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FELIPE SANTOLIA

FELIPE SANTOLIA

A CHIBATA
"A autobiografia de um repórter
investigativo que tem dedicado
sua vida a denunciar os esquemas
de corrupção no Nordeste do Brasil.
Trata-se de uma história envolvente
e atual de um homem perseguido
e marcado para morrer.
Vítima do coronelismo político,
a obra retrata a trajetória de uma
revolução anônima em uma nação
de face até então desconhecida
do grande público".

EDITORA BEST SELLER

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Dedico esta obra ao único Ser de onde
emana toda e quaisquer existências, seja de vidas ou de fatos –
nosso Deus Supremo e Pai Nosso. Dedicá-la a outrem seria trair a
essência maior da verdade, pois nada e ninguém foge a regra da
imunidade às iniqüidades, o que nos torna, portanto, infinitamente
incapazes de sermos responsáveis ou fontes de inspiração para uma
História de Vida. Apenas protagonizamo-a por benevolência do
Senhor.

O autor.

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01 - OS DOIS LADOS DA
FACE CRISTÃ

(Capítulo ainda a ser escrito sobre


minhas experiências como seminarista e missionário Franciscano.
Um retrato polêmico da Igreja Católica no Piauí. A visão do
discurso pela reforma agrária proferido pela maior latifundiária do
Estado).

02 - VIVENDO COMO
UM PREDADOR

(Interposto entre a Igreja e as televisões.


Período em que assessorei o prefeito de Barras, Cabelouro, e que
coordenei a campanha política do Chagô em 1996 no município de
Esperantina. Trata-se de um período que transitei nos bastidores do
poder, contribuindo de certa forma para os atos de corrupção
praticados por meus superiores – os políticos piauienses).

03 - DESBRAVANDO O
CICLO SEM FIM

Logo após o êxito da campanha política


que ajudei a capitanear, trabalho conjunto que elevou o aparente
candidato derrotado, Francisco das Chagas Rebêlo, ao topo da
pirâmide da cidade de Esperantina e, como que traído por ter sido
desconsiderado pelo prefeito que ajudei a eleger, mudei-me
novamente para a capital (Teresina), período em que convivi com a
insistência do destino em me negar oportunidades que me fizessem
sentir vivo e capaz.
Os meses de 1997 seguiram acanhados e
apresentando irritante poder de imobilidade, período em que minha

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vida passou a ter serventia alguma a qualquer conteúdo literário.
Entregue ao inertismo do ócio, eu apenas existia, sem que eu próprio
inspirasse finalidade para mim ou para outrem.
Além de viver refém do calor causticante
de Teresina, onde em não raras ocasiões lembro-me de ter tido a
impressão de ser assado como um leitão sob temperaturas que
chegavam a 46ºC, achei de locar um apartamento em plena Avenida
Miguel Rosa, reduto de históricos engarrafamentos e verdadeira
usina de produção de fuligem. Localizado no primeiro andar de um
pequeno edifício de três pavimentos, meu apartamento ficava
exatamente sobre o forno industrial de uma panificadora, a Paladar.
Minhas noites quentes da capital passaram a ferver. Meu quarto
parecia ter sido concebido com precisão. Eu em cima e, em baixo, os
padeiros assadores de broas e pães. Nossa convivência só não
atingiu a amplitude em virtude de uma laje entre nós.
Dr. Mansueto Magalhães Filho, um jovem
e inteligente advogado que, à época, nutria verdadeira aversão a sua
profissão, dividia comigo o apartamento e as despesas de sua
manutenção e, de certa forma, comungávamos do mesmo tédio pela
vida e da orfandade de projetos que nos estimulassem a agir. Éramos
a tampa e a panela, dois trintões sentados num banco de praça
assistindo inertes à vida passar.
O fato de ficar na janela a ver navios,
numa cidade distante do mar em mais de 400 quilômetros, fez com
que eu reagisse e tomasse uma decisão. Porquê me entregar à morte
pelo ócio se havia outros mares a serem navegados? Portanto, era
chegado o fim de minha história no Piauí. Havia fracassado, as
portas estavam cerradas, não havia mais ninguém a quem recorrer.
Era chegada a hora do forasteiro ser repatriado.
Feito as dobras no que havia restado de
minha vida, procurando ocupar bem os espaços, olhei para um canto
do apartamento e contei: uma, duas, três caixas de papelão. Ali
estava o meu quinhão, o meu patrimônio, o resultado de meus sete
anos de consorte com o Piauí. Fui tomado por uma sensação de
derrota ao perceber o quão pouco eu havia evoluído. Atendendo aos

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estímulos da ambição, filosofia que me inspirava naquela época,
deixei de perceber que as riquezas das experiências que tive existem,
e que não se acomodam em caixas de papelão. Chorava o ouro do
tolo, a razão dos brutos. Era o pior cego, pois não queria de fato ver.
Decidido a voltar para minha terra natal,
Lorena - cravada na área mais verde do Vale do Paraíba (interior de
São Paulo), o fazia sem o menor drama de consciência, pois era
testemunha de minha própria história, sabia do esforço empreendido
para ficar e das possibilidades que exauri.
E quando tudo parecia definido, a partida
e o retorno a casa dos pais, e as malas empilhadas de forma a não
mais serem desfeitas, um único telefonema foi o responsável pela
mudança dos planos.

_ É da casa do senhor Felipe Santolia?


_ É ele quem está falando.
_ Aqui é da TV Antena 10, é sobre um
currículo que o senhor deixou aqui...

Em dia e hora marcados, lá estava eu,


sentado diante do grande mito da televisão piauiense - jornalista
Tony Trindade. Eu mal podia acreditar. Eu achava aquele cara o
máximo! Admirava sua postura, a linha do programa que
apresentava e seu estilo nobre, mas reservado de levar a vida.
Mirou-me nos olhos e, como um cão a atacar, investiu contra mim
com um arsenal de perguntas que me fizeram narrar do meu
nascimento ao último filme que havia assistido no cinema.
A conversa passeou por vários mundos
até que, em dado momento, ouvi do Tony uma história que jamais
migrou de minha memória. Sua palavras, como que ditas por um
mago, faziam-se acompanhar de uma indagação que mudaria todo o
curso de minha história.

_ Felipe, eu acredito no potencial de todo


aquele que fez de um estúdio de rádio sua escola de formação. Um

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dia, há muitos anos, assim que eu deixei os estúdios da Rádio
Timon, alguém me viu e me deu a oportunidade de estar hoje aqui,
sentado nesta cadeira de diretor da emissora de televisão que mais
se expande hoje no Piauí. Portanto, sempre será hora de retribuir o
que recebi, criando oportunidades aquelas pessoas que batem na
porta que um dia também bati. Você quer mesmo ser repórter desta
casa?

Aquilo foi para mim simplesmente


incrível. Os políticos, que nos últimos sete anos havia ajudado-os na
conquista do tão cobiçado poder, vi-os todos, sem exceção, virarem-
me as costas com covardia e darem-me bananas em retribuição a
todo o esforço por mim empreendido. Cavando o fundo do poço em
busca da lama que desse para beber, vi meus sonhos constituírem
asas e as portas abrirem-se pelas mãos, não dos que servi, mas de
estranhos que também conheceram os preconceitos que me lançaram
agouros ao longo da vida.

_ É tudo o que eu mais quero, Tony!


Entregue-me esta oportunidade e eu a te devolverei em forma de
grandes reportagens. Sei que posso fazer, permita-me tentar.

E foi assim, mesmo sem nunca ter


freqüentado uma faculdade ou um curso técnico relâmpago que
fosse, que sai acompanhado de duas pessoas - um motorista e um
cinegrafista, em busca de um parapsicólogo que se propusesse a me
submeter a uma sessão de regressão à vidas passadas, uma sessão de
verdade, momento em que deveria me entregar ao poder e aos
mistérios da hipnose. Esta era a minha primeira e grande pauta, um
teste que iria decidir a minha existência como repórter vocacionado.
Graças ao Dr. José Ribamar Tourinho e
aos grandes profissionais Aureliano (motorista) e Mardone Valcácer
(cinegrafista dos melhores), obtive êxito em minha primeira e crua
experiência como repórter televisivo. Além de ser contratado pela
TV Antena 10 - afiliada da Rede Record no Piauí, ainda lucrei com a

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descoberta de que já havia sido, em vida anterior, um chileno
carvoeiro. Talvez isto explique minha experiência, bem sucedida,
com os padeiros da Paladar, que assavam broas e pães enquanto
dormia e sonhava suando em estar no próprio inferno.
Ainda hoje questiono-me a respeito
daquela reportagem. Indução ou paranormalidade, fez-me bem
continuar acreditando no que aconteceu, pois assim, passei a ver que
a presença de uma vida passada sinalizava para a existência de uma
vida futura. A visão do ciclo sem fim fez-me mais seguros os passos,
passei a ser bem mais diligente e interessado na vida.

04 - LOBO EM PELE
DE CORDEIRO

O jornalismo, minha grande paixão e por


intermédio do qual eu sempre acreditei ser possível transformar o
mundo e refazer vidas, dado aos interesses nem sempre éticos dos
proprietários das emissoras de televisão e de seus executivos
ambiciosos e de pouca sensibilidade social, passou a ser visto por
mim, no início com paixão, pouco tempo depois com preocupação e,
ao final, com um sentimento misto de amor e ódio, desejo e repúdio.
Da forma como me obrigavam a praticá-
lo, assistia ao jornalismo televisivo sendo transformado em
impiedoso e funcional instrumento de manutenção da indústria da
miséria no Piauí. Assim como uma máquina de fazer dinheiro fácil,
éramos pautados à serviço de autoridades corruptas e inescrupulosas
e obrigados a produzir e exibir estórias que ludibriassem a opinião
pública. Estava jogando um jogo perigoso, pois tinha que fazer aos
outros crer que os bons eram os maus e que, por sua vez, as grandes
traças que corroíam o patrimônio público piauiense eram os únicos
em que todos deveríamos confiar e esforçar-nos para mantê-los no
poder.

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_ Não que seja correto, ouvia-os dizer.
Mas é lucrativo e é assim que deve ser.

As coisas que fui obrigado a fazer e as


reportagens que produzi nesta época, construíram dentro de mim um
universo de angústia e de aflição, de vergonha e de alto repulsa,
tornando-me um escravo da própria covardia e um retirante em
busca da rótula que me levasse de volta ao Jornalismo que sempre
acreditei existir - o jornalismo capaz não de remover montanhas,
mas de mantê-las verdes, longe do poder de destruição dos homens e
de sua sede, que inesgota, de eliminá-las a fim de encurtar caminhos.
Há um caso, em específico, que espelha
com clareza esta condição de práticas pervertidas, expediente
habilmente utilizado pelos grandes executivos da tevê piauiense. Era
como uma forma encontrada por eles para a conquista do poder e
dos lucros por intermédio da imposição e da força. Agiam assim por
não acreditar que a violência acabava por voltar sempre para o
violento.
Já passavam-se alguns meses desde que
havia sido contratado como repórter do programa jornalístico
Câmera Verdade, que tinha como âncora o próprio jornalista Tony
Trindade. Dado ao meu grande empenho e maneira sempre
voluntariosa com que me conduzia no trabalho, tornei-me aos
poucos uma espécie de primeiro repórter da casa. A confiança
conquistada junto ao Tony contribuiu para que eu recebesse dos
proprietários da tevê um convite, o qual aceitei prontamente. A partir
dali, além de repórter, assumia também o Departamento de
Expansão, responsável em levar o sinal da tevê para o maior número
possível de municípios do interior do Piauí.
Porém, antes mesmo de assumir o novo
desafio, chamou-me o jornalista Tony Trindade em sua sala a fim de
encubir-me de mais uma daquelas missões pelas quais eu nutria
verdadeira aversão. Explicou-me ele que o prefeito do município de
Campo Maior, o médico Antonio Lustosa, recusava toda e qualquer
tentativa da direção da televisão para assinar o contrato de

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manutenção do sinal em sua cidade. Sem este contrato era
praticamente impossível a expansão do sinal da emissora até
determinado município, pois através dele a emissora usava a
estrutura de torre, imóvel e vigilância da prefeitura e, em
contrapartida, oferecia em sistema de consignação o receptor de
satélite e o transmissor de áudio e imagem. O contrato rezava ainda
que, além da estrutura física, a administração pública municipal
deveria assumir uma mensalidade a ser paga em favor da emissora
de tevê. Discordando do valor estipulado pelo jornalista, o prefeito
de Campo Maior rechaçava toda e qualquer possibilidade de
efetivação da parceria.
Após expor-me toda a situação, Tony
passou a confidenciar-me seu plano para remover, na base da
cobrice (termo bastante usual nas redações para identificar uma
situação de imoralidade), e minar a resistência do prefeito em aceitar
os valores impostos pelo jornalista. E, mais uma vez para minha
infelicidade, era exatamente ali que eu deveria entrar, ou melhor, ser
usado com o propósito escuso de conferir aos interesses dos
proprietários da emissora mais uma vitória, mesmo que sombria.
Entre risos e galhofas, Tony passou a
narrar suas idéias maquiavelicamente orquestradas e as quais
visavam vitimar não o prefeito Antonio Lustosa, como imaginava,
mas a mim, meus conceitos e meus sonhos de jornalista de visão
democrática e humanística. Além disso, seu plano que de nada tinha
de original, pois tratava-se de expediente usualmente utilizado nos
bastidores da imprensa televisiva piauiense, provocava outras
grandes incisões, fazendo sangrar a ética, o corpo de resistência à
ditadura das imposições que fazem inexistir as contra-
argumentações e, por fim, dilapidando o erário público do povo
campomaiorense sem a devida e legal autorização do seu gestor
municipal eleito - o prefeito.
O plano era simples. Eu deveria seguir
com minha equipe (motorista e cinegrafista) imediatamente para
aquele município e produzir vasto documentário sobre tudo o que
estivesse errado, sujo e deteriorado na cidade. O resultado do

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trabalho deveria ser surpreendente, chocar a opinião pública e criar
embaraços para o administrador. Foi assim que uma pequena área
suja, próxima ao mercado central, com a ajuda mágica da câmera,
alastrou-se para as demais ruas da cidade, revelando-se o município,
diante da reportagem forjada, em um lugar imundo e abandonado
pelo poder público municipal. Uma pequena área empoçada e cheia
de lama no Bairro Cariri tornou-se o maior esgoto à céu aberto do
Estado do Piauí e, algumas poucas rachaduras em paredes de prédios
públicos passaram a ameaçar o município inteiro de ruir.
Feito o trabalho, passaram-se poucos dias
e assisti, em cena que já me era familiar, o advogado do município
entrar na tevê trazendo em mãos o tal contrato de manutenção do
sinal rubricado pelo prefeito em suas páginas e assinado ao final.
Enquanto Tony comemorava mais uma do que ele considerava ser
"uma grande vitória", ruborizava-me de vergonha pois sabia que,
por minha conta e risco, acumulava ali nova derrota. Isto fazia de
mim um corrupto, um repórter desprezível e sem valor algum aos
olhos de Deus.
Espalhava espinhos e vendia a dor
embrulhada em papel de presente. Um lobo em pele de cordeiro.

05 - HÁ VIDA NOS LAJEIROS

Minha carreira de repórter na TV Antena


10 desenvolveu-se em cima de uma diversidade impressionante de
experiências.
Em muitas ocasiões, dado aos interpostos
de relaxamento dos interesses ambiciosos dos proprietários e da
própria direção, cujos momentos permitia-me traçar minhas próprias
pautas, dedicava-me à reportagens cujos temas eram eleitos por mim
próprio. Através delas, procurava exercer o verdadeiro jornalismo
que acreditava existir e ser capaz de colorir o cinzento cenário da
imensa legião de piauienses humildes e excluídos.

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Estes eram, para mim, momentos
extremamente aprazíveis, totalmente diferente dos muitos dias em
que chegava à redação e deparava-me com pautas preestabelecidas
pelo jornalista Tony Trindade ou por sua produção. Não eram raras
as vezes que o roteiro vinha seguido da orientação para que fulano
fosse condenado e sicrano inocentado, mesmo que estes tivessem de
exercer na reportagem papéis trocados. Pautas que figuravam como
verdadeiros insultos assacados contra a imagem irretocável da
verdade, e o que é mais lamentável, um expediente não prescrito do
cotidiano das redações televisivas do Piauí.
Minha inicialização no departamento de
Expansão de Sinal foi o que se pode considerar um empurrão no
universo funesto do tráfico de influência, da comercialização da
verdade e do enraizado sistema de se locupletar do dinheiro público
em troca de afagos no ego inflado dos prefeitos interioranos.
Ouvindo-me a narrativa é compreensivo
que o leitor faça o seguinte questionamento:

_ Mas por que diante de uma promoção


bastante cobiçada o protagonista não procurou agir com retidão
profissional, preferindo os atalhos aos caminhos éticos e tão
propagados na vasta literatura de Comunicação?

