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UM

ESTRANHO
NO
ESPELHO:
REPRESENTAÇÕES
DO CABOCLO
AMAZÔNICO

Maria das Graças Ferreira de Medeiros


2

MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

UM ESTRANHO NO ESPELHO
REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO AMAZÔNICO

Manaus
2004
3

MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

UM ESTRANHO NO ESPELHO:
REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO AMAZÔNICO

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação “Sociedade e
Cultura na Amazônia”, da Universidade
Federal do Amazonas, como requisito para
obtenção do título de Mestre em
“Sociedade e Cultura na Amazônia”, área
de concentração Processos Socioculturais
na Amazônia.

Orientador: Professor Doutor Marcos Frederico Krüger Aleixo

Manaus
2004
4

Ficha Catalográfica:

Medeiros, Maria das Graças Ferreira de


Um estranho no espelho: representações do caboclo
amazônico / Maria das Graças Ferreira de Medeiros. -
Manaus, AM : UFAM, 2004.
187 p. : il.
Dissertação apresentada como requisito para obtenção
do título de mestra em “Sociedade e Cultura na
Amazônia” pela Universidade Federal do Amazonas.
Orientador: Professor Doutor Marcos Frederico Krüger
Aleixo.

1. Atitudes étnicas 2. Identificação 3. Influência social


4. Mudança social 5. Estereótipo (Psicologia) I.Título

Bibliotecária responsável: Maria Siméia Ale Girão


5

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora: Maria das Graças Ferreira de Medeiros


Título: Um estranho no espelho: representações do caboclo amazônico
Área: Processos Socioculturais na Amazônia
Data: 23 de agosto de 2004

Dissertação de Mestrado apresentada em defesa pública como requisito


para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
“Sociedade e Cultura na Amazônia”, do Instituto de Ciências Humanas e Letras
da Universidade Federal do Amazonas.

........................................................................................

MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

........................................................................................
Professor Doutor Marcos Frederico Krüger Aleixo
Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa / UFAM
Presidente

........................................................................................
Professor Doutor Narciso Júlio Freire Lobo
Doutor em Ciências da Comunicação / UFAM
Membro

........................................................................................
Professor Doutor Amarildo Menezes Gonzaga
Doutor em Educação / CEFET/AM
Membro
6

Aos que
acreditam
no valor
dos primeiros
passos.

A mim mesma,
por não perder
a Fé.

Dedico.
7

“Um galo sozinho não tece uma manhã”


João Cabral de Melo Neto

A todos os que,
de alguma maneira,
contribuíram para esta tessitura,
com pequenos gestos de
solidariedade, atenção generosa,
orientação, incentivo e apoio.

A Deus, porque sem fé


não teria sido possível
mover montanhas.

Ao Marcos Frederico, meu orientador,


pela paciência.

Aos professores Narciso Lobo,


Raquel Castro, Iraildes Torres, Heloísa Lara
Raimundo Nonato Silva, pela gentileza.

Às bibliotecárias do NAEA – Núcleo de


Altos Estudos Amazônicos da UFPa,
em especial a Cacilda, e à Socorro,
da biblioteca do ICHL da UFAM,
pela atenção desinteressada.

Às amigas do Mestrado, especialmente


Francileide e Socorro Pacó,
pela solidariedade.

Ao jornalista Aldísio Filgueiras,


pela generosidade.

Aos familiares e amigos que,


em momentos importantes,
hipotecaram o seu apoio :
meu filho Daniel, Gisele, Terezinha,
Dra. Ana Maria Marques e outros tantos,
particularmente ao meu irmão,
Osmir Medeiros.

Minha gratidão.
8

O que sabemos é uma gota,


o que ignoramos, um oceano.
Isaac Newton
9

RESUMO

Este estudo investiga as representações sociais do caboclo amazônico,


emergentes no discurso de jovens amazonenses, estabelecendo relação entre o
imaginário sobre a Amazônia da época da colonização e os estereótipos
relacionados a essa categoria social, procurando identificar as razões de sua
permanência ao longo do tempo e a maneira como hoje se expressam nas
relações sociais. Analisa, ainda, a possibilidade de existência de uma identidade
cabocla, correlacionando as origens do termo e o processo histórico que
consolidou o seu uso, à idéia de alteridade associada ao seu emprego relatada
por estudiosos do homem amazônico e ainda hoje evidenciada na fala dos
sujeitos da pesquisa. A tentativa de interpretação apóia-se na tradição
hermenêutica, com vistas a ampliar a discussão sobre o tema.

Palavras-chave: representações, estereótipo, imaginário, alteridade, identidade


10

ABSTRACT

This study investigates the emerging of the speech of young amazonenses


Amazonian mestizo's social representations, establishing relationship among the
imaginary on the Amazonian of the time of the colonization and the related
stereotypes the that social category, trying to identify the reasons of its
permanence along the time and the way as today is expressed in the social
relationships. Its analyzes, still, the possibility of existence of an identity cabocla,
correlating the origins of the term and the historical process that it consolidated its
use, to the alteridade idea associated to its use told by the Amazonian man's
specialists and still today evidenced in the speech of the subject of the research.
The interpretation attempt leans on in the tradition hermenêutica, with views to
enlarge the discussion on the theme.

Key-words: representations, stereotype, imaginary, alteridade, identity


11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. A ÓTICA EUROCÊNTRICA – ESTEREÓTIPO E PRECONCEITO 24


1.1 Um estigma como herança 36

2. CABOCLO – UMA IDENTIDADE POSSÍVEL? 46


2.1 A propósito do termo “caboclo” 54
2.2 A cultura cabocla 62
2.3 O caboclo na história (ou a história do caboclo?) 69
2.4 O caboclo hoje 76

3. RECOLHENDO FRAGMENTOS: UMA PERSPECTIVA DE COMPREENSÃO


DAS REPRESENTAÇÕES 81
3.1 Conhecendo o terreno: real e imaginário nas representações 90
3.2 Analisando os fragmentos: o dito e o não-dito 96

4. JUNTANDO OS PEDAÇOS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS


DO CABOCLO 139
4.1 O caboclo estereotipado: imaginário e representações 139
4.2 Caboclo “é o outro”: representação da alteridade 148
4.3 O caboclo e “eu”: identidade e conflito 153

REFLEXÕES FINAIS 162

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 172

OBRAS CONSULTADAS 179


12

INTRODUÇÃO

Existe, sim, um lugar secreto na Amazônia.


No âmago de suas terras encontra-se a origem de todos os
homens. 1

Í
cone da modernidade pseudo-ecológica na onda naturalista que invadiu o
mundo nos últimos tempos, a Amazônia tem suscitado idéias e concepções
controversas, especulações várias e pouca compreensão sobre a sua
realidade. No imaginário de muitos a Amazônia continua encarnando o papel do
Novo Mundo, inóspito, fantástico, mágico, estarrecedor, que animou as elites
européias por ocasião do descobrimento das Américas.

Quando chegou ao conhecimento dos europeus, segundo Busato (s.d., p.


300), o Novo Mundo “já estava pré-construído no sentido do imaginário, por
muitos séculos de estórias...”, principalmente criadas a partir de relatos dos
grandes exploradores. Foram os estrangeiros, então, os primeiros a filtrar os
mitos antigos e “exportar” para o Brasil o que eles elaboraram culturalmente,
podendo-se afirmar que grande parte do ideário brasileiro não é de origem
nacional.

Referindo-se à época dos descobrimentos, afirma o autor que o indígena


brasileiro, na cultura européia daquele tempo, aparecia como um ser degenerado
e até como um simples animal, cuja figura perturbava a imagem particular da
Amazônia “criada” pelos descobridores. Ao contrário da natureza exuberante, o
homem amazônico apresentava falhas imperdoáveis aos olhos do colonizador.

Fazendo uma releitura dos relatos dos expedicionários e naturalistas que


por aqui passaram, vê-se o delineamento de uma imagem negativa sobre o
amazônida e as bases sobre as quais ela foi assentada: o contexto sócio-cultural,
a religiosidade e as raízes filosófico-políticas que norteavam o modus vivendi
1
GONDIM, Neide, em A Invenção da Amazônia.
13

europeu, confrontados com a existência amedrontadora de uma realidade outra,


completamente adversa, assustadora mesmo para os padrões daqueles
estudiosos.

Essa criação, cristalizada no imaginário popular, ainda constitui o pano de


fundo para qualquer representação da Amazônia, não somente em outros
Estados do país, mas também na região amazônica e mesmo no Estado do
Amazonas, resultando daí uma imagem mitificada, estereotipada, especialmente
sobre o homem amazônico. A despeito da cultura rica e variada, originada das
seculares tradições dos inúmeros povos indígenas que habitam essa vastíssima
região, a idéia de inferioridade do homem americano provavelmente influenciou a
auto-imagem dos seus descendentes.

Resultado do processo miscigenatório entre índios e brancos, o caboclo


parece ter absorvido em parte o estereótipo para si criado. Partindo desse
pressuposto, pode-se supor que as representações do homem amazônico estão
assentadas em terreno fértil, ou seja, são facilmente integradas, já que não se
evidencia resistência aos estereótipos de indolência, preguiça, inferioridade
intelectual e estética atrelados à imagem do nativo da região.

Não é raro observar nos jovens amazonenses o afã de copiar modelos


estrangeiros, no falar, no vestir, no comportamento. As influências dos padrões de
beleza e modismos do sul do Brasil são evidentes no seu vestuário, nos
adereços, na produção da imagem pessoal, no linguajar, nas opções de lazer,
etc., o que é relativamente compreensível pela influência da mídia nos hábitos
sociais.

O que surpreende, no entanto, é o que se observa empiricamente no


contexto local, no discurso cotidiano do próprio caboclo amazonense, entendido
como o indivíduo aqui nascido e criado, independente de características físicas e
status social. Em muitas ocasiões é possível verificar a predominância da visão
do “estrangeiro”, ou seja, a emergência de preconceitos atribuídos aos “de fora”,
como a idéia de que o caboclo é “preguiçoso”, é “burro”, é “feio”. Chamar alguém
de “índio” ou “caboclinho” para alguns tem um cunho depreciativo, inclusive o
14

termo é freqüentemente utilizado pejorativamente em várias situações,


especialmente em Manaus.

Partindo-se dessas indicações, a presente investigação científica busca


saber se realmente existe uma negação por parte do jovem amazonense, de uma
identidade como “caboclo”, e se esse jovem se percebe integrante dessa
categoria depreciada. Considerando as evidências históricas da constituição
desse imaginário, em que sobressai a imagem depreciativa do homem
amazônico, quais as razões de sua durabilidade, já que ainda hoje são
percebidas evidências de sua existência? Os elementos para esboçar possíveis
respostas a estas indagações, estão expostos no presente estudo.

Assim sendo, o objeto desta pesquisa qualitativa diz respeito às


representações do jovem amazonense sobre o homem amazônico,
especificamente o denominado “caboclo”, buscando-se identificar se a influência
da visão eurocêntrica ainda prevalece no pensamento desse jovem, e de que
forma essa representação é feita, estabelecendo relação entre o contexto em que
esse ideário negativo foi constituído e a realidade atual em Manaus.
Considerando a grande lacuna observada em relação a esse habitante típico da
região nos estudos investigativos registrados sobre a Amazônia, pretende-se
também reunir dados que possibilitem uma melhor compreensão do tema e
fomentem novos questionamentos.

Esta pesquisa se impõe, então, a tarefa de compreender a maneira como o


caboclo é representado, tomando como sujeitos alunos de nível médio de
instituições de ensino público. Partindo do discurso dos mesmos e de sua análise,
estabelece-se um diálogo entre esses dados empíricos, a base teórica relativa ao
tema e as noções que o circunscrevem, dentro de uma perspectiva sócio-histórica
e cultural.

Adotou-se como elemento norteador a teoria das representações sociais,


procurando-se compreender o indivíduo em seu contexto, sua história e
imaginário social. Sá (1998) acentua que, como modalidade do pensamento
prático, as representações emergem das práticas sociais, tornando-se
15

imprescindível que, no processo de seu desvelamento, sejam resgatadas as


condições em que foram tecidas.

A investigação das representações sociais é uma forma para se atingir


essa estrutura maior chamada “cultura”, pois os significados sociais são
construídos num meio cultural que normaliza e pressiona a emergência dos
discursos, das visões de mundo, das atuações, dos processos cognitivos, afetivos
e sociais individuais. Cultura e sociedade, segundo Morin (1998) estão numa
relação geradora mútua, onde os indivíduos exercem um papel importante, já que
funcionam como portadores e transmissores de cultura:

Por se tratar de um conhecimento prático, as representações sociais são


enquadradas entre as correntes que estudam o conhecimento do senso comum.
Pesquisar representações significa, então, adentrar a uma realidade intra-
individual, onde elementos afetivos, sociais e mentais integram a cognição, a
linguagem, a comunicação e se manifestam por meio da realidade material, social
e imaginária se seus atores. Para compreender as representações sociais Minayo
(1996) resgata um conceito de Gramsci, que considera o senso comum como a
matéria-prima das representações, chamando a atenção para a solidez das
crenças, que produzem normas de conduta e, ao mesmo tempo, conformismo
diante da crise.

O processo de análise das representações sociais impõe a necessidade de


remissão aos conceitos centrais propostos por Moscovici (apud SÁ, 1996). O
primeiro é o conceito de ancoragem, que indica a integração cognitiva do objeto
representado a um sistema de pensamento social pré-existente, ou seja,
interpreta-se determinado fenômeno a partir de experiências anteriores
armazenadas, com as quais a experiência atual é identificada; o segundo conceito
é a objetivação, através da qual se torna concreto o conceito abstrato. Por meio
desses processos de ancoragem e objetivação ocorre a transformação do não-
familiar em familiar, quando objetos, indivíduos e eventos são percebidos,
compreendidos e “acomodados” em paradigmas previamente estabelecidos.

De acordo com Minayo (1997), algumas representações sociais são mais


abrangentes em termos da sociedade como um todo e revelam a visão de mundo
16

de determinada época. São as concepções das classes dominantes dentro da


história de uma sociedade. Mas essas mesmas idéias possuem elementos de
passado na sua conformação e projetam o futuro em termos de reprodução da
dominação.

No trabalho com representações, Sá (1998) chama a atenção para o fato


de que a representação que liga o sujeito ao objeto é um saber efetivamente
praticado que não deve ser apenas suposto, mas sim detectado em
comportamentos e comunicações que de fato ocorram sistematicamente. Ou seja,
a escolha do tema para estudo não pode estar baseada em especulações ou em
suposições quanto à existência do fenômeno. É necessário ter previamente
confiança de que o fenômeno exista de fato, assim como evidências de sua
representação pelos sujeitos.

Esta pesquisa tem como sujeitos 30 estudantes do ensino médio de duas


escolas públicas de Manaus, a Escola Estadual Francisco Albuquerque,
localizada na rua Joaquim Nabuco, no centro de Manaus, onde foram
entrevistados 15 alunos do primeiro ano do nível médio, turno noturno, e a Escola
Estadual Ernesto Penafort, na zona leste da cidade, onde 15 alunos do terceiro
ano do turno vespertino participaram da pesquisa. A escolha da primeira escola se
deu por estar situada no centro da cidade, considerando-se que a sua clientela
seria composta de alunos de bairros diversos, possibilitando uma amostra mais
heterogênea. Já a escola da zona leste foi escolhida porque nessa área
predominam nos moradores as características físicas que evidenciam os traços
somáticos indígenas.

Optou-se trabalhar com jovens estudantes em razão, primeiramente, da


facilidade de acesso a esse grupo, e também em razão de sua espontaneidade
nas expressões e, ainda, por estarem os jovens em fase de formulação de
conceitos e de estruturação de um pensamento social. Nessa fase,
particularmente no contexto social da atualidade, os indivíduos estão submetidos
a muitos estímulos e informações e muito suscetíveis a influências, mas
teoricamente em condições de elaborar conceitos e discernir escolhas.
17

Utilizou-se para a coleta de dados a entrevista semi-estruturada, elaborada


de maneira a possibilitar a emergência de informações relevantes sobre idéias,
crenças, opiniões e condutas dos indivíduos, assim como as bases conscientes e
inconscientes dessas construções e a revelação de sistemas de valores e normas
do grupo no qual os indivíduos se inserem. As entrevistas foram realizadas com a
permissão da direção das escolas, após solicitação formal de permissão para o
contato com os alunos, tendo-se o cuidado de não atrapalhar o desenvolvimento
normal das atividades escolares.

O trabalho de campo foi realizado no período de julho a setembro de 2003,


tendo havido receptividade e espírito colaborativo em ambas as escolas por parte
dos professores para a participação dos alunos na pesquisa. Da parte dos
sujeitos, 14 homens e 16 mulheres na faixa de 15 a 20 anos, em princípio houve
certo retraimento, principalmente por parte dos homens, logo superado pela
curiosidade, havendo depois um decréscimo do “ânimo” inicial em virtude da
extensão da entrevista, elaborada de forma a captar o máximo possível de
informações, assim como as contradições que freqüentemente emergem neste
tipo de discurso.

Minayo (1996) aconselha a associação de técnicas complementares à


entrevista nos estudos de representação, como a discussão em grupos focais,
uma estratégia de coleta de dados geralmente usada para complementar
informações sobre conhecimentos peculiares a um grupo e para formulação de
questões mais precisas nas entrevistas. O interesse da composição desses
grupos para o campo das representações sociais, segundo a autora, prende-se
principalmente no fato de que eles de certo modo simulam conversações
espontâneas pelas quais as representações são veiculadas na vida cotidiana,
fazendo emergir certas percepções e atitudes que só seriam vistos no ambiente
natural.

Essa estratégia foi então utilizada previamente à realização das


entrevistas, com o intuito de colher informações mais precisas sobre o objeto das
representações para a formulação de questões mais adequadas aos objetivos
que se pretendia alcançar. A idéia era ver como os jovens estudantes se
18

comportariam numa conversa informal, o que deixariam transparecer que


pudesse ser útil para orientar uma etapa posterior.

Para a constituição do grupo focal foi feita uma reunião com nove alunos
voluntários do nível médio, sem especificação de série. Percebeu-se, pela
dificuldade de abordagem do tema com os jovens, a dificuldade de extrair nos
depoimentos pessoais dados suficientemente relevantes para constituir material
de estudo, evidenciando-se a necessidade de introduzir na entrevista perguntas
mais diretivas, assim como observar a postura dos estudantes durante a
verbalização.

Os elementos emergentes no grupo ajudaram a conceber o tipo de


abordagem que poderia ser mais eficaz e subsidiaram o roteiro da entrevista,
principalmente quanto a aspectos sobre o ambiente social amazônico e
amazonense que deveriam ser enfocados. Na entrevista partiu-se de questões
mais gerais, procurando-se situar o entrevistado numa realidade sócio-econômica
e política específica, para questões mais direcionadas ao objeto de estudo, as
representações do caboclo, evitando-se a abordagem direta e privilegiando-se as
sutilezas.

Minayo (1996) considera a entrevista uma técnica interrogativa


fundamental para recuperação das representações, constituindo-se a entrevista
em profundidade ou semi-estruturada em um método indispensável nos estudos
sobre as representações, pois parte da elaboração de um roteiro no qual o
pesquisador pode enumerar da forma mais abrangente possível as questões que
pretende abordar, de acordo com suas hipóteses ou pressupostos. Sabe-se,
entretanto, que não é possível a previsão de todas as situações que vão ser
encontradas no trabalho de campo, podendo surgir a necessidade de
redirecionamento para captação de aspectos considerados relevantes na
compreensão do objeto.

A entrevista como fonte de informação fornece dados secundários


e primários, referentes a fatos, idéias, crenças, maneira de pensar,
opiniões, sentimentos, maneiras de sentir; maneiras de atuar; conduta ou
comportamento presente ou futuro; razões conscientes ou inconscientes
de determinadas crenças, sentimentos, maneiras de atuar ou
comportamento (MINAYO, 1996, p. 108).
19

Sá alerta para a idéia errônea e bastante difundida de que o material


discursivo do qual se queira extrair as representações deve ter sido produzido
pelos sujeitos da forma mais espontânea possível:

O problema não está em se fazer perguntas diretas, mas sim na


qualidade das perguntas que são feitas, entendendo-se qualidade aí como
uma decorrência da pesquisa estar criteriosamente informada pela teoria.
A espontaneidade não é uma garantia de ampla revelação das
representações, podendo mesmo ter, ao contrário, o efeito de encobrí-las
(SÁ, 1998, p. 89).

Na opinião de Minayo (1996), o que faz da entrevista um instrumento


privilegiado de coleta de informações, na área de ciências sociais, é a
possibilidade da fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de
valores, normas e símbolos, ao mesmo tempo tendo o poder de transmitir as
representações de grupos determinados em condições históricas, sócio-
econômicas e culturais específicas. Deve-se ter em mente, por outro lado que a
entrevista não se resume a uma simples coleta de dados, por existir
obrigatoriamente uma situação de interação entre o entrevistado e o entrevistador,
podendo as informações dadas pelos sujeitos serem afetadas pela natureza
dessas relações:

[...] a dissimetria nas posições entrevistador / entrevistado tem que


ser compreendida e assumida criticamente em todo o processo de
construção do saber. O impacto resultante do pertencimento a outra
classe, que se concretiza em experiências sócio-culturais e até
conflitantes, é um dado condicionante da pesquisa, junto com todos os
outros fatores que acompanham qualquer uma de suas fases (MINAYO,
1996, p. 119).

Existe também uma preocupação com o uso deste instrumento porque a


entrevista é, antes de tudo, uma técnica que se traduz pela produção de um
discurso, sendo este uma atividade complexa caracterizada por aspectos que
dificultam sua análise. A expressão discursiva durante uma entrevista favorece,
conscientemente ou não, a utilização de mecanismos psicológicos, cognitivos e
sociais, o que pode comprometer a confiabilidade e a validade de seus
resultados.
20

Essas dificuldades e divergências são efetivamente enfrentadas pelo


pesquisador, segundo Minayo (1996), quando se parte para a tarefa concreta de
análise do material coletado. Nesse momento não existe concordância nem
quanto a pressupostos teóricos e nem quanto a métodos e técnicas a serem
empregados, se instaurando uma polêmica que tem a ver com os próprios limites
do conhecimento e com a luta intelectual para ultrapassá-los.

Análise de conteúdo costuma ser a expressão comumente usada para


representar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa. Na avaliação da
autora, no entanto, esta expressão, mais do que um procedimento técnico
engloba no seu significado uma histórica busca teórica e prática no campo das
investigações sociais. Operacionalmente, a análise de conteúdo parte de uma
leitura de primeiro plano para atingir um nível que ultrapassa os significados
manifestos.

Bardin (1977) concebe a análise de conteúdo como um conjunto de


técnicas de análise das comunicações. Não se trata de propriamente de um
instrumento, mas de um “leque de apetrechos”. Diz a autora que, por ser um
método muito empírico, que depende do tipo de fala e do tipo de interpretação
que se pretende fazer, “a técnica de análise de conteúdo adequada ao domínio e
ao objetivo pretendidos, tem que ser reinventada a cada momento...” (BARDIN,
1977, p. 30).

Pertencem, pois, ao domínio da análise de conteúdo, todas as


iniciativas que, a partir de um conjunto de técnicas parciais, mas
complementares, consistam na explicitação e sistematização do conteúdo
das mensagens e da expressão desse conteúdo, com o contributo de
índices passíveis ou não de quantificação, a partir de um conjunto de
técnicas que, embora parciais, são complementares (idem, p. 42).

A análise de conteúdo organizada e empregada como técnica interpretativa


é criticada por Minayo (1996) pela ênfase na fala como material de análise,
resultando em fraca capacidade explicativa:

O material etnográfico é arrancado como um corpus, isto é, como


um conjunto sistematizado e fixo, privilegiando-se tudo o que pode se
constituir em sistema de signos a serem decifrados. Desta forma, não
entram em pauta o processo de tomada de decisões no campo e nem o
contexto da ação analisada. As entrevistas costumam ser vistas em bloco,
21

perdem sua autoria e o jogo dos “significantes em cadeia” passa a ser o


foco da compreensão. [...]... o rigor formal de que se reveste costuma
sacrificar a riqueza dos detalhes e a multidimensionalidade da pesquisa
empírica – características que constituem a aura e o mérito da abordagem
antropológica (MINAYO, 1996, p. 229-30).
É o método hermenêutico-dialético o proposto pela autora como o mais
capaz de se aproximar de uma interpretação fiel da realidade, porque por esse
caminho, segundo ela, a fala dos sujeitos é colocada em seu contexto para ser
entendida a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica e
totalizante em que é produzida.

A hermenêutica consiste na explicação e interpretação de um pensamento,


buscando a compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres
humanos, importando, mais do que a expressão verbal, a compreensão simbólica
de uma realidade a ser penetrada. Pela capacidade de propiciar uma reflexão que
não se distancia da práxis, a hermenêutica-dialética é vista por Minayo como um
“caminho do pensamento”, pelo qual, neste trabalho, é tentada uma compreensão
mais aproximada quanto possível do pensamento social sobre o caboclo na
atualidade.

Esta opção metodológica para o trabalho interpretativo na análise de


conteúdo foi escolhida também em razão da idéia de que o desvendamento e
melhor entendimento do caboclo, na sua dimensão sócio-histórica e psicológica,
implica em entender também a nossa história pessoal e social. Acredita Ricoeur
(1978) que, de modo implícito ou explícito, toda hermenêutica é a compreensão
de si mesmo mediante a compreensão do outro, e é uma melhor compreensão de
si próprio, enquanto ser social, que todo investigador persegue em última
instância.
Após a transcrição das entrevistas, foi feita a leitura flutuante 2 do material,
sendo os dados agrupados conforme as questões do roteiro de entrevista e
gerando-se tabelas com a intenção de facilitar a análise posterior, que não foi
desenvolvida a partir de uma teoria exclusiva, mas com base em conceitos e
noções teóricas, por meio dos quais se estabelece um diálogo com os fenômenos
empíricos3. Estes, após uma interpretação preliminar a partir das respostas às
2
Terminologia utilizada por Bardin (1977) para identificar a leitura prévia dos documentos.
3
No sentido proposto por Minayo (1996, p. 92-3), os conceitos “são as unidades de significação que definem
a forma e o conteúdo de uma teoria. Podemos considerá-los como operações mentais que refletem certo
ponto de vista a respeito da realidade, pois focalizam determinados aspectos dos fenômenos,
hierarquizando-os. Desta forma eles se tornam um caminho de ordenação da realidade, de olhar os fatos e
22

questões, reunidas pela convergência temática, foram novamente agrupados em


três categorias empíricas centrais, que constituem a súmula interpretativa do
material da pesquisa de campo.

Para subsidiar a interpretação dos dados, além das leituras sobre


representações sociais e o estudo dos principais conceitos para a articulação das
análises, procedeu-se a levantamento bibliográfico com a intenção de identificar
as origens do que configurou mais tarde o componente principal do imaginário
sobre o homem amazônico, ou seja, a idéia de inferioridade da raça americana,
idealizada na figura do indígena. Estudos tendo o caboclo como tema, também
foram pesquisados, buscando-se reunir informações suficientes para a
compreensão dos dados.

No primeiro capítulo, então, aborda-se a visão eurocêntrica sobre o homem


americano, impregnada de conceitos depreciativos, que tem permeado a
representação de muitos sobre o amazônida dentro e fora do Brasil, estudada a
partir de relatos de naturalistas, tomando-se como amostra o trabalho de
Alexandre Rodrigues Ferreira, no século XVIII, os relatos de Spix e Martius, do
início do século XIX e do casal Agassiz, da segunda metade do mesmo século.
No século XX, vários estudiosos debruçaram-se sobre a Amazônia, com
finalidade descritiva, analítica ou simplesmente reflexiva, dentre os quais Euclides
da Cunha em sua obra À Margem da História, aqui referenciada.

A escolha desses naturalistas, dentre os vários que aqui estiveram,


justifica-se principalmente pela proeminência no cenário intelectual de sua
respectiva época. A Viagem Filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira, por
exemplo, é um trabalho histórico de referência no Brasil, pela riqueza de detalhes
e minúcias apresentadas para estudo, assim como a Viagem pelo Brasil, dos
naturalistas Spix e Martius, no início do século XIX.

Os relatos do casal Agassiz, em Viagem ao Brasil, na segunda metade do


século XIX, por sua vez, trazem informações preciosas sobre o modo de vida da

as relações, e ao mesmo tempo um caminho de criação.” Noções são entendidas pela autora como
“elementos de uma teoria que ainda não apresentam clareza suficiente e são usados como ‘imagens’ na
explicação do real. Eles expressam também o caminho do pensamento. Ou seja, expressam a relação
intrínseca entre a experiência e a construção do conhecimento.”
23

população amazônica nas comunidades urbanas, com precisão de detalhes e


descrições. Já no século XX, a visão literária de Euclides da Cunha imprime um
cunho emocional ao painel sobre a região. Outros autores contemporâneos
contribuem com seus escritos para esta pesquisa, buscando-se uma melhor
compreensão e referências suficientemente capazes de embasar a análise
empreendida a partir de dados coletados nas entrevistas.

A categoria “caboclo”, escolhida para o estudo em questão, constitui o tema


do segundo capítulo, tomando por base bibliografia específica a partir de textos
que abordam o homem amazônico. O termo “caboclo”, por sinal, não é
designativo exclusivamente de habitantes da região amazônica, mas aparece
relacionado a grupos de outras regiões do país, e até mesmo de cunho religioso,
como é o caso dos “caboclos” do candomblé. De toda forma, é forçoso perceber
que os diferentes usos da designação “caboclo”, em algum momento convergem
para as origens admitidas como mais remotas do termo, referindo-se àquele “que
vem do mato”.

A despeito das menções a outras acepções do termo, é especificamente


para o indivíduo originário da região amazônica, geograficamente determinado e
caracteristicamente identificado por seu habitat, costumes e modus vivendi, que
está voltado este estudo, no qual se buscou extrair das escassas fontes de
informação relacionadas ao tema, elementos suficientes para orientar a análise
dos dados coletados na pesquisa de campo. Estudos como os de Eduardo
Galvão, Roberto Cardoso de Oliveira, Charles Wagley e Eugene Parker
constituíram fontes importantes de referência no assunto, assim como o trabalho
de Débora de Magalhães Lima4, resumido em artigo, mesmo assim bastante útil
pela abrangência de suas apreciações, sem demérito para outros tantos autores
de cujas obras foram feitas menções.

No terceiro capítulo estão apresentados os resultados da pesquisa de


campo em articulação com os dados bibliográficos e os conceitos mais
4
Débora de Magalhães LIMA é autora da Tese de Doutorado (na qual assina LIMA AYRES) apresentada em
1992 na Universidade de Cambridge, intitulada The Social Category Caboclo: the history, social organization,
Identity and outsider’s social classification of the rural population of an amazonian region (the Middle
Solimões). Seu trabalho é referenciado em vários estudos sobre a Amazônia e o caboclo mas, infelizmente,
não pôde ser consultado para esta pesquisa por não constar do acervo do NAEA – Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos da Universidade Federal do Pará, onde foi obtido o Caderno com o artigo da pesquisadora,
mencionado no presente trabalho.
24

diretamente relacionados ao tema, como identidade, alteridade, imaginário e


estereótipo. Primeiramente estão expostos os dados colhidos junto aos sujeitos
da pesquisa, reunidos e organizados respectivamente em quadro resumo, com as
informações gerais sobre os entrevistados, e tabelas compostas com as
respostas dos entrevistados às perguntas feitas na entrevista, seguidos de
considerações analíticas.

As representações do caboclo propriamente, fragmentadas no decorrer da


análise, são recompostas depois em três categorias empíricas, expostas no
quarto capítulo, considerando que foram construídas fundamentalmente a partir
dos dados empíricos, mas que se prestam à interpretação norteada pela
abordagem hermenêutica-dialética. Busca-se aí, identificar as interrelações
intrínsecas entre o fenômeno das representações e aspectos da realidade dos
sujeitos, para compreender as condições que os determinaram e pelas quais eles
podem ser explicados.

As considerações finais trazem uma retrospectiva desse “caminho do


conhecimento” de que fala Cecília Minayo, a propósito do trabalho de pesquisa
em ciências sociais. Ali estão resumidos os pontos principais de cada etapa, as
dificuldades teóricas e práticas, assim como os pontos de convergência que se
convencionou chamar de conclusões, na ausência de termo mais apropriado.

Tendo em conta a lacuna existente em termos de um saber erudito


estruturado e difundido de forma ampla sobre o tema, acredita-se que as
informações aqui apresentadas possam resultar em contribuição para o escasso
acervo local. Espera-se, por outro lado, contribuir para a ampliação do espaço de
discussões sobre esse universo instigante que é a região amazônica, no qual o
elemento humano, embora relegado muitas vezes a dados estatísticos nas
pesquisas demográficas, esmaecido na grandiosidade da paisagem, há muito
tempo está a merecer o olhar elucidador da investigação científica.
25

1. A ÓTICA EUROCÊNTRICA – ESTEREÓTIPO E PRECONCEITO

“... a principal causa de todas as diferenças


entre o selvagem
e o homem sociável é que o primeiro vive em si
mesmo
e o segundo vive sempre fora de si...”
Rousseau

D
e acordo com Lisboa (1997), as imagens da América criadas pelos
europeus do séc. XIX reportam-se às idéias veiculadas na época da
conquista européia do continente americano, quando as diferenças
entre os continentes foram firmadas por uma oposição conceitual entre o Velho e
o Novo Mundo. O primeiro, centro de cultura e desenvolvimento, o segundo, uma
“terra de ninguém”, selvagem e indômita. A imagem de inferioridade e de
debilidade da terra e do homem americano é alicerçada pelos conceitos de
naturalistas respeitados nos meios científicos, como Buffon e Cornelius de Pauw,
este último defensor da idéia de que o continente americano estaria fadado a uma
irreversível degradação.

A teoria climática de Montesquieu é retomada por Buffon, que classifica a


humanidade conforme uma “estrutura hierárquica” pautada no modelo normativo
e eurocêntrico. Segundo esse modelo, os homens mais belos seriam encontrados
nas regiões de clima temperado. Os extremos climáticos, como frio excessivo e
áreas de climas tórridos aparecem como “desvios negativos” desse padrão. O
homem selvagem é considerado parente dos animais, marcado pelo tamanho
insignificante, debilidade física, carência de vivacidade, insensibilidade e frigidez
sexual, “defeito” este que o torna ainda mais desprezível.

Mundo intacto, é assim que Buffon visualiza ou imagina o Novo


Mundo, onde o homem é um intruso. É um mundo ainda em formação. [...]
Na construção da história do Novo Mundo, o clima nefando é o
responsável pela geração dos animais inferiores. O clima, o solo, a
umidade, o descomunal tamanho dos rios, a exuberância das florestas
26

diziam que o mundo era imaturo, porém a vida animal que o povoava
mostrava, por outro lado, que esse mundo já nascera imperfeito, motivo
pelo qual era fraco, enfermiço e débil. A influência desses fatores agia
sobre o temperamento do homem, modulando sua história e seus
costumes (GONDIM, 1994, p.73).
De Pauw foi mais longe e, sem jamais ter tido contato com os selvagens
americanos, se declara convicto da sua “degeneração”, deduzindo serem esses
pouco mais do que “bestas”, que sentiam ódio das leis da sociedade e da
educação. Considera ele que, além de possuírem menos sensibilidade, menos
humanidade, menos gosto, menos instinto, menos coração e menos inteligência,
esses selvagens são fracos e incuravelmente preguiçosos, incapazes de
progresso mental.

Tanto Buffon quanto De Pauw, em suas considerações sobre o homem


americano, denotam um exacerbado preconceito, extrapolando a visão
etnocêntrica que, de acordo com Claude Lévi-Strauss, na sua expressão mais
imediata, não é particular do europeu. Grande parte dos seres humanos, segundo
ele, apresenta essa atitude profundamente enraizada, razão por que o
etnocentrismo é considerado como um desdobramento do “egocentrismo”,
característico de todos os seres humanos e culturas.

Meggers (1977, p. 199) vê o etnocentrismo como uma das principais


barreiras à transmissão e evolução cultural, traduzido pela “convicção de que
nossa própria gente é ‘gente de verdade’, enquanto que todos os outros grupos
são inferiores, ou mesmo subumanos.”

O comportamento de tais inferiores não é somente considerado


indigno de imitação como também pode ser visto como inalienável,
juntamente com a cor dos cabelos e outros traços biológicos. Esta atitude
psicológica continua sendo muito espalhada hoje em dia e manifesta-se
pelo desprezo para com os hábitos alimentares, roupas, métodos de
adorno pessoal, indolência, agressividade e demais características de
outro grupo, traduzindo-se, pois no esforço por evitar, tanto quanto
possível, qualquer associação com esses indivíduos... (idem, p. 199).

Nessa forma de apreensão do mundo, o indivíduo se posiciona no centro


do seu universo, o mundo da cultura e da civilização, olhando à sua volta aqueles
que reconhece como seres humanos, seus semelhantes. Alguns parecem mais
próximos; outros só longinquamente são aparentados. Para além disso há os
estranhos, cujos costumes não são suficientemente reconhecidos e semelhantes
27

ao dele para que experimente sentimentos de simpatia humana. Além desses


últimos há pessoas ainda mais estranhas, que não suscitam a menor
sensibilização. Esses estão para além dos limites da humanidade, são selvagens,
animais, elementos da natureza. É assim que é visto o nativo americano.

Autômato, achatado sob um clima adverso, nômade, sem vontade


própria, sem sociedade, o nativo não é anão, é um híbrido, algo
intermediário entre o réptil e o vegetal que o camufla, apesar de ter sido
produzido por obra divina. [...] Floresta virgem, madrasta para os inertes, é
a personagem principal nesse cenário onde o homúnculo imberbe é
gerado da mesma larva que os insetos, parido sobre o mesmo leito
aplainado pelo rastejas das serpentes imensas. Mal constituído, não tem o
tamanho nem da vitalidade da fauna que o sufoca porque é um híbrido,
quase que produzido instantaneamente (GONDIM, 1994, p. 74).

Esse etnocentrismo pernicioso tem seus desdobramentos em larga escala,


particularmente porque oriundos da Meca dos pensadores, a Europa. Na opinião
de Gerbi (1996), é precisamente a partir da divulgação das idéias do naturalista
Buffon, que a tese da inferioridade das Américas inicia uma trajetória histórica
ininterrupta que passa por De Pauw e alcança seu ápice com Hegel. Imaturidade,
impotência, inferioridade e degeneração, a partir de então passariam a ser termos
recorrentes durante séculos, sempre que eram feitas descrições da realidade
americana, incluindo sua natureza e sua gente.

Os registros arquetípicos construídos nas especulações filosóficas sobre a


existência de um paraíso terrestre, impenetrável e místico que em si mesmo
encontra o seu oposto (o inferno), estava agora materializado no Novo Mundo, e
era ele que acompanhava os viajantes e cientistas que aventuraram conhecer a
Amazônia. As narrativas desses desbravadores eram destinadas aos europeus e
é a partir deles, segundo Busato (s.d., p. 310), que vai surgir, recriado e filtrado
dos mitos antigos, o imaginário amazônico “exportado” depois para o Brasil.
Assim, “a visão atual da Amazônia pelos brasileiros fundamentou-se fora do Brasil
e fora da época contemporânea”.

De acordo com Cicerchia (2000), o trabalho que mais difundiu as teorias de


Buffon e De Pauw foi The History of America, de William Robertson. Refratário às
idéias de Rousseau e permeável ao pessimismo naturalista de De Pauw, o
historiador escocês reconhecia na América um continente imenso, com um clima
28

predominantemente frio e uma população “rude e indolente”. Foi a partir deste


texto que foi sendo introduzido gradualmente também um olhar que corrige a
direção cerradamente naturalista dos detratores do Novo Mundo. Ainda que os
americanos fossem primitivos ou animais melancólicos, Robertson via na
variedade americana, possibilidades históricas.

Em sintonia com as idéias de Buffon, Alexandre Rodrigues Ferreira,


quando esteve na região amazônica em uma jornada encomendada pela Coroa
Portuguesa, conhecida como “Viagem Filosófica”, buscou comprovar as teses do
famoso naturalista e estabeleceu que a preguiça e a indolência eram
responsáveis pelo atraso da Amazônia. A intervenção colonialista seria, então,
uma forma de integrar os americanos nos rumos da “civilização” e estimular a sua
inteligência, ainda embrionária. Apesar do domínio apresentado sobre alguns
fenômenos da natureza, Ferreira considerou que a racionalidade indígena não era
nem mais iluminada nem mais previdente que o instinto dos animais (RAMINELLI,
2001).

Para o naturalista a ambição, poderosa "mola das ações humanas", era


inerte naqueles seres, pois viviam na indolência e a felicidade consistia em não
trabalhar. Quando a fome os perseguia, satisfaziam-se com qualquer raiz e
animais, disponíveis na natureza. Não havia, entre eles, previsão para o futuro.
Em suas observações pondera que, em alguns momentos, os seres primitivos
deixavam entrever uma inteligência, mesmo que embrionária, capaz de se
desenvolver (FERREIRA, 1971).

Ferreira dissertou sobre a constituição física, moral e política dos povos


amazônicos que conheceu, recorrendo também a testemunhos de viajantes,
cronistas e estudiosos da América, cruzando informações, verificando similitudes,
com a finalidade de compor uma "figura americana". Percorreu as várias nações
indígenas sem buscar explicações para costumes e idiossincrasias; limitando-se a
descrevê-las nos aspectos visíveis e extraídos dos acontecimentos, tratando os
temas de forma superficial ou detalhada, conforme as particularidades e
excentricidades dos grupos contatados.
29

Por meio de identidades e diferenças, o naturalista classificou-as pela


fisionomia, "deformidade" anatômica, enfeite, vestimenta e capacidade produtiva.
A descrição visual é, portanto, particularmente estática, dedicada, sobretudo, a
pormenorizar os índios pelos aspectos externos e imediatos. Seguindo os
pressupostos buffonianos, a descrição histórica está ausente.

Vale ressaltar que a postura de Ferreira condizia perfeitamente com o


encargo que lhe fora atribuído. Os naturalistas atuavam como homens de ciência,
recorrendo à neutralidade para produzir conhecimento. Eles desempenhavam
simultaneamente funções de cientistas e agentes imperiais, auxiliando a
expansão da Europa. Por intermédio da história natural apreendiam-se as
memórias. As pranchas e as espécies coletadas demonstravam o valor e a
importância das comunidades e regiões percorridas, assim como as
potencialidades da exploração comercial.

As informações reunidas na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues


Ferreira obedecem a essa racionalidade e constituem uma produção artística e
científica com base em uma lógica colonial, destinada a classificar e transformar a
natureza e as comunidades indígenas em bens para manutenção e exploração.
Na ótica de Ferreira, o possível abastardamento e a degeneração dos índios
civilizados seriam de inteira responsabilidade do próprio nativo, ao preferir a
ociosidade de uma vida improdutiva à segurança civilizatória.

O mito do bon sauvage, preconizado por Rousseau, discutido e combatido


largamente, encontrava seu oposto: le mauveau sauvage. Para Rousseau (1983),
o “estado de natureza” era o ideal humano, porquanto em estado primitivo não
havia espaço para a corrupção promovida pelo contato social. Observa Lisboa
(1997) que o pensador referia-se ao bon sauvage, não como sinônimo de
inocência paradisíaca, mas em função de sua indiferença a valores morais,
perfeitamente condizentes com o seu contexto histórico.

Defendido por alguns e atacado por outros, esse mito norteou a visão de
muitos estudiosos, viajantes e naturalistas como Spix e Martius, cujas anotações
iniciais de viagem em área brasileira indicam claramente essa orientação. Tal
visão, no entanto, ao contato com uma realidade cultural inteiramente diversa do
30

imaginado por eles, não só desfez-se completamente, como reforçou a


construção de uma imagem totalmente negativa do indígena americano.
O bom selvagem, entrevisto nos primeiros contatos, é mantido até o
momento em que os naturalistas se defrontam com o universo cultural dos
selvagens em sua plenitude. Um exemplo categórico foi a mudança da impressão
de Martius quanto aos miranhas, grupo de antropófagos com os quais
permaneceu durante algum tempo.

No convívio com esse grupo indígena, Martius observa situações


cotidianas e faz considerações em princípio favoráveis, como as relativas às
mulheres miranhas:

[...] embora as mulheres dos miranhas se ocupem


incessantemente com essa delicada parte do seu lar, e também saibam
confeccionar artísticos trançados, nunca se lembraram, entretanto, de
fazer peças de vestuário para si mesmas. Elas sempre andam vestidas no
traje da inocência, mas sempre cuidadosamente pintadas, em vez de
roupa. Impressionou-me aqui tanto mais essa nudez, porque julguei notar
nesse sexo muitos impulsos superiores. Ao passo que os homens se
entregam à mais despreocupada ociosidade, as mulheres são incansáveis
no incessante labor doméstico e até mostram bondade especial nos seus
esforços contínuos de nos preparar comida melhor e na compaixão por
nossa doença. Quase quero acreditar que o sexo mais fraco possua em
menor grau a disposição e o temperamento dos aborígenes americanos, e
que por isso, mais facilmente será possível levá-los à civilização (SPIX e
MARTIUS, 1981, p. 234).

Depois, gradativamente, o que poderia ser considerado como uma ligeira


simpatia mostra sinais de intolerância e rispidez:

Enquanto os homens se dispersam para caçar ou para pescar,


ficam as crianças sob os cuidados da mãe, e esse momento é de
educação, se é que se pode chamar assim a ocupação tola com os
pequenos seres egoístas. Lição de moralidade, mesmo de simples bons
modos, não se acha aqui; quando muito, um adestramento para a
subsistência entre os outros. [...] Deferência, modéstia, obediência,
desconhecem-nas tanto as crianças, quanto os pais (idem, p. 234).

