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1. INTRODUÇÃO
Canaã (1902) é uma obra do cânone literário brasileiro geralmente lembrada por
se apresentar como um romance social – ou mesmo de tese – sobre a imigração alemã e
as questões raciais no Brasil. Nela, o debate travado entre os personagens Milkau e
Lentz não se restringe a questões políticas e históricas. Ao tratar delas, eles penetram
nos campos da filosofia da história e da metafísica, considerando a história humana
implicada na história natural e a natureza, por conseguinte, como um elemento
fundamental na avaliação de qualquer utopia, seja de caráter socialista ou mesmo
fascista. Tal fato permite uma leitura da obra do ponto de vista da ecocrítica, até mesmo
porque Canaã apresenta mais duas outras características que a tornam um dos raros
casos na literatura brasileira de um romance que já realiza no início do século XX um
debate ecológico muito próximo ao que hoje é tão marcante no cenário global: nela, o
interesse humano não é visto como o único legítimo e a responsabilidade humana sobre
a preservação da natureza encontra-se na orientação ética do texto – ainda que seja um
problema secundário. No entanto, os fatos apresentados pelo narrador no transcorrer da
narrativa paulatinamente corroem a crença na pastoral romântica, destruindo pouco a
pouco os alicerces da fé na bondade natural do ser humano e, por conseguinte, na
construção de uma sociedade fraterna e socialista. Por tal razão, Canaã se apresenta
como um romance de tese falho ou – no mínimo – extremamente contraditório, posto
que a aparente tese defendida na obra – que se encontra no discurso do protagonista,
Milkau, e nas ambientações impressionistas do narrador – é contrafeita pelos fatos
narrados (e portanto selecionados) pelo mesmo narrador que se identifica com Milkau e
sua visão romântica sobre o homem e o universo. Esse paradoxo é a questão para a qual
queremos chamar a atenção no presente trabalho.
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através da literatura romântica. Sobre essa tradição nomeada de “pastoral”, comenta
Greg Garrad (2006, p. 54):
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característico do primeiro momento da arte impressionista. Diversamente, temos um
impressionismo romântico (SILVA, 2004), pois marcadamente subjetivo e simbólico. O
confronto do excerto que segue, do segundo capítulo da obra, com o famoso soneto
“Correspondências”, de Charles Baudelaire, que é sempre apontado como exemplo da
concepção simbolista da natureza e do universo, demonstra a pertinência da afirmativa
feita sobre a presença de um estilo impressionista e de uma concepção de mundo
romântico-simbolista nas representações da natureza, em Canaã:
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fonte de repouso da mata... O silêncio que mora na floresta é tão
profundo, tão sereno, que parece eterno. Feito das vozes baixas,
dos murmúrios, dos movimentos rítmicos dos vegetais, é completo
e absoluto na sua perfeita harmonia. (ARANHA, 2005, p. 35-6 –
Os grifos são de minha autoria.)
Embora Ana Balakian (1985, p. 33) e Luiz Costa Lima (1980, p. 119)
considerem que a idéia das correspondências universais – conforme apresentadas por
Swedenborg – não impliquem em uma transcendência no soneto “Correspondências”,
de Baudelaire, considerando portanto que, nele, as sinestesias são totalmente terrestres,
remetendo a uma vaga religiosidade panteísta ou a uma estrita materialidade, tal não é a
opinião dominante na recepçao crítica e na maneira como, em geral, esse soneto foi
recebido e divulgado. Quase sempre, quando abrimos os manuais de história da
literatura na parte referente ao Simbolismo, encontramos esse soneto como exemplo da
crença nas analogias e correspondências universais existente na arte simbolista. E é essa
interpretação do soneto que queremos destacar em confronto com a passagem de Canaã
acima apresentada.