De fato, o cotidiano das redações de TV e


das deliberações da diretoria, visto pela ótica das edições de
Jornalismo, é algo extasiante e harmônico sob o ponto de vista da
ética e da moralidade. Mas, como a própria história ensina, há uma
ponte de considerável comprimento entre o que se escreve sobre o
tema e o que se vive na prática.
Recebi do Tony a determinação para que
viajasse imediatamente para a região sul do Piauí, a fim de produzir
o maior número de reportagens e assinasse o maior número de
contratos possíveis para a expansão do sinal da TV Antena 10, o que
se dava via satélite. Ouvi do diretor que minha permanência no
percurso não deveria exceder trinta dias, as fitas com as imagens

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brutas e as anotações com os textos e orientações para edição
deveriam seguir de ônibus para a sede da emissora, meio de
transporte que também seria utilizado para a remessa, por parte da
tevê, de novas fitas Betacan para uso da equipe.
Ferindo o princípio básico para que
houvesse isenção em nosso trabalho e demonstrando preocupação
alguma com o bem estar da equipe, Tony colocava-nos à disposição,
para realizar o longo trabalho, apenas um carro da TV com o tanque
abastecido, os equipamentos de cinegrafia e nenhum centavo sequer.
Impressionado? Eu também fiquei nas
primeiras vezes que incursionei pelo interior. Indagado sobre como
iria nos manter durante os dias em que estivéssemos viajando, ouvi
de Tony que quando o carro estivesse sinalizando a reserva de
combustível ou quando estivéssemos próximos aos horários de
refeição, deveríamos procurar na cidade primeiro o prefeito, este não
estando, o vice e, em caso de novo fracasso, a Câmara Municipal, o
padre da cidade ou, em última instância, o presidente do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais. Alguém haveria de se interessar por uma
matéria televisiva de autopromoção política ou funcional, momento
em que buscaríamos a paga em forma de hospedagem, combustível
e um "extra" para prosseguir viagem.
Seguindo fielmente as orientações da
direção executiva da tevê, nunca me esquecerei o dia em que eu,
Mardone Valcásser (cinegrafista) e Aureliano (motorista)
terminamos o dia, em um pequeno município próximo a Cristino
Castro. Na pequena cidadela, com ares de cidade fantasma, não
encontramos o prefeito, nem o vice, nem vereadores e tão pouco o
padre, que só celebrava na pequena capela local de tempos em
tempos. De pé diante da humilde residência do presidente do
Sindicato dos Trabalhadores, com suas portas e janelas cerradas em
anúncio a sua ausência, miramos um pé de goiabeira que exibia
algumas poucas goiabas, ainda pequenas e inteiramente verdes. Não
houve o que pensar. Assistimos ao pôr do sol sentados nos galhos da
arvorizinha, enganando o estômago com as frutas ainda em
formação.

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O sistema de trabalho e a falta de
condições para exercermos com dignidade nossa profissão de
repórter não deixavam margens para atributos tão necessários como
a imparcialidade, a honestidade e a construção de conceitos livres de
pressões externas. O próprio meio e a forma com que é regido
obrigava-nos a sermos uma espécie de prostitutos da Comunicação,
ou seja, recebendo migalhas em troca de proporcionar às autoridades
alguns poucos segundos de prazer em frente ao aparelho de tevê. O
mais grave neste comércio é o não uso do que poderíamos chamar
de "camisinha", que além de tornar a prostituição da Comunicação
em um ato de risco, ainda faz gerar filhos de consciências turvas,
neste caso, uma opinião pública com conceitos distorcidos e
distantes da verdade.
Mas ainda assim, mesmo envolvido em
tantas negociações, em sua grande maioria predominadas por
interesses reprováveis e nada éticos, haviam aqueles já citados
momentos onde se era possível exercitar o verdadeiro e
transformador jornalismo. Não há como se esquecer de reportagens
que marcaram a época como a estrondosa beleza dos poços jorrantes
de Cristino Castro e o preocupante desperdício de tão cara riqueza
ambiental, as péssimas condições das rodovias piauienses, as
histórias dramáticas narradas por caminhoneiros ao longo delas e o
inerente prejuízo causado pelo seu estado de sucateamento à
escoação da produção do grande e último celeiro agrícola do país -
os cerrados piauienses. Na grande região do município histórico de
Oeiras, causou enorme discussão nos meios psiquiátricos do
Nordeste a série de reportagens de doentes mentais que viviam
mantidos em cárceres privados pelas próprias famílias, imagens que
chocaram a opinião pública e provocaram o tratamento e a parcial
recuperação de muitos deles.
Durante a seca avassaladora de 1997,
deslocado para a microregião de Pio IX (fronteira com o Estado de
Pernambuco) consegui emplacar no Jornal da Record, apresentado
pelo jornalista Boris Casoy, e no Cidade Alerta, à época capitaneado
pelo jornalista ........................, quatro reportagens sobre os efeitos da

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seca e a fome epidêmica que dizimava, a olhos nus, famílias e
rebanhos - um verdadeiro holocausto que fez verter lágrimas de
brasileiros dos mais distantes rincões. Assim como um milagre de
Deus, eu e o Piauí assistimos emocionados a chegada de dezenas de
carretas carregadas de alimentos não perecíveis que ajudaram a
aplacar a fome das milhares de famílias retratadas por nós naquele
triste episódio da seca de 97.
Outros grandes momentos ficaram
registrados, como o circuito das opalas de Pedro II, trechos de matas
virgens ainda inexplorados, a nascente do Rio Parnaíba, as riquezas
escondidas no único Delta das Américas e tantas outras que
resistiram ao tempo e que mantêm-se vivas na memória dos
piauienses.
Durante toda esta trajetória, caminhando
entre espinhos e verdes pastagens, ora atolando na lama dos
interesses e em outras ocasiões surfando nas ondas límpidas de
grandes e nobres motivações, imergi em reflexões que me levaram a
crer que nem tudo estava perdido, que algo poderia ser feito, que
mesmo no meio de todo aquele lajeiro ainda, em forma de
resistência, encontrávamos vidas a existir.

06 – TROCANDO DE BALCÃO
MAS NÃO DE VENDEDOR

A última viagem das muitas que fiz em


busca da assinatura de prefeitos para a expansão do sinal da TV
Antena 10, deu-se na segunda quinzena do mês de agosto de 1997.
Depois de quase trinta dias viajando pela região norte do Piauí,
oportunidade em que produzimos grandes reportagens tendo como
cenário os municípios de Caraúbas, Caxingó, Murici dos Portelas,
Esperantina e tantos outros, retornei a capital do estado, Teresina,
exatamente na noite de 19 de setembro daquele ano.

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Chegamos eu e a equipe na sede da tevê
por volta das 21 horas, descarregamos os equipamentos, fizemos o
registro de nosso retorno e partimos, cada qual, para seu destino.
Antes de retornar ao meu apartamento parei em um bar no centro da
cidade a fim de tomar uma dose de whisky, buscando relaxar e
meditar sobre as adversidades e os fascínios experimentados ao
longo daquela estressante viagem. Ainda estava na primeira dose,
perdido nos meus pensamentos, quando ouvi a porta de um carro se
bater por detrás de mim e uma voz masculina dirigir-se a algumas
pessoas que estavam sentadas na mesa anterior a minha.

_ Acabei de saber por um taxista que


assassinaram o Donizetti Adalto. Disse que foi próximo a ponte da
universidade, na Avenida Marechal Castelo Branco, informou o
desconhecido.
Aquela notícia deixou-me em estado de
choque, perplexo, irrequieto. Donizetti Adalto, um paranaense que
pela segunda vez residia no Piauí, era o jornalista de maior audiência
no estado, âncora do principal jornalístico da TV Meio Norte,
afiliada do SBT. Adepto do jornalismo investigativo, "D.A." - como
era carinhosamente chamado pelos fãs - era o único em nossa área
com coragem e know-how para denunciar grandes esquemas de
corrupção, todos envolvendo exponenciais autoridades piauienses.
Com ele ninguém saia impune, não importa se o escândalo se dava
no Executivo, no Legislativo, no Judiciário ou no meio do seleto
clube de ricos empresários, incluindo ai os proprietários de
badalados meios de comunicação. Definitivamente, a Imprensa no
Piauí terá sempre como divisor de águas o próprio Donizetti Adalto
e sua sombra, o jornalista com quem dividia a apresentação do
programa MN 40 Graus - o também paranaense Carlos Moraes.
Dividido entre a emoção que sempre se
renova em nós repórteres quando diante de um grande furo
jornalístico e a dor por ver partir, de forma tão trágica, um jornalista
a quem verdadeiramente idolatrava por sua ousadia, inteligência e

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coragem, segui em direção a sede da TV Antena 10, armei-me com a
primeira câmera que vi e parti rumo ao local do assassinato.
O local eleito pelos assassinos, o trecho
mais escuro da avenida, revelava a princípio que o mesmo havia
sido cuidadosamente estudado antes da fatídica ação por seus
algozes. O carro em que estava o jornalista, que vinha de um
comício onde o mesmo garimpava votos para sua candidatura a
deputado federal, encontrava-se intacto, com suas duas portas
abertas, faróis acesos, vidros estilhaçados pelas balas e, sobre o
banco do motorista (ele próprio) seu celular pessoal, dando a
entender que antes de sucumbir ainda tentara, em vão, uma ligação
de emergência. O cenário, de forte apelo emocional, tornava-se
ainda mais turvo diante da poça de sangue ainda quente que se
formara ao lado esquerdo do veículo. O corpo do jornalista havia
sido transportado por populares até o Hospital Getúlio Vargas
poucos instantes antes de minha chegada, a qual se deu antes mesmo
da perícia e das autoridades policiais que demoraram a aparecer.
A continuidade da cobertura que passei a
conduzir sobre o enigmático assassinato do jornalista Donizetti
Adalto causou grandes transformações, não só no cenário da política
e da imprensa estadual, como também em mim. Embora gradual e a
princípio imperceptível, passei a analisar a Comunicação, minha
postura e potencialidades e a própria forma de conduzir meu
trabalho de maneira diferente, nova, investigativa. Hoje, pouco mais
de cinco anos depois, tornou-se um dogma o fato de que a morte de
Donizetti provocou em mim um novo repórter, destemido, ousado e
determinado em continuar aquele grande trabalho interrompido pela
insensatez e inescrúpulo de algumas das autoridades piauienses, em
sua grande maioria ainda presente e atuando na vida pública do
estado.
Durante todo o processo de investigação
acerca do assassinato do jornalista, por diversas vezes fui
desencorajado pela direção da TV Antena 10 em contribuir para
elucidação do crime. Assim como no tempo do impiedoso e
limitador AI-5, sentíamos um clima de reprovação à publicação de

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todo e qualquer material que não se restringisse aos questionáveis
informes oficiais, sempre divulgados não pela Polícia Civil
conforme de competência, mas pelo então superintendente da
Polícia Federal - Del. Robert Rios Magalhães, que passou a se
colocar como colaborador das investigações em torno do caso e o
único credenciado a tornar público, mesmo que a conta-gotas,
quaisquer novas informações sobre a morte do jornalista.
Diante de tantos impecílios e de um
sentimento de desconfiança generalizado quanto a veracidade do
teor de tudo o que era investigado e da forma como o era,
sentimento do qual ainda hoje compartilha considerável parcela dos
formadores da opinião pública piauiense, meu interesse pelo caso,
assim como pela vida do apresentador tombado ao toque de balas,
foi aumentando e aguçando cada vez mais meu polêmico e
incontrolável senso de curiosidade.
Pouco tempo se passou a partir daquele
assassinato e uma nova e rara oportunidade bateu-me à porta
sinalizando um novo horizonte de crescimento profissional. Como
que reconhecendo os avanços que conquistei na interiorização do
sinal da TV Antena 10, o publicitário Sílvio Leite, na época
superintendente do Grupo Meio Norte, oficializou-me um convite
considerado por mim, naquele momento, como irrecusável, para que
eu passasse a integrar a equipe de jornalismo da afiliada do SBT no
Piauí.
O convite do Sílvio chegou num
momento em que eu estava tendo alguns desentendimentos com
setores da direção da tevê do empresário José Elias Tajra, e este fato,
associado ao excelente salário que na época me foi oferecido (exatos
5 mil reais por mês mais comissões e concessão de carro de luxo de
prestações a serem amortizadas por mim), e ainda a possibilidade de
ingressar na mesma emissora em que se celebrizou o jornalista
Donizetti Adalto e desta forma poder investigar mais para
aprofundar meus esforços em elucidar aquele enigmático
assassinato, todos estes fatores reunidos fizeram com que eu

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aceitasse a proposta do Grupo Meio Norte, decisão acertada e da
qual não resultou em nenhum arrependimento.
Exauridas as possibilidade de aprendizado
na TV Antena 10, emissora que teve papel relevante na formação
dos princípios e ideais defendidos hoje por mim com veneração e
veemência, entendi que era chegada a hora de alçar novos vôos,
substituindo os balcões mas mantendo o vendedor. Do grupo
proprietário das Lojas Jet passei a encorporar os métodos e a
tecnologia de ponta do complexo empresarial que além da TV Meio
Norte, também administrava a rede de Lojas MN Stores e o
meteórico projeto milionário do Poupa Ganha - uma espécie de
bingo eletrônico que expandiu-se país a fora.
Foi trocando de balcão que completei
meu ciclo de aprendizagem nas redações televisivas do Piauí.

07 - DE CORRUPTO A CAÇADOR
DA PRÓPRIA ESPÉCIE

Pouco mais de um ano, em meados de


1998, fui chamado à sala do advogado Ademar Bastos - novo
superintendente do Grupo Meio Norte. Ele, um reconhecido
profissional na área, assumia o cargo em substituição ao publicitário
Sílvio Leite - autor do convite formulado a mim para ingressar na
cobiçada afiliada do SBT. Funcionário há muitos anos do Grupo
Meio Norte, e tido como um dos homens de confiança do mega
empresário Paulo Delfino da Fonseca Guimarães, Dr. Ademar era
inimigo declarado do agora ex-superintendente Sílvio Leite, que
passou a assumir a gerência nacional do bingo eletrônico Poupa
Ganha .
Sentado confortavelmente diante de sua
mesa imponente, onde se avistava enormes pilhas de livros de temas
variados, ouvi dele, sem arrodeios ou palavras de conforto, o
comunicado de minha demissão sumária da TV Meio Norte.

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Questionado por mim sobre as razões que levavam a emissora a
antecipar meu contrato preestabelecido de dois anos, Dr. Ademar
restringiu-se a uma única e seca frase:

_ "Enxugamento da folha de pagamento,


corte de despesas que se faz necessário neste momento", disse ele.

Foi impossível não ler em seus olhos e


ver em seus gestos que ele mentia, ocultando de mim uma história a
qual eu só viria a entender dois ou três anos mais tarde.
Ao lado do repórter Wellington Raulino
(o "Xerife"), do irreverente apresentador policial e mais tarde
deputado estadual eleito - Silas Freire (âncora do polêmico
programa "Ronda Policial") e de uma dezena de outros profissionais
lotados na tevê, perdemos nossos empregos vitimados por um
capricho do novo superintendente o qual creditamos, mesmo que de
forma prognostica, como sendo uma provocação do mesmo ao seu
antepor, Sílvio Leite, com quem travava, por conta de
desentendimentos no divórcio do publicitário e que confiou no Dr.
Ademar a defesa na querela, uma guerra silenciosa nos bastidores do
Grupo Empresarial que os unia.
Nossas demissões, embora associadas à
justificativas nada convincentes, tinham em comum o fato de todos
nós, os demitidos, nutrirmos pelo publicitário Sílvio Leite apurado
apreço e destacada consideração.
Diante deste arranjo imprevisível do
destino, o qual me imprensou desprevenido e, como se diz no
popular - flagrou-me de calças curtas, resolvi agir conforme o
conselho dos velhos ursos e hibernar.
Logo no princípio, como forma de refletir,
achei conveniente passar alguns meses em uma cidadezinha do
interior, a fim de descansar de longa e atribulada jornada, durante a
qual sempre tive que abrir mão de minhas férias como forma de
agradar meus superiores e não perder o emprego.

