocco e Vitelli, Florença,
1889-91. No texto é citada a 2., ed. GentIle das obras italianas e a
ed.
nacional das obras latinas.

Sobre a vida de Bruno: SPAMPANATO, V#a di G. B., 2 vol, Messina,


1921. Um Bruno profeta religioso é apresentado por CORSANO, 11
pensiero di ~dano Bruno nel suo svolgimento storico, Florença,
1940.
O ensaio de OLSCHKi, Giordano Bruno, Bar!, 1927 é uma áspera
crítica ao pensamento de Bruno reportado, nas suas características
fun~entais, às deficiências psiquicas e por isso reduzido a notações
puramente psicológicas. A exposição de Guzzo, 1 dialóghi del Bruno,
Turim, 1932, é uma subentendida polémica, com ~hki; L. FIRPO, II
proceso di G. B., Nãpoles, 1949; D. WALEY SINGER, G. B., His Life
and Thought, Nova lorque, 1950.
Sobre o conceito da verdade como filia te~oris (desenvolvido no
entantode modo unilateral): GENTILE, G. B. e il pensiero del
rinascimento, Florença, 1920.
§ 380. Que a exposição bruniana das doutrinas de Copérnico é
confusa e incompreensível por defeito de informação científica
notou-o Schiapparelii.
310

§ 381. Sobre a obras latinas: TOCeo; Le opere latine di G. B.


esposte e
confrontate con le italiane, Florença, 1889; LASSWITZ; Gesch. der
Atomistik, p. 395; CASSIRER, Gesch. des Erkenntnisproblems, I, p.
368 segs.
§ 382. Sobre as doutrinas gnoseológicas e morais: D1LTREY; Analisi
dell'uomo, trad. itali., p. 66 segs.; CASSIRER; Individuo e cosmo,
passim.
§ 383. Sobre a vida de Campanella: AMABILE, Fra T. C., Ia sua
congiura, e
suoi processi e Ia sua pazzia,
3 vols. Nipoles, 1882; Id... Fra T:,C. nel Castelli di Napolí, in Roma
ed in
Parigi, 2 vdl., Nápoles, 1887. Sobre os escritos: FiRpo, Bibliografia
degli
seritti di T. C., Turim, 1940; ID., Ricerche campanelliane, Florença,
1947.

Edições: Philosophia sensibus demonstrata, Nápoles, 1591;


Compendium da rerum
natura, Francoforte,
1617; Del senso delle cose e della magia, Franeoforte,
1620; Paris, 1636; Paris, 1637 (todas ra trad. lat.); @ed. do texto
italiano
ao cuidado de Bruers, Bari, 1925; Philosophia realis, Francoforte,
1623;
Paris, 1637; Epilogo magno (texto ital.), ao cuidado de Ottaviano,
Roma,
1939; Città del sole (texto itaL e lat.), ao cuidado de Bobbio, Turini,
1941;
Astrologicorum libri VII, Lião, 1629-30; Francoforte, 1630,
Atheismus
triumphatus, Roma, 1631; Paris, 1636; De gentilismo non

retinendo, De praedestinatione, em vol. com o escrito precedente;


Philosophia rationalis, Paris, 1638; Poetica (texto itali. e lat.), ao
cuidado de Firpo, Roma, 1944; Metaphysica, Paris, 1638;Quod
reminiscentur (as primeiras duais das quatro partes), ao cuidado de
Amerio, Pádua, 1939; TheoZogia, ao cuidado de Amerlo, livro 1,
Milão, 1936, livros XXVII-XXVIH, Roma, 1955: Discorso sui paesi
bassi, Lião, 1617, 1626 (texto lat.); texto it&. ao cuidado de Firpo,
Turim, 1945; Monarchia di Spagna, Amsterdão, 1640, 1641, 153,
texto ital.
In Opere di T. C., ao cuidado de D'Ancona, Turim, 1854, vol. II, p.
77
s@egs.; Aforismi politici, ao cuidado de