Finalmente desaparece do ideário dos naturalistas toda a idéia de


“bondade” que se inclinavam a atribuir-lhes, dando lugar ao “mau selvagem”, no
sentido lato, que não é somente estúpido, indolente, ignorante e rude, mas
também pervertido e mau por índole. Sobre esse grupo, que julgava “rudes até a
bestialidade”, mas detentores de certa nobreza, após conhecer alguns costumes
31

e presenciar certas festas e rituais, Martius expressa-se de maneira


especialmente contundente:
Ainda me confrange a alma, quando me lembro da horrível
degeneração desses brutos. [...] Fiquei persuadido de que esses
selvagens não tinham idéia alguma do Deus, bondoso, pai e criador de
todas as coisas; que somente domina seus destinos um ente mau,
transformando-se em cada fatalidade, caprichoso e implacável, ao qual se
sujeita em cego e inconsciente medo. A alma desses homens primitivos
decaídos não é imortal; ela apenas se manifesta na existência, não
conscientemente, e só a fome e a sede lhes lembram as necessidades da
vida. Justamente por isso, a vida não é por eles considerada um grande
bem, e a morte lhes é indiferente. Com ela, tudo se acaba; só sobrevivem
o ódio e a vingança como espectros atormentadores. O laço do amor é
frouxo; em vez de ternura, cio; em vez de afeição, necessidade; os
mistérios da geração, profanados às claras; o homem, por comodidade,
meio vestido; a mulher, escrava nua; em vez de puder, vaidade; o
casamento, um concubinato que se desfaz, segundo o capricho; a
preocupação do pai de família é seu estômago, quando cheio este, crua
concupiscência; seu passatempo, glutonagem e ócio apático; sua
ocupação, irregularidade; o trabalho das mulheres, cego e sem finalidade;
os seus prazeres, repugnante lascívia; as crianças, fardo dos pais, e, por
isso, evitada; a afeição paternal, somente cálculo, e a maternal, somente
instinto; o pai de família, descuidado e sem autoridade; a educação,
brincadeira imitativa da mãe, cega despreocupação do pai; em vez de
obediência filial, medo; [...] em vez de amizade, camaradagem; [...] em vez
de direito, a voz do egoísmo; [...] mutismo por pobreza de idéias;
indecisão, por falta de discernimento; o domínio do tuxaua, por inaptidão
dos demais, porém todos incapazes da verdadeira obediência moral,
assim como do comando – eis como vive o aborígene destas selvas! No
mais primitivo grau da humanidade, é deplorável enigma para si mesmo e
para o irmão do oriente ... (SPIX e MARTIUS, 1981, p. 247).

As imagens projetadas pelo naturalista evocam a idéia de um ser abjeto, e


denotam claramente o julgamento personalista ao que o autor submeteu os
literalmente “inocentes” índios, os quais, medidos por parâmetros arbitrários,
julgados e condenados como as mais vis criaturas, nada mais faziam do que
“viver em natureza”, de acordo com o seu próprio universo. Esse julgamento, por
sinal, não se restringe aos miranhas por seus bárbaros costumes, mas se
expressa em outras circunstâncias, como sobre os júris e os botocudos, onde o
preconceito eurocêntrico também é evidenciado nas referências às características
físicas dos indígenas:

[...] na sua aparência feia, quase não têm traço de humanidade.


Indolência, embotamento e rudeza animal, estampam-se-lhes nos rostos
[...]; voracidade, preguiça e grosseria, patenteiam-se-lhes nos lábios
inchados, na barriga, assim como em todo o torso troncudo e no andar de
passos curtos (idem, p. 247).
32

Em oposto à preconceituosa visão dos naturalistas sobre o homem dos


trópicos, um ideal romântico de natureza sobressai nos relatos sobre as incursões
pelo mundo natural. Essa imagem, no entanto, também se observa permeada de
contradições, à medida que os viajantes adentram na região amazônica e são
submetidos a inúmeros percalços em áreas inóspitas.

Lisboa (1994) acredita que Spix e Martius experimentaram nos trópicos


uma natureza que podia causar enorme prazer. No entender desses naturalistas,
o “sentimento da natureza” era imprescindível para investigar os objetos da
história natural na sua totalidade. Segundo a autora, possivelmente a criação
dessas descrições paisagísticas tem como pano de fundo a discussão sobre os
conceitos das duas formas de representar a natureza, que nortearam uma
reflexão estética no decorrer da segunda metade do séc. XVIII em torno da
poética do pitoresco e do sublime, estabelecendo uma contradição dialética entre
o indivíduo e a coletividade.

No trabalho dos naturalistas as referências paradisíacas são mais


freqüentes do que as infernais, sendo sempre evocadas no contexto da prática do
pesquisador da natureza, que se fascina com a descoberta da variedade e da
vitalidade dos trópicos. Ao longo da viagem, no entanto, fustigados por insetos,
animais, chuvas torrenciais, calor, doenças, os estudiosos perdem a empolgação,
mostrando-se oprimidos e horrorizados com o perigo e com a estranheza de uma
natureza invicta e selvagem.

Lisboa observa na descrição dos viajantes uma dimensão visionária do


“sublime”, segundo a qual a natureza os transporta a sensações infernais. Se
antes era benéfica, agora podia provocar o mal-estar. Nesse aspecto,
particularmente, os índios potencializam a imaginação de uma natureza
ameaçadora. A consciência de pertencer a um mundo considerado “civilizado” os
faz se sentirem agredidos por aqueles que representam a alteridade.

Do mesmo modo que a natureza brasileira se oferecia ao enriquecimento


da pesquisa naturalista, a diversidade étnica dos seus habitantes prestava-se
para ampliar o conhecimento acerca dos “povos” extra-europeus e das raças
humanas. No entanto, os diferentes tipos humanos encontrados nos trópicos são
33

classificados pelos naturalistas segundo idéias maniqueístas de degeneração e


perfeição, deixando sobressair sua convicção da superioridade da raça caucásica
no contexto da escola evolutiva dos homens.

Lisboa (1994) situa Spix e Martius no grupo dos primeiros naturalistas a


pesquisar os povos indígenas brasileiros de forma sistemática. A carência de
sensibilidade para enxergar o índio evidencia justamente o etnocentrismo europeu
no início do século XIX, uma vez que o critério básico para a investigação era o
da perfectibilidade moral e o da conseqüente capacidade de “civilizar-se”,
permeado pela dúvida quanto à humanidade ou não dos indígenas.

A autora critica a insensibilidade dos naturalistas diante das complexas


relações sociais intrínsecas a uma sociedade colonial escravocrata. Para aqueles
estudiosos tanto os índios como os etiópicos e mestiços revelam uma timidez
velada diante do branco, bastando um simples olhar deste e mesmo a sua
presença para amedrontá-los, de forma que um branco poderia em tese governar
tacitamente centenas deles.

O conceito de inferioridade racial do homem americano ganha, então,


dimensão maior nas considerações dos autores em seus relatos. Relata Lisboa
que na opinião de Spix e Martius as feições da maioria dos grupos indígenas
tinham pouca distinção entre um grupo e outro, parecendo todos dominados pelo
que eles chamam de “traços gerais da raça”. A ausência de traços individuais
seria sinal de sua falta de “desenvolvimento”. No entender desses naturalistas, o
fenômeno da indistinção não acontecia mais em nenhuma outra raça, o que
implicava a primitividade dos índios americanos na história da evolução humana.

Na visão dos autores, o temperamento dos indígenas não se desenvolvia:

Não ligam para o dia seguinte, porque não distinguem “passado e


futuro” [...] não conhecem o “sentimento de deferência, gratidão, amizade,
humildade, ambição”. São “insensíveis, taciturnos, imersos no mais
absoluto indiferentismo por tudo”. Levados pelos “instintos animais” são
“frios e indolentes”, mesmo com a família. [...] Assim passam-se meses e
anos, para o índio, em caçadas e guerras, festas selvagens e tarefas
rotineiras, numa vida rude e insensível, ignorante de toda alta vocação, a
que a humanidade tende (SPIX e MARTIUS apud LISBOA, 1994, p. 149).
34

Nessa ótica os índios vivem do lado de fora da sociedade humana, sendo


fortemente conduzidos por instintos animais e dotados de uma alma definhada,
inspirando esses homens das selvas nos naturalistas uma sensação mista de
rejeição e de pretensa compaixão. A dança dos Puris, por exemplo, lhes evoca
sentimentos melancólicos em razão da “degeneração do humano” nos índios.

[...] o porte baixinho, o pardo-avermelhado da pele, o cabelo negro


de carvão, solto e desgrenhado, o formato desagradável da cara larga,
angulosa, e os olhos pequenos, oblíquos, inconstantes, finalmente o andar
de passos curtos, esquivos [...]. E, então, pelo caráter tristonho dessa
festa, na escuridão da noite, a nossa impressão de pena era ainda maior...
(SPIX e MARTIUS apud LISBOA, 1994, p. 150).

Apesar de consideraram os índios do Amazonas mais desenvolvidos do


que os das tribos do sul do Brasil, em grau de “civilização”, em nenhum lugar
pareceu-lhes tão medonha e triste a miséria do silvícola americano como entre os
muras. Também o pavor de fantasmas e a crença em fatos extraordinários são
considerados como ridículos.

À medida que conheciam mais grupos aldeados, perdiam também a


convicção do sucesso das iniciativas civilizatórias. A crítica dos autores à
interferência colonizadora e ao trabalho dos jesuítas, “não se refere à trágica
dizimação da população autóctone e o desrespeito à sua forma de vida, mas o
fato de que essa política teria impedido a ‘civilização’ dos selvagens, perpetuando
o seu estado de selvageria e de degeneração moral” (LISBOA, 1994).

Os apontamentos de Spix e Martius sobre a questão indígena, de acordo


com a autora, abrangem justamente o período caracterizado pelas polêmicas
sobre a forma institucional de “civilizar” os índios. Os naturalistas não são alheios
às contradições do processo colonizador e às dificuldades que se travaram entre
os europeus e os íncolas originais. Criticam a conduta desrespeitosa dos colonos,
o passado da violenta conquista, a escravidão indígena, a violação da legislação,
a política dos aldeamentos, as missões religiosas, as autoridades
governamentais, enfim, conferem à colonização o papel de ter lançado tantas
“sementes de destruição” no Novo Mundo, aparentemente relativizando e quase
inocentando os índios de sua “decadência”...
35

O lado devastador da colonização para com a população indígena é


apontado pelos naturalistas, os quais reconhecem que a “decadência moral e
física” dos índios os joga numa vida ambígua e triste, na qual perdem os seus
costumes originais, esquecem sua língua, dissipam “toda a energia moral” ou
mesmo se extinguem por completo.

Lisboa (1994) enfatiza que, ao exaltar a superioridade do europeu sobre as


demais raças, no entanto, a razoável lucidez dos autores acerca das mazelas da
colonização perde a sua intensidade. Spix e Martius destroem a própria crítica ao
compactuar com a idéia que os índios são irracionais e inacessíveis à civilização:

Foram baldadas as mais diversas e numerosas tentativas para


estabelecer em pé de igualdade de direitos e deveres estes homens entre
os demais habitantes da América; quando, além disso, uma
desproporcionada mortalidade faz entrever que os filhos dessa parte do
mundo, cheia de vida material abundante, são de constituição tão
fracamente dotada de força vital, temos de inclinar-nos à conclusão de que
os índios não suportam a cultura mais alta que a Europa lhes quer
inocular, e que a civilização progressiva, elemento vital da humanidade
florescente, mesmo os destrói, como um veneno letal (SPIX e MARTIUS
apud LISBOA, p. 163).

Na opinião dos autores, os índios contraem as enfermidades dos brancos


em virtude de sua debilidade natural, assim como a falta de desenvolvimento
espiritual explicaria o alastramento das doenças européias entre eles, a
diminuição da fecundidade feminina e a degeneração da constituição robusta e
resistente de seus corpos.

Assim, o destino da raça americana, tal qual acontece com outros seres da
natureza, é decompor-se, antes de alcançarem o mais alto grau de
desenvolvimento. Por não serem dotados de perfectibilidade, a raça americana
nada mais é do que um “ramo atrofiado no tronco da humanidade”, relegados,
portanto, à impossibilidade de aperfeiçoamento e de atingirem a “humanidade
superior”.

O estado degenerativo é traduzido não somente pela ausência de traços e


vestígios materiais que permitam a reconstrução de sua história, mas também
pelo fato do passado do homem americano ser igual ao presente, de nada se ter
36

transformado neles e em torno deles e pelo fato de viverem num tempo imóvel,
próprio de sua “natureza decaída”. Em sua concepção, os nativos americanos
pertencem a uma não-história , em que não há passado nem futuro (LISBOA,
1994).

A autora destaca que no texto O Estado do Direito Entre os Autóctones do


Brasil, Martius menciona novamente o “enigma obscuro” que são os índios no
meio das criações da civilização e dos costumes europeus que no Novo Mundo
triunfalmente se espalharam do litoral para o interior do continente. Seu “estranho
e inexplicável estado”, evidenciando sua incapacidade para o progresso, fez
fracassar todas as tentativas de conciliá-lo inteiramente com a Europa vencedora
e torná-lo um cidadão satisfeito e feliz.

A tese de a raça americana ser um “ramo atrofiado” do tronco da


humanidade é assim encampada por Martius, enfatizando que a decadência
moral e física da população indígena teria sido causada muito mais por caprichos
da natureza do que pela colonização. Para Martius, sendo o gesto fundador da
civilização o domínio dos homens sobre a natureza, o vazio de seres humanos da
paisagem brasileira, não pode ser preenchido por índios. Os naturalistas
defendem o processo civilizador por ser este conduzido pela “raça caucásica”.
Entendem ser a irradiação da civilização, iniciada no Oriente, a grande
disseminadora de cultura devendo, mais cedo ou mais tarde, atingir a América.

O projeto civilizador dos naturalistas para o Brasil pautava-se não


somente na dominação da natureza, mas também no cruzamento das
diferentes “raças”, cabendo à raça caucásica, por ser mental, física e
moralmente superior às outras, conduzir esse processo de branqueamento
por meio da mistura racial. Apostavam que os brancos absorveriam, por
meio da miscigenação, as demais etnias, descaracterizando-as no sentido
de aperfeiçoá-las para a civilização. [...] Os poucos índios seriam
naturalmente excluídos ou então, em casos raros, incorporados, à medida
que perdessem a sua identidade cultural. Ao contrário de Hegel, para
quem a América meridional era um mundo inacabado e imaturo onde a
História Universal jamais chegaria,os naturalistas bávaros acreditavam
que o Brasil estava a caminho do seu “aperfeiçoamento” (LISBOA, 1994,
p. 173).

Para Martius, a miscigenação das raças, tal qual acontecia no Brasil, era
um aspecto basilar no inexorável caminho da civilização. Ao homem branco nos
trópicos, por representar a “verdadeira humanidade” e por isso gozar de
37

superioridade sobre as demais raças, cumpria a sua missão de difundir a


civilização. Em teoria, quanto mais claros os indivíduos, mais dotados de
perfectibilidade.

Por serem considerados autores de referência nos estudos naturalistas,


sua herança foi marcante para muitos estudiosos brasileiros, preocupados em
definir uma identidade para a nascente nação: a questão da miscigenação foi um
dos assuntos mais debatidos ao longo da segunda metade do séc. XIX e início do
séc. XX, disseminando a visão eurocêntrica do homem americano pela elite
brasileira, particularmente no meio científico.

A força de idéias como esta, difundida e partilhada por muitos estudiosos,


pode ser evidenciada tempos depois em trabalhos como o de Tavares Bastos
(1975, p. 219): “Eu não imagino aplicável a esta região da América senão a
medicina que tanto se recomenda a toda ela: a imigração de indivíduos das raças
vigorosas do norte do globo”.

Sem desconsiderar o trabalho minucioso e enriquecedor, do ponto de vista


científico, com que estes estudiosos contribuíram para o conhecimento da região
amazônica, acredita Lisboa que Spix e Martius não conseguiram ultrapassar o
limiar da auto-referência para estabelecer uma identificação com os estranhos.
Embora tenham sido capazes de integrar-se à natureza tropical, não conseguiram
desfazer-se de si mesmos para observar o “outro”, representado pelos negros,
mulatos e, principalmente, índios. Além disso, mundialmente reconhecidos e
respeitados como pesquisadores, em parte do seu legado ajudaram a reforçar um
estigma que ainda hoje perdura no auto-conceito do homem amazônico.

1.1 Um estigma como herança

Outros viajantes, além de Spix e Martius, compartilharam da visão


eurocêntrica de superioridade da raça caucásica e do preconceito com o indígena
brasileiro, entre esses o casal Agassiz, que estiveram no Brasil na segunda
metade do século XIX em viagem de estudos. Apesar de seus interessantes
relatos muitas vezes afáveis e em tom afetuoso sobre os caracteres gerais da
38

Amazônia e a vida comunitária local, em vários momentos eles atestam sua


adesão à idéia de inferioridade da população local.

Assim, a despeito de apropriadamente criticarem a postura dos brancos em


relação aos nativos, ressaltando a prática exploratória do trabalho indígena e a
baixa moralidade da população branca, deixam entrever o preconceito subjacente
com referência aos indígenas e mestiços, particularmente na região amazônica:

Não somente a população branca é muito escassa para


corresponder à tarefa que tem diante de si, como essa população não é
menos pobre em qualidade do que reduzida em quantidade. Apresenta o
singular fenômeno de uma raça superior recebendo o cunho duma raça
inferior, de uma classe civilizada adotando os hábitos e rebaixando-se ao
nível dos selvagens. Nas povoações do Solimões, as pessoas
consideradas como da aristocracia local, a aristocracia branca, exploram a
ignorância do índio, iludem-no e embrutecem-no, mas tomam não
obstante os seus hábitos e, como ele, sentam-se no chão e comem com
as mãos (AGASSIZ, 1975, p. 154).

Aproveitam para criticar a colonização portuguesa que, em sua opinião,


“rebaixa-se” ao nível dos índios:

Os norte-americanos e os ingleses poderão ser bem sórdidos em


suas transações com os naturais do país; o tráfico de “peles azuis” não
lhes deixou certamente as mãos limpas, mas não quereriam degradar ao
nível dos índios como o fazem os portugueses: não se abaixariam a
adotar-lhes os costumes”. (idem, p. 154)

O “elemento índio”, para o casal Agassiz, é o responsável pelo surgimento


de uma classe híbrida, sem expressão, o grande vilão do processo
miscigenatório:

Outra particularidade que igualmente impressiona o estrangeiro, é


o aspecto fraco e depauperado da população. Já o havia assinalado
anteriormente; mas, nas províncias do norte, isto é bem mais
impressionante que nas do sul. Não se trata apenas de ver crianças de
todas as cores: a variedade de coloração testemunha, em toda sociedade
em que impera a escravidão, o amálgama das raças. Mas no Brasil essa
mistura parece ter sido sobre o desenvolvimento físico numa influência
muito mais desfavorável do que nos Estados Unidos. É como se toda
pureza do tipo houvesse sido destruída, daí resultando um composto
vago, sem caráter e sem expressão. Essa classe híbrida, ainda mais
marcada na Amazônia por causa do elemento índio, é numerosíssima nas
vilas e nas grandes plantações... (AGASSIZ, 1975, p. 180).
39

Mais do que o índio aparece aí o preconceito contra o resultado da


miscigenação, o “híbrido”, representado pela figura “decadente” do mestiço:

Aqueles que põem em dúvida os efeitos perniciosos da mistura de


raças e são levados por falsa filantropia, a romper todas as barreiras
colocadas entre eles, deveriam vir ao Brasil. Não lhes seria possível negar
a decadência resultante dos cruzamentos que, neste país, se dão mais
largamente do que em qualquer outro. Veriam que essa mistura apaga as
melhores qualidades, quer do branco, quer do negro, quer do índio, e
produz um tipo mestiço indescritível, cuja energia física e mental se
enfraqueceu. (idem, p. 180, rodapé)

Os “bastardos” da mistura de raças são equiparados a cães, cujas


qualidades certamente sobrepujam às do miserável tipo “impuro”:

O resultado de ininterruptas alianças ente mestiços é uma classe


de pessoas em que o tipo puro desapareceu, e com ele todas as boas
qualidades físicas e morais das raças primitivas, deixando em seu lugar
bastardos tão repulsivos quanto os cães amastinados, que causam horror
aos animais de sua própria espécie, entre os quais não se descobre um
único que haja conservado a inteligência, a nobreza, a afetividade natural
que fazem do cão de raça pura o companheiro e o animal predileto do
homem civilizado (AGASSIZ, 1975, p. 184).

Em seu À Margem da História, em que relata sua experiência na região


amazônica, também Euclides da Cunha (1975) lança um olhar como que
“penalizado”, desalentador, sobre a paisagem e os seus raros habitantes.
Reportando-se ao passado, Euclides registra o seu caráter ilusório, diante de uma
realidade inalterável, na qual parece não haver progresso nem melhora, nem
evolução, corroborando, ainda que não intencionalmente, a teoria de que a
civilização dos trópicos está fadada a uma não-história:

São realmente reveladores os inúmeros relatos de cronistas e viajantes


que percorreram a Amazônia e deixaram impressões depreciativas sobre os
lugares e seus primeiros habitantes. La Condamine, que desce o rio Amazonas
em 1735, fala dos índios como inimigos do trabalho e indiferentes, incapazes de
previdência e reflexão, preservando da infância os defeitos, sem amadurecer. Em
sua opinião o homem americano ainda está na infância do mundo, pouco
diferindo das bestas.
40

Praticamente todos os viajantes que visitaram o paraíso infernal


amazônico, observa Gondim (1994), apontam os nativos como os agentes que
desarmonizam a ordem social instalada pelo branco. La Condamine, por exemplo,
pretendendo escrever um trabalho científico sobre a Amazônia, na sua opinião
enredou-se na escolha do que considerou notável e digno de registro,
engrossando a fileira dos detratores.

Para Bates (1979) os índios são como animais anfíbios, dado o extremo
vínculo com a água, com os rios. Em sua opinião o índio não passa de um
estranho nas regiões tropicais e a aparente bondade é provavelmente decorrente
muito mais da ausência de qualidades más do que da presença de boas
qualidades. Bates critica também o temperamento apático e indiferente dos
índios, assim como a ausência de ambição e a frieza de sentimentos, e a falta de
curiosidade e agilidade mental, presumindo que esses têm uma imaginação
embotada, sem vivacidade, generalizando essas e outras características
depreciativas para toda a raça indígena dos trópicos.

Cardoso de Oliveira (1978) considera um absurdo esse tipo de


generalização, porquanto a imagem unívoca e abstrata de um índio genérico é em
si mesma inverossímil, pois desconsidera (e mesmo ignora) a variedade cultural
inerente à paisagem indígena brasileira.

Ocorre que “os viajantes e conquistadores que por aqui andaram


manifestaram seu fascínio ou estranhamento em relação à natureza e aos povos
nativos a partir dos parâmetros da chamada “civilização ocidental”, tida como
física, econômica e culturalmente superior” (COSTA, 2000, p. 123).

Arruda (1998) refere-se às imagens sobre o mundo recém descoberto


como representações de um imaginário pré-concebido com o qual era necessário
familiarizar-se:

As formulações edênicas, projetadas sobre a América, criavam


uma ponte que aproximava o Novo Mundo do velho, integrando-o ao seu
imaginário, preenchendo o lugar antes ocupado pelas terras longínquas ...
De certa forma, edenizar a América significava estabelecer com ela uma
camaradagem, uma cumplicidade que repousava no mundo imaginário.
Encontrava-se ali algo que, de certa forma, já estava concebido: via-se o
que se queria ver, o que se ouvira dizer (ARRUDA, 1998, p. 22).
41

Relativamente ao elemento humano, em detrimento da imagem do ‘bom


selvagem’ venceu a diferença: “infernalizou-se o mundo dos homens em
proporções jamais sonhadas. [...] Os índios seriam o foco mais vivaz da
ambigüidade, retraduzida na detração.” Esta se estendeu do índio para os negros
e daí para os colonos em geral (ARRUDA, 1988, p. 23).

O índio, e depois o negro seriam bárbaros, animais, demônios.


Denegrindo-os, procedia-se à cristianização. Detratando-os, estava
justificada a escravidão. Todavia, estas não eram as únicas
representações em presença. Elas constituíam sim, as mais pragmáticas,
aquelas que melhor solucionavam a ambivalência diante do outro naquela
situação (idem, p. 24).

Na descrição dos pesquisadores que no século XIX percorreram a Bacia


Amazônica, observa Vicentini:

[...] acoplava-se, ao pensamento quantitativo e classificatório da


natureza, um forte sentido moral de civilização. Os povos primitivos eram
comparados a outros animais e aos povos negros, numa referência aos
pressupostos da escravidão, mesmo que o índio também fosse
discriminado pela crença em sua apatia em relação ao trabalho, já que
esses idéias se colocaram no sentido de domesticação do mundo a
serviço do homem ocidental (VICENTINI, 1986, p. 113).

É digno de registro, segundo Nogueira (2000, p. 111), a surpresa que um


missionário do século XVIII teve ao ouvir de um índio o que mesmo estava
pensando, porque na concepção do religioso, nunca se soube que raça de índios
do Amazonas, fosse capaz de pensar. “Ou seja, foi esta construção que
predominou para definir o habitante da região. Diferente de outros, um vencido.”

Na opinião de Arruda (1998, p. 21) as descrições da nova terra ressaltando


a natureza inauguram um fluxo de representações que passaria a transitar em
mão dupla entre o Brasil e o Europa. “Elas evocam a alteridade, cuja descoberta
renova nosso saber sobre o homem e questiona a imagem que temos de nós”:

A alteridade serviu de fermento para a renovação dos repertórios


mentais. Urgia formular um novo senso comum que incorporasse a
natureza tropical e as populações indígenas. [...] Novos sistemas
representacionais eram convocados pelas informações que se produziam,
confirmando sua aderência às situações de novidade, seja nas sociedades
ditas complexas, seja nas anteriores. Elas trabalhavam pelo
estabelecimento dum senso comum condizente com os novos tempos
(idem, p. 21).
42

O novo, impactante, vislumbrado pelos colonizadores, na opinião de Arruda


provocou a necessidade de acomodação de sentimentos ambíguos como
surpresa e medo, atração e repulsa, fazendo com que no processo
representacional certas características prevalecessem em detrimento de outras.
“É nesse encontro das diferenças que mergulham algumas das fundas raízes da
maneira brasileira de representar a si e a seu espaço” (ARRUDA, 1998, p. 25).

Durante a colonização, a representação da natureza ofuscou a


presença humana; ao surgir o Brasil-nação ela contaminou tudo e todos
com o exotismo, embaçando a vista de si própria. [...] Essas
representações omitiram a relação da sociedade com a natureza enquanto
uma relação social, terminando por encobrir tanto uma quanto a outra . [...]
A construção da “brasilidade” teria se dado, portanto, através de
sucessivos tratamentos da diferença, que vão configurando um quadro de
elaboração e apropriação progressiva da alteridade, sob formas diversas.
(idem, p. 39-40)

A propósito da formação do pensamento social na Amazônia, pontua


Weigel (2000, p. 22-3) que essa região

sempre foi composta de um mosaico de concepções, mutante ao longo do


tempo, ao longo da sucessão de tentativas de ocupação. O que é
importante anotar aqui é que com a chegada da civilização ocidental, e
posteriormente do capitalismo, ocorre a implantação de um modo de
pensar dominante, mas que não consegue tornar-se predominante. É um
modo de pensar de características hegemônicas, que não instala
plenamente a sua hegemonia, pelas suas limitações inerentes e pela
superioridade localizada de outros modos que com ele se chocam,
balizados pela especificidade das interações homem-ambiente e pelo
arcabouço cultural subjacente e determinante.

Acredita o autor que, por ser um fragmentado, o pensamento social sobre a


Amazônia não é considerado em sua totalidade, o que “leva à perpetuação da
dependência regional, do desgaste sociocultural e de propostas equivocadas de
desenvolvimento” (WEIGEL, p. 30).

Segundo Cardoso de Oliveira (1978, p. 257), na época da ocupação


portuguesa, que se inicia em princípios do século XVII, a Amazônia era habitada
por um grande número de tribos indígenas, cuja cultura era geralmente de
subsistência, com base no cultivo de roças de mandioca, e de vida mais ou
menos sedentária em aldeias. “A tribo como entidade política era pouco definida,
43

não obstante constituir uma unidade social resultante de língua, padrões culturais
e território comuns”.

O processo de aculturação entre as sociedades – a tribal e a nacional – foi


facilitado, segundo ele, por fatores como a simplicidade cultural do colono e a sua
dependência do índio, não apenas como mão-de-obra, mas como possuidor de
um complexo sistema de adaptação às novas condições ecológicas com que este
se defrontava. “A dominação secular e religiosa, apoiada em força de armas foi,
nessa região, orientada para a integração do índio na sociedade colonial”
(CARDOSO DE OLIVEIRA,1978, p. 268).

O resultado do contato foi a destribalização dos grupos mais expostos, que


habitavam as margens do Amazonas e de seus afluentes. Indivíduos de diferentes
tribos foram reunidos nas vilas, aldeias missionárias ou transferidos para os
centros coloniais. As diversas línguas foram substituídas por um dialeto comum,
com base no tupi-guarani, falado pelas tribos costeiras, porém adaptado pelos
missionários e colonos. O processo de absorção da massa indígena não foi,
entretanto, pacífico.

Galvão (1976) enfatiza que o elevado contingente indígena característico


da formação étnica regional foi na Amazônia usado em maior número e muito
mais intensamente que em qualquer outra região do Brasil. E isso devido à
dependência maior sobre ele do colono, a quem faltava o conhecimento da
técnica da exploração dos produtos naturais e da floresta.

As tribos indígenas do alto fornecem o braço de trabalho na


medida em que se incorporam à sociedade rural e absorvem sua cultura,
contribuindo ao mesmo tempo para a persistência e fixação de elementos
ameríndios já integrados aos hábitos de vida do caboclo (GALVÃO, 1976,
p.11-12).

A propósito do processo de colonização da Amazônia, viabilizado pela


inserção compulsória da mão-de-obra indígena, Tavares Bastos faz referência ao
caráter ideológico determinante daquelas condições:

[...] nos casos onde a colonização de faz por meio de sistemas de


trabalho compulsório, a ideologia operante tenderá a ser autoritária,
44

dispondo os indivíduos em grupos distintos e hierarquizados, tendo como


limite as ideologias raciais. [...] À população dependente não cabe nessa
ideologia papel algum, exceto submeter-se e funcionar segundo os
padrões instituídos, identificando-se com a ideologia dominante e
procurando traduzir em termos dela suas crenças e condutas. Tal ideologia
de maneira alguma pretende oferecer-lhe elementos para uma opção de
vida da qual ela própria será o agente, mas somente compilar e codificar
um conjunto de obrigações que têm efetivamente a seguir (TAVARES
BASTOS, 1975, p. 113).

No entanto, nem os europeus de outrora nem os brasileiros de hoje


constituíram uma frente maciça e compacta, e desse modo, diluiu-se e foi
enfraquecido seu poder de influenciar culturalmente as sociedades indígenas.

Por outro lado, a guerra e a captura maciça de cativos


determinaram a desorganização da maioria dos grupos indígenas e a
assimilação forçada dos indivíduos no contexto urbano. O que restou da
população indígena, refugiou-se nas cabeceiras dos rios, ou em áreas
ainda inexploradas, onde remanescentes são encontrados ainda hoje
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 274).

Com o período áureo da borracha uma mudança social se desenvolve,


firma-se e empresta nova fisionomia às cidades e povoados, vindo a
intensificação de atividades econômicas com um sistema original de crédito
fornecer a base em que se desenvolveu um novo esquema de classes sociais. As
distinções entre índios e brancos, na realidade distinções culturais e étnicas que
se refletiam na organização social, praticamente desapareceram (GALVÃO,
1976).

Uma outra hierarquia substituiu o modelo colonial e pós-colonial, dando


lugar aos caboclos, coletores de borracha, recrutados entre índios, mamelucos,
nordestinos e portugueses, e os patrões ou financiadores. De acordo com Galvão
(1976, p. 113):

A “cidade” e a “aldeia”, tradicional divisão das povoações


amazônicas, identificando na “cidade o elemento branco ou mesclado,
porém de cultura e situação social “branca”; na “aldeia”, o índio
domesticado desapareceu, cedendo lugar a um único local segmentado
em “gente de primeira” (comerciantes, funcionários de categoria, “famílias
de tradição”) e “gente de segunda” (caboclos, roceiros ou seringueiros).
45

A imagem de inferioridade do homem amazônico, que percorreu gerações,


tem nos caboclos a sua representação, constituindo, ao que tudo indica, elemento
de auto-referência bastante forte para muitos integrantes da população local. O
estudo de Lima (1997) sobre uma comunidade amazônica reflete suas
impressões sobre esse conceito depreciativo em relação àqueles habitantes:

Em geral, as populações locais têm, ao lado de uma identidade


própria, uma imagem, muitas vezes estereotipada, atribuída a elas pelos
grupos sociais com os quais interagem na sociedade regional. No caso de
Mamirauá, as populações locais apresentam duas categorias de
referência: uma a de caboclo, usada pela sociedade para identificá-las, e
outra, a de pobres, que é a categoria mais abrangente com que se
identificam (LIMA, 1997, p. 305).

Segundo a autora, a representação cultural de um “típico amazônida rural”


inclui também conceitos de valor, na maioria depreciativos, do ribeirinho:

A “indolência” e a “preguiça” do caboclo são elementos de um


estereótipo que oferece uma interpretação moral de sua pobreza. [...]
Como a população “cabocla” firmou-se em número e em importância
econômica nos meados do século dezenove, quando idéias racistas
dominavam o pensamento social da elite ocidental e eram copiadas pelos
brasileiros, a posição social da população cabocla foi explicada como
sendo conseqüência do efeito deletério da mistura de raças. Essa busca
por atribuições próprias para explicar a condição social inferior
permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje (LIMA, 1997,
p.306).

Embora não incorporem de forma consciente o estereótipo, na análise de


Lima os caboclos acabam por corroborar o estigma da preguiça, indolência e
inferioridade física e intelectual atribuído a eles:

O retrato do caboclo, no entanto, não corresponde a uma


identidade social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido
a outras classes e categorias sociais. Sua própria construção de
identidade não lhes confere uma noção de coletividade demarcada por
uma nítida diferenciação social, como a noção de caboclo poderia supor.
[...] De certo modo, incorporam, embora de forma invertida, o estereótipo
que lhes é atribuído, já que sua condição estruturalmente desprivilegiada
lhes oferece a possibilidade de negar qualquer responsabilidade por sua
sorte e se posicionar como merecedores “naturais” de auxílio. Enquanto o
estereótipo atribui a causa de sua pobreza à indolência natural de sua
“raça”, sua própria interpretação é de que, como não são responsáveis por
sua condição social, são obrigatoriamente merecedores (carentes) de
ajuda. Essa auto-imagem, reforçada e manipulada por patrões e políticos,
principalmente em época de eleição, é de baixa auto-estima, e constitui
mais uma dificuldade que têm que enfrentar para melhorar seu padrão de
vida (LIMA, 1997, p. 307).
46

Essas representações deturpadas, afinal, têm sua origem, em última


instância, na dificuldade dos europeus em reconhecer que os povos indígenas
possuíam uma história, uma subjetividade, tal qual os “civilizados”, pois a alma
indígena era tida como inferior e imanente à sua condição de bestialidade. Essa
idéia de uma suposta incapacidade e ingenuidade dos indígenas é repassada às
gerações desde os primeiros anos da escola, pois quando é ensinado que os
índios ficaram felizes e impressionados com a chegada dos “descobridores”, a
própria escola está colaborando para a concepção de que “o índio é um bobo, ao
mesmo tempo que é um cara bom, porque deixou o outro chegar” (GAMBINI
1999, p. 86).

Por outro lado, a visão etnocêntrica e preconceituosa fez com que e o


estilo de vida despojado do indígena fosse traduzido pelos europeus como
preguiça e indolência, e a sua docilidade e brandura percebidas como palermice e
lerdeza correspondendo, em última análise, a ausência de inteligência e cognição
(TORRES, 2003).

O preconceito étnico é uma idéia articulada por processos sociais


de longo alcance e intensidade como no caso de relações econômicas e
culturais mundializadas, transpassadas pela cultura de fronteira. [...] As
relações de poder encarregar-se-iam de criar o racismo e seus
desdobramentos nas sociedades ocidentais (TORRES, 2003, p. 26).

Considera a autora que a exotização constituiu-se em um recurso utilizado


pelas civilizações ocidentais para identificar sociedades e grupos humanos
culturalmente diferenciados. Imagens e metáforas passaram dessa forma a ser a
“base real sobre a qual o Ocidente explicitou sua vocação exploratória sobre
outros mundos [...], que iria permitir o renascimento definitivo do outro, mesmo
que o presentificando como exótico, primitivo, selvagem” (CARVALHO apud
TORRES, 2002, p. 83).

A literatura colonial, segundo Souza (2001) deixou um legado marcante na


forma determinada de expressar a região a ponto de, muitos séculos depois, ser
capaz de reproduzir-se com considerável força:

O espírito simulador do discurso colonial legou o velho e gasto


conceito de “Amazônia, reserva natural da humanidade”.
47

Contraditoriamente, sua permanência é hoje a comemoração do assalto


indiscriminado à floresta, da transformação da selva em deserto e da
tentação de vergar a espinha para as diversas ações retóricas de
solidariedade que deseja congelar o primitivo. Discurso colonial e discurso
preservacionista são aparições do mesmo estoque de arrogância. Na mão
direita, o processo de extermínio dos índios e a violação da natureza por
uma lógica econômica ensandecida. Na mão esquerda, o bálsamo de um
discurso que não é mais que a velha tradição do banquete de palavras,
das metáforas discrepantes que pintam tudo em levitações da gramática e
do significado, numa anacrônica dimensão equatorial do barroco, para que
o homem das selvas nunca se liberte do primitivismo (SOUZA, 2001, p.
62).

Paiva (2002) fala de um processo de “moldagem” pelo qual a Amazônia


tem passado ao longo do tempo, por parte de seus “intérpretes”, moldagem essa
de acordo os seus diferentes interesses econômicos, políticos e culturais.

[...] podemos dizer que foi criada uma verdadeira “tradição de um


pensamento sobre a Amazônia”, possível de ser detectada tanto por um
aspecto sincrônico (o caráter auto-referente de seus intérpretes) quanto
por um aspecto diacrônico (conforme os diversos contextos de sua
apropriação). Enfim, as várias Amazônias foram devidamente “inventadas”
em função do grau de apropriação que delas se fazia (PAIVA, 2002, p. 67).

A história da Amazônia, reforça Torres (2002, p. 84), tem sido escrita desde
a época da colonização “com a letra minúscula do preconceito e da distorção
mentirosa”. Em sua opinião, não há dúvidas de que o preconceito constitui uma
construção social profundamente arraigada ao imaginário social, independente da
nacionalidade e sentido de pertencimento a determinada cultura. “O preconceito
assume uma dimensão simbólica gratuita, às vezes até inconsciente, mas que
solda idéias e reforça o sistema de estereotipia”.

Falar sobre o homem amazônico, portanto, especificamente neste caso


aquele denominado “caboclo” e sua história (ou, como queriam os seus
detratores, não-história), implica re-visão de estereótipos e preconceitos
embutidos também nas visões sobre a Amazônia, implica em avanços e
retrocessos em trilhas labirínticas, como os igapós da região, e por caminhos
imprevisíveis como os igarapés, que fluem incessantemente em várias direções e
para rumos ignorados.
48

2. CABOCLO – UMA IDENTIDADE POSSÍVEL?

“ O espelho não vê coisas, mas imagens de coisas


que significam outras coisas...”
Ítalo Calvino5

A
história do caboclo amazônico é uma história de exclusão, de silêncios
e ausências, evidenciada não somente pelas parcas menções nos
registros históricos e no discurso científico nacional, mas também por
sua quase invisibilidade no panorama social brasileiro. O seu papel no mundo
amazônico e na sociedade nacional tem sido marcado por evasivas e
indefinições. Falar a respeito do caboclo, sobretudo se referido ao elemento assim
denominado na região amazônica implica, portanto, um trabalho artesanal: é
juntar pedaços, criar conexões, percorrer caminhos que se cruzam, tentando
constituir um conjunto coerente de sentido.

A invisibilidade do caboclo amazônico é um contraponto à excessiva


visibilidade da região amazônica na atualidade. Objeto de atenção sem
precedentes, hoje grande parte da humanidade, principalmente o mundo
científico, volta os olhares para aquela que se configura como um manancial
infinito de possibilidades: a Amazônia, de natureza portentosa e onipotente e
recursos naturais incalculáveis. Desde sempre estereotipada aos olhos
estrangeiros, a Amazônia é vista quase como uma entidade mágica, com vida
própria, enquanto os seus habitantes, aqui representados na figura do caboclo,
literalmente ignorados, esmagados pela paisagem natural, imobilizados dentro do
conceito de natureza.

Originário da fusão de culturas tão diferentes, o mestiço passou a


caracterizar a representação mesma da alteridade, o avesso do nativo puro, um
rascunho do índio e arremedo do europeu. Para os habitantes da Amazônia em

5
Em As Cidades Invisíveis.
49

geral, o índio não é definido como "caboclo", e este, com raras exceções, não se
reconhece como tal, nem se sente parte de uma pretensão de "etnia",
considerando-se grupo étnico aquele que se concebe em si mesmo bem
diferenciado dos outros grupos e assim é percebido por aqueles. Por outro lado,
os tidos como caboclos também não se consideram índios e, freqüentemente,
negam uma ascendência indígena, apesar das características somáticas
evidentes.

Lima (1999) observa que o termo caboclo usado coloquialmente não se


refere exclusivamente a um grupo social, nem corresponde a um grupo étnico.
Segundo a autora,

De acordo com Barth (1969:13), os traços críticos para a definição


de um grupo étnico são autodenominação e denominação pelos outros.
Seguindo a definição de Barth, nem mesmo a população dos ameríndios
assentados a que se chamou de caboclos durante os tempos coloniais
poderia ser considerada um grupo étnico. Embora esses primeiros
caboclos fossem claramente distintos dos europeus a partir de uma base
étnica, elas não constituíram um grupo político nem possuíram uma
identidade coletiva (LIMA, 1999, p. 21).

Embora o termo seja utilizado em outras regiões do país, observa a autora,


a combinação de um “tipo racial” específico a uma região geográfica está
relacionada à história da Amazônia. “Em contraste com outras regiões do Brasil, a
colonização da Amazônia incluiu políticas para integrar (ou seja, escravizar,
estimular casamentos mistos e “civilizar”) a população indígena à sociedade
colonial” (LIMA, 1999, p. 6). Por outro lado a exclusão do caboclo da História e do
discurso científico está ligada à idéia da Amazônia como um vazio social, um
deserto verde no qual é possível efetuar qualquer programa de desenvolvimento e
exploração dos recursos naturais.

Esse “renitente mito” da Amazônia como um vazio demográfico, segundo


Souza (2001, p. 101), resultante da imagem amplamente divulgada pelos
viajantes em toda a Europa e entre as elites intelectuais brasileiras, foi de pouca
ou nenhuma valia para os habitantes da Amazônia, cujas vidas foram
profundamente afetadas no decorrer dos séculos pelas conclusões desses
homens de ciência, raros dos quais “se importaram realmente com a sorte dos
nativos ou com o fato de já existir, pelo menos no alvorecer do século XIX, uma
50

civilização tipicamente amazônica, amalgamada pelos sistemas coloniais com as


sociedades tribais.”

Em razão dessa idéia de “vazio demográfico”, historicamente fixada, reitera


Morán (1990), os europeus trouxeram e utilizaram sistemas de exploração de
recursos naturais inadequados às peculiaríssimas condições do meio ambiente
amazônico, no qual existiam e continuam a existir física e culturalmente
populações que conhecem a fundo o ambiente em que vivem. O
desconhecimento histórico verificado (e justificado) na época da conquista tem
sido repetido nas práticas exploratórias subseqüentes.

Parker (1985, xx) refere-se aos primeiros caboclos como os culturalmente


destituídos sobreviventes da destruição européia. Foram eles, segundo o autor,
que deram início a um lento e difícil processo de forjar um padrão novo, um
contexto novo para sua existência na Amazônia.

In the context of the region’s history, caboclos are the indigenous,


rural inhabitants of Amazonia who, for the most part, reside in small
communities within riverine environs using Amerindian technologies in
subsistence activities. […] Indigenous is employed here because caboclos
are directly linked historically, culturally, and biologically to the Amerindian
populations that occupied lowland Amazonia at the time of European
contact; in effect, the “first caboclos” were the culturally disenfranchised
survivors of the (predominantly) floodplain Amerindian populations that
were destroyed by the Portuguese. These first caboclos, including their
mixed-blood offspring, began, without benefit of script or history, the slow
and difficult process of forging a new pattern, a new context, for existence
in Amazonia. 6

É fato que o uso do termo transmite um significado preciso ao receptor,


pois é de amplo uso e conhecimento. Mas, questiona Lima (1999, p. 8), “se é um
termo de identificação do observador, qual é a identidade própria das pessoas às
quais o termo se refere?” Em trabalho de pesquisa sobre o assunto, a autora
constatou que os popularmente e mais especificamente denominados “caboclos”,
no caso os pequenos produtores rurais amazônicos, não têm uma

6
No contexto da história da região, caboclos são os indígenas habitantes rurais da Amazônia que, em sua
maioria, vivem em pequenas comunidades nos arredores dos rios, usando tecnologia ameríndia em
atividades de subsistência. [...] “Indígena” é aqui empregado porque os caboclos estão historicamente,
culturalmente e biologicamente ligados diretamente à população ameríndia que ocupou a planície amazônica
na época do contato europeu; com efeito, os “primeiros caboclos” foram predominantemente os culturalmente
sobreviventes das populações ameríndias que foram destruídas pelos portugueses. Estes primeiros
caboclos, incluindo seus descendentes miscigenados, começaram, sem benefício de registros ou história, o
lento e difícil processo de forjar um novo padrão, um novo contexto para existência na Amazônia.
51

autodenominação, sendo a categoria social caboclo caracterizada pela ausência


de uma identidade coletiva forte. “A população rural tem ao contrário, identidades
locais, do ponto de vista de uma observação externa que nela percebe traços
comuns.”

