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De volta à idade das trevas?

Por Eduardo Neves.·.

Recentemente, um artigo foi publicado no jornal O Dia, defendendo a


discriminação dos homossexuais e citando a bíblia como justificativa. O autor, um
pastor evangélico, transcreveu vários versículos tentando alcançar algum efeito
comparativo – como se fosse possível transpor as características sócio-culturais de
um povo que viveu no oriente médio há milhares de anos para o Brasil do século
vinte e um. No desenvolvimento do texto, afirmações obtusas do tipo “a bíblia é a
única regra de fé” dividem espaço com delírios descabidos, como o que sugere que
o Mar Morto teria sido formado por rajadas de fogo divino em desaprovação aos
gays. Surpreendentemente, alguns parágrafos denunciam que o pastor, na
verdade, abomina os preceitos da fraternidade cristã que alega defender, pois cita
com entusiasmada aprovação as práticas de castração, apedrejamento e
incineração em praça pública que os monarcas Fernando de Aragão e Isabela de
Castela instituíram na Espanha do século XIII contra os homossexuais. Ao fim do
texto, o autor só conseguiu demonstrar sua total falta de conhecimento histórico e
deixar transparecer a estupidez e o preconceito que impregnam as mentes dos
fanáticos.

Deveríamos encarar o tal pastor como mais um tolo e condenar seu artigo
mal redigido ao esquecimento? Talvez. Mas antes, precisamos ficar alertas para
algo maior e verdadeiramente preocupante: o fantasma da intolerância religiosa
não está assombrando apenas páginas esporádicas de jornais locais. Em escala
mundial, estamos verificando uma onda de fanatismo que nos remete à idade
média. Na Europa medieval, uma multidão de pessoas foi perseguida, torturada e
queimada viva simplesmente por pensarem de uma maneira diferente de como a
igreja achava certo. Hoje, os inquisidores do novo milênio estão agindo nas
escolas, nos bastidores da política e nos meios de comunicação.

Nos Estados Unidos, para citar apenas um exemplo, estão silenciosamente


tentando banir a teoria da evolução darwiniana da grade curricular nas escolas,
substituindo-a pelo mito bíblico de Adão e Eva. Os ditos criacionistas hoje formam
uma boa parte do eleitorado americano, e patrocinam associações que detêm
muito poder, inclusive com representantes no senado. E, como bons americanos,
estão expandindo suas influências para o resto do planeta, inclusive para o Brasil.
Para essas pessoas, a Terra tem apenas dez mil anos de existência, “cálculo” feito
com base em textos bíblicos, embora a geologia nos prove através dos minerais
que nosso planeta existe há 4,6 bilhões de anos. Estes fundamentalistas acreditam
que estão certos porque leram isso em seus livros sagrados e, portanto, nada, nem
mesmo uma prova científica, os afastará de sua crença. Acontece que a verdade
que aparece em um livro sagrado é um axioma, não o produto final de um estudo,
de um raciocínio. Assim, para essas pessoas, se a evidência científica contradiz a
crença religiosa, é a ciência que deve ser rejeitada, e não a crença. Centenas de
milhares de crianças estão sendo educadas sob essas e outras mentiras, neste exato
momento.
Em uma análise mais profunda, percebemos que idéias como essa se
constituem, na verdade, em uma espécie de jurisprudência para o florescimento de
uma ideologia mais radical, como a que vai de encontro aos homossexuais. Já que
é aceitável negar uma prova científica por causa da Bíblia, torna-se aceitável então
embasar qualquer atitude, por mais criminosa que possa parecer, na crença
religiosa. Isso confere um surreal status de intocabilidade à religião, algo que a
coloca acima até mesmo das leis vigentes. Se um pastor publica um artigo
sugerindo o assassinato de pessoas devido a orientação sexual delas, nós devemos
ser obrigados a respeitar esta “opinião”, por se tratar de uma crença religiosa? A
discriminação, quando acontece por motivos supostamente sagrados, não é mais
considerada crime? Ameaças de morte, quando acompanhadas de citações
bíblicas, estão livres de ações judiciais? Estes e outros absurdos acontecem todos os
dias, a olhos vistos. Sob o manto protetor da religião, pessoas abusam de
substâncias ilícitas, praticam bigamia, aliciam menores, recolhem vultosas somas de
dinheiro sem emitir nota fiscal, deixam de trabalhar aos sábados, são liberados do
serviço militar, não pagam IPTU, incomodam vizinhos com gritarias mesmo após
as 22 horas e por aí vai, trilhando uma estrada onde a ilegalidade, o desrespeito, o
racismo e a estupidez se tornam justificáveis. Essas pessoas arrogam para si o
direito de meter o bedelho na vida dos outros, sob a falácia de estarem abrindo
seus olhos e ajudando na suposta salvação de suas almas. A história da
humanidade está repleta de guerras e matanças, cometidos sob a orientação de um
livro sagrado onde a intolerância e o desrespeito a outras culturas surgem como
um bizarro desdobramento dos ensinamentos expostos.

