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Deveríamos encarar o tal pastor como mais um tolo e condenar seu artigo
mal redigido ao esquecimento? Talvez. Mas antes, precisamos ficar alertas para
algo maior e verdadeiramente preocupante: o fantasma da intolerância religiosa
não está assombrando apenas páginas esporádicas de jornais locais. Em escala
mundial, estamos verificando uma onda de fanatismo que nos remete à idade
média. Na Europa medieval, uma multidão de pessoas foi perseguida, torturada e
queimada viva simplesmente por pensarem de uma maneira diferente de como a
igreja achava certo. Hoje, os inquisidores do novo milênio estão agindo nas
escolas, nos bastidores da política e nos meios de comunicação.
Quero deixar claro que nada tenho contra os livros sagrados em si. Na
verdade, estudo a filosofia comparada das religiões, entre outros temas da filosofia
universal, já há alguns anos. Minhas incursões neste campo incluem o budismo, o
hinduísmo, o cristianismo primitivo, a kabbalah e o esoterismo ocidental de uma
maneira geral, além de cultos religiosos e práticas místicas das civilizações antigas.
Em todas estas manifestações, percebe-se claramente duas coisas. Primeiro, há
uma proclamação geral de certos preceitos éticos universais comuns, como o amor,
a caridade e o respeito ao próximo e à natureza. Segundo, as religiões são
sabidamente fruto de processos históricos, sociais e culturais específicos. Seu
conteúdo, excetuando-se os preceitos universais citados acima, é resultado desses
processos e das múltiplas interpretações resultantes dele. Posto isto, chegamos ao
cerne da questão da intolerância religiosa: a interpretação dos textos sagrados. É
esta interpretação que conduz à criação de dogmas e definição de ideologias. Neste
ambiente subjetivo, manipulações e traduções com erros – que muitas vezes são
maliciosamente incluídos em benefício próprio – tornam-se mais comuns do que se
pensa, dando origem a textos derivados, escritos segundo a visão pessoal de seus
autores, que terminam muitas vezes permeados de afirmações dúbias ou mesmo
incorretas. Eu mesmo já encontrei, em pesquisas sobre o mesmo tema,
explanações de autores diferentes que se chocavam entre si, certamente fruto de
más traduções ou interpretações. Agravando ainda mais o quadro, nas religiões
costuma-se acreditar cegamente que as histórias que permeiam as páginas dos
livros sagrados realmente aconteceram, apesar de muitas delas irem de encontro
ao que já se descobriu cientificamente através da pesquisa arqueológica e outras
não passarem de derivações de mitos bem mais antigos – cito o caso da narrativa
bíblica de Noé e o dilúvio, originalmente encontrada nas culturas suméria e
babilônica (Uta-Napishtim, Epopéia de Gilgamesh).