19
Com muitos amigos no município de
Esperantina, a quem a Natureza generosamente privilegiou com um
cenário natural enebriante e que sempre me causou grande fascínio,
imigrei para lá buscando harmonizar os conflitos internos que me
inquietavam o espírito. Distante das pressões do trabalho e da
estressante rotina das redações, entreguei-me à busca de aferir lucros
sobre a reflexão do que havia feito de minha vida até ali e quais os
melhores rumos a dar-lhe a partir de então.
Foi neste misto de auto-avaliação,
acumulado com um tempo farto a ser preenchido por coisas novas,
que passei a desnudar um mundo novo e com possibilidades reais e
palpáveis de refazer, de forma sábia e oportuna, o caminho de volta,
corrigindo então os erros cuja vida generosamente me permitiu
catalogar.
Debruçado sobre livros e lembranças, dei
início a uma busca por intermédio da vasta história da humanidade,
procurando nos passos dos apóstolos e profetas, nos legados de
grandes pensadores, na metodologia desenvolvida por lendários
revolucionários e nas palavras e ensinamentos do próprio Cristo,
uma luz que pudesse me iluminar o grande projeto que passei a
construir.
As imagens e experiências registradas em
minha memória passaram a funcionar em mim como uma
convocação para uma ação ostensiva de transformação social a qual,
mesmo que aparentemente complexa e indecifrável, sabia eu possuir
a vontade e a coragem determinantes para uma grande vitória neste
sentido. As respostas aos por quês daquela guerra que eu estava
prestes a deflagrar, estavam ali, no meu passado, nas experiências ao
longo dele acumuladas e no exemplo de vida daqueles gigantes
protagonistas da História Mundial.
Assim como um predestinado, alguém
cuja a vida parece exigir além do que nos é cobrado comumente, me
permiti agir embalado pelo que entendia ser o certo, o necessário, o
ético. Passei a assistir aos valores humanos da riqueza, do poder e
das posições sociais de destaque virarem cinzas aos meus olhos. A

20
nova filosofia da qual passei a ser adepto, auxiliou-me a substituir os
antigos valores cultuados por outros que mantiveram-se durante
anos ocultos em extremos opostos.
Havia na vida mais do que os
convencionais objetivos humanos. Os livros e a própria razão
fizeram-me crer que o caminho da verdadeira e duradoura
felicidade, fruto da realização plena, reside não nos endereços
outrora buscado, mas na solidariedade, na aceitação dos sonhos
coletivos como sendo os seus sonhos, no prazer inigualável que gera
o gesto de servir o próximo independente da aferição dos chamados
lucros da sociedade capitalista.
Foi neste instante que o luxo deu lugar ao
simples, que o prazer que sentia quando na companhia de
exponenciais e notórias autoridades do Piauí transferiu-se para a
convivência inestimável que passei a ter entre as legiões de humildes
e miseráveis que resistem às intempéries de uma matilha de
escravagistas egoístas e ignóbeis.
Se for verídica a tese defendida por
muitos estudiosos de que todos, em vida, acabam por deparar-se
com uma espécie de Grande Revelação, aquela através da qual
pode-se ler os verdadeiros motivos pelo qual nos foi dado a graça de
viver, creio eu que deparei-me com minha tábua profética, a qual
entendo como sendo um sinal do próprio Deus para que persista
ritmado pelos ditames de minha consciência, procurando a cada dia
tornar-me o mais humilde e prestativo dos servos de meu próximo.
Confesso que, em não sendo verdadeira a
tese filosófica a qual se fez referência no parágrafo anterior, ainda
assim persisto em defender que as novas experiências que tenho
vivido em Esperantina constituem-se num seguro caminho para a
obtenção da verdadeira felicidade. Mesmo diante das torturas e
humilhações das quais tenho sido covarde e insistentemente vítima,
é lutando contra a corrupção dos poderosos, despertando o povo
para a grandeza dos milagres obrados pela solidariedade e semeando
a verdade como único agente capaz de empreender as mudanças por

21
que clama nosso povo, que iremos recolocar a grande locomotiva
batizada de Brasil em seus trilhos de origem.
Não há como prosperarem os tão
propagados programas sociais e políticas governamentais sem antes
exigirmos de nossas autoridades que firmem compromissos com
uma conduta mais ética, honesta e de rigorosa observância às Leis.
O primeiro passo capaz de levar-nos a este entendimento é
reconhecer a magia real da grande roda vir a girar dentro da
pequena.
Devemos ser resultado das aspirações da
maioria e nunca, como agora, quando se percebe uma minoria
decidindo e projetando o destino do grande povo.
Um estilo de vida, uma opção pertinente.
O corrupto de ontem transformou suas ações numa faculdade que o
formou num combatente da própria espécie.

08 - A TEMPESTADE SE
ALASTRA PELO PIAUÍ

Com algum dinheiro no bolso, sobra da


rescisão de contrato com a TV Meio Norte, fixei-me em Esperantina,
sendo hóspede por alguns meses na chácara de um amigo.
Valmor Aguiar, que era bastante
conhecido, e tido como um dos moradores mais folclóricos do
cotidiano local, mantinha uma casa à beira da rodovia que dava
acesso à capital do estado. Localizada na margem direita do Rio
Longá, a chácara, embora próxima de Esperantina, pertencia ao
perímetro rural do vizinho município de Batalha.
Bastante agradável e, dado a localização,
um lugar de forte apelo ecológico, a chácara do Valmor faz-nos
lembrar uma espécie de sede de Hobbin Wood e seu bando meio à
Floresta de Sherwood. A casa, de simples arquitetura, invoca a
imponência de um velho casarão de fazenda, dividida em seu

22
interior por vários cômodos que foram transformados por meu
amigo em muitos quartos. Ornados com cama, travesseiros, lençóis e
um ventilador sobre um tamborete de assento de couro de bode, os
quartos representavam toda a fonte de renda da Chácara do Valmor.
Revestido de grande originalidade, o motel rural de meu anfitrião
serviu-me de residência e ensinou-me grandes lições, todas voltadas
para o exercício fascinante do servir com humildade.
E foi neste cenário, onde os ares
bucólicos se misturavam com os hábitos da vida mundana urbana, e
vivendo muitas situações atípicas dado a área de negócio do meu
hospedeiro anfitrião, que dei início à minha incursão pelas periferias
e bolsões de miséria do município. Andei por muitas ruas, passei a
freqüentar um sem fim de bares e pequenas mercearias, locais onde
semeei grandes amizades que expandiram-se e que se mantém até os
dias de hoje.
Aos poucos, envolvido com os muitos
dramas os quais passei a conhecer e deles participar, fui desfazendo-
me de todas as minhas economias e vendo-as serem transformadas
em caixas de medicamentos, alimentos dos mais variados, ajudas
para compra de passagens e tantos outros pequenos infortúnios que
com alegria e amor pudemos resolver.
Diante daqueles gestos filantrópicos que
passei a empreender voluntariosa e desprovido de interesses, foi-me
possível identificar o momento da inicialização, do meu primeiro
encontro com a verdadeira essência da vida - a felicidade plena.
Sentia-me bem, gozando de um equilíbrio
de emoções jamais experimentado por mim. Algo estava
acontecendo de transformador. Era como se só agora, seis anos
depois de ter deixado a batina franciscana, o meu espírito e coração
tivessem, finalmente, entrado em comunhão com as estigmas e as
pegadas de São Francisco - um maior de rua que encantou pela
benevolência, humildade e abnegação.
Seguia meus dias servindo a todos
quantos me procuravam, tendo sempre como companhia uma visão
crítica em busca do entendimento das causas para tamanha miséria

23
daquele povo. Foi ai que tive a idéia de comprar um gravador e
começar a gravar depoimentos de várias pessoas, cada uma com seu
drama, sua história e suas decepções. E todo aquele material
coletado foi sendo degravado e transformado, ao longo das
madrugadas, em artigos, redações e relatos escritos de histórias reais
da vida privada.
Admirado com a obstinação de nossos
ideais, e a velocidade e forma com que nossa mensagem se alastrava
e era recebida pelos moradores de Esperantina e região, um
empresário do ramo gráfico de Teresina (capital do Piauí), Francisco
Ribeiro da Rocha - conhecido por "Chico Doido" - dado ao seu
destempero e histórico de violência, patrocinou de forma generosa a
impressão periódica das reportagens que passei a produzir.
Nascia naquele instante, no dia 12 de
dezembro de 1999, o primeiro número de uma série polêmica do
Jornal O Regional - publicação impressa quinzenal por intermédio
da qual passei a registrar e divulgar as injustiças e infortúnios de
uma parte do povo piauiense.
A retratação, com fidelidade, da face
desfigurada de uma multidão sentenciada a morrer nos braços da
miséria, e a publicação do resultado de inúmeras reportagens
documentadas acerca da corrupção epidêmica enraizada
sobremaneira nos poderes Executivo e Legislativo municipais,
transformou o quinzenal de poucas páginas em objeto de
comentários em todo o estado e seu conteúdo motivo de cobiça de
jornalistas da grande imprensa. Despertava o amor entre alguns e o
ódio entre outros, mas não havia o formador de opinião que se
mantivesse indiferente diante da polêmica que passamos a causar
com ininterrupta freqüência. Vendíamos em média, ao custo de
1real, 1.500 exemplares por edição. Uma marca considerável em um
município de 36 mil habitantes e com uma população pouco adepta
do hábito de ler.
O jornal fez história, mas as
conseqüências deste trabalho não demorariam a acontecer,
transformando-se em graves ameaças à continuidade de nossas ações

24
de inibição ao processo desenfreado de corrupção do qual éramos
vítimas. Acuados pelas denúncias, agentes públicos envolvidos nos
muitos esquemas de corrupção retratados nas páginas de O
Regional, passaram a mostrar suas garras e a responder com uma
série interminável de intensas perseguições e tentativas de
assassinato.
A forte tempestade que se formou sobre o
céu de Esperantina rompeu as fronteiras do município e alastrou-se
por todo o Piauí. Assim como algo embrionário, o Jornal O
Regional, mais tarde rebatizado de Jornal A Chibata (em alusão ao
nome da coluna que assinava na primeira versão do periódico), foi
apenas o início de uma envolvente revolução que atravessa os dias
atuais - a Revolução da Chibata, um marco no combate à corrupção
pública no nordeste brasileiro.

09 – É MAIS FÁCIL VENDER


UMA CASA EM CHAMAS
DO QUE JORNAIS NO BRASIL

O ano de 2000, o último do milênio,


transcorreu agitado. Figurou como importante período de encubação
da revolução de inversão de valores morais e sociais que já
estávamos, mesmo sem percebê-la explicitamente, empreendendo-a.
Durante todo o primeiro semestre daquele
ano, tudo orquestrou-se de forma a contribuir para o sucesso dos
objetivos que nutria. Havia-me disposição de sobra, a qual movia-
me a compilar denúncias, arriscando não raras vezes a própria vida a
fim de documentá-las. Assim como algo profético, era-me evidente a
avalanche de processos que teria de enfrentar diante daquela guerra
que decidi deflagrar. Frente a frente com as informações, e inspirado
por inigualável paixão, punha-me a redigir utilizando-me de
pequenos blocos de papeis que colecionava das sobras da Pontual
Artes Gráficas. As colunas do periódico iam nascendo uma a uma,

25
respondendo a necessidade das matérias que garimpava naquele, até
então por mim inexplorado, hipnotizante universo de dramas e
carências humanas.
Já no segundo semestre, após seis meses
de circulação do Jornal O Regional, as nuvens de dificuldades que
se formaram tornaram-se, como que num rompante, bem mais
densas e tempestuosas que o de costume. Aliado aos esforços cada
vez maiores das autoridades corruptas locais, que passaram a servir
de alvo para toda a indignação que exprimia, minhas parcas
condições financeiras, aos poucos, se exauriam ao ponto de
encontrar dificuldades até mesmo para alimentar-me três vezes ao
dia. O destino, finalmente, fez-me conhecer a fome – um dos temas
preferenciais eleito por escritores e afins do mundo inteiro.
Conhecedor de sua existência no cotidiano de penúria dos
miseráveis piauienses mas, de certa forma, indiferente a ela por
desconhecer sua dor e conseqüências colaterais, amá-la fortaleceu-
me o espírito ao ponto de constitui-la minha irmã – algo ou alguém
de quem extraí lições das mais prósperas e preciosas. A fome, dado o
momento em que fomos apresentados um ao outro, foi como uma
química que me fez mais íntimo da causa, convivente do mesmo
mundo da legião de excluídos da qual passei a ser parte inseparável.
O apadrinhamento do proprietário da
gráfica começou a ruir com os adventos das perseguições. Como
reação ao processo de desmanche de seu asqueroso esquema de
corrupção, o deputado estadual Themístocles de Sampaio Pereira
Filho (PMDB), que acumulava o status quo de secretário de Justiça
e Cidadania do Piauí – homem forte no então Governo do Estado e
proprietário do maior curral eleitoral de Esperantina, ao saber do
patrocínio vital do empresário Chico Doido à nossa causa,
pressionou o gráfico a virar-me as costas sob pena de ter seus
empenhos (documentos de crédito junto ao Governo) emperrados na
Secretaria Estadual de Fazenda. Responsável, na época, pela
confecção de grande parcela dos impressos do Departamento
Estadual de Trânsito – DETRAN/PI, transação comercial que
movimentava grandes valores, Chico Doido foi obrigado a optar

26
entre continuar aferindo lucros junto ao governo Mão Santa ou
seguir onerando-se com a impressão daquele irreverente tablóide
interiorano, redigido por um repórter maluco, que acreditava ser
possível mudar o país por intermédio da ética, da solidariedade e da
união de um sem fim de maltrapilhos e excluídos como ele.
A situação tornou-se grave sob o ponto de
vista econômico. Mesmo vendendo muitos exemplares e
presenteando outros tantos, o apurado era insuficiente para cobrir as
despesas de confecção, diagramação e impressão dos mesmos. Os
anunciantes há muito já haviam deixado de figurar como tripulantes
de nossa remendada navegação. Ameaçados de terem suas
contabilidades e papeis devassados pela fiscalização dos
fazendários, fato tantas vezes bradado pelo próprio deputado nos
microfones das emissoras de rádio locais, e temendo a efetivação
das represálias, comerciantes e profissionais autônomos de
Esperantina passaram a obedecer à lei do silêncio e da indiferença
ao nosso trabalho, expediente este bastante utilizado no Nordeste
quando o assunto é expulsar um forasteiro disposto a contrariar os
interesses de coronéis da atualidade.
Escritor e paranormal brasileiro, o
mineiro Chico Xavier psicografou certa vez que somente aquele que
se dispõe a fazer as coisas pequeninas, virá a saber e a poder
realizar grandes coisas. Mesmo atolado em dívidas e estando o
trabalho agonizante por falta de recursos, enfrentei a situação com as
armas que dispunha: determinação e coragem para prosseguir.
Precisava vender mais jornais, buscar anunciantes imunes às
influências do deputado estadual Themístocles Filho e criar novas
situações para a captação de recursos que me permitissem vencer a
crise impiedosa daquele fim de milênio.
Enchia minha mochila de jornais e batia
de porta em porta, oferecendo-os aos moradores. Em muitas casas
era recebido com festa, já em outras era humilhado e enxotado. Os
muitos admiradores revelavam que o caminho era aquele, que
deveria persistir. Já as humilhações, que em outros momentos
teriam-me feito retroceder, passaram a servir de fomento às minhas

27
esperanças, pois mesmo saqueados em seu patrimônio e direitos
mais elementares, aquelas pessoas mantinham-se cegas e
subservientes aos seus algozes. A cada porta na cara, era mais nítida
a necessidade de alguém em se predispor a acordá-los daquele sono
profundo e causador das misérias brasileiras. Residiam naquelas
casas os eleitores do Brasil desigual.
O cansaço e as bolhas nos pés foram
insuficientes. Era preciso mais, muito mais. Fiz algumas alterações
no periódico, a fim de torná-lo mais atraente e vendável. Foi em vão.
Objeto de preferência dos leitores, A Chibata – coluna que eu
mesmo assinava e onde expunha as imoralidades administrativas dos
nossos governantes, registros em forma de notas enxutas e bem
humoradas, assumiu a logomarca do impresso em substituição ao
antigo nome – O Regional. A mudança aqueceu as vendas, mas não
alcançou o montante necessário para custear sua impressão gráfica.
Obrigado a reduzir despesas, o Jornal O Regional, de circulação
quinzenal, deu lugar ao Jornal A Chibata, agora nas bancas apenas
de mês em mês. Com o agravo das finanças, chegamos a amargar
períodos de até dois meses sem poder fazê-lo chegar as mãos de
nossos leitores. Era o início de seu declínio, o que culminou alguns
meses depois em sua fatídica extinção.
Radialista a muitos anos em
Esperantina, João Batista Alves – o J. B. Alves, apresentava-se como
proprietário da Rádio Comunitária Retiro FM. Figurando como
laranja do deputado estadual Ismar Marques e do vereador
esperantinense Jânio Aguiar, ambos à época afiliados ao PFL, J.B.
esforçava-se para que eu aceitasse um convite para conduzir um
programa de variedades em sua emissora. A idéia, que me atraia
dado a sua essência e meu histórico de rádio, era veementemente
rechaçada por mim por conta dos métodos pouco éticos utilizados
pelo radialista em sua missão de comunicar. Fazia da emissora um
instrumento de lavagem cerebral dos ouvintes como forma de
garantir a hegemonia dos políticos desonestos pelos quais era
apadrinhado.

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Depois de cerca de um ano de renitente
negativa, e disposto a tudo para que meu grande projeto de
transformação social lograsse êxito, resolvi aceitar o convite do
radialista e passei a integrar, mesmo a contra gosto, a grade de
programação daquela emissora político-partidária. Era outubro de
2000, ano da crise. Sem saber ao certo o que iria dizer ou tocar,
entrava no ar o programa de radiodifusão Chibata Show – uma
espécie de talk show matinal que acabaria por despertar a ira de
prefeitos, secretários de estado, governador e da polícia de
inteligência do próprio país, dentre tantos outros exponentes do
poder institucional brasileiro.
Foram sete dias que se arrastaram com o
peso de séculos. Obras literárias e estudos analíticos poderiam ser,
facilmente, inspirados por aquela semana de inovações.
Criou-se um programa diferenciado, um
misto de denúncias, humor e situações virtuais. O som de um
helicóptero, extraído do álbum The Wall (Pink Floyd) abria e
encerrava o polêmico programa. Apelidado de chibacóptero,
derivado do tema do programa – uma chibata, o veículo imaginário
era usado em verdadeiras caçadas aos corruptos da cidade. Assim
como numa perseguição cinematográfica ao gângster do romance, o
chibacóptero ainda contava com o apoio de unidades terrestres
batizadas de chibamóveis. Utilizando dos sons de carros policiais
captados a partir de filmes americanos do gênero, os chibamóveis
seguiam por terra em reforço ao cerco popular aos transgressores
dos direitos dos cidadãos esperantinenses. Localizados e presos em
nosso imaginário radiofônico, após ouvirem a denúncia e a
exposição das provas cabais, eram eles, os corruptos de Esperantina,
submetidos a uma lição de moral e penalizados com uma surra de
chibatadas também virtuais. Uma vinheta foi especialmente criada
para esta situação. Era, sem dúvida, o momento mais esperado do
programa, criação que fascinava e levava o grande público ouvinte a
gargalhadas intermináveis. O som de alguém chorando e gritando de
dor, associado a pessoa de uma autoridade desonesta e de nosso
cotidiano, levou o povo a sorrir das próprias misérias, transformando

29
o fardo pessoal e coletivo em algo mais leve e cômodo de se
carregar. Esperança a muito perdida, o Chibata Show devolveu
aquele povo a auto estima e o direito de voltar a sonhar.
Quando cheguei a emissora para levar ao
ar a oitava edição daquele matinal, encontrei suas portas cerradas.
Ouvi de J.B. que por motivos políticos o meu programa havia sido
suspenso por tempo indeterminado. Pedi acesso ao microfone para
despedir-me dos meus ouvintes, ou mesmo justificar. Fui
violentamente impedido. No mesmo dia as ruas estavam cheia:
caciques políticos locais haviam se consorciado e pago por aquela
deliberação a quantia de dez mil reais.
Peguei o chibacóptero e fui-me embora,
desvalido e desnorteado que fiquei.