Afirma Lima (1997, p. 106) que, como a população “cabocla” firmou-se em


importância numericamente e economicamente em meados do século XIX,
“quando idéias racistas dominavam o pensamento social da elite ocidental e eram
copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi explicada
como sendo conseqüência do efeito deletério da mistura de raças”, hipótese
assimilada pelo nativo.

Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição


social inferior permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje.
Da mesma forma que o papel das políticas coloniais que determinaram a
formação de uma classe camponesa subordinada à elite colonial foi
ignorado no século passado, hoje, a preguiça atribuída pelo estereótipo
substitui uma compreensão apropriada das condições desfavoráveis que
esta população enfrenta para se reproduzir no contexto da formação de
uma estrutura de classes que acompanha a expansão mercantil-capitalista
na Amazônia (LIMA, 1997, p.106).

Efetivamente, segundo a autora, o retrato do caboclo não corresponde a


uma identidade social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a
outras classes e categorias sociais.

Sua própria construção de identidade não lhes confere uma noção


de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação social, como a
noção de caboclo poderia supor. Em sua fala, a categoria de identidade
mais abrangente que usam para se referirem a si mesmos é a de “pobre”,
seguida, mais recentemente, da identidade de “ribeirinho”, introduzida ao
longo do trabalho de evangelização católica (idem, p. 107).

A dificuldade de precisar o termo é antiga. Wagley (1985), citando o


trabalho realizado por ele e Eduardo Galvão em uma comunidade amazônica
(Gurupá) nos idos de 1940, menciona os obstáculos encontrados por eles para
“localizar” fisicamente os ditos “caboclos”. Desde os primeiros momentos os
informantes, ao direcioná-los aos “caboclos de Gurupá”, automaticamente se
excluíam, apontando outros grupos que, por sua vez, indicavam outros, sempre
relacionando o considerado como pertencente a um status inferior.
52

In the late 1940s when Eduardo Galvão and I were preparing for
research in Gurupá which we gave the fictious name of Itá in our
publications, our colleagues, government officials and others in the city of
Belem exclaimed when we outlined our research plans. “So you are going
to study the caboclos of Gurupá.” When we reached Gurupá, our
informants and friends in the town looked puzzled at first when we used the
term. Then, they told us that the caboclos da beira (river bank inhabitants)
lived on the alluvial islands across the river channel. They excluded the
farmers who lived on the upland terra firme; the caboclo was a rubber
gatherer cultivating only a small plot in quick growing corps in the annually
flooded varzea and adding to their food supply by hunting and fishing. They
laughed and told us stories of the rustic behavior of the caboclos; they
arrived in town without shoes or sandals and complained of the hard
streets. (They were not paved) Later, we spent time on the islands coming
to know the so called caboclos only to find that they did not identify
themselves as such. They pointed to the north toward the Brazilian-Guiana
border. “There are caboclos there”, they explained, “and they are nude and
hunt with bows and arrows.” In short, to them the caboclo is the
autochthonous Indian. Darrel Miller in this paper states correctly that the
term is mildly pejorative. As our experience in Gurupá indicates it is used
by segments of the Amazon population for those lower in socio-economic
status than their own. No one, even the innocent Indian, uses the therm to
identify themselves. In the history of the Amazon, the term caboclo was
first used to refer to the Amerindian. Then as miscegenation took place, it
referred to the offspring of a European male and an Indian women
(synonym “mameluco”). Finally, by the mid-19th century it came to
designate the rural rustic7 (WAGLEY, 1985, p. viii).

Quem é, afinal, o denominado “caboclo”? Para chegar a uma definição é


preciso fazer uma distinção básica entre o significado “nacional” e sentido
“regional” do termo. Em nível nacional, grosso modo, o termo caboclo é usado
para designar uma pessoa que vive no interior do país e ocupa uma posição
social inferior do que aquela que está falando. No entanto, se no caso do caboclo
do sul do Brasil o componente índio é quase nulo, no caboclo amazônico é, ao
contrário, predominante, fato que contribuiu para conferir ao caboclo amazônico
uma configuração particular em comparação à cultura brasileira geral.
7
Nos idos de 1940, quando Eduardo Galvão e eu estávamos preparando para pesquisa em Gurupá, à qual
nós demos para o nome fictício de Itá em nossas publicações, nossos colegas, funcionários do governo e
outros na cidade de Belém, exclamavam quando nós esboçávamos nossos planos de pesquisa. "Então vocês
vão estudar os caboclos de Gurupá." Quando nós localizamos Gurupá, nossos informantes e amigos na
cidade “olharam atravessado” na primeira vez que nós usamos o termo. Então, eles nos disseram que os
“caboclos da beira” (os habitantes de ribanceiras de rio) viviam nas ilhas aluviais do outro lado do canal. Eles
excluíram os fazendeiros que viviam no planalto, em terra firme; o caboclo era um coletor de borracha que
cultivava só um canteiro para colheitas rápidas na várzea anualmente inundada, para complementar a sua
provisão de comida oriunda da caça e pesca. Eles riram e nos contaram histórias do comportamento rústico
dos caboclos; eles chegavam na cidade sem sapatos ou sandálias e reclamavam das ruas duras (elas não
eram pavimentadas). Depois de passarmos um tempo nas ilhas viemos a saber que eles chamavam
caboclos para designar aqueles com quem não se identificavam. Eles apontaram ao norte em direção à
Guiana brasileira. “Há caboclos lá", eles explicaram, "e eles são nus e caçam com arcos e setas." Em
resumo, para eles o caboclo é o índio nativo. Darrel Miller em seus estudos afirma corretamente que o termo
é ligeiramente pejorativo. Nossa experiência em Gurupá indica que o termo é usado por segmentos da
população Amazônica em relação àqueles de menor status sócio-econômico que eles próprios. Ninguém, até
mesmo o índio inocente, usa o termo para se identificar. Na história da Amazona, o termo caboclo foi usado
para se referir primeiro o ameríndio. Quando a miscigenação aconteceu, referiu-se à descendência de
europeus com mulheres índias (sinônimo de “mameluco"). Finalmente, na metade do século XIX, veio a
designar o homem rústico rural.
53

Lima (1999) identifica no discurso coloquial amazônico basicamente dois


usos para o termo caboclo, um objetivo e um relacional.

O uso objetivo é mais restrito, aparecendo na mídia, na ficção


literária e nos discursos políticos, quando designa a população rural
indígena amazônica. Apesar de se referir a uma população concreta, esse
uso está associado a uma avaliação subjetiva e ambivalente da população
rural. Tanto na literatura quanto no discurso regional, o retrato do caboclo
vai de um fracasso humano, um tipo preguiçoso e atrasado, a um
indivíduo sábio e racional, perfeitamente adaptado ao meio ambiente
social e ecológico da Amazônia. [...] Um fator comum a essas visões
opostas é a questão da pobreza do caboclo. O estereótipo caboclo e as
opiniões que se têm sobre as qualidades do meio ambiente são usados
para explicar a pobreza humana e o subdesenvolvimento da Amazônia
(LIMA, 1999, p. 20).

Quando se refere à posição de inferioridade em relação ao interlocutor,


explica Lima (1999, p. 7), o termo caboclo é empregado como categoria
relacional:

Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem as


qualidades rural, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja,
analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e
civilizada. Como categoria relacional, não há um grupo fixo identificado
como caboclos. O termo pode ser aplicado a qualquer grupo social ou
pessoa considerada mais rural, indígena ou rústica em relação ao locutor
ou a locutora. Nesse sentido, a utilização do termo é também um meio de
o locutor ou a locutora afirmar sua identidade.

No entanto, esclarece a autora, nem a natureza conceitual nem a relacional


do termo são explícitas. Como resultado, “o uso coloquial do termo leva à
suposição de que existe uma população concreta que pode ser imediatamente
identificada como cabocla e carrega a identidade de caboclos” (idem, p. 7).

Na comunidade amazônica pesquisada por Wagley (1985), por exemplo, o


termo era usado com dois significados específicos: um indicando e status social e
outro as características físicas, às quais eram associados estereótipos
comportamentais como “são tímidos e preferem viver como animais”, “são
traiçoeiros”, “são ótimos pescadores e caçadores”, “são preguiçosos” etc.

The term as still used in Gurupá has a double meaning – one


indicating low social status and another indicating American physical
characteristics. Along with such terms as branco (white), preto (black),
54

moreno (mulatto), the term caboclo (sometimes the synonym tapuia) was
used to describe a person’s physical appearance. The caboclo has straight
black hair, bronze skin, and little body hair. As with the other physical types
there are behavioral stereotypes associated with the caboclo physical type.
Caboclos are thought to be timid because they prefer to live by themselves
“like animals”. They are suspicious and tricky. They are excellent hunters
and fishermen. But they are lazy – “they do not plant gardens but live from
the sale of a little rubber and by fishing for their meals.” Yet these
stereotypes are aimed not only at those of caboclo physical type but also at
all rural collectors. […] Much of the confusion in Amazonia as to who is a
caboclo derives from the changing meaning of the term over time and the
segment of the population to which it refers8 (WAGLEY, 1985, p. vii– ix).

Estas imagens estereotipadas, analisa Lima (1999), dizem respeito ao


arquétipo do caboclo, composto de traços culturais que distinguem seu modo de
vida de uma existência branca e urbana.

De fato, a existência de uma população rural que tem um estilo de


vida distinto, em estreito relacionamento com a floresta, justifica que ela
seja agrupada como uma categoria social específica. Além disso, as
políticas coloniais iniciais induziram à criação de uma classe amazônica
subalterna, com a qual a categoria social caboclo está intimamente
associada (LIMA, 1999, p. 13).

A autora concorda com Wagley, no entanto, no sentido de que o conceito


regional do caboclo é mais que uma referência a essa população rural ou ao seu
estilo de vida, incluindo um estereótipo que caracteriza esse habitante da
Amazônia como “preguiçoso, indolente, passivo, criativo e desconfiado. E os
mesmos traços culturais que distinguem os caboclos [...] são tomados como
evidência de inferioridade, pois são vistos como primitivos” (LIMA, 1999, p. 13).

Brondízio9 (s.d.) faz referência à dificuldade de categorização do termo


caboclo também com relação a classificações étnicas na antropologia, apontando
como errônea a generalização de caboclos como sinônimo de agricultores, em
razão deste termo englobar duas outras categorias na Amazônia brasileira:
8
O termo como ainda é usado em Gurupá tem duplo significado: um indicando baixo status social e outro
indicando características físicas americanas. Da mesma forma que termos como branco, preto e moreno, o
termo caboclo (às vezes sinônimo de tapuia) era usado para descrever a aparência física de uma pessoa. O
caboclo tem cabelo preto liso, pele bronzeada, e pouco pelo no corpo. Como com os outros tipos físicos há
estereótipos de comportamento associados com o tipo físico do caboclo. Pensa-se que os caboclos são
tímidos porque eles preferem viver entre si "como animais". Eles são desconfiados e traiçoeiros. Eles são
excelentes caçadores e pescadores. Mas eles estão preguiçosos - "eles não plantam jardins, mas vivem de
pequenas vendas de borracha e pescando para as suas refeições". Estes estereótipos não são somente
dirigidos ao caboclo tipificado fisicamente, mas também a todos os coletores rurais. […] Muito da confusão na
Amazônia sobre quem é um caboclo deriva da variação do significado do termo com o passar do tempo e do
segmento da população ao qual se refere.
9
Texto obtido em endereço eletrônico.
55

colonos migrantes da zona rural e habitantes da periferia urbana que cultivam


pequenas agriculturas de subsistência como complemento de renda. Diferenças
óbvias entre os caboclos amazônicos e os novos colonos, segundo ele, tornam
desnecessárias elaborações sobre as suas particularidades sócio-culturais e
históricas, deixando claro que tal definição não dá conta da especificidade
histórica do caboclo e o seu modo particular de produção, baseado em
conhecimento adaptativo do seu ambiente.

Lima (1999, p. 17) também enfatiza a necessidade de distinção entre os


colonos e os “verdadeiros” caboclos. Segundo ela, embora não seja possível
precisar o quantitativo de migrantes que adentraram a região, “foi grande o
suficiente para prover uma clara distinção entre o caboclo e as populações
nordestinas durante a primeira metade deste século.”

A maneira de lidar com o ambiente amazônico e o comportamento


econômico do caboclo são componentes centrais do seu estereótipo, o que na
avaliação de Lima (1999), ajuda a explicar o simbolismo masculino do termo,
atrelado ao papel dos homens em tares de subsistência como caça e pesca,
ligadas à natureza. A mulher cabocla, apesar de desempenhar um papel
importante nas atividades de subsistência da família, é mais freqüentemente
associada ao estereótipo feminino da sensualidade e da disponibilidade sexual,
herdado da imagem da mulher índia divulgada pelos colonizadores.

Torres (2003) acrescenta que o jeito introspectivo da mulher “caboca” 10 da


zona interiorana do Amazonas é freqüentemente interpretado também como
“rudeza do tipo brava, amuada, sonsa, calada e arredia”, sem considerar que os
nativos amazônicos, de modo geral, têm esse comportamento silencioso, um
tanto arredio, que tem a ver com a vida calma do interior e a estreita relação do
caboclo com esse ambiente, traduzindo-se como uma expressão cultural desse
povo.

O uso objetivo do termo caboclo pretende especificar uma categoria social


à qual falta um termo próprio de autodenominação e aponta para o processo
histórico de sua constituição. Para reconstruir o percurso problemático da
10
Forma utilizada pela autora.
56

aquisição de uma possível “identidade” para o mestiço amazônico, então, é


preciso recorrer à história das diferentes origens do mesmo termo "caboclo". Para
isso se faz necessário considerar as raízes do termo e o contexto nos quais foi
modelado ao longo do tempo, e comparar com o que significa hoje ser "caboclo".
Embora não seja possível neste estudo afirmar a existência de uma identidade
cabocla, de acordo com os critérios étnicos, teoricamente pode-se reconstituir o
processo de elaboração dessa denominação como “identidade simbólica”.

2.1 A propósito do termo “caboclo”

De acordo com Torres (2003, p. 109), a primeira versão escrita desse termo
aparece no Alvará Régio de 4 de abril de 1775, no qual uma autoridade
portuguesa proibia o uso do termo cabocolos “ ou outro semelhante, que se
pudesse tomar por injurioso” aos vassalos casados com índias. Tal proibição faz
deduzir “que o termo “cabocolo” estava associado a algo pejorativo, de
característica negativa, a ponto de ser proibido o emprego desse termo para
designar o colono matrimoniado com a indígena.”

Com o passar do tempo, a palavra “cabocolo” foi ganhando outros


significados e evolução. Na acepção de Teodoro Sampaio, estudioso dos índios
tupinambás, o termo é “caboclo” e não “cabocolo” e é originário do tupi-guarani
caá-boc, que significa “homem procedente do mato”. Especialistas em lexicologia
e lexicografia colocam em dúvida a origem do termo “caboclo”, sugerindo este
não é indicativo somente de pessoas descendentes de índios e brancos, mas é
também aplicado ao português degredado, enviado à Amazônia para prover a sua
subsistência (TORRES, 2003).

A construção social denominada “cabocolo”, ou caboclo, que em Portugal


causava horror e repugnância, “estava associada aos párias e até mesmo aos
“apirus, que nas antigas línguas, como o ugarítico, era um termo que se aplicava
aos grupos marginais de pessoas como os bandidos, mercenários, sem-terra e
pobres” (GALLARES apud TORRES, 2003, p. 110).
57

Essas pessoas eram discriminadas em Portugal pelo status social que


ocupavam. Os “cabocolos” incluíam os sem-terra, os desempregados e as
pessoas de “má-índole”. De acordo com a autora (p. 110), em razão do caráter
duvidoso desses indivíduos, “o termo “cabocolo” assumia uma conotação
pejorativa, sendo conveniente ‘exportar’ esses indivíduos para o Brasil ou para o
“quinto dos infernos”, que correspondia ao quinto reinado de Portugal, sob a coroa
de D. João VI” (TORRES, 2003, p. 110).

É possível supor que tenha havido uma modificação da palavra


caboco para caboclo, justamente para conferir um tom de sofisticação e
intelectualização a um termo estigmatizado e segregado. Observe-se que
o termo do tupi-guarani é caá-boc, sem a letra L, daí pensarmos que essa
mudança queira sugerir uma divisa\o de classes. Assim, o termo original
caboco é mais indicado para designar o homem interiorano da Amazônia,
pertencente a estratos sociais baixos, de característica rudimentar e de
sotaque regionalizado. O termo caboclo, modificado possivelmente pelos
espanhóis no século XVII, é utilizado para designar os indivíduos
descendentes de brancos e índios que se ocidentalizaram e que
pertencem a estratos sociais médios e altos (idem, p. 110).

Lima (1999) pondera que as etimologias relacionadas à palavra caboclo


são especulativas, mas entre a de Parker, que sugere a origem do termo da
palavra tupi kari’boka, que significa “filho do homem branco”, e a de Teodoro
Sampaio, que afirma ser caboclo derivado do tupi caa-boc, que quer dizer “o que
vem da floresta”, a segunda, na sua opinião, tem mais probabilidade de estar
correta.

Isso porque, na Amazônia, caboclo foi inicialmente usado como


sinônimo de tapuio, termo genérico de desprezo que os povos indígenas
usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos. Em tupi, de
acordo com Veríssimo (1970[1878]:14, a palavra tapuio significa o hostil, o
inimigo, o escravo. Após a colonização, o termo foi usado para designar o
ameríndio assentado e trazia as mesmas conotações de desprezo que
tinha quando usado entre os índios (LIMA, 1999, p. 9).

Assim como tapuio naquele contexto, hoje o termo caboclo é também


usado no sentido de desprezo em relação ao outro, e tal significado de alteridade
é encontrado na segunda etimologia citada. Na opinião de Lima, essa designação
poderia ser tomada como alusão a uma espécie de expatriação com referência a
um outro cuja origem é selvagem (o que vem da floresta). Por analogia, a
utilização atual do termo caboclo é similarmente caracterizada por uma referência
58

ao outro e à exclusão. Por isso, na maior parte das vezes o termo é rejeitado por
aqueles que designa, sendo apenas em algumas instâncias usado como um
termo de auto-atribuição.

Nesse último caso estão os grupos indígenas que usam, eles próprios, o
termo caboclo para autodenominação, utilizando-o como um recurso de oposição
aos brancos:

[...] o uso da palavra caboclo como termo de autodesignação por


alguns grupos indígenas está sempre ligado ao contexto de sua oposição
e conflito interétnico com os brancos. [...] É somente no contexto local de
contato interétnico entre populações indígenas e brancas que o termo
caboclo é reconhecido como um rótulo de identificação e/ou um termo de
autodenominação para os grupos indígenas (LIMA, 1999, p. 12).

Segundo a autora, a não utilização de caboclo como um termo de auto-


designação está relacionada, em primeiro lugar, com a conotação pejorativa do
termo e o significado de “índio domesticado” (e não o de uma raça cruzada entre
branco e índio), que ele transmite entre a população rural”. Explica ela ainda que:

Quando caboclo é usado por certos grupos ameríndios como


termo de autodesignação, a conotação pejorativa está subentendida.
Como afirma Cardoso de Oliveira (1972a), o uso de caboclo como termo
de auto-identificação é uma maneira de os índios assumirem uma posição
social inferior em relação aos brancos. Discutindo o uso do termo entre os
ticuna, Cardoso de Oliveira afirma que é uma identidade negativa (ou seja,
a do índio que se vê do ponto de vista do branco). Por essa razão, os
índios que individualmente migram do alto rio Negro para a cidade de
Manaus não reproduzem sua identidade cabocla através das gerações,
mas apenas a usam para si (LIMA, 1999, p. 21).

Lima alerta para a importância de enfatizar a natureza conceitual do termo,


considerando que caboclo é uma categoria de classificação social empregada por
estranhos, com base no reconhecimento de que a população rural amazônica
compartilha um conjunto de atributos comuns, mas não é uma categoria social
homogênea nem absolutamente distintiva. Segundo ela, “existe o perigo de
tomar-se o termo caboclo como uma identidade e desse modo criar fronteiras
absolutas para um grupo social que não é encontrado na vida real. Ao contrário, o
termo caboclo deve ser entendido como uma categoria geral de referência e
identificação” (LIMA,1999, p. 8).
59

A natureza do termo caboclo é portanto conceitual e consiste em


uma categoria social de pensamento analítico. Sendo uma categoria
social, o termo é uma abstração, uma unidade de um sistema de
classificação social projetada para retratar as diferenças entre as pessoas
na sociedade. Em contraste com um grupo social, uma categorial social
consiste em uma agregação artificial de pessoas baseada na identificação
de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam
necessariamente em um relacionamento social em razão dessa
similaridade. Os atributos que definem uma categoria social podem ser
biológicos, sociais ou culturais. Um grupo social, por outro lado, consiste
em uma agregação humana real, que é definida por interações estreitas e
relacionamentos pessoais (LIMA, 1999, p. 9).

Na Amazônia brasileira, de acordo com a autora, o termo caboclo é


amplamente utilizado como uma categoria de classificação social. No discurso
coloquial a definição da categoria social caboclo é complexa, ambígua e está
associada a um estereótipo negativo.

Na antropologia, a definição de caboclos como camponeses


amazônicos é objetiva e distingue os habitantes tradicionais dos
imigrantes recém-chegados de outras regiões do país, Ambas as
acepções de caboclo, a coloquial e a acadêmica, constituem categorias de
classificação social empregadas por pessoas que não se incluem na sua
definição (LIMA,1999, p. 5).

Existem no Brasil outras categorias populares de raça mista, tais como o


mulato (o filho do branco e do negro) e o cafuzo (filho do índio e do negro). Mas,
enquanto tais categorias raciais não se associam a uma região brasileira
específica, os caboclos, sim. E, em contraste com outros tipos regionais, o nome
caboclo também é usado como categoria de classificação social (LIMA, 1999).

Atualmente, no médio Solimões, a população rural é ainda


chamada de caboclos. [...] O caboclo é mencionado sempre que “o
homem amazônico típico” está em discussão. Embora o termo seja às
vezes aplicado aos pobres das cidades, a imagem desse “amazônida
típico” é essencialmente rural e ribeirinha. [...] O termo evoca a figura de
um homem associado com o meio ambiente amazônico (LIMA, 1999, p.
12).

Em seu estudo sobre uma comunidade amazônica que ele chamou de Itá,
Wagley (1977) observou que os conceitos do povo local sobre o tapuia ou
caboclo, identificado pelo tipo físico do ameríndio, eram menos favoráveis que os
do negro, carregando duplo sentido, um significando baixa posição social e outro
60

indicando as características físicas do ameríndio, sobressaindo os conceitos


depreciativos:

O caboclo é considerado preguiçoso: “Não plantam roças, vivem


da venda de um pouco de borracha e pescando para comer”. Diz-se que o
caboclo é tímido porque vive isolado na floresta. “Preferem viver como
animais, longe dos outros, no fundo das florestas”, disse certo homem.
Entretanto o caboclo é considerado manhoso e extremamente
desconfiado. [...] As pessoas descendentes do ameríndio, ao contrário dos
negros, não gostam que se mencione sua ascendência indígena. [...] Na
sociedade amazônica o índio, muito mais freqüentemente do que o negro,
era o escravo da sociedade colonial. [...] Hoje em dia, as características
físicas de índios são, portanto, um símbolo não só de descendência
escrava como também de origem social mais baixa, nos tempos coloniais,
do que a do negro (WAGLEY, 1977, p. 149).

Silva (1996) explica que a expressão qualificativa “caboclo brasileiro”, em


Galvão11, é o signo diferenciador deste personagem social (o caboclo) face ao
índio. É a diferença estabelecida entre aquele personagem tipicamente brasileiro,
forjado ao longo da história deste país, e o índio que não se acaboclou. Este
pertence à categoria sócio-cultural índio, ou seja, é um ser de origem histórica
que tem sua identidade étnica no povo indígena em que se constitui.

No processo colonizatório também o “branco” acaboclou-se ao penetrar


neste mundo social diferenciado. No convívio com o índio e o ex-índio, foram
engendradas as condições, com base em fatores biológicos e culturais, para a
emergência do mestiço resultante da miscigenação, e do “branco” tornado
caboclo, de acordo com os condicionantes implícitos no processo (SILVA, 1996).

Em alguns casos, o índio deixa de ser índio e não se torna um


“branco”, ou seja, objetiva e subjetivamente, não é mais um ser tribal, mas
também não ingressou no meio urbano, nem passou a viver com o mínimo
de dignidade, em meio à escala social, no meio rural ou na cidade; não se
sente como um partícipe da cultura e da sociedade dos “brancos”, em
igualdade com estes;. na passagem, se cabocliza e, com freqüência,
torna-se um marginal na sociedade estranha; resta à margem do mundo
dos brancos, como um ser decadente e alienado.
O “branco” penetrou neste mundo social e acaboclou-se. Ao
juntar-se ao índio ou ao ex-índio, originam-se as condições, no convívio,
para as conjunções biológicas e culturais, dando origem, por um lado, ao
mestiço, e, por outro, ao “branco” que se tornou caboclo, em um processo
que, também, assume tonalidades diversas, face aos diferentes
condicionantes (idem, p. 300).

11
Eduardo Galvão é autor de várias obras sobre a cultura amazônica, especialmente sobre a cultura cabocla.
61

Branco ou mestiço, conclui o autor, o ser “acaboclado” acaba perdendo a


referência dos elementos biológicos e culturais de origem indígena que
constituíram a sua singularidade social, tornando esse ser distinto do índio e do
branco, passando a ser um alter em relação aos elementos originários que
influenciaram em sua formação. “... poder-se-ia dizer que o caboclo é a própria
‘consciência infeliz’. Fracionada sua personalidade em duas, ela bem retrata a
ambigüidade de sua situação total...” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p.83).

Diz ainda o autor (idem, p. 82) que o “caboclismo” está estreitamento


relacionado à natureza da organização política imposta e reflete a sujeição,
habitual e sem perspectiva, ao branco. “Dentro do caboclismo é impensável
qualquer movimento coletivo de rebeldia à ocupação da sociedade nacional...”.

Com referência a esse “acaboclar-se”, Parker (1985) fez um estudo a


propósito da transformação do ameríndio na Amazônia, atribuindo a esse
processo de “caboclização” parte da responsabilidade pela destruição da
sociedade indígena americana, processo esse desencadeado pela intervenção
religiosa na Amazônia no início do século XIX.

[…] the process of “caboclization” in the Brazilian Amazon, the


events and conditions that in large part destroyed Amerindian society,
transformed the Amerind and resulted in the emergence and solidification
of caboclo class and culture in Amazonia by the early 19th century. The
caboclization of Amerindians will be shown to have been accomplished in
three distinct but related stages: (1) the early settlement period (1600-
1655) in which settler slaving expeditions exated and enormous toll upon
Amerindian populations, general chaos prevailed, and the problem of
sufficient labor first appeared; (2) the years of Jesuit dominance in
Amazonia (1655-1755) during which Amerindian were “missionized” and
converted from subsistence to commodity producers; and (3) the rule of the
Directorate (1755-1799), under which a set of policies and regulations were
promulgated intended to convert and Christianize Amerindians and hence
make them full-fledged members of Portuguese society but which in fact
served primarily to complete the transformation of the Amerindian to
caboclo12 (PARKER, 1985, p. 3).

12
[…] o processo de "caboclização" na Amazônia brasileira, os eventos e condições que em grande parte
destruíram a sociedade ameríndia, transformaram o ameríndio e resultaram no aparecimento e solidificação
de uma classe e cultura caboclas na Amazônia no início do século XIX. A caboclização dos ameríndios pode
ser vista como tendo sido efetuada em três fases distintas, mas relacionadas: (1) o período inicial de
estabelecimento (1600-1655), no qual as expedições colonizatórias exacerbam em perversas investidas
sobre as populações de ameríndios, o caos prevalece e o problema de trabalho adequado aparece pela
primeira vez; (2) os anos de domínio jesuítico na Amazônia (1655-1755), durante os quais o ameríndio foi
"catequizado" e convertido de subsistência a produtor de mercadorias; e (3) as regras do Diretório (1755-
1799) sob as quais um jogo de políticas e regulamentos foi promulgado, pretendia converter e cristianizar os
ameríndios e conseqüentemente convertê-los em membros da sociedade portuguesa, mas na realidade
serviu principalmente para completar a transformação do ameríndio em caboclo.
62

Parker refere-se ao termo como designativo do resultado de um processo


de exploração e enquadramento dos indígenas ao sistema estrangeiro,
modificando costumes e induzindo-os a uma adaptação forçada que
descaracterizou a sua cultura original e deu margem à emergência de uma
categoria híbrida e despojada culturalmente.

What emerged from this destructive period were caboclos:


disenfranchised and culturally deprive Amerindians and mixed-blood
offspring engaged in desultory subsistence activities and collection of
forest products. […] The caboclo was a solitary economic actor upon the
regional stage, relatively self-sufficient and very often completely isolated.
MacLachlan (1972:386) noted the Amerindian, stunned culturally and
psychologically, readily abandoned village, and at times family, to pursue
his existence and livelihood alone. He now wore European-style clothing,
perhaps spoke rudimentary Portuguese in addition to lingua geral, and
retained only vestiges of his former social and cultural self 13 (PARKER,
1985, p. 35).

Por sua vez Galvão (apud SILVA, 1996), vê também por outro ângulo,
destacando o encontro das culturas indígenas e européias na origem da cultura
cabocla.

Por caboclo entendemos não apenas os descendentes de


cruzamento entre índios e alienígenas, mas também os brasileiros de
outra procedência, notadamente maranhenses, que aí se fixaram
motivados pela exploração econômica dos recursos naturais e que
absorveram e adotaram algo do modo de viver indígena, sobretudo a
tecnologia primária. Entretanto, seus padrões sociais e culturais se
orientam pelo modelo urbano e rural brasileiro (SILVA, 1996, p. 225).

Lima (1999, p. 26) ressalta que, embora a referência ao termo caboclo


possa evocar vários significados, o sentido pejorativo predomina na maioria deles,
“decorrente da representação negativa do indivíduo ou grupo que ocupa uma
posição social inferior.” Os principais sentidos atribuídos estão relacionados a
“noções geográficas (Amazônia, interior, rural), de descendência e “raça”
(indígena, mestiça), das hierarquias e relações sociais (conquista ibérica,
submissão, a relação de dívida e de crédito no aviamento, o par patrão e freguês)
– todas ligados à história da ocupação européia da Amazônia.
13
O que emergiu deste período destrutivo foram caboclos: desprestigiados e despojados culturalmente
ameríndios e descendentes miscigenados engajaram-se em atividades de subsistência inconstantes e coleta
de produtos de floresta. […] O caboclo era um solitário ator econômico na fase regional, relativamente auto-
suficiente e muito freqüentemente completamente isolado. MacLachlan (1972:386) nota que o ameríndio,
culturalmente e psicologicamente atordoado, prontamente abandona a aldeia, e às vezes a família, para
procurar sozinho garantir a sua existência e seu sustento. Ele agora usa o estilo de vestir europeu, talvez fale
um português rudimentar além da língua geral, e reteve somente vestígios da sua própria formação social e
cultural.
63

Embora haja também uma valoração positiva – no folclore, que


retrata o caboclo como “o homem da terra”, e em cultos de possessão, em
que aparece como “espírito forte” – o estereótipo predominante é negativo.
Corresponde a figuras como o “matuto” e o “caipira” do interior sulista. Por
esse motivo, qualquer referência ao termo não pode ser inteiramente
inocente, pois sempre remete à conotação pejorativa – de domínio público,
apreendido pelo senso comum -, ao ponto do nome mesmo não ser senão
excepcionalmente usado como autodenominação. A forma singela e
humilde de por a mão no peito e anunciar, como reconhecimento de
inferioridade. “eu sou apenas um caboclo” dirige-se especificamente a um
interlocutor branco, rico ou de outra região que não a Amazônia (LIMA
1999, p. 26).

Surgido no contexto de uma estrutura social altamente hierarquizada, a


sociedade amazônica colonial, ao longo do processo em que se formou o
segmento camponês amazônico, o nome caboclo carrega uma história particular,
tendo sido criado não só para referir a essa classe inferior, como para definir suas
qualidades e seu valor (LIMA, 1999).

Vimos como a palavra inicialmente denotava o índio genérico,


destribalizado, passando posteriormente a significar o híbrido, o
miscigenado. Que o termo tem a função de classificar categorias e definir
posições sociais é comprovado pelo fato de a palavra ter sido mantida,
apesar da evolução da composição étnica da população que nomeia. A
manutenção do nome implica que, embora seu significado pareça ter
mudado [...] ele é na verdade uma categoria de referência para a posição
inferior na estrutura social do meio rural principalmente (idem, p. 27).

Para Galvão (in SILVA,1996, p. 229), o caboclo amazônico, com “sua


cultura de segunda ordem – em termos historicamente seqüenciais -, em seus
componentes indígenas e não indígenas, é um dos seres que constroem, com
sua participação pessoal e direta, a identidade do brasileiro.” Galvão advoga a
idéia de que o caboclo é consciente de sua condição sócio-cultural.

Os critérios adotados para a identificação do caboclo, em Galvão,


são de naturezas diversas (biológicos, culturais e econômico-estruturais) e
servem a análises distintas dessa figura sociológica característica. No
conjunto de sua obra, o caboclo referencial, na comparação com o índio e
com o “branco”, é o ser que está inscrito como um elo social e cultural, em
alguns casos biológico, entre o ser índio e o ser não-índio; entre as
culturas indígenas e a cultura ocidental. Da perspectiva do estudo de
mudança cultural, o caboclo é um signo desta passagem (idem, 299-300).
Silva (1996, p. 230) ressalta que diferentes expressões vocativas com o
uso do termo “caboclo” podem exprimir tanto preconceito “racial”, colocando o
mestiço (caboclo) em uma categoria inferiorizada e de menor prestígio social,
64

quanto serem empregadas com um sentido extremamente afetivo e carregado de


simpatia “nas relações informais entre pessoas, interrelações que se
estabelecem, preferencialmente, no interior de cada segmento de classe social,
porém, podem também ter lugar entre pessoas inseridas em classes distintas.”

As qualificações negativas, de acordo com Lima (1999, p. 14), também se


relacionam ao fato de que os caboclos são considerados pobres:

Como no caso do termo caboclo, pobreza também é um conceito


cultural. O caboclo não é só pobre em relação a padrões de vida urbanos
ou internacionais, mas também em relação a uma expectativa elevada
para a performance econômica e social deste neobrasileiro na Amazônia.

No entanto, no interior do Amazonas, informa Torres (2003, p. 110), o termo


não tem conotação pejorativa sendo frequentemente empregado para indicar,
com orgulho, “o tipo de homem que possui capacidade para vencer os perigos e
desafios da floresta e dos rios; é o homem que tem um comportamento
meditativo, calmo, silencioso, sem vexames, pressa ou afobamento.”

É verdade, reforça a autora (p. 123), que os nativos não se preocupam com
o dia de amanhã, como também não se preocupam em deixar bens materiais
para os filhos, o que não significa que sejam preguiçosos. O comportamento
meditativo, calmo e silencioso do homem amazônico e o seu modo
“despreocupado” de conduzir a vida, são devido a um condicionamento histórico e
têm a ver com as características indígenas latentes, “mas também estão
associados a uma sabedoria de vida e a uma estratégia de sobrevivência. É uma
questão culturalmente arraigada ao seu modo de ser...”.

2.2 A cultura cabocla

Na concepção de Silva (1996, p. 223) “o que caracteriza o caboclo não é o


caráter genético-biológico, o tipo físico, mas sim, a cultura – cultura cabocla - ,
produto da ‘amalgamação’ das diferentes contribuições fundadoras”. De acordo
com Wagley (1977, p. 56), na época da independência do Brasil, os habitantes do
vale amazônico eram predominantemente mestiços, e o modo de vida dessa
65

população era mais adequado aos padrões europeus (de Portugal), embora
sofrendo fortes influências das culturas aborígines e do ambiente amazônico.
“Formara-se uma cultura regional, fundamentalmente européia em suas principais
instituições, mas profundamente influenciada pelo ambiente típico da Amazônia e
pelas culturas nativas da região”.

Assim, juntamente com os padrões ibéricos impostos e ensinados


à população campesina do Amazonas por seus conquistadores europeus,
persistiu na cultura rural de toda a Amazônia brasileira uma coleção de
padrões aborígenes. Estes fundiram-se na estrutura da cultura
predominantemente ibérica, formando um modo de vida e uma cultura
típica da região, perfeitamente adaptados ao ambiente particular da
Amazônia (WAGLEY, 1977, p. 59).

A formação da chamada cultura cabocla, de acordo com Galvão (1976, p.


114), foi um processo contínuo que teve início com a chegada dos europeus no
século XVII, por meio da “aculturação seletiva da sociedade mista de colonos
portugueses e índios, condicionada pela configuração e pelos padrões peculiares
a essas duas culturas que entraram em contato, e à situação de dominância da
primeira.”

O autor enfatiza a dificuldade de compreensão, a não ser em linhas gerais,


da complexidade desses processos de aculturação e mudança cultural sofridos
tanto pela sociedade nacional quanto pela tribal, considerando que a
“especificação do fenômeno requer o estudo detalhado de períodos históricos ou
de áreas geográficas e culturais em que os fatores mais induzentes da mudança
de uma ou outra sociedade possam ser melhor analisados” (GALVÃO, 1979, p.
261).

Tal dificuldade é devida, segundo o autor, ao fato de que as mudanças


ocorridas na sociedade tribal não decorreram de um processo gradual.

O ritmo ou a penetração da mudança são resultados de


transformações que operam na sociedade nacional. O processo de
aculturação intertribal, iniciado antes da conquista portuguesa, sofreu um
aceleramento progressivo, porém irregular na medida em que se
desenvolveu o dispositivo de ocupação e fixação da frente pioneira
nacional em território indígena (GALVÃO, 1979, p. 267).
A formação da cultura regional amazônica, na análise de Galvão, pode ser
vista a partir de etapas de um fenômeno progressivo, mas não uniforme, uma vez
que os períodos históricos mais ou menos delimitados foram caracterizados ora
66

por mudanças e desenvolvimento lento, ora por rápidas transformações. Segundo


ele, existem grandes contrastes referentes às configurações culturais da
Amazônia, evidenciados em padrões de povoamento, de organização familial ou
outras formas mais complexas de padrões e práticas religiosas, diferenças essas
originárias da forma como os indígenas reagiram à influência dos “brancos” no
processo colonizatório.

O crescente envolvimento dos grupos tribais pela expansão das


frentes pioneiras, ou o seu cerco pela população rural, aumentou e
acelerou o ritmo das modificações da cultura dos grupos indígenas. Não
se trata mais de um processo rápido de destribalização dos índios, ou um
recíproco dar e receber entre índios e brancos. Defrontando-se com um
novo meio, os colonizadores do século XVII, portadores de uma cultura
rural européia relativamente simples, adotaram muitos dos costumes e
conhecimentos indígenas, principalmente os que tinham relação direta
com o uso do ambiente físico, como as técnicas de horticultura, as plantas
cultivadas, os métodos de caça e pesca, as técnicas de construção de
casas, as artes, a farmacopéia, a cura pela pajelança e a adoção de idéias
religiosas [...]. Os índios, por sua vez, passaram a utilizar armas de fogo,
utensílios de ferro e roupas, adotaram valores sociais e conceitos
religiosos, e adaptaram suas economias fechadas e auto-suficientes a
sistemas de intercâmbio e de comércio, o que resultou em mudanças na
sua organização social. Hoje em dia suas mudanças são unilaterais, no
sentido de que a cultura mestiça do brasileiro contemporâneo teve
saturada, por assim dizer, a sua capacidade de receber influência
indígena. A distância cultural aumentou, então, com um considerável
decréscimo na comunicação e na troca (GALVÃO, 1979, p. 275-6).

Em suas obras Galvão enfatiza a importância de que sejam enfocadas e


compreendidas as forças atuantes no processo de formação da cultura do
caboclo, reiterando a atuação do indígena nesse processo:

O índio não teve um papel simplesmente passivo de continuar em


suas sociedades nativas ou de adotar traços da cultura lusa para somar
aos seus já tradicionais. O aborígene foi destribalizado e forçado a aceitar
os padrões e instituições européias, dada sua situação de inferioridade
como escravo, ou sob as contingências de uma população dominada. Sua
contribuição à cultura da sociedade que então se formava foi importante
por se referir sobretudo aos meios de controle do ambiente físico, como
seja a agricultura, alimentos, meios de transporte, material e construção
da habitação e uma infinidade de técnicas, que significavam os métodos
essenciais para adaptação a um ambiente geográfico peculiar – a floresta
tropical – desconhecido do colono português (GALVÃO:1976, 114-15).

A despeito da ampla contribuição ameríndia, observa o autor, a cultura e a


sociedade emergente desse contato entre “índios” e “brancos” foram norteados
pelos padrões ibéricos, inclusive nas atividades de agricultura, na seleção de
plantas para cultivo e técnicas de plantio. A cultura original em formação foi
também permeada pelas crenças e práticas religiosas dos colonizadores e,
67

embora as crenças religiosas dos indígenas tenham sobrevivido, foram


dissociadas do seu contexto original e integradas ao catolicismo ibérico.

As crenças religiosas que têm origem nas culturas indígenas do


vale e são hoje parte do patrimônio caboclo, modificaram-se sob a
influência do cristianismo e do folclore europeu. Sob nova forma
difundiram-se e integraram-se na cultura regional. Constituem parte tão
essencial da vida religiosa, quanto as crenças católicas e respondem a
necessidades emocionais condicionadas pelo ambiente e pelo grupamento
social (GALVÃO, 1976, p. 115).

Embora a dominância do caboclo na Amazônia geralmente induza a


estereótipos, tais como a consideração do moderno habitante da região como
“índio”, Galvão considera um equívoco a atribuição à cultural regional amazônica
uma qualidade de “indígena”:

O caboclo não tem orgulho ou vergonha do ancestral que habitava


as malocas, simplesmente ignora ou não se preocupa com esse fato. [...] A
cultura dessas sociedades tribais dificilmente influenciará, no sentido de
contribuir com elementos novos, o modo de vida do caboclo,
principalmente porque seus traços culturais mais passíveis de adaptação
já de há muito foram assimilados pelo mestiço luso-índio, que os tomou de
culturas indígenas hoje extintas (GALVÃO, 1976, p. 127-8).

Segundo Silva (1996), Galvão vê o caboclo, independente de suas


características somáticas, virtualmente inserido na sociedade de classes, como
um trabalhador explorado e marginalizado, mas que vive, trabalha, comporta-se
na sociedade e tem uma visão de mundo segundo padrões da cultura híbrida
cabocla.

A sociedade cabocla – estudada por Galvão -, nas gerações


sucessivas, constrói um modus vivendi, formas culturais (caboclas), que
instauram universos sociais específicos e estáveis, persistentes, com
códigos culturais próprios, híbridos – pelas vertentes indígenas e “brancas”
constitutivas -, presentes nos mitos, nos rituais, no xamanismo, na
religiosidade sincrética, na tecnologia de produção de mercadores com
variados fins, nas relações com o meio ambiente, enfim, nas atitudes face
à vida e à morte. Porém, no conjunto da categoria social dos caboclos
como um todo, ressalta-se um traço comum: a marginalidade e a
dominação, condições a que todos estão submetidos na sociedade
(SILVA, 1996, 301).

Wagley (1977) ressalta que as razões de uma suposta condição de “atraso”


atribuída à cultura cabocla são decorrentes da história da Amazônia e da forma
peculiar com que tem sido processado o seu povoamento:
68

Desde o décimo sexto século a região amazônica tem sido uma


área colonial, primeiro pertencente a Portugal e, a seguir, do próprio Brasil
que, durante mais de três séculos, foi um produtor de matérias-primas
para mercados distantes, sem uma justa compensação para esses
produtos. [...] Permaneceu em toda a região um sistema rígido de
discriminação de classes que se baseia em critérios econômicos,
familiares e educacionais. O Vale Amazônico continua a ser uma das
áreas coloniais do mundo (WAGLEY, 1977, p. 278-9).

A forma de vida das populações tradicionais da Amazônia, segundo Castro


(1997), é concebida a partir de sua relação com o ambiente. Conservam na
linguagem, por exemplo, imagens dos rios e igarapés, assim como da mata, e as
suas concepções de natureza definem tempos e lugares de suas vidas. Essas
práticas são consideradas simplórias e vistas como improdutivas pela sociedade
moderna que, incessantemente, dirige novos apelos “modernizantes” para induzir
essas comunidades a mudanças consideradas mais adequadas à atual lógica de
mercado.