311

Firpo, Turim, 1941; Monarchia del messia, Iesia, 1633 ,(t~ lat.);
Discorso
della libertà e della felice suggest"e dello stato ecelesiastico, Iesi,
1633;
Discorsi aí principi d'Italia, ed. Firpo, Turim, 1945; Antivenefi, ao
cuidado
de Firpo, Florença, 1945; Apoloffla pro Galileo, Franeoforte, 1622;
Poesie, ed. Gentile, ed. Vindguerra, Bari, 1938; Lettere, ao cuidado
de Spampanato, Bari, 1927; Syntagma di libris propriis, ed.
Spampanato, Florença, 1937.
§ 384. Sobre as doutrinas filosóficas: FELICI; Le dotrine
filosofico-religioso di T. Campanella, Lanciano, 1895; CORSANO, T.
Campanella, Milão, 1944; 2., ed. Bari, 1961.
§ 385. A interpretação idealística do princípio da autoconsciência
foi
apresentada por GENTILE, Studi sul rinascimento, Florença, 1936,
p. 189
segs.; ID:, Il pensiero italiano del r@nwcimento, Florença, 1940, p.
357
segs.; e é validada como único critério hist6rico-critico por
DENTICE di
ACCADIA, T. C., Florença, 1921.

§ 386. Sobre a metafísica especialmente: BLANCHET, Campanella.


Paris, 1920, parte IV.
§ 387. AmABiLE, na citada biografia de Campanella, sustenta a tese
de que o
filósofo Intimamente convicto da verdade da religião natural,
privada de toda
a estrutura revelada, simulou aderi-r ao catolicismo nunia atitude
oportunista. Esta tese apresenta-se atenuada nas monografias
citadas de
BLANCHET e de DENTICE, segundo os quais a adesão de
Campanella ao catolícismo
seria fruto de uma transigência considerada necessária pelo
filósofo, para
conseguir a realização prática de sua reforma filosófica, embora no
seu
Intimo permaneicesse fiel ao racionalismo. T~ aaiãloga é sustentada
por
TREVES, La filosolia politica di T. C., Bari, 1930, ao passo que
BOBBio, no
prefácio à sua ed. da Città del sole (p. 42), retonia, na sua crueza a
tese
de AmABiLE. A. CORSANO, T. Campanella, Milão, 1944,

312

inclína-se ainda@ embora com mais equilíbrio, para a tese de


AmABILE. Em
contrapartida. R. AMERIO, em numerosos artigos, entre os quais
são
particularmente notáveis Di alcune aporie dell'interpretazione
deisUca
campanelliana al lume degli inediti, in "Riv. di fil. neoaool.", 1934, p.
605
segs., sus@tentou a perfeita ortodoxia de Campanella, negando
quer a tese da simulação, quer a da transigência oportunística. r@,
difícil impugnar as conclusões de AMERIO, fundadas em textos
inéditos de Theologia, pelo que respeita à adesão convicta de
Campanella ao ca!tolicismo, que ele reconhecia indubitàvelmente
como a religião natural. A não-ortodoxia de Campanella consiste
apenas (como resulta no t-e>.@to) do móbil daquela adwão que não é
a fé na revelação mas o naturalismo metafisico. Este móbjl exclui
todavia qualquer simulação ou transigência oportunística e implica a
íntima unidade da posição filGsófi@ca de CampaneUa.
313

ND1CE
QUARTA PARTE
A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
I-RENASCIMENTO E HUM-ANISMO ... 9

§ 332. O problenia histórico ... ... ... 9 § 333. O


Humanismo ... ... ... ... ... 12 § 334. O Renascimento
... ... 21 §335. @@oi@gens d& --
* 25, §336. Dante . .. ... ... ... ... ... ... 31 §337.
Petrarca ... ... ... ... ... ... 34 §338- Humanistas
italianos: Salutati,

Bruni, Raimondi, nlelfo ... ... 38 §.339. Lourenço Valla


... ... ... ... 43 §340. Humanistas, italianos: Fazio, Ma-

n,etti, Alberti, Palmieri, Sacchi, Nizolio .. . ... ... ... ... ...
47
§341. Bovilo ... ... ... ... ... ... ... 50 §342. Humanistas
franceses, espanhóis e

aJemães ... ... ... ... ... ... 54 §343. Montaigne ...
... ... ... ... ... 57 §344. Charron, Sanchez, Lipsio ...
... 66

Nota bibliográfica ... ... ... ... 71

315

II - RENASCIMEMTO E POLITICA ... 77

§ 345. Maquiavel ... ... ... ... ... 77 § 346.