10 – UMA JUMENTA
A PESO DE OURO

Existia no município de Esperantina cinco


emissoras de rádio, sendo quatro comunitárias e uma, a pioneira, de
concessão comercial. Embora pertencente a grupos distintos, todas
possuíam um fator em comum: eram legítimas representantes de
grupos político-partidários e mantidas, sem exceção, com o nítido
objetivo de aferir lucros eleitorais.
Assim que o programa Chibata Show foi
retirado do ar, por força e graça da censura dos coronéis locais, vi
fortalecer-se a tese de que vivemos em uma nação que ainda respira,
tão somente, a promessa de um estado democrático. Sentia-me
ferido e violentado, além de preocupar-me o fato de não ter tido a
oportunidade de despedir-me de meus ouvintes, explicando-lhes as
verdadeiras razões da agressão da qual havíamos sido vítimas.
Recebi aquela deliberação como uma mutilação aos meus direitos de
expressar, com liberdade, minhas opiniões.

30
Tomado por forte indignação, bati à porta
das outras quatro emissoras de rádio da cidade a fim de conseguir
espaço para que fosse entrevistado sobre o ocorrido. Amarguei novo
fracasso, uma nova censura me foi imposta. As autoridades do
município foram mais ágeis e fizeram-se entender com rapidez.
Decretaram minha inexistência e ponto final.
A força daquele trabalho e a paixão com
que o realizei não poderiam ser desprezados de forma tão vil e
inconcebível. Dois anos de luta já haviam se passado e as vitórias e
derrotas contabilizadas fizeram-me crer que, em algum lugar ou de
alguma forma, haveria uma saída para aquele ultrajante xeque-mate.
Era hora de se levantar da rasteira tomada, sacudir a poeira e seguir
adiante. Estava decidido a pedir a revanche. Se era pela guerra que
eles clamavam, pois os tormentos da guerra haveriam de viver.
Sem dinheiro nem sequer para comer,
recorri a um amigo o qual me emprestou uma humilde carroça de
onde extraia o sustento de sua família. Seu burro, um animal velho
mas aparentemente esforçado, fez-me crer que seria de grande valia
para minha estratégia de contra-ataque aos tiranos que insistiam em
usurpar minha liberdade. Procurei em seguida pelo advogado e
vereador Arimatéia Dantas, um petista que, dois anos depois, tornou-
se conhecido no mundo inteiro por conta do polêmico projeto de sua
autoria que instituiu, em Esperantina, o Dia Municipal do Orgasmo.
Consegui com ele o empréstimo de um conjunto de caixas acústicas,
um toca-fitas e um microfone, os quais adaptei com facilidade à
carroça do Pedro. Como estímulo para que levasse adiante meus
esforços em inibir os hábitos de corrupção, enraizados no serviço
público, e de combater as locupletações corrosivas dos políticos da
terra, que irmanados constróem a tragédia nordestina que tantas
vidas consome, um pequeno comerciante da cidade, que trabalhava
com recargas de bateria, Mourão, cedeu-me a título de empréstimo
uma das que mantinha guardada em sua oficina.
Pronto. Lá estava eu diante de meu tanque
de guerra - um sistema amplificado de som movido a tração animal,
com direito a um microfone que me haviam negado e um burro de

31
nome Arrocha. A idéia, a princípio risível e de êxito para muitos
duvidável, acabou se tornando num sucesso de público e numa
poderosa arma que acirrou meu confronto com os donos de
Esperantina.
Foram exatos quinze dias, os quais
exigiram de mim espírito de aventureiro e esforço de pugilista.
Iniciava minha peregrinação religiosamente às sete horas, tendo
como primeira parada obrigatória a região do grande mercado
municipal de hortifrutigranjeiro. Parava a carroça, subia em suas
caixas de som e, empunhando uma chibata de vaqueiro feita de
couro de bode, iniciava o Chibata Show levando ao conhecimento
dos que me ouviam os resultados de minhas investigações.
Aos poucos foram formando-se pequenas
multidões ao meu redor. Como forma de tornar a carroça de som
mais interativa, facultava a palavra aos presentes que reclamavam,
com justa razão, das misérias e injustiças de que também eram
vítimas. Minha coragem e ousadia causaram entre nós, eu e aquele
povo miseravelmente saqueado, uma cumplicidade extraordinária,
razão pela qual passei, em poucos dias, a ser acompanhado por um
exército de esperantinenses que me seguiam os passos pelos muitos
bairros e vilas da cidade.
Mesmo sem a parceria dos anunciantes
que, intimidados pelas ameaças das autoridades políticas passaram a
me evitar como o diabo à cruz, os munícipes da terra começaram a
me ajudar voluntariosamente, oferecendo-me, como que por
retribuição aos meus esforços em melhorar-lhes a vida, desde pratos
de comida e lanches até significativos presentes como orações,
imagens de santos e outros adereços de estímulo a fé que me movia.
Certa vez, durante o programa etinerante,
enquanto externava minha indignação pela opressão das rádios
locais em não permitir programas populares e que fiscalizassem os
agentes públicos, fui interrompido em minha explanação por um
jovem, cuja identidade já me era conhecida. Profissional do ramo de
montagem de torres, linhas de transmissão e antenas de rádio e tevê,
Valdivino Miranda Leite havia perdido o pai a pouco mais de um

32
ano e, por direito, herdado um pequeno patrimônio o qual incluía
uma jumenta que, dado a idade avançada, desnutrição e os muitos
infortúnios da vida, já não possuía mais parte do rabo e nem mesmo
os dentes. Inútil ao dia-a-dia da propriedade, o pobre animal vivia a
ermo a espera da morte.

_ Gente, o Felipe é um sinal de que ainda


há uma alternativa real para que possamos melhorar as coisas em
Esperantina. Nós não podemos ficar de braços cruzados, assistindo
ao nosso patrimônio ser saqueado à luz do dia. Eu me proponho a
dar o primeiro passo para ajudar este repórter que luta por nós com
amor e rara coragem. Eu tenho uma jumenta que herdei do meu pai.
Sugiro que façamos um bingo dela e, com o dinheiro apurado,
compremos os equipamentos de uma rádio que será nossa, do povo
de Esperantina. Com a colaboração de todos faremos nascer a
Rádio Chibata FM, local onde o Felipe fará seu programa do jeito
que tem de ser: verdadeiro, imparcial e sem o covarde cala-boca
que sabemos existir nas outras.

Aplaudido efusivamente por uma grande


platéia de entusiastas, e como que inspirado por uma legião de
espíritos de luz, meu amigo Valdivino acabava de promover, mesmo
sem ter noção das conseqüências milagrosas que nasceriam daquela
doação, uma histórica virada no jogo do poder em Esperantina. A
partir daquele feito assistiría-mos, perplexos e gradualmente, a uma
inevitável inversão de forças, tornando-se os coronéis da cidade em
reféns da vontade imperiosa e de direito da multidão.
Febre entre os moradores de Esperantina,
o Bingo da Jumenta ganhou a simpatia de considerável parcela da
população. As cartelas, ao custo de um real cada, passaram a ser
encaradas como uma espécie de ação de sociedade simbólica da
emissora a caminho da fundação. O sucesso do negócio foi uma
resposta daquele povo à falta de compromisso social dos
governantes e à cultura do coronelismo que institucionalizou, no
nordeste brasileiro, a pessoa em poder público.

33
Com o dinheiro apurado, fundamos a
Associação Comunitária de Rádio e Jornalismo Investigativo de
Esperantina, gestora popular da Rádio Humanitária Chibata FM.
Adquirimos os equipamentos básicos de radiodifusão, locamos um
imóvel no centro da cidade e consolidamos, desta forma, uma ampla
aliança de combate à corrupção e de defesa da cidadania. Quanto à
jumenta, tornou-se ela no mais caro exemplar da espécie de toda a
história da humanidade. Cinco mil reais por uma jumenta, só mesmo
em Esperantina, no Piauí.

11 – A MISÉRIA VISTA EM SUA


INDIVIDUALIDADE É FRÁGIL

A cidade, antes sem novidades e de


hábitos individuais, passou a incluir no seu cotidiano uma novela da
vida real transformando a todos em personagens principais.
Passamos a ser protagonistas de um filme policial onde, ao invés de
ladrões de banco e criminosos comuns, o alvo escolhido era os
políticos desonestos e seu subordinados - ambos adeptos das práticas
de corrupção que nos emperravam dias promissores.
A Rádio Humanitária Chibata FM,
construída com recursos exclusivamente populares, tornou-se, em
pouco tempo, numa espécie de meca para aquela legião de famintos
e deserdados da própria sorte. Para o prédio sede da emissora
convergiam verdadeiras romarias de homens, mulheres e crianças
que nutriam fome pela verdade e uma sede por justiça capaz de
devolver-lhes a dignidade tomada de assalto.
Respaldados por unanimidade, tomamos a
decisão de registrá-la como rádio humanitária, pois depois da tirania
que nos empurrou ao calvário, tendo a carroça como cruz, nos era
impossível não assimilar o termo rádio comunitária como uma
alusão às emissoras de gestão político-partidária. No universo da
radiodifusão esperantinense, comunitária passou a ser sinônimo de

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autoritária. Éramos, portanto, humanitários. Diferente de nossos
algozes que se diziam comunitários e, portanto, usurpadores da boa
fé da opinião pública que deformavam com o emprego de mentiras
falseadas de verdades.
Li recentemente, na camiseta dos
formandos do ensino fundamental da Escola Hermínio Castelo
Branco (Esperantina), dos quais tive a honra de ser paraninfo, que o
futuro não nos dá nem nos trás nada. Nós é que, para construí-lo, é
que devemos dar-lhe tudo”. Eis uma verdade que nos era clara
diante das obras enebriantes que nosso trabalho humanístico
produzia e que, não raras vezes, levaram uma cidade inteira a
derramar lágrimas provocadas por emoções que jamais nos
abandonarão as lembranças.
Os desvios de recursos públicos e, às
vezes, a obrigatoriedade em justificá-los entregando a obra à
comunidade em flagrante engodo à fiscalização, a exemplo do
programa federal do Governo Fernando Henrique Cardoso – o
Morar Melhor, cujo o restante do montante, subtraído os agrados e
comissões exorbitantes, obrigavam-lhes a entregar aos moradores
material insuficiente para o reparo de seus imóveis, fez com que
muitas casas ruíssem, sentenciando famílias humildes e cuja Justiça
não alcança à penúria do relento. A inacessibilidade aos governantes,
ato de crueldade que tem sucumbido muitas vidas nordestinas,
levavam esta gente a buscar refúgio junto a nós, na emissora que
lhes pertencia.
Uma cozinha foi improvisada, graças a
doações de comerciantes da cidade que passaram a contribuir,
escondidos no anonimato, com nossa causa de remendo para tantos
estragos sociais. Aos poucos, nossa humilde, mas numerosa família,
foi tendo a compreensão da profundidade do provérbio bíblico que
diz que o pouco com Deus é muito, e o muito sem Ele é nada. O
pobre passou a gostar de ver o meio quilo de arroz que nos doava,
multiplicar-se em alimento que passou a estancar a fome de dezenas
de famintos como ele. O Fome Zero, de Luís Inácio Lula da Silva,

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há muito que já vem sendo encampado com sucesso pelo
Movimento Chibata.
Os casos mais graves, os quais requeriam
recursos adicionais para serem resolvidos, eram por mim levados ao
ar nos momentos em que passamos a chamar de Campanha de
Solidariedade do Chibata Show. Se não fosse o vasto material em
vídeo, onde se documentou algumas destas impressionantes
experiências, tornar-se-ia difícil acreditarmos em tais feitos tendo
como base apenas os relatos do autor.
A metodologia era simples: iniciava a
entrevista, ao vivo, servindo de ponte entre o necessitado e a
multidão de esperantinenses que nos ouvia do outro lado do seu
rádio. Procurava aproximá-los ao máximo, extraindo do aflito
entrevistado detalhes aprofundados de seu drama. Em seguida, após
uma reflexão sobre o infortúnio de meu interlocutor, descorria sobre
a falta de moralidade e de compromisso de nossos gestores ante as
mazelas de nosso povo. Ao final, a população era convocada para
uma demonstração de solidariedade aquele irmão companheiro,
alguém que, como nós, necessitava de amparo. Fazia-os ver que
nossa união em torno de nossos próprios infortúnios era o suficiente
para que os dizimássemos, um a um, sem para isso ter que nos
submeter às humilhações dos agourentos coronéis locais.
As cenas que se produziam em seguida
eram divinas, fruto de uma Interferência Maior capaz de remover os
mais petrificados dos corações. O estúdio, antes vazio,
congestionava-se em questão de minutos. Era impossível não se
emocionar diante de uma invasão de centenas de populares que
acotovelavam-se em busca de uma oportunidade para entregar, em
mãos, o donativo ao irmão menos afortunado. Doavam o necessário
e faziam uso da palavra, externando, cada um a sua maneira, toda a
indignação de uma vida inteira, reprimida pelo autoritarismo e
ambição desmedidos de nossos algozes públicos.
Comprávamos passagens aéreas e
buscávamos tratamentos especializados fora do Estado, quando
assim se fazia necessário. Nossas mulheres eram curadas, crianças

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reencontraram proteção e nossos homens, bravos sobreviventes de
uma guerra desumana, viam, na solidariedade de seus conterrâneos,
um motivo maior e indestrutível de crer, com esperança, em dias
melhores e verdadeiramente altaneiros. O paralítico voltou a andar,
com a ajuda de cadeira de rodas, mas andou. Casas que ameaçavam
ruir, sepultando famílias inteiras, tiveram suas coberturas reparadas,
paredes reforçadas e seus alicerces garantidos. Parturientes, antes
desprovidas da dignidade que lhe conferissem uma maternidade
tranqüila, eram presenteadas com enxovais, roupas e dinheiro para
custeio do nascimento de seus filhos. Não havia, entre nós, aquele
que não fosse abençoado pelo sentimento reparador do amor.
Servindo ainda de balcão de informações
e de prestação de serviços de auto-ajuda, a Chibata FM também
travou compromisso com a conscientização do nosso povo,
apresentando-lhes seus direitos, seus deveres e fazendo-lhes crer no
poder adormecido dentre de cada um de nós, pronto a agir a partir de
nossa pré-disposição em despertá-lo. Fi-los ver que muito daquilo
que antes era rotulado de inútil, frágil, simplório e, portanto, sem
efeito algum aos olhos do mundo, era na realidade funcional, forte,
importante e empreendedor à luz da verdade. Estava criado o
Tribunal da Opinião Pública – um púlpito de pregações, não
demagogas, mas autênticas e que passaram a resolver graves
ferimentos e incisões sociais e econômicos.
A união dos mais fracos tornou-se visível
e temida aos olhos dos grandes. A fragilidade de nós miseráveis, ao
nos unirmos todos em formação a uma espécie de escudo humano de
proteção, fez com que fôssemos vistos e, mesmo que por covardia
dos tiranos em reconhecimento à sua documentada falta de razão,
respeitados em nossos direitos e preservados em nossos sonhos.
Iniciava ali, um período marcado pela
certeza coletiva de que possuíamos, efetivamente, o poder de mudar
nossas vidas. Um poder que deveria ser exercitado, à exaustão, por
todos nós.