Na concepção de Parker (1985), muitos estudiosos falham precisamente


em reconhecer no modo de vida tradicional do caboclo, a qualidade adaptativa do
seu sistema produtivo e a sua contribuição para a economia e o desenvolvimento
regional, enfatizando a flexibilidade do caboclo ao lidar com as influências
externas. Segundo o autor, muitas afirmações e generalizações sobre a cultura
cabocla estão baseadas em indícios insuficientes ou incompletos, resultando em
um “conhecimento” limitado e fragmentário:

[…] our knowledge and understanding of Amazon caboclo culture


is limited and fragmentary. Less colorful and exotic than their tribal cousins,
caboclos have not enjoyed the attention that Amerindinas have heretofore
enjoyed. Ignored, overlooked, and at times casually lumped together with
migrant populations, caboclos remain largely unstudied despite their
central role in the human environment of Amazonia. […] many assumption
and generalizations about caboclo culture are based upon insufficient or
incomplete evidence14 (PARKER, 1985, xliii).
Silva (1996) considera que os estudos sobre o caboclo da Amazônia
podem ser objetivados em dois planos: um se encontra no próprio nível das
subjetividades, das identidades sociais e das atitudes e julgamentos nas relações
grupo a grupo, pessoa a pessoa, na sociedade. Outro passa pela lente das

14
[…] nosso conhecimento e entendimento da cultura do caboclo amazônico é limitado e fragmentário.
Menos coloridos e exóticos do que os seus primos tribais, os caboclos não desfrutaram a atenção que os
ameríndios antes desfrutaram. Ignorado, negligenciado, e eventualmente marginalizado junto com
populações migrantes, os caboclos permanecem desconhecidos em grande parte, apesar do seu papel
central no ambiente humano da Amazônia. […] muitas suposições e generalizações sobre a cultura cabocla
são baseadas em evidências insuficientes ou incompletas.
69

interpretações teóricas em relação aos fatos observados nas sociedades


específicas. Estes dois planos se entrecruzam.

[...] o ser caboclo amazônico, por seus componentes biológicos


(miscigenação), culturais (encontro de culturas) e sociais (está distribuído
em diferentes segmentos da população), é uma configuração sociológica
específica, que pode ser analisada sob diferentes ângulos teóricos
articulados com a observação das situações concretas na sociedade
(SILVA:1996, 230).

Para Parker, foi no século XIX, precisamente entre 1800 a 1850, que o
caráter e a qualidade da classe cabocla tomaram a forma que persiste até a
atualidade. A despeito da natureza de sua atividade econômica, o isolamento
cultural e todos os fatores que conspiraram contra a sua organização como grupo
social, o caboclo efetivamente acabou por tornar-se o legítimo representante
cultural da região, atingindo naquela época, um contingente bastante
representativo do total de habitantes da área.

It was during the 50 years between 1800-1850 that the character


and quality of caboclo class and culture took shape and which have
persisted to the present day. The nature of their economic activity, the
cultural deprivation experienced, and the resultant settlement pattern all
militated against further social articulation of caboclo life. The caboclo had
indeed become the cultural representative of Amazonia – the dominant
cultural and economic agent throughout the region. The true Amerind was
limited to the far flung corners of the basin and deep within the
unpenetrated reaches of the forest. Their very existence depended upon
evading contact and communication with all non-Amerindians, including
caboclos. […] The proposition that caboclos were the cultural
representatives of the region is lent support by estimates of the regional
population in 1850 which may have been as much as 75 percent caboclo
at time15 (PARKER, 1985, 36).

Na atualidade, pelo menos no âmbito urbano, não é comum se falar na


existência de uma “cultura cabocla”, exceto nos meios acadêmicos ou em
eventuais menções na mídia, associadas neste caso ao folclore regional. A idéia
no senso comum faz relação com práticas típicas do estilo de vida simples do
homem interiorano, particularmente o ribeirinho, mas restringe-se ao modelo
15
Foi durante os 50 anos entre 1800-1850 que o caráter e qualidade da classe e cultura cabocla tomaram a
forma que persiste até o presente. A natureza da sua atividade econômica, a privação cultural experimentada
e o padrão determinante daí resultante, tudo militou adicionalmente contra a articulação social da vida do
caboclo. O caboclo tinha, entretanto, se tornado o representante cultural da Amazônia - o agente cultural e
econômico dominante de toda a região. O verdadeiro ameríndio foi arremessado às áreas remotas da bacia e
profundamente dentro dos limites da floresta impenetrável. Sua existência mesma dependia de evitar o
contato e a comunicação com todos os não-ameríndios, inclusive os caboclos. […] A proposição de que os
caboclos eram os representantes culturais da região é apoiada por estimativas de que a população regional
em 1850 era constituída em 75% de caboclos.
70

estereotipado consagrado no imaginário da maioria dos brasileiros, inclusive no


da população citadina local.

Informalmente falando, pode-se dizer que existe um estilo caboclo de ser,


ou seja, uma forma de resolver as questões, de se comportar, um jeito meio
“apático”, meio blasé, de encarar a vida. Chama-se leseira, segundo Souza
(2001), essa maneira amolentada do caboco16 conduzir as coisas, mas que não
corresponde ao sentido dicionarizado e sim a um estilo de resistência e
sobrevivência às pressões externas, na opinião do autor uma demonstração de
superioridade cultural.

Caracteriza esse comportamento a expressão “leseira baré”, criada por


Souza para identificar o que ele chamou de uma “prática existencial poderosa”,
uma forma de resistência contra políticas intervencionistas que insistiam em fazer
da Amazônia palco de experiências desenvolvimentistas arbitrárias:

Mas o que é leseira? Como identificar tal estilo de resistência.


Quando um nativo da Amazônia se olha no espelho, ele vê lá no fundo de
seus olhos um sinal de que não foi feito para obedecer certas leis,
especialmente econômicas. Por isso, a leseira é elusiva, pode ser uma
forma aguda de esnobismo ou uma ironia. [...] a leseira é uma prática
existencial poderosa – e foi a única arma que se mostrou eficaz para
impedir que muitos projetos da ditadura militar fossem totalmente
implantados – que ainda vai livrar a região de tanta solidariedade não
solicitada, pois há uma exata medida de leseira em todos os escalões, em
todas as classes sociais, em todas as almas (SOUZA, 2001, p. 162).

O termo leseira, entretanto, que Souza intentou cunhar como indicativo de


um comportamento culturalmente superior acabou se tornando mais um vocábulo
no acervo de termos depreciativos com que são referidos (ou se auto-referem) os
habitantes de Manaus. Por outro lado, na forma como o exemplificado pelos
autores referidos, não se identifica localmente na atualidade práticas sociais
suficientemente delineadas a ponto de configurarem o que poderia se chamar de
uma verdadeira “cultura cabocla”. Exemplo disso é o uso da expressão “é típico
de caboclo” que, invés de caracterizar a cultura local, na maioria das vezes tem
cunho depreciativo.

16
Tal qual Torres (2003), o autor prefere usar esta grafia.
71

2.3 O caboclo na história (ou a história do caboclo?)

Comparando as definições apresentadas por vários autores, Lima (1999, p.


20) observa que “o caboclo é uma construção de quem é o nativo num dado
momento da história. O amazônida típico da época é sempre definido em
contraste com aqueles que são migrantes recentes e os povos indígenas, de um
lado, e o grupo social identificado como branco, urbano e rico, de outro.” A
definição social de caboclo “implica uma série de oposições: pobre versus rico,
selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral, indolente
versus empreendedor.”

Zaccaria (s.d.)17 acredita que a aproximação etimológica permite a


reconstrução da história do caboclo pelos significados que, desde seu primeiro
aparecimento (século XVI) foram de tempo em tempo a ele atribuídos. Cada
significado tem um referente preciso que reflete o contexto no qual foi forjado.
Faz-se necessário, para isso, voltar à época da Conquista e percorrer o caminho
que foi trilhado para a formação de um mundo mestiço a partir da destruição do
mundo ameríndio, podendo ser distinguidas algumas etapas18 fundamentais.

No século XVI, conforme a autora, as conquistas brutais resultam na


destruição física de várias etnias ameríndias. Aquelas que não foram destruídas
tiveram os seus integrantes geralmente reduzidos a escravos, recrutados para a
extração de produtos da floresta, sobretudos os conhecidos como “drogas do
sertão”. Como o braço nativo não era suficiente, foi necessário recorrer à força de
trabalho externa, desencadeando a importação de escravos negros da África.

17
Texto obtido por meio eletrônico.
18
XVI secolo. Conquista brutale e distruzione fisica di molte etnie amerindie. Quelle che non sono annientate
sono spesso ridotte in schiavitù, reclutate nell'estrazione dei prodotti della foresta, soprattutto del legname e
delle cosiddette "drogas do sertão". XVII - prima metà del XVIII secolo. Con l'arrivo dei Gesuiti in Amazzonia
(1610), si dà avvio a quel sistema che, in più di un secolo, avrebbe condotto i gruppi indigeni radunati nelle
missioni, alla perdita delle loro tradizioni e cerimonie, quindi della loro identità. II metà del XVIII secolo. Con
l'espulsione dei Gesuiti dal Brasile (1755) e la fine del sistema delle missioni, una nuova epoca ha inizio. Il
ministro portoghese Pombal instaura il Diretorio dos indios (direttorio degli indios) (1755-1789), che prevede
l'assimilazione pianificata di indios e meticci nella società coloniale, attraverso la loro incorporazione
nell'economia regionale. Nel corso del XIX secolo, quando per caboclo si intende ormai il contadino
amazzonico, nato da padre bianco e da madre india, due eventi fondamentali contribuiscono ad imprimergli
una fisionomia precisa e a conferirgli un qualche senso di identità come gruppo. Questi avvenimenti
determinanti per la defini7ione del caboclo quale egli è attualmente, sono la rivolta del Cabanagem (1834-
1836) ed il Boom del caucciù (1850-1920), con la conseguente migrazione di contadini poveri dalle zone aride
del Nordest ( 1877) verso la lussureggiante foresta.
72

Na Amazônia, no entanto, tal aporte se revelou pouco adequado à


economia extrativa, evidenciando-se a dificuldade do negro em adaptar-se a um
ambiente tão diferente do seu, considerando-se a sua inexperiência desses
lugares. A apropriação colonial na Amazônia foi instável nesse período, limitada a
breves incursões de fazendeiros e pequenos extrativistas, fato que não impediu o
início de um intenso processo de "cruzamento" físico-cultural. Nesse contexto o
termo “caboclo” (se for aceita a derivação do tupi “caa” = “floresta” e “boc” =
“aquele que vem dela”, ou “aquele que vem da floresta”) indica o índio puro. Este
termo é usado pelos tupis da costa para referir-se aos seus inimigos de dentro da
floresta (ZACCARIA, s.d.).

Na primeira metade do século XVIII, com a chegada dos Jesuítas na


Amazônia, é dado início ao sistema que, em mais de um século, teria conduzido
os grupos nativos à perda de suas tradições e rituais, conseqüentemente de sua
identidade. Agrupado nas missões, o caboclo se representa no índio aculturado
ou mameluco, ou o mestiço nascido pelo pai europeu e mãe nativa. Então, se no
período missionário permanecem a organização de comunidade e a coletividade
dos meios de subsistência, os outros aspectos do passado tribal desaparecem ou
são esvaziados do seu significado, contribuindo para conferir à cultura cabocla,
um quase intrínseco senso de "vergonha de si mesma" (idem).

Em meados do século XVIII, com a expulsão dos jesuítas do Brasil (1755)


e o fim do sistema de missões, uma nova época teve início. Pombal, ministro
português, estabeleceu o Diretório dos Índios (1755-1789), que programou a
assimilação planejada de índios e mestiços na sociedade colonial por meio de sua
incorporação na economia regional. A língua geral, proibida por Pombal, se fundiu
com o português, originando a linguagem característica do caboclo amazônico;
caboclos e índios destribalizados, indispensáveis pelo conhecimento do ambiente,
foram inseridos no sistema de depredação dos recursos naturais que persiste até
hoje, enquanto outros foram reduzidos a escravos pelos administradores e
colonos que penetravam mais e mais na Amazônia (ZACCARIA, s.d.).

A expulsão dos jesuítas, de acordo com Parker (1985), foi uma reação ao
sucesso de sua empreitada: eles conseguiram o domínio econômico da colônia
com a transformação os índios em agricultores de subsistência, controlando
73

efetivamente o trabalho dos ameríndios, mantendo, entretanto, relativamente


intactos muitos dos seus costumes originais.

O caboclo, de acordo com a autora, tornou-se um trunfo para os jesuítas no


jogo de forças com a Coroa portuguesa, que reagiu expulsando os religiosos e
estabelecendo um Diretório de índios, por meio do qual o processo de
“caboclização”, iniciado com os jesuítas, foi completado. O objetivo do Diretório
era criar suficiente mão-de-obra para o desenvolvimento econômico da região
amazônica, no entanto os ameríndios “caboclizados” não serviram a esse
propósito, pois os caboclos se dispersaram e foram literalmente cuidar de suas
vidas.

The Crown reacted to Jesuit successes by expelling them from the


region and assuming responsibility for Amerindian affairs. The
promulgation of the Directorate in 1757 provided the mechanism through
which the caboclization of the Amerindian was completed. […] The goal of
the Directorate was to convert and Christianize Amerinds and by so doing
make them full fledged members of Portuguese society. Such
transformation of the Amerindian populace would constitute a major assault
upon their cultures and societies. However, the ultimate aim of the
Directorate was to create a sufficient labor force for the economic
development of the Amazon region. Caboclos, the transformed
Amerindians, did not serve this purpose. Though “detribalized”, the
caboclos dispersed throughout the interior of Amazonia engaged in
subsistence activities predicated upon indigenous resource perceptions
and technologies19 (PARKER, 1985, 38).

A integração em uma economia de mercado diversificada permitiu aos


caboclos o retorno àquela mobilidade espacial que o sistema de missões os havia
privado. Eles retornaram aos seus grupos de origem na floresta, tentando
restaurar a forma de vida tribal, e aqueles que se dispersaram ao longo das
margens dos rios, constituíram os primeiro grupos com um modo de vida livre e
adaptado ao ambiente, que caracteriza o modo de vida caboclo (ZACCARIA,
s.d.).

19
A Coroa reagiu ao sucesso dos jesuítas expulsando-os da região e assumindo a responsabilidade pelos
negócios dos ameríndios. A promulgação do Diretório, em 1757, proveu o mecanismo pelo qual a
caboclização do ameríndio foi completada. […] A meta do Diretório era converter e cristianizar os ameríndios
e assim torná-los integralmente membros de sociedade portuguesa. Tal transformação da população
ameríndia constituiria a principal agressão em suas culturas e sociedades. No entanto, o objetivo final do
Diretório era criar mão-de-obra suficiente para o desenvolvimento econômico da região amazônica.
Caboclos, os ameríndios transformados, não serviram a este propósito. Embora "destribalizados", os
caboclos dispersaram ao longo do interior da Amazônia, engajando-se em atividades de subsistência
baseadas em idéias e tecnologia indígenas.
74

Durante o século dezenove, quando por caboclo se entende o amazônida


rural, nascido de pai branco e mãe índia, dois eventos fundamentais contribuíram
para imprimir uma fisionomia precisa e conferir a ele algum sendo de identidade.
Esses eventos determinantes para a definição do caboclo como ele é atualmente
foram a Cabanagem (1834-1836) e o boom da borracha (1850-1920), com a
conseqüente migração de colonos pobres do nordeste árido para a floresta.

O movimento denominado Cabanagem, em especial, marca talvez o


delineamento de uma possível “identidade” cabocla. Na opinião de Zaccaria (s.d.),
mesmo que não seja possível conferir à Cabanagem a conotação de "luta de
classe ou raça", porque é difícil identificar uma sólida base ideológica, não se
pode considerá-la uma simples insurreição rural de massa, podendo esse evento
ser visto como um momento fundamental para a tomada de consciência, pelo
caboclo, da possibilidade de constituir para ele uma identidade própria.

Por outro lado, na opinião de Parker (1985) a Cabanagem serviu para


evidenciar a natureza pouco convincente do caboclo como revolucionário.
Restringindo seus interesses a assuntos locais, ele mostrou-se incapaz de
sustentar uma forte e contínua oposição ao poder econômico dominante.

The true nature of the caboclo would only appear after the acid test
of revolution, the cabanagem, revolt of 1835-1836 which plunged
Amazonian society into a bloody confrontation between the rural caboclo
and the urban seat of power. The molding of the caboclo into a
revolutionary was a slow and imperfect process which ultimately failed. The
caboclo proved to be a poor revolutionary, committed to only short range
local issues, and unable to forge a sustained attack against those who
controlled much of his economic foundation20 (PARKER, 1985, p. 51).

O fracasso do movimento, na visão desse autor, foi principalmente devido à


mentalidade individualista do caboclo e à falta de uma base ideológica forte:

The inability of the cabano leadership to mold the individual local


bands into a united fighting force also reflected the emphasis on the
individual. Local leaders, local groups, local grevances, all further
reinforced the multiple focus of the Cabanagem. It was no wonder at all
20
A verdadeira natureza do caboclo só se apareceria depois do teste decisivo da revolução, a cabanagem,
revolta de 1835-1836 que mergulhou a sociedade amazônica em uma confrontação sangrenta entre o
caboclo rural e a base urbana do poder. A moldagem do caboclo em um revolucionário foi um processo lento
e imperfeito que, no final das contas, falhou. O caboclo provou ser um revolucionário pobre, comprometido
somente com assuntos locais, e incapaz de forjar um ataque contínuo contra aqueles que controlavam a
maior parte de sua base econômica.
75

that the Cabanagem was characterized by a total lack of ideology or


theoretical construct. In fact, the very nature of the individualist caboclo
mentality doomed the cabanagem to failure as a change-producing
mechanism. Individualism set the tone of the Cabanagem and mandated
its demise21 (PARKER, 1985, p. 83).

Por seu turno, Souza (2001) considera o movimento um evento histórico


singular e de grande importância na história do Amazonas, mas que não teve o
devido relevo na ótica dos analistas.

Os acontecimentos políticos e militares que constituíram a


Cabanagem foram uma clara demonstração de que os agentes sociais da
Amazônia estavam não apenas experimentando a desmontagem final do
projeto colonial, mas que algo de muito profundo havia acontecido em seu
componente humano e apontava para o nascimento de uma civilização
original: os cabocos. Infelizmente, o pouco conhecimento da Cabanagem,
a bibliografia excelente mas reduzida sobre o assunto, até mesmo uma
ênfase na fase colonial e um certo viés conservador nas análises fizeram
com que um fenômeno histórico tão importante, de natureza única nas
Américas, fosse reduzido a um simples hiato de anarquia social das
massas incultas, perdendo-se assim um dos fios da meada do processo
histórico da Amazônia (SOUZA, 2001, p. 142).

O autor assevera que o movimento “transbordou como uma grande


enchente nas margens conhecidas da luta política e fez renascer o orgulho de
uma Amazônia indígena, que saiu de sua letargia para dar o troco de dois séculos
e meio de atrocidades” (SOUZA, 2001, p. 143).

O ciclo da borracha, na segunda metade do século XIX, introduziu na


Amazônia uma massa de pequenos agricultores pobres provenientes de zonas
áridas do nordeste do país, sobretudo do Ceará, de origem branca ou africana,
modificando sensivelmente a estrutura do mundo caboclo e contribuindo para
definir sua atual configuração.

Nesse contexto, observa Cardoso de Oliveira (1978), a menor produção do


índio é talvez o fator primordial que marca sua situação de caboclo,
caracterizando-o, assim, como mão-de-obra menos qualificada:

21
A inabilidade da liderança cabana para moldar os grupos locais em uma força lutadora unida refletiu a
ênfase no indivíduo. Líderes locais, grupos locais, dissidentes locais, tudo reforçou os focos múltiplos da
Cabanagem. Não é de se espantar que a Cabanagem tenha sido caracterizado por uma falta total de
ideologia ou construto teórico. Na realidade, a verdadeira natureza individualista dominante no caboclo
sentenciou a cabanagem ao fracasso como um mecanismo produtor de mudança. O individualismo fixou o
tom da Cabanagem e determinou a seu fim.
76

O branco “classe alta” fundamenta sua objetivação do caboclo no


prejuízo que este lhe acarreta no cumprimento das atividades de
produção; o branco “classe baixa”, baseado nas mesmas evidências de
baixa produtividade, estigmatiza o caboclo com termos similares, todos
expressando a diferença essencial entre seringueiros de etnia diversa: “o
caboclo trabalha mal porque ele é mais pra bicho do que pra gente”. E
muitos alardeiam que seu trabalho vale o de dez caboclos (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1978, 106).

Por outro ângulo, Weinstein (1985) endossa a opinião de Morán quanto à


relevância do caboclo no período anterior e posterior ao boom da borracha na
região amazônica. De acordo com esse estudioso, o caboclo tornou-se a figura
central naquele período precisamente por sua flexibilidade no trato e absorção
dos migrantes nordestinos:

One might argue that this process of “caboclization” occurred only


after the collapse, in response to a drastically different set of economic
circumstances, and has little to do with the boom period itself. Yet I think it
is more tenable to construct the opposite argument, even though it may
involve some speculation: that the work rhythms, world view, and socio-
economic relations that we associate with the caboclo community before
and after the rubber boom, actually had a direct impact on the boom period
itself. I am not alone in this opinion. In the words of the noted
Amazonianist, Emilio Moran (1974:139), “the caboclo became the chief
figure in this sixty-year ‘rubber period’, both because of his ability to labor
in the forest, and because of the caboclo culture’s ability to absorb the
many migrants that came from the Northeast”22 (WEINSTEIN, 1985, 90-1).

Naquele contexto, aponta Weinstein, os seringueiros se constituíram como


um grupo de pessoas ligadas em um mesmo sistema de relações de produção,
visão de mundo e modo de resistência, independente das diferenças étnicas ou
culturais originárias. No fundo era a figura do “caboclo” que sobressaía.

Whether “indian”, “caboclo”, ou “nordestino” in origin, the


seringueiros displayed certain common features as a class – that is, a
group of people who stand in the same relation to the means of production
– and developed a common world view and mode of resistance that had
greater significance than the obvious differences in ethnic or cultural
backgrounds. Combining production for the market with subsistence
activities, following a semi-migratory existence, organizing production
around the individual or femily unit, becoming dependent upon a patrão but
22
Alguém poderia argüir que este processo de "caboclização" só aconteceu depois do colapso, em resposta
a um jogo drasticamente diferente de circunstâncias econômicas, e tem pouco para ver com o próprio
período do boom. Eu ainda penso que é mais sustentável construir o argumento oposto, embora isso possa
envolver alguma especulação: que os ritmos de trabalho, visão de mundo, e relações sócio-econômicas que
nós associamos com a comunidade cabocla antes e depois do boom da borracha, de fato teve um impacto
direto no próprio período de estrondo. Eu não estou só nesta opinião. Nas palavras do “amazonista” notável,
Emílio Moran (1974:139), "o caboclo se tornou a figura principal nos sessenta anos do 'período de borracha',
tanto por causa da habilidade dele para trabalhar na floresta, quanto por causa da habilidade da cultura do
caboclo para absorver os muitos migrantes que vieram do Nordeste".
77

struggling to maintain some form of autonomy, the tapper became, or


remained, a caboclo23 (WEINSTEIN, 1985, 105-6).

Além do boom extrativista, outro evento que marcou época na vida dos
caboclos amazônicos foi, segundo Miller (1985), o projeto governamental de
colonização em larga escala, a partir da abertura de rodovias. Com a
Transamazônica, por exemplo, seria facilitada a emergência de comunidades ao
longo da estrada, incrementando em conseqüência a ocupação regional. Miller
estudou os impactos causados por essa estratégia desenvolvimentista na
comunidade de Itaituba, que também sofria os efeitos da exploração nos
garimpos, que atraíram não somente a população cabocla, mas também os índios
mundurucus e um crescente número de imigrantes.

A maioria dos depósitos minerais era fluvial, e os caboclos tiveram um


papel chave no processo de extração e na descoberta das minas. No entanto, o
sistema de trabalho nas minas, na relação patrão-empregado, era semelhante ao
da borracha, caracterizando-se pela espoliação da mão-de-obra cabocla. A
exploração mineral, reforça o autor, foi apenas um acréscimo na longa história de
exploração econômica a que tem sido submetido o povo da floresta, forjando a
constituição de uma única cultura reconhecidamente adaptada: a cultura cabocla.

Apesar de uma sensível diminuição do conhecimento relativo à natureza e


o incremento de técnicas predatórias, na opinião de Zaccaria (s.d.), o boom da
borracha não parece haver tocado a natureza profunda do caboclo. Os
nordestinos, por sua vez, se “caboclizaram” em vários âmbitos: depois de uma
fase nas zonas de extração do látex, eles adotaram o comportamento nômade
dos caboclos, seus meios de subsistência e parte de seu universo ideológico,
adaptando-se a uma ambiente natural antes percebido como estranho e hostil.
Mas também o caboclo, por meio da intensa fusão física e cultural, recebeu
alguns elementos externos que deram à sua cultura o caráter profundamente
sincrético da qual ela é hoje portadora.

23
Fossem “índios”, “caboclos” ou “nordestinos” na origem, os seringueiros exibiam certas características
comuns como uma classe - quer dizer, um grupo das pessoas que se colocam em uma mesma posição
relativamente aos meios de produção - e desenvolveram uma visão de mundo comum e modo de resistência
que têm maior significação prática do que as óbvias diferenças étnicas ou culturais. Combinando produção
para o mercado com atividades de subsistência, seguindo uma existência semi-migratória, organizando
produção ao torno do indivíduo ou unidade familiar, tornando-se dependente de um patrão, mas lutando
manter alguma forma de autonomia, o seringueiro se tornou, ou permaneceu, um caboclo.
78

2.4 O caboclo hoje

O moderno caboclo amazônico revela em seu tipo físico, como na sua


cultura, o caldeamento de elementos de origem ibérica e ameríndia, entrando
nessa composição, em proporção menos significativa, também o elemento
africano. A preponderância dos dois primeiros elementos foi condicionada por
fatores peculiares ao ambiente amazônico, fazendo da Amazônia uma área ímpar
no Brasil.

Nesse personagem, segundo Galvão (1979) estão presentes os caracteres


somáticos, seus componentes biológicos e culturais, alguns estereótipos que
circulam na região a seu propósito e as subjetividades identitárias do caboclo e do
habitante na cidade, associados à não valorização do contributo indígena na
formação das respectivas sociedades.

Quanto à forma como o índio e, por extensão, o caboclo, são vistos nas
comunidades urbanas, Silva (1996) reporta-se à existência de um “mecanismo
psicológico” inconscientemente utilizado pelos citadinos na tentativa de
obscurecer a condição de mestiço, traduzido na prática por uma suposta (e
forçada) valorização do índio como ancestral, não por consciência valorativa, mas
por sua condição de personagem histórico, numa posição idealizada e distante da
realidade social. A “identidade cabocla”, ao inverso, insiste em impor-se na
evidência dos traços somáticos:

No que tange aos valores que transitam no meio urbano, nos


quais se pode registrar “uma tendência para valorizar o ancestral e as
tradições tapuias” estas atitudes valorativas, na realidade, mascaram a
rejeição e o preconceito do homem urbano ou urbanizado em relação ao
índio, cujas ancestralidade e tradições são valorizadas apenas e só
porque os índios são personagens da história, portanto, distanciados e
idealizados (e deformados) no tempo histórico, e/ou se encontram,
espacialmente, muito afastados da floresta.
Por diferentes razões, este vínculo identitário é recusado e
rejeitado na subjetividade de muitos e na ação prática de outros. [...] A
ação prática pode concretizar-se em atitudes anti-índio, na difusão de
idéias estereotipadas a seu respeito e/ou, por interesses econômicos,
buscar subtrair-lhes direitos (SILVA,1996, p. 228).
79

As lentes pelas quais os indivíduos são vistos na Amazônia e classificados


numa ou noutra categoria étnico-cultural, segundo esse autor (p. 231),

têm suas origens constitutivas, por um lado, nas culturas (e nos


estereótipos que nelas estão contidos) e, por outro lado, nas posições de
classe do indivíduo que julga (e do grupo de semelhantes a que ele
pertence) e do indivíduo julgado e classificado com esta ou aquela
identidade.

Na opinião de Torres (2003, p. 25), no passado a imagem dos indígenas


como canibais e seres degradados serviu como pretexto para legitimar a
escravidão e naturalizar a inferioridade étnica, e hoje serve para justificar a
ausência de políticas públicas condizentes com as reais necessidades regionais.
Desde a conquista até os dias atuais, ao lado de processos intensos de
exploração do território amazônico, índios e cabocos24 foram e continuam sendo
considerados como “grupos sociais acomodados, passivos, preguiçosos e de
baixa estatura moral.”

Lima (1999) reforça essa proposição sobre a estereotipia como forma de


mascarar a dificuldade de compreensão do universo amazônico, que se traduz
em concepções contraditórias sobre a natureza e os seus habitantes,
representados pelo caboclo. Segundo ela:

O termo constitui uma categoria intermediária no sistema de


classificação social, situada entre categorias sociais opostas. Inicialmente
a oposição era designada exclusivamente em termos de raça. Agora, a
definição do caboclo implica uma série de oposições: pobre versus rico,
selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral,
indolente versus empreendedor. [...] O meio ambiente amazônico em si é
outra fonte de desacordo e é definido ora como abundante, ora como
agressivo. [...] O estereótipo caboclo e as opiniões que se têm sobre as
qualidades do meio ambiente são usados para explicar a pobreza humana
e o subdesenvolvimento da região (LIMA, 1999, p. 20).

Do estereótipo étnico do ameríndio, por sua vez, vem a idéia de que os


caboclos são culpados por sua má situação social. Seria, assim, a bagagem
cultural indígena responsável pela mesma “indisposição” para esforços pesados
atribuída aos índios. Oposto ao ideal de produtividade estabelece-se a “preguiça”
do caboclo, suposta herança da ociosidade indígena.

24
Grafia pela qual a autora optou para referir-se ao “caboclo” em sua tese de doutoramento.
80

Conjugada à idéia de preguiça vem a de indolência e acomodação (no


sentido de conformismo), tendo como justificativa as poucas conquistas
econômicas do caboclo, evidenciadas principalmente pela modéstia de sua
habitação e hábitos de vida. No entanto, pondera Lima, não são consideradas
suas condições de vida, no exuberante e complexo meio ambiente amazônico.

Essa decantada indolência, particularmente, é analisada por Souza (2001)


por ângulo totalmente contrário à acepção comum. Como anteriormente
mencionado, o autor chama de leseira a um comportamento que, segundo ele,
não corresponde ao sentido ordinário do termo, mas traduz um conceito filosófico-
existencial específico do povo caboco, usado como mecanismo de sobrevivência
após as frustrações e decepções historicamente vivenciadas e que culminaram
com o fracasso do movimento da Cabanagem.

Souza faz coro aos opositores a essa imagem negativa do caboclo atrelada
freqüentemente justamente à imagem de indolente. Viana Moog, por exemplo,
citado por Oliveira Filho (1979), exalta as qualidades adaptativas do caboclo, o
único capaz de vencer as dificuldades que um ambiente de grande complexidade
ecológica como a Amazônia apresenta, qualidade esta também enfatizada por
Miller (1985).

Lima (1999, p 18) também cita a consideração de Moog quanto ao caboclo


como “um bom equilíbrio racial”, no qual “as qualidades das raças índia e branca
são combinadas e produzem uma raça híbrida bem adaptada, capaz de conviver
com o meio ambiente social e ecológico amazônico”:
E embora Moog confirme a falta de ambição do caboclo, é só para
exaltar o fato de que essa qualidade lhe deu meios para levar a vida no
vale amazônico. Enquanto muitos migrantes nordestinos retornaram para
casa depois do colapso da economia da borracha, o caboclo permaneceu,
apesar das condições econômicas desfavoráveis. “Se não fosse pelo
caboclo sem ambições, não teria sido difícil prever o futuro da população
amazônica. Graças ao [caboclo]... a civilização amazônica continua sua
marcha” (idem, p. 18).

Álvaro Maia (apud SANTOS, 2002) reforça essa idéia, atribuindo ao


caboclo o “desbravamento” da Amazônia, pois foram eles que serviram de guias
para a entrada na região, por seu conhecimento das florestas e dos rios,
rejeitando ferozmente os atributos de “indolente” e “covarde” a ele impingidos.
81

Além disso, coube também ao caboclo, segundo o autor, em meio a uma natureza
selvagem e hostil, a tarefa de descobrir as formas de trabalho possíveis. Para
Alcarde (1962), o nativo da Amazônia chega a ser um herói anônimo, um
indivíduo de extraordinária resistência física e moral. O seu defeito, confundido
com indolência, é não ter ambição.

Lima (1999, p. 18-9) diz que é possível observar tanto na literatura


amazônica quanto no discurso regional exaltação às qualidades do caboclo,
particularmente no interior do Amazonas. “Na idealização positiva, o caboclo é
designado como alegre e sábio, como se diz, porque se satisfaz com a pura
existência e é, portanto, capaz de aproveitar a vida com mínimo esforço”. Na
literatura acadêmica também se encontram avaliações positivas como a de Morán
(1990), entre outros, que tem a cultura cabocla como o sistema humano adaptado
mais importante da Amazônia.

Na opinião de Silva (1996, p. 231), as diferentes formas de perceber o


caboclo são complementares entre si

e expressam a complexidade deste ser social, nas diferentes formas como


ele se constitui, no interior do processo de construção da sociedade
amazônica, na dinâmica das relações entre as classes, ao longo do tempo
histórico, na sua inserção na sociedade de classes como trabalhador
braçal e nas subjetividades identitárias, que exprimem, na vida social, por
um lado, o ego, o si, o mesmo, e por outro lado o outro, a alteridade.”

A concepção de “caboclo” é referida por ele como uma construção


subjetiva, que implica em “sentir-se” como tal:
O ser caboclo implica em ser objetivamente sentido porque é
subjetivamente constituído. O homem urbano ou urbanizado, qualquer que
seja a classe social em que se insira, mesmo quanto possui caracteres
somáticos similares aos do caboclo, não se sente caboclo, tem
consciência de que é detentor de outras expressões de cultura, ainda que
nestas possam estar – e na Amazônia estão – traços de origem indígena-
cabocla (SILVA, 1996, p. 229).

É a percepção empírica desse (não)-ser caboclo nos dias de hoje, no


contexto local, que se afigura indistinta e repleta de ambigüidades, observando-se
que a prática nas relações cotidianas, na maioria das vezes, contraria o discurso
dos sujeitos sobre o assunto, ou seja, até mesmo aquele de diz “ser” caboclo
freqüentemente evidencia não se “sentir” como tal.
82

O exercício interpretativo a seguir pretende promover uma articulação


dialética entre as instâncias básicas - nível das subjetividades e dos fatos
empíricos e o das interpretações teóricas - nas quais, segundo Silva, estão
assentadas as possibilidades de estudos sobre o caboclo da Amazônia, tendo por
base a realidade de Manaus, com o propósito maior, inerente à praxis acadêmica,
de ampliar um pouco mais o campo de discussão a respeito de tema tão
instigante.

3. RECOLHENDO FRAGMENTOS: UMA PERSPECTIVA DE


COMPREENSÃO DAS REPRESENTAÇÕES

Em princípio, o espelho reflete a imagem que


sobre ele se debruça, como uma espécie de
duplo do real... (...) sabemos que a imagem
refletida depende do olhar de quem contempla
e, como tal, o espelho pode operar de forma
invertida e deformante.25

25
Sandra Jatahy PESAVENTO, em O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de
Janeiro, Porto Alegre.
83

É
fato que qualquer proposta de estudo sobre o caboclo amazônico corre o
risco de se instaurar, desde a sua gênese, em bases movediças. Não
somente pela carência de um saber científico estruturado sobre o assunto,
mas também porque é um objeto que remete a amplas e diversificadas
possibilidades de elaboração e interpretação e inúmeras outras conexões teóricas
nas quais se faz necessário “escorar” o pensamento.

Alguns construtos teóricos, portanto, são indispensáveis para a tarefa


analítica e interpretativa que se pretende na composição deste estudo, sendo
fundamentais as noções de imaginário, cultura, estereótipo, alteridade e
representações para a articulação teórico-prática a ser empreendida. A teoria das
representações vem contribuir, pela via cognitiva, para a integração do estranho
em familiar e mesmo, readequando o passado ao presente, conforme Arruda
(1998, p. 43) “ ... estranhar – elementos até então familiares.”

Na proposição de Moscovici (1978) essa integração é feita pelo processo


de ancoragem, pelo qual se procura encontrar um lugar para encaixar o não-
familiar, em razão da tendência generalizada de rechaço ao estranho, o diferente,
assim como de informações, sensações e percepções que possam causar
desconforto. Na maior parte das vezes esse movimento implica juízo de valor,
pois a ancoragem pressupõe uma classificação dentro de alguma categoria que
historicamente comporta esta dimensão valorativa.
Castoriadis (1982, p. 375) diz que a representação “não pertence ao
sujeito, ela é, para começar, o sujeito”, referindo-se a esta como

a apresentação perpétua, o fluxo incessante no e pelo qual o que quer que


seja se dá. [...] A representação não é decalque do espetáculo do mundo;
ela é aquilo em que e porque ergue-se, a partir de um momento um
mundo. Ela não é aquilo que fornece “imagens” empobrecidas das
“coisas”, mas aquilo do qual certos segmentos aumentam de um índice de
realidade e se “estabilizam”, bem ou mal e sem que esta estabilização seja
jamais definitivamente garantida (idem, p. 375).

Um traço distintivo do ser humano é, sem dúvida, a capacidade de


verbalização. Pela fala o indivíduo, no seu meio social, é capaz de transformar o
84

outro e ser ao mesmo tempo transformado. Segundo Lane (1994), a linguagem é


um produto da coletividade e reproduz por meio dos significados das palavras e
frases os conhecimentos e valores associados às práticas sociais. Esta
proposição nos induz à idéia de que a representação social é em grande parte
construída no processo de comunicação, implicando a sua análise
necessariamente na análise do discurso do indivíduo (no sentido lato, não como
técnica interpretativa) que, por meio de suas escolhas e verbalizações,
contradições e lacunas, manifesta a sua visão de mundo e de si mesmo.

A linguagem é também considerada por Minayo (1996) como uma medição


privilegiada para compreensão das representações sociais:

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios


ideológicos e servem de trama para as relações sociais em todos os
domínios. Bakhtin chama a atenção para o fato de que cada época e cada
grupo social têm seu repertório de formas de discursos, determinado pelas
relações de produção e pela estrutura sócio-política. Portanto a palavra é
a arena onde se confrontam interesses contraditórios, veiculando e
sofrendo os efeitos das lutas das classes, servindo ao mesmo tempo como
instrumento e como material (MINAYO, 1996, p. 174).

Por sua vez, a linguagem expressa a elaboração de um pensamento que


evidencia uma determinada forma de enxergar a sociedade e suas relações
internas e externas, pensamento esse que não é homogêneo, mas uma sucessão
de consensos, com predominância de determinada formação ideológica em
determinado momento, mas sempre sendo adaptado, alterando a sua trajetória
conforme as variações do meio.
A predominância de uma determinada concepção social, de acordo com
Weigel (2000), vai depender de constante negociação e equilíbrio mutante. A
explicação e interpretação desse pensamento são possibilitados pela
hermenêutica, pela qual, defende Minayo (1996, p. 220), se pode alcançar mais
do que uma interpretação literal ou averiguação de sentido das expressões
verbais, mas “a compreensão simbólica de uma realidade a ser penetrada”.

Pela via reflexiva da hermenêutica dialética, nos moldes propostos por


Minayo (1996) como um “caminho do pensamento” tenta-se alcançar neste
trabalho uma compreensão mais aproximada quanto possível desse pensamento
social sobre o caboclo no contexto atual. Como enfatiza a autora, em
85

concordância com o pensamento de Lukács, nossos conhecimentos são apenas


aproximações da realidade sendo, por isso, relativos, mas também são absolutos
por representarem a efetiva aproximação da realidade objetiva existente
independente de nós, formando, portanto, uma unidade dialética.

Mas, questiona Minayo (1996, p. 238), “como podemos garantir a desejada


coincidência entre o pensamento sobre a realidade e a própria realidade?” A
resposta a essa indagação pressupõe um campo aberto de debate que engloba
não somente a produção empírica, mas a própria concepção da “realidade” a ser
estudada, pois o que é ou não “real” é uma construção subjetiva.

Dentro da perspectiva dialética da validade da pesquisa, a prática


não pode ser pensada apenas como atividade externa de transformação,
mas é importante incluí-la como compromisso social, e enfatizar a
dimensão interior, ontológica do ser humano enquanto criador, e da
realidade sócio-histórica como construção humana objetivada. Em relação
ao saber, é necessário abranger teoria e prática enquanto aproximação da
realidade, e teoria capaz de incluir e compreender a transformação social:
critérios ao mesmo tempo internos e externos que provam a lógica e a
sociológica do conhecimento (idem, p. 246).

A opção por este método para a análise de conteúdo é devida, também, à


idéia de que desvendar e entender melhor o caboclo na sua dimensão sócio-
histórica e psicológica é entender também a nossa história pessoal e social,
nossos condicionamentos e condicionantes. Ensina Ricoeur (1978, p, 18) que
“toda hermenêutica é, implícita ou explicitamente, compreensão de si mesmo
mediante a compreensão do outro” e por meio dessa compreensão o que o
intérprete persegue é a ampliação da compreensão de si próprio enquanto ser
social.

Tal proposição tem reforço em Castoriadis (1982), para quem a busca em


elucidar o ontem e o depois da “humanidade” só tem sentido como forma de
elucidação existencial própria. Diz ele que

o fato de que não possamos compreender o outrora e o alhures da


humanidade a não ser em função de nossas próprias categorias [...] não
traduz simplesmente as condições de todo conhecimento histórico e seu
enraizamento, mas o fato de que toda elucidação que empreendemos é
finalmente interessada, é para nós em sentido efetivo, porque não
existimos para dizer o que é, mas para fazer ser o que não é [...]. Nosso
projeto de elucidação das formas passadas da existência da humanidade
86

só adquire sentido pleno como momento do projeto de elucidação de


nossa existência... (CASTORIADIS, 1982, p. 197).

A dinâmica do processo de construção social, por sua vez, em ininterrupto


movimento, tem na visão dialética um enfoque perfeitamente ajustado à
necessidade de analisar um objeto que não pode ser imobilizado no tempo e no
espaço e está intimamente associado a outros objetos e fenômenos. Entende-se
que as representações do caboclo se insiram nesta perspectiva, principalmente
pelas suas determinações históricas. Em concordância ao pensamento de Engels,
afirma Lakatos (1986) que existe uma ligação intrínseca e necessária entre
elementos tanto da natureza quanto da sociedade, ambos compostos de objetos
e fenômenos em estreita ligação, dependência e condicionamento recíprocos.
Segundo ele,

o método dialético considera que nenhum fenômeno da natureza pode ser


compreendido fora dos fenômenos circundantes, pelos quais é
condicionado. Todos os aspectos da realidade (da natureza ou da
sociedade) prendem-se por laços necessários e recíprocos. Essa lei leva à
necessidade de avaliar uma situação, um acontecimento, uma tarefa, uma
coisa, do ponto de vista das condições que os determinam e, assim, os
explicam (LAKATOS, 1986, p. 97).

A união da hermenêutica com a dialética na concepção de Minayo (1996, p.


227), conduz o intérprete ao entendimento da comunicação oral ou escrita como
resultante de um processo social e de conhecimento, cada um com seu
significado específico, fruto de variadas determinações. O texto ou fala “é a
representação social de uma realidade que se mostra e se esconde na
comunicação, onde o autor e o intérprete são parte de um mesmo contexto ético-
político...”.

Como a fenomenologia, a hermenêutica traz para o primeiro plano,


no tratamento dos dados, as condições cotidianas da vida e promove o
esclarecimento sobre as estruturas profundas desse mundo do dia-a-dia.
[...] Ela se introduz no tempo presente, na cultura de um grupo
determinado para buscar o sentido que vem do passado ou de uma visão
de mundo própria, envolvendo num único movimento o ser que
compreende e aquilo que é compreendido (MINAYO, 1996, p. 221).

O estudo das representações sociais impõe a necessidade de utilização de


técnicas de coleta e de análise de dados que possam recuperar da melhor
maneira possível os elementos constitutivos da representação ou seu conteúdo,
87

conhecer a organização dos seus elementos e as relações entre os seus


constituintes, dentro de um contexto sócio-histórico no qual estejam inseridos.

Sendo as representações do caboclo amazônico o que importa interpretar,


empreendeu-se a tentativa de partir do aparente “caos” das informações
recolhidas no campo para fazer delas expressão da visão social de mundo do
segmento “caboclo” em relação à sociedade dominante, revelando, ao mesmo
tempo, sua especificidade de concepção e de participação no contexto
circundante.

Considerando que não é possível conceber a interpretação como uma


verdade absoluta, uma vez que não existe uma única interpretação, a tentativa de
análise aqui esboçada é um exercício de reflexão sobre as representações
emergentes dos discursos com a utilização de um modelo explicativo, que
pressupõe concepções teóricas que direcionam o curso dessas interpretações.

A interpretação dialética nos faz ver que as concepções sobre o caboclo


são resultado de condições anteriores e exteriores ao grupo entrevistado, mas ao
mesmo tempo específicas. Elas são fruto de condições dadas, mas são também
produtos de sua ação transformadora sobre o meio social e devem ser entendidas
como resultantes e como manifestações de condicionamentos sócio-históricos
que se vinculam a tradições culturais, concepções dominantes e veiculadas e a
interrelação de tudo isso. Essas representações constituem um fenômeno social
não apenas por que expressam socialmente, mas também porque são
manifestações da vida material, dos limites sociais e do imaginário coletivo.

A escolha das representações do caboclo amazônico como objeto de


pesquisa foi feita em razão do interesse despertado em vista de evidências
empíricas quanto à existência (ou resistência) de estereótipos fortemente
arraigados na cultura local relacionados ao termo, especificamente na cidade de
Manaus. Considerando que o complexo urbano reúne indivíduos de diferentes
procedências, tanto do interior do Estado quanto de outros estados brasileiros,
especialmente do nordeste, considerou-se o contexto da capital um locus
privilegiado para a realização deste trabalho de pesquisa, pressupondo-se a
88

heterogeneidade e diversidade de relações, como um dado capaz de evidenciar a


força e o grau de enraizamento de determinada idéia.