Quero deixar claro que nada tenho contra os livros sagrados em si. Na
verdade, estudo a filosofia comparada das religiões, entre outros temas da filosofia
universal, já há alguns anos. Minhas incursões neste campo incluem o budismo, o
hinduísmo, o cristianismo primitivo, a kabbalah e o esoterismo ocidental de uma
maneira geral, além de cultos religiosos e práticas místicas das civilizações antigas.
Em todas estas manifestações, percebe-se claramente duas coisas. Primeiro, há
uma proclamação geral de certos preceitos éticos universais comuns, como o amor,
a caridade e o respeito ao próximo e à natureza. Segundo, as religiões são
sabidamente fruto de processos históricos, sociais e culturais específicos. Seu
conteúdo, excetuando-se os preceitos universais citados acima, é resultado desses
processos e das múltiplas interpretações resultantes dele. Posto isto, chegamos ao
cerne da questão da intolerância religiosa: a interpretação dos textos sagrados. É
esta interpretação que conduz à criação de dogmas e definição de ideologias. Neste
ambiente subjetivo, manipulações e traduções com erros – que muitas vezes são
maliciosamente incluídos em benefício próprio – tornam-se mais comuns do que se
pensa, dando origem a textos derivados, escritos segundo a visão pessoal de seus
autores, que terminam muitas vezes permeados de afirmações dúbias ou mesmo
incorretas. Eu mesmo já encontrei, em pesquisas sobre o mesmo tema,
explanações de autores diferentes que se chocavam entre si, certamente fruto de
más traduções ou interpretações. Agravando ainda mais o quadro, nas religiões
costuma-se acreditar cegamente que as histórias que permeiam as páginas dos
livros sagrados realmente aconteceram, apesar de muitas delas irem de encontro
ao que já se descobriu cientificamente através da pesquisa arqueológica e outras
não passarem de derivações de mitos bem mais antigos – cito o caso da narrativa
bíblica de Noé e o dilúvio, originalmente encontrada nas culturas suméria e
babilônica (Uta-Napishtim, Epopéia de Gilgamesh).

Eu gostaria de sugerir um pequeno exercício mental. Seguindo a sugestão


de John Lennon, imagine um mundo sem religião. Sem o 11/9, sem as Cruzadas,
sem a guerra interminável entre israelenses e palestinos, sem o holocausto judaico,
sem padres pedófilos, sem evangélicos tirando dinheiro dos ingênuos, sem
mulheres açoitadas por mostrarem alguns centímetros de sua pele. Um mundo
onde pudéssemos salvar mais vidas através de órgãos oriundos de células-tronco,
onde não fôssemos praticamente forçados a batizar nossos filhos para satisfazer
caprichos de família, onde pudéssemos raciocinar livremente e perceber que é um
absurdo acreditar que um barco de madeira literalmente abrigou todas as espécies
de animais do planeta durante uma inundação. Nesse mundo, compreenderíamos
melhor nosso papel como seres humanos, e não como parte de um rebanho.
Seríamos indivíduos, e não gado. Teríamos nossas particularidades respeitadas e
nossas diferenças seriam o que são de fato: nuances de nossa própria espécie –
que, aliás, é o que a torna tão interessante. Nesse mundo, ficaríamos à vontade
inclusive para crer que existiu um homem sábio, que ensinou de uma forma
bastante simples a ética, o amor, a liberdade e – olha só que coisa! – o respeito.
Poderíamos simplesmente seguir os conselhos deste homem, como quem acata o
apelo materno de levar um casaco ao sairmos de casa para o caso de esfriar. Esse
personagem, despido de preconceitos e considerando todos como irmãos, não
fundou religião alguma, não outorgou poderes para matarem em seu nome e
tampouco pediu dinheiro em troca de suas palavras. Ele tão somente recomendou
que nos respeitássemos mutuamente, que não façamos com os outros o que não
queremos que façam conosco. O que a intolerância religiosa e o fanatismo estão
fazendo hoje é antagonicamente o oposto. Pense nisso.

Eduardo Neves é publicitário, músico e espiritualista.

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