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12 – UMA CIDADE SOB O
FASCÍNIO DA INVESTIGAÇÃO

Paralelo às ações filantrópicas e de reparo


ao trágico rastro deixado pelo corruptos tupiniquins, ações em sua
maioria paliativas mas necessárias e encampadas com ardor, a
Chibata FM seguia, destemida e ousada, em sua vocação nata de
esmiuçar, fazendo uso das técnicas do jornalismo investigativo, as
muitas transações realizadas na esfera dos poderes Executivo e
Legislativo, tanto municipal como estadual. Rasteávamos cada passo
de nossos governantes, atento à suas intenções e metodologia no
trato com o patrimônio público. Prestações de contas, processos
licitatórios e condução da patente de autoridade no dia-a-dia eram,
por nós, investigados com rigor e caprichoso interesse.
Foi exatamente neste período, setembro
de 2001, que decidi levar a termo meu compromisso de união com a
bela e jovem Lysmara de Amorim Castro. Embora ainda na flor de
sua jovialidade, Lys reunia em si atributos dos mais raros, além de
uma vocação e coragem extraordinárias para a investigação. Hábil,
perspicaz e inteligente, minha terceira esposa (sempre tive
dificuldade em manter meus casamentos por conta da vida
arriscada que escolhi levar) é tida por mim como um dos achados
mais valiosos de minha história de vida. Além de completar-me
como ser humano, sua experiência e sensibilidade para com os
problemas sociais de seus patrícios trouxeram grandes avanços à
Revolução, inspirando-me confiança, cumplicidade e sentimento de
companheirismo. Estava formada a dupla que iria, em pouco tempo,
tornar-se em um terrível pesadelo aos inimigos públicos de nosso
povo. Éramos a tampa e a panela, uma engrenagem perfeita em
pleno funcionamento.
Juntos, eu e Lys criamos o que poderia ser
considerado um sistema integrado de vigilância pública, o que, dado
aos expedientes utilizados e metodologia empreendida passou a se
denominar de Rede Chibata de Informação – RCI. Constituída de

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arquivos - hoje com mais de três mil fotografias, centenas de horas
de gravação de vídeo e áudio, documentos diversos e um arsenal de
depoimentos e narrativas extremamente reveladores e elucidantes, a
RCI conta com vários equipamentos tecnológicos e utiliza-se com
freqüência da Internet para buscar informações e parcerias para seus
intentos. Um caseiro, mas eficiente célula nordestina no universo da
espionagem.
Tento a nosso favor, praticava-se nos
corredores do poder, em Esperantina, uma corrupção grosseira e
ainda rudimentar. Como que distraídos por cumulativa impunidade –
fator fortalecido pela inexistência, no passado, da presença de uma
entidade diligente e denunciativa, os locupletados públicos desta
história tornaram-se, por herança, presas fáceis e inócuas. Ruas
calçadas nos papéis, mas cuja lama dava nas canelas e vaqueiros e
capatazes transformados em proprietários de construtoras, ou ainda
em preferenciais fornecedores de produtos farmacêuticos e
hospitalares, eram facilmente desmascarados pela RCI e suas farsas
tornadas públicas por intermédio do Chibata Show.
A simpatia pelo nosso trabalho e o
fascínio que este causava aos milhares de habitantes de Esperantina,
fizeram com que um verdadeiro exército de investigadores se
voluntariasse, sendo ele arregimentado por nós nas muitas operações
secretas que operacionalizamos. Todos queriam contribuir instigados
pela coragem que passou a ser uma marca entre os esperantinenses.
Vários micro-gravadores foram, estrategicamente, espalhados em
mãos de populares. Tínhamos informantes, os quais costumávamos
chamar de chibateiros, presentes em muitos órgãos públicos e em
locais de freqüente concentração de nossas caças. Nosso chibateiros
multiplicavam-se numa velocidade impressionante. As adesões à
RCI representavam uma constante em nosso movimento
revolucionário local. Passamos, inclusive, a enxergar e a ouvir por
intermédio daqueles que, vítimas de suas humilhações diárias,
serviam domesticamente aos nossos algozes. Fechávamo-lhes o
cerco a fim de espreitar-lhes as intenções e antepormo-nos aos seus
golpes.

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Foi agindo assim que, empreendendo
audaciosas investidas, conseguimos inibir, em parte, o assolante
processo de manutenção da indústria da miséria entre nós, além de
termos desnudado tantos outros casos de corrupção anteriormente
consumados.
Uma quadrilha especializada em desvios
de recursos do SUS, e que tinha o Hospital Estadual Júlio Hartman
(em Esperantina) como ralo para suas subtrações milionárias, foi
desmascarada e o processo de mortes, cujas causas residiam na
negligência médica e falta de medicamentos, interrompido e
denunciado ao Ministério da Saúde e Ministério Público Federal. A
sociedade assistiu vitoriosa a volta da merenda escolar e do material
didático gratuito ao cotidiano de nossos alunos da rede pública.
Nossas ruas, antes sob intenso breu, voltou a ter na iluminação
pública uma aliada na moderação da criminalidade. Ao menor
anúncio de denúncia pautada na falta de ação de serviços básicos da
municipalidade, assistíamos à imediata movimentação dos
responsáveis públicos em busca de solucionar o que lhes era
reclamado. Por incontáveis vezes, antes mesmo do encerramento do
Chibata Show, palco das denúncias formuladas, fazíamos o registro
da solução do problema. Com humildade, reconhecíamos
publicamente ao esforço do servidor municipal, antes sob
reprimenda, como forma de estimulá-lo a não mais causar dolos por
conta de sua má vontade e ou descompromisso.
As conquistas, todas advindas do tripé
união, persistência e coragem, ponteadas até aqui sob forma de
sucinta amostragem, se experimentadas em outros municípios
brasileiros teríamos então, seguramente, uma nação esplendorosa,
onde as desigualdade sociais e os infortúnios do povo tão explorados
pela grande imprensa não mais encontrariam moradia. Nenhuma
nação do mundo, depois de exaurida busca pela história da
humanidade, experimentou, a exemplo de Esperantina, o poder
transformador que emana de um povo quando este está sob o
fascínio da investigação.

40
13 – ADENTRANDO NA
MANSÃO DOS MORTOS

Havia, nesta época, apenas dois hospitais


em Esperantina. Um, o mais antigo, pertencente a rede hospitalar
pública – Hospital Estadual Júlio Hartman (homenagem ao médico
prático alemão que viveu no município nos primórdios do século
passado. Fugitivo da Segunda Guerra Mundial, Hartman passou a
desenvolver sua medicina em benefício de seus hospedeiros).
Construído para atender a toda a microregião, da qual Esperantina se
orgulhava de ser a capital, o hospital estadual era obrigado, muitas
vezes, a sacrificar-se para ver atendido outros enfermos que vinham
de várias cidades do vizinho estado do Maranhão. Já o outro, de
origem diferente do primeiro – de propriedade privada, também
exercitava a prática da medicina hospitalar pública. O Hospital das
Clínicas Iracema Gomes se sustentava às expensas do SUS - Sistema
Único de Saúde, de quem sempre foi conveniado.
Embora tratando-se de dois hospitais
distintos, um público e outro privado, a história do primeiro acabou
fundindo-se com a história do segundo por conta de um detalhe
revelador – embrião de uma história que culminaria com a minha
crucificação no sertão piauiense durante o período eleitoral de 2002.
O proprietário do hospital particular, o
médico Dr. Franklin de Paiva Oliveira Neto, praticante de uma
medicina que causa assombro e pânico, era também o diretor geral
do seu único concorrente na região – o Hospital Estadual Júlio
Hartman, a quem transformou numa espécie de mansão dos mortos,
ou ainda Vale da Morte.
Os fatos que passamos a narrar, todos
disponíveis no arquivo da RCI (os quais se fazem acompanhar de
vasto material comprobatório), são descritos com base no
depoimento das vítimas e na investigação apurada de seus detalhes –

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método e preocupação preponderantes no trabalho do autor.
Algumas destas tragédias foram devidamente denunciadas às
autoridades competentes e outras, macabras e fruto da ganância
insana, tornam-se públicas pela primeira vez por intermédio desta
obra. Mas ainda mais grave é assistir, nos dias atuais, aos
responsáveis gozando de flagrante e imoral impunidade. Todos
condecorados pela imprensa piauiense, a grande responsável pela
permanência deles no poder e no manuseio de bisturis a sepultar
multidões. Trata-se do desbravamento de um Brasil assassino que
sustenta-se, pelas mãos de Menfis, acima da própria Lei.

_ Felipe, meu filho olhava para mim e


dizia: “Papai, não me deixe morrer”. Respondi que ele segurasse
firme minha mão, pois tudo acabaria bem. Caminhei horas com ele
nos braços. Não achei quem salvasse meu filho...

Os seus olhos, marejados desde o início,


não demorou a desabar em lágrimas sentidas. Assistia atônico aquele
trabalhador rural, de mãos calejadas e maltratada feição, chorar
como uma criança desprotegida a morte de seu filho de sete anos,
cuja vida foi encurtada por mãos que deveriam mantê-la.
Francisco Fernandes Bezerra, sofrido
lavrador, residente da zona rural do município, gozava a fama de
homem virtuoso – honesto trabalhador, rígido na hora de honrar com
seus compromissos e pai amoroso. Pobre sobrevivente da caatinga,
mantinha sua família, às duras penas, sob o teto da humildade e da
simplicidade. Ensinava-os a conformar-se diante da sorte que Deus
havia lhes reservado.
Motivo de orgulho e de grandes alegrias
da família, o filho mais velho de Francisco – o pequeno Antonio
José Bezerra da Silva, de sete anos de idade, impressionava a todos
pela inteligência e espírito solidário. Francisco e seu filho Antonio
nutriam entre si verdadeira adoração. Companheiro inseparável das
incursões de seu pai, o menino Antonio José crescia esnobando
saúde e respirando as virtudes de seu progenitor.

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Tudo corria bem até quatro dias antes
daquele fatídico episódio, momento em que vira partir seu mais
precioso bem. O silêncio da madrugada foi interrompido por fortes
gemidos que partiam do pequeno quarto do menino Antonio José.
Despertado de seu sono, Francisco observou que seu filho inchava,
vítima de inesperada e desconhecida enfermidade. Agonizante, a
criança inspirava cuidados médicos, procedimentos disponíveis
apenas nos hospitais da cidade. Antes mesmo que o dia
amanhecesse, seguiu com o filho para beira da estrada a fim de
embarcar no primeiro carro de linha que por lá passasse.
Eram sete horas da manhã de 21 de maio
de 2001. Francisco, tomado de aflição, esperava na recepção do
Hospital Estadual Júlio Hartman o médico plantonista que custava a
aparecer. Vendo que o mal estar do filho mantinha-se inalterado,
resolveu partir para o Hospital das Clínicas, de propriedade do Dr.
Franklin de Paiva Oliveira Neto, onde conseguiu internar o filho
pelo período de três dias incompletos. Sob alta médica, o pequeno
Antonio José, já apresentando melhoras em seu quadro clínico,
retornou para casa na companhia de seu pai. Antes, porém, o
lavrador passou em uma farmácia e adquiriu uma caixa de
comprimidos prescritos pelo Dr. Franklin. Ao ingerir a segunda
cápsula do remédio, a enfermidade voltou a se manifestar, desta vez
de forma mais acentuada do que antes. Como que prevendo o pior,
Francisco retornou no mesmo dia ao hospital estadual, em busca de
cura para o menino.

Nova decepção. Sem médico, passou a


noite na recepção, sendo seu filho atendido somente na manhã do
dia seguinte – 24 de maio. Sem receber qualquer atendimento
médico, o filho de Francisco recebeu apenas uma guia de
encaminhamento para o hospital da capital, Teresina – viagem que
só poderia ser realizada, segundo o médico que a prescreveu, no dia
seguinte, às sete horas da manhã.
Chegado o dia e a hora, Francisco
Fernandes apareceu no hospital conduzindo seu filho, Antonio José,

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pelas mãos. O menino, embora gravemente acometido de uma
doença que acabou por não ser diagnosticada, ainda chegou no
hospital caminhando, sob os próprios pés. Ao vê-los chegando no
Júlio Hartman, e não havendo razão nenhuma que justificasse, o Dr.
Franklin detratou impiedosamente o já aflito Francisco e, aos berros,
antecipou-se ao próprio pai dizendo que não autorizaria ambulância
alguma para o transporte daquele menor.
Francisco estava desnorteado e passou a
ter dificuldade para raciocinar. Com a falta da lógica, seguiu pela
ruas da cidade carregando a esmo, nos braços, seu filho que lhe
implorava por socorro. Ao encontrar uma funcionária da prefeitura,
soube dela que o Dr. Franklin teria voltado atrás, se arrependido, e
disponibilizado a ambulância para seu filho desvalido.
Em vão. Pela quarta vez viu-lhe faltar o
chão naquele hospital público.
O pequeno Antonio José, assistindo a
tudo com consciência, suportou todas aquelas agressões com
resignação e santidade. Carregado pelos braços já sem forças do pai,
mirou Francisco nos olhos e assacou-lhe em sua voz de menino:

_ Pai, por favor, não me deixe morrer!

Entrou com o filho em um ônibus e


seguiu até o município de Barras, a ......... quilômetros de
Esperantina. Meia hora após sua permanência no hospital regional
daquela cidade, o pequeno e sempre alegre Antonio José, deu um
sorriso para o pai e partiu de junto dele. Assistiu-se ali a morte de
um anjo. A insensibilidade do Dr. Franklin, notório predador de
vidas humanas, fez apagar mais um, dentre tantos outros pontos de
luz sucumbidos por sua ambição assassina.
(Ilustrar com Termo de Denúncia,
firmado por Francisco aos auditores do Ministério da Saúde, em 19
de outubro de 2001 – cerca de 5 meses após a morte de Antonio
José. / Destacar trecho, pág.02: (...) como lá não houvesse médico
(...) com receita de medicamento (...) prescrita pelo Dr. Franklin (...)

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como a criança houvesse piorada na ingestão do segundo
comprimido (...) não encontrou médico no hospital (...) que ainda
permanecia sem médico (...) o Dr. Franklin negou transporte (...) o
Dr. Franklin tratou-o de forma agressiva (...) lhe informou que a
ambulância do Hospital Estadual faria a remoção (...) mais uma vez
teve negado a ambulância (...) a criança foi atendida no Hospital de
Barras, e meia hora após chegar ao Hospital veio a falecer (...) não
lhe foi fornecido o atestado de óbito (...). Desenvolver uma arte de
forma a expor com qualidade uma foto do garoto Antonio José).

Há muito que farejávamos a ação de


uma quadrilha especializada em desvios de recursos do SUS,
operando em conjunto com os dois hospitais. O que não
sabíamos era que vidas estavam sendo sacrificadas e outras
tantas usurpadas. Em busca de deformidades meramente
administrativas, acabamos descortinando um quadro fúnebre e
sombrio, uma espécie de abatedouro de vidas humanas. A
medida que novas denúncias iam chegando, catalogamos mais
histórias predominadas pelo medo, covardia e terror. Escorria
de nossos arquivos o sangue de inocentes, derramado tal qual
oferendas a principados e potestades. Um mergulho na noite
turva com a própria morte a nos espreitar. Demos, eu e Lys,
passos arrastados, pois adentrávamos na traiçoeira Mansão dos
Mortos.

14 – SERIAL KILLER POR


AMBIÇÃO E NEGLIGÊNCIA

Manhã do dia 4 de novembro de 1999.


Elaine de Farias Sampaio de Carvalho, 18 anos de idade, apresenta-
se na recepção do Hospital Estadual Júlio Hartman. Grávida, e já
excedendo os nove meses de gestação, reclama de dores as quais,

45
por instinto, julga ser o sinal do tão esperado momento. Passado
duas horas desde a sua chegada naquela casa de saúde, período em
que foi submetida a uma inominável sessão de tortura, Elaine recebe
a notícia que a traumatizaria por todo o resto de sua vida: sua filha
estava morta.

_ “Eu fiz todo o pré-natal com o Dr.


Eduardo, da Secretaria Municipal de Esperantina. Foram nove
meses de uma gravidez sadia. Minha filha era uma menininha e se
chamaria Bianca. Ao matarem minha filha... (Elaine chora).
Mataram também um pedaço de mim”.

Era só mais uma história de parto mal


sucedido naquele lixo hospitalar. Elaine engrossava a fileira das
muitas parturientes que, após ingressar naquele hospital sombrio,
tiveram a vida de seus filhos, quando não as suas próprias,
interrompidas pela estupidez humana. É hoje mais uma das
sobreviventes de um médico que a corrupção piauiense transformou
em assassino. Novamente ele, Dr. Franklin de Paiva Oliveira Neto,
tinha seu rastro documentado por nossas investigações. Assim como
no relato do capítulo anterior, uma nova vítima foi sucumbida por
ele, desta vez em flagrante e absoluto consentimento ao crime
praticado. Assistiu a tudo e nada fez.

_ “Minha gravidez foi saudável. A ultra-


sonografia prova o que estou dizendo”.

O relógio marcava dez e meia da manhã


quando Elaine deu entrada no hospital. Sempre em companhia da
cunhada, a cabeleireira Marinete Freitas de Carvalho, a jovem mãe
aguardou pelo atendimento por longas quatro horas até que uma
funcionária surgiu na enfermaria para levá-la à sala de parto. Elaine
sentia contrações ainda bastante espaçada uma da outra, mas estava
feliz e confiante, pois finalmente seria apresentada à sua primeira
filha.

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_ “Eu já tive filho, e quando é hora de
parir, quando termina uma dor já é começando outra”.

O desabafo é da cabeleireira Marinete


Freitas de Carvalho, que afirma que a gestante foi induzida ao
trabalho de parto em momento ainda não adequado. Irmã do marido
de Elaine, Marinete foi quem acompanhou a cunhada durante toda
sua estada no hospital público. Depois de obter sinal verde do setor
de enfermagem, a cabeleireira participou do parto, fotografando
importantes momentos da carnificina que se seguiu.
O diretor do Júlio Hartman, Dr. Franklin,
estava presente no hospital, pois ele era o médico responsável por
aquele plantão. Mesmo ciente da presença da parturiente no Centro
Cirúrgico, o médico não compareceu para conduzir o parto. Depois
de muitas investigações, ouvindo outras mães que conceberam seus
filhos em plantões do Dr. Franklin, descobrimos que o médico
sempre se ausentava no momento do parto. Fosse ele normal ou
cesariana, era sempre entregue pelo doutor às mãos desabilitadas de
auxiliares de enfermagem que integravam o corpo clínico hospitalar.
A ele cabia apenas a função de assinar o prontuário e receber do
SUS (Sistema Único de Saúde) os valores correspondentes ao
procedimento médico praticado.
Foram duas horas de tentativas
desastrosas para trazer a pequena Bianca ao convívio de seus pais.
Duas auxiliares de enfermagem colocaram-se ao lado de Elaine e
deram início ao ritual de um parto normal. No início, a duas
parteiras utilizaram-se de todos os mecanismos para estimular a
gestante a forçar pelo nascimento do bebê. Durante o parto, uma das
auxiliares de enfermagem chegou a reconhecer que Elaine não tinha
força suficiente para conceber a criança em regime normal.
Afirmando-se sempre muito experiente, disse que reconhecia a
necessidade de uma cesariana urgente, pois o caso havia se
complicado inesperadamente.