Jodelet enfatiza os suportes pelos quais as representações são veiculadas


e sedimentadas na vida cotidiana:

Esses suportes são basicamente os discursos das pessoas e


grupos que mantêm tais representações, mas também os seus
comportamentos e as práticas sociais nas quais estes se manifestam. São
ainda os documentos e registros em que os discursos, práticas e
comportamentos ficam institucionalmente fixados e codificados.
Finalmente, são as interpretações que eles recebem nos meios de
comunicação de massa que dessa forma retroalimentam as
comunicações, contribuindo para sua manutenção ou sua transformação...
(JODELET apud SÁ, 1998, p 73-4).

É fato reconhecido que a região Norte do país, não somente pela distância
geográfica, é vista de maneira estereotipada pelos habitantes do outro extremo.
Tal afirmação é facilmente comprovável em situações de contato entre pessoas
do sul com as do norte, especialmente do Amazonas, em vista do nível de
desconhecimento que se evidencia “dos de lá” em relação “aos daqui”.

Com seu fantástico poder de penetração em todos os níveis sociais, a


mídia nacional cumpre com grande eficiência o papel que na época da conquista
coube aos cronistas: disseminar e reforçar os estereótipos e preconceitos,
entendendo-se “preconceito” não com a conotação negativa com que é
comumente usado, mas na sua acepção mais objetiva de “conceito antecipado” e
“opinião sem base séria”.26

Verificar até que ponto esses estereótipos e preconceitos relativamente ao


caboclo estão presentes entre a população local, constitui, assim, o objetivo maior
desta investigação, considerando que tem havido nos últimos tempos uma certa
“movimentação” no sentido de “resgate” e valorização das chamadas raízes
culturais amazônicas. A Amazônia na última década, por sinal, virou quase que
um modismo, em razão da onda ambientalista que tomou conta do planeta.
Apressou-se então a administração pública em incentivar a “cultura de raiz”,
injetando recursos em manifestações folclóricas tipo exportação como o boi

26
Cf. Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss.
89

bumbá de Parintins, por exemplo, além de outras ações de menor vulto, voltadas
para o artesanato, música etc.

De uns tempos para cá tem havido como que uma tentativa de “retorno às
raízes”, uma espécie de chamamento “de sangue”, no caso, sangue indígena.
Mas, até que ponto essa re-valorização (se é que a cultura indígena foi algum dia,
valorizada na região) é real? Não seria essa valorização das origens uma
“tradição inventada”27? Ou seja, está mesmo havendo um processo de
conscientização cultural, no sentido de que a população de Manaus, em grande
parte resultante de miscigenação com antecedentes indígenas, está voltando seu
interesse e agregando valor às coisas “da terra”? Será mesmo que os produtos e
produções “típicos” estão significando para os amazonenses mais do que
significam para os “gringos”, ou seja, produtos exóticos?

Nesse caso, não haveria para o nativo como empreender uma viagem de
“resgate” às origens culturais sem situar-se como caboclo. Não seria possível
ignorar esse “elo”, esse “quase”, esse híbrido chamado caboclo que, a despeito
da forma como tem sido visto e tratado, permanece como “marca d’água” no pano
de fundo da história na Amazônia brasileira. No contexto citadino, pelo menos, o
que sobressai é um alheamento desses valores culturais, e o caboclo, como
referência identitária ou categoria social, parece ter deixado de existir. Os jovens
evidenciam com mais nitidez esse afastamento das origens, não somente nas
expressões cotidianas, nas posturas, nas comunicações, mas também no silêncio
e na ausência de definição pessoal.

Por isso foram os jovens os escolhidos para constituir a amostra na


pesquisa de campo, por constituírem uma categoria específica como indivíduos
em um momento particularmente importante, tanto na elaboração quanto na
concretização de conceitos. Ao mesmo tempo em que, teoricamente, estão
abertos a variadas influências, os jovens costumam expressar de forma mais
transparente e espontânea suas opiniões e estão em fase de maturação dos

27
Eric HOBSBAWM e Terence RANGER, no livro A invenção das tradições exploram o tema. A expressão é
aqui utilizada em sentido aproximado à idéia de que, com vista a determinados fins, faz-se a utilização de
elementos antigos na elaboração de novas tradições, podendo haver o enxerto dessas novas tradições
“inventadas” nas velhas (originais), usando-se a história como legitimadora das ações e como “cimento da
coesão grupal”. De acordo com os autores, quanto os velhos usos e costumes se conservam, não é
necessário recuperar nem inventar tradições.
90

conceitos apreendidos, assumindo, em alguns casos, de maneira mais autêntica


suas próprias idéias, formatadas na convivência familiar e social.

Como estudantes de nível médio, eles em tese estão se preparando para


encarar uma etapa mais séria da vida, uma opção profissional, o que implica em
capacidade de escolha e discernimento. Além disso, de acordo com as novas
orientações curriculares, a questão regional é obrigatoriamente enfocada no
processo educacional.

O instrumento selecionado para abordagem dessa amostra foi uma


entrevista semi-estruturada, elaborada de modo a tentar obter dados relevantes
sobre idéias, crenças, opiniões e condutas do indivíduo, assim como possíveis
razões conscientes e inconscientes dessas construções. E também revelar,
dentro das limitações do instrumento, sistemas de valores e normas e as
representações do grupo na qual o indivíduo está inserido, nas condições sócio-
históricas e culturais específicas do momento.

O roteiro da entrevista foi feito a partir dos elementos que emergiram no


grupo focal, composto por nove voluntários, alunos de nível médio da Escola
Estadual Ernesto Penafort, na zona leste de Manaus, sem distinção de gênero ou
idade, convidados a participar de um “papo” sobre cultura amazônica. Com a
aquiescência da direção da unidade, a reunião foi feita na cantina da escola, no
horário de aula, enquanto os outros alunos estavam em sala, e durou pouco mais
de uma hora. Foi informado a eles que aquela atividade integrava uma pesquisa
acadêmica, e que não tinha finalidade de avaliá-los ou instruí-los, mas somente
de coleta de dados preliminares. Os estudantes pareciam estar à vontade, na
medida do possível, mas sempre com uma margem de reserva pelo fato de
saberem que estavam sendo observados.

O início da abordagem foi dificultado pelo receio de não suscitar uma


discussão proveitosa. A opção foi por um assunto que mobilizasse o interesse do
grupo e provocasse a emergência dos dados espontaneamente. O “carnaboi”,
uma criação que une as coreografias das apresentações do boi bumbá com ritmo
de carnaval, foi a opção escolhida, tendo sido questionado de início o que eles
achavam do evento como manifestação cultural. As respostas foram na maioria
91

favoráveis, e as palavras “cultura”, “resgate”, “tradição”, “identidade” e “indígena”


foram recorrentes. Progredindo na discussão, o termo “caboclo” foi naturalmente
introduzido, quando alguém disse que gostava de boi porque tinha “sangue
caboclo”, sendo contestado por outro que alegou que o “povo amazonense era
descendente de índio, não de caboclo.”

Emergiram da discussão as associações mais comuns, como: homem do


interior, homem da roça, descendente de índio, ribeirinho, pescador, matuto,
mestiço, preguiçoso, homem rural, pessoa da terra, pessoa sem estudos, pessoa
ignorante, mateiro, traiçoeiro, homem feio etc. Um dado relevante observado foi
que, sempre que instigados, havia uma certa resistência a falar no assunto, como
se não interessasse. “Não tem muito o que falar sobre caboclo”, disse um deles,
“porque isso é coisa de gente do interior”.

O roteiro da entrevista foi elaborado, assim, considerando as dificuldades


de acesso às informações pretendidas por via direta, tomando por base também
alguns dados para direcionamento das perguntas como, por exemplo, qual a
imagem física que eles têm sobre o caboclo, nível cultural e intelectual,
capacidade produtiva etc.

Procurou-se, então, de acordo com as orientações de Jodelet (1998), além


das questões objetivas sobre o contexto sócio-familiar do entrevistado, incluir
perguntas relacionadas mais concretamente às suas experiências cotidianas,
passando sutilmente a questões envolvendo reflexões mais abstratas e
julgamentos, de forma a encaminhar a entrevista para os conteúdos que não são
revelados espontaneamente e que, muitas vezes, nem são verbalizados. Esse
“não dito”, na opinião de Jodelet, geralmente é o principal conteúdo da
representação.

A classificação dos dados foi feita a partir do material recolhido, em relação


com o embasamento teórico dos pressupostos e hipóteses estabelecidos a partir
de leitura exaustiva e repetida dos textos (leitura flutuante), com o fim de
apreender as estruturas de relevância dos atores sociais e as idéias centrais que
buscam transmitir. As categorias analíticas teoricamente estabelecidas para
92

norteamento da investigação foram relacionadas às categorias empíricas,


buscando-se as relações dialéticas entre elas.

Foram constituídos, com base nessa classificação, unidades de registro ou


significação, considerando o conteúdo empiricamente manifestado. A partir
dessas unidades, confrontando os conteúdos empíricos com as variáveis teóricas
já esboçadas, procedeu-se ao “enxugamento” da classificação com vista ao
aprofundamento do conteúdo das mensagens, discriminando-se os temas mais
relevantes e reagrupando-os em torno de categorias centrais entre si
concatenadas.

3.1 Conhecendo o terreno: o real e o imaginário nas representações

Conforme mencionado, os sujeitos da pesquisa são 30 jovens estudantes


do ensino médio de duas escolas públicas de Manaus. Em princípio pretendeu-se
restringir a faixa etária de 15 a 18 anos, em razão de ser esta a média de idade
de estudantes deste nível de ensino. Constatou-se, entretanto, que esta
delimitação não seria viável porque a participação seria voluntária, e em escolas
da rede pública essa faixa é bastante flexível.

Na Escola Estadual Francisco Albuquerque, localizada na rua Joaquim


Nabuco, no centro da cidade, foram entrevistados alunos do primeiro ano, turno
noturno. Um bom número de alunos da turma na qual foram feitas as entrevistas,
tinham idade acima de vinte e cinco anos, havendo, inclusive, alunos com mais de
trinta anos. Foi esclarecido, então, que a pesquisa propunha uma faixa de idade
específica, tendo esta sido estendida para até 20 anos, tendo em conta a
realidade ali evidenciada, onde jovens que já poderiam estar cursando a
universidade iniciavam o ensino médio. A escolha dessa escola se deu em razão
de sua localização: por estar situada no centro da cidade, teoricamente a sua
clientela seria constituída de indivíduos de bairros diversos, possibilitando uma
amostra mais heterogênea.

Quinze outros alunos, do terceiro ano, foram entrevistados na Escola


Estadual Ernesto Penafort, na zona leste de Manaus. A escolha de uma escola
93

desse bairro periférico da cidade foi feita por conta das características físicas
predominantes nos moradores, em grande parte evidenciando os traços
somáticos indígenas mais conhecidos, ou seja, cor morena, cabelos lisos, rosto
arredondado, olhos pretos etc. O interesse neste aspecto particular era saber se
um indivíduo que fisicamente poderia ser apontado como caboclo se identificaria
como tal, dado considerado importante para algumas elaborações teóricas
previamente esboçadas.

Na transcrição resumida das entrevistas foi feita uma numeração


seqüencial de 1 a 30, sendo os primeiros 15 entrevistados os alunos do primeiro
ano da Escola Estadual Professor “Francisco Albuquerque”, e os 15 subseqüentes
os alunos do terceiro ano da Escola Estadual “Ernesto Penafort”. Para efeito de
melhor visualização e para facilitar a explanação, foram discriminadas em um
quadro-resumo as informações gerais sobre o contexto dos entrevistados (sexo,
idade, cor, naturalidade, local de moradia, nível de instrução e ocupação dos pais)
e, adicionalmente, um dado considerado importante para este estudo, relativo às
fontes de informação mais utilizadas, além da escola.

O dado quanto à “cor” dos entrevistados também foi destacado como


relevante em virtude da pesquisa estar voltada para uma categoria cujas
características somáticas constituem base para um dos estereótipos a ela
atribuídos: a predominância dos traços indígenas nos caracteres físicos.

Quadro Resumo – Informações Gerais

I
N Natur S Onde Instrução Fontes
dad Cor Ocupação pais
º al exo reside pais informação
e
1 AM F 17 more Petrópoli Pai nv. fund. Pai mecânico e mãe Quadrinhos e
na s Mãe fund. doméstica TV (MTV)
incpl..
2 MA F 20 negr Alfredo Mãe fund. Mãe doméstica Revistas e TV
a Nascime incompl.
nto
3 MA F 20 more Grande Pai e mãe Pai garimpeiro e mãe Bíblia, jornal e
na Vitória nível vendedora conversa
fundamental
4 PA M 20 more Nova Pai e mãe Pai agricultor e mãe Livros
no Conquist fundam. doméstica diversos, TV
a Incompl. (jornalísticos)
5 AM F 19 branc São (Pai Mãe industriária Romances TV
a Francisco separado) (filmes,novela
94

Mãe nível s)
médio
6 RO M 16 negro Jorge Pai fund. Pai lanterneiro e mãe Revistas e TV
Teixeira incompl. Mãe pintora (novela,
ensino médio desenho)
7 AM M 19 moren Educandos Pai Pai pescador Mãe Revista Veja e TV
o alfabetizado doméstica (desenho)
Mãe fund.
incompl.
8 AM M 19 moren Compensa Pai e mãe nv. Pai comerciante Mãe Revistas e TV
o fund. doméstica
9 MT F 20 moren Japiim Pai e mãe Pai vendedor Mãe Bíblia e televisão
a nível doméstica (jornal e novela)
fundamental
10 MA M 19 branc Novo Mãe Mãe cobradora Televisão
o Israel fundamental ( filmes)
11 AM F 18 branc São Lázaro Pai médio Pai “faz tudo” e mãe Televisão
a incompl. Mãe vende roupa
fundamental
12 AM M 15 pardo São José Pai nível Pai eletricista e mãe dona Revistas e
Operário médio Mãe de casa televisão
md. incompl.
1 AM M 18 branc Campos Pai e mãe Pai administrador e Revistas e
3 o Elíseos nível mãe func. Pública televisão
superior
1 AM M 17 more Jardim Pai e mãe Pai téc. administr. e Rádio e TV
4 no Petrópoli nível médio mãe doméstica (progs.
s policiais)
1 AM M 15 pard São José Pai e mãe Pai aux. administr. e Jornal, livros
5 o nv médio mãe artesã de poesia, TV
1 AM F 17 more São José Pai nível Pai contabilista e mãe Revistas e TV
6 no dos superior dona de casa (filmes,desenh
Campos Mãe nível os)
médio
1 AM F 17 more São José Pai nível Pai soldador e mãe Livros de
7 na II médio Mãe dona de casa química e TV
fundamental (novelas)
1 AM M 17 more Tancredo Pai médio Pai motorista e mãe Jornais e Tv
8 no Neves incompl. dona de casa (filmes,
Mãe desenho)
fundamental
1 AM F 17 branc Cidade Pai e mãe Pai e mãe Romances,
9 a de Deus nível comerciantes televisão
fundamental (novela)
2 AM M 19 more São José Pai e mãe Pai e mãe vendedores Revistas e TV
0 no nível médio (filmes e
incompleto novelas)
2 AM F 18 more Tancredo Pai e mãe Pai vendedor e mãe Revistas e
1 no Neves nível dona de casa televisão
fundamental
2 AM F 19 branc São José Pai e mãe Pai autônomo e mãe Livros
2 a II nível dona de casa literatura,
fundamental jornais, TV
2 AM M 19 more São José I Pai Pai fotógrafo e mãe Televisão
3 no fundamental professora (jornais,progra
Mãe nv. mas)
superior
2 PA F 16 branc Novo Pai e mãe Pai comerciante e Rev.
4 a Aleixo nível mãe dona de casa educativas e
fundamental TV (noticiário)
2 AM F 18 more São José Pai e mãe Pai oper. máquina e Revistas
5 na III nv. médio mãe revisora variadas, TV
prg.
educativos
2 AM M 16 branc São José Pai nível Pai funcionário público Palavras
6 o III médio Mãe cruzadas, TV
falecida (filmes)
2 PA F 18 more Zumbi I Pai nível Pai empresário e mãe Televisão
7 na superior tec. enferm. (filmes e
Mãe nível. novelas)
95

médio
2 AM F 19 more São José I Pai nível Pai aposentado e mãe Livros
8 na médio serv. gerais literatura e
Mãe religião e TV
fundamental
2 RR F 18 pard Comunid Ambos nível Pai autônomo Mãe Revistas
9 a ade de fundamental doméstica diversas,
Deus jornal, TV
3 AM M 20 more Tancredo Pai Pai segurança Mãe Livros,
0 no Neves fundamental doméstica revistas, TV
Mãe nível.
médio

O quadro pretende sintetizar o plano da realidade objetiva quanto ao grupo


amostral, esboçando a conjuntura sócio-econômica e cultural na qual o grupo se
insere e sua participação enquanto ator social; condições de renda (no caso
familiar), moradia e distribuição geográfica, além dos recursos informacionais aos
quais o grupo tem acesso, de maneira a subsidiar o estudo das condições de
produção e circulação das representações sociais. Interessa saber quais as
relações que a emergência e a difusão das representações sociais têm com
valores, modelos culturais, comunicação interindividual, institucional e de massa,
contexto ideológico e histórico, inserção social dos sujeitos etc.

Do ponto de vista histórico, a postura interpretativa dialética [...]


toma como centro da análise a prática social, a ação humana e a
considera como resultado de condições anteriores, exteriores mas
também como práxis. Isto é, o ato humano que atravessa o meio social
conserva as determinações, mas transforma o mundo sobre as condições
dadas (MINAYO, 1996, p. 232).

De acordo com a orientação de Minayo, no caso das representações sobre


o caboclo, é necessário entendê-las como frutos e manifestações de
condicionamentos sócio-históricos, interrelacionando tradições culturais e as
concepções dominantes veiculadas. A identificação dessas representações como
um fenômeno social, é feita não apenas por que expressam socialmente, mas
também porque são manifestações da vida material, dos limites sociais e do
imaginário coletivo.

Assim, as concepções sobre o caboclo são resultantes de condições


anteriores e exteriores ao grupo entrevistado, em grande parte de condições
dadas, mas são também produtos da ação dos sujeitos sobre o meio social. De
acordo com Guareschi (1997, p. 20), “é quando as pessoas se encontram para
96

falar, argumentar, discutir o cotidiano, ou quando estão expostas às instituições,


aos meios de comunicação, aos mitos e à herança histórico-cultural de suas
sociedades, que as representações sociais são formadas.”

Um dos pressupostos metodológicos estabelecidos por Minayo (1996) é


que o pesquisador tem que aclarar para si mesmo o contexto de seus
entrevistados, porque o discurso expressa um saber compartilhado com outros,
do ponto de vista moral, cultural e cognitivo. O pesquisador só pode compreender
o conteúdo significativo de um texto quando está em condições de tornar
presentes as razões que o autor teria para elaborá-lo, tendo em conta que o texto
reflete a relação existente entre o sujeito que comunica e aquele que interpreta
como personagens, em última instância, do mesmo tempo e da mesma história
social.

Quem são, e como vivem os sujeitos da pesquisa? Os entrevistados são


em sua maioria amazonenses: dos 30 participantes, apenas 8 não são naturais de
Manaus (24%), e 5 desses 8 são da região norte (Pará e Roraima). São jovens
em maioria provenientes de família de baixa renda, haja vista a ocupação dos
pais, e o baixo nível de instrução. A fonte de informação preferencial é a televisão.
O que este contexto pode significar relativamente à produção de representações
sobre o caboclo, ainda não é possível inferir, mas é possível pressupor a
existência de condições desfavoráveis ao desenvolvimento de consciência crítica
e mesmo de capacidade analítica em relação à sua realidade social.

Não significa supor, no entanto, que “pobre” não pense e não critique, ou
que possua pouca capacidade de entendimento e discernimento, mas que as
condições sócio-econômicas menos privilegiadas, por si só, já restringem e
condicionam as práticas sociais, principalmente quanto à aquisição e expansão
de conhecimentos. A faixa etária dos primeiros quinze entrevistados, alunos da
primeira série do nível médio, é significativa neste sentido, já que apenas dois
alunos (um de 15 e outro de 17 anos) estão em idade considerada mais
adequada ao que se poderia esperar para uma evolução normal na “carreira
estudantil”, evidenciando nos demais um “atraso” na trajetória para aquisição de
um requisito indispensável para o acesso ao mercado de trabalho, que é a
conclusão do nível médio.
97

Além disso, além da escola, é na televisão preferencialmente que esses


jovens vão buscar informações, e as revistas mencionadas são as que divulgam
“fofocas” de TV, com raríssimas exceções. Como formar opiniões em jovens cujo
acervo informacional não parece incluir elementos que dêem base para a
constituição de debates e o raciocínio crítico? O discurso dos entrevistados, visto
a seguir, mostra esta lacuna e configura um vazio conceitual que pode vir a
constituir (ou já está se constituindo) em terreno fértil para a reprodução de
atavismos pouco favoráveis à cultura local e à formação pessoal dos
entrevistados.

Morin (2001, p. 16-7) alerta para a dispersão do saber em unidades


informacionais, fazendo coro a T. S. Eliot quando este questiona: “Onde está o
conhecimento que perdemos na informação?”. As informações, ensina Morin,
constituem parcelas dispersas do saber e “em toda parte, nas ciências como nas
mídias, estamos afogados em informações.” O conhecimento só pode ser assim
considerado quando constituído de forma organizada, interrelacionado com as
informações e inserido no contexto destas. Os fragmentos de conhecimento só
servem para uso técnico e

não conseguem conjugar-se para alimentar um pensamento capaz de


considerar a situação humana no âmago da vida, na terra, no mundo, e de
enfrentar os grandes desafios de nossa época. Não conseguimos integrar
nossos conhecimentos para a condução de nossas vidas. Daí o sentido da
segunda frase de Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no
conhecimento?” (MORIN, 2001, p. 16-7).

O autor afirma que a reforma do pensamento é necessária e fundamental


para a mudança de paradigmas, mas ela não se dá de maneira simples e
instantânea, e sim à custa de um processo que começa no início da vida escolar,
pois a cultura também se ensina e se reproduz na escola, em processo contínuo,
assim,

só poderemos começar a reforma do pensamento na escola primária e em


pequenas classes. [...] é nesse nível que devemos nos beneficiar da
maneira natural e espontaneamente complexa do espírito da criança, para
desenvolver o sentido das relações entre os problemas e os dados.
Sempre nos deparamos com este problema de fundo, o fato de que a
reforma do pensamento só pode ser realizada por meio de uma reforma
da educação (MORIN, 1999, p. 34).
98

Na opinião de Torres (2003, p. 274), “como formador de opiniões e visões


de mundo, o processo educativo desempenha um papel fundamental na
construção das representações sociais dos indivíduos.” De acordo com a autora,
a resistência do preconceito ao tempo e às transformações sociais ocorre “porque
sua desconstrução não foi incorporada pelo processo educativo”.

3.2 Analisando os fragmentos: o dito e o não-dito

O que os jovens entrevistados sabem (conjunto de concepções) sobre o


caboclo amazônico e como representam esse saber? No desdobramento do
processo de classificação e ordenamento dos dados empíricos, foram separadas
e agrupadas as respostas dos entrevistados a cada pergunta, com o intuito de
facilitar a percepção dos pensamentos expressados pelo grupo. Inferindo sobre o
seu conteúdo, procede-se à análise dos processos de sua formação e sua lógica
própria, contradições e convergências e de sua eventual mutação, tendo como
objetivo encontrar nesses textos uma significação particular e um papel revelador
do todo.

Isso implica também considerar na análise interna, como parte das


representações, conforme orienta Minayo (1996), os signos (substantivos, verbos,
adjetivos etc), com a certeza das contradições ocultas e de idéias existentes não
expressas. Nesse “instante hermenêutico”, apenas para fins analíticos o material
de representação social será provisoriamente tomado como um conjunto
separado, a ser tecnicamente trabalhado e cuidadosamente analisado.

Neste trabalho primeiramente estão elencadas perguntas em relação mais


estreita e, a cada conjunto de respostas, procede-se uma análise preliminar, com
vistas ao posterior estabelecimento de categorias gerais de sentido. Na
composição do roteiro de entrevista procurou-se “cercar” o tema com
questionamentos de ordem geral – Amazônia, Amazonas, índios, homem
amazônico – contextualizando o tema principal, o “caboclo”, de maneira a permitir
a identificação de dissociações entre esses elementos, fato por si só merecedor
de análise.
99

Tabela 1
A Amazônia é um assunto que interessa a você? Tem informações a respeito?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não, nem tem informações.
na
2 MA F negr Sim, e tem informações sobre “os rios, a mata as
a pessoas”.
3 MA F more Um pouco, mas não tem informações.
na
Tabela 1 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
4 PA M more Sim, principalmente pela exploração dos recursos.
no
5 AM F branc Sim, tem algumas informações gerais.
a
6 RO M negro Sim, interessa-se pela preservação e exploração dos
recursos naturais.
7 AM M more Sim, “pelos rios, matas, fauna e flora”.
no
8 AM M more Não, e não tem informações.
no
9 MT F more Sim, por questões gerais.
na
10 MA M branc Sim, pela questão da biodiversidade.
o
11 AM F branc Não muito, nem tem informações.
a
12 AM M pardo Sim, pelos aspectos de ecologia e cultura.
13 AM M branc Sim, pela ecologia e preservação.
o
14 AM M more Não, nem tem informações.
no
15 AM M pardo Sim, pela ecologia.
16 AM F more Sim, pela geografia e cultura.
no
17 AM F more Sim, pelos aspectos econômicos.
na
18 AM M more Sim, pela floresta.
no
19 AM F branc Sim, pela flora e fauna.
a
100

20 AM M more Sim, pelo turismo e vegetação.


no
21 AM F more Sim, pelo desenvolvimento da região.
no
22 AM F branc Sim, pela organização social e econômica.
a
23 AM M more Sim, pela fauna e flora.
no
24 PA F branc Sim, por assuntos econômicos.
a
25 AM F more Sim, pela natureza e riquezas.
na
26 AM M branc Sim, assuntos gerais.
o
27 PA F more Sim, pelo desenvolvimento ambiental e ecológico.
na
28 AM F more Sim, pela biodiversidade.
na
29 RR F parda Sim, em todos os aspectos.
30 AM M more Sim, pelos aspectos geográficos, humanos e culturais.
no

Tabela 2
Você se interessa por questões relativas ao Amazonas? Tem informações?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não, nem tem informações
na
2 MA F negr Sim, pelas festas, música, festivais etc.
a
3 MA F more Um pouco, mas não tem informações.
na
4 PA M more Sim, um pouco.
no
5 AM F branc Sim, pois tem orgulho de onde mora.
a

Tabela 2 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
6 RO M negr Sim, pela política, educação e patrimônio histórico e
o cultural.
7 AM M more Sim, pelos rios, matas, fauna e flora.
no
8 AM M more Não, nem tem informações.
101

no
9 MT F more Não, nem tem informações.
na
10 MA M branc Sim, pela cultura e segurança.
o
11 AM F branc Não muito. Não tem informações.
a
12 AM M pard Sim, pelos aspectos de ecologia e cultura.
o
13 AM M branc Sim, pela preservação.
o
14 AM M more Não, nem tem informações.
no
15 AM M pard Sim, pelo futuro dos animais e plantas.
o
16 AM F more Sim, pelas condições do povo.
no
17 AM F more Sim, pela política, desemprego etc.
na
18 AM M more Sim, pelos povos indígenas do passado.
no
19 AM F branc Sim, pelas questões sociais.
a
20 AM M more Sim, pela política.
no
21 AM F more Sim, pela história.
no
22 AM F branc Sim, pela organização social e política e aspectos
a econômicos.
23 AM M more Não, nem tem informações.
no
24 PA F branc Sim, por toda as questões.
a
25 AM F more Sim, pela história e natureza.
na
26 AM M branc Sim, pela história, a Zona Franca etc.
o
27 PA F more Sim, pelo crescimento e desenvolvimento do Estado.
na
28 AM F more Sim, pelos acontecimentos gerais nos municípios.
na
29 RR F pard Sim, por política, violência, emprego, municípios etc.
a
30 AM M more Sim, pelas cidades e história.
no
102

Tabela 3
Você conhece a história do Amazonas? Qual(is) a(s) fonte(s) de informações?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não.
na
2 MA F negra Sim, por meio da escola.
3 MA F more Sim, por meio da escola e falado às vezes em casa.
na
4 PA M more Sim, por meio da escola.
no
5 AM F branc Sim, por meio da escola.
a
6 RO M negro Sim, por meio da escola.
7 AM M more Sim, por meio da escola.
no

Tabela 3 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
8 AM M more Sim, por meio da escola.
no
9 MT F more Um pouco, por meio da escola.
na
10 MA M branc Não.
o
11 AM F branc Não.
a
12 AM M pard Não muito, por meio da escola.
o
13 AM M branc Sim, por meio da escola.
o
14 AM M more Não.
no
15 AM M pard Sim, por meio da escola.
o
16 AM F more Um pouco, por meio da escola.
no
17 AM F more Um pouco, por meio da escola.
na
18 AM M more Um pouco, por meio da escola.
no
19 AM F branc Um pouco, por meio da escola.
a
20 AM M more Um pouco, por meio da escola.
no
103

21 AM F more Sim, por meio da escola.


no
22 AM F branc Sim, por meio da escola.
a
23 AM M more Não.
no
24 PA F branc Quase nada.
a
25 AM F more Um pouco, por meio da escola.
na
26 AM M branc Um pouco, por meio da escola.
o
27 PA F more Sim, por meio da escola.
na
28 AM F more Sim, por meio da escola.
na
29 RR F pard Um pouco, por meio da escola.
a
30 AM M more Sim. por meio da escola.
no

Sobressai nas respostas sobre a Amazônia a idéia de “natureza” (no


sentido genérico do termo), expressa nas palavras recorrentes ecologia,
preservação, biodiversidade, riquezas, recursos, fauna, flora, vegetação. O ideário
sobre a natureza amazônica, alimentado e disseminado pelos viajantes,
possivelmente aliado ao globalizado “mito da natureza intocada”, criticado por
Diegues (1997), é o que aparentemente prevalece na mentalidade dos sujeitos.
Talvez uma idéia abstrata e global das potencialidades da natureza como um
patrimônio a ser protegido e preservado, em lugar de uma real consciência do
valor intrínseco do patrimônio genético e da biodiversidade regional.

Esse mito da natureza intocada e intocável reelabora não somente


crenças antigas, mas incorpora também elementos da ciência moderna,
como a noção de biodiversidade, das funções dos ecossistemas, numa
simbiose expressa pela aliança entre determinadas correntes das ciências
naturais e do ecologismo preservacionista. [...] Isso apesar de evidências
científicas crescentes de que, nas diversas centenas de milhares de anos
de vida humana, os homens de uma forma ou outra interferiram, com
maior ou menor intensidade, nos diversos ecossistemas terrestres, hoje
restando muito pouco de natureza virgem intocada (DIEGUES, 1997, p.
316).

Essa noção generalizada e não atualizada, segundo Arruda (1998), funda


suas raízes no processo brasileiro de colonização, quando o imaginário já
104

instalado sobre o novo mundo produziu representações que omitiram a relação da


sociedade com a natureza, encobrindo tanto uma quanto a outra, sendo esta
última emblematizada, transformada em essência inalcançável. Essa idealização
ofuscou a presença humana e contaminou com o exotismo o pensamento sobre a
região.

O imaginário coletivo dos europeus, segundo Costa (2000, p. 122), situou a


Amazônia no século XIX atrelada a uma imagem de exuberância, diversidade e
exotismo:

A idéia de Amazônia como Inferno ou Paraíso marcou o


pensamento de uns ou de outros, conforme a experiência por eles aqui
vivida, cruzou com o conteúdo de suas bagagens, em termos de
expectativas, preconceitos e visão de mundo. De certa maneira, quase
toda a literatura produzida sobre a Amazônia expressava essa dicotomia.

Sabe-se que nas últimas décadas foram levantadas bandeiras, sobretudo


pelos movimentos ecológicos, nas quais a região amazônica é invocada como
reserva mundial de energia, pulmão do mundo; celeiro ou santuário da
biodiversidade mundial e por aí afora. A Amazônia pode ser considerada
atualmente a “marca” brasileira mais conhecida (e vendida) não somente no
exterior, mas também em outras regiões do país, que só conhecem a sua face
exótica.

Os efeitos dessa ótica reducionista são perversos em todos os sentidos,


por reproduzirem, nos próprios brasileiros, o “estranhamento” dos colonizadores
em relação ao paraíso/inferno verde; por desconsiderarem o homem nesse
cenário; por obstaculizarem avaliações realistas e investimentos políticos mais
pertinentes e adequados à região e até mesmo a o avanço de estudos científicos
sobre o componente humano desse cenário e os seus saberes.
Essa distorção instaura, segundo Diegues (1997), um neomito, segundo o
qual

o mundo natural tem vida própria, é objeto de estudo e manejo,


aparentemente sem participação do homem. O saber moderno se arvora
não só em juiz de todo o conhecimento, mas até da proteção de uma
natureza “intacta”, portadora de uma biodiversidade sobre a qual a ação
humana teria efeitos devastadores. Não é para menos que em todas as
áreas naturais protegidas, a pesquisa científica é permitida, mas não o
etnoconhecimento, pois esse exige a presença das comunidades
105

tradicionais, do saber, das técnicas patrimoniais e, sobretudo, de uma


relação simbiótica entre o homem e a natureza (DIEGUES, 1997, p. 339).

Tal reducionismo, reproduzido no discurso dos entrevistados, é


parcialmente extensivo à visão sobre o Amazonas, pelo qual a grande maioria
manifestou interesse. O uso de frases de efeito como “crescimento e
desenvolvimento”, “organização social e política”, “patrimônio histórico e cultural”,
“história” e “cultura”, ao invés de significarem um dado positivo, possivelmente
denotam a reprodução de um discurso com base no processo educacional, pois é
a escola a fonte onde os sujeitos extraem o que dizem conhecer sobre a história
do Estado.

Não é propósito deste estudo adentrar em um assunto tão complexo


quanto a educação no estado brasileiro, podendo até soar como leviano fazer
inferências ou tecer considerações críticas nesse âmbito, mas abstrair da questão
ao tratar da produção do discurso dos indivíduos que, neste momento preciso,
estão envolvidos no processo educacional, seria ignorar parte do contexto no qual
eles estão inseridos. Opta-se, então, por seguir a linha do pensamento de Morin
(2001) quando insta aos educadores pensar o problema do ensino tendo em
conta os efeitos deletérios da compartimentação excessiva dos saberes sem que
haja, por parte dos estudantes (e possivelmente também de alguns educadores),
suficiente aptidão para contextualizá-los e integrá-los, aptidão essa que precisa
ser desenvolvida.

Assim sendo, considera-se pertinente suscitar questionamento sobre de


que forma a questão regional, tão amplamente defendida e divulgada como
prioritária nos parâmetros curriculares nacionais e efetivamente materializada nos
livros didáticos, tem sido abordada nas escolas. Assim também a validade dessa
contribuição para a formação dos alunos, não somente como pessoas que sabem
ou conhecem o assunto, porque o sentido de saber ou conhecer pode ser muito
vago, em se tratando de conteúdo curricular, mas precisamente como pessoas
capazes de pensar sobre o assunto com suficiente clareza e capacidade crítica.

Distante dessa visão estereotipada, a Amazônia de hoje, depõe Oliveira


(2000, p. 21),
106

é um lugar bem diverso do que era no início do século XX, para não
retornar tempos mais remotos, não só porque a floresta, os rios e o solo
foram profundamente modificados, mas porque a cultura mudou de modo
considerável, a partir da transformação de hábitos e costumes, sobretudo
no decorrer das últimas cinco décadas.

Refere-se também o autor às políticas equivocadas de exploração regional,


originárias da malfadada idéia da Amazônia como fonte inesgotável de recursos:

Esse processo evidenciou que a relação homem-natureza que


passou a predominar na Amazônia teve e continua tendo como principal
característica a tendência à degradação do homem e da natureza. [...] a
verdade é que, a persistência do mito da produtividade ilimitada, apesar do
vergonhoso fracasso de todas as iniciativas em grande escala para
desenvolver a região, constitui-se em um dos mais notáveis paradoxos do
nosso tempo, culminando num emaranhado de ações que determinaram
novas mediações nas relações sociais, modificadoras não apenas da
natureza, mas principalmente dos modos de vida (OLIVEIRA, 2000, p. 21).

Questiona Busato (s.d.) em quais bases está assentado o ideário sobre a


Amazônia, representada em várias instâncias da cultura global brasileira, desde
obras literárias a discursos ambientalistas, principalmente nos livros escolares de
geografia e história, onde ela é entronada como patrimônio nacional e mesmo
patrimônio da humanidade.

Um brasileiro “consome” assim sua dose de Amazônia desde a


escola primária e não se pode dizer que ela é ou não suficiente, pertinente
ou não; mas pode-se supor que é sobre ela que se alicerçam as
representações mentais da Amazônia de cada brasileiro; e sabemos que
as representações, por sua vez, constituem a base mental dos
comportamentos individuais... (BUSATO, s.d., p. 298).

Nas próximas tabelas, tratando da temática indígena e do homem


amazônico, a visão idealizada e didaticamente formulada se insinua como maior
nitidez. Em vista da aproximação com o objeto de pesquisa propriamente dito, as
representações do caboclo, é perceptível certa resistência, ou reserva, por parte
dos sujeitos, em abordar o tema. A noção do “outro” começa a tomar forma.

Tabela 4
Você se interessa pela temática indígena? Por quê?
107

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Um pouco, “quando falam do assunto”.
na
2 MA F negr
Não muito.
a
3 MA F more
Sim, “mas não tenho informações”.
na
4 PA M more
Sim, “porque os índios são nossos ancestrais”.
no
5 AM F branc Sim, porque “foram os índios que deram origem ao
a Brasil”.
6 RO M negr Sim, porque “demonstra como crescemos aos olhos
o preconceituosos de muitos”.
7 AM M more
Sim, porque “é bom saber”.
no
8 AM M more
Não, “não tenho interesse”
no
9 MT F more
Não, porque “não gosto”.
na
10 MA M branc
Não, “não tenho interesse”.
o
11 AM F branc
Não, “não tenho interesse”.
a
12 AM M pard Não muito, porque “acho que ninguém avalia muito a
o cultura indígena”.
13 AM M branc
Sim, porque “é uma cultura a ser estudada”.
o
14 AM M more
Não, “não tenho interesse.
no
15 AM M pard Sim, porque “sou um índio e me interesso pela minha
o cultura”.
16 AM F more
Sim, porque “traz um grande aprendizado”.
no
17 AM F more Sim, porque “o indígena faz parte do nosso passado e não
na devemos esquecê-lo, pois foi um dos primeiros a entrar
na Amazônia”.
18 AM M more
Sim, “para adquirir mais conhecimentos”.
no
19 AM F branc Sim, porque “faz parte da nossa história e a raça indígena
a é discriminada”.
20 AM M more
Não, porque “não me interessa”.
no
21 AM F more Sim, porque “é muito importante que conheçamos as
no nossas origens”.
22 AM F branc Sim, porque “praticamente tudo o que possuímos é
a herança indígena”.
108

23 AM M more Não, porque “é um assunto que não me chama a


no atenção”.
24 PA F branc
Não, porque “não desperta interesse”.
a
25 AM F more
Sim, “acho interessante”.
na
26 AM M branc
Sim, “porque se trata de nossos antecessores”.
o
27 PA F more Sim, “porque meu pai é índio e sua cultura está sendo
na esquecida”
28 AM F more Sim, “pois faz parte de nossas raízes, e as tribos estão
na sendo extintas”.
29 RR F pard Sim, porque “faz parte da minha cultura, da minha
a origem”.
30 AM M more
Sim, pois “gosto de saber sobre esses povos”.
no
Tabela 5
Você tem informações sobre o homem amazônico?
Tem interesse por este assunto?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não. Só se interessa “quando passa na televisão”.
na
2 MA F negr
Poucas, “não tenho muita curiosidade”.
a
3 MA F more Algumas. Tem interesse porque “sou estudante e preciso
na estar informada”.
4 PA M more
Algumas. Interessa-se “pelo tipo de vida”.
no
5 AM F branc
Não, “nem me interessa”.
a
6 RO M negr Algumas, no “aspecto histórico”. Tem interesse porque “é
o a nossa história”.
7 AM M more
Algumas, mas “não me interessa”.
no
8 AM M more
Não, “nem me interessa”.
no
9 MT F more
Não, “não tenho interesse”
na
10 MA M branc Sim, sobre “o tipo de vida”. Interessa-se porque “é uma
o forma de aprender a viver na floresta”.
11 AM F branc
Algumas. Interessa quando é abordado na escola.
a
12 AM M pard
Algumas, mas “não interessa muito”.
o
13 AM M branc
Não, “não tenho interesse”
o
109

14 AM M more
Não, “não tenho interesse”
no
15 AM M pard Sim, de que “ele adora peixe”. Tem interesse porque “sou
o um homem amazônico”.
16 AM F more Sim, “sobre a vida e a cultura”. Interessa-se porque “é
no sempre bom saber dessa história que vivemos e que é
interessante”.
17 AM F more
Sim. Tem interesse porque “temos que estar por dentro”.
na
18 AM M more Poucas, sobre “cultura e costumes”. Interessa-se porque
no “é importante estarmos por dentro”;
19 AM F branc Sim, sobre costumes, mas pouco interesse pelo assunto.
a
20 AM M more Algumas, mas não tem interesse.
no
21 AM F more Algumas sobre “costumes e cultura”. Tem interesse
no porque “vale a pena conhecer a sua origem”.
22 AM F branc Sim sobre “costumes, crenças e religião”, e acha
a importante “para compreender melhor a formação
populacional do Estado em que vivo”.
23 AM M more Não, nem interesse, porque “é um assunto que não me
no chama a atenção”.
24 PA F branc Sim, mas não tem interesse porque “acho algo banal”.
a
25 AM F more Não, nem interesse.
na
26 AM M branc Não, mas se interessa “pela sua cultura”.
o
27 PA F more Sim, e também interesse, porque “meu pai e meu tio são
na ligados a uma organização indígena”.
28 AM F more Sim, e interesse porque “estou inserida nesta cultura”.
na
29 RR F pard Sim, e tem interesse porque “faz parte da minha cultura,
a da minha origem”.
30 AM M more Sim, e interessa saber “como vivem e o que fazem”.
no

Tratando de representações sociais, Ramos (1997) considera que uma de


suas funções é justificar os comportamentos adotados por um determinado grupo.
Convivendo em sociedade o indivíduo incorpora costumes, valores, crenças,
condutas e práticas institucionalizadas no cotidiano, tecidas pelas relações
objetivas da sociedade e modifica-se a partir de um conjunto de objetivações
vinculadas ao contexto histórico-social em que está inserido.
110

Realidade e ficção, abstrato e concreto, se misturam no habitus, forjando


no individuo um modus vivendi vincado na sua existência social. Na sua relação
com o mundo, reforça Jovchelovitch (1997), o sujeito constrói um novo mundo de
significados, desenvolve uma identidade, cria símbolos e se abre para a
diversidade de um mundo de outros.

A questão da diferença é tratada por Arruda (1998) relativamente ao


confronto cultural quando da chegada dos colonizadores à América, tendo o
elemento índio como o representante máximo da alteridade, e como se configurou
a necessidade, por parte dos conquistadores, de construir representações para,
na terminologia de Moscovici (1978), “ancorar” o desconhecido:

O advento da colonização representou um fato crucial para a


história da civilização, ao abrir a fenda na unidade essencial do gênero
humano, institucionalizando, com a conquista da América, a questão: O
outro é humano? [...] A alteridade serviu de fermento para a renovação de
repertórios mentais. Urgia formular um novo senso comum que
incorporasse a natureza tropical e as populações indígenas (ARRUDA,
1998, p. 19-21).

Quando foi questionado o interesse dos entrevistados pela temática


indígena, um terço demonstrou total desinteresse (8 amazonenses, 1 paraense e
1 maranhense), parcela significativa para uma amostra de 30 sujeitos. O
desinteresse pelo indígena por parte de indivíduos provavelmente ligados a eles
por herança genética, reforça a idéia da existência de um sentimento de não
pertencimento a essa categoria tão aviltada histórica e socialmente.

A fala de uma entrevistada, natural do Pará, exemplifica bem esse sentido


de não pertencimento: ela alega interesse pela temática indígena por conta de
sua filiação: “porque meu pai é índio e sua cultura está sendo esquecida”, no
entanto não parece se incluir nesse universo. É a cultura do seu pai e não a sua
que está sendo esquecida. Outro entrevistado, amazonense, se posiciona da
mesma maneira quando se diz interessado, mas se ausenta do objeto de
interesse: “gosto de saber sobre esses povos”.

Por outro lado, emergem da fala dos sujeitos os clichês amplamente


conhecidos e divulgados nos livros didáticos, como “os índios são nossos
111

ancestrais; “foram os índios que deram origem ao Brasil”; “o indígena faz parte do
nosso passado”; “é muito importante que conheçamos as nossas origens”; tudo o
que possuímos é herança indígena”; “pois faz parte de nossas raízes”; “faz parte
da minha cultura, da minha origem”; etc.

Quando o tema passa a ser “o homem amazônico”, esse sentido de


alteridade se acentua, aumentando o distanciamento dos interlocutores. Essa
negativa de pertencimento é traduzida pelo desinteresse da metade dos
entrevistados e por aqueles que dizem ter interesse por precisam ficar “por
dentro” do assunto porque é uma exigência escolar. A denominação genérica
“homem amazônico” neste trabalho foi proposital, com o intuito justamente de
propiciar a emergência espontânea de ranços e preconceitos que pudessem
eventualmente estar sendo inconscientemente camuflados.