É interessante notar que, na idealização da desordem da floresta, a idéia base do
evolucionismo, de que existe uma luta pela sobrevivência que seleciona os indivíduos e
as espécies, é anulada em favor da existência de uma relação amorosa orientada por
uma secreta harmonia cósmica. Não há sacrifício nem morte, apenas cooperação,
“solidariedade orgânica viva” e, por conseguinte, renovação. A necessidade egoísta que,
segundo Schopenhauer (19--), tem a vontade de devorar a vida para renovar-se (idéia
com a qual concorda Lentz) é vista como uma necessidade do Amor. Para representar
esse cosmos, o narrador representa a selva tropical – visto a correspondência entre todos
os seres – como sendo uma catedral, espaço sagrado, de paz, silêncio e harmonia. Assim
como no soneto de Baudelaire, a Natureza é uma catedral, ou seja, “um templo” (“La
Nature est un temple”); o vento provoca “os movimentos ritmicos dos vegetais”, cujos
sons são percebidos como “vozes baixas” e “murmúrios” – o que corresponde ao
murmúrio de confusas falas (“confuses paroles”); os sons, as cores, os perfumes, “os
movimentos dos vegetais”, os “animais ocultos no segredo da floresta” e até mesmo “as
parasitas [que] se enroscam pelos velhos trocos”, se encontram em “perfeita harmonia”
(“Les parfums, les coulers et les sons se répondent”). É como se Graça Aranha tivesse
transposto os siginificados e imagens do soneto abaixo para a ambientação vista acima.
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que eram a ossadura do monstro. Mas o fogo avançava sobre eles,
interrompendo-lhes o prazer. [...] A nevrose do pavor centuplicou-lhes
as forças. Os pigmeus que se não mediam com as árvores, e que, não
podendo vencê-las, tinham recorrido ao fogo, agora, sob o aguilhão da
defesa própria, se arrojavam contra os paus com o denodo de gigantes.
[...] O fogo não tardou a penetrar num pequeno taquaral. Ouviram-se
sucessivas e medonhas descargas de um tiroteio, quando a taboca
estalava nas chamas. O fumo crescia e subia ao ar rubro, incendiado;
os estampidos redobravam, as labaredas esguichavam, [...] Farto de
devorar a carne dura do bambual, o fogo desafogou-se, e célere, e
lépido, foi veredando por um atalho [...].
Os colonos e trabalhadores semimortos voltavam a casa, logo
que se reconheceram senhores do perigo, invencíveis sacrificadores da
terra.
À noite, da varanda, quando as estrelas em ritmo moroso
parecia caminharem para no céu, Milkau chamava na sua imaginação
a vinda dos tempos sem violência, e os outros miravam numa
diabólica satisfação a mata esbraseada a estorcer nas agonias o
incêndio. (ARANHA, 2005, p. 84-86 – Os grifos são de minha
autoria.)
Não é meu objetivo, aqui, evidentemente, apresentar uma análise profunda das
utopias e valores sócio-políticos dos personagens Milkau e Lentz, mas tratar dessas
questões apenas na medida necessária para esclarecer que cada concepção sobre as
relações entre o homem e a natureza está ligada a uma concepção de natureza e de
sociedade.
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Conforme já indicamos, Milkau concebe a natureza como harmônica e sagrada,
expressando um sentimento panteísta que se encaixa na tradição de um pensamento
romântico que, na Alemanha, tem suas raízes na literatura de Goethe e na escola de Jena
(representada, entre outros, pelos irmãos Schlegel, Schiller, Novalis, Tieck), passando
pelo misticismo de um Willian Blake, na Inglaterra, pelo “bom selvagem” de Rosseau,
na França, ou pelo Transcendentalismo, nos Estados Unidos da América, corrente de
pensamento fundada sobre as obras de Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson.