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_ “Eu vi a cabecinha da criança. Não
havia espaço para minha sobrinha nascer”.

No depoimento emocionado que nos


concedeu à época, a cabeleireira narra o momento em que uma das
auxiliares de enfermagem saiu da sala em busca de alguém que as
ajudassem a salvar a vida da criança e de sua mãe, pois o caso estava
ficando fora de controle. Marinete lembra que não demorou muito e
a viu retornar na companhia de um faxineiro do hospital – Antonio
Francisco F. de Oliveira, o Toinho.

_ “Ele se debruçou sobre ela e começou


a forçar sua barriga com os cotovelos. Mesmo que sem intenção,
aquilo acabou matando minha sobrinha asfixiada”.

Um clima de tensão passou a predominar


e, reforçando a necessidade de uma cirurgia para a retirada da
criança, a auxiliar de enfermagem saiu novamente do Centro
Cirúrgico, desta vez atrás do médico plantonista.
A morte, naquele momento, rondava mãe
e filha na sala de parto do Júlio Hartman.

_ “O Dr. Franklin entrou e autorizou uma


injeção de força. Pegou no meu braço e saiu comigo da sala. Me
convidou para tomar um cafezinho. Me deixou na cantina do
hospital e saiu para atender outros pacientes, como se nada
estivesse acontecendo”.

Desesperada, e temendo pelo pior,


Marinete foi até um telefone público instalado na calçada de frente
do hospital e telefonou para outro médico da cidade, Dr. Jóe Alves
de Alcântara. A princípio o médico recusou-se a intervir, alegando
falta de ética e as normas do próprio hospital, já que o plantonista
naquele momento era quem deveria tomar as providências de
urgência. Entretanto, convencido da urgência, acabou cedendo ao

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apelo e se deslocado até o hospital. Era tarde. Ao chegar no hospital
a criança já estava morta.

(Tomar um depoimento do Dr. Jóe sobre


o episódio e transcrevê-lo aqui)

CONCLUIR ESTE CAPÍTULO COM A


MORTE DA ESPOSA DO MEU COMPADRE, O PARTO DE
CÓCORAS NA ENFERMARIA, A PARTURIENTE
CONCEBENDO NA PAPELARIA DO BOSCO, O FETO DA
BOCA DO CACHORRO E O CEMITÉRIO CLANDESTINO

15 – AFERINDO LUCROS COM


A MORTE DE INOCENTES

Eu sempre defendi a tese de que o


delinqüente que esfaqueia alguém é tão vítima quanto o esfaqueado.
Trata-se de um criminoso, nem sempre por vocação ou instinto
malévolo, moldado para aquele fim pelo próprio meio em que vive.
O mais grave nesta situação é que, a medida que aprofundamos
nossas investigações nos deparamos com situações que, a princípio
corriqueiras e freqüentes no dia-a-dia da mídia nacional, escondem
em suas causas as ações planejadas de autoridades constituídas pelo
próprio delinqüente, hoje no banco dos réus.
Há algo mais nestes crimes comentados
de forma banal pela imprensa estadual e nacional. Persegue-nos a
impressão de que grande parcela dos que roubam, invadem, matam e
torturam integram uma espécie de milícia arregimentada para este
fim, com o intuito de tornar o quadro social grave e susceptível a
verbas oriundas de uma política pública, as quais são desviadas sem
cerimônia nem dificuldade neste sistema acobertado pela

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impunidade. Sem os ingredientes que culminam na violência
(pobreza, fome, doenças e desemprego), afunilariam-se as verbas
emergenciais e a fundo perdido que fazem a alegria dos corruptos
brasileiros.
A cada passo que damos em busca das
causas para a miséria dizimante em Esperantina, desnudamos, aos
poucos, um Piauí de gestores ensandecidos, malogrentos e
predispostos a enraizar, cada vez mais, o câncer da corrupção que
assola o nosso povo já nocauteado. Nos é cada vez mais claro que os
problemas sociais não residem nas delegacias de polícia ou nos
guetos de atuação de gangues e infratores diversos , como tenta nos
fazer crer jornalistas da leva de Silas Freire, Pádua Araújo, Beto
Rêgo, Galego e tantos outros que fazem das portas de cadeia suas
redações, como se ali residissem as razões da existência da
criminalidade. Ledo engano! O pior cego não é aquele que não quer
ver, mas aquele que é pago para não enxergar.
A bandidagem piauiense, responsável
pelo estado de falência social e de aversão ao cumprimento das
próprias Leis, sempre teve como endereço gabinetes da Assembléia
Legislativa, das Câmaras Municipais, as salas ricamente decoradas
do Governo e tantas outras onde se avista togas e fardas
dependuradas como símbolos da impunidade virulenta e crescente
entre nós. O setor privado, em especial os fornecedores do setor
público e construtoras, completam esta secular engrenagem que faz
mover, com precisão, a grande indústria da miséria piauiense,
responsável por uma produção holocáustica e de assombrosas
exclusões.
As muitas mortes no Hospital Estadual
Júlio Hartman requereriam de mim e de Lys que fôssemos muito
além das usuais negligências médicas – as quais já havíamos
documentado fartamente. Mesmo diante das evidências e, em muitos
casos, das provas coletadas e propagadas publicamente à exaustão,
as mortes provocadas naquele matadouro humano parecem não
despertar o interesse das autoridades governamentais, policiais e
nem da própria Justiça – esta provocada com freqüência e insistência

50
por nós. É como se houvesse algo ou alguém incontestável por
detrás de toda aquela carnificina humana, alguém cujo poder fosse,
por si só, suficiente para cessar toda e qualquer tentativa de
responsabilidade dos envolvidos nas mortes e assaltos ao Júlio
Hartman.
Estávamos certo. Sob o comando do
deputado estadual Themístocles de Sampaio Pereira Filho (PMDB),
a quadrilha especializada em desvios de recursos do SUS e
responsável pela morte de dezenas de inocentes agia, impunemente,
confiada no poder de um dos homens mais influentes do Governo do
Estado. Deputado em seu segundo mandato (reeleito na eleição de
2002 pela terceira vez consecutiva), Themístocles Filho também
acumulava, à época, o cargo de secretário estadual de Justiça e
Cidadania.
Homem de grande influência, o deputado
que detinha o direito das indicações dos cargos estaduais em
Esperantina, poder que se arrastou por sete e longos anos, era uma
espécie de dono do hospital, das polícias civil e militar, da Educação
e, para infortúnio de nosso povo, ainda gozava de impressionante
prestígio junto à Superintendência da Polícia Federal no Piauí,
usando a Instituição com freqüência para coibir, de forma arbitrária
e intempestiva, os agentes federais para perseguir e inviabilizar
nosso movimento de defesa da cidadania e combate à corrupção. A
Polícia Federal, durante toda a gestão do ex-superintendente Robert
Rios Magalhães, serviu de guarita para os muitos esquemas de
corrupção e extorsão empreendidos pelo deputado. Sem outra renda
que justifique sua astronômica evolução patrimonial, tendo como
referência apenas seu salário de deputado estadual (cerca de seis mil
reais), Themístocles Filho é hoje dono de um verdadeiro império que
inclui carros de luxo, mansões, apartamentos, terrenos rurais,
construtoras e uma factoring na capital – tudo em nome de laranjas,
ou seja, assessores parlamentares, lobistas e funcionários
particulares que emprestam seus nomes aos muitos negócios escusos
e imorais do parlamentar.

51
(Período Manoel Galinha + data? + e
auditoria / O uso de recursos de SUS na eleição de políticos /
conversa com a chefe da farmácia – Toinha / cirurgia do Dr.
Sampaio / Reunião pedindo votos para The e P. Lages / conclusão
do dossiê e entrega aos auditores / condenação parcial do
Franklin e envolvidos)

16 – UM MANDATO
DE PERVERÇÃO

(Construção da Penitenciária / denuncia


do THE / a sugestão do Ministério da Justiça / jornais atuais /
condenação da auditoria e na Justiça / perseguição dos processos /
primeiro julgamento com os The / o incêndio na casa do velho / a
entrevista na Retiro prevendo fechamento da Chibata FM
ratificado pelas declarações do Robert Rios)

17 – PROSTITUINDO A
INTELIGÊNCIA DA NAÇÃO

(Fechamento da Rádio / prisão / apoio


da Francisca Trindade / aproveitamento do Olavo Rebêlo / soltura
/ inquérito do Aírton Franco)

18 – RIOS FRAUDULENTOS

52
(Perseguição desenfreada de Robert
Rios Magalhães / Entrev. no Tony / Carta pública / busca e
apreensão ilegal dos equipamentos / inferno na imprensa /
entrevista nas emissoras locais / pseudo agressão ao Maurício
Costa / promotor especial)

19 – O PIAUÍ FORA DO
ALCANCE DO CONGRESSO

(Viagem a Brasília / comissões e apoios


recebidos / hospedagem no apartamento funcional do W.Dias e
seus posicionamento / proteção à vida negado / prisão em
flagrante com a arma

20 – UM CHUPÃO NA
BASE AÉREA

(História dos aparelhos clandestinos de


radiodifusão)

21 – A VOLTA DO CANGAÇO
COMO ÚLTIMA ALTERNATIVA

As eleições majoritárias de 2002, que


deveriam transcorrer apenas como um exercício de democracia e
elevado espírito de cidadania, transformaram-se para nosso
movimento num período de sérias investidas contra nossa honra e,
não raras vezes, contra nossa integridade.
Lutávamos até ali, desde o início, contra
poderosas forças políticas, todas com grande poder de decisão
institucional no Piauí. Mesmo diante da espessa muralha popular
que conseguimos construir em nossa defesa, a força contrária de
nossos perseguidores era avassaladora, mutilante e destrutiva.

53
Mesmo contando com dois vereadores dentre os treze eleitos para a
Câmara Municipal de Esperantina, nossos amigos edis tornaram-se
impotentes diante da fúria de nosso exército inimigo, formado por
deputados estaduais e federais, secretários de estado, prefeitos,
procuradores de Justiça e tantos outros predadores que infestam os
poderes institucionais piauienses. Usando a grande imprensa
estadual como guarita, eles avançavam sobre nós com o poder
destruidor dos grandes maremotos. Nossa fragilidade diante da ira
dos grandes chefes era evidente, preocupante e sinalizadora de um
futuro incerto e sem grandes expectativas de sobrevivência.
Diante deste quadro que minava
ferozmente nossas forças, era evidente de que deveríamos aproveitar
aquele momento político nacional para formarmos novas parcerias,
ampliando assim nossa pífia representatividade para além das
fronteiras do município, a fim de nos revestirmos de maior
segurança. Era chegado o momento de fincar bandeira na
Assembléia Legislativa, na Câmara Federal e no Senado da
República – um passo necessário, mas que desencadearia numa
violenta e autoritária perseguição ao nosso povo e aos nomes por
nós encampado naquela eleição.
Pessoas humildes da comunidade, ao
menor sinal de apoio aos nossos candidatos eram perseguidos,
humilhados e intimidados com o abuso de autoridade que passou a
campear impunemente na cidade de Esperantina. Cabos eleitorais
voluntários e outros que trabalhavam na segurança pessoal de alguns
membros do movimento - vítimas de constantes ameaças de morte,
eram cercados e violentamente intimidados. Ao longo da campanha,
somente um deles – Antonio Marcos, o Capim – foi surrado várias
vezes por delinqüentes contratados pelo Dr. Franklin e preso e
torturado por policiais militares patrocinados pelos coronéis em
busca da renovação de seus mandatos. Armados e protegidos pelo
escudo intransponível da impunidade, nossos algozes avançaram
muito além das fronteiras da violência urbana. Transpondo os limites
da própria crueldade, ensandeceram-se ao ponto de levar um homem

54
ao flagelo da crucificação. Algo somente similar ao cangaço dos
sertões conduzindo as rédeas do poder absoluto entre nós.
Há muito que já havia perdido a força de
acovardar-me pelo caminho desonroso da desistência. Nosso
trabalho entre os humildes, mesmo sob toda a opressão desumana de
nossos opositores, condicionou nossa vitória à vitória dos oprimidos,
pois não alcançaríamos a paz sem antes vencer todos os lances
daquele calvário.
Foram três meses de intensas atividades.
Iniciamos a campanha da forma mais democrática possível.
Percorremos, sem recursos e franciscanamente todos os bairros e
grande parte das comunidades rurais. Discutimos com a população a
postura ideal que o movimento deveria assumir diante daquele
momento eleitoral, o qual éramos todos convocados a decidir o
destino político de nosso país. Com a ajuda de uma caixa acústica e
um quadro-negro, traçávamos juntos as metas a serem cumpridas e,
dentre uma vasta lista de candidatos, elegemos, por intermédio de
consulta popular, os nomes de Maria José Leão para deputada
estadual, Júlio César de Carvalho Lima para deputado federal,
Hugo Napoleão para governador e Heráclito Fortes como o nome a
ser apoiado para o Senado. Dado a grande divergência quanto ao
nome do candidato a presidente da República, chegou-se ao
consenso de não empreendermos campanha em favor de nenhum
deles. O fato de todos pertencerem ao Partido da Frente Liberal
(PFL) deveu-se a uma tendência natural do nosso município que, ao
longo da história do voto direto, consagrou memoráveis vitórias ao
partido.
Os nomes dos candidatos a deputados
estadual e federal, Maria José Leão e Júlio César de Carvalho Lima
foram os mais fáceis de serem aprovados por nossos, agora,
criteriosos eleitores. Ela, professora e primeira-dama pela terceira
vez do município de Floriano (Piauí), dedicou sua vida pública a
promover a educação e as ações sociais de grande alcance e, ele,
Júlio César, um homem público de extensa trajetória, dono de
virtudes raras entre aqueles que integram a classe política brasileira.

55
Homem de elevado espírito de solidariedade e verdadeiramente
vocacionado à dura missão do servir, é tido como celebridade dentre
os fruticultores do país. Agricultor incansável, Júlio César figura
hoje como um dos maiores exportadores de manga do Brasil,
estando as frutas por ele cultivadas presentes nas mesas de
americanos e europeus. Situação cada vez mais difícil entre os
candidatos piauienses, ambos, Maria José e Júlio César, também
nos cativaram pelo fato de nunca terem tido seus nomes estampados
em páginas de jornais meio a escândalos de corrupção. Nomes
testados e aprovados, resolvemos vestir suas camisas a fim de
buscarmos em seus prováveis mandatos uma guarita para a proteção
da dignidade de nosso povo e de defesa de nossa revolução.
Agindo de acordo com a decisão da
maioria dos trabalhadores e dos humildes cidadãos de nossa terra,
firmamos compromisso em torno do nome do então governador
Hugo Napoleão, embora seu candidato opositor despertasse em mim
maior fascínio. O deputado federal Wellington Dias (PT), que havia
me ajudado em minha curta incursão por Brasília, por ocasião da
violência que sofri nas mãos dos agentes da Polícia Federal e da
ANATEL, era o candidato das oposições e aquele que possuía, além
de um irrepreensível currículo de vida pública, propostas das mais
notáveis e capazes de promover a moralização tão necessária para a
transformação social que aspiramos para o Piauí. Ainda assim,
mesmo nutrindo pelo candidato petista grandes esperanças, foi-me
impossível remover o movimento da idéia fixa de apoiar o candidato
da situação. Vários foram os fatores que contribuíram para esta
decisão, mas o mais influente deles residia no fato de que a grande
maioria dos nossos opositores locais estavam entre os principais
financiadores do petista em sua heróica trajetória ao Governo do
Estado. Diante da grande decisão, coube a mim resignar-me em
cumpri-la, mesmo ferido em meu sentimento de preferência.
Tive oportunidade de expor minha
posição pessoalmente ao candidato do PT em sua primeira passagem
por Esperantina, ainda no primeiro mês de campanha. Em uma
caminhada pelas ruas do centro comercial da cidade, encontrei-me

56
com Wellington e nos abraçamos. Naquele momento, mesmo sob os
olhares furiosos e reprovadores de meus adversários, travei com o
candidato o seguinte diálogo:

_ Wellington, o amigo é muito bem vindo


em nossa cidade.
_ Felipe, você tem feito um trabalho
extraordinário. Seu lugar é ao meu lado, me apoiando. Acredite em
mim, eu serei o próximo governador.
_ Eu não tenho dúvida de que você é o
melhor nome para governar o nosso Piauí, e você não faz idéia do
quanto que gostaria de estar lhe apoiando, mas eu não posso. Você
conhecesse a situação política aqui e sabe que não há espaço em
seu palanque para este amigo. Mas saiba que, embora trabalhando
arduamente pela reeleição do Hugo, em momento algum faremos
menção ao seu nome, ferindo-lhe com injustiça e comentários do
qual você não é merecedor.
_ Mesmo sentido por não tê-lo do meu
lado, agradeço. Conte sempre comigo.