Poder-se-ia esperar que os estudantes vissem na categoria “homem


amazônico” um reflexo de suas histórias e contexto vivencial, pelo menos do
ponto de vista geográfico, do tipo aquele que vive no mesmo habitat, embora de
forma diferente da minha. No entanto, as respostas fazem parecer que o tal
“homem amazônico” é persona non grata no ambiente, remetendo à idéia do
intruso no paraíso, impressão passada por inúmeros viajantes e naturalistas que
percorreram a região amazônica a partir do século XVII. Naquele caso era o índio
o elemento estranho no ambiente paradisíaco idealizado; neste caso o indígena é
de certa forma reintegrado ao seu habitat, na qualidade de habitante legítimo, e o
“homem amazônico” surge como o estranho.

De fato, o elemento indígena assume hoje um papel de destaque no


cenário mundial: é motivo de debate, questionam os seus direitos, tem espaço na
mídia com porta-vozes famosos, tem visibilidade. Em parte porque faz parte
intrínseca do “pacote Amazônia” tipo exportação, por outro lado porque integra o
discurso científico internacional, o que garante a preocupação do governo federal
com a criação e implantação de políticas exclusivas em seu benefício. Se tudo
isso é real ou imaginário, é questão a ser explorada, mas o fato é que esse status
confere pelo menos ao “personagem” índio uma situação favorável aos olhos do
homem comum.
112

Ao contrário, pondera Busato (s.d., p. 312) que

o homem amazônico se apresenta com falhas que a cultura popular


dificilmente integra: no caso do índio (as centenas de tribos primitivas,
vivendo muito longe dos modos e modas modernos ou vivendo da
assistência do Estado), a fantasia se transforma quanto mais em
compaixão quando ele se aproxima; contraste tanto maior pelo fato que,
no seu estado de natureza, o índio representou uma espécie de ideal, ou
de utopia, para muitos modernos, e que ainda hoje ele é considerado com
simpatia por essa alma coletiva chamada massa ou opinião pública.

Torres (2003, p. 83) chama atenção para o fato de que essa formação de
idéias no contexto social tem a contribuição de vários mecanismos sociais, e em
se tratando de sociedades onde há manifestação de preconceitos raciais e
étnicos,

as noções de diferença e de hierarquia raciais são inevitavelmente


adquiridas na família, na escola, na rua e nas instituições religiosas. Deve-
se notar, também, que uma idéia sobejamente valorizada e positivada pelo
fascínio com que é levada ao público contribui, efetivamente, para a
formação de opinião.

Nas tabelas seguintes adentra-se diretamente no objeto de pesquisa, a


representação do caboclo, primeiramente fazendo referência ao “termo”,
sugerindo uma realidade fora do contexto do entrevistado, para depois
estabelecer relação com um questionamento mais direto, sobre as características
físicas do caboclo, personificado.

A palavra caboclo é uma representação e, segundo Baktin (1979), a


palavra é o primeiro meio da consciência individual, e representação é o modo
pelo qual vemos as coisas. A realidade da palavra constitui o material semiótico
da vida interior, da consciência, do discurso interno, e tem sua origem no
consenso entre indivíduos.

Lima (1999, p. 27) ressalta que o exercício de poder nomear as coisas é


uma forma de expressar a dominação, passando essa nominação a influir no
curso da formação do grupo nomeado: “A definição dos nomes das classes,
privilégio dos grupos que ocupam posições superiores, reflete e configura a
113

estrutura social. [...] o próprio termo caboclo tem na sua etimologia o significado
de alteridade (aquele que vem do mato)”.

Tabela 6
O termo “caboclo” é familiar? Você tem informações a respeito?
Este tema interessa a você? Por quê?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more É familiar, mas não tem informações a respeito.
na Não se interessa pelo assunto porque “não me chama a
atenção”.
2 MA F negr É familiar porque é falado na escola que “o caboclo é
a mistura de raças”. Não se interessa pelo assunto.
3 MA F more É familiar, mas não tem informações. Não se interessa
na pelo tema.
4 PA M more É familiar, mas não tem informações. Tem interesse no
no assunto porque “faz parte da nossa vida”.
5 AM F branc É familiar, mas não tem informações. Não se interessa
a pelo assunto porque “não tenho paciência com essas
coisas”.
6 RO M negr É familiar; sabe que “os primeiros caboquinhos
o amazonenses nasceram do cruzamento do indígena com
o branco”. Tem interesse pelo tema porque “é o começo
da nossa história”.
7 AM M more É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse
no pelo assunto.
8 AM M more É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse
no pelo assunto.
9 MT F more É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse
na pelo assunto porque “tenho coisas mais interessantes pra
fazer”.
10 MA M branc É familiar, refere-se a “pessoas que nascem no meio do
o mato”. Não se interessa pelo assunto.
11 AM F branc É familiar; sabe que “o caboclo é um indígena”. Não se
a interessa pelo tema.
12 AM M pard É familiar; sabe que tem relação com “seringueiros”. Tem
o interesse pelo tema porque “tem a ver com a história e o
passado”.
13 AM M branc É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse
o pelo assunto.
14 AM M more É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse
no pelo assunto.
15 AM M pard É familiar; sabe que os caboclos são “um povo de
o respeito”. Não tem interesse pelo tema.
16 AM F more É familiar; tem informações sobre cultura, religião etc.
no Tem interesse no assunto porque “temos parte nessa
114

história”.
Tabela 6 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
17 AM F more É familiar; o caboclo “um homem que mora nos interiores
na e que ganha a vida através de peixes e colheitas”. Tem
interesse no tema porque “o caboclo faz parte da nossa
cidade”.
18 AM M more Não é familiar; não tem informações a respeito. Tem
no interesse pelo tema “para aprender mais”.
19 AM F branc É familiar; sabe da “questão da discriminação”. Tem
a interesse pelo assunto porque “qualquer informação é
favorável”.
20 AM M more É familiar; tem algumas informações. Tem interesse “pela
no cultura”.
21 AM F more É familiar; tem algumas informações. Tem interesse pelo
no tema “por fazermos parte dessa origem”.
22 AM F branc É familiar; o caboclo é “a miscigenação do índio com o
a branco”. Tem interesse pelo assunto porque “é
interessante pra poder entender como duas culturas
distintas se formam”.
23 AM M more É familiar; sabe sobre “sua origem e sua mistura”. Não se
no interessa pelo assunto porque “não acho que a sociedade
julga importante e não atiça o meu interesse”.
24 PA F branc É familiar, tem poucas informações. Tem interesse “para
a ter uma informação a respeito.”
25 AM F more Não é familiar; não tem informações a respeito. Não tem
na interesse.
26 AM M branc Não é familiar e não tem informações. Não tem interesse
o pelo assunto porque “não é abordado atualmente”.
27 PA F more É familiar; como “homem da terra”. Tem interesse para
na “saber mais sobre ele”.
28 AM F more É familiar; tem algumas informações. Tem interesse pelo
na tema porque “minha família e eu somos caboclos”.
29 RR F pard É familiar; tem algumas informações. Tem interesse
a porque “tem a ver com a minha história”.
30 AM M more É familiar; tem algumas informações. Tem interesse
no porque “nós aqui do norte somos denominados assim”.

Perguntados se o termo caboclo soava familiar, a grande maioria


respondeu que sim, com exceção de três entrevistados, todos amazonenses, que
alegaram desconhecimento. Desses, dois opinaram sobre as características
físicas daquele que diziam desconhecer. Doze pessoas disseram que era familiar,
mas não tinham informações a respeito; dezesseis disseram não ter interesse.
115

Desta vez a metade dos entrevistados manifestou desinteresse pelo tema


“caboclo”, o dobro dos desinteressados pela temática indígena.

Nesse momento a figura do índio aparece em maior relevo que a do


caboclo, quando aquele soa mais familiar do que este, e se poderia supor o
inverso, pelo fato de que o mundo indígena é efetivamente muito mais distante e
diferenciado da realidade do homem amazonense da cidade do que o mundo
caboclo. Isto, mesmo tomando como referência a imagem estereotipada do típico
amazônida que mora em choupana ou palafita, se locomove de canoa e cultiva a
sua horta de subsistência.

Tabela 7
Quais as características físicas do caboclo? Você acha bonito o tipo físico?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Cabelos negros, moreno escuro. Não acha bonito “por
na causa da pouca higiene”.
2 MA F negr Moreno, alto, cabelos lisos e olhos pretos. Acha bonito
a porque “é diferente”.
3 MA F more Tipo físico “normal”. É “mais ou menos bonito”; “tem uns
na bonitos e outros feios”.
4 PA M more Forte, geralmente cabelo preto liso. O tipo físico é
no “normal”.
5 AM F branc Características “iguais de todo mundo”... “bonito ele não
a é”.
6 RO M negr Características de “uma pessoa que tem traços indígenas
o e brancos”. Não tem opinião sobre o tipo físico.
7 AM M more Não saber dizer as características nem tem opinião sobre
no o tipo físico.
8 AM M more Não saber dizer as características nem tem opinião sobre
no o tipo físico.
9 MT F more Não saber dizer as características nem tem opinião sobre
na o tipo físico.
10 MA M branc Baixo, cabelos lisos, forte, moreno. Acha bonito porque “já
o acostumei”.
11 AM F branc Negro, cabelos espetados e olhos puxados. Não acha
a bonito:“é muito diferente”.
12 AM M pard Moreno, cabelos lisos, olhos amendoados. Não acha
o bonito: “ninguém merece”.
13 AM M branc Moreno, tipo indígena. Não tem opinião sobre o tipo físico.
o
14 AM M more Não saber dizer as características nem tem opinião sobre
116

no o tipo físico.
15 AM M pard Não saber dizer as características nem tem opinião sobre
o o tipo físico.
16 AM F more Não saber dizer as características nem tem opinião sobre
no o tipo físico.
17 AM F more Magro, cabelos “tensos”. Não acha bonito o tipo físico.
na
18 AM M more Não saber dizer as características nem tem opinião sobre
no o tipo físico.
19 AM F branc Mestiço, olhos negros ou castanhos. Acha bonito: “são
a pessoas humildes”.
20 AM M more Moreno, forte e corajoso. Não acha bonito o tipo físico.
no
21 AM F more Homem “parecido com indígena na fisionomia, jeito etc”.
no Acha bonito porque “são diferentes e usam pouca roupa”.
22 AM F branc Altura mediana, traços indígenas, pele morena. Não acha
a bonito o tipo físico.
23 AM M more Características “do homem amazônico”. É bonito: “não
no tenho porque não achar”.
24 PA F branc Moreno, cabelos lisos, forte. Acha bonito “algumas vezes”.
a
25 AM F more Estatura média, pele parda, olhos e cabelos escuros. Não
na acha bonito o tipo.
26 AM M branc Características de “mulato”. Não é bonito porque ‘vivem
o fora da sociedade”.
27 PA F more Características “de pessoa normal, mas com costumes
na diferentes”. Acha bonito.
28 AM F more Características “de indígena”. Não acha o tipo físico
na bonito.
29 RR F pard Robusto, forte, trabalhador. Acha o tipo físico bonito.
a
30 AM M more Cabelos lisos, moreno, ombros largos, estatura mediana.
no Acha bonito o tipo porque “se nós não acharmos, quem
vai achar? “
Solicitadas a apontar os traços do caboclo, sete pessoas disseram não
saber precisar suas características físicas, das quais apenas uma não era
amazonense. Dos seis amazonenses, um era pardo e os outros todos morenos,
com características físicas semelhantes às descritas pela maioria, tipificando o
padrão com que o amazônica é conhecido (e reconhecido) - moreno(a), cabelos
lisos, olhos escuros – semelhante ao tipo indígena.

Quando à questão de “beleza”, as opiniões foram variadas. Algumas


chamaram atenção pelo sentido oculto nas palavras. Por exemplo, uma
entrevistada, amazonense, branca, disse achar bonito o tipo físico dos caboclos
117

porque “são pessoas humildes”. A mesma pessoa apontou como informações que
tem do caboclo “a questão da discriminação”. Tal opinião remete à idéia do
branqueamento proposta por Martius como a “salvação” da raça indígena, e traz à
lembrança a visão do colonizador “penalizado” diante da inferioridade dos índios
em oposição à superioridade da raça caucásica.

Um entrevistado justificou que o caboclo não é bonito porque “vive fora da


sociedade”, atrelando o seu conceito de beleza à condição “inferior” do caboclo
por viver, na sua concepção, de modo diferenciado do seu. Essa mesma idéia foi
expressa por Spix e Martius quanto aos índios, que viviam, pela ótica
etnocêntrica, fora da sociedade humana, sendo equiparados a animais. Outro,
parecendo tomar pra si o estereótipo do “caboclo feio”, ao mesmo tempo reage a
essa avaliação discriminatória. Ele acha o caboclo bonito porque “se nós não
acharmos, quem vai achar?”, interroga.“

Essas aparentes contradições são explicadas por Minayo (1997) pelo fato
de que as representações traduzem um pensamento fragmentário, limitando-se a
certos aspectos da experiência existencial, que por si já é contraditória. A visão de
mundo dos indivíduos e grupos, de fato, é uma expressão dos conflitos e
contradições presentes nas condições em que foi engendrada, o que não elimina
a capacidade de se traduzir, com relativa claridade e nitidez, em relação à
realidade.

Castoriadis (1982, p. 318) contribui para aumentar a angústia do


pesquisador, quando diz que representação é “inanalisável” e nos dá apenas a
“multiplicidade inconsistente”, sendo os aspectos captados “nunca são mais do
que transitórios”. “O que não se encontra numa representação” – complementa
ele - “pode talvez nela se encontrar.”

O “viver fora da sociedade” referido pela entrevistada pode ser entendido


também com relação à idéia de localização geográfica do caboclo em um cenário
específico. Segundo Lima (1999) é freqüente em cidades como Belém e Manaus
a referência aos caboclos como a população do interior do Estado. Já nos
municípios, caboclos são os habitantes rurais. Por sua vez a população rural
rejeita o rótulo, transferindo-o aos índios. A classe urbana das cidades também
118

pode referir-se aos mais pobres como caboclos, sendo comum a rejeição ao
termo por aqueles por ele referidos, em razão do sentido depreciativo a ele
agregado.

Por outro lado, pode ser considerado um recurso explicativo a existência de


um arquétipo do caboclo, referido por Lima como um composto dos traços
culturais distintivos do modo de vida do típico amazônida, refletido numa
arquitetura diferenciada, meios de transporte, instrumentos de trabalho,
conhecimento e manejo dos recursos naturais, além de hábitos alimentares,
práticas religiosas, mitologia e maneirismos sociais, traduzindo um estilo de vida
distinto do modo urbano. No entanto, alerta a autora, na verdade o conceito
regional do caboclo ultrapassa essa referência, incluindo estereótipos negativos.
Independente disso, de modo geral a imagem do amazônida típico é
essencialmente rural e ribeirinha, evocando a figura de um homem ligada com o
meio ambiente amazônico.

Um atributo depreciativo comumente associado ao caboclo é de que ele é


“lerdo”, ou “burro”. Outros adjetivos depreciativos, bastante divulgados, são
relativos à preguiça e à indolência, retomando as idéias divulgadas pelos
viajantes e naturalistas a propósito da suposta incapacidade do nativo de “evoluir”
(principalmente em termos econômicos) para alcançar a civilização.

É perceptível também em Manaus a existência, embora velada, de uma


noção de inferioridade intelectual, não somente por parte de estrangeiros, mas
pelos próprios amazonenses, principalmente pessoas mais simples, no sentido de
pouca instrução. Um caboclo amazonense chegar a uma posição social
privilegiada é motivo de admiração, assim como ostentar títulos acadêmicos,
especialmente se for portador dos traços físicos característicos da descendência
indígena. Nas tabelas seguintes pretende-se saber se e até que ponto os sujeitos
são partidários, conscientes ou não, dessas idéias, e de que forma isso se
expressa no seu discurso.

Tabela 8
Você concorda com adjetivos como preguiçoso, ignorante e rude (burro),
atribuídos ao caboclo? Por quê?
119

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não.
na
2 MA F negr Não.
a
3 MA F more Não.
na
4 PA M more Não.
no
5 AM F branc Não, porque “somos seres humanos como qualquer
a outro”.
6 RO M negr Não, “porque todos temos capacidade e só precisamos de
o oportunidade. Temos esse “título” porque os índios tinham
tudo o que queriam da selva, sendo que o que eles
precisavam só era ir pegar”.
7 AM M more Não tem opinião a respeito.
no
8 AM M more Não tem opinião a respeito.
no
9 MT F more Não tem opinião a respeito.
na
10 MA M branc Não, porque “não é um que faz o todo e a maioria é muito
o inteligente”.
11 AM F branc Não.
a
12 AM M pard Não, porque “são eles que cultivam a borracha”.
o
13 AM M branc Não tem opinião a respeito.
o
14 AM M more Não tem opinião a respeito.
no
15 AM M pard Concorda com o atributo de “preguiçoso”, porque “somos
o um povo calmo pra tudo”, mas não de “rude” e “leso”,
porque “somos espertos e independentes”.
16 AM F more Não, porque “não somos melhores que ninguém e não
no devemos desconsiderar os outros”.
17 AM F more Não.
na
18 AM M more Não.
no
19 AM F branc Não.
a
20 AM M more Não, porque “isso é preconceito. Os caboclos são muito
no trabalhadores”.
21 AM F more Não, porque “hoje eles têm escola e estão mais
no inteligentes”.
22 AM F branc Não, “se fôssemos preguiçosos Manaus não seria o que é
120

a hoje. Basta freqüentar as faculdades para constatar a


nossa sabedoria”.
23 AM M more Não, “basta sair nas ruas pra ver as pessoas trabalhando
no arduamente pra manter seu sustento, além de que as
pessoas estão procurando se habilitar mais ainda, tanto
pra aumentar o conhecimento, como no trabalho”.
Tabela 8 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
24 PA F branc Não concorda com o atributo de “preguiçoso” porque “os
a caboclos são pessoas que trabalham para o seu próprio
sustento”, mas acha que são “um pouco rudes”, porque
“o grau de escolaridade dos caboclos é muito baixo”.
25 AM F more Não, porque “as pessoas nem conhecem e vão falando
na coisas”.
26 AM M branc Não, “os caboclos são pessoas dignas. Estão
o desmoralizando nossos traços”.
27 PA F more Não, porque “se fosse verdade não teria cultura
na amazônica”.
28 AM F more Não.
na
29 RR F pard Não, “as pessoas não devem deixar que os outros os
a agridam”.
30 AM M more Não, “muito pelo contrário, o caboclo é muito trabalhador,
no e isso é pura discriminação”.

Questionados sobre os atributos negativos imputados ao caboclo, apenas


dois disseram concordar parcialmente, um com a pecha de “preguiçoso”, porque
em sua opinião “somos um povo calmo pra tudo”; outro com o adjetivo de “rude”
(no sentido de ignorância), porque “o grau de escolaridade dos caboclos é muito
baixo”. Vale notar que, mesmo os que declararam não conhecer o termo e não ter
interesse no assunto foram veementes em discordar daquela atribuição negativa.

Tabela 9
Pessoas inteligentes e cultas podem ser classificadas como “caboclas”? Por quê?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não sabe dizer.
na
2 MA F negr Sim. Não tem opinião sobre o porquê.
a
3 MA F more Sim. Não tem opinião sobre o porquê.
na
121

4 PA M more Sim, porque “o caboclo também estuda”.


no
5 AM F branc Sim, porque “são iguais a todo mundo”.
a
6 RO M negr Sim, porque “ser caboclo não quer dizer nada”.
o
7 AM M more Não sabe dizer.
no
8 AM M more Não sabe dizer.
no
9 MT F more Não, porque “é uma ilusão da cabeça das pessoas”.
na
10 MA M branc Sim, porque “caboclo é raça”.
o
11 AM F branc Não, porque “não tem nem comparação”.
a
12 AM M pard Sim, porque “todo mundo tem no sangue”.
o
13 AM M branc Sim, porque “são pessoas sábias”.
o
14 AM M more Não. Não tem opinião sobre o porquê.
no
15 AM M pard Sim, porque “os caboclos são inteligentes”.
o
Tabela 9 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
16 AM F more Sim. Não tem opinião sobre o porquê.
no
17 AM F more Não, porque “são pessoas diferentes da vida de um
na caboclo”.
18 AM M more Não, porque “os caboclos não têm muita capacidade”.
no
19 AM F branc Não, porque “não têm esse tipo de nível”.
a
20 AM M more Não, porque “não tem nada a ver”.
no
21 AM F more Sim, porque “nas veias deles corre sangue de caboclo, por
no mais que não aceitemos”.
22 AM F branc Sim, porque “não é a raça que faz a sabedoria de um
a povo”.
23 AM M more Sim, porque “apesar da discriminação, toda regra tem
no exceção”.
24 PA F branc Sim, porque “não depende da raça”.
a
25 AM F more Sim, porque “depende da origem da pessoa”.
na
122

26 AM M branc Sim. Não tem opinião sobre o porquê.


o
27 PA F more Sim. Não tem opinião sobre o porquê.
na
28 AM F more Sim, porque “têm suas raízes e cultura”.
na
29 RR F pard Sim, porque “inteligência não apaga a cultura nem a
a origem”.
30 AM M more Sim, porque “basta ter conhecimento, para qualquer
no pessoa, de qualquer raça”.

Sobre a possibilidade de chamar de caboclos a pessoas cultas e


inteligentes, muitos responderam que sim. No entanto quatro pessoas que haviam
discordado dos adjetivos preconceituosos (nºs 11 e 17 a 20), agora afirmam não
ser possível essa relação, porque “não tem nem comparação”; “são pessoas
diferentes da vida de um caboclo”; “os caboclos não têm muita capacidade”; “não
têm esse tipo de nível”; “não tem nada a ver”. Essa contradição não é a única que
aparece; outros entrevistados, afirmando uma coisa revelam outra, como aqueles
que dizem que “o caboclo também estuda”; “nas veias deles corre sangue de
caboclo, por mais que não aceitemos”; “apesar da discriminação, toda regra tem
exceção”; “depende da origem da pessoa”, na verdade estão expressando
justamente o contrário do que querer dizer ao responderem que caboclos podem
ser inteligentes e cultos sob determinada condição.

Spink (1997) orienta que o distanciamento cronológico é importante e


necessário para que o pesquisador possa se aproximar dos conteúdos do
imaginário social, conseqüentemente dos componentes mais estáveis das
representações:
Quanto mais englobarmos em nossa análise o tempo longo – e,
portanto, os conteúdos do imaginário social – mais nos aproximaremos
das permanências que formam os núcleos mais estáveis das
representações. No sentido oposto, quanto mais nos ativermos ao aqui-e-
agora da interação, mais no defrontaremos com a diversidade e a criação.
[...] Ao aprofundarmos a análise do senso comum, deparamo-nos não
apenas com a lógica e com a coerência, mas também com a contradição
(SPINK, 1997, p. 122-3).
123

Goffman (1975), por seu turno, chama atenção para o cuidado que se deve
ter na tentativa de compreender uma representação. Em razão da característica
de impulsividade própria do ser humano,

devemos estar capacitados para compreender que a impressão de


realidade criada por uma representação é uma coisa delicada, frágil, que
pode ser quebrada por minúsculos contratempos. A coerência expressiva
exigida nas representações põe em destaque uma decisiva discrepância
entre nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado. Como seres
humanos somos, presumivelmente, criaturas com impulsos variáveis, com
estados de espírito e energias que mudam de um momento para outro
(GOFFMAN, 1975, p. 58).

Essas orientações se mostram perfeitamente adequadas, na medida em


que as questões são colocadas aos entrevistados e as suas respostas oscilam
entre ver-se dentro e fora da categoria caboclo, de acordo com a dimensão
pessoal ou social que está sendo realçada.

Tabela 10
Os caboclos estão inseridos em todas as classes sociais? Predominam em qual?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Sim. Predominam na classe pobre.
na
2 MA F negr Sim. Não sabe em qual predominam.
a
3 MA F more Sim. Predominam nas mais humildes.
na
4 PA M more Sim. Predominam nas mais pobres.
no
5 AM F branc Sim. Predominam nas sociedades ricas.
a
6 RO M negr Sim, sem predominar em nenhuma.
o
7 AM M more Não sabe dizer.
no
8 AM M more Não sabe dizer.
no
9 MT F more Não sabe dizer.
na
10 MA M branc Sim, sem predominar em nenhuma.
o
11 AM F branc Não. Não sabe em qual predominam.
124

a
Tabela 10 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
12 AM M pard Sim, sem predominar em nenhuma.
o
13 AM M branc Sim, sem predominar em nenhuma.
o
14 AM M more Sim. Predominam “na classe pobre do interior do estado”.
no
15 AM M pard Sim, sem predominar em nenhuma.
o
16 AM F more Sim. Não sabe em qual predominam
no
17 AM F more Não. Predominam “nas classes baixas”.
na
18 AM M more Sim. Não sabe em qual predominam
no
19 AM F branc Não, estão somente “na de baixa renda”.
a
20 AM M more Sim. Predominam na classe “pobre”.
no
21 AM F more Sim. Não sabe em qual predominam
no
22 AM F branc Não. Predominam “nas classes mais baixas, como
a operário ou como simples patrão, devido à discriminação
que sofre”.
23 AM M more Sim. Predominam na classe “dos inferiorizados pela
no sociedade”.
24 PA F branc Não. Predominam na “classe baixa”.
a
25 AM F more Sim. Não sabe em qual predominam.
na
26 AM M branc Não, porque “são da floresta”.
o
27 PA F more Sim. Não sabe em qual predominam.
na
28 AM F more Sim. Não sabe em qual predominam
na
29 RR F pard Sim. Predominam na “classe média”
a
30 AM M more Sim. Predominam “nas de baixo nível financeiro, porque é
no uma classe que sofre preconceitos”.
125

Em resposta à pergunta sobre a inserção social do caboclo, um número


significativo de entrevistados reforçou a secular associação do caboclo à pobreza,
situando-o predominantemente nas classes “de baixo nível financeiro”, de “baixa
renda”, “pobre”, “nas mais humildes” etc.

Lima (1999) alega que a “pobreza” ligada ao termo caboclo é um conceito


cultural, relacionado a uma expectativa de vida e performance econômica e social
mais elevada do que a experimentada pelo chamado caboclo, expectativa essa
originada na intenção colonial de estabelecer um campesinato na Amazônia, tida
como um celeiro de riquezas a serem exploradas materialmente. Daí a grande
frustração em relação à “improdutividade” do caboclo em meio a esse manancial,
estendendo-se a ele os preconceitos relativos à ociosidade, em oposição a
produtividade, e indolência, relativo às suas modestas condições econômicas e
de moradia.
É possível inferir nesse desdobramento temporal do preconceito o
processo de objetivação concebido por Moscovici, por meio do qual uma
representação é cristalizada. Nesse processo, de acordo com Sá (1998), noções
abstratas são transformadas em imagens e seu conteúdo, descontextualizado,
compõe um núcleo figurativo pelo qual as imagens são transformadas em
elementos da realidade, ou seja, uma abstração torna-se algo quase físico no
processo de objetivação.

Percebe-se, então, que o atributo de “preguiçoso”, assim como a noção de


“pobreza” ligada ao caboclo, têm uma dimensão muito maior do que simples
“xingamento”. Envolvem processos sócio-econômicos e políticos históricos, e
trazem a marca da visão discriminatória do colonizador em relação ao colonizado
que não se enquadrou nas suas expectativas, revelando concepções
engendradas em uma época determinada que perduram subliminarmente no
imaginário atual. Essas representações, segundo Minayo (1997, p. 174),

são mais abrangentes em termos da sociedade como um todo e revelam a


visão de mundo de determinada época, são as concepções das classes
dominantes dentro da história de uma sociedade. [...] elas são uma
mistura das idéias das elites, das grandes massas e também das filosofias
correntes, e expressão das contradições vividas no plano das relações
sociais de produção. Por isso mesmo, nelas estão presentes elementos
tanto da dominação como da resistência, tanto das contradições e
conflitos como do conformismo.
126

Essa hipótese é reforçada por Spink (1997, p. 122), quando afirma ser
consenso entre os pesquisadores da área a idéia de que as representações
sociais, enquanto produtos sociais, “têm sempre que ser remetidas às condições
sociais que as engendraram, ou seja, o contexto de produção, definido não
apenas pelo espaço social em que a ação se desenrola como também a partir de
uma perspectiva temporal”.

Lima (1999) aponta a equivalência entre o termo caboclo e o termo índio, e


ressalta a validade de estabelecer analogia entre os conceitos, na tentativa de
compreensão do porquê o termo índio ganhou sentido concreto e foi aceito por
quem o recebeu, e o termo caboclo é amplamente rejeitado, considerando que
ambos são essencialmente rótulos de identificação, podendo ser ou não usados
para a auto-identificação. A explicação, em sua opinião, pode vir do fato de que o
caboclo possivelmente representa a desilusão de uma Amazônia civilizada,
estando o tema da pobreza diretamente associado com o caboclo, enquanto o
índio não é julgado pobre.

Assim como o termo caboclo, o termo índio foi atribuído como uma
categoria genérica de identificação utilizada pelos não-índios, sem relação com os
povos indígenas referidos, não tendo até pouco tempo a sentido político de hoje.
Também o ameríndio, segundo Lima, foi muitas vezes tido como preguiçoso ou
“inapto para a civilização”, mas essas características eram explicadas por sua
distinção étnica, que justificava um comportamento econômico diferente do
comportamento do branco. A diferença étnica foi, e em muitos locais da Amazônia
ainda é, vista em termos evolutivos, quando a tal “indolência” do ameríndio é
considerada resultado do “primitivismo” de sua raça, visões essas antigos
constituintes do imaginário sobre esses povos.

Para Castoriadis (1982, p. 192) não se pode compreender o que foi o que é
a história humana, fora da categoria do imaginário, pois o simbolismo escolhido
em cada sociedade tem implicações que ultrapassam o real e o racional,
repousando nas elaborações imaginárias muitas respostas acerca das questões
sobre a identidade coletiva, o que indica a necessidade de buscar a compreensão
127

do lócus, espaço do imaginário onde cada sociedade se constrói e se espelha.


“Não podemos compreender uma sociedade sem um fator unificante, que fornece
um conteúdo significado e o entrelace com as estruturas simbólicas.”

Também Torres (2003) refere-se à importância do conhecimento do


imaginário para a compreensão do mundo e da cultura dos atores sociais,
ressaltando a interrelação entre os níveis subjetivo e objetivo nessa composição.
Segundo ela:

O mundo social-histórico é um espaço prenhe de significações


simbólicas. Há um verdadeiro entrelaçamento do mundo concreto
resultante de processos históricos, materialmente determinado, com o
mundo subjetivo construído pelas representações do imaginário, também
históricas. É possível que em determinado momento a realidade vivida e
experimentada nas e pelas consciências dos sujeitos, se choque com os
dois níveis do seu mundo imaginário: o subjetivo e o objetivo. [...] Em
vários momentos a história e o imaginário se confundem. Pode-se dizer
que o imaginário se situa no campo das mediações entre a concreticidade
da vida real e as representações que os sujeitos produzem de si e do
mundo (TORRES, 2003, p. 57).

Essa construção mediada entre a vida concreta e a representada pessoal e


socialmente à qual se refere Torres é, mais uma vez, insinuada nas respostas
sobre a existência, ou não, de atitudes discriminatórias para com os caboclos em
Manaus. Isso com relação aos próprios moradores da cidade, sem discriminação
de origem, e por parte dos “de fora”, pessoas de outros Estados brasileiros ou
mesmo estrangeiros.

Tabela 11
Existe discriminação para com os “caboclos” em Manaus?
Por que você acha isso?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F More Não.
na
2 MA F Negr Sim, porque dizem “que aqui só tem índio”.
a
3 MA F more Não.
na
4 PA M more Sim, porque “as pessoas do sul se acham superiores”.
no
128

5 AM F branc Sim, “por parte das famílias ricas, porque são pessoas
a mesquinhas”.
6 RO M negr Sim, mas não sabe explicar por que.
o
7 AM M more Não.
no
8 AM M more Sim, mas não sabe explicar por que.
no
9 MT F more Não sabe dizer.
na
10 MA M branc Sim, porque “os caboclos são discriminados pela
o aparência”.
11 AM F branc Sim, mas não sabe explicar por que.
a
12 AM M pard Sim, “pelos estrangeiros”, porque “eles se acham
o melhores”.
13 AM M branc Não sabe dizer.
o
14 AM M more Sim, “de vários tipos”, porque “os caboclos são tratados
no mal”.
15 AM M pard Não.
o
16 AM F more Sim, porque “tem muitas pessoas que se acham melhores
no e não reconhecem que também fazem parte disto. Hoje
muitas já perderam a sua dignidade”.
17 AM F more Sim, “como pessoas analfabetas”, porque “muitos deles
na vêm dos interiores e não têm estudo”.
18 AM M more Não.
no
19 AM F branc Sim, “pela falta de condições dos caboclos”.
a

Tabela 11 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
20 AM M more Sim, “por causa do racismo” e porque “não dão
no oportunidade”.
21 AM F more Sim, porque “as pessoas tomam as terras que eles têm
no direito”.
22 AM F branc Sim, porque “muitas pessoas negam suas origens e
a valorizam só o que vem de fora. Os caboclos são mal
vistos pela sociedade e muitas pessoas acreditam que
pessoas do interior são limitadas de conhecimento, e que
só sabem plantar e colher”.
23 AM M more Sim, porque “a sociedade separa os bons dos maus”.
no
129

24 PA F branc Sim, porque “existe muita ignorância das pessoas e os


a caboclos sentem dificuldade ao procurar emprego com
alto grau de intelectualidade”.
25 AM F more Sim, porque “são pessoas com origem e costumes
na indígenas e a sociedade não sabe que não precisa ser
igual pra ter seu valor respeitado”.
26 AM M branc Sim, “por causa da sua raça e do seu comportamento”.
o
27 PA F more Sim, porque “há muita gente irônica e racista que não se
na conforma com sua origem”.
28 AM F more Sim, “de alguns”.
na
29 RR F pard Sim, como “índio, burro e outras coisas, porque as
a pessoas nem sabem o que significa o termo”.
30 AM M more Sim, “por causa da aparência. Já vi caboclos inteligentes
no perderam o emprego por não ter aparência do tipo
branco, olhos claros etc.”

Tabela 12
Você acredita que há preconceito por parte dos “de fora” para com
o caboclo amazonense? Por que você acha isso?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Sim, “pelo tipo de roupa que usam” (os caboclos).
na
2 MA F negr Sim, “falam que aqui só tem índio”.
a
3 MA F more Sim, “criticam as diferenças”.
na
4 PA M more Sim, “falam mal do caboclo”.
no
5 AM F branc Sim, “pessoas de fora acham que somos tudo índio”.
a
6 RO M negr Sim, “nos acham inferiores”.
o
7 AM M more Não sabe.
no
8 AM M more Sim, não sabe dizer de que tipo.
no
9 MT F more Não sabe.
na
10 MA M branc Sim, “acham que todo caboclo é burro por causa do
o passado”.
11 AM F branc Não.
a
12 AM M pard Sim, “eles se acham melhores”.
130

o
13 AM M branc Sim, não sabe dizer de que tipo.
o
14 AM M more Sim, “são tratados mal”.
no
15 AM M pard Sim, “não dão valor ao caboclo”.
o

Tabela 12 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
16 AM F more Não sabe.
no
17 AM F more Sim, “acham que os caboclos amazonenses são
na analfabetos”.
18 AM M more Sim, “acham que todo mundo é índio porque não estão
no ligados no nosso dia-a-dia”.
19 AM F branc Sim, não sabe dizer de que tipo.
a
20 AM M more Não.
no
21 AM F more Sim, “acham que os caboclos ainda usam arco e flecha”.
no
22 AM F branc Sim, não sabe dizer de que tipo.
a
23 AM M more Sim, porque “sabem apenas sobre sua cultura e sua
no tecnologia e somos discriminados pela cor”.
24 PA F branc Sim, não sabe dizer de que tipo.
a
25 AM F more Sim, “pensam que só porque são de fora são melhores”.
na
26 AM M branc Sim, “por causa da sua raça”.
o
27 PA F more Sim, porque “eles não têm senso”
na
28 AM F more Sim, “eles pensam que na Amazônia só existe índio”.
na
29 RR F pard Sim, “pensam que somos todos índios, e ainda por cima
a sem inteligência”.
30 AM M more Sim, “eles acham que aqui só existem bichos pelas ruas,
no malocas e índios, pois é isso que é divulgado da região”.

Pode-se dizer que as questões sobre discriminação mobilizaram bastante


os entrevistados, mesmo aqueles que disseram não ter interesse pelo assunto, e
até alguns que haviam dito não conhecer o termo caboclo. Estereótipos ligados à
131

idéia de pobreza, pouca inteligência, má aparência (ou feiúra mesmo), classe


social inferior etc, podem ser facilmente identificados, no caso como provindo de
outros, que não os sujeitos da pesquisa. Apenas dois não opinaram, e cinco
acreditam que não exista discriminação, tendo a grande maioria afirmado que os
caboclos, incluindo-se ou não eles próprios na categoria, são discriminados de
alguma forma.

Quanto à discriminação ou preconceito pelos “de fora, o resultado foi


semelhante, observando-se nesse caso predominância de comparações
negativas com relação à inferioridade intelectual e a classificação aos caboclos na
categoria de índios, soando com um sentido de rebaixamento. Vale ressaltar que
essa grande maioria que antes havia se colocado em posição distanciada da
categoria em foco, agora inconscientemente nela se insere, contrapondo-se
imediatamente à identificação como índio, rebaixado a um status inferior ao
depoente. O índio idealizado deixa de existir e a “triste figura” do nativo detratado
pelos naturalistas, hoje desarticulado de suas tradições e confinado em reservas,
parece se sobrepor.

Sobressai pelo que parece, uma necessidade de incorporar o papel social


mais vantajoso no momento, o que é explicado por Goffman (1985) como uma
tendência comum quando o indivíduo se apresenta diante dos outros. Nessa
situação seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores
oficialmente reconhecidos pela sociedade.

A propósito, Torres (2003, p. 90) observa a existência de um conflito, e


mesmo de vergonha quanto à assunção de uma identidade étnica na Amazônia:

Assumir a identidade étnica e viver a condição humana de índio,


caboco, negro e mulher na Amazônia – onde a dominação e as relações
de poder têm endereços bem definidos – implica enfrentamento com as
estruturas de poder. [...] A espoliação dos povos indígenas parece ter
levado os nativos a vivenciarem duas situações: a primeira está
relacionada a uma atitude crítica frente às relações de poder por parte
daquelas pessoas que assumem a sua identidade étnica. A consciência de
si, de sua raça e de sua condição social possibilitam ao sujeito uma
percepção mais abrangente em relação à sociedade e à história, e vai
aclarando à medida que se caminha nessa história. A segunda vincula-se
ao aspecto de vergonha que muitos nativos têm de suas origens. E não
cause espanto constatar que a vergonha étnica atinge um universo
significativo na Amazônia.
132

Na construção de identidades, reforça Castells (2000, p. 24), utiliza-se


“matéria-prima fornecida pela história, geografia, instituições produtivas e
reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais”, sendo os
significados em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em
sua estrutura social.

[...] em linhas gerais, quem constrói a identidade coletiva, e para


quê essa identidade é construída, são em grande medida os
determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu
significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem.”

Essa forma de enxergar, de ver o outro como alguém que nada tem a ver
com a gente, quando na verdade “a alteridade atravessa o que somos”
(JOVCHELOVITCH, 1997, p. 81), poderia ser interpretada, talvez, como uma
forma de distanciamento ou não-reconhecimento em si mesmo de semelhanças
com esse outro socialmente estigmatizado.

As tabelas 13 e 14 mostram as respostas sobre valorização social e


pessoal.

Tabela 13
Você acha que o caboclo amazonense se sente socialmente valorizado? Por quê?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não, “as pessoas de fora acham que não temos
na educação”.
2 MA F negr Sim, “porque têm a sua própria cultura”.
a
3 MA F more Sim, não sabe explicar porque.
na
4 PA M more Não, não sabe explicar porque.
no
5 AM F branc Não, porque “há discriminação”.
a
6 RO M negr Não, não sabe explicar porque.
o
7 AM M more Não sabe.
no
133

8 AM M more Não sabe.


no
9 MT F more Não sabe.
na
10 MA M branc Sim, porque “tem escola, hospital, trabalho...”.
o
11 AM F branc Sim, não sabe explicar porque.
a
12 AM M pard Não sabe.
o
13 AM M branc Não, não sabe explicar por que.
o
14 AM M more Não, não sabe explicar por que.
no
15 AM M pard Não, não sabe explicar por que.
o
16 AM F more Não, “geralmente eles são desvalorizados pelos outros”.
no
17 AM F more Não, não sabe explicar por que.
na
18 AM M more Sim, não sabe explicar por que.
no
19 AM F branc Não, porque “os caboclos não têm valor social”.
a
20 AM M more Não, “por causa das diferenças”.
no
21 AM F more Não, porque “ainda hoje discriminam muito as pessoas
no por achar que deviam morar no mato”.
22 AM F branc Não, porque “é difícil encontrar alguém do interior ou
a daqui em uma classe social elevada”.
23 AM M more Não, “a prova tá aí, no dia a dia”.
no
24 PA F branc Não, “porque na sociedade se tira somente a sua cultura,
a mas seus valores como pessoas são negados”.
25 AM F more Sim, porque “está ganhando respeito”.
na
Tabela 13 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
26 AM M branc Não, “porque não podem mostrar sua capacidade”.
o
27 PA F more Não, “porque é cada vez mais esquecido com o passar
na dos anos”.
28 AM F more Não, “porque a valorização é financeira, e isso não tem”.
na
29 RR F pard Não, “porque são tratados com descaso, com ironia”.
a
134

30 AM M more Não, “porque vive numa região pouco divulgada e


no valorizada”.

Tabela 14
Você acha que o caboclo amazonense se dá valor pessoal
ou socialmente? Por quê?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não, não sabe explicar por que.
na
2 MA F negr Sim, porque “têm a sua própria cultura”.
a
3 MA F more Sim, não sabe explicar por que.
na
4 PA M more Não, porque “acostumou achar que é inferior”.
no
5 AM F branc Não, “as pessoas têm vergonha do que são”.
a
6 RO M negr Não, “porque muitas vezes ele nem admite o que é”.
o
7 AM M more Não sabe.
no
8 AM M more Não sabe.
no
9 MT F more Não sabe.
na
10 MA M branc Sim, porque “não se rebaixam nas opiniões”.
o
11 AM F branc Sim, não sabe explicar por que.
a
12 AM M pard Não sabe.
o
13 AM M branc Sim, não sabe explicar por que.
o
14 AM M more Não, não sabe explicar por que.
no
1 AM M pard Não, não sabe explicar por que.
5 o
16 AM F more Depende, “alguns se dão valor, outros não”.
no
17 AM F more Sim, “porque falam mal dele e ele tenta provar o
na contrário”.
18 AM M more Sim, “eles são muito esforçados”.
no
19 AM F branc Sim, “porque trabalha para seu próprio sustento”.
135

a
20 AM M more Não, “por causa das diferenças”.
no
21 AM F more Não, “porque se acha discriminado e esconde sua
no origem”.
22 AM F branc Sim, “muitos tentam mostrar que são capazes mesmo em
a meio ao preconceito”.
23 AM M more Sim, “porque luta pra mostrar o seu valor à sociedade”.
no
24 PA F branc Sim, “eles tentam de alguma forma mostrar que são
a pessoas que querem e devem ter os mesmos direitos que
as outras”.
25 AM F more Sim, “está ganhando respeito”.
na
26 AM M branc Sim, “porque lutam para sustentar sua família”.
o
Tabela 14 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
27 PA F more Não, “porque as pessoas de fora discriminam e tem gente
na que prefere não ser discriminado”.
28 AM F more Sim e não, “depende do seu esforço para trabalhar e
na estudar”.
29 RR F pard Sim, “muitos estão tentando se valorizar mais”.
a
30 AM M more Sim, “porque cumpre bem com seus deveres e regras”.
no

Questionados sobre se acreditavam que o caboclo se sentia valorizado


socialmente, a grande maioria respondeu que não, o que reforça a inferência de
que, neste momento, alguns entrevistados provavelmente estão se colocando no
papel de caboclos. Uma entrevistada do sexo feminino, cor branca (nº 19),
amazonense, que anteriormente disse achar os caboclos bonitos porque eram
“pessoas humildes”, e nas respostas subseqüentes parece ter reforçado esse
“olhar colonizador”, agora reafirma esta posição (tabela 13), ao afirmar que os
caboclos não são valorizados socialmente porque “os caboclos não têm valor
social”.

Sendo as características físicas um forte indicativo de distinção social em


nosso meio, a diferença de cor da pele pode significar um “salvo-conduto” para
fora de uma classificação que estigmatiza e é socialmente desvantajosa. A tese
136

do branqueamento como forma de aperfeiçoamento racial, tem eco na


supervalorização do padrão ariano como ideal estético que ainda vigora no país, a
despeito dos esforços em sentido contrário. Diz Torres (2003, p. 111), que é
importante ser lembrado que a idéia de raça “brota de uma construção mental
forjada para fundamentar um novo padrão de poder, o poder mundial de padrão
branco. Raça, etnia, povo, população são conceitos convergentes que engendram
relações de poder.”

Não se pretende tomar a entrevistada como bode expiatório e exemplo de


racismo, mas evidenciar um tipo de preconceito que existe efetivamente aqui
como em qualquer lugar do Brasil, e se fortalece insidiosamente nas relações
cotidianas. Complementa Torres que:

O racismo é adquirido muito cedo na infância e implica na


classificação de categorias raciais: índio, caboco, mameluco, negro,
cafuzo... Desde cedo, as crianças são levadas a perceber similaridades e
diferenças nas pessoas e essa percepção desencadeia um processo de
categorização. O problema não está na categorização, pois vivemos num
país que inclui no seu espaço territorial diferentes nações. A questão
central consiste em perceber a base do racismo construída na família,
onde a aprendizagem do mundo social se dá através de um processo
educativo de nomeação dos indivíduos e coisas (TORRES, 2003, p. 112).