Guicoiardini, Botero ... ... ... 86 § 347. T. Moro, G. Bodin .
.. --- ... ... 92 § 348. O Jusnaturalismo ... ... ...
... 99
Nota bibliográfica ... ... ... ... ios

UI - RENASCIMENTO E PLATONISMO ... 111

§ 349. Nícolau de Cusa a douta ignorância ... ... ... ... ... ... ...
111 § 350. Nicolau de Cusa: o
mundo da conjectura ... ... ... ... ... ... 116 § 351. Nicolau de
Cusa:
a doutxIna do
homem ... ... ... ... ... ... 121 § 352. Nicollau de Cusa:
a nova cosmologia ... ... ... ... ... ... ... 124 § 353. O
Platonismo
italiano ... ... ... 127 § 354. Ficino: a alma, cópula do
mundo 131 § 355. Ficino: a doutrina doamor ... ... 136

316

§ 356. Leão Hebreu ... ... ... ... ... 139 § 357. Pico de
Mirândola: a paz regeneradora ... ... ... ... ... ... 140 § 358.
Pico de Mirãndola:
Cabala, Magia

e Astrologia ... ... ... ... ... 145 § 359. Francisco Patrizzi
... ... ... ... 149

Nota bibliográfica ... ... ... ... 151

IV-RENASCIMENTO E ARISTOTELISMO 155

§ 360. O primeiro aristotelismo ... ... 155 §361.


Averroistas
e Alexandristas ... 158 §362. Pomponazzi: a ordem
natural
do
mundo ... ... ... ... ... ... 164 §363. Pomponazzi: a
naturalidade da

aãma ... ... ... ... ... ... ... 169 §.364. Pomponazzi:
liberdade e necessídade ... ... ... ... ... ... ... 172 §365.
Outros aristotélicos ... ... ... ... 175

Nota bibliográf . ... ... ... ... 181

317

V - RENASCIMENTO E REFORMA ... ... 185

§ 366. O retorno às origens cristãs ... 185 § 367. Erasmo


... ... ... ... ... ... 187 § 368. Lutero ... ... ... ...
... ... 196 § 369. Zwingli ... ... ... ... ... ... 204 §
370. Calvino ... ... ... ... ... ... 207 § 371. Teólogos e
místicos da reforma ... 211 § 372. O racionãl@ismo religioso
... ... 220 § 373. A contra-reforma ... ... ... ... 223

Nota bibliográfica ... ... ... ... 230

VI-RENASCIMENTO E NATURALISMO ... 235

§ 374. Magia, Fil~fia, natura11; Ciéncia, 235 § 375. A


Magia
... ... ... ... ... ... 238 § 376. A Filosofia natural;
TeIésio ... 248 § 377. Telésio: os princípios gerais da

natureza ... ... ... ... ... ... 251


318

§378. Teléoio: o homem como natureza e como alma imortal


... ...
... 254 §379. Bruno: o amor da vida ... ... 260 §380.
Bruno: a relígião da natureza ... 266 §381. A teoria do
mínimo e
da mónada 271 §382. Bruno: o infinito e o homem
... 277 §383. Campan&,Ia: Vida e Escritos ... 281 §384.
Campanella: Física e Magia ... 288 §385. Campanella: o
conhecimento de si 293 §386. C~anella: a metafísica
... ... 298 §387. Campanella: a política religiosa 301

Nota bibliográfica ... ... ... ... 309

319

Conlposto e impTe'3s0 para a EDITORIAL PRESENÇA

na Tipografia Nunes
Porto

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