Cumpri fielmente minha promessa,


chegando muitas vezes a enaltecer, nos palanques, as virtudes e
histórico de lutas populares de meu agora opositor. Mesmo sendo
vítima dos ataques de seus correligionários, homens a quem o
destino se incumbiu de sepultar nas urnas, mantive-me fiel aquele
abraço atravessando todo o período sem responder as agressões que
vinham de seu palanque. Sofri calado. Foi a forma que encontrei de
contribuir com a candidatura daquele homem, cuja capacidade
sempre me serviu de espelho para muitas das ações que empreendi
em favor dos mais humildes.
Aquela campanha nunca mais nos sairá
das lembranças. Assim como uma onda de terrorismo, fomos vítimas
de uma seqüência interminável de perseguições. Nossos cartazes
eram arrancados ao longo das madrugadas e os cavaletes com o
nome e número de nossos candidatos recolhidos por carros oficiais.

57
No dia seguinte a cada reunião nos bairros e povoados, nossos
anfitriões eram visitados em seus lares e severamente ameaçados. A
preocupação entre os chefes políticos locais, diferente de outras
eleições, não residia agora na eleição dos candidatos que
representavam, e sim na caçada impiedosa e incansável aos nossos
eleitores cujos votos, diziam eles, deveriam ser mudados a qualquer
preço.
A medida que o tempo de campanha se
esvaia, aumentava neles o desespero. A cada pesquisa de intenção de
votos realizada no período, termômetro popular que revelava o
impressionante crescimento dos candidatos apoiados por nosso
movimento, assistíamos a uma nova onda de violência vitimarem
nossos amigos e correligionários da mesma causa. Usando de
mentiras, encampando calúnias e promovendo todo tipo de
desordem, os coronéis locais começaram a provar do próprio
veneno, sendo vítimas de seus próprios intentos. A cidade, cada vez
mais distante do controle opressor que impunham, lotava nossos
comícios e gritava em praça pública, em número cada vez maior, o
grito de aprovação aos nossos candidatos. Desesperados com a
eminente derrota, adentraram-se os coronéis em território insano,
onde inexistem a razão e o senso de piedade cristã. Reunidos às
vésperas das eleições de 6 de outubro de 2002, decidiram pelo pior.
Entre eles, não havia mais o que discutir: era chegada a hora de
eliminar-me ao velho modo. O cangaço, que no início do século
passado havia feito, em Esperantina, verter ao chão, em praça
pública, o sangue de vários ciganos indefesos, ganhava nos dias
atuais uma nova versão. Como última alternativa de espalhar o
pânico no município e tentar, em vão, obter resultados positivos nas
urnas por intermédio da força e do terror, o repórter Felipe Santolia
deveria ser expatriado da mansão dos vivos - baleado, crucificado e
queimado enquanto ainda respirasse, assim diziam. Desta forma,
acreditavam eles, que todos compreenderiam que se o mais forte
fosse tombado ao chão, como não encerrariam os dias aqueles que
ousassem me seguir, numa afronta ao poder que eles conservavam a
mais de quatro gerações?

58
O plano, perfeito sob o aspecto negativo
da criminalidade, acabou por naufragar dado a incompetência de
quem o pôs em prática. Atendendo às máximas de que não há crime
perfeito e que este não compensa, escapei com vida, embora que
torturado e, como insistem os tablóides, crucificado por seis longas e
difíceis horas não em uma cruz, mas em um pé de Guabiraba.

22 – A MORTE CANTA
AO TELEFONE

Os dias, a medida que se aproximava o


momento do voto, tornavam-se mais atribulados e imprevisíveis.
Coordenar aquela campanha foi uma das tarefas mais difíceis que já
havia realizado. Diferente da campanha política de 1996, quando
assumi o setor de Comunicação do então candidato a prefeito de
Esperantina – Francisco das Chagas Rebêlo – o Chagô, a de 2002
trouxe-me experiências cuja a vida ainda não havia me
oportunizado. Além dos discursos em torno dos nossos candidatos,
da clipagem que se faz da grande imprensa para reprodução na
Rádio Humanitária Chibata FM, e da dinamização do palanque e
das atividades de grande concentração popular, havia mais a ser
exigido de mim. Adentrava-me em novo território, lugar a ser
desbravado e por onde deveria me guiar pelo instinto, já que me
faltava experiência para reproduzir decisões já experimentadas.
A todo instante um novo telefonema –
meio pelo qual ficávamos informados de todas as ações de nossos
candidatos. Incursionando incansavelmente pelo continental estado
do Piauí, Maria José e Júlio César, paralelo ao trabalho de
garimpagem de seus votos, davam notícias suas quase que
diariamente. Aprendi muito acompanhando-os, principalmente ao
Júlio César, de quem passei a ser mais próximo e um profundo
admirador de sua disposição para as práticas do bem. Profundo
conhecedor dos problemas do Piauí, Júlio César é um homem

59
sensível e talhado para exercer as mais altas funções de comando de
nosso Estado.
Nossa aproximação e a preocupação que
nutria em ajudá-los com idéias que consagrassem suas vitórias nas
urnas, pois a conquista daqueles mandatos representavam para nós,
em Esperantina, uma fortaleza para enfrentar as muitas injustiças
que nos abatiam, acabei me envolvendo em suas campanhas de
forma mais íntima e participativa. Sempre que possível, assessorava-
os e opinava em suas ações políticas encampadas em outras regiões
piauienses.
Nossa residência em Esperantina foi,
inevitavelmente, transformada numa espécie de comitê eleitoral.
Amanhecia, todos os dias, com um número cada vez maior de
eleitores, correligionários e voluntários, todos em busca das últimas
notícias, da programação a ser desenvolvida naquele dia e,
sobretudo, trazendo notícias da movimentação de nossos adversários
e opositores – fato bastante característico da tradição política do
interior nordestino. Inaugurava-mos, mesmo que sem perceber, a
política interativa, até então inexistente naquele sistema feudal em
transcorria as eleições no município.
A campanha em nosso município, a
princípio pequena e modesta, tornou-se quase que sem controle,
dado ao volume crescente das adesões que recebíamos. As reuniões
públicas, antes possíveis com o auxílio apenas de uma caixa
amplificada e de um quadro negro, foi dando vez a memoráveis
comícios que, dado a grande concentração de público, requeria
palco, sistema de som profissional, iluminação complementar e
outros adereços necessários ao sucesso dos eventos. Sem recursos e
órfãos de abastados apadrinhamentos locais, passamos a contribuir
nós mesmos para o custeio de nossa cruzada municipal em prol da
moralização da política piauiense. Dois amigos, que viviam da
locação de sons profissionais, sempre que estavam sem contrato
cediam-nos sem ônus suas estruturas de sonorização – datas para as
quais programávamos os grandes comícios. Com pequenas
contribuições, compramos 150 metros de fio 12, alguns bocais e

60
lâmpadas e fabricamos, nós mesmos, um sistema de iluminação que
passou a suprir as necessidades dos eventos. Quanto aos transportes
para a locomoção da nossa equipe e simpatizantes, para os muitos
pontos distantes em que atuamos, estes eram fartos e, muitas vezes,
seguiam vazios, não por falta de caronas, mas por excesso de
veículos. Os fogos, imprescindíveis nestas ocasiões, eram levados
pelo próprio público que nos ouvia. Integrados com nosso sonho de
ver Esperantina transformada em um dos mais justos lugares da
nação para se viver, participavam ativamente e somavam aos nossos
esforços em fazer daquelas noites de campanha, momentos de
grande valor para a história política do município.
Era 3 de outubro de 2002, uma quinta-
feira. Há três dias da eleição, acordei-me antes mesmo do sol e pus-
me na frente do computador para repassar todas as ações que
deveriam ser operacionalizadas ao longo daquele dia. A grande
aproximação com o dia 6 de outubro (Dia da Eleição) é para nós, no
nordeste brasileiro, um período melindroso, momento que requer
policiamento ostensivo em cima dos adversários e uma habilidade
douta em equacionar fatos imprevisíveis. Eu estava tenso, além de
apreensivo e como que pressentindo que algo muito grave estivesse
por acontecer.
Naqueles dias aumentavam os rumores de
que eu seria assassinado. Um vereador da cidade, conhecido por
Moacir Rabo de Bode, segundo muitas fontes, teria dito, na região
onde mantém uma propriedade rural, que líderes políticos locais
estariam tramando o meu assassinato. Moradores vizinhos de sua
fazenda, ouvindo-o falar, trataram de fazer com que a história
chegasse até mim como meio de evitar, a tempo, a tocaia que me era
armada. Porém, antes que a notícia alcançasse seu destino, seus
portadores cuidaram de compartilhar com muitas outras pessoas
daquilo que lhes foi confiado. Narravam o intento dos tiranos, nos
quatro cantos da cidade, com paixão e grande ar de indignação.
Preocupados com o futuro que me reservava os inimigos e, como
que a procurar por uma solução junto aos outros, contavam a história
acrescendo-lhe, como de costume, de detalhes, pormenores e, em

61
algumas versões, dando inclusive o nome do contratante, dos
pistoleiros, além do local e da hora em que tombariam-me o corpo
ao chão, sem jeito e já sem vida.
Mesmo conhecendo os exageros que se
misturavam à verdade das intenções, preocupava-me muito esta
onda de boatarias que se anexavam aos dias já conturbados daquele
início de outubro. Sabia, pela própria experiência, que onde há
fumaça, há também o fogo a causar danos muitas vezes irreparáveis
e às custas de grande sofrimento. Tinha, a meu favor, a legalidade de
nossos atos (o que pouco representa no Piauí de tantas exclusões) e,
graças ao nosso exército incontável de investigadores, uma idéia
significativa do movimento de nossos adversários naquele, cada vez
mais interessante, tabuleiro do poder. Minha fascinação pelo jogo de
xadrez, modalidade que aprendi a gostar ainda na pré-adolescência,
muito tem contribuído nesta etapa de minha vida, quando como que
estudando a importância das peças e suas movimentações
estratégicas no jogo, analiso com paciência e uso da exclusão por
hipóteses em cada batalha travada com os corruptos que caçamos.
Para combater a tirania, cuidei de estudá-la com profundidade.
Ouvindo outras vítimas como eu e comparando suas histórias com as
que aqueles quatro anos me permitiram testemunhar, mapeei, um a
um dos coronéis e seus principais capatazes, catalogando suas
virtudes e defeitos, percebendo o limite que cada um impunha a si
próprio e procedendo à análise da intensidade de seus interesses ao
ponto de arriscarem-se em participar de um atentado contra minha
vida.
Mas, tendo que estar em tantos lugares ao
mesmo tempo, despachando com os companheiros e ouvindo outros
tantos, resolvendo problemas que iam desde a cola que acabava aos
desentendimentos internos, fruto da sobrecarga de trabalho e do
estresse que provoca uma campanha, como ainda encontrar tempo
para sentir medo de morrer ou qualquer outro sentimento do
gênero? Não havia como parar. Segui com a embarcação no curso
normal da correnteza, enfrentando todas as quedas e peitando as

62
rochas que nos opunham no caminho já estreito e tortuoso pelas
limitações financeiras.
Nesta manhã, tomei café com mais de
vinte amigos que se apressavam em me narrar, alguns ao mesmo
tempo, as muitas histórias e estórias que precediam aquela Eleição
Majoritária de 2002.
Já no meio da noite, por volta das .......
horas, o telefone tocou. Como que de costume, foi atendido por
alguém da casa no ramal que fica na sala de estar, naquele momento
servindo de concentração para os muitos técnicos da nossa seleção.
Trancado em meu quarto, onde vestia-me para cumprir com a
agenda de visitas a serem feitas naquela noite, ouvi alguém bater na
porta e avisar-me de que um rapaz gostaria de falar-me ao telefone.
Agradeci e atendi na extensão que mantinha comigo no dormitório.

_ Alô!
_ Pois não.
_ Eu gostaria de falar com o Chibata!
_ É ele quem está falando...
_ Rapaz, aqui é o filho do Seu Manoel
Preto, meu pai é um grande admirador seu e a gente quer muito te
conhecer (...).

A conversa transcorreu normal, como


tantas outras que atendia diariamente. Meu histórico de luta e as
grandes polêmicas que protagonizava-mos fez de mim alvo de
grande curiosidade para os piauienses, sobretudo nas regiões em que
continuamos a atuar. O município de Esperantina, embora com 36
mil habitantes, é possuidor de grande área territorial, sendo a grande
parte localizada na zona rural e seus moradores, portanto, vivendo
numa realidade meio que paralela à urbana. Era comum sermos
procurados em nossa casa por esperantinenses até então
desconhecidos, que visitam a mim e Lys apenas para nos conhecer,
dizer o quanto nos admiram e deflagrar apoio a nossa causa. Somos
muito fotografados e temos por hábito dedicar-lhes mensagens

63
escritas de próprio punho, por ocasião das visitas, onde falamos de
coragem, de união e de um mundo onde se viva em melhores
condições de vida, gozando de mais dignidade.
Aquele rapaz dizia, ao telefone, que sua
família reconhecia a grandeza de nossa luta e que, para que a alegria
fosse maior, formulou-me convite para que eu fosse até sua casa, em
um povoado distante da cidade, para que seu pai finalmente me
conhecesse. Lembro-me de ter ouvido dele que sua família era
numerosa e que todos, reunidos, dariam aos nossos candidatos a
generosa votação de quinze votos. Aquilo me fez vibrar, não podia
haver notícia melhor do que, há dois dias do pleito, uma família
inteira da qual nós não tínhamos conhecimento, deflagrar tão
substancial apoio eleitoral. Ainda no telefonema, o rapaz que se
identificava apenas como filho do Seu Manoel Preto, deixava revelar
a vontade da família em adquirir junto a mim quinze camisetas com
o nome e número dos candidatos – artigo bastante disputado entre os
eleitores mais humildes durante os períodos eleitorais.
Achei aquilo tudo muito natural,
predispus-me a ir ao encontro dos novos amigos na manhã do dia
seguinte, 4 de outubro, dia em que se homenageia meu santo de
devoção – São Francisco de Assis.

_ Não, não dá certo. Infelizmente,


Chibata, e nós não queremos que você nos leve a mal, você não
pode vir durante o dia aqui em casa. Você sabe... O papai trabalha
para o prefeito, o José Ivaldo, tem as perseguições, ele pode
prejudicar...

Meu interlocutor reagiu com descontento


e preocupação ao fato de que só poderia estar junto aos seus
familiares na manhã do dia seguinte. Expliquei-lhe que aquela altura
da noite já havia contraído outros compromissos, os quais precisaria
cumpri-los, sob pena de perder muitos votos. Naquela noite,
seguindo a antiga tradição adotada pelos umbandistas da terra, à
meia noite rufavam-se os tambores dos terreiros numa homenagem a

64
São Francisco de Assis, que no sincretismo religioso da Umbanda
representa a figura do ..................... . Mesmo católico por batismo e
tradição, ainda que simpatizante do preceito kardecista que tem a
reencarnação como um dogma espiritual, sempre tive o cuidado de
manter uma postura ecumênica diante das muitas tendências
religiosas praticadas em Esperantina, pois acima das minhas
preferências doutrinárias estavam os interesses do movimento em
arregimentar a todos para nossa revolução social. Convidado para
missas, cultos e manifestações afro-brasileiras, comparecia a todas
que me eram possível, o que acabou me rendendo o carinhoso título
de patuá dos cavalos de orixás – alusão que muito me orgulha e
causa felicidade entre os umbandistas.
Expliquei-lhe ao telefone pacientemente a
impossibilidade de atender-lhe naquela noite. Insistente em remover-
me da negativa, o filho do Seu Manoel Preto soube, a exemplo
daqueles que me conheciam com profundidade, exibir-me um bom
argumento que faria com que eu fosse ao seu encontro na madrugada
que se aproximava.

_ Você precisa vir esta noite, é muito


importante. Meu pai sabe coisas sobre o prefeito que vão te deixar
muito interessado. São coisas horríveis que ele anda praticando por
aqui. É muito importante que você venha, pode acreditar, você vai
entender...

Havia um grande mistério, e o fato de que


seu pai tinha grandes revelações a me fazer sobre o prefeito de
Esperantina foi a gota d’água para que aceitasse ao convite para
aquela pequena viagem, em horário inconveniente, ao interior.
Estava decidido, iria ao encontro, naquela madrugada, da família do
Seu Manoel Pedro.

_ Tudo bem, faça o seguinte... Eu estou


muito cansado e devo permanecer pouco no Centro de Umbanda.

65
Creio que lá pelas duas horas eu deva estar chegando por ai. Você
acha tarde?
_ Não! Está ótimo, o horário é bom
porque, como já te disse, o papai trabalha para o prefeito, e assim
ninguém vai te ver.
_ Me explique direitinho como eu faço
para chegar até o interior de vocês, a casa...
_ Não tem segredo, você segue a pista
que dá acesso ao município de Joaquim Pires, logo depois do (...).