Sobre a auto-valorização do caboclo, a metade acredita que o caboclo se


valoriza, ou pelo menos tenta se valorizar. Sobressaiu nas respostas positivas a
imagem de alguém que “luta” pra mostrar seu valor, pra melhorar sua condição
intelectual e econômica, que não se rebaixa etc, como uma espécie de reação
emocional a um sentimento de opressão.

Nas tabelas 15 e 16 procurou-se identificar se o termo é de uso comum no


contexto dos entrevistados; como eles vêem ou o fazem uso do mesmo.

Tabela 15
Você já viu alguém se sentir incomodado (a) por ser chamado
de caboclo (a)? Qual foi a reação?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não.
137

na
2 MA F negr Sim, “reagiu agressivamente”.
a
3 MA F more Sim, “a reação foi ruim”.
na
4 PA M more Sim, “não ficou satisfeito”.
no
5 AM F branc Sim, mas não lembra a reação.
a
6 RO M negr Sim, mas não sabe explicar a reação.
o
7 AM M more Não.
no
8 AM M more Não.
no
9 MT F more Não.
na
10 MA M branc Sim, “a pessoa saiu do local”.
o
11 AM F branc Sim, “a pessoa ficou agressiva”.
a
12 AM M pard Sim, “ficou aborrecido”.
o
13 AM M branc Sim, “ficou com raiva”.
o
14 AM M more Não.
no
15 AM M pard Sim, “ficou ofendido”.
o
16 AM F more Sim, “várias pessoas”; a reação foi de agressividade.
no
17 AM F more Sim, “ficou triste, de cabeça baixa”.
na

Tabela 15 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
18 AM M more Sim, “reagiu com violência”.
no
19 AM F branc Sim, “reagiu com raiva”.
a
20 AM M more Sim, “ficou com raiva”.
no
21 AM F more Sim, “teve uma reação explosiva”
no
22 AM F branc Sim, “a pessoa ficou com vergonha”.
138

a
23 AM M more Não.
no
24 PA F branc Não.
a
25 AM F more Não.
na
26 AM M branc Sim, “a pessoa ficou magoada”.
o
27 PA F more Não.
na
28 AM F more Sim, “ficou zangado”.
na
29 RR F pard Sim, “já vi várias pessoas ficarem zangadas”.
a
30 AM M more Não.
no

Tabela 16
Você já usou o termo caboclo no sentido pejorativo?
Tendo sido usado, por que e em que sentido?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Sim, mas não lembra o sentido.
na
2 MA F negr Não.
a
3 MA F more Não.
na
4 PA M more Não.
no
5 AM F branc Não.
a
6 RO M negr Sim, “pra xingar uma pessoa”, porque “somos todos
o preconceituosos”.
7 AM M more Não.
no
8 AM M more Não.
no
9 MT F more Não.
na
10 MA M branc Sim, “para humilhar a pessoa”, porque “estava com raiva
o e não me controlei”.
11 AM F branc Sim, mas não lembra o sentido.
a
139

12 AM M pard Sim, “por brincadeira”, no sentido de “rebaixar um pouco


o a pessoa”.
13 AM M branc Sim, “para humilhar”.
o
14 AM M more Não.
no
15 AM M pard Não.
o
16 AM F more Não.
no
17 AM F more Não.
na
18 AM M more Não.
no

Tabela 16 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
19 AM F branc Não.
a
20 AM M more Não.
no
21 AM F more Não.
no
22 AM F branc Sim, “pra fazer raiva”.
a
23 AM M more Não.
no
24 PA F branc Não.
a
25 AM F more Não.
na
26 AM M branc Sim, “pra desmoralizar a pessoa”
o
27 PA F more Não.
na
28 AM F more Não.
na
29 RR F pard Sim, “sem querer”.
a
30 AM M more Não.
no

Dois terços dos sujeitos, inclusive alguns que negaram a familiaridade com
o termo, afirmaram já ter visto alguém se sentir incomodado ou ofendido por ter
140

sido chamado de caboclo, confirmando o uso pejorativo do termo de que fala


Lima (2003) e outros estudiosos. As reações foram de raiva, vergonha, mágoa,
tristeza, aborrecimento e até revide, o que atesta o conteúdo ideológico que o
termo ainda carrega, mobilizada pelo interlocutor como um instrumento de
agressão ao outro.

Quanto ao uso do termo pelos entrevistados no sentido pejorativo, a maior


parte alegou não ter feito uso do mesmo desta forma, e aqueles que o fizeram,
declararam a intenção de “humilhar”, “rebaixar”, “xingar” e “desmoralizar” o
interlocutor.

No uso pejorativo, a palavra traz consigo toda a carga secular de


preconceito que tem sido lançada contra o ameríndio pelo simples fato dele
“existir” fora dos padrões concebidos e institucionalizados como os melhores e
mais adequados a uma forma social de vida conhecida como “civilização”. Esse
“outro” aparece aqui numa relação de alteridade que não se refere ao objeto
visado em sua essência, mas sim como uma qualificação que lhe é atribuída do
exterior, em termos de tipificação desvalorizante e estereotipada do diferente.
Nessa construção, analisa Jodelet (1998, p. 51), “se movem interesses que
servem à comunidade, no interior da qual se define a identidade”. Para ela,

a passagem do próximo ao alter implica o social, através da pertença ao


grupo que é o palco dos processos e práticos da transformação em
alteridade... [...] É levando em conta os processos, simbólicos e práticos,
de marginalização que se pode estudar a alteridade como forma
específica de relação social, superando a sua definição puramente
negativa de que o outro não é o mesmo (JODELET, 1998, p. 51).

Lima (1999) se reporta à etimologia considerada por ela mais adequada ao


termo, chamando a atenção para os aspectos históricos que hoje definem o
sentido de alteridade, pois na Amazônia da época da colonização caboclo foi
inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico usado pelos próprios
índios para referir-se a indivíduos de outros grupos no sentido de desprezo. Tal
como tapuio, o termo caboclo expressa uma espécie de expatriação, de
banimento, de exclusão.
141

Tabela 17
Alguém já chamou você de caboclo(a)?
Como você se sentiu ao ser chamado(a) assim?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Não.
na
2 MA F negr Não.
a
3 MA F more Não, “porque não sou”.
na
4 PA M more Sim, “não me incomodei porque sou da terra”.
no
5 AM F branc Não.
a
6 RO M negr Sim, “não me senti à vontade porque causou uma
o impressão de inferioridade”.
7 AM M more Não.
no
8 AM M more Não.
no
9 MT F more Não.
na
10 MA M branc Sim, “mas não me incomodei porque sei que isso não é
o feio”.
11 AM F branc Não.
a
12 AM M pard Sim, “não me senti ofendido”.
o
13 AM M branc Não.
o
14 AM M more Não.
no
15 AM M pard Sim, “achei normal”.
o
16 AM F more Sim, várias vezes. “Me senti à vontade porque faço
no parte”.
Tabela 17 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
17 AM F more Não.
na
18 AM M more Sim, “fiquei constrangido”.
no
19 AM F branc Sim, “achei normal”.
a
20 AM M more Não.
142

no
21 AM F more Sim, “mas não liguei”.
no
22 AM F branc Não.
a
23 AM M more Não.
no
24 PA F branc Não.
a
25 AM F more Não.
na
26 AM M branc Não.
o
27 PA F more Não.
na
28 AM F more Não.
na
29 RR F pard Sim, “fiquei com raiva, mas não sabia o que significava na
a época”.
30 AM M more Não
no

Perguntados se já tinham sido referidos pelo termo, a maioria declarou que


não. Outros consideraram normal serem chamados pelo termo e poucos disseram
ter sentido incômodo com a referência. Um dos entrevistados (nº. 6), que havia
usado o termo para “xingar” uma pessoa, se sentiu “inferiorizado” quando foi
tratado dessa forma, reforçando a afirmação de Lima (1999), compartilhada por
Wagley (1985), sobre o uso freqüente do termo como categoria relacional,
podendo ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa, indicando uma
consideração de status inferior para quem é referido e uma afirmação de
identidade superior para quem está falando.

Relacionando as respostas com aquelas sobre preconceito e valorização,


pode-se inferir a possibilidade desse tipo de ocorrência estar sendo camuflado,
pelo fato de que, assumindo ter sido referido dessa forma, implica em ser
identificado socialmente como tal, o que seria uma admissão de desprestígio,
considerando a carga negativa do termo.

A nominação, como a nomeação, é um ato de definição de


identidades e atributos sociais. No caso de uma palavra com sentido de
exclusão como caboclo (em muitos aspectos o pária da sociedade colonial
143

amazônica), o nome atribui uma identidade que prende o grupo e os


sujeitos a uma imobilidade social. A permanência do nome restringe as
possibilidades de emancipação (LIMA, 1999, p. 27).
As tabelas 18 e 19 mostram a quem os entrevistados atribuem a
“identidade” cabocla, se a um tipo específico ou a todos os amazonenses.

Tabela 18
Que tipo de pessoa você identifica como sendo um “caboclo”?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more “Minha mãe”.
na
2 MA F negr Não sabe dizer.
a
3 MA F more “Os habitantes da terra”
na
4 PA M more “O homem do interior”.
no
5 AM F branc “Todos nós”.
a
6 RO M negr “Somos todos nós”.
o
7 AM M more “Os ribeirinhos”.
no
8 AM M more Não sabe dizer.
no
9 MT F more Não sabe dizer.
na
10 MA M branc “Uma pessoa que trabalha e mora na floresta”.
o
11 AM F branc Não sabe dizer.
a
12 AM M pard Não sabe dizer.
o
13 AM M branc Não sabe dizer.
o
14 AM M more Não sabe dizer.
no
15 AM M pard “Pessoa de garra, de fibra”.
o
16 AM F more “Pessoas que não perderam seus costumes e suas
no origens”.
17 AM F more “Pessoa trabalhadora que faz sacrifícios pra sustentar sua
na família”.
18 AM M more “Aquelas que vestem mal”
144

no
19 AM F branc “Pessoa simples, humilde, que mora nos municípios”.
a
20 AM M more “Pessoa rude, misturado com índio”.
no
21 AM F more “Um homem de cor escura e fisionomia diferente dos
no outros”.
22 AM F branc “Aquele que não se envergonha dos traços que possui e
a que respeita a sua raça, sua cultura”.
23 AM M more Não sabe dizer.
no
24 PA F branc “Uma pessoa que nasce dentro da Amazônia e carrega o
a peso do trabalho desde muito cedo”.
25 AM F more “Uma pessoa com costumes e raízes indígenas”.
na
26 AM M branc Pessoa “com traços amazonenses”.
o
27 PA F more Não sabe dizer.
na
28 AM F more Não sabe dizer.
na
29 RR F pard “Todos do Amazonas”.
a
30 AM M more “Uma pessoa que vive numa boa e curte a natureza”.
no

Nas respostas sobre quem pode ser identificado como caboclo, novamente
emergem os conceitos mais conhecidos relacionados à origem e à descendência,
assim como a imagem estereotipada do amazônida típico, anteriormente
mencionada.

Tabela 19
Em sua opinião, todo amazonense é caboclo? Por quê?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Sim, porque “é mistura de índio com branco”.
na
2 MA F negr Sim, porque “são todos indígenas”.
a
3 MA F more Sim, porque “são mestiços”.
na
4 PA M more Sim, porque “existe uma parte de sangue indígena”.
no
145

5 AM F branc Sim, “por causa da origem”.


a
6 RO M negr Não, mas não sabe explicar a distinção entre o caboclo e
o os outros.
7 AM M more Não, porque “a maioria nasce em Manaus e outros na
no Amazônia”.
8 AM M more Não sabe dizer.
no
9 MT F more Não, porque “acho isso uma leseira”.
na
10 MA M branc Não, porque “pode somente ter nascido aqui, mas não
o viver aqui”.
11 AM F branc Sim, porque “são da região”.
a
12 AM M pard Sim, porque “é povo”.
o
13 AM M branc Sim, porque “somos filhos da terra”.
o
14 AM M more Não sabe dizer.
no
15 AM M pard Sim, porque “é descendente de índio”.
o
16 AM F more Sim, porque “nascemos aqui e temos todos os costumes”.
no
17 AM F more Não, porque “caboclos são pessoas que moram nos
na interiores e não na cidade de Manaus”.
18 AM M more Sim, porque “somos todos descendentes”.
no
19 AM F branc Não, porque “nem todos os amazonenses são totalmente
a amazonenses”.
20 AM M more Não, porque “são muitas etnias”; e “caboclo é uma
no pessoa rude, misturado com índio”.
21 AM F more Sim, “não é o que dizem, mas é verdade, porque todos
no temos descendência de caboclos”.
22 AM F branc Sim, porque “somos a junção de duas culturas”.
a
23 AM M more Acho que sim, “por dedução”.
no
24 PA F branc Não, porque “há amazonenses que nascem na classe alta,
a e não no sistema social do caboclo”.
25 AM F more Não, porque “muitos não têm a mesma origem que o
na caboclo”.
26 AM M branc Não, porque “nem todos têm esses traços”.
o
27 PA F more Sim, porque “possui uma cultura hereditária”.
na
Tabela 19 (cont.)
146

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
28 AM F more Sim, pois “quer queiram ou não, os que são nascidos aqui
na fazem parte da história dos nossos antepassados”.
29 RR F parda Sim, porque “descende do índio e do branco, e possui
costumes iguais, mesmo não querendo”.
30 AM M more Sim, “por causa da miscigenação”
no

Na questão “se todo amazonense é caboclo”, pouco mais da metade (17


entrevistados) respondeu que sim, dois não quiseram opinar e o restante disse
que não. Aparecem novamente aqui nas respostas positivas os conceitos
standardizados pela escola e os meios de comunicação sobre o caboclo como
mistura de raças, produto da miscigenação, mestiço, descendente de índio etc.
As negativas reafirmam a diferença, excluindo-se da categoria.

Tabela 20
Você se classificaria como um(a) caboclo(a)?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Sim, “porque sou filha de uma”.
na
2 MA F negr Sim, “porque acho aqui tudo interessante e positivo”.
a
3 MA F more Não, “porque não me sentiria bem”.
na
4 PA M more Sim, “porque sou da terra”.
no
5 AM F branc Sim, “porque somos dessa origem”.
a
6 RO M negr Sim, porque “nasci de uma mistura”.
o
7 AM M more “Não sei dizer”.
no
8 AM M more “Não sei”.
no
9 MT F more Não, porque “nenhum ser humano deve ser chamado de
na caboclo”.
10 MA M branc Sim, porque “já me tornei um”.
o
11 AM F branc Não.
147

a
12 AM M pard Talvez, porque “como todo mundo vive aqui, passa a ser”.
o
13 AM M branc Sim, porque “nasci aqui”.
o
14 AM M more “Não sei”.
no
15 AM M pard Sim, porque “Tenho sangue de caboclo sofrido e
o guerreiro”.
16 AM F more Sim, “mas quando digo que faço parte não quer dizer que
no sou cabocla, mas eu nasci aqui e considero muito o
caboclo e por isso digo que sou um deles”.
17 AM F more Sim, porque “já que eu moro no Amazonas e as pessoas
na dizem que aqui só mora caboclo e índio, eu tenho que me
sentir uma cabocla, já que faço parte desta cidade.”
Tabela 20 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
18 AM M more Sim, porque “moro no Amazonas e todo amazonense é
no caboclo para o pessoal de fora”.
19 AM F branc Sim, porque “sou do Amazonas”.
a
20 AM M more Sim, porque “eu nasci aqui e minha família é daqui”.
no
21 AM F more Sim, porque “meu pai é descendente de uma cabocla”.
no
22 AM F branc Sim, porque “nasci no Amazonas e faço parte dessa
a miscigenação. Sou cabocla e isso me faz sentir orgulho”.
23 AM M more Sim, “por causa das raízes, da cor”.
no
24 PA F branc Não, “porque o meu aspecto é contraditório ao dos
a caboclos amazonenses”.
25 AM F more Não, porque “simplesmente não tenho origem na região”.
na
26 AM M branc Não, porque “eu tenho sangue maranhense”.
o
27 PA F more Sim, porque “é uma origem hereditária, por mais que seja
na esquecida”.
28 AM F more Sim, “sou nascida e criada aqui, tenho a cultura daqui, por
na que seria de outro modo?”.
29 RR F pard Sim, “porque sou cabocla, gosto de viver a vida à
a vontade”.
30 AM M more Sim, “por todos os atributos (no bom sentido) que se
no referem ao caboclo”.
148

Contraditoriamente, na auto-classificação como caboclo, dois terços


declaram que se incluiriam na categoria. No entanto, ao invés de se constituírem
afirmações de identidade, algumas declarações deixam entrever como que uma
obrigatoriedade em se declarar caboclo pelo fato de ter nascido aqui, ser
descendente de caboclo e de índio etc. Três respostas, em particular, de
amazonenses (um homem e duas mulheres), com traços característicos de
descendência indígena, reforçam esta proposição:

A primeira fala como se fizesse uma concessão ao dizer-se cabocla:


“quando digo que faço parte não quer dizer que sou cabocla, mas eu nasci aqui e
considero muito o caboclo e por isso digo que sou um deles”. Outra fala como se
estivesse sendo obrigada pelas circunstâncias e pela pressão social: “já que eu
moro no Amazonas e as pessoas dizem que aqui só mora caboclo e índio, eu
tenho que me sentir uma cabocla, já que faço parte desta cidade”; outro para se
enquadrar a uma classificação imposta: “moro no Amazonas e todo amazonense
é caboclo para o pessoal de fora”.

Outros entrevistados, naturais do Amazonas, buscam justificativa na origem


dos pais ou na cor da pele para fugir à classificação: “simplesmente não tenho
origem na região”; “eu tenho sangue maranhense”; “o meu aspecto é contraditório
ao dos caboclos amazonenses”. A propósito dessa postura, Silva (1996)
considera que:

O homem com caracteres físicos europeus e portador de cultura


urbana, se sente como um sujeito branco e pode mesmo ver todos os
demais amazônidas que têm biótipos não estritamente brancos, nem
negros, através do estereótipo que lhes atribui a identidade cabocla (em
muitos casos, mesmo independente da classe social em que este
personagem esteja inserido). As lentes pelas quais cada ser-homem é
visto, na Amazônia, classificando-a nesta ou naquela categoria étnico-
cultural, têm suas origens constitutivas, por um lado, nas culturas (e nos
estereótipos que nelas estão contidos) e, por outro lado, nas posições de
classe do indivíduo que julga (e do grupo de semelhantes a que ele
pertence) e do indivíduo julgado e classificado com esta ou aquela
identidade (SILVA, 1996, p. 231).

Lima (1999) explica esta recusa no sentido de que as pessoas buscam se


preservar de um estigma que pesa sobre os caboclos há séculos: a noção de
inferioridade, herança da descendência indígena. Diz ela:
149

... as palavras não apenas criam, mas conservam as coisas que criam,
como as estruturas e as representações sociais. Porque carrega a história
colonial de subordinação, a palavra caboclo compromete o destino de uma
população. O efeito do nome sobre a identidade é inegável – o nome
condensa a própria essência da identidade. Aceitar o nome caboclo é
aceitar a derrogação (LIMA, 1999, p. 28).

Tabela 21
O que é, afinal, ser “caboclo”, na sua concepção?

Nº. Natur S Cor Respostas


al exo
1 AM F more Ser muito à vontade com as pessoas que lhe rodeiam.
na
2 MA F negr Uma mistura de raças. Todos nós somos caboclos.
a
3 MA F more Não sei o que responder por que preciso saber mais sobre
na o assunto.
4 PA M more Ser da Amazônia.
no
5 AM F branc Ter orgulho cada vez mais de ser brasileiro, amazonense,
a manauara.
6 RO M negr Ser da terra, ser uma mistura simples e agradável.
o
7 AM M more Não sei direito.
no
8 AM M more Não sei dizer.
no
9 MT F more Sei lá.
na
Tabela 21 (cont.)
Nº. Natur S Cor Respostas
al exo
10 MA M branc Uma pessoa boa, acolhedora, prestativa etc.
o
11 AM F branc Não sei identificar.
a
12 AM M pard Não sei dizer.
o
13 AM M branc Pessoa culta que dá valor às suas origens.
o
14 AM M more Não sei definir.
no
15 AM M pard Povo guerreiro.
o
16 AM F more Ser digno, ter sempre em mente o seu povo e sua cultura.
150

no
17 AM F more Um homem livre que usa um modo de vida melhor para
na ele e sua família.
18 AM M more Gente do interior.
no
19 AM F branc Uma pessoa humilde que ficou um pouco restrita na
a sociedade.
20 AM M more Um homem que luta pra sobreviver.
no
21 AM F more Um homem que se veste diferente da sociedade.
no
22 AM F branc É junção de culturas, costumes. É a minha raça.
a
23 AM M more Pra mim não importa a raça. Importa saber a diferença de
no humano e “ser” humano.
24 PA F branc Nascer e se criar nas proximidades do Amazonas e ser
a uma pessoa lutadora desde cedo.
25 AM F more Quem tem o aspecto físico e os costumes típicos da
na região.
26 AM M branc Alguém com traços indígenas e que não vive na
o sociedade.
27 PA F more Alguém de origem cultural antiga.
na
28 AM F more Todas as pessoas que nasceram e moram no Amazonas.
na
29 RR F pard Ser valente, livre e feliz.
a
30 AM M more Ser o que você acha que é, não o que os outros dizem ser.
no

Quando solicitados a dar sentido ao termo, poucos alegaram não ter o que
dizer a respeito. A grande parte dos entrevistados ressaltou as qualidades
positivas do caboclo, projetando, talvez, a forma como gostariam de ser vistos
pelos “de fora”. O imaginário de uma época que vê o indígena com os atributos de
bom, valente, guerreiro é, em parte, resgatado e integrado aos estereótipos do
homem amazônico.

As condições que regem a constituição de toda a identidade, de acordo


com Lisboa (2002b), são baseadas na afirmação da diferença, sendo constituída
a partir de um espaço e de múltiplas relações marcadas pelo confronto com o
151

outro. A identidade é constituída num processo, está sempre incompleta, sempre


sendo formada, mas socialmente necessitando ser reconhecida.
A identidade, reforça Lima (1999, p. 29),

é uma forma de representação dirigida a si próprio. É a visão de si, que


em um contexto social diferenciado é relacionada a uma identidade
coletiva. [...] A identidade de um grupo não está fora da existência de seus
membros, não é algo metafísico ou exterior aos indivíduos, mas sim uma
produção coletiva da somatória das contribuições individuais, no contexto
de uma formação social particular.

Torres (2003, p. 92) refere-se à constituição da identidade como um


“processo histórico-cultural que resulta do esforço do ser social em firmar a sua
auto-imagem numa relação entre o eu e o mundo, aos outros e à sociedade.” Em
uma parcela da população nativa, segundo ela, é possível perceber a existência
de “um sentimento de amazonidade latente”, mas esse processo é prejudicado
porque “o estigma da inferioridade e o vilipêndio étnico deixaram marcas
indeléveis”, sendo o processo de construção da identidade dos amazônidas
profundamente afetado.

Nesse momento de retomada à figura mítica do caboclo, há como que uma


espécie de ufanismo, uma sensação de pertencimento a uma “raça”, a brasileira.
O homem amazônico neste momento parece encarnar o arquétipo indígena que
traduz as raízes brasileiras, o dono da terra quando aqui aportou o estrangeiro.
Por esse prisma, o caboclo é visto na sua dimensão ontológica: é em si mesmo
valoroso, guerreiro, feliz. É o índio bom, portador de virtudes e qualidades de
Rousseau. O “ser” caboclo, então, é ser índio na sua melhor acepção, é ser da
“raça” brasileira. O “sentimento de amazonidade latente” de que fala Torres
(2003), parece emergir espontaneamente do cipoal de contradições e
preconceitos no qual se encontra submerso.
152

4. JUNTANDO OS PEDAÇOS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS


DO CABOCLO

“Em que espelho se perdeu a minha face?”


Cecília Meireles

A partir do material organizado, sobre o qual foram feitas considerações


preliminares no sentido de interpretar o conteúdo explícito e implícito das
verbalizações, três categorias28 centrais foram estabelecidas a partir dos dados
empíricos para possibilitar análise mais acurada do seu conteúdo. Buscou-se,
então, identificar as relações que essas representações guardam com o real, as
condições que favoreceram a sua emergência e as discussões que podem ser
articuladas entre a sua natureza epistêmica e o saber constituído, de maneira a
favorecer uma compreensão teórica da realidade.

Essa compreensão mais específica sobre um conjunto de informações a


partir da fala e do comportamento dos sujeitos relativos ao tema, de acordo com
Minayo (1996), deve trazer à tona as significações mais profundas que a
pertinência a um grupo ou classe e uma época histórica determinada conferem a
esses sujeitos.

Porque cada ser humano, individualmente, em grupo ou sob a


expressão histórica de classe é um ser significante. Nunca se pode
compreender sua palavra ou seu gesto sem superar o presente ou sem
projetá-lo para o futuro. As significações que descobrimos vem do ser
humano e de seu projeto e se inscrevem por toda parte, na ordem das
coisas e nas relações mediadas pelas estruturas enquanto ação humana
objetivada (SARTRE apud MINAYO, 1996, p. 237).

3.1 O caboclo estereotipado: imaginário e representações

28
Conforme orientação metodológica proposta por Minayo (1993), p. 94.
153

Um homem de feições rudes em uma canoa, um rio-mar que se estende


infinitamente, tendo ao fundo um horizonte interminável de vegetação. Perdido na
paisagem, isolado, a imagem estereotipada do caboclo amazônico traduz em
grande parte o seu status no imaginário social do amazonense citadino da
atualidade. É uma figura distante da realidade barulhenta e cada vez mais agitada
do homem urbano, principalmente o jovem, rodeado de estímulos diversos, cuja
visão mais aproximada do paraíso é um moderno shopping center.

Essa visão não é de todo negativa, mas encerra em si um reducionismo


que circunscreve e inviabiliza maiores aprofundamentos. O horizonte verde que
parece infindável reduz-se em si mesmo porque não é um horizonte do e para o
caboclo, mas o limite que o encerra e o imobiliza no espaço-tempo. É no
imaginário do paraíso amazônico que essa imagem se nutre. Esse homem só
existe e é aceito porque se integra à paisagem, não a macula, nem a subverte:
ele “é” a paisagem.

Assim concebido, subtrai-se da compreensão do caboclo as condições de


luta e de sacrifício que determinaram o seu processo adaptativo ao meio
ambiente amazônico. O imaginário, nesse sentido, se sobrepõe ao real porque é
mais aceitável e mais fácil de ser incorporado na atualidade, porque se abstrai
dessa imagem a história perversa de vilipêndios e subjugações a que foi
submetido o nativo, para que conformasse a sua vida nesses termos.

Mas qual seria a razão de tão longa predominância de um imaginário


construído e exportado pelos europeus quase sem retoques, particularmente no
tocante à Amazônia e aos amazônidas? Berger (2000) refere-se ao que ele
denomina “universos simbólicos” como objetivações sociais nos quais estão
contidos toda a sociedade histórica e a biografia do indivíduo, como
acontecimentos que se passam dentro deste universo, sendo o homem em
sociedade um construtor do mundo. Implicitamente, então, estaria a capacidade
humana de “desconstruir” esses universos e de transformá-los à sua vontade. Diz
o autor que:

Sendo produtos históricos da atividade humana, todos os


universos socialmente construídos modificam-se, e a transformação é
realizada pelas ações concretas dos seres humanos. [...] A realidade é
154

socialmente definida. Mas as definições são sempre encarnadas, isto é,


indivíduos concretos e grupos de indivíduos servem como definidores da
realidade (BERGER, 2000, p. 157).
Desta forma, orienta o autor (p, 157), “para entender o estado do universo
socialmente construído em qualquer momento, ou a variação dele com o tempo, é
preciso entender a organização social que permite aos definidores fazerem sua
definição”, o que implica buscar a compreensão de como as conceituações da
realidade se tornaram historicamente acessíveis e foram legitimadas até sua
aceitação pelo senso comum.

Segundo Castoriadis (1982, p. 277), “o imaginário social é,


primordialmente, criação de significações e criação de imagens ou figuras que
são o seu suporte.” É justamente das condições específicas da formação histórica
brasileira, afirma Pesavento (1999), que vem essa predisposição para o
predomínio do imaginário sobre o real, resultando que

a perversidade das condições de realização do capitalismo no Brasil dão


margem a um contexto em que a representação assume, de direito e de
fato, preeminência sobre o real. O peso do simbólico sobrepõe-se à
realidade: o parecer tem o efeito de ser e, como tal, é julgado e avaliado. A
credibilidade do imaginário se impõe, mesmo que as condições concretas
da existência neguem os discursos e as imagens que sobre a realidade se
produzem. A aparência e a fachada têm alta significação e o detalhe é
tomado pelo conjunto (PESAVENTO, 1999, p. 160).

Esse estereótipo do nativo amazônico funda suas raízes muito além, em


tempo e espaço pretéritos, nas idéias pré-concebidas na Europa sobre a América
muito antes dos conquistadores aqui aportarem. E é na Amazônia que eles vão
encontrar posteriormente a “mais completa tradução” desse mito do paraíso
perdido que permaneceu subliminar, mesmo quando os viajantes confrontaram o
inferno no mesmo lugar. Essa é a matéria-prima, segundo Gondim (1994), que vai
alimentar os sonhos (e os pesadelos) dos que os sucederam, pois

a visão inaugural da Amazônia oferecida pelos cronistas viajantes vai


fundamentar, enquanto matéria-prima, as deduções teóricas e,
inversamente, estas servem de estofo aos sucessores, cujo estoque de
informações impedem e/ou inibem a apreensão da variedade, da
multiplicidade, da diferença, em suma, caem na cegueira da confirmação
de verdades científicas (GONDIM, 1994, p. 10).
155

Castoriadis (1982), no entanto, chama a atenção para o cuidado quanto à


análise das significações imaginárias sociais quanto à sua natureza
eminentemente conotativa, ou seja, estas não têm um significado exclusiva e
claramente definido e não podem ser tomadas como definitivas. A tessitura dessa
rede de significados, interminavelmente remissiva e intrincada quanto à sua
ordenação, é um terreno pantanoso para o pesquisador e demanda cautela.

O mundo das significações, diz ele, é um magma, isto é, as significações


são compostos e não conjuntos. Uma significação é “um feixe indefinido de
remissões intermináveis a outra coisa... estas outras coisas são sempre tanto
significações como não-significações – aquilo a que se referem ou se relacionam
às significações” (CASTORIADIS, 1982, p. 283-4).

Assim sendo, continua Castoriadis, é em função de um sistema dessas


significações que o mundo social é constituído e articulado na forma de um
imaginário efetivo. É dessa forma, segundo ele, que cada sociedade define e
elabora uma certa “ordem do mundo”, uma imagem do universo onde vive e do
mundo natural, tentando constituir um conjunto significante onde estão inseridos
os elementos considerados importantes para a coletividade, e esta própria
coletividade. Na sua opinião:

A história é impossível e inconcebível fora da imaginação


produtiva ou criadora, do que nós chamamos o imaginário radical tal como
se manifesta ao mesmo tempo e indissoluvelmente no fazer histórico, e na
constituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de
significações (CASTORIADIS, 1982, p. 176).

É necessário compreender o espaço do imaginário, de acordo com este


autor, como aquele no qual uma sociedade se constrói e se espelha conforme o
simbolismo escolhido, e essa escolha não pode ser justificada apenas com base
no real e do racional, pois esses servem apenas para a organização dos dados,
enquanto que as subordinações e significações que vão constituir uma visão mais
ou menos estruturada daquela experiência humana vão depender do imaginário.

Este elemento, que dá à funcionalidade de cada sistema


institucional sua orientação específica, que sobredetermina a escolha e as
conexões das redes simbólicas, criação de cada época histórica, sua
singular maneira de viver, de ver e de fazer sua própria existência, seu
mundo e suas relações com ele, esse estruturante originário, esse
156

significado-significante central, fonte do que se dá cada vez como sentido


indiscutível e indiscutivo, suporte das articulações e das distinções do que
importa e do que não importa, origem do aumento da existência dos
objetos de investimento prático, afetivo e intelectual, individuais ou
coletivos – este elemento nada mais é do que o imaginário da sociedade
ou da época considerada (CASTORIADIS, 1982, p. 175).
Paiva (2002, p. 24) fala de um “campo imaginário” retroalimentando as
representações sociais, fornecedor de representações da sociedade para com ela
mesma, o qual “não deve ser concebido enquanto uma instância produtora de
representações que sejam ilusórias ou falsas, mas sim enquanto uma instância
fornecedora de um conjunto sistemático de “imagens” geradas pela própria
sociedade”. Segundo o autor, a constituição do campo imaginário brasileiro teve a
participação efetiva da “inteligência” nacional, a elite da intelectualidade, no final
do século XIX.

Pensadores do porte de Euclides da Cunha, segundo ele, ajudaram a


reforçar a idéia de que um processo de branqueamento da população, via
mestiçagem, melhoraria as condições da população brasileira, tendendo à
homogeneização, auxiliando conseqüentemente o processo civilizatório nos
moldes europeus. A tese de superioridade da raça branca, vista anteriormente, foi
defendida fervorosamente pelo naturalista Martius como forma de “salvar” a
civilização ameríndia da degeneração a que supostamente estava fadada.

Desta forma, muitas idéias distorcidas disseminadas ao longo do tempo


foram privilegiadas pelos grupos dominantes, incluindo as elites intelectuais,
contribuindo, algumas vezes involuntariamente, para a sua consolidação no
imaginário popular. A propósito, Morin (1999, p. 76) alerta para a necessidade de
compreensão que o mundo das idéias é absolutamente real, “no entanto, esta
realidade depende de nós mesmos”. Segundo ele, “nossas idéias são bárbaras, e
nós somos seus escravos, sem nem mesmo compreender que fomos nós
mesmos que as geramos”.

Até meados do século passado, reforça Arruda (1998, p. 37-8), é


precisamente a literatura que vem colocar-se como guia na viagem de regresso
às origens do Brasil:

O “olhar armado” pela ciência será produtor de identidades através


de cortes, como um passe de mágica (que faz desaparecer o que não
157

deve ser visto). A natureza continua a ser o grande biombo das misérias
nacionais.

Paiva (2002) acentua que a intelectualidade brasileira dessa época, por


exemplo, não somente foi partidária das idéias evolucionistas, como contribuiu
para a sua consolidação, reforçando o seu valor científico ao buscar explicar o
“atraso” do Brasil em relação aos países europeus por meio dos conceitos de
raça e meio geográfico. Tal postura atendia à necessidade dos dirigentes de
formulação de um diagnóstico preciso e convincente das reais possibilidades de
implementação de uma “civilização” no Brasil, com vistas ao estabelecimento de
estratégias para um modelo de modernização política e econômica.

Por outro lado, à medida que o modo de produção capitalista foi


estabelecendo sua primazia na região e novas estratégicas de desenvolvimento
foram sendo tentadas, a ciência, no sentido do pensamento social dominante
(Weigel, 2000, p. 25), que poderia ter representado um canal de discussões e
mudanças manteve-se, no entanto, no ponto de mediação homogeneizante,
participando decisivamente “na construção dos enfoques que atualmente
orientam o pensamento sobre a região.”

Weigel (2000) enfatiza que a região sempre foi palco de grande


movimentação de interesses e tentativas de ocupação que demandavam
constantes adaptações e recriações para fazer frente às peculiaridades locais. O
autor também enfatiza a homogeneização que há muito tempo vem sendo
impingida aos povos amazônicos, não somente em nível socioeconômico, mas
também cultural. Entretanto, mesmo o modo de pensar dominante que se
implantou com a chegada da “civilização” capitalista, voltado para o
estabelecimento de modos de produção adequados aos moldes ocidentais, não
conseguiu tornar-se predominante:

É um modo de pensar de características hegemônicas, que não


instala plenamente a sua hegemonia, pelas suas limitações inerentes e
pela superioridade localizada de outros modos que com ele se chocam,
balizados pela especificidade das interações homem-ambiente e pelo
arcabouço cultural subjacente e determinante (WEIGEL, 2000, p. 22-3).
158

Para a compreensão dessa mentalidade, na opinião de Pesavento29 (s.d.),


se faz necessária a remissão àqueles autores que se debruçaram sobre “a alma
da terra” para explicá-la, e acabaram por inventar um passado e forjar um futuro.
A história, segundo a autora, é muitas vezes engendrada a partir dessa dinâmica,
pois

idéias não têm raízes e viajam no tempo e no espaço, proporcionando


sempre novas apropriações e historicizações”. É por este princípio que se
torna instigante a constante releitura daqueles autores que desvelaram /
revelaram a alma da terra sob diferentes perspectivas. Eles realizaram,
com a sua escritura, não só uma explicação do seu presente, mas uma
invenção do passado e uma criação do futuro (PESAVENTO, s.d.).

Com relação à Amazônia, Paiva (2002) acredita que sobre ela foi criada, ao
longo dos tempos, uma verdadeira “tradição de um pensamento social”, atuando
os seus intérpretes de acordo com o tipo de apropriação que dela se fazia, seja
econômico, político ou cultural, moldando-a, enfim, aos interesses ocasionais.
Segundo esse autor, houve em período determinado, na história do país, um
movimento deliberado no sentido da criação de uma imagem da Amazônia que
justificasse o seu “atraso” em relação ao restante do país e ao conceito
internacional de “civilização”.

Por este viés, o trabalho de Euclides da Cunha assume uma dimensão


significativa para a compreensão do imaginário sobre a Amazônia no cenário
nacional. No entender de Euclides da Cunha, traduz o autor,

A presença humana revelava-se frágil na sua compreensão dada a


forte exuberância da natureza (“o Homem chegou antes do Gênesis”,
afirmava ele ao sugerir a idéia de “paraíso perdido” em relação à
Amazônia). Fazia-se necessário, no seu entender, o desenvolvimento de
programas de ordem político-administrativa no sentido de promoverem a
presença humana na região para consolidar a sua ocupação. [...]
podemos afirmar que o ponto de partida de uma interpretação “nova”
sobre a Amazônia, patrocinada pelas elite manauaras decadentes, esta ao
cargo dos “herdeiros de Euclides da Cunha” (PAIVA, 2002, p,. 68-9).

A imagem da Amazônia mítica, caracterizada pelo exotismo, foi então


retocada, e teve no trabalho de intelectuais do porte de Euclides o seu lugar no
palco dos debates científicos, assim como a sua legitimação na ordem sócio-
política e econômica nacional.
29
Texto obtido em endereço eletrônico.
159

Houve, também, um momento histórico de necessidade local de constituir


uma “cara” regional em que o imaginário secularmente forjado sobre a Amazônia
ganhou reforço e legitimação pelos detentores do poder em duas instâncias
chaves, a elite intelectual e a política. O investimento feito pela elite intelectual
nesse sentido, foi direcionado para a criação de um folclore amazônico, que teve
na obra de Mário Ypiranga Monteiro, segundo o autor, a sua representação
máxima. O folclore, então, foi o viés encontrado para o delineamento de uma
“identidade regional”, buscando-se realçar especificidades, marcar a diferença
para poder “existir”, mesmo como espaço social diferenciado, na realidade
nacional.

A caracterização da “região” amazônica, enquanto espaço social


distinto e diferenciado frente às demais realidades regionais do Brasil [...]
constitui-se em um momento político específico da “história regional. [...] O
êxito desse redirecionamento, no entanto, encontrava-se na dependência
de uma articulação balanceada entre aquilo que seria próprio e específico
da “região” e contributivo para a nação. Nesse sentido, a inserção da
Amazônia, enquanto espaço social simultaneamente dotado de
especificidades e integrante da realidade brasileira dependeu da
demonstração da existência de elementos individualizados, próprios e, ao
mesmo tempo, aditivos para a identificação de uma mesma “cultura
nacional” (PAIVA, 2002, p. 71-2).

É possível depreender da fala do autor, que o imaginário construído pelos


europeus e exportado para o Brasil aqui teve os seus legitimadores, tanto em
nível nacional quanto em nível regional. Para “fazer parte” da cultura nacional,
reforçaram-se na Amazônia as especificidades, conseqüentemente os aspectos
que a distinguem mais claramente do resto do país: a conformação geográfica, o
exotismo, suas lendas e fantasias. A Amazônia “folclórica” subsiste na atualidade
e crescentemente ganha força, servindo de biombo para a realidade
reiteradamente ignorada sobre a vida que pulsa por trás dessa cortina fantasiosa.

É o imaginário sobre a Amazônia, portanto, como “pano de fundo”, que vai


dar conformação à figura do caboclo algum tempo depois. É nesse cenário que
ela se forma e aí se fixa, imobilizada no tempo, de forma indissociável. No
discurso dos entrevistados se evidencia com nitidez essa relação. Há uma
Amazônia “inventada”30, idealizada, à qual a maioria se reporta, que é mais uma

30
Na acepção de Gondim (1994).
160

atualização do mito secular de paraíso. Agora ela é o manancial inesgotável, o


celeiro de recursos e potencialidades inexploradas inimagináveis. Assim, o “real”,
a Amazônia concreta, na qual vivem esses indivíduos, é percebida pela lente do
imaginário, sem filtro de crítica e sem atualização.
Por esse prisma o estereótipo do caboclo, então, pode ser entendido como
um conjunto de significações, configurando-se, por sua vez, conforme Bardin
(1977, p. 51), como uma composição imagética organizada em torno de
elementos simbólicos, que serve de orientação ou substituição à informação ou a
percepção real e “corresponde a uma medida de economia na percepção da
realidade”. Surge espontaneamente, como representação partilhada por membros
de um grupo social.

Estrutura cognitiva e não inata (submetida à influência do meio


cultural, da experiência pessoal, de instâncias e de influências
privilegiadas como as comunicações de massa), o estereótipo, no entanto,
mergulha as suas raízes no afetivo e no emocional, porque está ligado ao
preconceito por ele racionalizado, justificado ou engendrado (BARDIN,
1977, p. 51-2).

É esse preconceito historicamente enraizado que estudiosos


pesquisadores como Galvão (1979), Wagley (1977), Parker (1985) e outros mais
recentes, como Lima (1999), ao empreenderem estudos sobre o homem
amazônico, detectaram ao longo do tempo a respeito do caboclo. No momento
em que os primeiros estudos conhecidos foram realizados, essa imagem era pelo
menos mais coincidente com a realidade experimentada por aqueles assim
denominados. No entanto, em estudos mais atuais como de Lima, essa mesma
construção é observada, assim como a existência de outros condicionantes
negativos atrelados ao termo.

Neste estudo, embora nos limites estreitos em que se insere a proposta de


investigação, é possível identificar esses mesmos elementos arcaicos compondo
o imaginário dos jovens entrevistados. É a partir dessa composição imagética que
o caboclo ora é excluído, ora incluído, do espaço vivencial desses indivíduos,
realizando o movimento dialético de contradição e permanência a que se refere
Jodelet quanto à dinâmica das representações. Dá-se, então, a negação dos
atributos negativos com a criação do alter, e é nessa figura do “outro”, construída
161

historicamente desde tempos idos, que o caboclo se torna mais visível também na
atualidade.

3.2 Caboclo “é o outro”: representação da alteridade

É na constituição do imaginário sobre o homem americano e sobre a


Amazônia, que vão ser encontradas as raízes desse alter originário que foi sendo
consolidado com o tempo. A fenda primordial na unidade essencial do gênero
humano foi aberta, segundo Arruda (1998), com o advento da colonização, a partir
de quando se questionou a humanidade do outro. Daquele momento histórico de
confronto com a diferença, experimentado pelos colonizadores, continua a ecoar
a pergunta: o outro é humano? Agora não mais se tratando do humano em
relação ao selvagem ou não-humano , mas de um humano como eu, nos moldes
nos quais eu acredito estar constituído, de acordo com os padrões socialmente
aprovados.

Faz parte da nossa herança cultural, na opinião de Laraia (2002), reagir de


forma depreciativa em relação àqueles que apresentam comportamentos ou
características diferentes dos padrões socialmente aprovados pela maioria da
comunidade, e esses padrões, como se sabe, são produtos de múltiplas
determinações socialmente constituídas. Arruda (1998) faz menção a esses
determinantes que forçam as mudanças nos padrões socialmente aceitos e nas
relações sociais:

A construção da alteridade e do mesmo se move ao compasso


das conjunturas históricas. As mudanças de representações hegemônicas
correspondem a novas necessidades coletivas, oriundas da renovação de
projetos políticos, econômicos, sociais, de situações culturais e outras.
Devem-se à necessidade de estabelecer um novo senso comum com
relação a si mesmo e ao outro que dê conta ao mesmo tempo da nova
situação em que se encontram e dos novos ângulos que ela ilumina. A
historicidade das representações sociais segue esse movimento
(ARRUDA, 1998, p. 41-2).

Essa necessidade de estabelecer um ponto de apoio para situar-se no


confronto com a diversidade, é também explicada por Berger (2000) como uma
162

forma de apreensão do novo que se relaciona diretamente ao universo simbólico


do indivíduo que vivencia esta experiência. Ou seja, para não “se perder” das
suas referências originárias, ou não “desorganizar” aquilo que já está constituído
e aceito, faz-se necessário construir para o “outro” um universo simbólico que o
encaixe e o explique, diferenciando-o do seu próprio. Assim, foi a partir do seu
universo simbólico já internalizado que os conquistadores da América puderem
distinguir o indígena como diferente:

Uma das principais ocasiões para o desenvolvimento de uma


conceitualização conservadora de um universo é o que se apresenta
quando uma sociedade defronta-se com outra que tem uma história muito
diferente. [...] O universo distinto apresentado pela outra sociedade tem de
ser enfrentado com as melhores razões possíveis para afirmar a
superioridade do nosso próprio (BERGER, 2000, p. 146-7).