O que Karin Volobuef (1999, p. 122) afirma a respeito da concepção de Natureza no
romantismo alemão, vale para todos:
Para coroar essa utopia cósmica, concebe-se que a sociedade ideal tem que ser
fundada no amor e na solidariedade. Milkau rejeita o trabalho como caminho para a
acumulação de capital, riqueza e poder. Seu sonho é uma sociedade de caráter socialista,
ou mesmo anarquista, visto sua rejeição à intervenção do Estado: “O que é lamentável
nesta solenidade primitiva é a intervenção do Estado...” (ARANHA, 2005, p. 74), diz
ele em uma de suas conversas com Lentz. Na visão que Milkau tem das colônias
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alemãs, “a propriedade torna-se cada dia mais coletiva, numa grande ânsia de aquisição
popular, [...] o sentimento da posse morrerá com a desnecessidade, com a supressão da
idéia da defesa pessoal, que nele tinha o seu repouso...” (Idem, ibidem, p. 74). Neste
cenário, cabe à América o papel de terra prometida e regeneradora das civilizações
decadentes do Velho Mundo: “Vendo-os [os colonos], eu adivinho o que é todo este
País – um encanto de bondade, de olvido e de paz. Há de haver uma grande união entre
todos [...]; não se imolarão vítimas aos rancores abandonados na estrada do exílio.
Todos se purificarão” (Idem, ibidem, p. 74).
Muito diverso é o pensamento de Lentz. Para ele a miscigenação racial é
degeneradora e as raças superiores devem eliminar as inferiores, conforme considera ser
a brasileira.
A síntese da utopia de Lentz está no seu sonho, no final do capítulo três, que
transcrevemos parcialmente abaixo:
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eternamente na força da Natureza que dominariam como uma vassala,
e senhores, e ricos, e poderosos, e eternos repousariam para sempre na
alegria da luz... (ARANHA, 2005, p. 70-71)
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sobre ele exercia uma influência satânica, lhe alterava o caráter, o
punha fora de si e era a causa desse horror [...]. À medida que o
teodolito ia desaparecendo na caixa, a alma de felicíssimo ia-se
libertando da angústia, e o seu jovial humor o retomava francamente,
apagando os traços da agonia científica. (ARANHA, 2005, p. 81-82 -
Os grifos são de minha autoria.)
Como vemos, a oposição apontada por Xavier Placer e Alfredo Bosi não se
restringe ao nível das formas composicionais, pois reside num outro mais profundo, que
é o ideológico. Em Canaã, duas visões de mundo antagônicas convivem – não sem
conflitos – lado a lado: as idéias do determinismo científico e do evolucionismo, por um
lado, e do idealismo romântico-simbolista, por outro. A tensão que há entre os
discursos e as utopias de Milkau e Lentz também ocorrem no discurso do narrador e,
por conseqüência, na relação contraditória entre o significado simbólico dos fatos e das
peripécias, que compõem a trama da narrativa, e a tese que aparentemente está sendo
defendida na obra, que é a de Milkau. O narrador que simpatiza com ele, de modo a
narrar de um foco muito próximo ao seu ponto de vista, é o mesmo que desfila uma
série de macabros fatos que somente parecem simbolizar a vitória da natureza egoísta
do ser humano (seria a Vontade schopenhueriana?) e a impossibilidade de uma
sociedade harmônica, com as relações sociais fundadas no amor e na solidariedade. Da
mesma forma que reedita a crença em certos estereótipos racistas (aceitos, na época,
como verdades científicas) de identidades raciais e nacionais, o narrador também
reafirma, ainda que inconscientemente, a supremacia dos mais fortes (no caso, os
arianos) – conforme a equivocada leitura que o evolucionismo social fez do
evolucionismo biológico. Tais idéias são incompatíveis com a visão romântico-
simbolista, que concebe a existência de uma harmonia universal. Diversamente, aliam-
se a outra corrente do romantismo, articulando-se com a filosofia de Schopenhauer e/ou
sua leitura por Nietzsche, mas não sem problemas. No final do romance, o paraíso de
Canaã é novamente adiado. O discurso de Milkau, embora carregado de dor, encontra-
se pleno de confiança no futuro. Canaã não é mais vista por ele, pois “ainda não
despontou à Vida”. Preserva-se a teleologia cristã como única alternativa à utopia de
Lentz, cujo desejo de um super-homem vindo de uma raça superior, que fosse capaz de
extinguir as inferiores para instaurar o processo de civilização, só poderia desaguar,
como de fato aconteceu historicamente, nas águas do nazi-fascismo.