Encerrado a conversa, desliguei o


telefone. Havia muita gente em casa e, naquele momento, meus
adversários realizavam seu último comício em praça pública central.
Uma equipe nossa estava em ponto estratégico filmando o evento. O
entre e sai de informantes era intenso. Esqueci do telefonema por
algum tempo, mas antes tivesse o esquecido para sempre.
Por volta das duas e meia da manhã
chegava eu ao local descrito pelo rapaz do telefone. À margem da
rodovia de acesso ao norte do estado, a região era escura e desértica.
Dois motoqueiros me aguardavam à beira da pista, com os piscas
alertas acionados. Estacionei o carro acreditando ser um deles o
filho do Seu Manoel Preto. Era ele, mas usando de falsa identidade.
Ao invés das camisas, queriam tirar de mim minha própria vida. Os
momentos os quais passei a viver foram violentos e causadores de
grande sofrimento. Meu sangue foi derramado ao chão por
intermédio de um ritual de torturas sem precedentes na história do
sertão piauiense, algo que, com justa razão, faz-nos reportar aos
tempos da barbárie de Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião.
Era a própria morte a me telefonar
cantando-me uma cantiga que, se não fossem os contratempos, teria
me feito calar para ouvi-la eternamente.
Firmou-se em mim a certeza de que não
se parte em trem de véspera, e que minha estada nesta instância de
meu existir estaria assegurada por Alguém Maior, com poder
infinitamente além daquele, mantido pelos coronéis de Esperantina.

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Sabia estar sob o olhar d’Ele próprio, pois é humanamente
impossível enfrentar a todos, e agora de uma só vez, logrando
vitórias que sempre me pareceram fáceis, dado a esta força que me
faz revolucionário sem temor algum.
Ao me apresentarem à morte fizeram-me
íntimo dela. Não há traços de horror em suas feições. Ela me sorriu
e, com delicadeza, também sorri para ela.

23 – HÁ MUITO MAIS NA
LIBERDADE DO QUE O MERO
PODER PELO QUAL SE DESTRÓI

_ Chibata! Para ai Chibata!

O lugar deveria ser aquele. Um dos dois


rapazes, que me acenavam da beira da pista, deveria ser o filho do
Seu Manoel Preto – o rapaz que prometia acrescentar aos nossos
esforços eleitorais quinze votos e ainda, de lambujem, contribuir
para minhas investigações sobre o assombroso esquema de
corrupção de José Ivaldo Franco (prefeito de Esperantina).
A noite, razoavelmente clara, e com os
piscas de alerta da motocicleta acionados, criaram um ambiente com
iluminação suficiente para que eu visse, tendo ainda na memória, os
dois homens que estavam de pé, na margem daquele acostamento.
Havia um moreno claro, idade
aproximada de 40 anos, corpo franzino e, aparentemente, de estilo
calado, introvertido. O outro, diferente do primeiro, bem mais
escuro, cerca de cinco anos mais jovem, corpo atlético, pouco mais
alto (cerca de 1,80 m) e trejeitos de malandro, muito falante e
apelativo. Este último, dono de uma voz bastante grave, fez-me
reduzir a velocidade, avançando sobre a pista e chamando-me pelo
apelido. Sinalizava para que eu estacionasse. Reconheci a voz, era
definitivamente o rapaz do telefonema.

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(trecho do meu depoimento na Secretaria
de Segurança Pública do Estado do Piauí onde eu falo do momento
da rendição até a hora que eu acordei)

Não existem palavras para descrever a


intensidade da dor que senti ao ter aquele prego transfixado a palma
da minha mão. Com a espessura similar a de uma caneta
esferográfica Bic tradicional, atravessou-me a carne em um único
golpe, seco, violento e sofrido. A dor que senti na alma, de tão
intensa, fez-me voltar à consciência. Era como se meu espírito
estivesse em brasas e minha carne em fogo. Parecia um pesadelo e
custava a acreditar. Em dado momento, creio que desacreditado do
que via, tomei sentido daquela situação de horror. Foi como se
minha alma abrandasse, o que me permitiu analisar melhor aquilo
tudo, a fim de buscar uma luz a iluminar uma saída.

(trecho do meu depoimento na Secretaria


de Segurança Pública do Estado do Piauí onde eu falo do momento
em que acordei e tive a boca amordaçada)

A minha situação era de total imobilidade.


Encontrava-me com a mão esquerda pregada em um tronco de
Guabiraba (madeira verde), o que me provocava dores das quais
jamais me esquecerei. Minha mão direita foi amarrada junto ao
pescoço, e os dois no tronco de uma árvore fina que havia bem
próximo (aproximadamente um metro de distância do pé de
Guabiraba). Os pistoleiros utilizaram-se para isso de um pedaço de
arame farpado de pouco mais de um metro de comprimento o que,
dado meus esforços contrários, acabou causando em mim vários
ferimentos. Como se não bastasse, ainda tive a boca amordaçada
com firmeza, o que completou me estado de imobilidade. Mesmo
sem poder me pronunciar direito, tentei, em vão, negociar com o
moreno claro e franzino, pois era evidente sua posição de comando
entre os dois. Com a voz deformada pela amarra – mas ainda assim

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era possível compreender o que eu dizia, pedi a ele, em nome de
Deus, que parasse um pouco para me ouvir, que me desse uma
chance para que eu esclarecesse algumas coisas. Aleguei que poderia
arrumar dinheiro e que nada daquilo seria levado ao conhecimento
das autoridades. Não pedi os nomes daqueles que os haviam
contratado e nada mais disse que o fizesse sentir delator – crime na
Lei da Pistolagem punido com a morte do infrator. Apenas implorei,
chorando copiosamente, que me ajudasse a encontrar uma forma de
continuar vivendo. Tentei fazê-lo ver que estava sendo sentenciado
daquela forma por amar e defender os humildes, pessoas como eles.
Contei que eu era uma espécie de protetor para a pobreza e que, por
me posicionar contrário às ações daqueles que oprimem nossa gente,
fazendo do povo nordestino uma nação de miseráveis, estava sendo
sentenciado com a morte por sofrimento. Clamei por misericórdia.
Falei, reiteradas vezes, em nome de Jesus Cristo.
Meus esforços caíram por terra. Estava
diante de dois matadores de aluguel – espécie humana com quem a
força do diálogo e da razão tornam-se impotentes. Seus ouvidos são
como os do surdo e seu coração um rochedo sólido e sem vida.
Depois de contratados, apenas benziam-se como que a preencher o
lugar vazio da consciência.

(trecho em que o moreno claro grita


comigo e dispara contra minha coxa direita um tiro. Em seguida
saem em busca de um suposto vasilhame de gasolina. Ameaçavam-
me queimar-me vivo)

O barulho da motocicleta deixando o


local, o que deveria me causar alívio e esperança, deixou-me ainda
mais tenso e temeroso. A promessa dos pistoleiros de retornarem ao
local para incendiar-me vivo, trouxe-me à lembrança a imagem do
índio Pataxó carbonizado, enquanto dormia, em um ponto de ônibus
da capital da República. Fui tomado por um pânico do qual jamais
havia experimentado antes. Tentava raciocinar, buscando entender
aquele episódio, mas a idéia de vê-los retornar com o vasilhame de

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gasolina impedia-me de ordenar o raciocínio em busca de uma saída
para escapar com vida daquela tocaia. Aqueles mesmos pensamentos
devem ter povoado a cabeça do jornalista Tim Lopes antes de sua
execução. Chorei, pois pressentia que havia chegado o meu fim e, o
que é pior, de uma forma triste, horrível de se imaginar.
Pus-me a rezar com ardor, invocando ao
próprio Cristo para que tivesse piedade de mim. Lembrei-me de que
era madrugada do dia 4 de outubro, dia de meu santo de devoção
São Francisco de Assis. Pedi sua intercessão e implorei a ele que
requisitasse junto a Deus um exército de anjos e arcanjos que
pudessem, se não remover a idéia fixa daqueles homens em me
carbonizar, cuidar de atrapalhá-los em seu percurso e impedi-los, por
uma razão qualquer, de retornar ao meu encontro. Lembro-me que,
por várias vezes, veio a minha mente a imagem do Dr. Franklin de
Paiva Oliveira Neto. Quanto mais pensava, maior se tornava minha
suspeita de sua participação naquele crime impiedoso.
Sentindo muitas dores e com o espírito
em aflição, sucumbi ao próprio cansaço, adormecendo por alguns
momentos. Acordei sobressaltando. Havia mais alguém comigo.

(trecho do momento em que ouvi passos


de mais de uma pessoa vindo em minha direção)

O dia começava a dar os primeiros sinais


de vida, fazendo a luz chegar por entre as galhas das árvores,
timidamente. Depois de algum esforço, consegui encontrar, usando
para isso as pontas dos dedos de minha mão direita, os extremos do
arame farpado que me ameaçava degolar. Girando os arames ao
inverso, experimentei da felicidade de conseguir, por minha própria
conta, separá-los e, empreendendo algum esforço mais, livrei-me do
arame por completo. Sem ele e a mordaça, experimentei novamente
a emoção de estar vivo, era como se estivesse a um passo de casa,
protegido, longe daquele lugar. Precisava de tirar aquele prego de
minha mão, a fim de me libertar, mas a coragem para o feito parecia
sobre-humana e por demais impossível. A dor intolerável que

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experimentei em tentar remover o prego me fez desistir por
completo do intento. Minha mão, que permaneceu imóvel ao longo
daquelas seis horas, estava irreconhecível. A cabeça do prego havia
sumido no meio do inchaço provocado pelo ferimento. Usando de
certo malabarismo consegui ficar de joelhos, o que me possibilitou
avistar, a cerca de uns cem metros de onde estava, uma clareira.
Percebi logo que se tratava da rodovia por onde carros passaram a
cruzar. A cada nova oportunidade, ouvindo-os aproximarem-se em
alta velocidade, gritava por socorro. Esforço em vão. Minha voz
estava fraca e não se fez ouvir.
Já era dia. Sentia-me esperançoso e
acreditava, cada vez menos, na possibilidade de meus assassinos
cumprirem sua promessa de retornar para incendiar-me vivo. Gritava
com toda a força que ainda tinha nos pulmões. Fui tomado de novo
desespero. Estava fraco e bastante ferido. Morreria de fome, sede e
dor.

(escolher um trecho, do meu depoimento


ou de outrem, que descreve o momento em que fui salvo por
populares)

Deitado sobre as pernas daquele


desconhecido, fui tomado de grande emoção. Estava vivo, salvo e a
caminho de casa. Veria novamente minha esposa, meus filhos, meus
amigos. Chorei como um recém-nascido, pois o era de fato.
Toda a dor parecia ter sumido, pois ela
tornou-se insignificante diante da alegria que sentia de estar vivo e
com coragem redobrada para continuar combatendo o bom combate.
As lágrimas que derramei eram sinais do meu agradecimento a
Deus, por ter-me socorrido em momento de grande aflição. Pela
primeira vez sentia-me salvo por um santo – São Francisco, o
pobrezinho de Assis. Toda dor e incerteza que experimentei naquelas
seis horas de tortura, agora me pareciam a assinatura do tratado
definitivo que me uniria para sempre com aquela causa – o Nordeste
Brasileiro. Precisava, a partir dali, estudar um meio de acordar a

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nação para as coisas que vivemos nesta terra sem lei. Somos
homens, mulheres e crianças vivendo os horrores de uma ditadura
que nunca passou. Seus remanescentes estão aqui, entre nós,
açoitando-nos sem dó nem piedade. Somos um Brasil diferente –
filho do cruzamento entre a covardia dos tempos militares com os
horrores de um passado presente – o cangaço.
Havia uma razão para que Deus houvesse
me permitido continuar vivendo. A revolução que travamos em Seu
nome prosseguiria, e de agora em diante, de forma mais veemente e
determinada, exercitaria aquele ideal. Seremos duros na queda e
dóceis na solidariedade. Testemunharei, junto a eles, a vitória do
sertanejo sobre os coronéis desta terra de Marlboro.
Não importa o valor da causa, haveremos
de pagar o preço. Há muito mais na liberdade do que este poder pelo
qual se destroi e se mata.

24 – DE VÍTIMA A AGRESSOR

_ Alô!
_ Lysmara, é você?
_ Diga...
_ Eu não tenho uma notícia muito boa
para te dar. Acharam o Felipe morto na estrada de Joaquim Pires...

Minha mulher sentiu suas mãos ficarem


trêmulas e um calafrio tomou-lhe conta do seu corpo.
Isso é um pesadelo, pensou ela. Logo
acordaria para recomeçar, ao meu lado, aquele penúltimo dia de
campanha eleitoral.
O portador da notícia, um comerciante
amigo nosso, não demorou a ver, diante de si, a figura atônica de
Lys que, em estado de choque, adentrou em seu supermercado ainda
incrédula do que ouvira.

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Começava ali, por volta das 9 horas da
manhã daquela quinta-feira, 4 de outubro, um drama que levaria a
cidade inteira a um estado de comoção e de loucura. Assim como
um raio a partir o céu em dois, a notícia de minha morte alastrou-se
pela cidade e pelos muitos povoados do município. Mulheres
choravam e se batiam nas ruas, o soluço das crianças
esperantinenses eram ouvidos por toda a parte. Carros, motocicletas
e um sem fim de bicicletas passaram a cortar as ruas em busca de
informações. Buzinas e rádios a toda altura acabaram por moldar o
estado de pandemônio em que se viu transformada a nossa já
tumultuada terra da esperança.
Acionado por vários segmentos da
sociedade, o secretário de Segurança do Estado do Piauí – Antonio
José de Moraes, um bravo delegado da Polícia Federal aposentado,
determinou imediatamente o deslocamento para Esperantina de uma
equipe especial formada por militares e civis, todos a bordo do
helicóptero da Secretaria. Delegados e policiais da região foram
convocados a agir e a imprensa da capital, sempre ávida por fatos
novos, passou a noticiar o caso em todos os seus jornalísticos. As
informações desencontradas e, não raras vezes destorcidas,
ocuparam rapidamente os muitos sites do mundo inteiro. Jornalistas
dos maiores jornais do mundo ligavam a fim de saber pormenores
sobre o Caso do jornalista crucificado vivo no Piauí.

(expor um mural com vários recortes do


Brasil e do mundo sobre o caso)

O Fiat Uno que me transportava do local


da tortura até o Hospital Estadual Júlio Hartman seguia rápido, com
seu motorista visivelmente aturdido. No banco de trás do carro, com
a cabeça deitada sobre o colo de alguém que só viria conhecer
alguns meses mais tarde, encerrava-me entre a dor dos ferimentos e
a alegria de ter escapado com vida da tocaia de meus inimigos.
Ainda tomado de susto e certo pânico, me era impossível prever o
drama que se abatera nas ruas.

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A medida que nos aproximávamos do
hospital, lembro-me de ter ouvido vários outros veículos juntarem-se
ao nosso. Derrepente, o freio. Havíamos finalmente chegado. A
viagem me parecia sem fim, a ansiedade fez com que aquele
percurso se tornasse longo e aparentemente interminável.
A porta do carro se abriu e, naquele
momento, pude perceber o tamanho do transtorno que aqueles dois
miseráveis (os pistoleiros) e seus contratantes haviam causado na
população. Uma multidão tomou conta das ruas do hospital. Alguns,
mais nervosos e desesperados, tentavam entrar no prédio forçando
seus portões e derrubando tudo o que viam pela frente. Fui posto na
maca por uma quantidade incontável de mãos. Tudo era muito
confuso. Pessoas debruçavam e choravam sobre mim como se eu
estivesse morto. Fui sufocado por uma multidão descontrolada e
mostrando cada vez maior exaltação. Gritos e desabafos inflamados
confundiam-se numa balbúrdia cada vez mais sonora.

(Trecho do depoimento do Dr. Jóe


falando do momento em que eu fui levado para o atendimento)

O estado precário do hospital público e o


sucateamento do aparelho de radiografia limitaram os médicos e
enfermeiros a um atendimento superficial. Preocupados com a
possibilidade de uma hemorragia ou de algum dano interno maior,
resolveram pela minha imediata remoção para um hospital da
capital, onde deveria ser submetido a uma bateria de exames para
haver um diagnóstico mais preciso.
Segui na ambulância do Júlio Hartman,
deixando para trás uma legião de aflitos e um sentimento de
vingança coletivo que acabaria por levar, poucas horas depois,
milhares de pessoas a ocuparem as ruas da cidade a pedir por justiça.
Já em Teresina (capital do Piauí), fui
recebido na emergência do Hospital Estadual Getúlio Vargas por
uma equipe médica que aguardava pela minha chegada. Ao abrirem
a porta traseira da ambulância fiquei assustado com o exército de

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repórteres, cinegrafistas e fotógrafos que disparavam seus flashes
ininterruptamente contra mim.
Fui levado para uma sala de atendimento
médico onde fui examinado e, depois de bater algumas radiografias,
autorizado para ir para casa, onde deveria repousar. Meus
ferimentos, embora profundos e doloridos, não me colocavam sob
risco de vida. Foi feito um curativo na mão que foi pregada e,
quanto ao tiro, a bala havia transfixado a coxa direita, não causando
danos ao osso e nem ao nervo. Tive sorte, o projétil havia
atravessado apenas o músculo. Sai do hospital caminhando com os
próprios pés, sem precisar da ajuda de muletas ou de uma cadeira de
rodas.
Hospedei-me em um hotel no centro da
capital, onde permaneceria até o dia seguinte, sábado, dia 5 de
outubro de 2002 – véspera da eleição. Sentia-me bem, mas
apreensivo. Uma tempestade armava-se no céu de Esperantina e,
mesmo sem sabê-la, pressentia sua aproximação. Era a matilha
predadora agindo em minha ausência. Um novo ataque estava sendo
preparado por meus algozes. E desta vez, não haveria tempo para
desarmar-lhes a tocaia. De vítima, transformariam-me em agressor.

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