Segundo este autor (p. 140), “o universo simbólico também ordena a


história. Localiza todos os acontecimentos coletivos numa unidade coerente, que
inclui o passado, o presente e o futuro.” Assim, pode-se inferir a constituição de
um universo simbólico idealizado originalmente pelos estrangeiros, que foi
assimilado pelos nativos, a partir do qual foram sedimentadas as concepções hoje
reinantes.

Com relação ao passado, estabelece uma “memória” que é


compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. Em
relação ao futuro, estabelece um quadro de referência comum para a
projeção das ações individuais. Assim, o universo simbólico liga os
homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade
dotada de sentido... Todos os membros de uma sociedade podem agora
conceber-se como pertencendo a um universo que possui um sentido, que
existia antes de terem nascido e continuará a existir depois de morrerem
(BERGER, 2000, p. 140).

O preconceito que cerca a figura do homem amazônico, particularmente do


caboclo, possivelmente perdura porque passou por um longo processo de
enraizamento e cristalização ao longo do tempo, tendo sido reforçado pelo
acolhimento puro e simples e pelo fato de que os movimentos em sentido
contrário não tiveram suficiente força e poder de abalar suas estruturas
ideológicas.

A representação do caboclo como o “outro” no presente estudo delineia-se


antes mesmo de o termo ter sido empregado, a partir das primeiras questões
163

sobre a temática indígena, e se acentua quando entra em foco o homem


amazônico. Observa-se desde esse momento, por parte dos entrevistados, uma
postura de reserva, do tipo “não é comigo”: esse de quem se fala é o “outro” – o
alter -, pressupondo uma diferença ou distância social, além do sentido de
simples diferenciação.
Na opinião de Lima (1999), a própria etimologia do termo caboclo já
carrega uma história de exclusão, desde que começou a ser usado como
sinônimo de tapuio que, para os índios, identificava o pária. Os estudiosos que
pesquisaram o caboclo no universo amazônico foram unânimes na menção ao
sentido predominantemente negativo do termo, associado à inferioridade social e
econômica. A idéia de que “caboclo é sempre o outro” foi identificada por Wagley
(1976) em estudo sobre uma comunidade no interior da Amazônia na década de
70, concluindo que o termo era utilizado sempre que se queria referir a uma
categoria social inferior a de quem falava, e era sucessivamente transferido até
chegar ao indígena.

Silva (1996), no estudo da obra de Eduardo Galvão, identifica na visão


daquele autor a visão do caboclo como um elo social e cultural (e mesmo
biológico em alguns casos) entre o ser índio e o ser não índio. O caboclo é um
signo da passagem de um a outro estado, na perspectiva de mudança cultural.
Como um híbrido, um ser distinto do índio e do branco que lhe deram origem e
influenciaram a sua constituição, esse personagem social diferenciado, sem a
consciência dos contributos culturais originários, passa a ser um alter em relação
a aqueles.

A noção do “outro” se expressa, então, em vários momentos no discurso


dos sujeitos, quando se aborda classe social, aparência física, capacidade
intelectual etc. Os atributos negativos, mesmo quando não verbalizados ou
admitidos, emergem espontaneamente e ninguém quer ser identificado como
“feio”, “burro” e principalmente “pobre”, um atributo ligado ao caboclo desde
quando o termo começou a ser utilizado.

Há momentos em que o outro é simbolizado no índio, mas com tendência a


eximi-lo das conotações negativas, então o sentido volta para o mesmo, como
numa brincadeira de “manja-pega”. O caboclo, então, é negado, como uma
164

sujeira que se tira da roupa, porque o termo carrega a pecha de inferioridade e


ninguém quer ser inferior. Por ausência de análise crítica, no entanto, esse
sentido é experimentado, mas não questionado o porquê desse rechaço, desse
distanciamento. Afirma Arruda (1998, p. 42), no entanto, que “a construção do
outro e do mesmo são indissociáveis”, e que a construção da alteridade “decorre
de um espaço de ambigüidade que permanece vivo e presente e que permite
reacomodações segundo as circunstâncias.”

Ressalta a autora, por outro lado, a importância de que não se perca de


vista que uma representação pode encobrir outra. De fato, é um outro
representado que aparece quando são abordadas questões como preconceito e
discriminação, podendo-se inferir a manifestação de sentimentos de pertença, de
inclusão, de “estar no lugar do outro”, ainda que não de forma explícita em muitos
casos. Tratando da representação da alteridade, Arruda (1998) faz uso da
terminologia proposta por Moscovici para analisar a existência de uma
perturbação diante de uma “diferença” que surpreende muito mais pela
semelhança:

A diferença que surpreende – o inusitado perturbador – busca


terreno conhecido para ser incorporado. Ela surpreende muito mais na
medida em que, na verdade, o outro não é tão diferente, mas sim um
semelhante que não conseguimos situar. É na semelhança que
desconcerta: parece familiar sem o ser. Torna-se imperativo, dessa forma,
achar o ponto de ancoragem, aquele que vai permitir acomodar o
desconcerto, neutralizá-lo de alguma forma (ARRUDA, 1998, p. 20).

Nas falas que traduzem a concepção de caboclo para os entrevistados, é


uma outra noção de alteridade que se evidencia, denotando a existência de
sentimentos positivos relacionados à descendência indígena e à herança cultural,
talvez resultantes do fato de que em Manaus, nos últimos anos, têm se falado
muito mais em “cultura local”, “valores da terra” e outros tantos clichês que
causam boa impressão pública. E têm sido, de fato, abertos maiores espaços
para manifestações culturais diversas, em grande parte no rastro do sucesso que
os bois bumbás de Parintins estão fazendo no país e até internacionalmente.

Existe hoje no Amazonas, particularmente em Manaus, uma movimentação


no sentido de evidenciar os valores artísticos regionais, que aparenta ser uma
165

reedição daquela desencadeada na região, de acordo com Paiva (2002, p. 71), no


período de 20 a 50, constituindo um momento político diferenciado na história
regional, quando “o pensamento referente à região amazônica voltou-se quase
que inteiramente para o seu próprio interior através de um ‘olhar nativo’.” Naquele
momento impunha-se uma necessidade de fazer sobressair elementos
representativos de uma “cultura amazônica”, numa tentativa de transformação de
conceitos estigmatizantes relativos à região.

A investigação sobre os processos de representação regional,


elaborada por um determinado “círculo de intelectuais” no âmbito de um
contexto cultural específico, configurou um momento de retomada de
singularidades regionais em confronto/associação com aspectos de uma
nacionalidade mais abrangente no âmbito de um espaço de
ressocialização dotado de particularidades. [...] fazia-se necessário a
revelação de aspectos próprios e específicos da realidade amazônica que
simultaneamente a diferenciaria das demais regiões e contribuiria para a
configuração de uma cultura nacional (PAIVA, 2002, p. 71-2).

Arruda (1998, p. 34) também faz menção a essa iniciativa em nível


nacional na qual se privilegiou o exotismo na tentativa de construir um perfil que
explicasse a diferença entre o país e as nações civilizadas, da qual o movimento
local é tributário, e cujos desdobramentos se fazem notar tanto tempo depois. Ela
chama esse momento de “negociação da diferença”. “A compreensão da
natureza, dos acidentes geográficos, esclarecia assim os próprios fenômenos
econômicos e políticos do país. O Brasil e os brasileiros se explicavam através
dessa natureza e das raças que aqui habitavam”. Acrescenta a autora que os
processos de construção da representação de si através do encontro com o outro
foram de duas ordens, de acordo com o momento histórico:

Na chegada do colonizador, o peso do imaginário medieval serviu


de ímã para a ancoragem, colorindo a composição do novo panorama por
projeção. O diferente se demarcou pela detração, mergulhando no velho –
e em funduras do inconsciente. No momento seguinte, sempre no plano
“oficial”, tratava-se de usufruir da diferença, ressaltando-a, e as teorias
explicativas são o novo que se busca para reacomodar a velha diferença,
dar-lhe outra indumentária. Assim, é a representação da alteridade, em
ambos os casos, que constitui o mesmo, e se primeiramente ela é
encarada sobretudo pelo negativo, mais adiante precisa ser resgatada
para compor uma nova diferença, agora com relação aos “outros” não-
brasileiros (ARRUDA, 1998, p. 40-1).
166

Tal como o mencionado pelos autores, nota-se novamente aqui e ali um


“quê” de orgulho a cada menção na mídia nacional às festas e ao folclore
amazônico, afinal, estar na mídia parece traduzir-se em um sentimento de
integração nesta “aldeia global” que é o Brasil. Nessa construção “metamórfica”
da alteridade em relação ao caboclo amazônico por parte dos sujeitos, podem ser
entrevistos esses processos de que fala Arruda, sobretudo quando o termo
preconceito é mencionado. O outro nesse momento é o “de fora”, o estrangeiro,
aquele que não faz parte desta realidade e se arvora em julgá-la.

A relação simbiótica do homem com o ambiente, criada a partir da visão do


estrangeiro quanto ao homem americano, aqui personificado na figura do caboclo,
na opinião de Arruda (1998), é parte intrínseca da nossa subjetividade:

A relação estreita e ambígua com o ambiente natural – pela mão


de um olhar externo – é um dos esteios da construção da nossa
subjetividade. Apresenta dois estágios: primeiro, a diferenciação; depois, a
incorporação do exótico – o outro de ontem torna-se o eu de hoje – e a
valorização dessa incorporação, por meio de um nacionalismo
eurocêntrico... Dessa forma, para construir uma imagem de si, extrai-se do
outro uma parte do mesmo (ARRUDA, 1998, p.36).

A complexidade em definir “quem é o outro” de quem se fala nas


representações do caboclo, confirmam a proposição de Arruda de que a
alteridade “não é obrigatoriamente uma construção definitiva. Ela se aparenta a
um holograma, uma projeção do mesmo em movimento, mas também mais do
que isso. Ela se dilui e evolui no tempo, dando novos contornos a cada um
desses personagens” (ARRUDA, 1998, p. 42).

Assim, os personagens da nossa história se mostram nesse processo de


alternância entre simplesmente atribuir ao outro a designação com a qual não se
sentem propriamente identificados, e o sentir-se caboclo, como uma realidade
intrínseca à sua condição existencial presente, em que pesem os condicionantes
dessa designação. Ou ainda, em certos momentos, uma postura de defesa à
assunção consciente de uma identidade como grupo social, com características
próprias e valoração positiva.
167

3.3 O caboclo e “eu”: identidade e conflito

É nesse processo dinâmico de aproximações e contrastes que se vai tentar


identificar a existência de um sentido de identidade nas representações do
caboclo. De acordo com Jovchelovitch (1998, p. 80),

o sujeito simbólico não está centrado em si mesmo, mas emerge em


relação a algo que lhe é alter, distinto do que ele é. Da mesma forma, esta
é a razão pela qual a ordem do simbólico se funda na alteridade. A
alteridade, ou a diferença objetiva do mundo externo, fornece ao sujeito
social as referências e os significados em relação aos quais a
subjetividade emerge, se sustenta e, se for o caso, se defende. A
identidade do interno sempre emerge em relação à identidade do externo.
É quando o sujeito é capaz de reconhecer, acessar, avaliar e mesmo
rejeitar o externo, que ele pode reconhecer quem é. Para ser portador de
uma identidade única o sujeito vai precisar, em algum nível, defletir o
externo e não permitir ao externo o controle de todos os seus mandatos
identificatórios.

Para ser o portador de uma identidade – continua a autora – o sujeito não


só precisa reconhecer o que ele não é, como também estabelecer uma relação
com esse “não ser”. Supõe-se, então, que a tentativa de encontrar indícios de
uma possível “identidade cabocla” neste estudo passe necessariamente pela
negação do “ser caboclo”, expressado não só pelas verbalizações, mas
principalmente pela não verbalização, pelo não-dito.

Em seu artigo sobre a construção histórica do termo caboclo, Lima (1999,


p. 8-9) chama a atenção para a sua natureza conceitual, considerando-o como
“uma abstração, uma unidade de um sistema de classificação projetado para
retratar as diferenças entre as pessoas na sociedade”. Alerta ela para o perigo do
termo ser tomado como identidade, e com isso serem criadas fronteiras para um
grupo na realidade inexistente e estabelece distinção entre um grupo social, como
uma agregação real definida por interações estreitas, e uma categoria social, no
caso do caboclo, “uma agregação artificial de pessoas baseadas na identificação
de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam
necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade.”

Lima (p. 29) abre discussão sobre a conveniência ou adequação de uso do


termo na atualidade, questionando o que deve fazer “se nossa representação do
168

outro entra em conflito com a sua própria representação de si, sua própria
identidade?”. Considera ela que a manutenção do uso da palavra demonstra
desconhecimento da parte de quem usa o termo, da forma como os próprios
caboclos se representam, pois “o nome caboclo vive apenas no discurso que nós
fazemos sobre uma outra categoria social”.

Propõe a autora, que não se use mais a palavra caboclo ao se fazer


referência às identidades rurais na Amazônia contemporânea:

[...] essa história da palavra caboclo me faz refletir sobre a pretensão


antropológica de subtrair sua carga simbólica consagrada pelo uso popular
e supor que pode empregá-la com um novo sentido. Podemos falar em
caboclo impunemente, atribuindo à palavra um significado neutro (e no
caso pretender também o exercício da nominação)? (LIMA, 1999, p. 29).

De acordo com (Silva, 1996, p. 230), em razão de sua heterogeneidade


constitutiva, agregando componentes biológicos oriundos do processo
miscigenatório, elementos culturais diversos e classificação social não rígida, pois
pode ser encontrado em diferentes segmentos da população, o ser caboclo
amazônico “é uma configuração sociológica específica que pode ser analisada
sob diferentes ângulos teóricos, articulados com a observação das situações
concretas na sociedade”. O autor se refere, ainda, ao caráter subjetivo da
constituição do ser caboclo, que implica em objetivamente sentir-se como tal,
tendo ou não caracteres somáticos que evidenciem origem indígena.

Castells (2000, p. 22-3) reforça esta idéia, ao afirmar que identidades


constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e
construídas por um processo de individuação. Mesmo quando essas identidades
são formadas a partir de instituições dominantes, somente assumem essa
condição se forem internalizadas pelos atores sociais, que constroem o seu
significado com base nessa internalização. “Entendo por identidade” – diz ele –“o
processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda
um conjunto de hábitos culturais interrelacionados, os quais prevalecem sobre
outras fontes de significado.”

Segundo esse autor, na história da humanidade a etnia sempre foi uma


fonte fundamental de significado e reconhecimento, por tratar-se de uma das
169

estruturas mais primárias de distinção social assim como também de


discriminação, em muitas sociedades contemporâneas:

Em meio a comunas culturais e unidades territoriais de


autodefesa, as raízes étnicas são distorcidas, divididas, reprocessadas,
misturadas, estigmatizadas ou recompensadas de maneiras distintas, de
acordo com uma nova lógica de informacionalização / globalização de
culturas e economias que produzem compostos simbólicos a partir de
identidades não claramente discerníveis (CASTELLS, 2000, p. 79).

Nessa perspectiva de reformatação identitária parece se inserir o


mencionado por Paiva (2002), em termos de identidade regional, reportando-se
ao contexto histórico anteriormente mencionado no qual se forjou, em nível
nacional e local, a criação de elementos culturais distintivos, uma “cara” nacional.
Assim, a “identidade regional” amazônica passa a ser definida, segundo ele, a
partir do confronto com outras regiões brasileiras:

Uma determinada região será melhor caracterizada em sua


identidade, não em função de elementos próprios e específicos, mas sim
em decorrência de um reconhecimento diferenciador destes elementos
frente a outras “regiões”. Se os intelectuais amazonenses, ao longo das
décadas de 1920 a 1950, elaboraram um certo conjunto de
representações acerca da Amazônia, os aspectos e elementos
identificadores por eles ressaltados não devem ser percebidos como
dotados de uma existência na própria realidade regional, mas sim
enquanto aspectos que ganham visibilidade a partir de uma confrontação
com outras representações de outras regiões componentes da realidade
nacional (PAIVA, 2002, p. 69-70).

Essa questão regional, de fato, faz parte do discurso dos entrevistados


como componente de um imaginário atualizado daquele secularmente
reproduzido, mas igualmente reducionista e equivocado. É com base nesse
composto imagético que a identidade amazônica está formada fora daqui
(nacionalmente e internacionalmente). Em nível local, a influência desse ideário
pode também ser notada.

Goffman (1988, p. 117) afirma que tanto a identidade pessoal quanto a


social de uma pessoa fazem parte das definições de outras pessoas e, no caso
da identidade pessoal, surgem antes mesmo do seu nascimento e subsistem
após sua morte. Embora tenha relativa liberdade na sua elaboração identitária, “o
170

indivíduo constrói a imagem que tem de si próprio a partir do mesmo material do


qual as outras pessoas já construíram a sua identificação pessoal e social”.

A análise de Berger (2000) sobre identidade converge para essa


concepção. Segundo ele:

A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade


subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética
com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez
criada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações
sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da
identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as
identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência
individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada,
mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a (BERGER, 2000, p.
228).

No pensamento desse autor, forçosamente as teorias sobre a identidade


estão sempre encaixadas em uma interpretação mais geral de uma dada
realidade, sendo “embutidas” no universo simbólico e legitimadas por este:

A identidade permanece ininteligível a não ser quando é localizada


em um mundo. Qualquer teorização sobre a identidade – e sobre os tipos
específicos de identidade – tem, portanto, de fazer-se no quadro das
interpretações teóricas em que são localizadas (BERGER, 2000, p. 230).

Essa estreita relação da identidade com a sociedade na qual ela é


constituída é reforçada por Castoriadis (1982), que evidencia o seu caráter
“institucional”:

A identidade é instituída como regra e norma de identidade, como


primeira norma e forma sem o que nada pode ser da sociedade, na
sociedade, para a sociedade. [...] Não é apenas pelo fato de que só a
instituição social-histórica possa “enunciar”, “formular”, “explicitar” a idéias,
o esquema, a efetividade da identidade: somente a instituição social-
histórica faz ser, e isso pela primeira vez na história do mundo, a
identidade como tal, fazendo ser o idêntico como rigorosamente idêntico.
Nesse sentido a identidade “plena” é, e só é, como instituída. [...] a
sociedade faz ser a identidade com um modo de ser impossível e
inconcebível em outro lugar (CASTORIADIS, 1982, p. 242).

A identidade social particularmente, acredita Silva (1996, p. 286), “implica


no sentir-se semelhante, “idêntico a”. Trata-se de um estado de ser que
pressupõe um compartilhamento, em termos coletivos. Neste sentido a
171

correspondência tem um significado de essencialidade.” Assim sendo, mesmo


portador de uma identidade individual, cada indivíduo carrega marcas identitárias
que o identificam como pertencente a diferentes grupos sociais, que se
evidenciam socialmente independente da vontade do portador. “Cada homem,
enquanto ser social, um ser político, um integrante de uma coletividade, contém
em si uma subjetividade insersora.” Já a identidade coletiva, seja qual for a
dimensão quantitativa da coletividade, tem um caráter generalizante, que
transcende o individual.

Em se tratando de representações, destaca Lima (1999), deve-se ter em


mente que elas não são necessariamente identidades e não devem ser assim
interpretadas, ressaltando o vínculo obrigatório entre a concepção identitária
individual e a identidade coletiva:

A identidade é uma forma de representação dirigida a si próprio. É


a visão de si, que em um contexto social diferenciado é relacionada a uma
identidade coletiva. [...] A identidade de um grupo não está fora da
existência de seus membros, não é algo metafísico ou exterior aos
indivíduos, mas sim uma produção coletiva da somatória das contribuições
individuais, no contexto de uma formação social particular (LIMA, 1999, p.
29).

A propósito, Berger (2000, p. 229-30) fala na constituição de identidades


dentro de um mesmo contexto:

As estruturas sociais históricas particulares engendram tipos de


identidade, que são reconhecíveis em casos individuais. [...] os tipos de
identidade são observáveis, verificáveis na experiência pré-teórica, e por
conseguinte pré-científica. A identidade é um fenômeno que deriva da
dialética entre um indivíduo e a sociedade. Os tipos de identidade, por
outro lado, são produtos sociais tout court, elementos relativamente
estáveis da realidade social objetiva (sendo o grau de estabilidade
evidentemente determinado socialmente...).

No caso do caboclo estudado por ela em uma comunidade amazônica, a


autora observou não haver uma identidade clara, forte e socialmente valorizada
relacionada ao termo, a não ser como uma encenação pré-fabricada, “uma
aceitação dissimulada da nomeação que é imputada ao locutor e que este só
adota para uma platéia específica: uma que lhe seja (ou que ele considere)
superior” (LIMA, 1999, p. 26).
172

Internamente, o indivíduo constrói sua noção de pessoa com


outros referenciais, citados acima, como sendo ligados à sua condição
social (pobre), à principal atividade econômica (pesca artesanal,
agricultura de pequeno porte, coleta de castanha), ao ambiente que ocupa
(várzea ou terra firme), aos laços de parentesco locais (as “comunidades”
de parentes), à cosmologia e à religião que professa (o mundo dos
encantados, o catolicismo popular ou as seitas pentecostais de várias
denominações). Essas noções de identidade estão presentes no seu
discurso direto, quando falam de si e por si (LIMA, 1999, p. 26).
Assim sendo, continua Lima (p. 27),

De maneira geral [...] a palavra caboclo é usada em discursos


indiretos, quando se fala de alguém ou de algum grupo. O nome caboclo
carrega uma história particular: surgiu ao longo do processo em que se
formou o segmento camponês amazônico, no contexto de uma estrutura
social altamente hierarquizada, como foi a sociedade amazônica colonial.
E surgiu não só para referir a essa classe inferior como para definir suas
qualidades e seu valor. Vimos como a palavra inicialmente denotava o
índio genérico, destribalizado, passando posteriormente a significar o
híbrido, o miscigenado.

Lima considera uma prova de que o termo tem sido usado principalmente
para classificar categorias e definir posições sociais é o fato de que a palavra ter
sido mantida, apesar da evolução da composição étnica da população que
nomeia. Ela acredita que a recusa de auto-designação como caboclos por parte
indivíduos da comunidade estudada está indissoluvelmente ligada à idéia de
inferioridade, porque o termo está atrelado à história colonial de subordinação.
Como é inegável o efeito que o termo causa à identidade, a aceitação do nome
caboclo implicaria também em incorporar o estigma de fracassado e derrotado.

Na presente análise, sem a pretensão de aprofundamento em termos


conceituais, toma-se a noção de identidade mais precisamente no sentido de
pertencimento a um grupo social, no caso o de “amazonenses”, stricto sensu e
“amazônidas” lato sensu, tendo em conta as implicações históricas e os
determinantes sócio-políticos e culturais que isso acarreta.

É estabelecida, assim, para efeito de interpretação, uma relação estreita


entre o ser caboclo, o ser amazonense e o ser amazônida, buscando-se perceber
e compreender as conexões e rupturas ocultas e visíveis na representação
dessas concepções pelos sujeitos e o que isso pode significar para o
entendimento da sua realidade atual.
173

É possível inferir das representações dos jovens entrevistados quanto à


existência de uma noção de identidade cabocla, uma convergência para a
proposição de Silva (1996) com relação ao sentir-se caboclo de acordo com
situações concretas na sociedade, e com a conveniência dessa auto-
denominação a partir do paralelo que possa ser traçado entre essa referência e
um contexto específico ou imagem associada.

Sentir-se caboclo, por esse prisma, seria sentir-se semelhante ao caboclo


na concepção socialmente construída, mas essa concepção só é utilizada para
auto-atribuição quando internalizada e aceita pelo indivíduo, e isso só acontece
quando é favorável a ele. Melhor dizendo, parece não existir um ser caboclo, e
sim um estar caboclo, ou sentir-se caboclo em diferentes momentos dos
discursos, relativamente ao contexto enfocado. É, portanto, uma noção subjetiva,
mas calcada em valores da coletividade.

Pode-se dizer que a identidade de caboclo não é consensual enquanto


grupo de amazonenses (ou amazônidas, já que o número de entrevistados que
não é da região é mínimo): alguns amazonenses se dizem caboclos e outros não.
Mas existe consensualmente uma identidade de caboclo atribuída a outro grupo,
no caso o que reúne os estereótipos mencionados e encontra-se imobilizado ora
em um tempo histórico, ora em um espaço geográfico específico, ou em ambos
simultaneamente.

Quando a referência ao caboclo situa o entrevistado no mesmo universo,


onde é possível ser estabelecida uma comparação entre os sujeitos (no caso o
caboclo e o sujeito da pesquisa), impõe-se uma distância às vezes traduzida pelo
silêncio, pela negativa em opinar, como se, ao falar sobre o assunto, corresse o
risco de se revelar. A negativa de uma identidade como caboclo, acredita-se, não
é a negativa de uma identidade amazônica propriamente, mas rechaço a uma
carga histórica de negatividades que há séculos tem sido utilizada para
discriminar e oprimir o homem amazônico. O termo caboclo, infelizmente, tem
sido o “portador” preferencial dessas estereotipias.
174

Por carência de conhecimento aprofundado sobre identidade, esbarra-se


na dificuldade de ampliar a discussão quanto à possibilidade da existência de
uma identidade cabocla, pelo risco de incorrer em leviandade e superficialidade
no trato de uma questão tão complexa, principalmente quando autores como Lima
(1999) atestam a impossibilidade dessa existência. Para essa autora, o termo
caboclo é uma abstração e refere-se a uma categoria social, não devendo ser
entendido como uma referência identitária.

No entanto, mesmo dentro deste limitado espaço interpretativo é possível


cogitar da existência de uma identidade cabocla “virtual”, uma identidade que
efetivamente não se realizou, mas ainda é passível de realizar-se. Mesmo na
negativa de assunção de uma identidade que se configura socialmente muito
mais como um “rótulo” indicativo de inferioridade, os indivíduos entrevistados
evidenciam a latência de um desejo de identificação, de pertencimento a uma
classe, uma necessidade de estabelecer laços sociais significativos, de integrar
um grupo, quando se posicionam a respeito da visão depreciativa “dos outros”
sobre o caboclo.

Existe, sim, uma negativa implícita e explícita, por parte dos entrevistados,
a uma categoria social desprestigiada e estigmatizada, mas esta multifacetada
abstração que é o caboclo comporta possibilidades outras que se nutrem também
no imaginário, mas vivem no espaço das contradições: o mesmo imaginário que
imobiliza, porque constituído de elementos que demandam atualizações para se
transformarem, revela as raízes de um povo cujos valores latentes só precisam de
espaço para vicejar.
175

REFLEXÕES FINAIS

A condição humana está marcada por duas grandes


incertezas: a incerteza cognitiva e a incerteza
histórica. (...) Conhecer e pensar não é chegar a uma
verdade absolutamente certa,
mas dialogar com a incerteza. 31

E
is que esta viagem labiríntica parece ter chegado ao seu termo. Como
um remador que driblou por muito tempo a correnteza e o emaranhado
de galhos nas veredas intermináveis dos igapós e que, ao desaguar no
rio, acredita ter chegado a um lugar seguro, assim pensa o pesquisador, ao
abandonar o terreno movediço das análises e interpretações, ter chegado a, pelo
menos, algumas “quase” certezas. Mas o que se abre àquele que busca, assim
como para o remador, é um rio-mar incomensurável, cujo horizonte se perde de
tão distante. Um rio-mar de dúvidas e indefinições e apenas uma certeza: esta é
uma viagem que recomeça a cada nova paisagem.

Nas últimas falas deste breve “diálogo com a incerteza”, os


questionamentos que lhe deram origem subjazem às respostas que se esperava
ter encontrado. No início dessa jornada, questionava-se sobre as origens do
imaginário sobre o caboclo, pressupondo-se as ligações ancestrais com o ideário
delineado na época do descobrimento, tendo em conta a literatura dos
naturalistas e dos viajantes que tanto enfatizaram essa imagem mítica, que

31
Edgar Morin, em A cabeça bem feita.
176

contrapunha à natureza idilicamente idealizada a imagem de seres tidos como


selvagens e primitivos, beirando a animalidade.

Essa concepção é até certo ponto compreensível, em se considerando os


universos simbólicos tão contrastantes daqueles povos que ali se defrontavam em
momento histórico peculiar. Aqueles estrangeiros, antes de chegarem ao Novo
Mundo, já traziam a imaginação povoada pelos elementos míticos que desde
tempos imemoriais vivem no universo onírico do homem; afinal é ali que o
desconhecido encontra existência real. Diante da incompreensão daquela
realidade tão diversa (e adversa), a explicação foi buscada nas histórias
reproduzidas pelos antigos sobre povos estranhos e grotescos em meio a uma
natureza fantástica.

O pensamento na Idade Média estava fortemente impregnado pela doutrina


da unidade fundamental do gênero humano, o que significa dizer que, pela ótica
eurocêntrica, a idéia da existência de humanos além das fronteiras geográficas
conhecidas na época era inaceitável. A busca por terras desconhecidas, assim,
era também a busca do paraíso desabitado, pleno de delícias e beleza, e os
relatos dos viajantes que arriscavam suas vidas nesses mundos inexplorados,
substituíam os contos maravilhosos que excitavam a imaginação, e exerciam
fascínio ainda maior do que aqueles.

Ao contato com um mundo inóspito e seres “incompreensíveis”, a miragem


tornou-se real, e foi assim que os aventureiros e cronistas encaixaram a paisagem
encontrada no modelo já existente, preenchendo as lacunas do que não era
explicável com as tintas da imaginação. Em algum momento, e por pouco tempo,
o selvagem foi incorporado ao paraíso e visto como o seu complemento, com o
manto da pureza com o qual cobriu Rousseau, ou pelo prisma mais racional e
criterioso com que o avaliaram Montaigne e Locke. Mas logo os seus modos
primitivos o distanciaram dessa concepção e ele passou a encarnar o oposto,
aquele que maculava o paraíso com a sua selvageria, para alguns, e sua
debilidade para outros: ele era o protótipo da inferioridade, vivia pelo instinto e
externava as fúrias fundamentais que a razão científica, a mística religiosa e a
lógica civilizatória não poderiam aceitar.
177

Essa lógica moldou a civilização americana a partir daquele momento,


adequando aos seus padrões o modus vivendi daqueles seres e forjando novos
modelos de vida pelo processo miscigenatório, que não originou apenas novos
tipos humanos, mas novas formas de organização social, embora à custa de
dolorosos embates e subjugações. O Brasil que hoje se conhece é resultante
dessa mescla e de uma longa tradição de dominação e aviltamento das
populações indígenas.

A proposta integracionista do período colonial brasileiro deu margem a


freqüentes práticas genocidas e etnocidas, aniquilando formas sócio-organizadas
e culturais que poderiam representar hoje importantes experiências civilizatórias,
como é o caso da sociedade cabocla32 amazônica que, ao longo das histórias de
conquistas que marcaram a civilização brasileira, é um dos muitos exemplos que
podem ilustrar essa dinâmica de reciprocidade, quando são analisadas as
influências culturais impostas pelos dominados aos dominadores nas mais
diversas situações. É uma história de resistência, em todos os sentidos, que os
nativos têm exemplificado ao longo dos tempos.

A não-predominância da visão estrangeira no cenário amazônico tem


relação direta com a postura do nativo desde as primeiras investidas dos
colonizadores. Não foi sem resistência passiva, ou ativa, que os grupos indígenas
permitiram a chegada dos estranhos e, mesmo subjugados pela força e poderio
bélico dos dominadores e induzidos a modificação de hábitos culturais e
modificação drástica de atividades produtivas, com ênfase no extrativismo, não se
permitiram à subtração de sua forma peculiar de lidar com o ambiente amazônico,
com qual tinham total sintonia.

Ao longo do tempo e a despeito da ampliação e fortalecimento do modo de


produção capitalista na região, afluxo populacional de outros centros,
superexploração da natureza, desmantelamento cultural e extrativismo
tecnológico até o esgotamento de recursos, o caboclo restou como símbolo de
uma cultura ímpar, de um saber tradicional que hoje é posto em relevo para
entendimento da região.
32
De acordo com pesquisadores que estudaram os grupos tradicionais habitantes da Amazônia e consideram
o modo de vida caboclo, nos moldes tradicionais, o melhor exemplo de sistema adaptativo ao complexo meio
ambiente da região.
178

A história do caboclo, por sinal, começa antes mesmo da “descoberta” da


Amazônia, nos tempos em que ela foi “inventada” pelos europeus. É na região
amazônica brasileira, mais do em qualquer outro lugar, que o mito edênico se
traduz e se perpetua. Enquanto no restante do país a face da civilização vai
ganhando contornos mais nítidos via colonização, a Amazônia resta praticamente
incólume, resistente ao “progresso” que avança em todos os pontos. É um país
dentro de outro, cuja natureza avassaladora ergue barreiras impenetráveis para
muitos que tentam alcançá-lo, e, mesmo aqueles que o adentram, não o
alcançam em sua complexidade.

Nesse universo belo e hostil vivem seres que, para alguns, nem chegam a
ser considerados humanos, incompreensíveis na sua maneira de viver uma vida
de ócio, selvageria e devassidão33, e inaceitáveis pela sua suposta incapacidade
de se adequar aos moldes da civilização. É nessa tentativa de “formatar” o
indígena aos interesses dos colonizadores que se vai delineando aos poucos a
figura do caboclo, o híbrido que nasce (literalmente) de uma ação profundamente
invasiva e autoritária, mas que não se amolda aos propósitos para si
estabelecidos, criando uma possibilidade alternativa de vida integrada ao
ambiente de forma quase simbiótica.

Essa reconhecida sabedoria do caboclo, no entanto, representa apenas um


aspecto de uma designação que reúne um mosaico de preconceitos
profundamente enraizados, situando o caboclo em um patamar bastante
desprestigiado. O caboclo foi alijado da dita sociedade civilizada desde que
rejeitou a subordinação imposta pela política colonizatória, que o mantinha refém
de práticas produtivas e tentava enquadrá-lo a padrões culturais estrangeiros.

Ignorando os atrelamentos econômicos e modelos de vida social, ele


desvencilhou-se dos seus algozes e “espraiou-se” pela imensidão amazônica, ao
longo dos rios, em pequenos agrupamentos de subsistência, optando por ser
dono de sua própria vida ao invés de escravo de interesses alheios. Embora
muitas vezes de modo pouco evidente, mostra a história que o espírito guerreiro e
livre do indígena, subjugado e espezinhado das formas mais atrozes, nunca
33
Para muitos, como o naturalista Martius.
179

deixou de viver, latente, no caboclo, e o movimento da Cabanagem simbolizou


para muitos esse grito de afirmação.

O jeito ensimesmado do caboclo típico34, sua maneira rústica de viver, sem


requintes, supostamente sem ambições, provendo o seu sustento da natureza,
com a qual está em permanente contato, foi (e é) geralmente interpretado como
primitivismo, preguiça, incapacidade para progredir e outros tantos estereótipos a
ele atribuídos que têm raízes em conceitos semelhantes relacionados aos índios,
seus ancestrais. Práticas extrativistas como a exploração da borracha, no entanto,
mostraram que havia uma “ciência de viver” nessa forma do caboclo, sem a qual
seria impossível o acesso a bens tão cobiçados como a seringa.

Os que vieram para a Amazônia, atraídos pelas possibilidades de


enriquecimento e que acabaram constituindo uma mão-de-obra especializada
naquela atividade, como os nordestinos, não tiveram alternativa senão amoldar-se
à maneira típica dos caboclos, que dominavam o conhecimento do meio, e se
35
caboclizaram , no sentido de conformar o seu modo de vida a esse feitio,
enriquecendo a cultura local.

O fato é que, a despeito das qualidades que poderiam ser enumeradas a


partir de uma breve análise do contexto sócio-histórico do caboclo amazônico,
prevalece o imaginário que o coloca e o recoloca sempre numa posição de
inferioridade, ou pelo menos no sentido oposto em relação ao que se considera
como “civilizado”. Na visão atual, o caboclo aparece até mesmo em posição
inferior ao índio, numa inversão que ilustra bem a influência que podem exercer
os processos educacionais e os meios de comunicação de massa, subsidiados
pela mesma visão homogeneizante que fez cristalizar o neomito que traduz a
Amazônia como a cornucópia virtual da humanidade.

O índio salta dos livros de história como um personagem idealizado, cujo


contorno é reforçado pelo surto ecológico dos últimos anos, que contrapõe à
prática predatória que tem levado de roldão os recursos naturais em várias partes
do globo, a imagem de uma região que simboliza o baluarte das riquezas, cujo
34
No caso o habitante do interior, cujo modo de vida ainda hoje é semelhante ao de seus ancestrais.
35
A caboclização também é enfocada negativamente, no sentido de que, colocando-se no nível dos caboclos,
tornar-se igualmente “inferior”.
180

habitante, portador de flecha e arco, é o seu guardião legítimo. Nesse cenário o


homem amazônico, personalidade real desta história, é relegado a uma não-
existência que se traduz em políticas que verdadeiramente ignoram a sua
presença.

Fato notório de que as políticas desenvolvimentistas não têm em conta o


caboclo36, é que os projetos voltados para a região (malogrados em sua maioria)
são feitos à sua revelia e sem considerar o seu conhecimento do meio. Ressalte-
se, também, que muitos fracassos de investidas políticas e econômicas na
Amazônia continuam a ser explicados pela velha lógica da supremacia do meio
em relação ao homem, pelas noções de terra inóspita, floresta indevassável, solo
improdutivo e outros tantos mitos recriados para justificar, inclusive, a longa
história de descaso com que a região amazônica, particularmente o Amazonas, foi
(e ainda é) tratada em nível nacional pelo poder federal.

Tratou-se até aqui quase exclusivamente do caboclo no sentido daquele


personagem ao qual o termo imediatamente remete, que tem características
físicas remanescentes do ameríndio, circunscrito em um habitat geograficamente
idealizado, que envolve rio, floresta etc. Mas os caboclos, no caso os assim
identificados pelos outros, já não compõem exclusivamente esta imagem
estereotipada (embora subsistam em muitos lugares de forma semelhante).
Mesmo o indivíduo a quem pode ser atribuída essa denominação, por sua origem
determinada de mestiço de índio com branco, pela tipicidade de suas maneiras e
conhecimento do meio, há muito vive também em comunidades urbanizadas e em
cidades como Belém e Manaus.

Seus descendentes espalham-se na cidade, ostentando nos caracteres


somáticos a sua herança. A julgar somente pela aparência física, especialmente
nos bairros periféricos da cidade, poder-se-ia dizer que em Manaus predominam
caboclos, e eles estão inseridos em todas as classes sociais, estão nas escolas,
nas universidades, em carros importados e em ônibus lotados. Este olhar, no
entanto, é um olhar “de fora”, já que, ao que tudo indica, tais quais os “caboclos”
que Wagley procurou localizar para realizar a sua pesquisa nos idos de 70,

36
No mesmo sentido de homem amazônico.
181

também os “caboclos” modernos não se identificam como tal, e mesmo parecem


por vezes negar até mesmo a existência de caboclos no cenário urbano.
Foi neste aparente paradoxo que se firmou o interesse que originou esta
proposta de pesquisa, pelas evidências empíricas de que o termo continuava a
ser rejeitado como auto-referência pelos habitantes de Manaus, particularmente
os jovens. Os sujeitos da pesquisa corroboraram essa constatação, ao
reproduzirem nos seus discursos todo o ideário conhecido sobre a Amazônia, o
índio, o homem amazônico e o caboclo (seu sinônimo), com o agravante de
denotarem ignorância de uma história que diz respeito diretamente à sua
realidade social, e não demonstrarem (na maioria) consciência crítica a propósito
desse desconhecimento.

Em princípio se poderia cogitar que o problema é o termo caboclo, talvez já


em desuso, mas é pouco provável que assim o seja, porque o termo é utilizado
cotidianamente em Manaus, e tem sido reeditado como sinônimo de identidade
regional nos investimentos atualmente feitos na área cultural pelo Estado.
Políticos de grande influência no Amazonas o utilizam com freqüência nas suas
falas, acentuando a referência identitária, e os artistas, músicos e escritores locais
utilizam correntemente o termo em seus trabalhos.

Nas relações em sociedade, no entanto, o que sobressai é justamente o


aspecto negativo do uso, de forma que é comum usar o termo como forma de
ofensa a alguém. Poucos ficam impassíveis ao serem referidos como caboclos, e
os entrevistados reforçaram esta percepção, quando alguns afirmaram já ter feito
uso da palavra no sentido pejorativo, ou terem presenciado o desconforto de
alguém ao ser chamado pelo termo. Alguns, inclusive, admitiram tê-lo usado com
o propósito de humilhar o outro, confirmando a impossibilidade de uso neutro para
uma palavra forjada por um conjunto tão denso de significados.

De fato, realmente há uma negação, por parte do jovem amazonense, de


uma possível identidade como “caboclo” e um sentimento de alteridade na forma
com que este jovem vê aquele assim denominado. Da análise das falas dos
entrevistados é possível inferir a negativa não somente de uma identidade
182

cabocla, mas também de uma identidade amazônica, se isso implica em fazer


parte de uma história de fracassos e em desprestígio social.

No entanto, paradoxalmente, em oposição a uma “vergonha” originária, é


possível identificar também um sentimento de orgulho racial latente, uma
sensação de pertencimento que em momentos espontaneamente emerge nos
discursos, a despeito do peso dos estereótipos negativos, remetendo à idéia de
que possa existir não apenas “uma abstração”, mas uma identidade cabocla
“virtual”, no sentido de que potencialmente pode significar um elo de
fortalecimento que subjaz aos processos de pulverização cultural.

Perguntado se considerava a si mesmo caboclo, um dos entrevistados, de


15 anos, respondeu que sim, porque “tenho sangue de caboclo sofrido e
guerreiro”. Outros, por sua vez, questionados sobre que tipo de pessoa
identificavam como caboclo, responderam que seria “uma pessoa de garra, de
fibra”ou “aquele que não se envergonha dos traços que possui e que respeita a
sua cultura”. Uma entrevistada, em sua fala sobre a valorização e auto-
valorização do caboclo, faz uma reflexão bem adequada sobre a realidade vista
em Manaus. Diz ela que “muitas pessoas negam suas origens e valorizam só o
que vem de fora. Os caboclos são mal vistos pela sociedade e muitas pessoas
acreditam que pessoas do interior são limitadas de conhecimento, e que só
sabem plantar e colher”.

Foi evidenciado no processo histórico de delineamento do pensamento


social sobre a Amazônia, como as ações da elite pensante européia e nacional
exerceram influência decisiva na constituição do ideário que hoje conhecemos e
vivenciamos na região, constatando-se que todos esses equívocos historicamente
engendrados e legitimados continuam a se reproduzir naturalmente, sem
encontrar resistência ou oposição, porque encontram terreno fértil na ausência de
ações que lhe façam frente.

Observa-se, assim, que o peso do imaginário no qual se encontra a


imagem deteriorada do caboclo é evidenciado nas representações dos sujeitos da
pesquisa, o que assume especial relevância quando se considera que esses
jovens fazem parte de uma geração que tem acesso a uma quantidade elevada
183

de informações e estas tendem a preencher o espaço vazio do conhecimento não


consolidado. Ou seja, na ausência ou fragilidade de uma orientação ou formação
cultural, o que resta senão reproduzir o que já vem pronto (a cultura fast food),
que iguala a todos em um mesmo nível de alienação?

Volta-se, então, à ênfase na importância do processo educacional na


constituição do pensamento social dos jovens amazonenses. Assim, mesmo com
o risco de parecer “receita de almanaque”, acredita-se que na educação esteja o
primeiro e fundamental mecanismo de reforma cultural, não em bases alegóricas,
como foi visto no último quarto do século XX, mas em bases sólidas, em um
processo de reformatação identitária a partir da consciência crítica. Não como
uma forma de distanciamento da realidade polimorfa e da identidade high tech
ditada pela globalização, mas como um distintivo real, de um povo cujas raízes
culturais se fincam em um passado longínquo, mas cuja sabedoria cada vez se
mostra mais atual.

O segundo e igualmente importante elemento de transformação está na


ciência. Não a ciência que apenas descobre e cataloga novas espécies da fauna
e da flora e pesquisa aplicações práticas para os milhares de recursos naturais
que a região oferece, sem desconsiderar a sua importância e relevância, mas a
ciência que também pensa o social e o humano desse universo. Que questiona o
seu próprio saber quando se descobre assentada em bases movediças, e se
concebe como caminho, não como ponto de chegada. É nesse tipo de ciência,
norteada pela consciência de que há muito a ser palmilhado para o desvelamento
e o entendimento de um universo tão complexo como o amazônico, que se pode
também sustentar expectativas de mudança.

A desaguar sem fim num mar sem termo...

Na tessitura dessas considerações finais, quando que se percebe ainda


tantas interrogações a serem suscitadas, e a riqueza que a temática encerra,
aguça-se ainda mais a consciência do “princípio de incerteza”, existente em cada
instância constitutiva do conhecimento. Na construção do mosaico de
interpretações, em que se pretende que cada peça encontre o seu encaixe,
184

tende-se irremediavelmente à magia das soluções instantâneas, na tentativa de


reduzir a complexidade do fenômeno mesmo sabendo dessa impossibilidade.
Não há certezas, esta é a conclusão possível e mais palpável ao se
vislumbrar o horizonte imenso. A lógica da percepção traduz apenas o que foi
visto: o espelho no qual se reflete o caboclo na atualidade, incluindo nesta
categoria os amazonenses entrevistados, produz uma imagem distorcida que ele
ora estranha, por não coincidente com sua auto-representação, ora reconhece,
por realçar aspectos que lhe são familiares.

Como o reflexo no rio, é uma imagem fugidia, que ora se apaga, ora se
revela, que se emoldura da paisagem e se revela familiar e acolhedora. Que se
esmaece na paisagem e se revela distante, indefinida.

No mesmo espelho d’água em que se imagina mirando o caboclo,


contempla-se a impossibilidade de definir o seu rosto, cujos contornos se
confundem com a paisagem. O horizonte é imenso, mas a linha divisória existe e
só é preciso alcançá-la....

Mas isto é uma outra viagem.


185

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