Numa tentativa de melhor equacionar o dilaceramento que pretendemos
demonstrar, cremos ser possível afirmar que a visão de mundo que anima a obra de
Graça Aranha encontra-se tensionada por um romantismo da desilusão em confronto
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com outro que é utópico, aqui considerando a tipologia de Michel Löwy e Robert Sayre
(1995). O narrador se identifica com as idéias de Milkau, mas não consegue acolhê-las
inteiramente devido a sua sujeição pelos discursos científicos (das ciências biológicas e
sociais) dominantes na época. De um lado, uma visão da Natureza possivelmente
marcada pelas idéias da Vontade, presente na filosofia de Schopenhauer, e da luta pela
sobrevivência considerada como mola propulsora da evolução, presente tanto no
evolucionismo biológico quanto no social; de outro, uma visão da Natureza marcada
pelo panteísmo e animismo românticos. Sua saída perante a constatação da natureza
egoísta e destruidora do ser humano é conceber que a sua evolução genética implique
numa evolução espiritual. Nesse ponto o evolucionismo biológico amalga-se com a
crença cristã de um paraíso perdido, que é projetado para o futuro. Consorciam-se, aqui,
o caráter teleológico das três grandes narrativas da história ocidental: a cristã, a
positivista e a socialista/comunista.
Ao final desse percurso, voltemos para a ecocrítica com a seguinte questão: que
interesse tem essa leitura de Canaã para ela, ou, ainda, em que aspecto a presente leitura
e discussão da obra de Graça Aranha poderá contribuir para as pesquisas e reflexões
dessa nova disciplina acadêmica?
Como observou Greg Garrard, na citação inicial deste trabalho, a pastoral tem
enorme presença e importância para os discursos ambientalistas, posto que eles, em sua
maioria, se orientam por valores e mitos provenientes dela, especialmente da romântica.
O mesmo vale para o senso comum. Realizar, portanto, a crítica dessa vertente de
pensamento é tarefa importante para o estabelecimento de novos discursos e estratégias
de ação voltados para a preservação ambiental e uma relação entre homem e natureza
que consiga superar a aporias que vivenciamos.
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construir uma utopia ambientalista fundamentada nesses mitos e sem considerar as
condições de produção no atual mundo globalizado é querer seguir por um caminho que
a história já demonstrou, por vários exemplos, ser inviável. Querer negar o egoísmo
natural a todo ser vivo – uma vez que não podemos nos desvencilhar de nosso instinto
de sobrevivência e que a luta por ela sempre existirá (afinal, os recursos naturais não são
inesgotáveis) – e sonhar com uma sociedade igualitária e fundada exclusivamente no
Amor só pode levar, em última instância, ao desencanto imobilizador ou a posições
conservadoras e reacionárias. E sobre estas, o clássico estudo de Raymond Williams
sobre a representação do campo e da cidade na literatura continua sendo muito atual e
pertinente. E para refletirmos sobre tais questões, Canaã é um romance muito
adequado, sendo bastante exemplar das limitações da práxis ambientalista baseada na
pastoral romântica. Por não conseguir abandonar o animismo que caracteriza a sua
concepção de natureza, Graça Aranha debate-se entre duas posições inconciliáveis e é
incapaz de enxergar uma terceira via. Os fundamentos religiosos e metafísicos de sua
concepção de mundo não são compatíveis com a aceitação da existência de raças e sua
evolução. A aceitação da existência de características comportamentais determinadas
geneticamente é inconciliável com a idéia de um Homem e uma Sociedade movidos
exclusivamente pelo Amor. O desejo de manter a natureza intocada não resiste às
necessidades reais de existência, que naturalmente levam à ação de domínio e
exploração do meio ambiente – fato inevitável, afinal o homem também é natureza,
como nos lembra o próprio pensamento romântico com sua idéia das correspondências
universais, posto que integrem o homem ao cosmos numa unidade absoluta.
7. REFERÊNCIAS
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 4. ed.
São Paulo: Pioneira, 1983.
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LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão
da modernidade. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes,
1995.
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